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DADOS DE COPYRIGHT · Quatro vidas de um cachorro: ... Eu viria a pensar várias vezes naquele sapo nos dias que se seguiram ... Claro que se tratava de um homem

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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudíavelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.orgouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluira

umnovonível."

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C189q

TítulooriginalADog’sPurpose

Copyright©2010byW.BruceCameron

Direitos de edição da obra em língua portuguesa noBrasil adquiridos pela CASADOS LIVROS EDITORALTDA.Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrônico,defotocópia,gravaçãoetc.,semapermissãododetentordocopyright.

RuaNovaJerusalém,345–Bonsucesso–21042-235RiodeJaneiro–RJ–BrasilTel.:(21)3882-8200–Fax:(21)3882-8212/8313

CIP-Brasil.CatalogaçãonafonteSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ

Cameron,W.Bruce,1960Quatro vidas de um cachorro: todo cachorro existe por uma razão / W. Bruce Cameron ;

traduçãoReginaLyra.-1.ed.-RiodeJaneiro:HarperCollins,2016.

Traduçãode:Adog’spurposeISBN978.85.9508.011-9

1.Romanceamericano.I.Lyra,Regina.II.Título.

CDD:813CDU:821.111(73)-3

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Capa

Rosto

Créditos

Dedicatória

Capítulo1

Capítulo2

Capítulo3

Capítulo4

Capítulo5

Capítulo6

Capítulo7

Capítulo8

Capítulo9

Capítulo10

Capítulo11

Capítulo12

Capítulo13

Capítulo14

Capítulo15

Capítulo16

Capítulo17

Capítulo18

Capítulo19

Capítulo20

Capítulo21

Capítulo22

Capítulo23

Capítulo24

Capítulo25

Capítulo26

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Capítulo27

Capítulo28

Capítulo29

Capítulo30

Capítulo31

Capítulo32

Agradecimentos

Fichatécnica

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ParaCathrynPortudo,porsertudo

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CAPÍTULO1

Um dia, afinal, me ocorreu que as coisas mornas, ruidosas e fedorentas semexendo à minha volta eram meus irmãos e minha irmã. Fiquei muitodecepcionado.

Embora a minha visão tivesse evoluído apenas a ponto de me permitirdistinguirformasnebulosasnumambienteclaro,eusabiaqueafiguragrandeebonitacomaquelalínguamaravilhosaeraaminhamãe.Descobriquequandooargeladomeesfriavaapeleerasinaldequeelatinhaidoaalgumlugarequequando o calor voltava estava na hora de comer.Quase sempre encontrar umlugarparamamarsignificavaempurraroqueeuagorasabiaserofocinhodeumirmãodispostoameprivardomeuquinhão,oqueerarealmenteirritante.Eunãoviasentidoalgumnaexistênciadosmeusirmãos.Quandomamãelambiaminhabarrigaparaestimularosfluidosqueescorriamdomeutraseiro,eupiscavaparaela, implorandoemsilêncioque se livrassedosoutros filhotes.Queriaqueelafossesóminha.

Aospoucos,osoutroscachorrosforamficandomaisnítidose,acontragosto,aceitei apresençadelesnoninho.Meuolfato logomedissequeeu tinhaumairmã e dois irmãos. Mana tinha um interesse ligeiramente menor em rolarcomigo no chão do que meus irmãos, um dos quais batizei mentalmente deVeloz, jáque,sabe-se láporque,elesemprefoimaisrápidoqueeu.AooutrodeionomedeFaminto,porquetodavezquemamãeseausentavaelegania,alémde mamar com uma sofreguidão estranha, como se jamais ficasse satisfeito.Famintodormiamaisquenóstrês,eMana,Velozeeucostumávamospularemcimadeleelambersuacara.

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NossoRetirofoiescavadosobasraízesescurasdeumaárvoreeerafrescoeescuronashorasquentesdodia.Naprimeiravezquemeaventurei,trôpego,sobo sol,Mana eVelozme acompanharam e, obviamente,Veloz passou à nossafrente.

Denósquatro,apenasVeloztinhaumamanchabrancanacara,equandosaíaandandolepidamente,essapartedopelocintilavaà luzdodia.“Souespecial”,parecia declarar ao mundo aquela mancha fascinante em forma de estrela. Orestantedoseucorpoeratãosarapintadoetrivialmentemarromepretoquantoomeu.Famintoerabemmaisclaro,eManaherdaraofocinhocurtoeatestachatade mamãe, mas não havia grande diferença entre nós quatro, apesar daarrogânciadeVeloz.

Nossa árvore se empoleirava na margem de um regato, e adorei quandoVeloz despencou de ponta-cabeça margem abaixo, embora Mana e eu nãotenhamosmergulhadocommaiselegânciaaotentarfazeramesmacoisa.Pedrasescorregadiaseumpequenocórregoproviamodoresmaravilhosos,eseguindoatrilhamolhadadoregatofomosdarnumacavernafriaeúmida—umamanilhacom laterais de metal. Instintivamente percebi que aquele era um ótimoesconderijoparafugirdoperigo,masmamãenãoseimpressionoucomanossadescobertaenosarrastousemcerimôniadevoltaaoRetiroquandoficouclaroquenossaspatasaindanãotinhamforçasparanospermitirescalaramargemdocórrego.

Aprendemosalição.Nãopodíamosvoltaraoninhoporcontaprópriaquandodescíamos da margem, razão pela qual assim que mamãe virou as costasrepetimosofeito.Dessavez,Famintojuntou-seanós,masnembemchegouàmanilha,esparramou-senalamafrescaeadormeceu.

Parecia que explorar era a coisa certa a fazer — precisávamos encontraroutras coisaspara comer.Mamãe, que começava a se impacientar conosco, selevantavaquandoaindanãohavíamosacabadodecomer,eeusópodiaatribuiraculpadissoaosmeusirmãos.SeFamintonãofossetãoinsaciável,seVeloznãofosse tãomandão, seMana não se agitasse tanto, eu sabia quemamãe ficariaquietaenosdeixariaenchernossasbarrigas.Nãoeraverdadequeeusempreaconvencia a se deitar, em geral com um suspiro, quando me esticava paraalcançá-la?

Eracomummamãegastarum tempinhoextra lambendoFaminto,enquantoeuespumavaderaivaantetamanhainjustiça.

A essa altura,Veloz eMana já estavammaiores que eu—meu corpo eraigual ao deles, mas com pernas mais atarracadas. Faminto era o nanico daninhada, claro, e me incomodava o fato de que Veloz e Mana sempre meabandonavamparabrincaremjuntos,comoseFamintoeeuformássemosalgum

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tipodeparnaturalnogrupo.Como Veloz e Mana se interessavam mais um pelo outro do que pelo

restante da família, eu os punia privando-os da minha companhia, saindosozinho para me enfiar na manilha. Um dia, eu farejava alguma coisadeliciosamente morta e podre quando bem na minha frente um animalzinhomínimoexplodiunoar—umsapo!

Encantado,puleiparacimadele,tentandoacertá-locomaspatas,masosaposaltoudenovo.Tevemedo,emboraeusóquisessebrincareprovavelmentenemchegasseacomê-lo.

VelozeManaperceberamaminhaexcitaçãoevieramatodaatéamanilha,mederrubandonochãoquandofrearamnaágualodosa.OsapopuloueVelozinvestiusobreele,usandominhacabeçacomoumtrampolim.Rosnei,masmeuirmãomeignorou.

ManaeVelozcaíramumsobreooutrona tentativadeagarrarosapo,queconseguiuaterrissarnumapoçaeseafastarrapidamentenadando.Manaenfiouofocinhonaáguaebufou,espirrandoáguaemcimadeVelozedemim.Elesubiunolombodela,totalmenteesquecidodosapo—omeusapo!

Triste,eumeafastei.Pareciaestarvivendonumafamíliadeidiotas.Eu viria a pensar várias vezes naquele sapo nos dias que se seguiram, em

geralquandoestavaparaadormecer.Mepegueiimaginandoquesaboreleteria.Com frequência cada vezmaior,mamãe rosnava baixinho sempre que nos

aproximávamos,enodiaemqueelacerrouosdentes,numaespéciedeaviso,quandochegamoscorrendoegulosos,fiqueidesesperadoimaginandoquemeusirmãostivessemestragadotudo.Então,Velozrastejouatéelaemamãebaixouacabeça. Ele lambeu sua boca e ela o recompensou com comida, e todos nóscorremosparacompartilhar.Veloznosempurrou,masagora jáconhecíamosoriscado,equandoeucheiravaelambiaabocademamãe,elamedavadecomer.

A essa altura já estávamosbem familiarizados como regato e já tínhamosperambulado para lá e para cá, a ponto de impregnar toda a área com nossosodores.Velozeeupassávamosamaiorpartedotempodedicadosàsériatarefadebrincar,eeucomeçavaaentendercomoera importanteparaelequeojogoterminassecomigodebarrigaparacimaeeleamelamberacaraeopescoço.Manajamaisodesafiava,maseuaindanãotinhacertezasemeagradavaoqueaparentementetodosassumiamseraordemnaturaldonossogrupo.Faminto,éclaro, não ligava a mínima para o seu status, por isso, quando me sentiafrustrado,eumordiasuasorelhas.

Uma tarde, eu contemplava sonolento Mana e Veloz disputarem com osdentes um pedaço de pano que haviam achado, quando minhas orelhas seantenaram— algum tipo de animal se aproximava, algo grande e barulhento.

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Fiqueidepé,cambaleante,masantesquepudessecorreratéamargemdoregatoparainvestigaroqueera,láestavamamãe,ocorporígido,atenta.Vi,surpreso,que ela carregava Faminto entre os dentes, de uma maneira que já tinhamosabandonado há várias semanas.Conduziu-nos até a escuridão damanilha e sedeitou, as orelhas coladas à cabeça.Amensagemera clara, e nós a captamos,afastando-nos,emsilêncio,omáximopossíveldaentradadotúnel.

Quando a coisa ficou visível, caminhando a passos largos pelo leito doregato, senti omedo demamãe percorrer-lhe o lombo.A criatura era grande.Apoiava-se em duas pernas, e uma fumaça acre saiu de sua boca quando seaproximoudenós.

Contemplei atento, absolutamente fascinado. Por motivos que não podiaimaginar, senti-me atraído por essa criatura, seduzido, e chegueimesmo ameempertigar,prontoparacorrere saudá-la.Umolhardemamãe,porém,me fezdesistirdaideia.Eraalgoparadespertarmedo,paraevitaraqualquercusto.

Claroquesetratavadeumhomem.Oprimeiroquevinavida.Ohomemsequerolhounanossadireção.Subiuàmargemedesapareceude

vista.Passados algunsmomentos,mamãedeslizoupara a claridadee ergueuacabeça para se assegurar de que o perigo passara. Relaxou, então, e tornou aentrar,dandoumbeijotranquilizadoremcadaumdenós.

Corriláforaparavercommeusprópriosolhoseconstatei,desanimado,quetudoquerestaradapresençadohomemeraumodorpersistentedefumaçanoar.

Várias vezes nas semanas seguintes, mamãe reforçou a mensagem quehavíamosaprendidodentrodaquelamanilha:evitaroshomensaqualquerpreço.Temê-los.

Na próxima vez que mamãe saiu para caçar, tivemos permissão paraacompanhá-la. Longe da segurança do Retiro, seu comportamento tornou-setímidoenervoso,enósquatropassamosa imitá-la.Procuramosnosmanteraolargo de espaços abertos, caminhando bem próximo aos arbustos. Se víamosalguém,mamãecongelava,ocorpotenso,prontaparacorrer.Nessasocasiões,amanchabrancanopelodeVelozparecia tãochamativaquantoum latido,masninguémjamaisnotounossapresença.

Mamãenosensinouarasgarossacosfinosatrásdascasas,querapidamenteespalharampapéisquenãoprestavamerevelarampedaçosdecarne,crostasdepãoenacosdequeijo,quemastigamosdamelhormaneirapossível.Ossaboreseramexóticoseosaromas,maravilhosos,masaansiedadedemamãenosafligia,e comemos a toda a disparada, sem saborear coisa alguma. Quase namesmahora, Faminto devolveu sua refeição, o que achei um bocado engraçado atécomeçartambémasentirminhasentranhasdoeremnumespasmoviolento.

Aparentemente,acomidadesceumaisfácildasegundavez.

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Sempre tive consciência da existência de outros cachorros, embora nuncativessepessoalmenteencontradoalgum, salvoosdaminhaprópria família.Àsvezes, quando caçávamos, eles latiam para nós por detrás de cercas, muitoprovavelmente invejosos por perambularmos livres, enquanto se encontravamaprisionados. Mamãe, lógico, jamais deixava que nos aproximássemos deestranhos, enquanto Veloz em geral se eriçava um pouco, meio ofendido poralguémousarnosdesafiarquandoelelevantavaapernaparamolharumaárvorequenãolhepertencia.

Vez por outra, eu via cachorros até dentro de carros!Na primeira vez queisso aconteceu, fiquei encarando, maravilhado, aquela cabeça pendendo paraforadajanelacomalínguabalançando.Ocachorrolatiualegrementequandomeviu,masmeuespantoeragrandedemaisparamepermitirfazeroutracoisaalémdelevantarmeufocinhoefarejar,descrente.

Carros e caminhões eramoutras coisas das quaismamãe fugia, embora eunão entendesse como eles podiam ser perigosos, já que algumas vezestransportavam cachorros. Um caminhão grande e barulhento aparecia comfrequênciaelevavatodosossacosdecomidaqueaspessoasdeixavamdoladodeforaparanós,easrefeiçõesficavamescassasduranteumoudoisdias.Eunãogostavadaquelecaminhão,nemdoshomensgulososquesaltavampararecolhertodaacomidasóparaeles,emboratantooshomensquantoocaminhãotivessemumaromaglorioso.

Havia, agora, menos tempo para brincar, pois estávamos caçando.Mamãerosnava quando Faminto tentava lhe lamber a boca, na expectativa de umarefeição,etodoscaptamosamensagem.Saíamosbastante,àsescondidas,numabusca desesperada por comida. Eu agora me sentia cansado e fraco e nemtentavadesafiarVelozquandoelepunhaa cabeçanomeu lombo, estufandoopeitoparacimademim.Tudobemseelequeriaserochefão.Naminhaopinião,afinal,minhaspernascurtaserammaisapropriadasàsretiradassorrateirasqueanossa mãe nos ensinara. Se Veloz achava que estava provando alguma coisausandosuaalturaparamederrubar,seenganava.Mamãeeraocãocomandante.

Mal havia lugar para todos nós debaixo da árvore agora, e mamãe ficavaausenteporperíodosde tempocadavezmais longos.Algomediziaque logo,logoelanãovoltariamais.Teríamosquenosvirarsozinhos,comVelozsempreme afastando do caminho na tentativa de abocanhar meu quinhão.Muito embreve,mamãejánãoestariaaliparacuidardemim.

ComeceiapensaremcomoseriadeixaroRetiro.O dia em que tudomudou teve início com Faminto entrando, trôpego, na

manilhaparasedeitar,emlugardesairparacaçar.Tinhaarespiraçãoofeganteea língua pendia para fora da boca. Mamãe afagou Faminto antes de sair, e

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quandoocheirei,seusolhoscontinuaramfechados.Acima damanilha passava uma estrada, e nessa estrada encontramos certa

vezumgrandepássaromorto,quedestroçamosjuntos,atéVelozarrancá-lodenósesumircomobanquete.Apesardoperigodesermosvistos,costumávamosandar para lá e para cá nessa estrada à procura de mais pássaros, o queestávamos fazendo quando mamãe de repente levantou a cabeça, assustada.Todosouvimosaomesmotempoobarulho:umcaminhãoseaproximava.

Só que não era um caminhão qualquer — o mesmo veículo, fazendo omesmobarulho,vinhapercorrendoanossaestrada,parabaixoeparacima,haviaváriosdias,emmarchalenta,ameaçadoraaté,comosenoscaçasse.

Seguimos mamãe quando ela voltou correndo para a manilha, mas pormotivos que jamais entenderei plenamente, parei e olhei para a máquinamonstruosa,gastandounssegundinhosextras,antesdeentraratrásdemamãenasegurançadotúnel.

Aqueles segundinhos acabaram fazendo toda adiferença— fuivisto.Comumavibraçãograve,trovejante,ocaminhãoparoudiretamenteacimadasnossascabeças.Omotorestalouesecalou,eemseguidaouvimososomdebotassobreocascalho.

Mamãesoltouumleveganido.Quandoos rostos humanos apareceramdeum lado e dooutrodamanilha,

mamãeseabaixou,ocorpotenso.Oshumanosnosmostraramosdentes,masogesto não me pareceu hostil. Seus rostos eram marrons, tinham pelos pretos,testasnegraseolhosescuros.

—Ei, garoto— sussurrou umdeles.Não entendi o que ele queria,mas ochamadopareciatãonaturalquantoosomdovento,comoseeunãotivessefeitooutracoisaavidatodaanãoserouviroshomensfalarem.

Ambos seguravam varas, vi então, varas com cordas amarradas àsextremidades.Pareciamameaçadoras, e senti opânico tomar contademamãe,queinvestiu,decabeçabaixaeunhasàmostra,mirandooespaçoentreaspernasde um dos homens. A vara desceu, houve um rápido estalido e minha mãe,contorcendo-seepulando,foiarrastadaparaaluzdodiapelohomem.

Manaeeurecuamos,commedo,enquantoVelozrosnava,opeloeriçadonapartedetrásdopescoço.Foiquandoocorreuanóstrêsque,emboraocaminhoàs nossas costas continuasse bloqueado, a boca do túnel à frente agora estavaliberada.Partimoscéleres.

—Lávêmeles!—gritouohomematrásdenós.Umavezdoladodefora,percebemosquenãosabíamosoquefazer.Manae

eu ficamos atrás de Veloz — ele não queria mandar? Então lidasse com asituação.

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Não vimos sinal de mamãe. Os dois homens ocupavam margens opostas,porém,cadaumsacudindosuavara.Velozdriblouum,masfoiapanhadopelooutro.Mana aproveitou a confusão para escapar, as patas patinhando na águaenquantoelaseafastavatrotando,maseupermanecialiplantado,oolharfixonaestrada.

Umamulherdecabelobrancocompridosurgiuacimadenós,orostovincadodebondade.

—Vem,bebê,estátudobem.Vocêvaigostar.Vem,bebê—chamou.Nãocorri.Nãomemexi.Deixeiqueacordaescorregassepelaminhacabeça

e fosseapertadanomeupescoço.Avarameconduziumargemacima,ondeohomemmeagarroupelapartedetrásdopescoço.

—Tudobemcomele—ronronouamulher.—Podesoltar.—Elevaifugir—alertouohomem.—Podesoltar.Acompanheiessepequenodiálogosemcompreender,entendendoapenasque

por algum motivo era a mulher quem mandava, embora fosse mais velha emenorqueambososhomens.Comumgrunhidorelutante,ohomemremoveuacordadomeupescoço.Amulherestendeuasmãosparamim:aspalmaseramásperas, calejadas, envoltas em um aroma floral. Cheirei-as então e baixei acabeça.Umanítidasensaçãodecarinhoepreocupaçãoseirradiavadela.

Quandoamulherafagoumeupelocomosdedos,sentiumarrepio.Meurabochicoteouoarporcontaprópria,equandoelamesurpreendeumeerguendonocolo, estiquei-me para beijar-lhe o rosto, fascinado com a gargalhada que eladeu.

O clima pesou quando um dos homens se aproximou carregando o corpoinerte de Faminto. O homem mostrou-o à mulher, que fez um muxoxo detristeza,levando-odepoisparaocaminhão,ondemamãeeVelozocupavamumagaiolademetal,esegurou-ojuntoaosfocinhosdeambos.Oodordamorte,quereconhecicomoqualqueroutralembrança,desprendeu-sedeFamintoeveioatémimatravésdoarsecoeempoeirado.

Todos nós cheiramosmeu irmãomorto, e entendi que os homens queriamquesoubéssemosoqueaconteceraaFaminto.

A tristeza emanava de todos eles, de pé, calados, nomeio da estrada,masninguémsabiaoquantoFamintohaviasidodoente,doentedesdeonascimentoefadadoaumavidabreve.

Fuipostonagaiola,emamãefungoureprovadoramenteaosentiroaromadamulher, que aderira ao meu pelo. Com um solavanco, o caminhão partiunovamente e logo me distraíram os maravilhosos cheiros que penetravam nagaiolaenquantodescíamosaestrada.Euviajavanumcaminhão!Lati,extasiado,

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fazendoVelozemamãeviraremacabeça,surpresoscomaminhaexplosão.Nãopudemeconter:aquelaeraacoisamaisexcitantequejámeaconteceranavida,incluídaaíaocasiãoemquequaseapanheiosapo.

Velozparecia acabrunhadode tristeza, e levei um tempinhopara entender:Mana,suacompanhiafavorita,sefora,umaperdatãodefinitivaparanósquantoadeFaminto.

Omundo,penseicomigomesmo,eramuitomaiscomplexodoqueeuhaviasuposto. Não se tratava apenas de mamãe e meus irmãos se escondendo daspessoas, caçando e brincando na manilha. Acontecimentos maiores tinham ocondãodemudartudo—acontecimentoscontroladosporsereshumanos.

Sobreumacoisaeuestavaerrado.Emboranãosoubéssemosentão,VelozeeuencontraríamosManadenovo,nofuturo.

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CAPÍTULO2

Qualquerquefosseodestinodanossaviagemdecaminhão,algomediziaqueencontraríamosoutroscachorrosaochegar.Agaiolaquenosabrigavacheiravadecididamente a cachorro, urina, fezes e até sanguemisturado a pelo e saliva.Enquanto mamãe se encolhia, as unhas bem à mostra para impedir queescorregasse no chão sacolejante,Veloz e eu andávamospara lá e para cá, defocinho baixo, farejando um cachorro diferente atrás do outro. Veloz tentoumarcar território nos cantos da gaiola, mas sempre que experimentava seequilibrar em três patas, uma boa sacudida do caminhão o jogava no chão.Chegoumesmoacairumavezemcimademamãe,oquelheproporcionoudelambujaumarápidamamadinha.Olhei-o, indignado.Serápossívelqueelenãoviaqueelaestavainfeliz?

Nofinaldascontas,cansadodefarejarcãesausentes,grudeimeufocinhoàgradedearameeinspireiboasdosesdevento.Lembrei-medaprimeiravezqueenfiei acaranas suculentas lixeirasqueconstituíamanossaprincipal fontedealimentação. Havia milhares de odores inidentificáveis ali, todos penetrandominhasnarinascomtamanhaforçaqueeunãoparavadeespirrar.

Velozposicionou-sedoladoopostodagaiolaesedeitou,desconsiderandoapossibilidadedejuntar-seamimnalateral,poisaideianãotinhasidosua.Elemelançavaumolharmal-humoradotodavezqueeuespirrava,comoseavisassequenapróxima tentativaeramelhorpedir sua licençapara isso.Cadavezquevia aquele olhar frio, eu encarava com insistência mamãe, que, emboraobviamente acovardada por toda essa experiência, a meu ver, continuava nocomando.

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Quandoocaminhãoparou,amulherseaproximouefalouconosco,pondoaspalmasdasmãosnalateraldagaiolaparaquelambêssemos.Mamãepermaneceuondeestava,masVeloz,tãoseduzidoquantoeu,sepôsameuladobalançandoorabo.

—Quegracinhaquevocêssão.Comfominha,bebês?Fominha?Havíamos estacionadodiante de umprédio comprido e atarracado, comos

pneusdocaminhãosobreesparsagramadedeserto.—Ei,Bobby!—gritouumdoshomens.Areaçãoaseugritomedeixouatônito.Dosfundosdacasaveioumcorode

latidos,tantosquenãoconseguiaidentificaronúmerodefontes.Velozsubiunaspatas traseiras e pôs as dianteiras na lateral da gaiola, como se essa posturapudesseajudá-loaenxergarmelhor.

Aalgazarraprosseguiu,enquantooutrohomememergiadeumaportalateralda casa.Eramarrome gasto, e caminhavamancando ligeiramente.Amaneiracomoosoutrosdoislhesorriramsugeriaalgumaexpectativa.Quandonosviu,ohomemparou,encolhendoosombros,desanimado.

— Ah, não, missus. Chega de cães. Já estamos lotados. — O homemirradiavaconformismoetristeza,masnadasentinelequedemonstrasseraiva.

Amulherseviroueaproximou-sedele.—Estamoscomdoisfilhoteseamãe.Devemterunstrêsmeses.Umfugiue

ooutromorreu.—Não!—Amãe,coitadinha,estáapavorada.—Jálhedissemosdaúltimavezquetemoscachorrosdemaisenãoquerem

nosdarumalicença.—Poucomeimporta.—Mas,missus,nãoháespaço.—Ora,Bobby,vocêsabequenãoéverdade.Oquesepodefazer?Deixar

que vivam como animais selvagens? Eles são cachorros, Bobby, filhotes,entende?—Amulhervirou-separaagaiolaebalanceioraboparalhemostrarqueestavaprestandoamáximaatenção,mesmosementenderpatavina.

—Éissoaí,Bobby!Quediferençafazaceitarmais três?—perguntouumdoshomenssorridentes.

—Qualquerdiadestesnãovaihaverdinheiroparapagaravocês, todoeleserá gasto com comida canina — respondeu o homem chamado Bobby. Osoutrosapenasderamdeombros,sorrindo.

— Carlos, quero que você pegue uns bifes de hambúrguer e volte àqueleregato.Vejaseencontraofilhotequefugiu—disseamulher.

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Ohomemassentiucomacabeça,rindodaexpressãodeBobby.Entendiqueamulher comandavaessa famíliadehumanose lhedeioutra lambidanamãoparaqueelagostassemaisdemimdoquedosoutros.

—Ah,quecachorrobonzinho—medisseela.Deiváriospulos,balançandoo rabo com tamanha força que ele atingiu Veloz bem na cara, irritando meuirmão.

OhomemchamadoCarloscheiravaacarnetemperadaeóleosexóticosquenãopude identificar.Ele enfiouumavaranagaiola,pegandomamãe.Velozeeu,deboavontade,seguimosatrásquandoelafoilevadaparaalateraldacasa,ondehaviaumagrandecerca.Osomdelatidosalieraensurdecedor,esentiumligeiromedo—ondeestaríamos,exatamente,nosmetendo?

OaromadeBobbytinhaumquêdecítrico,delaranjas,misturadoaocheirode terra, de couro e de cães. Ele abriu um tantinho o portão, bloqueando ocaminhocomoprópriocorpo.

—Para trás! Jápara trás!Vamos lá!—comandou.Os latidosdiminuíramumpouco,equandoBobbyescancarouoportãoeCarlosempurroumamãeparadentro,cessouporcompleto.

Fiquei tão pasmo com o que vi que sequer senti o pé no traseiro quandoBobbymeempurrouparadentrodocercado.

Cães.Por todo lado havia cães. Vários deles eram tão grandes ou maiores que

mamãe, e alguns,menores.Todos passeavam livremente dentro de umgrandecercado, um pátio enorme circundado por uma alta cerca de madeira. Saítrotandonadireçãodeumgrupodecachorrosdeaparênciaamistosanãomuitomais velhos que eu, parando, assim que os alcancei, para fingir contemplarfascinadoalgumacoisanochão.Ostrêscãesàminhafrentetinhampeloclaroeeramtodosfêmeas.Porisso,sedutoramenteurineisobreummontedeterraantesdemejuntaraelas,cheirandoseustraseiros,comomandaaeducação.

Tão feliz eu estava com o desenrolar dos acontecimentos, que me deuvontade de latir, mas mamãe e Veloz não pareciam se sentir tão à vontade.Mamãe, na verdade, andava ao longo do perímetro da cerca, buscando umasaída,o focinhogrudadoaochão.Velozhaviaseaproximadodeumgrupodemachoseagorapermaneciatensoentreeles,orabotremendo,enquanto,umporum,osoutroserguiamumapatadeencontroaumesteiodacerca.

Um dosmachos foi se postar diretamente no caminho deVeloz, enquantooutrodeumeia-voltaparacheirar,agressivamente,oseutraseiro.Foiaíquemeupobre irmãozinho capitulou. O traseiro desabou, e quando ele se virou paraencararomachoàssuascostas,orabosecurvou,aninhando-seentreaspernas.Nãofiqueinadinhasurpresoquando,segundosdepois,elesedeitoudebarriga

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paracima,secontorcendocomumaanimaçãomeiodesesperada.Percebiquejánãocomandavamaisnada.

Enquantotudoissoacontecia,umoutromacho,musculosoealto,asorelhascompridaslhependendoaolongodacabeça,permaneceuabsolutamenteimóvelnocentrodopátio,observandomamãecorreremcírculos,desesperada.Algomedisse que de todos os cães naquele pátio era com esse que precisávamos tercuidadoe,paracomprovar,quandoeleabandonousuaposturarígidaecaminhounadireçãodacerca,oscachorrosquerodeavamVelozpararamdefazerbagunçaeergueramacabeça,emalerta.

A uma dezena demetros da cerca, omacho solitário partiu correndo paracima de mamãe, que parou, toda encolhida. O macho enfrentou-a com osombros,bloqueando-lheocaminho,oraboeretoqualumaflecha.Elasedeixoucheiraremtodaaextensãodocorpo,aindaencostadaàcerca.

Senti o impulso, que tenhocertezaVeloz tambémsentiu, de correr em seusocorro,mas, por algummotivo, vi que não daria certo. Aquelemacho era oMaioral, um mastim robusto com uma cara marrom e olhos escuros eremelentos.Asubmissãodemamãefaziaparte,simplesmente,daordemnaturaldascoisas.

Após esse cuidadoso exame, Maioral disparou uma rajada econômica deurina contra a cerca, quemamãedevidamente examinou, e depois foi embora,sem prestarmais atenção a ela. Atémamãe pareceuminguar, saindo de cenadiscretamenteparaseesconderatrásdeumapilhadedormentesdeferrovia.

No devido tempo, o grupo de machos veio me checar também, mas memostreisubmissoelambitodoselesnacara,fazendo-ossaberque,semsombradedúvida,teriamzeroproblemacomigo—meuirmãoéqueeraoencrenqueiro.Eusóqueriabrincarcomastrêsmeninaseexploraropátio,povoadodebolaseossosdeborracha,alémdetodotipodedistraçõesecheirosmaravilhosos.Umcristalinofiozinhodeáguacaíaotempotodonagamela,matandoanossasedesemprequenecessário,eohomemchamadoCarlosvinhaaopátioumavezpordia limpar a nossa sujeira. A intervalos regulares, todos começávamos a latiralto,semqualquermotivosenãoamerasatisfaçãoqueissonosdava.

Eacomida!Duasvezesaodia,Bobby,Carlos,Missuseooutrohomemseaproximavam,dividindo-nosemgruposconformeaidade.Despejavamsacosdeboacomidaemenormesbaciaseenterrávamosnelasasnossascaras,comendoomáximoqueaguentávamos!Bobbyficavaobservandoesemprequeachavaqueumdoscachorros(emgeralamenorzinhadasfêmeas)nãocomeraosuficiente,eleapegavanocoloelhedavaumaporçãoextra,afastandoorestantedenós.

Mamãecomiacomoscãesadultosedevezemquandoeuouviaumrosnadovindoládocantodela,emboraquandomeviravaparaolhartudoqueviaeram

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rabosabanando.Oquequerquecomessemtinhaumcheiromaravilhoso,masseum dos jovens tentava se aproximar para ver o que se passava, os homensintervinhamebarravamofilhote.

Amulher,Missus, seabaixavaparanosdeixarbeijar seu rostoepassavaamão emnosso pelo, dando sonoras gargalhadas.Meu nome, disse-me ela, eraToby.Eraassimquemechamavatodavezquemevia:Toby,Toby,Toby.

Eutinhacertezadeser,delonge,oseucãofavorito—eporquenão?Minhamelhor amiga era uma fêmea de pelo castanho-claro, chamada Coco, quemeacolhera desde o primeiro dia. As pernas e patas de Coco eram brancas, ofocinho, cor-de-rosa, e o pelo áspero e espetado.Era suficientemente pequenaparaqueeuconseguisseacompanhá-laadespeitodasminhaspernascurtas.

Coco e eu brincávamos o dia todo, em geral na companhia das outrasmeninas e, algumas vezes, deVeloz, que sempre insistia para acabar como omaioral na brincadeira. Precisavamanter sua agressividade controlada, porém,porquequandosetornavademasiadorebelde,umdosmachoseramandadoaténósparalhedarumalição.Quandoissoacontecia,eusemprefingiajamaistê-lovistoantes.

Eu amava omeumundo, o pátio. Adorava correr na lama próximo à tinad’água,minhaspatas levantando lamadochão, salpicandomeupelo.Adoravaquando todos começávamos a latir, embora raramente entendesse o porquê.AdoravaperseguirCocoedormirsobreumapilhadecachorrosecheirarococôdos outros. Havia dias em que eu caía duro de exaustão de tanto brincar,euforicamentefeliz.

Oscachorrosmaisvelhostambémbrincavam—atéoMaioralpodiaservistocorrendopelopátiocomumpedaçodecobertornaboca,enquantoosoutrosoperseguiam,fingindonãoconseguiralcançá-lo.Menosmamãe,queescavaraumburacoatrásdosdormentesdeferroviaepassavaamaiorpartedotempodeitadanele.Quandoeuiavê-la,elarosnavaparamimcomosenãomeconhecesse.

Uma noite, depois do jantar, quando os cães já estavam sonolentos eesparramados no pátio, vi mamãe emergir furtivamente do esconderijo e seaproximar,sorrateira,doportão.Euroíaumossodeborracha,paraamenizarador constante em minha boca, que ansiava por morder alguma coisa. Parei,contudo,paraobservarcomcuriosidademamãesentadadiantedoportão.Seráque alguém estava chegando? Inclinei a cabeça, pensando que se houvessealgumavisitaosoutroscachorrosjáteriamcomeçadoalatir.

EracomumànoiteCarlos,Bobbyeosoutroshomenssesentarememtornodeumamesinhaparaconversar,abrindoepassandodemãoemmãoumagarrafadevidro,deondesaíaumcheirofortedealgumasubstânciaquímica.Essanoite,porém,oscãesestavamsozinhosnopátio.

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Mamãe levantou as patas dianteiras, encostando-as nas ripas do portão demadeira, e abocanhou a maçaneta de metal. Fiquei confuso. Por que, meperguntei,elahaveriadequerermorderumacoisadessas,quandonãofaltavamótimosossosdeborrachaespalhadospor todo lado?Elavirouacabeçaparaaesquerda e para a direita, aparentemente incapaz de dar uma boamordida nacoisa.LanceiumolharparaVeloz,maseledormiaasonosolto.

Então, para meu espanto, o portão se abriu com um estalido. Minha mãeabriraoportão!Elapousouaspatasnochãoeempurrouoportãocomocorpo,farejandocautelosamenteoardooutroladodacerca.

Virou-se, então, para mim, com um brilho nos olhos. O recado era claro:minhamãeiapartir.Fiqueidepéparamejuntaraela,eCoco,deitadapertodemim,preguiçosamenteergueuacabeçaemeolhouduranteumsegundo,antesdesuspirarevoltaraseesparramarnaareia.

Se eu partisse, jamais veriaCoco de novo. Fiquei dividido entre ser leal aminhamãe,quemealimentara,meensinaraecuidarademim,eogrupo,queincluíaVeloz,omeuirmãoimprestável.

Mamãenãoesperoupelaminhadecisão,esgueirando-sesilenciosamenteparaassombrasdanoitequecomeçavaacair.Seeuquisessealcançá-lateriaquemeapressar.

Corriparaoportãoaberto,seguindo-anadireçãodomundoimprevisíveldooutroladodacerca.

Ninguémnosviusair.

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CAPÍTULO3

Não fui muito longe. Para começar, não conseguia andar tão rápido quantomamãe,e,detodamaneira,haviaumpédearbustosdiantedacasanoqualmeviobrigadoadeixarminhamarca.Elanãomeesperou,sequerumavezolhouparatrás. Minha última lembrança é de mamãe fazendo o que fazia de melhor:desaparecendonassombras,despercebida,invisível.

Não faziamuito tempo, tudoque euquerianavida eraumachancedemeaninhar junto a mamãe, e sentir sua língua e seu corpo quentinho era maisimportante que qualquer outra coisa paramim.Agora, porém, ao vê-la sumir,entendi que aome deixar para trásmamãe estava simplesmente agindo comotodasascadelasmãesdevemfazerumdia.Acompulsãodesegui-lahaviasidooúltimogestoautomáticonumrelacionamentoquemudaraparasemprenodiaemquenossafamíliachegouaopátio.

MinhapataaindaestavalevantadaquandoMissuschegouàvaranda,parandoaomever.

—Ora,Toby,comofoiquevocêsaiu?Seeuquisessefugir,teriaquecorreragora,oque,éclaro,nãofoioquefiz.

Emvezdisso,abaneioraboepuleinaspernasdeMissus,tentandolamberseurosto.Oaromafloralqueelaexalavasemesclavaaumdeliciosoodorgordurosodegalinha.Missusafagouminhasorelhaseeuasegui,viciadoemseusafagos,enquantoelacaminhavaapassoslargosnadireçãodoportãoaindaabertoedobandodecãesrefesteladoimóvelnochãodopátio.Comumtapinhacarinhoso,elaentrouatrásdemim.

Nominutoemqueoportãosefechou,osoutroscachorrossepuseramdepé

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e correram em nossa direção.Missus fez festinhas para eles e falou com vozdoce, me deixando levemente irritado por dividir sua atenção, até aliexclusivamenteminha.

Eraumbocadoinjusto.EutinhadesistidodemamãeparaficarcomMissus,eagoraelaagiacomoseeufossetãoespecialquantoosoutros!

Quandoela se foi, oportão se fechoucomumsonoro ruídometálico,masnuncamaiseuoveriacomoumabarreiraintransponível.

Coco e eu brincávamos, alguns depois, quando mamãe voltou. Ao menosacheiquefosseela—euestavadistraídoporumnovodesdobramentoemnossocontínuojogodeluta,emqueeudavaavoltaportrásdeCocoemontavaemseulombo,agarrando-acomaspatasdianteiras.Eraumjogomaravilhoso,eeunãoentendiaporqueCocooencaravacomtamanhomauhumor,contorcendo-seerosnandoparamim.Separeciatãoperfeito,porquetantafaltadereceptividade?

Ergui os olhos quando Bobby abriu o portão. Lá estava mamãe parada,hesitante. Feliz, cruzei o pátio correndo, levando atrás de mim um bando decães,masdiminuíavelocidadeaomeaproximar.

Acadela tinhaomesmo sinaldemamãe,umamanchapreta sobreumdosolhos,bemcomoofocinhoachatadoeopelocurto,masnãoeramamãe.Elaseabaixou e urinou, submissa, ao nos ver chegar. Circundei o novo cão, comofizeram os demais, embora Veloz tenha se dirigido diretamente a ela paracheirar-lheotraseiro.

Bobby exibia a mesma postura derrotada de quando pusera nós todos nocaminhãopelaprimeiravez,maspermaneceupertodacadela,protegendo-acomocorpo.

—Vaidartudocerto,garota—garantiu.EraMana.Euquasemeesqueceradela,eagora,examinando-a,medeiconta

de como a vida devia ter sido diferente do outro lado da cerca.Mana estavamagra, as costelas nitidamente visíveis, e uma cicatriz branca, purulenta, seestendiapelalateraldoseucorpo.Abocafediaacomidapodre,equandoelafezxixi,umcheirodoentioacompanhouoato.

Veloz ficou eufórico,masMana estava amedrontada demais por causa dorestante do bando para aceitar seu convite para brincar.Ela rastejou diante deMaioral e deixou-se cheirar por todos sem fazer sequer um movimento paramarcarseuterritório.Quandoosoutrosdesdenhosamenteadispensaram,Manaexaminoudeformadiscretaagamelavaziaondepunhamacomidaebebeuumpoucodeágua,comoseestivesseroubando.

Era isso que acontecia com cachorros que tentavam viver no mundo semdonos— tornavam-se abatidos, vencidos, famintos. Teríamos todos sofrido amesmatransformaçãoseficássemosnamanilha.

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Veloznãosaíadoladodela.Ocorreu-mequeManasempreforasuafavorita,maisimportanteparaeleatéquemamãe.Observei-obeijá-laeseinclinardiantedelasemsentirciúmealgum—eutinhaCoco.

O que me deixou ciumento foi a atenção que Coco passou a receber dealgunsoutrosmachos,queaparentementeachavamquepodiamseaproximarebrincar com ela como se eu não existisse, o que suponho fosse verdade. Euconheciaomeulugarnogrupoeapreciavaasensaçãodeordemesegurançaqueele me proporcionava, mas também queria Coco só para mim e não gostavaquandoeragrosseiramenteafastadodocaminho.

Osmachospareciamquerertodosbrincarojogoinventadopormim,dandoavoltapor trásdeCocoe tentandomontá-la,masnoteicomumasatisfação friaqueelatambémnãotinhainteresseementrarnessejogocomeles.

Na manhã seguinte à chegada de Mana, Bobby veio até o pátio e levouVeloz,Mana,Cocoeumoutrojovemmacho,umgalgomalhadoemetidoqueos homens chamavam de Down, e pôs todos junto comigo numa gaiola natraseiradocaminhão.Olugarestavaapinhadoebarulhento,masadoreioventofortequeavelocidadeprovocavaeaexpressãonacaradeVelozquandoespirreinele. Por incrível que pareça, uma fêmea de pelo longo viajou na cabine comCarlos eBobby.Por que a escolherampara ser um cão de banco dianteiro?,pergunteiamimmesmo.Eporque,quandomechegavaseuaromapelasjanelasabertas, eu sentia um arrepio no corpo todo que me provocava uma ânsiaselvagem?

Paramosjuntoaumaárvorevelhaeretorcidaqueproviaaúnicasombradoestacionamento calorento. Bobby entrou no prédio com a cadela, enquantoCarlosveioatéaportadagaiola.Todosnós,comexceçãodeMana,avançamosansiosos.

—Venha,Coco— chamouCarlos. Senti cheiro de amendoim e frutinhosnosdedosdele,alémdealgodocequenãoidentifiquei.

Todos latimos invejosos quando Coco foi levada para o prédio, e depoislatimosporquelatimos.Umgrandepássaropretopousounaárvoreacimadenóseencarou-noscomosefôssemosidiotas,oquenoslevoualatirparaeledurantealgumtempo.

Bobyvoltouaocaminhão.—Toby!—gritouele.Orgulhoso,deiumpassoàfrente,aceitandoumacordadecouroemtornodo

pescoço,antesdepularparaochão,que,detãoquente,fezdoerasminhaspatas.Sequerlanceiumolharparaosperdedoresnagaiolaenquantoentravanoprédio,incrivelmentefrescoecheirosograçasaoaromadecãeseoutrosanimais.

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Bobbymeconduziuporumcorredoredepoismepegounocoloemepôssobreumamesabrilhosa.Umamulherentrouesacudioraboquandoelabotouumdedomaciodelicadamentenosmeusouvidoseexaminoumeupescoço.Suasmãos cheiravam a alguma substância química forte, embora as roupascheirassemaoutrosanimais,inclusiveaCoco.

—Queméeste?—indagouela.—Toby—respondeuBobby.Balanceimaisoraboaoouvirmeunome.— Quantos você disse que trouxe hoje?— perguntou a Bobby enquanto

exibiaminhagengivaparaexaminarmeusdentes.—Trêsmachosetrêsfêmeas.—Bobby!—falouamulher.Abaneioraboporquereconhecionomedele.—Jásei,jásei.—Elavaiarrumarencrenca—disseamulher,quemeapalpavadecimaa

baixo.Perguntei-meseseriaadequadogemerdeprazer.—Nãohávizinhosparareclamar.— Ainda assim, existem leis. Ela não pode continuar a recolher mais

cachorros.Onúmerodelesjáégrandedemais.Nãoésalutar.— Ela diz que do contrário os cachorros todos morrem. Não há gente

suficienteparaadotá-los.—Éilegal.—Porfavor,nãodenuncie,doutora.—Vocêmedeixanuma situaçãodelicada,Bobby.Preciso cuidar dobem-

estardeles.—Nóstrazemososdoentesparaasenhora.—Alguémvaifazerqueixa,Bobby.—Não,porfavor!—Nãoeu,ora.Nãovoudizercoisaalgumasemavisaravocêsantes,sem

lhesdarumachancedeencontrarumasolução.Certo,Toby?Lambiamãodela.—Cachorrobonzinho.Vamoslevá-loparaacirurgiaagora,darumjeitoem

você.Bobbyfezummuxoxo.Logomeviemoutrocômodo,superiluminado,masdeliciosamentegelado,

cheiodocheirofortequeemanavadamoçaboazinha.Bobbymeseguroufirmeeeumedeiteiimóvel,seilácomoadivinhandoqueeraissoqueelequeria.Sentiumador aguda,breve, atrásdopescoço,masnão reclamei,balançandoo rabovigorosamenteparamostrarquenãomeimportava.

Apróxima coisa de queme lembro foi de estar de volta aopátio!Abri osolhose tentei ficardepé,masminhaspatas traseirasnão funcionaram.Estava

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com sede,mas cansado demais para ir beber água.Baixei a cabeça e voltei aadormecer.

Quandoacordei,percebinamesmahoraquehaviaalgumacoisaemvoltadomeupescoço,umconebrancoqualquer, tão idiotaque temiquepudessemmeexpulsar dogrupo.Haviauma sensaçãodolorida, umacomichão, nomeiodasminhaspatastraseiras,maseunãopodiausarmeusdentesparacoçarporcausadaquelagolaimbecil.Andei,trôpego,atéatorneiraebebiumpoucodeágua,oestômagoembrulhadoeminhaspartes íntimasmuito,muitodoídas.Davaparaconcluirpelocheironopátioqueeuperderaojantar,mas,àquelaaltura,poucome importei. Descobri um trecho fresco de terra e desabei com um gemido.Velozestavadeitadoalieme lançouumolhar—tambémeleusavaumagolaridícula.

OqueBobbytinhafeitoconosco?As três fêmeas quehaviamnos acompanhado aoprédio damoçaboazinha

tinham sumido.No dia seguinte, andeimancando em volta do pátio, tentandofarejarsinaisdeCoco,masnadaindicavaqueelativessevoltadoconosco.

Aforaahumilhaçãodagolaimbecil,preciseitambémpassarpelaindignidadedeteraáreadoloridainspecionadaportodososmachosdogrupo.Maioralmevirou de barriga para cima com um safanão não muito delicado, e fiquei alideitado sofrendo, enquanto primeiro ele e depois os outros machos mecheiravamcomindisfarçáveldesprezo.

Nãotentaramomesmocomasfêmeas,queretornaramaopátioalgunsdiasmaistarde.FiqueieufóricoaoverCoco,quetambémusavaaquelagolaestranha,e Veloz fez o que pôde para consolarMana, para quem, nitidamente, todo oprocessohaviasidotraumático.

Carlos acabou removendo nossas golas, e dali em diante me vi menosinteressado no jogo em que eu montava nas costas de Coco. Em vez desse,inventeiumnovo,emqueeucorriaatéCococomumossodeborrachaeoroíabem na frente dela, jogando-o para cima e deixando-o cair. Coco fingia nãoquereroosso,desviavaoolhar,masseusolhossemprevoltavamaelequandoeuo empurrava para ela com o focinho. Finalmente, Coco perdia o controle epulava para pegá-lo, mas eu a conhecia tão bem que era capaz de alcançá-loantes.Entãoeurecuavadançando,balançandoalegrementeorabo,eàsvezeselameperseguiaecorríamosemgrandescírculos—apartedabrincadeiradequeeumais gostava.Outras vezes,Coco bocejava fingindo tédio, para que eumeaproximasse de novo, tentando-a com o osso de borracha até que ela nãoaguentassemaisefizesseoutratentativaparaapanhá-lo.Eugostavatantodessabrincadeiraquequandodormiasonhavacomela.

Às vezes havia ossos de verdade, porém, e com esses lidávamos de forma

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diversa. Carlos vinha até o pátio com um saco engordurado, distribuindoguloseimaschamuscadasechamandonossosnomesduranteoprocesso.Carlosnão entendia que devia sempre dar o primeiro a Maioral, o que não era umproblema para mim. Nem sempre eu ganhava um osso, mas quando issoacontecia,Carlosdizia“Toby,Toby”eoentregavadiretamenteamimbemnonariz de outro cachorro.As regras eramdiferentes quando havia humanos emcena.

Uma vez, quandoVeloz ganhou umosso e eu não, vi algo extraordinário.Veloz atracou-se com o petisco no meio do pátio, roendo freneticamente edeixandoescaparodoresinebriantesdoseutroféu.Aproximei-meparaobservarinvejoso,oquemelevouaestarbemaliquandoMaioralapareceu.

Velozficoutenso,apartandodeleveaspatas,comoseprestesaficardepé.QuandoMaioraldirigiu-seaele,Velozparouderoeresoltouumrosnadograve.NinguémjamaisrosnavaparaMaioral.Intuí,contudo,queVelozestavacerto—aqueleeraoseuosso,dadoaeleporCarlos,enemmesmoMaioralpodiatirá-lo.

Mas o osso era tão delicioso queMaioral aparentemente não conseguiu secontrolar.Enfiou-lheo focinho, e foi aí queVeloz atacou, fechandoosdentesbemnacaradeMaioral!OslábiosdeVelozsearreganharameosolhosviraramduas fendas. Maioral fitou-o apalermado diante dessa rebelião ostensiva edepois,comacabeçaaltivamenteerguida,virou-lheascostaseergueuapernadeencontroàcerca,semprestarmaisatençãoemVeloz.

Eu sabia que se realmente quisesse,Maioral podia ter tomado o troféu deVeloz. Maioral tinha tal poder e já o exercera antes. Testemunhei o queaconteceuquando,porvoltadaépocadanossaviagemdecaminhãoparavisitaramoçaboazinhanoprédiogelado,osmachossereuniramemtornodeumadasfêmeas,cheirando-aelevantandosuaspatasdeumjeitodecididoeurgente.Eufaziapartedogrupo,lamentodizer.Haviaalgonelatãosedutorquesequersoucapazdedescrever.

Todavezqueummachotentavacheirarseutraseiro,afêmeasesentavanaterra. Suas orelhas grudavam-se à cabeça, humildemente, mas ela tambémrosnou algumas vezes, e nessas ocasiões os machos recuavam como se elativesseacabadodesereleitaaMaioral.

Estávamostãopróximosunsdosoutros,queeraimpossívelevitaresbarrões,efoiassimquecomeçouumabrigaentreMaioraleomaiormachodogrupo,umenormecãopretoemarromqueBobbychamavadeRottie.

Maiorallutoucomumaeficiênciadeespecialista,agarrandoRottiepelapartede trásdopescoçoeobrigandoo cachorro a sedeitar.Abrimos espaçopara abriga,queterminouemsegundos,abemdaverdade,comRottiedebarrigapara

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cima, totalmentesubserviente.Obarulho,porém,atraiuCarlos,quegritou“Ei,ei,jáchega!”eficounomeiodopátio,ignoradopelosmachos,enquantoCocose aproximou para ganhar um afago. Depois de nos observar durante algunssegundos,Carlosgritouchamandoafêmeaqueeraofocodetodasasatençõeseatravessoucomelaoportão.

Nãoavinovamenteatéamanhãseguintenocaminhão,indovisitaramoçaboazinhanasalagelada,eelaviajounobancodianteirocomoshomens.

Depoisdeterminarderoerseuosso,VelozaparentementesearrependeudeimplicarcomMaioral.Meuirmãobaixouacabeça,balançandooraborasteiro,ese aproximou, sem jeito, do concorrente. Fez vários convites para brincar,ignoradosporMaioral,edepoislambeuoadversárionaboca.Issodevetersidoumpedido de desculpas suficiente, poisMaioral então brincou um pouquinhocomVeloz,virandomeu irmãodebarrigapara cimaedeixando-omorder seupescoçoantesdeseafastarabruptamente.

Era assim que Maioral mantinha a ordem, botando-nos todos no devidolugar,massemtirarvantagemdaprópriaposiçãopararoubaracomidaqueoshomensnosdavam.ÉramosumgrupofelizatéodiaemqueSpikechegou.

Daíemdiante,nadamaisfoicomoantes.

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CAPÍTULO4

Começava ame parecer que justo quando eu descobria como era a vida tudomudava.Quandocaçávamoscommamãe,aprendiatemeroshumanos,aprendiagarimparcomida,aprendicomoacalmarVelozparaqueelerecuperasseoque,setratandodomeuirmão,equivaliaabomhumor.Então,chegaramoshomens,noslevaramparaopátioetudoficoudiferente.

Nopátio,meadapteirapidamenteàvidaemgrupo,aprendiaamarMissus,CarloseBobby,ejustoquandoasminhasbrincadeirascomCococomeçaramater uma natureza diversa, mais complexa, fomos levados para visitar a moçaboazinhanasalageladaeaqueleimpulsourgentequeeuvinhasentindosumiutotalmente. Continuei a passar boa parte do dia lambendo Coco — e sendolambidoporela—,massemaquelaestranhacompulsãoquedevezemquandomeassaltavaantes.

Entreosdoismundos—odeforaeodopátio—ficavaoportãoquemamãeabrira.Tantasvezespenseisobreanoitedasuafugaquepraticamentedavaparasentiramaçanetademetalnaminhaboca.Mamãememostraraocaminhoparaaliberdade,seeuadesejasse.Maseueraumcãodiferentedela.Euadoravaopátio.QueriapertenceraMissus.MeunomeeraToby.

Mamãe, porém, havia sido tão antissocial que ninguém parecia sentir suafalta.Missussequerlhederaumnome.VelozeManaviraemexefarejavamavala atrás dos dormentes onde mamãe se deitava, mas nunca demonstrarampreocupaçãomaior com o seu desaparecimento.A vida continuou exatamentecomoantes.

Então,comostatusdetodosestabelecidonogrupoedepoisdepromovidoa

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fazer minhas refeições com os adultos, a ganhar de Carlos ossoscontrabandeados e de Missus guloseimas e beijos, um novo cão aportou nopedaço.

SeunomeeraSpike.Ouvimos as portas do caminhão de Bobby baterem e começamos todos a

latir, embora estivesse tão quente naquele dia que alguns de nós, deitados àsombra, nem se deram ao trabalho de ficar de pé.O portão se abriu eBobbyentrou,trazendoummachograndeemusculosopresoàextremidadedasuavara.

Serrecebidonoportãoportodoogrupoemcorreriaintimidavaumbocado,mas o cachorro novo permaneceu impassível. Era escuro e grandalhão comoRottieealtocomoMaioral.Boapartedorabolhefaltava,masopequenotocoque restara não estava balançando e ele apoiava o peso nas quatro patas,decidido.Seupeitoemitiaumroncograve.

—Calma,Spike.Tudobem—disseBobby.Pelo jeito como Bobby falou “Spike”, percebi que era esse o seu nome.

Resolvideixarquetodosoinspecionassemantesdemim.Maioral, como sempre, semantivera afastado,mas agora surgia da sombra

frescapróximoàtorneiraparaseapresentaraonovopensionista.BobbyretirouacordadopescoçodeSpike.

—Calminha—disseele.AtensãodeBobbycomunicou-seaogrupo,esentiopelodomeulombose

eriçar,emboranãosoubesseaocertoporquê.MaioraleSpikeexaminavamumao outro teimosamente, nenhumdos dois disposto a recuar, enquanto o grupoformava um círculo fechado. A cara de Spike estava coberta de cicatrizes—cavidadesnoformatodelágrimasecaroçoscinza-clarosnopeloescuro.

AlgumacoisanojeitocomoSpikepareceunosavaliar,comparandocadaumde nós a ele,me deumedo, embora o resultado tenha sido o esperado. SpikepermitiuqueMaioralencostasseacabeçaemseulombo,semcontudoseabaixarou deitar de barriga no chão. Ao contrário, aproximou-se da cerca, cheirou-acuidadosamente e depois levantou a pata.Namesmahora, osmachos fizeramfilaatrásdeMaioralpararepetirogestonomesmíssimolugar.

OrostodeMissussurgiu,então,porcimadoportão,eboapartedaansiedadequeeuestavasentindosumiu.Váriosdenósromperamocírculoecorreramatéela,apoiandoaspatasdianteirasnacercaparaseremafagadosnacabeça.

—Viu?Elevaificarbem—disseMissus.— Um cachorro como ele foi criado para lutar, Missus. Não é como os

outros,nãomesmo.—Sejaumcachorrobonzinho,Spike!—comandouMissus.Olhei,ciumento,nadireçãodonovocão,massuareaçãoaotersidochamado

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foiumolharindiferente,comosenadaacontecesse.Toby.Eraoqueeuqueriaouvirdela.Cachorrobonzinho,oToby.Emvez

disso,Missusfalou:—Nãoexistemcachorrosmaus,Bobby,sógentemá.Elesprecisamapenas

deamor.—Àsvezes,elesestãodestruídospordentro,Missus.Enadairáajudar.Missus automaticamente baixou a mão e afagou Coco atrás das orelhas.

Ostensivamente,enfieimeufocinhoentreseusdedos,maselanemdeusinalderegistrarminhapresença.

Mais tarde, Coco se sentou diante demim com um osso de borracha, queroeu laboriosamente. Eu a ignorei, aindamagoado por ter sido— logo eu, ofavorito de Missus — tratado com tamanho pouco caso. Coco se deitou debarriga para cima, brincando com o osso entre as patas, tirando-o da boca edeixando que caísse, segurando-o sem grande empenho para que eu soubessequeseriafácilpegá-lo.Porisso,pulei!MasCocoafastou-se,rolando,elogomeviperseguindo-anopátio,furiosoporelaterentendidotãomalojogo.

TãopreocupadoeuestavaemtirardeCocoadrogadoosso, jáquea ideiaeraeleficarcomigoenãocomela,queperdioiníciodetudo.Registreiapenasque de repente a luta que todos nós sabíamos que aconteceria já estavaacontecendo.

Normalmente,uma lutacomMaioral terminavarapidamente,comocãodestatusinferioraceitandoapuniçãopordesafiaraordemestabelecida.Masessaterrívelbatalha,ruidosamentetravadaeobscenamenteselvagem,parecianãoterfim.

Osdoiscãescolidiramcomaspatasforadochão,cadaumvisandoobteraposiçãomais alta, os dentes cintilando ao sol. Seus uivos foram a coisamaisferozeaterradoraquejáouvi.

Maioralpartiupara,comosempre,agarraroadversáriopelapartedetrásdopescoço, o que o habilitaria a controlar sem causar danos permanentes, masSpike sacudiuo corpo emordeu até abocanhar o focinhodeMaioral.Emborativesse lhe custado um rasgo sangrento sob a orelha, Spike obtivera umavantagemeagoraobrigavaMaioralabaixaracabeçacadavezmaisatéencostá-lanochão.

Ogruponada fez,nadapodia fazer, salvoofegareandaransiosamenteemcírculos,mas o portão se abriu eBobby entrou correndo, puxando atrás de siumacompridamangueirad’água.Umesguichoatingiuosdoiscachorros.

—Ei!Chegadisso!Ei!—gritouBobby.Maioralsossegou,submetendo-seàautoridadedeBobby,masSpikenãose

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abalou,ignorandoocomando.—Spike!—gritouBobby.Direcionando a mangueira à frente, Bobby alvejou Spike bem na cara,

fazendoosanguevoar.Finalmente,Spikecedeu,sacudindoacabeçaparaafastá-la do jato d’água e dirigindo a Bobby um olhar assassino. Bobby recuou,escudandooprópriocorpocomamangueira.

— O que houve? Foi o novato? El combatiente? — indagou Carlos,adentrandoopátio.

—Sí.Esteperroseráelproblema—respondeuBobby.Missusjuntou-seaoshomensnopátioedepoisdemuitadeliberação,Maioral

foi chamado, e suas feridas tratadas com uma substância de cheiro acre queimediatamenteassociei àmoçaboazinhada salagelada.Maioral secontorceu,lambeu-seearfou,asorelhascoladasàcabeça,quandoCarlosbesuntoualgonospequenoscortesemsuacara.

NuncapenseiqueSpikepermitissequelheaplicassemomesmotratamento,mas ele aguentou sem protestos ter os cortes debaixo da orelha medicados.Pareceuacostumadoa isso,aceitandoocheirodo remédiocomoalgumacoisanaturalapósumaluta.

Os dias seguintes foram de pura agonia. Nenhum de nós, sobretudo osmachos,sabiaemquepéestavamascoisasagora.

Spike indubitavelmente passara a líder, mensagem reforçada por ele aodesafiarcadaumdenóscaraacaranopátio.Maioralfizeraomesmo,masnãodesse jeito— para Spike, a menor das infrações eramotivo para castigo e amaioria deles incluía uma rápida e doída mordida. Quando a brincadeira setornava demasiado violenta ou intrusiva na zona de Maioral, ele costumavaemitirumavisoglacialatravésdeumolhare,àsvezes,deumrosnado.Spikepassavaodiapatrulhandoe investiacontranós semqualquermotivo—havianeleumaenergianegativa,algoestranhoemaligno.

Quandoosmachoscompetiampornovasposiçõesnogrupo,desafiandounsaos outros, Spike estava presente e, com enorme frequência, se envolviapessoalmente,incapazderesistiraentrardecabeçanabriga.Eradesnecessárioeprejudicial, provocando tanta tensão que pequenas rixas começaram a pipocarentrenós,brigasporcoisashámuito resolvidas,comoo lugardecadaumemvoltadagameladecomidaouquemseriaopróximoadeitar-senapartedopátiorefrescadapelatorneirad’águacomvazamento.

QuandoCocoeeunosentretínhamoscomabrincadeiradoossodeborrachae ela tentava roubá-lo, Spike se aproximava rosnando eme obrigava a pôr otroféuaseuspés.Algumasvezes,levavaoossoatéseucanto,encerrandoojogo

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atéqueeuconseguisseencontraralgumoutrobrinquedo.Noutras,eleocheirava,desdenhoso,eolargavaalinaterra.

Quando Carlos aparecia com o saco de ossos, Spike sequer se dava aotrabalhodeirverificarseganhariaum.Esperavaatéqueoshomensdeixassemopátio e simplesmente pegava o que lhe apetecia. Spike não incomodavadeterminados cachorros, como Rottie e Maioral e, por incrível que pareça,Veloz, mas sempre que eu tinha a sorte de cravar meus dentes em um dosdeliciososmimosdeCarlos,jápodiairmeconformandocomofatodequelogoSpike,enãoeu,seincumbiriaderoê-lo.

Essa era a nova ordem.Podíamos ter dúvidas quanto a entender as regras,mas sabíamos quem as ditava e as aceitávamos, razão pela qual fiquei tãosurpresoquandoVelozoconfrontou.

NaturalmentefoiporcausadeMana.Numararacoincidência,ostrêsirmãos—Veloz,Mana e eu—estávamos sozinhos no canto, examinandoum insetoque passara por baixo da cerca.Conviver de forma tão livre e simples com aminha antiga família era muito relaxante, sobretudo depois dos últimos diasrecheados de estresse. Por essemotivo, fingi que jamais havia visto nada tãofascinante quanto o minúsculo inseto preto erguendo microscópicas tenazescomosenosdesafiasseabrigar.

Distraídos, não notamos a aproximação de Spike até ele estar em cima denós, e seu rápido e silencioso ataque ao lombo de Mana transformou-a,instantaneamente,emumfilhotinhoamedrontado.

Namesmahoramefingidemorto—nãoestávamosfazendonadadeerrado!—,masVeloznão resistiu e investiu contraSpike, osdentesbrilhando.Manafugiucorrendo,maseu,impelidoporumaraivanuncadantessentida,mejunteiaVeloznabatalha,ambosrosnandoemordendo.

Tentei pular e agarrar umnacodo lombodeSpike,mas ele sevirou emeatacou. Quando caí de costas, sua boca se fechou na minha pata dianteira egritei.

Velozlogoseviuimobilizadonochão,maseunãoestavaprestandoatenção—adornaminhapataeraagonizante,esaímancandoeganindo.Cocoapareceuecomeçouamelamberansiosa,maseuaignorei,tirandoumaretaemdireçãoaoportão.

Como eu já sabia, Bobby abriu o portão e entrou no pátio, segurando amangueira.A luta acabou.Veloz fezaspazescomSpikeeMana seescondeuatrásdosdormentes.Assim,aatençãoseconcentrounaminhapata.

Bobbyseajoelhounaterra.—Tudobem,Toby,tudobem—disseele.Balanceidebilmenteo rabo, equandoeleencostounaminhapata, fazendo

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umadorlancinantemesubiratéopescoço,lambiseurostoparademonstrarqueeusabiaquenãohaviasidodepropósito.

Missus foi conosco visitar a moça boazinha na sala gelada. Bobby mesegurouenquantoelameespetavacomamesmaagulhadecheiro forteque jáusaraemmimumavez,eadornaminhapataparoudemeincomodar.Fiqueideitadonamesa,sonolento,enquantoamoçamexianaminhapata,ouvindosuavoz enquanto ela conversava com Bobby e Missus. Eu podia sentir suapreocupação,seucuidado,masnãomeincomodeideverdadeenquantoMissusafagava meu peito e Bobby me fazia ficar quieto. Mesmo quando Missusprendeu o fôlego ao ouvir a moça boazinha na sala gelada dizer “danopermanente”,euapenaserguiacabeça.Sóqueriamesmoeraficardeitadoparasemprenaquelamesa,nomínimoatéahoradojantar.

Quandovolteiparaopátio,usavaamesmagolaidiota,alémdeumamassaduraoualgodogêneroenvolvendominhapataferida.Tenteirasgaramassacomosdentes,mas,alémderidícula,agolatambémmeimpediadealcançarminhapata! Só dava para andar com três patas, o que aparentemente Spike achouengraçado, porque se aproximou demim eme derrubou com o peito.Beleza,Spike,váemfrente.Vocêéocachorromaisfeioquejávi.

Minhapatadoíao tempo todoeeuprecisavadormir.Cocoemgeralvinhaparapertodemimedeitavaacabeçaemmeucorpoquandoeuadormecia.Duasvezes ao dia, Bobby aparecia parame dar alguma guloseima, e eu fingia nãorepararquehaviaalgoamargodentrodobolinhodecarne,emboraàsvezes,emlugar de engolir, eu esperasse um pouco e cuspisse aquilo fora: uma coisinhabrancadotamanhodeumaervilha.

Euaindaestavausandoagolanodiaemqueoshomenschegaram.Ouvimosvárias portas baterem na entrada para carros, razão pela qual entoamos nossocoro habitual de latidos, embora vários de nós tenham se calado ao escutar ogritoagudodeMissus.

—Não!Não!Vocêsnãopodemlevarmeuscachorros!O sofrimento em sua voz era indisfarçável, e Coco e eu afagamos um ao

outro,assustados.Oqueestariaacontecendo?Oportãofoiescancarado,evárioshomenscautelosamenteentraramnopátio,

carregando as conhecidas varas.Muitos seguravam frascos demetal nasmãosestendidasepareciampreparadosparaumataque.

Ora, fosse qual fosse esse jogo, amaioria de nós estava disposta a aderir.Cocofoiumdosprimeiroscandidatosaseaproximar,sendoagarradaelevadasemoferecer resistência.Quase todososdemaisdogrupoaseguiram, fazendofila de boa vontade, embora alguns tenham ficado para trás—Mana, Veloz,

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Spike,Maioraleeu,porquesimplesmentenãomedeuvontadedemeaproximardelesmancando.Sequeriambrincar,quebrincassemcomSpike.

Mana disparou a correr no perímetro do pátio, como se esperasse que umburacoseabrisse.Velozacompanhou-aaprincípioedepoisparouemdesespero,observando a tentativa de fuga vã e apavorada da irmã. Dois homens seacercaram dela e a capturaram com uma corda. Veloz deixou-se levar deimediato, para acompanhá-la, eMaioral deuumpasso à frente comdignidadequandoochamaram.

Spike, porém, lutou contra o laço, rosnando com selvageria e tentandomorder.Oshomensgritaram,eumdelesapontouumesguichodelíquidodasualatadiretonacaradeSpike.Ocheiro imediatamentequeimouminhasnarinas,embora viesse do outro extremo do pátio. Spike parou de lutar e desabou nochão, com as patas sobre o focinho. Depois de levá-lo, os homens seaproximaramdemim.

—Cachorrinhobonito.Machucouapata,rapaz?—indagouumdeles.Balanceideleveoraboebaixeiligeiramenteacabeçaparafacilitaratarefa

depassaracordaemtornodomeupescoço,oquefoimeiotrabalhosoporcausadaquelagoladeplásticoidiota.

Umavezdo ladode foradacerca, fiqueinervosoaoverMissuschorando,querendo se soltar de Carlos e Bobby. Sua tristeza derramou-se dela e meengolfou,eforceiacorda,desejosodeconsolá-la.

UmdoshomenstentouentregaraMissusumpapel,maselaoatirounochão.— Por que estão fazendo isso? Não fazemos mal a ninguém! — gritou

Bobby.Suaraivaeraostensivaeameaçadora.— Animais demais. Péssimas condições — disse o homem do papel.

Também ele irradiava raiva, e todos estavam muito tensos e empertigados.Repareiquesuaroupaeraescuraequehaviaumaplacademetalpolidoemseupeito.

—Euadoromeuscachorros—gemeuMissus.—Porfavor,nãoostiremdemim.—Missusnãoaparentavaraiva.Estavatristeeamedrontada.

—Desumano—retrucouohomem.Fiqueipasmo.Verogrupotododoladodeforadopátioindopararcadaum

numagaiolanoscaminhõeserabastantedesconcertante.Amaioriadenóstinhaas orelhas grudadas à cabeça e os rabos submissamente baixos. A meu ladoestavaRottie,cujoroncoprofundoepesadoenchiaoar.

Minhaconfusãonãomelhorouquandochegamosanossodestino,cujocheirolembravaligeiramenteolugardamoçaboazinhadoquartogelado,maseraumlugarquenteecheiodecachorrosbarulhentoseansiosos.Entrei semresistir efiqueimeiodesapontadoaoserjogadonumagaiolacomVelozeMaioral—eu

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teria preferido ficar com Coco, ou mesmo com Mana, embora meuscompanheirosmachos demonstrassem tantomedo quanto eu eme encarassemsemhostilidade.

Oslatidoseramensurdecedores,masacimadelespudeouviroinconfundívelrosnadodeSpikeaoatacar,seguidodeumguinchoagudodedordealgumcãodesventurado. Os homens gritaram e algunsminutos depois Spike passou pornósnaextremidadedeumavara,sumindonofinaldeumcorredor.

Umhomemparoudiantedanossagaiola.—Oquehouveaqui?—indagou.Ooutrohomem,oqueacabaradelevaremboraSpike,parouemeolhousem

interesse:—Seilá.Sentinoprimeirodosdoisumapreocupaçãotemperadacomtristeza,masno

segundonadahaviasenãodesinteresse.Oprimeiroabriuaportaedelicadamenteapalpouminhapata,afastandoacaradeVeloz.

—Esteestáacabado—concluiu.Tenteimecomunicarcomeleeexplicarqueficavamuitomelhorsemaquela

golaidiota.—Inadotável—disseoprimeirohomem.—Temoscachorrosdemais—acrescentouosegundo.Oprimeirometeuamãoembaixodoconeeafagouminhasorelhas.Embora

me sentisse um pouco desleal com Missus, lambi sua mão. Ele cheirava,basicamente,aoutroscachorros.

—Muitobem—assentiuoprimeiro.Osegundohomemestendeuobraçoemeajudouapularparaochão.Passou

acordaàminhavoltaemelevouparaumquartomínimoequente.Spikeestavalá,numagaiola,enquantodoisoutroscãesqueeununcaviraantesandavamdelápracádoladodefora,evitandoqualquerproximidadecomagaioladeSpike.

— Ei, espere.—O primeiro homem estava parado à porta. Abaixou-se edesatouaminhagola,eoarquetocouminhacarafoicomoumbeijo.—Elesodeiamessascoisas.

—Vocêéquesabe—disseosegundohomem.Osdoissaíramefecharamaporta.Umdosnovoscãeseraumafêmeamuito,

muito velha, que cheirou meu focinho sem grande interesse. Spike latia,deixandoooutrocachorro,ummachojovem,nervoso.

Com um gemido, escorreguei para o chão, onde fiquei deitado. Um silvoruidosoencheumeusouvidos,eomachojovemcomeçouaganir.

De repente, Spike desabou no chão com um baque, a língua pendendo daboca.Olhei-o,curioso,imaginandooqueestariaaprontando.Afêmeavelhacaiu

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durabempertinho,descansandoacabeçanagaioladeSpikedeumjeitoquemesurpreendeu que ele permitisse. O macho jovem ganiu e olhei para ele comindiferençaantesde fecharosolhos.Fui tomadoporumcansaço tãopesadoeopressivoquantosentia,empequeno,quandomeusirmãosdeitavamemcimademimmeesmagando.Foipensandonisso—emserumfilhote—quecomeceiamergulhar num sono escuro e silencioso. Depois pensei em quando eu corriasoltocommamãe,penseinosafagosdeMissus,emCocoenopátio.

Semserconvidada,atristezaqueeusentiraemMissusseapossoudemimeeuquisdarumjeitodechegaratéelaelamberapalmadasuamão,devolvendo-lheafelicidade.Detodasascoisasquefiznavida,provocarseurisomepareceuamaisimportante,aúnicacoisa,concluí,quedavasentidoàminhavida.

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CAPÍTULO5

Tudoera,aomesmotempo,estranhoefamiliar.Eupodiamelembrarnitidamentedoquartobarulhentoequente,daalgazarra

deSpike,cheiodefúria,antesdecairnumestuportãoprofundoqueeracomosetivesse aberto um portão com a boca e fugido. Eu me lembrava de ficarsonolentoe,depois,daquelasensaçãodequemuitotemposepassou,meiocomoacontecequandoumcochilosobosolda tardeseprolongapelodia todoederepenteestánahoradojantar.Essecochilo,porém,nãomelevouapenasaumhoráriodiferente,mastambémaumlugardiferente.

Nãomeeraestranhaapresençacálidaetumultuadadefilhotesdeumladoedeoutro.Tambémnãomeeramestranhososempurrõesparaconseguirumlugarjuntoàtetaparamamaroleitegrossoevitalquerecompensavatodooesforçonecessárioparateracessoàsuafonte.Seilácomo,euvoltaraaserumfilhote,impotenteefraco,noRetirodenovo.

Noentanto,quandodeiminhaprimeiraolhadaturvaparaminhamãe,viquenãosetratava,absolutamente,damesmacadela.Seupeloeraclaroeela,maiorque...ora,maiorquemamãe.Meusirmãoseirmãs—sete,aotodo!—tinhamomesmo pelo claro, e quando examinei minhas patas dianteiras, percebi quetambémmepareciacomorestantedaninhada.

E,alémdenão seremmaismarrons,minhaspatasbrotavamdemimnumaproporçãoperfeitaemrelaçãoaorestantedocorpo.

Davaparaouvirumbocadodelatidosesentircheirodevárioscachorrosporperto,masaquiloalinãoeraopátio.Quandomeaventurei a sairdoRetiro, asuperfícieemquepiseieraáridaedura.Umacercadearamepôsumfimabrupto

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àminhaexploraçãoapósumadezenademetros.Tratava-sedeumagaiolacomtampodearameechãodecimento.

As implicações desse fatome deixaram cauteloso, e voltei trôpego para oRetiro,monteinapilhadeirmãosedesmaiei.

Eueranovamenteumfilhote,malcapazdeandar.Tinhaumanovafamília,uma novamãe e um novo lar. Nosso pelo era uniformemente louro e nossosolhos, escuros. O leite da minha nova mãe era muito mais forte que o daprimeira.

Morávamoscomumhomem,quetraziacomidaparaminhamãe,comidaqueelaengoliaapressadaantesdevoltaraoRetiroparanosaquecer.

Masquefimteriamlevadoopátio,Missus,VelozeCoco?Eumelembravadeformamuitoclaradaminhavida,etudoagoraestavadiferente,comoseeutivessecomeçadodozero.Seriapossível?

Lembrei-me dos latidos indignados de Spike e de como, ao adormecernaquele quarto quente, fui assaltado por uma pergunta inexplicável, umaperguntasobrepropósito.Nãopareciaotipodecoisaemqueumcachorrodevepensar, mas me vi voltando várias vezes a essa questão, em geral quandocomeçavaaescorregarparaumcochiloirresistível.Porquê?Porqueeuvoltaraaserumfilhote?Porqueessasensaçãoinsistentedeque,comocachorro,haviaalgumacoisaqueeuprecisavafazer?

Nossocercadonãoproviamuitacoisaemtermosdevista,enãohavianadadivertidoparamordermos,salvounsaosoutros,masquandomeusirmãoseeuficamos mais espertos, descobrimos a existência de outros cachorros em umcanilàdireita:filhotinhosminúsculos,cheiosdeenergia,commanchasescurasepeloespigado.Dooutrolado,moravaumafêmeapesadona,totalmentesozinha,comumabarrigagrandeetetasinchadas.Erabrancacommanchaspretaseumpelobem rente.Nãoperambulavamuitoenãodemonstravaqualquer interessepor nós.Uns trinta centímetros separavamos dois canis, razão pela qual tudoque nos restava era cheirar os filhotes próximos, embora eles dessem aimpressãodeserdivertidoscompanheirosdebrincadeira.

Bemànossafrentehaviaumlongotrechodegrama,muitoconvidativocomseuodordeterraúmidaesuagramasuculentaeverdinha,masaportatrancadada nossa gaiola nos impedia de chegar lá. Uma cerca de madeira contornavatantoaáreagramadaquantoasgaiolasdoscães.

O homem em nada se parecia comBobby ou Carlos. Quando aparecia naáreadocanilparaalimentaroscães,nãofalavamuitoconosco,irradiandoumacompleta indiferença,muitodiversadocarinhodoshomensquecuidavamdoscachorrosnopátio.Quandoos filhotesdocanilvizinhocorriamparasaudá-lo,

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ele os afastava da tigela de comida com um grunhido para que amãe tivesseacesso a ela. Éramos menos coordenados em nosso ataque e geralmente nãoconseguíamoschegar,cambaleantes,atéaportadagaiolaantesqueelejátivesseseafastadoenossamãedeixasseclaroquenãodividiriasuarefeiçãoconosco.

Às vezes, o homem falava enquanto ia de gaiola em gaiola, mas não eraconosco.Falavabaixinho,concentradonumpedaçodepapelemsuamão.

—Yorkshireterriers,maisoumenosumasemana—dissecertavez,olhandoparaoscãesdagaiolaànossadireita.Paroudiantedanossaedeuumaespiada.—Goldenretrievers,provavelmentetrêssemanas,eumdálmataprontoparasairaqualquermomento.

Concluí que a minha temporada no pátio me preparara para dominar osfilhotesdaminhafamília,emeirritavaofatodeelesnãoperceberemisso.Euconseguia agarrar umdosmeus irmãosdo jeito comoMaioral agarravaRottiequandodoisoutrêsdosoutrossubiamemmim,sementenderqualeraaideiadacoisa toda. Quando conseguia me livrar deles, o alvo original das minhasatençõesjáestavalongebrincandocomoutro,comosetudonãopassassedeumjogo. Quando eu tentava rosnar de forma ameaçadora, porém, saía um somridiculamenteinofensivoemeusirmãoseirmãsalegrementerosnavamdevolta.

Umdia,acadelamalhada,nossavizinha,chamouaatençãodetodosnós—estava ofegante e andava para lá e para cá, nervosa — e nos aninhamos,instintivamente, junto à nossa mãe, que a observava atentamente. A cadelamalhada rasgou um cobertor, estraçalhando-o com os dentes, e andou emcírculosváriasvezesantesdesedeitarcomumsuspiro.Momentosdepois,fiqueichocadoaoverumfilhoteaseulado,todobrancoeenvoltoemumapelículadeaparência escorregadia, uma espécie de saco do qual a mãe imediatamentelivrou-o à custa de lambidas. Com a língua, ela empurrou para o lado ofilhotinhoque,passadoumminuto,rastejoumeiogroguenadireçãodastetasdamãe,oquemefezperceberqueeuestavacomfome.

Nossa mãe suspirou e deixou que mamássemos um pouco antes de selevantarabruptamenteeseafastar.Umdosmeusirmãoscontinuouumsegundopenduradonelaedepoiscaiunochão.Puleisobreeleparalheensinarumalição,queacaboumetomandoumbocadodetempo.

Quando voltei a olhar para a cadela malhada, havia mais seis filhotesbrancos!Pareciammagrelosefracos,masamãenãoseimportou.Lambeu-oseosguiouparajuntodelaesedeitoucalmamenteenquantoelesmamavam.

O homem chegou e entrou na gaiola onde os recém-nascidos dormiam,examinando-osantesdevirar-seeirembora.Emseguida,abriuaportaparaosfilhotespeludosnocanilàdireitadonossoeossoltounaáreagramada!

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—Não,você,não—disseeleàmãe,bloqueando-lheocaminhoquandoelatentou seguir os pequenos. Trancou-a e depois pôs tigelas de comida no chãoparaosfilhotes,quesubiramnelasecomeçaramalamberunsaosoutros—osidiotasnãodurariamumdianopátio.Amãesentou-seatrásdaportadagaiolaeganiuatéaninhadaterminardecomer,quandoohomementãoasoltouparaquesejuntasseaosbebês.

Oscachorrinhospeludosvieramatéaportadanossagaiolaparanoscheirar,finalmente ficando focinho a focinho conosco depois de termos sido vizinhosduranteasúltimassemanas.Lambiagosmaquecobriaacaradelesenquantoumdemeusirmãosseequilibravanaminhacabeça.

Ohomemdeixouqueosfilhotescorressemsoltosquandosaiuporumportãona cerca demadeira, exatamente igual àquele usado porCarlos eBobby paraentrar no pátio. Observei, invejoso, os filhotes correrem para lá e para cá noestreito trecho de grama, saudando com o focinho outros cães engaiolados ebrincandouns comosoutros.Euestavacansadode ficarpresoequeria sair eexplorar.Qualquer que fossemeu propósito nessa nova vida, sem dúvida nãopareciaseresse.

Passadasalgumashoras,ohomemvoltoutrazendooutrocachorroigualzinhoàmãedosfilhotespeludosquecorriamàsolta,salvoqueesseeraummacho.Ohomemdevolveu amãe à gaiola e deixouomacho comela antes de fechar aportinhola, trancando os dois juntos. O macho deu a impressão de ficar bemsatisfeitodeverafêmea,maselarosnouquandoeleamontouportrás.

Ohomemdeixouoportãodacercaabertoemesurpreendicomasensaçãodenostalgia que me assaltou quando vislumbrei o minúsculo recorte do mundoexteriorvisíveldooutroladodacerca.Sealgumdiamedeixassemcorrersoltonagrama,eusabiaqueiriasairdiretoporaqueleportãoaberto,maséclaroqueos filhotesquedesfrutavamnomomentode talopçãonão fizeramnadadisso:estavamocupadosdemaisbrincando.

A mãe ergueu as patas contra a portinhola da gaiola e gemeu baixinhoenquanto o homem metodicamente reuniu os filhotes e levou-os embora,passandopeloportão.Logo,todoshaviamsumido.Acadelamãeandavaparaafrente e para trás na gaiola, ofegante, enquanto o macho em sua companhiasimplesmente observava, deitado. Pude sentir o nervosismo dela e isso medeixouaflito.Caiuanoiteeacadelamãedeixouqueomachosedeitassecomela—osdoisdavamaimpressãodeseconhecerem.

Omachoficoualidentroapenasalgunsdiasatéserlevadoemboratambém.E então chegou a hora de sermos soltos! Saímos cambaleantes e felizes e

atacamos sofregamente a comida deixada para nós pelo homem. Comi meuquinhãoeobserveimeusirmãosenlouquecerem,comosejamaistivessemvisto

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algotãoexcitantequantoumpunhadodetigelascomcomidacanina.Tudo eramaravilhosamente úmido e exuberante, em nada parecido com a

terrasecaepoeirentadopátio.Abrisafrescatraziaumaromamarinhotentador.Euestavacheirandoagramasuculentaquandoohomemvoltouparasoltar

nossa mãe. Todos os filhotes se atiraram sobre ela, menos eu, que haviaencontrado uma minhoca morta. Então o homem se foi, e nesse momentocomeceiapensarnoportão.

Havia algo de errado com esse homem. Ele não me chamava de Toby.Sequerconversavaconosco.Penseinaminhaprimeiramãe,naúltimavezqueavi,fugindodopátioporquenãoconseguiavivercomhumanos,nemmesmocomumapessoa tãoamorosaquantoMissus.Ohomem,porém,nãonutriapornósamoralgum.

Meuolharfixou-senamaçanetadoportão.Havia uma mesa de madeira junto ao portão. Subindo em um tamborete,

consegui alcançar a mesa e dali, com esforço, me estiquei e abocanhei amaçaneta de metal, que, em lugar de redonda, era uma tira de metal, umpuxador.

Meusdentesminúsculosnãoforamdegrandeutilidadeparasegurarotroço,masfizopossívelparamanipulá-locomofizeramamãenanoitedasuafugadopátio. Não demorei para perder o equilíbrio e desabar no chão, e o portãopermaneceu trancado. Sentei-me e lati, frustrado, minha voz um grunhidinhoacanhado. Meus irmãos vieram correndo para pular em cima de mim comocostumavamfazer,maseulhesdeiascostas,irritado.Nãoestavanemumpoucoafimdebrincar!

Tenteinovamente.Dessavez,pusaspatasdianteirasnamaçanetaparaevitarlevarumtrambolhão,masaofazerissosentioapoioescaparsobmeupeso,demodoquetodoomeucorpobateunatrancaaocair.Aterrisseinacalçadacomumgrunhido.

Para meu espanto, o portão se entreabriu. Enfiei o focinho na fresta eempurrei.Oportãoseescancarou.Euestavalivre!

Ansioso, saí correndo, minhas patas ainda pequenas tropeçando umas nasoutras.Àminhafrenteestendia-seumcaminhodeterra,duastrilhasescavadasemterrenoarenoso.Instintivamentedescobriadireçãoatomar.

Depoisdecorreralgunsmetros,parei,comumasensaçãoestranha.Virei-meeolheiparatrás,paraminhanovamãe,queestavasentadadoladodedentrodoportãoaberto,meobservando.Lembreidemamãelánopátio,melançandoumúnicoolhar antes departir para ganhar omundo.Minhanovamãenão iria sejuntaramim,medeiconta.Ficariacomafamília.Euestavaporcontaprópria.

Aindaassim,nãohesiteinemumsegundo.Sabia,porexperiênciasanteriores,

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que havia pátios melhores que esse, com gente amorosa que afagava com asmãos omeu pelo. Sabia, também, que o tempo demamar nas tetas daminhanovamãechegaraaofim.Eraassimquefuncionava:umcão,maisdia,menosdia,éseparadodamãe.

Acima de tudo, porém, eu sabia que a oportunidade à minha frente erairresistível,todoummundonovoparaserexploradocompatascompridas,aindaquemeiodesajeitadas.

Ocaminhodeterraiadarnumaestrada,queresolviseguir,quandomaisnãofosse pelo fato de que ela levava diretamente ao vento, que me traziamaravilhosos odores novos. Ao contrário do pátio, sempre seco e calcinado,farejeifolhasúmidasapodrecidas,árvoresepoçasd’água.Fuiandando,comosolbatendonaminhacara,felizdeestarlivreeacaminhodeumaaventura.

Ouviocaminhãoseaproximarbemantesdevê-lo,masestavatãoocupadotentandopegarumincrívelinsetoaladoquesequererguiosolhosatéaportasefechar com um estalo. Um homem com a pele bronzeada e vincada e com aroupaenlameadaajoelhou-seeestendeuasmãos.

—Ei,companheiro,venhacá!—chamou.Olhei-ocomhesitação.—Vocêseperdeu,foi?Abanando o rabo, concluí que devia estar tudo bem. Fui até ele, que me

pegounocoloemelevantoubemacimadacabeça,oquenãomeagradoumuito.—Vocêéumagracinha.Pareceumretrieverpuro-sangue.Deondefoique

vocêsaiu,companheiro?OjeitocomofalavacomigomefezlembrardaprimeiravezemqueMissus

mechamoudeToby.Imediatamenteentendioqueestavaacontecendo—assimcomo os homens tinham tirado aminha primeira família damanilha, essemetiroudagrama.Minhavidaseria,agora,aquiloqueeledecidissefazerdela.

Certo,resolvi.MeunomepodiaserCompanheiro.Fiqueiencantadoquandoele me sentou na parte da frente do caminhão, bem a seu lado. O bancodianteiro!

O homem cheirava a fumaça e tinha um bafo que fazia meus olhoslacrimejaremequemetraziaàlembrançaCarloseBobbysentadosemvoltadeumamesinhanopátioconversandoepassando,deumparaooutro,umagarrafa.Ele riu quando tentei beijar seu rosto e continuou a sorrir enquanto eu meremexia para lá e para cá no espaço apertado do caminhão, deliciado com osodorespungenteseestranhos.

Fomosemfrente,sacolejando,durantealgumtempo,eentãoohomemparouocaminhão.

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—Aquitemsombra—medisseele.Olheiàvolta,confuso.Estávamosdiantedeumprédiocomváriasportasde

ondevinhamodoresfortescomoaqueleimpregnadonohomem.— Vou dar uma paradinha rápida para um trago— prometeu o homem,

abaixandoosvidros.Nãomedeicontadequeeleiaemboraatéquedescesseefechasseaporta.Fiqueiolhando,desiludido,osujeitoentrarnoprédio.Eeu?

Descobriumpedaçodepanoque fiqueimordendoumbomtempo,atéquecanseiedeiteiacabeçaparadormir.

Quando acordei, estava quente. O sol agora entrava com todo ímpeto nocaminhão, e a cabine estava úmida e abafada. Ofegante, comecei a ganir,erguendominhaspatasparapoderveraondetinhaidoohomem.Nãohaviasinaldele!Baixeiaspatas,que,literalmente,sequeimaramnopeitorildajanela.

Eu nunca sentira tanto calor. Uma hora e pouco se passou enquanto euandavaparaafrenteeparatrásnobancoescaldante,ofegandomaisdoqueemqualqueroutromomentodaminhavida.Comeceiatremer,eminhavisãoficouembaçada.Penseinatorneiradopátio,penseinoleitedaminhamãe,penseinoesguichodemangueiraqueBobbyusavaparapôrfimàsbrigasdoscachorros.

Minha visão turva percebeu um rosto me olhando pela janela. Não era ohomem,esimumamulherdecabelopretocomprido.Pareciazangada,erecueicommedo.

Quando seu rosto sumiu, deitei novamente, quase delirante. Já não tinhaenergia paramemexer.Meusmembros estavam pesados e se contorciam porcontaprópria.

Houveentãoumbarulhoforte,quebalançouocaminhão!Umapedrapassoupormim,quicandonobancoecaindonochão.Ummontedepedrinhaschoveuemcimademimesentiumbeijodear fresconaminhacara.Erguio focinhoparasaboreá-lo.

Eu estava largado e impotente quando senti mãos me envolverem e melevantarem,demasiadamenteexaustoparafazeroutracoisaquenãomeentregarsemresistência.

—Pobrefilhotinho.Pobrezinho—sussurrouela.MeunomeéCompanheiro,penseicomigomesmo.

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CAPÍTULO6

Nada na minha vida se igualava àquele líquido fresco e cristalino que mearrancoudosonosemsonhos.Amulhertinhaumagarrafadeáguanasmãosecuidadosamente me molhava com ela. Estremeci de prazer quando a águaescorreupelomeulomboelevanteiabocaparalamberemorderaquelasgotas,comocostumavafazercomaáguaqueescorriadatorneiraacimadagamelanopátio.

Amulhereumhomemaseuladomeolhavamcomexpressõespreocupadas.—Achaqueelevaificarbem?—indagouamulher.—Parecequeaáguaestáajudando—respondeuohomem.Sentiemambosotipodeadoraçãoevidentequequasesempreemanavade

Missusquandoelaparavadooutroladodacercaparanosverbrincar.Roleidebarrigaparacimaparaqueaáguaesfriasseminhacarnequente.Amulherriu.

—Quegracinhadefilhote!—exclamou.—Sabequeraçaéesta?—Achoqueeleéumgoldenretriever—respondeuohomem.—Ah,neném—murmurouamulher.Certo,eupodiaserNeném,podiaserCompanheiro,podiaseroqueelesbem

quisessem, e quando a mulher me pôs no colo, indiferente quanto à manchamolhadaquedeixeinasuablusa,beijei-aatéqueelafechouosolhosecomeçouarir.

—Vocêvaiparacasacomigo,bebê.Tenhoalguémparalheapresentar.Muitobem,aparentementeeuagoraeraumcãodebancodianteiro!Elame

segurounocoloenquantodirigia,elheagradecicomoolhar.Curiosoarespeitodomeu novo ambiente, finalmente saí do colo e explorei o interior do carro,

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fascinadocomoarfrescoquesaíadeduasaberturasàminhafrente.Deencontroaomeupelomolhado,oareratãogeladoquechegueimesmoatremereacabeisubindo na parte plana do outro lado do carro, onde um calorzinho gostoso,parecidocomodeMamãe,meembalounumnovocochilo.

Acordeiquandoocarroparou,olhandosonolentoamulher,queseabaixouparamepegarnocolo.

—Vocêétãofofo—sussurrouela.Enquantomeapertavacontraopeitoedescia do carro, pude sentir seu coração bater forte e percebi nela um certoalarme.Bocejeiparaespantarosúltimosvestígiosdesonoedepoisdeumrápidoalívionagramameviprontoparaenfrentarqualquerquefosseodesafioqueadeixavatãonervosa.

—Ethan!—chamouela.—Venhacá.Queroqueconheçaalguém.Olheicuriosoparaela.Estávamosdiantedeumacasabrancaegrande,eme

pergunteisehaveriacanisnosfundosou,quemsabe,umenormepátio.Nãoouvinenhumlatido,oquemelevouacrerquetalvezeufosseoprimeirocachorroachegar.

Entãoaportadafrenteseabriucomestrondoeumserhumanodeumtipoqueeu jamaisviraantescorreuparaavaranda,pulouosdegrausdecimentoeparou,imóvel,nogramado.

Nós nos encaramos. Me dei conta de que era uma criança humana, ummacho.Abocaformouumgrandesorrisoeeleabriuosbraços.

—Umfilhotinho!—exclamou,encantado.Corremosumparaooutro,instantaneamenteapaixonados.Eunãoconseguia

parardelambê-loeelenãoconseguiapararderir,erolamosambosnagrama.Acho que jamais me dei ao trabalho de imaginar que pudessem existir

meninos, mas agora que encontrara um, achei que esse era, simplesmente, oconceito mais maravilhoso do mundo. Ele cheirava a lama e açúcar e a umanimalqueeujamaisfarejaraantes.Davaparasentirumleveodordecarneemseusdedos,eeuoslambi.

Nofinaldodiaeu jáo identificavanãosópelocheiro,como tambémpelaaparência, pelo som e pelos gestos. Seu cabelo era escuro, comoo deBobby,mascurtinho,eosolhos,bemmaisclaros.Eletinhaumjeitodeviraracabeçaparameolharcomoseestivessetentandomaismeouvirdoquever,esuavozesbanjavaalegriasemprequefalavacomigo.

Namaiorpartedotempo,porém,euabsorviaseuaroma,lambiaseurostoechupavaseusdedos.

—Podemosficarcomele,mãe,podemos?—pediuomeninoentrerisadas.Amulherseabaixouparaafagarminhacabeça.—Vocêconheceoseupai,Ethan.Elehádequererquevocêdigaquevai

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tomarconta...—Vou,sim!—Equevailevá-loparapassear,dardecomer...—Tododia!Voulevarparapassear,dardecomer,escovar,darágua...—Evaiterquelimparquandoelefizercocônoquintal.Paraessaogarotonãoteveresposta.—Compreiraçãoparafilhotes.Vamosdarojantardele.Vocênãoacredita

noqueaconteceu,tivequecorreratéopostodegasolinaepegarumagarrafadeágua.Ocoitadinhoquasemorreudeintermação—disseamulher.

—Vocêquerjantar?Quer?Jantar?—perguntouomenino.Oconvitemepareceuótimo.Parameu espanto, omeninomepegouno colo eme levoupara dentro de

casa!Nuncanaminhavidaimagineiqueumacoisaassimfossepossível.Euiagostarumbocadodali.Algunsassoalhoserammacioseimpregnadosdomesmocheiroanimalque

eusentiranogaroto,enquantooutroseramescorregadioseduros,fazendocomqueasminhaspatasdeslizassemenquantoeuseguiaogarotopelacasa.Quandoele me punha no colo, a corrente de amor entre nós era tão intensa que meprovocavaumburaconoestômagomeioparecidocomfome.

Eu estava deitado no chão com omenino, disputando um pedaço de panocomele,quandosentiumavibraçãoressoarpelacasaeouviosomqueaessaalturaeujásabiaserdaportadeumcarrosendofechada.

—Seupaichegou—disseamulher,cujonomeeraMãe,aomenino,quesechamavaEthan.

Ethanficoudepéeencarouaporta,eaMãeveioficaraomeulado.Agarreiopanoeo sacudicomvontade,masdescobriqueerabemmenos interessantequandonãohaviaumgarotopresoàoutraextremidade.

Umaportaseabriu.—Oi,pai!—exclamouogaroto.Umhomementrounocômodo,olhandoparaumladoeparaooutro.—Muitobem,oqueéisso?—indagou.—Pai,aMãeachouessefilhote...—começouEthan.—Estavatrancadonumcarro,quasemorreudeintermação—disseMãe.—Podemosficarcomele,pai?Eleéomelhorfilhotedomundo!Resolvi aproveitar o momento de desatenção e mergulhei na direção do

sapatodomenino,mordendoocadarço.—Ah,nãosei,omomentonãoédosmelhores—disseohomem.—Você

sabe quanto trabalho dá um filhote? Você só tem oito anos, Ethan. Éresponsabilidadedemais.

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Puxei um dos cadarços domenino e ele se desamarrou, escorregando dossapatos.Tenteicorrercomele,mas,tendoficadopresoaosapato,ocadarçomepuxou de volta, e desabei no chão. Rosnando, voltei a atacar os cadarços,agarrando-osesacudindocomvontade.

— Vou cuidar dele, vou levar para passear, dar comida, dar banho... —continuou o menino. — Ele é o melhor filhote do mundo, pai. Já está atétreinado!

Tendovencidoosapato,decidiqueeraumaboahoraparadarumaaliviadaemeabaixei,depositandoumcocôjuntamentecomumadosegenerosadexixi.

Uau,quereaçãoissocausou!Logoomeninoeeuestávamossentadosnochãomacio.AMãesugeria:—George?EEthanemendava:—George?Aqui,George!Ei,George!EoPaiintervinha:—Skippy?EEthanpegavaadeixa:—Skippy?SeunomeéSkippy?Aqui,Skippy!Foiexaustivo.Maistarde,brincandoláforanoquintal,ogarotomechamoudeBailey.—Aqui,Bailey!Vem,Bailey!—comandava,batendocomamãonojoelho.

Quandoeuatendiacorrendo,eleseafastavaecorríamososdoisparaláeparacánoquintal.Paramim, tratava-sedeumaextensãodo jogodedentrodecasa,eme dispus a atender quer fosse chamado de “Hornet”, “Ike” ou “Butch”,maspareciaquedessavez“Bailey”vieraparaficar.

Depoisdemeserviroutrarefeição,ogarotomelevouparadentrodecasa.—Bailey,queroquevocêconheçaSmokey,ogato.Meapertandofortedeencontroaopeito,Ethansevirouparaqueeupudesse

enxergar, sentadonomeioda sala, umanimalmarrome cinza, cujosolhos searregalaramaomever.Era esse o cheiroque euvinha farejando!A coisa eramaior que eu, com orelhinhas minúsculas, convidativas para uma mordida.Tenteimedesvencilharafimdeirparaochãobrincarcomonovoamigo,masEthanmeseguravafirme.

—Smokey,esteéoBailey—apresentouEthan.Finalmente, eleme pôs no chão e corri para beijar o gato,mas o bichano

mostrouosdentes,umconjuntodecausarmedo,ebufouparamim,arqueandoolomboeempinandoorabonoar.Parei,confuso.Seráqueelenãoestavaafimdebrincar?Ocheirobolorentoquevinhadesobseuraboeradelicioso.Tentei

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me aproximar para dar uma fungada amistosa em seu traseiro, mas o gatosibilou,bufouelevantouumapata,mostrandoasunhas.

—Ora,Smokey,sejaumgatobonzinho.Umgatobonzinho.Smokey lançou um olhar belicoso para Ethan. Peguei a dica no tom

encorajador domenino e ladrei de um jeito bastante convidativo, mas o gatopermaneceu inabordável, chegando até a bater no meu focinho quando tenteilambersuacara.

Certo,tudobem.Euestariadispostoabrincarcomelequandolheapetecesse,mashaviacoisasmais importantesdoqueumgatometidoparameocuparem.Nosdiasqueseseguiramaprendiqualeraomeulugarnafamília.

Omeninomorava numquarto pequeno cheio de brinquedosmaravilhosos,enquanto aMãe e o Pai dividiam outro, onde não havia um único brinquedo.Existia um cômodo com uma bacia de água da qual eu só podia beber se alisubisse,eigualmentesembrinquedos,amenosquesecontasseopapelbrancoqueeupodiapuxardaparedecomosefosseumaúnicafolha.Osquartosparadormirficavamnoaltodeumaescadaimpossíveldesubirparamim,apesardaspatas caninas perfeitamente desenvolvidas. Toda a comida ficava escondidanumapartedacasa.

Sempre que eu resolvia fazer minhas necessidades, todos na casaenlouqueciam, me pondo no colo e saindo correndo porta afora, para medepositarnagramaeemseguidaobservarenquantoeumerecuperavadotraumade toda essa confusão e conseguia prosseguir na minha atividade, o que megranjeava tantos elogios que eu chegava a pensar se não seria essa a minhaprincipal função na família. Esses elogios eram dúbios, porém, porque elestinhamabertoalgunsjornaisparaqueeurasgasse,eseeumealiviasseemcimadeles tambémme chamavam de cachorro bonzinho, só que com alívio e nãoalegria.Aliás,comomencionei,àsvezesquandoestávamostodosjuntosnacasa,afamíliasezangavacomigoporeufazerexatamenteamesmacoisa.

“Não!”, gritava a Mãe ou Ethan quando eu molhava o chão. “Cachorrobonzinho!”, elogiavam quando eu fazia pipi na grama. “Certo, muito bem”,diziamquandoeuurinavanosjornais.Eunãoconseguiaentenderoquehaviadeerradocomessagente.

OPai,namaiorpartedotempo,meignorava,emboradesseparaverqueelegostava deme acordar para ter aminha companhia durante o café damanhã.Olhava para mim com algum afeto— nada semelhante à adoração ostensivademonstrada por Ethan, embora eu pudesse sentir que ele e a Mãe amavamEthan.Vezporoutra, oPai se sentava àmesa à noite comogaroto e osdoisconversavamemvozbaixa,concentrados,enquantoumodorforteeacrepairava

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noar.OPaimedeixavasentaraseuspés, jáqueosdomeninoficavamlongedemaisdochãoparaqueeuosalcançasse.

— Veja, Bailey, montamos um avião— disse o garoto após uma dessassessões, jogando para mim um brinquedo que fez meus olhos se encheremd’água,razãopelaqualnãotenteifugircomele.

Fazendo ruídos, omenino correu pela casa segurando o brinquedo e eu operseguietenteiagarrá-lo.Maistarde,eleguardouotroçonumaprateleiracomoutrosbrinquedosquecheiravamlevementeàsmesmassubstânciasquímicasefimdepapo,atéqueeleeoPairesolvessemconstruiroutro.

—Istoéumfoguete,Bailey—meexplicouEthan,estendendoparamimumbrinquedo parecido com um graveto. Ergui meu focinho para cheirá-lo. —VamosaterrissarnaLualogo,logo,eaíaspessoasvãomorarlá,também.Vocêgostariadeserumcãoespacial?

Ouvi a palavra “cão” e percebi que se tratava de uma pergunta, por issobalanceiorabo.Sim,pensei.Euadorariaajudaralavaralouça.

A lavagem da louça era omomento em que omenino punha um prato decomidanochãoemedeixava lambê-lo.Essaeraumadasminhas tarefas,masapenasquandoaMãenãoestavaolhando.

Namaiorpartedotempo,porém,minhatarefaerabrincarcomomenino.Eutinha uma caixa com um travesseiro macio na qual ele me botava à noite eacabei entendendoquedevia ficar na caixa atéque aMãeouoPai entrassemparadarboa-noite.Findaadespedida,ogarotomedeixava subirna suacamapara dormir. Quando eu me entediava durante a noite, sempre dava paramordiscarogaroto.

Meuterritóriosesituavaatrásdacasa,maspassadosunsdiasfuiapresentadoa todo ummundo novo, a “vizinhança”. Ethan saía em disparada porta afora,comigo grudado em seus calcanhares, e encontrávamos outras meninas emeninos,quemeabraçavamebrincavamcomigo,tirandobrinquedosdaminhabocaeatirando-oslonge.

—EsteéBailey,omeucachorro—disseEthancomorgulho,mesegurandonocolo.Eumeremexiaoouvirmeunome.—Olhasó,Chelsea—prosseguiu,meentregandoaumameninadotamanhodele.—Baileyéumgoldenretriever.Minhamãesalvouopobrezinho.Eleestavamorrendodeintermaçãodentrodeumcarro.Quandocrescerosuficiente,elevaicaçarcomigonafazendadomeuavô.

Chelseameapertoucontraopeitoeolhoudentrodosmeusolhos.Seucabeloera comprido e ainda mais claro do que o meu pelo, e ela cheirava a flores,chocolateeaumoutrocachorro.

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—Vocêéumdocinho.Umdocinho,Bailey,euteamo—disseelanumavozembaladora.

EugostavadeChelsea.Todavezquemevia,elaseajoelhavaemedeixavapuxar o seu cabelo louro comprido.O odor de cachorro em sua roupa era deMarshmallow,umacadeladepelocompridomarromebranco,maisvelhaqueeu, mas ainda jovem. Quando Chelsea permitia que Marshmallow saísse doterreno de sua casa, nós dois brincávamos durante horas, e às vezes Ethan sejuntavaanósparabrincar,brincarebrincar.

Quandoeumoravanopátio,Missusgostavademim,maseupercebiaagoraque esse amor era genérico, dirigido a todos os cachorros do grupo. Ela mechamavadeToby,masnãodiziameunomedomesmojeitoqueogaroto,quesussurrava“Bailey,Bailey,Bailey”emmeuouvidoànoite.Omeninoamavaamim.Cadaumdenóseraocentrodomundodooutro.

Minhavidanopátiomeensinaracomofugirporumportão.Elame levaradireto aomenino, e amar emorar comele era o propósito daminha vida.Dahoraemqueacordávamosatéahoraemqueadormecíamos,vivíamosjuntos.

Então,éclaro,tudomudou.

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CAPÍTULO7

Uma das coisas de que eu mais gostava era aprender novos truques, comochamava o menino, que consistiam em receber comandos dele em tomencorajadoreserrecompensadocomguloseimas.“Sentar”,porexemplo,eraumtruquenoqualomeninodizia“Senta,Bailey!Sentado!”,subindodepoisnomeulomboparameobrigara sentarnochãoemedando,emseguida,umbiscoitocanino.

“PortadeCachorro!PortadeCachorro”eraoutro,noqualíamososdoisparaa“garagem”,lugarondeoPaiguardavaocarro,eomeninomefaziapassarporuma aba de plástico na porta lateral que dava para o quintal. Depois ele mechamavaeeuenfiavaofocinhopelaabaeganhavaumbiscoitocanino!

Minhas pernas, percebi agradecido, continuavam a crescer junto com orestante do meu corpo, e quando as noites esfriaram eu podia acompanhar omenino,atémesmonumaboacorrida.

Certa manhã, o truque da porta de cachorro adquiriu um significadototalmente diverso. Ethan acordou cedo, pouco depois do alvorecer, e aMãeentravaesaíaatodadosoutroscômodos.

—CuidedoBailey!—comandouelaacertaaltura.Ergui os olhos do brinquedo de borracha que eu estava atacando

diligentemente,atentoaSmokey,ogato,que,sentadonabancada,meolhavadecima com uma arrogância insuportável. Peguei o brinquedo de morder e osacudi,paramostraraSmokeyoqueeleestavaperdendoporser tãometidoabesta.

— Bailey! — gritou o menino. Lá vinha ele carregando minha cama.

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Intrigado,euoseguiatéagaragem.Quejogoeraesse?— Porta de Cachorro—me disse ele. Farejei seus bolsos, mas não senti

cheirodebiscoito.Comoaideiadabrincadeiradeportadecachorro,naminhaopinião,erachegaraosbiscoitoscaninos,resolvidarmeia-voltaeerguerapernacontraumabicicleta.

— Bailey!— Senti impaciência no menino e olhei para ele, aturdido.—Vocêvaidormiraqui,viu,Bailey?Sejaumcachorrobonzinho.Seprecisariraobanheiro,saiapelaportadecachorro,certo?PortadeCachorro,Bailey.Precisoirparaaescolaagora.Certo?Euteamo,Bailey.

Omeninome deu um abraço e eu lambi sua orelha.Quando ele se virou,naturalmenteosegui,masaochegaràportadecasa,fuibarrado.

— Não, Bailey, você fica na garagem até eu chegar em casa. Porta deCachorro,certo,Bailey?Sejaumcachorrobonzinho.

Ebateuaportanaminhacara.“Fica”?“PortadeCachorro”?“Cachorrobonzinho”?Querelação,aindaque

remota, tinham entre si esses termos que eu tanto ouvira, e o que eramesmo“Fica”?

Nada disso fazia qualquer sentido para mim. Farejei a garagem, cheia deodoresmaravilhosos,maseunãoestavaafimdeexplorar,queriaomeumenino.Lati, mas a porta da casa permaneceu fechada, o que me levou a arranhá-la.Nada.

Ouvi gritos de criança vindos lá da frente da casa e corri até a porta dagaragem, torcendoparaqueela seabrisse, comoaconteciaàsvezes,quandoomeninoparavadiantedela.Nadaaconteceu.Umcaminhãobarulhentovarreuasvozesdascriançasefoi-seemboralevando-ascomele.Algunsminutosdepois,ouviocarrodaMãesair,eomundo,atéalitãocheiodevida,dediversãoedebarulho,tornou-seinsuportavelmentesilencioso.

Latidurantealgumtempo,masissodenadaadiantou,emboraeusentisseocheirodeSmokeydooutroladodaporta,supostamentetomandoconhecimentoda minha provação. Arranhei a porta. Mastiguei alguns sapatos. Estraçalheiminha cama. Descobri um saco de lixo cheio de roupas, rasguei o dito-cujocomo Mamãe fazia quando explorávamos o lixo e espalhei as roupas pelagaragem. Fiz xixi num canto e cocô no outro.Virei um recipiente demetal ecomiunspedaçosdegalinha,macarrãoeumwaffle,elambiumalatadepeixe,cujo cheiro era igual ao hálito de Smokey.Mastiguei jornal. Derrubei minhatigeladeáguaecomeceiamordê-la.

Nãohavianadaparafazer.Aofinaldoquemepareceuodiamaiscompridodaminhavida,ouviocarro

daMãe passar pelo portão. A porta do carro bateu e ouvi pezinhos correndo

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dentrodecasa.—Bailey!—gritouomenino,abrindoaporta.Atirei-me contra ele, eufórico como fimdefinitivodessa loucura.Mas ele

continuouolhandofixamenteparaagaragem.—Ai,Bailey—disseele,numtomtriste.Esbanjando uma energia frenética, passei a toda por ele e corri pela casa,

pulandoosmóveis.VislumbreiSmokeyeparti emseuencalço,perseguindo-oescadaacimaelatindoquandoeleseenfioudebaixodacamadaMãeedoPai.

—Bailey!—chamouaMãe,numavozsevera.—Cachorromalvado,Bailey—emendouogarotomal-humorado.Fiquei atônito diante dessa falsa acusação. Malvado? Eu havia sido

acidentalmentetrancadonagaragem,masestavamaisquedispostoadesculpartodoseles.Porquemerepreendiamassim,balançandoodedonaminhacara?

Momentosdepois, láestavaeudevoltaàgaragem,ajudandoogaroto,quecatoutudocomqueeutinhabrincadoebotouboapartena latade lixoqueeuvirara.AMãeveioeseparouasroupas,levandoalgumascomelaparadentrodecasa. Ninguém, porém, me elogiou por descobrir onde tudo isso estavaescondido.

— Porta de Cachorro— disse o menino com irritação, mas não me deunenhumaguloseima.Comeceiameperguntarse“PortadeCachorro”nãoseriaomesmo que “cachorro malvado”, o que era, no mínimo, altamentedecepcionante.

Obviamenteessehaviasidoumdiaestressanteparatodomundoeeudecertoestavadispostoaesquecerintegralmenteoincidente,masquandooPaichegouemcasa,aMãeeomeninoconversaramcomele,quesepôsagritar.Vi logoque estava zangado comigo. Saí de fininho para a sala de estar e ignorei aexpressãomaliciosadeSmokey.

OPaieomeninosaíramassimqueacabouojantar.Amãeficousentadaàmesa encarando os jornais, atémesmo quandome aproximei e pus uma lindabolamolhadaemseucolo.

—Eca,Bailey—disseela.Quando o menino e o Pai voltaram, o menino me chamou para ir até a

garagemememostrouumaenormecaixademadeira.Eleentrounacaixaemejunteiaele,emboraoespaçofossequenteeapertadocomosdoisládentro.

—CasadeCachorro,Bailey.Estaéasuacasadecachorro.Eunãoviaa relaçãoentremimeacaixa,mas realmenteadoreibrincarde

“Casa de Cachorro” quando o jogo passou a incluir guloseimas. “Casa deCachorro” significava “entre na casa de cachorro e coma o biscoito canino”.

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FizemosotruquedacasadecachorroeodaportadecachorroenquantooPaiandava pela garagem, pondo coisas nas prateleiras e amarrando uma corda nogrande recipiente de metal. Fiquei eufórico de ver que “Casa de Cachorro”voltaraaincluirguloseimas!

Quandoomeninosecansoudos truques,entramosnacasaebrincamosnochão.

—Horadedormir—disseaMãe.—Ah,mãe,porfavor,possoficaracordadomaisumpouco?—Nós dois temos aula amanhã, Ethan. Está na hora de dizer boa-noite a

Bailey.Emboraconversasdessetipoocorressemotempotodonacasa,euraramente

medavaaotrabalhodeprestaratenção.Dessavez,porém,levanteiacabeçaaoouvir meu nome, sentindo uma mudança no humor do garoto. Tristeza earrependimentoemanavamdele,alidepé,desanimado.

—Muitobem,Bailey.Estánahoradedormir.Eu sabia o que era dormir, mas aparentemente íamos fazer um desvio no

caminho,poisomeninomelevouatéagaragemparamaisumestimulantejogode Casa de Cachorro. Por mim, tudo para lá de bem, mas levei um choquequando,segundosdepois,elemetrancou,sozinho,nagaragem.

Lati,tentandoencontraralgumsentidonissotudo.Seriaporqueeumorderaaminha cama? Afinal, eu nunca dormia mesmo naquilo! A coisa só servia deenfeite! Será que essa gente esperavamesmo que eu passasse a noite toda nagaragem?Não,nãopodiaserisso.

Podia?Fiqueitãonervosoquenãoconseguimeimpedirdeganir.Aideiadomenino

dormindonacamasemmim,totalmentesozinho,medeixoutãotristequemeudesejo era morder sapatos. Meus ganidos aumentaram de volume com osofrimentoincontido.

Passados dez ou quinze minutos de sofrimento incessante, a porta dagaragemseentreabriu.

—Bailey—sussurrouogaroto.Corri para ele, aliviado. Ele se desvencilhou com cuidado, carregando um

cobertoreumtravesseiro.—Tudobem.CasadeCachorro,CasadeCachorro.—Semfazerbarulho,aproximou-sedacasadecachorroeestendeuocobertorsobreofinocolchonetequehavialádentro.Deiteiaseulado—amboscomasextremidadesparaforadaporta.Pusminhacabeçaemseupeito,suspirando,eelemeafagouasorelhas.

—Cachorrobonzinho,Bailey—murmurou.Poucodepois,aMãeeoPaiabriramaportadacasaeficaramali,empé,nos

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observando.Abaneiorabo,masnãomelevantei,poisnãoquisacordarogaroto.Finalmente,oPaiveioatéagaragemepegouEthannocolo,enquantoaMãemefaziasinalparaacompanhá-los.Fomospostos,osdois,nacamadentrodecasa.

Nodiaseguinte,comosenãotivéssemosaprendidonadacomnossoserros,fiquei preso na garagem de novo! Dessa vez, havia ainda menos coisas parafazer, embora, com certo esforço, eu tenha conseguido arrancar da casa decachorro o colchonete, rasgando-o com amaior competência.Virei o latão delixo,masnãoconseguidestampá-lo.Nadanasprateleiraseramordível—nadaqueeupudessealcançar,pelomenos.

Acertaaltura,ataqueiaabadaportadecachorro,eomeufocinhocaptouoaroma intenso de uma tempestade iminente. Comparado ao pátio, onde umapoeira seca, arenosa, ressecava nossas línguas diariamente, o lugar em que omeninomorava era mais úmido e mais fresco, e eu adorava o jeito como osodores se mesclavam e se refaziam quando chovia. Árvores maravilhosas,carregadas de folhas, sombreavam o solo onde quer que fôssemos earmazenavam pingos de chuva, que eram derramados depois, quando a brisasoprava. Era tudo tão deliciosamente úmido, que até os dias mais quentescostumavamseramenizadosporumarmaisfrescoànoite.

Osodorestentadoresatraírammaisemaisaminhacabeçaparaforadaportadecachorro,atéque,subitamente,pormeroacidente,eumevidoladodefora,noquintal,semprecisardeumempurrãodomenino!

Fascinado, saí correndo e latindo pelo quintal. Era como se a porta decachorro tivesse sidoposta ali paramedeixar sair da garagempara o quintal!Abaixei e me aliviei — eu vinha descobrindo que preferia fazer minhasnecessidadesdoladodeforaemvezdedentrodecasa,nãosóparaevitartodoaquele teatro, mas porque me agradava enxugar as patas na grama depois,deixandoocheirodesuordelasnasfolhas.Aomesmotempo,tambémeramuitomaisgratificantelevantarapernaemarcarterritórionabeiradoquintaldoque,digamos,nocantodosofá.

Maistarde,quandoachuvafriatransformou-sedegaroaempingosgrandes,descobriqueaportadecachorrofuncionavaemmãodupla!Penaqueomeninonãoestivesseemcasaparaveroqueeuaprenderasozinho.

Quando a chuva passou, cavei um buraco, mordi a mangueira e lati paraSmokey, que, sentado na janela, fingiu não me escutar. Quando um enormeônibusamareloparoudiantedacasaedespejouomenino,Chelseaeummontedeoutrascriançasdavizinhança,euestavanoquintal,comaspatasapoiadasnacerca,eogarotocorreunaminhadireção,rindo.

Nãovolteimaisparaacasadecachorrodepoisdisso,salvoquandoaMãeeoPai gritavam um com o outro. Ethan vinha para a garagem, então, e entrava

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comigo na casa de cachorro, pondo os braços à minha volta. Eu ficava ali,imóvel durante o tempo que ele desejasse. Esse era, concluí, meu propósitocomocachorro,consolaromeninosemprequehouvessenecessidade.

Às vezes algumas famílias semudavam da vizinhança e novas famílias assubstituíam,razãopelaqualquandoDrakeeToddocuparamumacasapróxima,nãovimotivoparaencararofatosenãocomoumaboanotícia—enãoapenasporqueaMãeassoubiscoitosmaravilhososparaofereceraosnovosvizinhos,medando uma provinha como recompensa por lhe fazer companhia na cozinha.Garotosnovosrepresentavammaiscriançascomasquaisbrincar.

DrakeeramaisvelhoemaiorqueEthan,masToddtinhaamesmaidade,eEthan e ele logo fizeram amizade. Todd e Drake tinham uma irmã chamadaLinda, mais novinha ainda, que me dava guloseimas quando ninguém estavaolhando.

Todd era diferente de Ethan. Gostava de brincar no riacho com fósforos,queimando brinquedos de plástico, como as bonecas de Linda. Ethanparticipava,masnãoriatantoquantoTodd,quasesempresecontentandoapenasemassistir.

Um dia, Todd anunciou ter trazido fogos de artifício, e Ethan ficou todoanimado.Eununcaviranadaparecidoe leveiumbaitasustocomoclarãoeobarulhoecomocheirodequeimadoqueimediatamenteseapossoudabonecadeplástico — ao menos da parte dela que encontrei depois da explosão. Porinsistência de Todd, Ethan foi em casa apanhar um dos brinquedos queconstruíracomopaieosdoisoencheramdefogos,atirandooditoparaoalto,ondeeleexplodiu.

—Legal!—gritouTodd.Ethan,porém, ficoucalado, franzindoa testaaoverospequenoscacosdeplásticoflutuandonoriacho.Sentineleumamescladeemoçõesdistintas.QuandoToddlançouosfogosnoareumaterrissoupertodemim,o estrondoecoandobemaomeu lado, corri paraomenino embuscadeproteção,eelemeafagouemelevouparacasa.

Gozardetãofácilacessoaoquintaltinhasuasvantagens.Ethannemsempreprestavagrandeatençãoaoportãodacerca,oquesignificavamedeixarlivre,àsvezes, para explorar a vizinhança. Eu saía perambulando para visitar a cadelamarromebrancachamadaMarshmallow,quemoravaemumagrandegaioladearamenalateraldeumadascasas.Comamaiorcompetência,marqueiterritórionasárvoresdaqueleterrenoe,àsvezes,atraídoporumaroma,aomesmotempodesconhecido e familiar, eumemandava e, como focinho farejandoo ar,meaventuravaumbocadodistantedecasa.Duranteessespasseios,euàsvezesmeesqueciaporcompletodomeninoeeralevadoarecordarodiaemqueváriosdenóssaímosdopátioparavisitaramoçaboazinhanoquartogeladoedecomoo

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cão do banco dianteiro exalava um odor provocante parecido com aquele queagorameseduzia.

Emgeral,euacabavaperdendoofaroeaímelembravadequemera,dandomeia-volta e rumando para casa. Nos dias em que o ônibus trazia Ethan daescola, eu ia com ele até a casa de Chelsea e Marshmallow e a mãe delapreparavaumlanchinhoparaEthan,semprepartilhadocomigo.Nosoutrosdias,EthanvinhadaescolanocarrodaMãe.Havia,ainda,osdiasemqueninguémnacasaacordavaparairàescolaeeuprecisavalatirparaacordartodoseles.

Ainda bemque não queriammais que eu dormisse na garagem.Eu ficariafuriososeelesperdessemamanhã!

Umdiameafasteimaisdecasadoquedehábito,equandodecidivoltaratardejáestavanofim.AansiedademeassaltoueomeurelógiointeriormediziaqueeujáperderaachegadadeEthannoônibus.

Corteicaminhopeloriacho,oqueme levouapassarpeloquintaldeTodd,quebrincavanamargemlamacenta.Aomever,elemechamou.

—Ei,Bailey,aqui,Bailey—disseele,estendendoamãoparamim.Euoencareicomumadesconfiançaostensiva.Haviaalgumacoisadiferente

emTodd,algodentrodeleemqueeunãoconfiava.—Vem,garoto—insistiuele,batendocomapalmadamãonaperna.Virou-

se,então,esedirigiuparacasa.Oqueeupodiafazer,semesentiaobrigadoaobedeceràspessoas?Baixeia

cabeçaeosegui.

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CAPÍTULO8

Toddmefezentraremcasapelaportadosfundos,fechando-asilenciosamenteemseguida.Algumasjanelasestavamcobertas,criandoumasensaçãosombria,sinistra.Toddpassoucomigopelacozinha,ondeamãe,sentada,assistiaàTV,quepiscava.Inferi,pelocomportamentodeTodd,queeleesperavaqueeunãofizessebarulho,masabaneimeurabodelevequandofarejeiamãe,queexalavaum odor forte de uma substância química, semelhante ao do homem que meencontrounaestradaemebatizoudeCompanheiro.

A mãe não nos viu, mas Linda com certeza, sim. Sentou-se empertigadaquandopassamosporelanasala,ondetambémviatelevisão,masescorregoudosofáefezmençãodenosseguirpelocorredor.

—Não—sibilouToddparaela.Semdúvidaessapalavraeuconhecia.Meencolhianteovenenoquetingiaa

vozdeTodd.Lindaestendeuamãoeeualambi,Todd,porém,afastou-a.— Me deixe em paz — emendou, abrindo uma porta por onde entrei,

cheirandoas roupasno chão.Eraumcômodopequenoondehaviaumacama.Toddtrancouaporta.

Encontreiumpedaçodepãoeodevoreirapidamente,sóparapromoverumarápidafaxina.Toddenfiouasmãosnosbolsos.

—Certo—disseele.—Certo,vamoslá...Sentou-seàescrivaninhaeabriuumagaveta.Pudesentirocheirodefogos

dentrodela,aquelecheiroforteerainconfundível.—NãoseicadêoBailey—murmurouele.—NãovioBailey.

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Abaneioraboaoouvirmeunome,depoisbocejeiedesabeisobreumapilhamaciaderoupas.Estavacansadodaminhalongaaventura.

UmamicrobatidinhanaportaprovocouumchoqueelétricoemTodd,quesepôsdepénumsalto.Puleitambémefiqueiatrásdele,quesussurroufuriosoparaLinda, que eu mais farejei do que vi, de pé no corredor escuro. A meninaparecia, ao mesmo tempo, assustada e preocupada, provocando, por algummotivo, a minha ansiedade. Comecei a ofegar um pouco, bocejandonervosamente. Minha tensão era demasiado grande para permitir que eu medeitasse.

AconversaacabouquandoToddbateuaportaeatrancoudenovo.Observei-odirigir-seatéagaveta, remexernelae tirarumpequeno tubo.Emanavadeleumaexcitaçãoagitada.Depoisderetiraratampa,Todddeuumacheiradinhanotubo, cujos vapores químicos imediatamente encheram o quarto. Eu conheciaaquelecheirofortedasocasiõesemqueomeninoeoPaisesentavamàmesaparabrincarcomosaviõesdebrinquedo.

QuandoToddoatirouparamim,eujáconcluíraquenãoqueriameufocinhonempertodaqueletubo,edesvieiminhacabeça.SentiaraivaassomaremTodde tivemedo. Pegandoumpano, despejou nele umbocado do líquido claro dotubo, dobrando e torcendo o pano de modo que a parte grudenta ficasse porcima.

Justonessahora,ouviEthangritardeum jeito suplicantedooutro ladodajanela.

—Baileyyyy!Corriatéajanelaepulei,maselaeraaltademaisparaqueeuaalcançasse,o

quemefezlatir,frustrado.MeutraseirodoeuquandoToddoacertoucomamãoaberta.—Não!Cachorromalvado!Paredelatir!Mais uma vez, o calor da fúria emanava dele tão intensamente quanto os

vaporesdopanoemsuamão.—Todd?—chamouumavozdemulheremalgumlugardacasa.Elemelançouumolharsinistro.—Vocêficaaqui.Vocêfica—comandounumtomsibilante.Saiudoquarto

efechouaporta.Meusolhoslacrimejavamporcausadocheiroqueaindapairavanoar,eme

enchideapreensão.Omeninoestavamechamandoeeunãoconseguiaentenderque direito tinha Todd dememanter trancado aqui como se o quarto fosse agaragem.

Entãoumruídochamouminhaatenção:Lindaabriuaporta,meestendendo

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umbiscoitoamolecido.—Toma,Bailey—sussurrou.—Cachorrobonzinho.Oqueeurealmentequeriaeramemandardali,masnãosouidiota.Comio

biscoito.Lindaescancaroumaisaporta.—Venha—insistiu,ansiosa.Era tudo de que eu precisava. Disparei pelo corredor atrás dela, descendo

alguns degraus e correndo para a porta da casa. Linda a abriu e o ar frescoespantoutodosaquelesterríveisodoresdaminhacabeça.

OcarrodaMãeiadescendoarua,eomenino,acabeçaparaforadajanela,gritava“Bailey!”.Partiomais rápidoquepude,numaperseguiçãodesvairada.AslanternastraseirasdocarrobrilharamforteeEthandesceu,correndoatéondeeuestava.

—Oh,Bailey, por onde você andou?—perguntou, enterrando o rosto nomeupelo.—Vocêéumcachorromuito,muitomalvado.

Eusabiaqueserumcachorromalvadoeraerrado,masoamorqueemanavado menino era tamanho que só me restou concluir que, nesse caso, ser umcachorromalvado,sabe-seláporquê,valiaapena.

Nãomuitodepois daminha aventurana casadeTodd, fui levadode carropara visitar umhomemnuma sala limpa e fresca. Percebi que já havia estadonumlugarsimilarantes.OPailevouamimeEthanatélá,epelaatitudedoPai,tiveaimpressãodequesetratavadealgumtipodecastigo,oquenãomeparecianemumpoucojusto.Sealguémmereciaestarnessasalafria,naminhaopinião,esse alguém era Todd, que agia mal com Linda e tinha me afastado do meumenino—nãome coube a culpa por ser umcachorromalvado.Ainda assim,abaneioraboemedeiteiquietoquandoenfiaramumaagulhanomeupelo,atrásdacabeça.

Quandoacordei,euestavatenso,doloridoecomichando,comumadorquemeerafamiliarnapartebaixadoventreeusandoumagoladeplásticoidiota,acara no fundo de um cone outra vez. Smokey nitidamente achava tudo issohilariante, razãopelaqual fizoquepudepara ignorá-lo.Naverdade,nadameagradoumaisdurantealgunsdiasquedeitarnochãodecimentofriodagaragem,comaspatastraseirasesparramadas.

Depoisquemelivreidagolaevolteiasermeuantigoeu,descobriqueestavamenos interessado em correr atrás de odores exóticos do outro lado da cerca,embora, seoportão fossedeixadoaberto, eu sempreachasseótimoexplorar avizinhança e ver o que todos os outros cachorros andavam aprontando. Noentanto,eusemprefaziaquestãodeficarlongedaextremidadedaruaondeToddmorava,equandoviaqueeleouoirmão,Drake,brincavamnoriacho,emgeralmeescondiadeambos,deslizandoparadentrodassombrascomomeensinaraa

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minhaprimeiramãe.Tododia,euaprendiapalavrasnovas.Alémdeserumcachorrobonzinhoe,

àsvezes,umcachorromalvado,maisemaisvinhammedizendoqueeueraumcachorro “grande”, o que, para mim, basicamente significava que a cada diaficavamaisdifícilmeacomodarconfortavelmentenacamadomenino.Aprendique“neve”,palavraqueeraalegrementeexclamada,queriadizerqueomundoestavaenvolvidoporumacamadafriaebranca.Àsvezes,deslizávamosporumaladeira íngreme, e eu tentava ficar firme no trenó com Ethan até batermos.“Primavera”significavaumtempomaisquentinhoediasmaislongos,emqueaMãe passava todo o fim de semana cavando no quintal e plantando flores. Ocheirodaterraeratãogostosoqueumavez,quandotodossaíramparaaescola,escavei as flores e mastiguei os botões agridoces, mais por uma questão delealdadeàMãe,emboradepoistenhaacabadopondotudoparafora.

Naqueledia,poralgummotivo,fuiumcachorromalvadodenovoetiveatéquepassaranoitenagaragememvezdemedeitaraospésdeEthanenquantoeletrabalhavacomseuspapéis.

Então,houveumdiaemqueascriançasdoenormeônibusamarelofizeramumbocadodealgazarra,dandoatéparaeuouvirseusgritoscincominutosantesdeotroçoparardiantedacasa.Omeninoestavacontentíssimoquandodesceuatoda e correu para mim, com um humor tão alegre que fiquei correndo emcírculosàsuavolta, latindodeformaextravagante.FomosàcasadeChelseaebrinqueicomMarshmallow,eaMãetambémchegouemcasacontente.Daqueledia em diante, o menino não foi mais para a escola e eu podia ficar deitadoquietonacamaemlugardeacordarparafazercompanhiaaoPaiduranteocafé.Avida,finalmente,voltaraaonormal!

Eu estava feliz. Um dia, fizemos uma viagemmuito comprida de carro, equando paramos estávamos na “Fazenda”, um lugar totalmente novo comanimaisecheirosqueeujamaishaviaencontrado.

Duaspessoasmaisvelhassaíramdocasarãobrancoquandoparamosàporta.Ethan chamou os dois de Vovó e Vovô, e aMãe também os chamou assim,emboramais tardeeua tenhaouvidochamá-losdeMãeePai,oquecrediteiaumameraconfusãoporpartedela.

Havia tantas coisaspara fazer naFazendaqueomenino e eupassamososprimeirosdiascorrendosemparar.Umcavaloenormemeencarouporcimadeumacercaquandomeaproximei,emboranãoestivessedispostoabrincarnemafazercoisaalguma,excetoficarmeolhando indiferente,mesmoquandopasseiporbaixoda cerca e lati para ele.Emvezde riacho, haviaum lago, grande efundoobastanteparaEthaneeunadarmosnele.Umafamíliadepatosmoravanas suas margens e eles me deixavammaluco quando corriam para a água e

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saíam patinhando quando eu me aproximava. Depois a mãe pata voltavanadandoatéondeeuestava,cansadodelatir,eeulatiamaisumpouco.

Na ordem das coisas, reduzi os patos ao mesmíssimo lugar de Smokeyquantoaoseuvalorparaomeninoeparamim.

OPaifoiemborapassadosalgunsdias,masaMãeficouconosconaFazendaoverãotodo.Elaestavafeliz.Ethandormianavaranda,umcômodonafrentedacasa,eeudormiaaseu lado.Ninguémsequer fingiuqueoarranjodeveriaserdiferente.OVovôgostavade sentarnumacadeiraecoçarminhasorelhas, eaVovóviviamedandoguloseimasàsescondidas.Oamordelespormimmefaziavibrardefelicidade.

Nãohaviaquintal,apenasumgrandecampoabertocomumacercadestinadaa me deixar entrar e sair sempre que eu quisesse, como se fosse a porta decachorromais comprida domundo, só que sem aba.O cavalo, cujo nome eraFlare,ficavadentrodacercaepassavaodiacomendograma,emboraeujamaiso tenha visto vomitar. Os montinhos que ele deixava pelo caminho davam aimpressão,pelocheiro,deserembemsaborosos,mas,naverdade,eramsecoseinsossos,razãopelaqualcomiapenasunsdoisoutrês.

Terodomíniodo lugar significavaque eupodia explorar omatodooutroladodacercaoucorreratéolagoebrincarláou,ainda,fazeroquequerquemeapetecesse.Namaiorpartedotempo,contudo,euficavapertodecasa,porqueaVovópareciaprepararcoisasdeliciosasparacomerpraticamenteacadaminutodecadadiaeprecisavademimporpertoparaprovarseusquitutesegarantirqueestavamaceitáveis.Medavaprazerfazeraminhaparte.

Omeninogostavademesentarnafrentedobarcoaremoeempurrá-loparadentrodo lago, jogarumvermenaáguaepuxarumpeixepequenoe inquietoparamefazerlatir.Depois,jogavaopeixenaáguaoutravez.

—Épequenodemais,Bailey—diziasempre—,masumdiadestesvamospegarumgrandão,espereparaver.

Acabeidescobrindo(altamentedesapontado)quenaFazendahaviaumgato,umgatopreto,quemoravanumaconstruçãovelha,caindoaospedaços,chamadaceleiro.Elesempremeobservava,agachadonoescuro,todavezqueeucismavadeentrarláetentardarumacheiradanele.Essegatopareciatermedodemim,ouseja,umgrandeprogressoemrelaçãoaSmokey,como,aliás,aconteciacomtudonesselugar.

Então,umdia,penseitervistoogatopretonomatoesaícorrendoatrásdele,embora seu passo fosse lento. Quando cheguei mais perto, porém, vi que setratava de outrem, um animal totalmente novo, com listras brancas no corpopreto.Encantado,latiparaele,quesevirouemelançouumolharsolene,orabopeludoenegroesticadinhonoar.Oanimalnãofugiucorrendo,oqueinterpretei

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comosinaldequequeriabrincar,masquandodeiumpuloeestiquei-lheapata,elefezalgoextremamentecurioso:deu-meascostas,oraboaindaesticado.

Logo em seguida, um bafo de incrível fedor envolveu meu focinho,queimandomeusolhoselábios.Cegoeganindorecuei,imaginandoquediabosteriaacontecido.

—Gambá!—anunciouoVovôquandoarranheiaportaparaqueaabrissemparamim.—Ah,não,Bailey,vocênãovaientrar.

—Bailey,vocêesbarrounumgambá?—indagouaMãeatravésdaportadetela.—Eca,claroquesim!

Eu não conhecia essa palavra — gambá —, mas sabia que algo muitoesquisito acontecera lá no mato, e o que se seguiu foi ainda mais esquisito:torcendoonarizparamim,omeninomelevouparaopátioememolhoucomumamangueira.SegurouminhacabeçaenquantooVovô,depoisdecolherumacesta de tomates da horta, espremeu toda aquela polpa ácida no meu pelo,colorindo-odevermelho.

Não consegui entender como tudo isso daria jeito na situação, sobretudoporqueemseguidafuisubmetidoà indignidadedoqueEthanmeinformouserumbanho.EsfregaramsabãoperfumadonomeupelomolhadoatémeucheiroserummistodeMãecomtomate.

Nuncanavidaeuhaviasidotãohumilhado.Quandosequei,fiqueiconfinadona varanda, e embora tenha dormido lá fora comigo Ethanme chutou da suacama.

—Vocêestáfedendo,Bailey—reclamou.Concluída assim a agressão à minha pessoa, deitei-me no chão e tentei

dormir, a despeito da orgia de odores que pairava no ar. Quando finalmenteamanheceu,corriparaolagoemeesfregueinumpeixemortoqueaágualevaraparaamargem,emboranemissotenhaajudadomuito—continueicheirandoaperfume.

Ansiosoparadescobriroqueocorrera,volteiaomatoparaverseconseguiaencontrar aquele animal meio felino e obter alguma explicação. Agora queconheciaseucheiro,nãofoidifícillocalizá-lo,maseumalcomeçaraafarejá-loquando aconteceu exatamente amesma coisa, um esguicho ofuscante quemeatingiu,vindo,quemdiria,dotraseirodobicho!

Eu sequer imaginava como resolver essemal-entendido eme perguntei senãoseriamelhorsimplesmenteignorarporcompletooanimal,fazendo-osofrerportodaaignomíniaquemecausara.

Comefeito,foiprecisamenteissoquedecidifazerdepoisdevoltarparacasaepassaroutravezportodoociclodelavagenseenxáguescomsumodetomate— seria essa, afinal, a minha sina? Ser diariamente besuntado com legumes,

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esfregadocomsabõesfedorentoseproibidodeentrarnaparteprincipaldacasa,mesmoquandoaVovóestivessecozinhando?

—Como você é burro, Bailey!— repreendeu-me omenino enquantomeesfregavaláfora.

—Nãouseapalavra“burro”.Quepalavrafeia!—censurouaVovó.—Digaa ele... Diga que ele é um boboca. Era assim que aminhamãeme chamavaquandoeuerapequenaefaziabobagem.

Omeninomeencaroucomexpressãoséria:—Bailey,vocêéumcachorroboboca.Umcachorromuito,muitoboboca.Emseguidaeleriu,aVovóriu,masdetãoinfeliz,malpudeabanarorabo.Felizmente,porvoltadaépocaemqueoscheiroscomeçaramadesaparecer

domeupelo,afamíliaparoudeagirdeformaesquisitaemepermitiuvoltaraoseuconvívio.Omeninoàsvezesmechamavadecachorroboboca,masnuncacomraiva,maiscomoumnomealternativo.

—Que tal ir pescar, cachorro boboca?— perguntava ele, e botávamos obarco a remona água e tirávamosdelaminúsculospeixinhosdurante algumashoras.

Umdia,jápertodofinalzinhodoverão,otempoestavamaisfrescodoquedehábitoenósdoissaímosnobarco,Ethanusandoumcapuzgrudadoàgoladacamisa.Derepente,eledeuumpulo:

—Pegueiumgrandão,Bailey,umgrandão!Reagia tantaexcitação ficandodepénumsaltoe latindo.Ele lutoucoma

vara durantemais de umminuto, às gargalhadas, e foi quando vi o peixe, dotamanhodeumgato,subindoàsuperfíciebemaoladodonossobarco!Ethaneeunos inclinamosparaa frentea fimdeolhá-lo,obarcobalançoue, comumgrito,omeninocaiu!

Puleiparaalateraldobarcoeolheidentrodaáguaverde-escura.Pudeveromeninosumindo.Asbolhasquesubiamàsuperfícietraziamseucheiroatémim,maselenãodavasinaldevida.

Nãohesitei,mergulheiatrásdele,comosolhosabertosenquantoempurravaaáguaelutavaparaseguiratrilhadasbolhasatéofundodaescuridãogelada.

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CAPÍTULO9

Não dava para ver muita coisa ali no fundo da água, que pressionava meusouvidos e atrasavaminhadescida desesperada.Ainda assim, eu podia sentir omenino afundando aos poucos à minha frente. Nadei com mais ímpeto,conseguindo,finalmente,terumavisãoembaçadadogaroto—foiquasecomoquandoviMamãepelaprimeiravez,umaimagemborradaemmeioasombras.Mergulhei, de boca aberta, e quando cheguei bem perto do menino conseguiagarrar com a boca o capuz do seu moletom. Ergui a cabeça e, arrastando-ocomigo,subiomaisrápidopossívelparaasuperfíciebanhadadesoldolago.

Emergimosnumsalto.—Bailey!—gritouogaroto,rindo.—Vocêestátentandomesalvar,rapaz?Estendendoobraço,elealcançouobarco.Quasehistérico,tenteisubirnoseu

corpoedalipularparaobarco,parapoderpuxá-locomigoparaforad’água.Elecontinuavarindo:—Bailey,não,seuboboca!Chega!—Elemeempurrouenadeinumcírculo

fechado.—Preciso pegar a vara de pescar, Bailey. Deixei cair a vara. Estou bem!

Podeir,estoubem.Podeir!Omeninogesticulou, indicandoamargem,comoseestivesseatirandouma

bola nessa direção. Parecia querer que eu saísse do lago, motivo pelo qual,passadoumminuto,obedeci,mirandonopequenotrechodeareiajuntoaocais.

—CachorrobonzinhooBailey—disseele,meelogiando.Olheiàvoltaeviseuspésseergueremnoareumminutodepoiselesumiu

debaixo d’água. Com um gemido, dei meia-volta e nadei o mais rápido que

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pude,meus ombros se erguendo bem acima da água, tamanho omeu esforço.Quando cheguei à trilha de bolhas, segui seu cheiro. Foi muito mais difícildescerdessavezporqueeunãomergulharadobarco,eenquantomedirigiaparaofundodolagosentiogarotosubindoemudeidedireção.

—Bailey!—chamouele,encantado,jogandoavaranobarco.—Vocêéumcachorrotãobonzinho,Bailey!

Nadeia seu ladoenquantoelepuxavaobarcoatéaareia, emeualívio foitamanho que lambi seu rosto quando ele se inclinou para ancorar o barco namargem.

—Vocêtentoumesmomesalvar,rapaz.Sentei,ofegando,eelemeafagouacara.Osoleoseucarinhomeaqueceram

emigualmedida.Nodiaseguinte,omeninolevouoVovôatéocais.Faziamuitomaiscalordo

quenavésperae,correndoàfrentedeambos,trateideprovidenciarparaqueafamília de patos estivesse lá nomeio do lago, que era o seu lugar.Omeninousavaoutracamisacomcapuz,enóstrêsnosaproximamosdaextremidadedocais e olhamos para a água verde. Os patos nadaram até nós para ver o queestávamosolhandoeeufingiquesabiaoqueera.

— Preste atenção, ele vai mergulhar debaixo d’água, garanto — disse omenino.

—Acreditareiquandovir—retrucouoVovô.Voltamosparaamargemdocais.OVovôpegouminhacoleira.—Vá!—gritouparaomenino.Omeninocomeçouacorrer,epassadoapenasumsegundooVovômesoltou

paraqueeuoseguisse.Ethanpuloudaextremidadedocaisecaiunaáguacomumbarulhão, do qual os patos reclamaramuns comos outros, sacolejando namarola.Corri para o extremodo cais e lati, olhandodepois novamente para oVovô.

—Váatrásdele,Bailey—comandouoVovô.Olhei para baixo, para a água espumosa onde o menino mergulhara, e

novamenteparaoVovô.Eleeravelhoeumbocadolento,masnãoimagineiquefossetãoinsensatoapontodenadafazerdiantedessasituaçãonova.Latimaisumpouco.

—Anda!—insistiucomigooVovô.De repente entendi eolheipara ele, descrente.Seráque eu tinhaque fazer

tudo nessa família? Com mais um latido, mergulhei da extremidade do cais,nadandoparaofundo,ondepodiasentirqueEthanestavacaídoimóvel.Agarreiseucolarinhocomabocaesubiparaasuperfície.

—Viu?Elemesalvou!—gritouogarotoquandoambosemergimos.

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—Cachorrobonzinho,Bailey!—gritaramjuntosoVovôeogaroto.Os elogios dos dois me agradaram tanto que saí atrás dos patos, que

grasnaram qual idiotas enquanto se afastavam nadando. Cheguei tão perto deconseguirarrancaralgumaspenasdeseusrabosqueunsdoisabriramasasaseporummomentoalçaramvoo,oque,naminhaopinião,sinalizouminhavitória.

O restante da tarde foi gasto jogando “Resgate”, e aminha ansiedade aospoucosdesapareceuquandodescobriqueomeninodavaperfeitamentecontadesevirarsozinhonaquelelago,emboratamanhofosseoseuprazeremseralçadoà superfície por mim, que eumergulhava atrás dele todas as vezes. Os patosacabaramsaindoda água eocupandoabeirado lagodemodoanosobservarsem entender. Por que não voavam para as árvores com os outros pássaros,porém,eraalgoincompreensívelparamim.

Não via nenhuma razão para jamais deixar a Fazenda, mas quando o PaichegoualgunsdiasmaistardeeaMãecomeçouapassardeumcômodoaoutro,abrindogavetasedelastirandocoisas,tiveasensaçãodequeiríamosnosmudarmaisumavezecomeceiaandarpara láeparacá, temendoseresquecido.Sóquandoomeninoexclamou“Paraocarro!”foiquemedeixaramentrarepôracabeçaparaforada janela.Ocavalo,Flare,meencaroucomoqueconcluíserumainvejaincontrolável,etantooVovôquantoaVovómeabraçaramantesdepartirmos.

Acabamosvoltandoparacasa,efiqueiencantadodereencontrarascriançaseoscachorrosdavizinhança,menosSmokey.CorriatrásdebolasebrinqueicomminhaamigaMarshmallowe,de tãoocupadomedivertindo,mevi totalmentedespreparado para amanhã, alguns diasmais tarde, em que todos acordamoscedoefuiconduzido,semamenorcerimônia,atéagaragem.Imediatamentesaípela porta de cachorro e confirmei que Ethan e aMãe estavam indo embora,Ethannomesmoônibusamarelo,acompanhadodasdemaiscrianças.

Ora, isso era intolerável. Lati durante algum tempo e lá do final da ruaMarshmallowrespondeu.Aílatimosumparaooutro,masissonãoajudou,seiláporquê.Volteiaentrar,demauhumor,nagaragem,cheirandocomdesprezoacasade cachorro.Eunão iria passar o dia ali, decidi, ainda que fosse o lugarmaismacioàvista.

ViaspatasdeSmokeyporbaixodaportaepusmeufocinhonafendaparainspirar seu cheiro, deixando escapar um suspiro de frustração. Não senti, dapartedele,grandesolidariedade.

Comoeueraagoraumcachorrogrande,amaçanetaficavaaomeualcance,emeocorreuque talvezhouvessealgoqueeupudesse fazerparaamenizarmeucalvário.Pusaspatasnaporta,abocanheiamaçanetaegirei-a.

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Nada aconteceu, mas continuei tentando. Finalmente, com um leve ruídometálico,aportaseabriu!

Smokeyestiverasentadodooutrolado,provavelmenterindo,masquandoovi,decertoparouderir.Suaspupilasficaramescurase,girandonoscalcanhares,ele fugiu, o que, obviamente, me obrigou a segui-lo, entrando atrás dele nacozinhaelatindoquandoelepulounabancada.

Eramuitomelhordentrodecasa.Nanoiteanterior,apizzadojantarchegarapelaportadafrentedentrodeumacaixacompridaechata,quecontinuavaemcima da bancada, e assim bastante acessível. Puxei-a para o chão e comi umpapelãodelicioso,trucidandoaspartesmenossaborosas,soboolhardefingidadesaprovação de Smokey. Depois, comi uma lata da sua comida felina,lambendoometalatédeixarbemlimpinho.

Normalmente,nãomepermitemdormirnosofá,masnãoviqualquermotivopara seguir tal regra, já que tudo, nitidamente, havia mudado, agora que euconseguiraentrarporcontapróprianacasa.Deciditirarumbomcochilo,comacabeçanumaalmofadafofinhaeocalordosolmeaquecendoolombo.

Emalgummomentomaistarde,medeicontadequeosolmudaradeposição—umgrandeinconveniente—etroqueidelugarnosofá,grunhindo.

Passadonãomuitotempo,ouviosominconfundíveldeumdosarmáriosdacozinhasendoabertoecorriparaverdoquesetratava.Smokeyestavaemcimada bancada e havia se esticado e aberto uma porta, algo que considereiextremamente empreendedor da parte dele. Observei, atento, enquanto elepulava para dentro do armário, o minúsculo focinho cheirando as coisasdeliciosasaliguardadas.Elemeolhou,aliembaixo,calculandoalgumacoisa.

Resolvi dar umasmordidinhasnabasedomeu rabo, comoquemnãoquernada,equandovolteiaolhá-lofiqueisurpresoaoverqueSmokeybatiacomapata num saco de comida. Ele o atingiu uma vez, duas, e na terceira patadaderrubou-odaprateleiradiretoparaochão!

Mordi o plástico e cheguei a uns troços salgados e crocantes, que comiapressado, casoSmokey tentasse descer da bancada para reclamar sua porção.Eleobservou, impassível,de seupostoedepoisderrubououtro saco, cheiodecoisinhasdocesemacias.

AlieentãoconcluíquemeequivocaraotempotodoquantoaSmokey.Quasemearrependidetermeapossadodasuacomidamaiscedo,emboradificilmentemecoubesseaculpaporelenãotê-laconsumidoquandolheofereceram.Estavaesperandoqueacontecesseoquê?

Eu não conseguia abrir os armários sozinho: a habilidade para tanto mefaltava. Dei um jeito, porém, de alcançar uma broa e puxá-la da bancada,retirando-acuidadosamentedo invólucro,quemasquei emseparado.A latade

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lixo da cozinha não tinha tampa, tornando-se facilmente acessível, emboraalgunsitensalidentro—algunsgrãosnegroseamargosquegrudaramnaminhalíngua quando dei uma lambida para experimentar, além de cascas de ovo equentinhas de plástico— fossem impróprios para o consumo.De todomodo,mastigueioplástico.

Euestava lá foraaguardandoquandooônibuschegoue,emboraChelseaeToddtenhamdescido,nãovisinaldomenino,oqueindicavaqueeleviriacomaMãe. Voltei para dentro de casa, puxei para fora do armário da Mãe algunssapatos, mas não cheguei a mastigá-los porque me sentia bastante letárgicodepois de todos os lanchinhos providenciados por Smokey. Fiquei na sala,resolvendosedeitavanosofá,noqualjánãobatiamaissol,oumeesticavanopedaçoensolaradodotapete.Eraumadecisãodifícil,equandofinalmenteopteipelo sol, me aboletei no tapetemeio sem jeito, sem ter certeza de ter feito amelhorescolha.

QuandoouviaportadocarrodaMãebater,saíatodapelacasaacaminhodagaragemepasseivoandopelaportadecachorro,abanandoorabojuntoàcerca,para que ninguém suspeitasse de mim. Ethan veio imediatamente ao meuencontroefomosparaopátiobrincar,enquantoaMãeprosseguiuemdireçãoàcasa,ossaltosdossapatosecoandonocaminho.

— Que saudade, Bailey! Você se divertiu hoje? — indagou o menino,coçandoopelodomeupescoço.Nosentreolhamoscomadoração.

—Ethan!VenhaveroqueoBaileyfez!O som do meu nome pronunciado de forma tão dura fez minhas orelhas

baixarem.Smokeyeeuhavíamossidopegos.EntreicomEthanemeaproximeidaMãeabanandoorabocomosefosseum

leque, na expectativa de ser perdoado. Ela tinha na mão um dos sacosestraçalhados.

—Aportadagaragemestavaaberta.Vejaoqueelefez—disseaMãe.—Bailey,vocêéumcachorromalvado.Umcachorromalvado.

Baixeiacabeça.Emboraeunãotivesse,tecnicamente,feitonadadeerrado,percebi que a Mãe estava furiosa comigo. Ethan também, sobretudo quandocomeçouacatardochãoospedaçosdeplástico.

—Comoépossívelqueeletenhasubidonabancada?Sópodeterpulado—disseaMãe.

—Vocêéumcachorromalvado,muito,muitomalvado,Bailey—repetiuEthan.

Smokeyentroudespreocupado,subindo languidamentenabancada.Lancei-lheumolharsombrio—eleeraumgatomalvado,muito,muitomalvado.

Curiosamente, ninguém disse nada a Smokey a respeito do seu papel de

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mentor. Ao contrário. Deram a ele uma lata novinha de comida! Sentei-meesperançoso, supondo que ganharia ao menos um biscoito canino, mas todoscontinuavamameolhardebanda.

AMãepassouumescovãonochão,eogarotocarregouumsacodelixoparaagaragem.

— Bailey, isso foi muito feio— sussurrou o menino de novo para mim.Aparentemente, todos estavam tendo muito mais dificuldade que eu paraesqueceroincidente.

EucontinuavanacozinhaquandoouviaMãedarumgrito:—Bailey!Ogritoveiodosfundosdacasa.Supusqueelativesseencontradoossapatos.

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CAPÍTULO10

Ao longo dos dois anos seguintes, reparei que quando todas as criançasbrincavam juntas, Todd em geral era excluído. Quando aparecia, umconstrangimento as assaltava, provocando uma mudança de humor queMarshmalloweeupodíamossentir tão facilmentequantoseumadelas tivessegritado. As meninas costumavam virar as costas a Todd, e os meninos oaceitavam em suas brincadeiras com nítida relutância. Ethan não frequentavamaisacasadeTodd.

OirmãomaisvelhodeTodd,Drake,raramenteaparecia,salvoparapegarocarro e sair dirigindo. Linda em pouco tempo aprendeu a andar de bicicleta equasediariamentepedalavaruaabaixoparaencontrarasmeninasdasuaidade.

Peguei a dica com Ethan de jamais me aproximar novamente de Todd,embora uma noite em que nevava e eu estava no pátio fazendo minhasnecessidades, eu o tenha farejado lá do outro lado da cerca, junto a algumasárvores.Deiumlatidodeavisoeadoreiouvi-lodarmeia-voltaefugircorrendo.

Eunãodavamuitabolaparaoconceitodeescola,queeraaatividadequeacontecia na maioria das manhãs lá em casa. Eu preferia a época do verãoquandoaMãeeEthannão tinhamescolae íamos todosparaaFazendamorarcomoVovôeaVovó.

SemprequechegavaàFazenda,eudisparavanumacorrida, investigandooque estava diferente e o que continuava igual, marcando meu território e merefamiliarizandocomFlare,ocavalo,comomisteriosogatopretonoceleiroecom os patos, que, irresponsavelmente, decidiram produzir mais um lote defilhotes.Comfrequênciaeusentiaocheirodogambánomato,masconsciente

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dascircunstânciasdesagradáveisdosnossosencontrosanteriores,opteipornãopersegui-lo.Casoquisessebrincar,elesabiaondemeencontrar.

Umanoitedeverão,afamíliatodasentou-secomigonasalabemdepoisdahora habitual de dormir e todos estavam agitados, embora a Mãe e a Vovótambém demonstrassem medo. Então, todos gritaram, aplaudiram, o Vovôchoroueeulati,embaladoportodaaquelaemoção.Oshumanossãomuitomaiscomplexos que os cachorros, têm um leque muito grande de sentimentos —embora muitas vezes eu sentisse saudade do pátio. De modo geral, eu agoralevavaumavidabemmais rica,mesmoquequasesemprenãosoubesseoqueestavaacontecendo.Ethanmelevouláforanoescuroecontemplouocéu:

—TemumapessoanaLuanestemomento,Bailey.EstávendoaLua?Umdia,eutambémvoulá.

Eleirradiavatamanhafelicidadequecorrieapanheiumgravetoparaqueeleoatirasseparamim.Ethanriu.

—Nãosepreocupe,Bailey.Quandoeufor,levovocê.Àsvezes,oVovôiadecarroatéacidadeelevavacomeleomeninoeeu.

Passado não muito tempo, eu já havia decorado ummapa olfativo de toda aviagem—umcheiroaquosoquelevavaconsigooodorinconfundíveldepatosburros e peixes deliciosamente podres, seguido logo depois por um cheiromuitíssimofortequeenchiaocarro.

—Eca!—diziaEthan,quasesempre.—Éoranchodecabras—respondiasempreoVovô.Com a cabeça para fora da janela, eu espiava as cabras responsáveis por

todos aqueles cheiros maravilhosos e latia para elas, embora, por seremdemasiado idiotas, as criaturas jamais fugissem aterrorizadas, ficando aliparadas,deolharfixocomoFlare,ocavalo.

Pouco depois do rancho de cabras, um enorme chacoalhar se apossava docarroquandopassávamosporumapontedemadeira.Eraquandoeucomeçavaaabanarorabo,poisadoravairdecarroàcidade,eaquelebarulhotodoavisavaqueestávamosquasechegando.

OVovôgostavadevisitarumlugarondeelesesentavanumacadeiraeumhomem brincava com seu cabelo. Ethan se entediava e acabávamos indoperambular nas ruas, olhando vitrines e torcendo para encontrar outroscachorros,oque,paramim,pareciaseromotivodaviagemàcidade,afinaldecontas.Omelhorlugarparacachorroseraoparque,umaáreagrandeegramadaem que as pessoas se sentavam em cima de mantas. Havia um lago, mas omeninonãomedeixavanadarnele.

Em todos os cantos da cidade dava para eu sentir o cheiro do rancho decabras— se algum dia precisasse me orientar para voltar para casa, bastava

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confiarnomeufocinhoparame levar,poisquandoocheiro ficassemais fortesaberiaqueaquelaeraadireçãocerta.

Umdia, no parque, vimos ummeninomais velho lançar umbrinquedo deplástico para seu cachorro apanhar. Era uma cadela preta, pequena e cheia deenergia—quandome aproximei, fui totalmente ignoradopor ela, cujos olhosnãodespregavamdobrinquedodeplástico,umdiscofinoedecoresberrantes.Odisco cruzava o ar, e ela corria e pulava, agarrando-o antes mesmo que obrinquedo tocasseo chão, o que suponho ser um truquebastante incrível paraquemgostadessetipodecoisa.

—Oquevocêacha,Bailey?Querexperimentar?—perguntouEthan.Seusolhos brilhavam enquanto ele apreciava a cadelinha agarrar o disco, e quandochegamosemcasaelefoidiretoparaoquartoesepôsafazeroquechamoudeflip.

—Éummisto de bumerangue comFrisbee, combinado comumabola debeisebol—explicouaoVovô.—Vaivoarduasvezesmaislonge,porqueabolafazpeso,entende?

Cheireioobjeto,quehaviasidoumaótimaboladefutebolantesqueEthanacortasseepedisseàVovóparacosturarnovamente.

—Venha,Bailey—gritouomenino.Corremosparaoladodefora.— Quanto dá para ganhar com uma invenção como esta? — o menino

perguntouaoavô.—Primeirovamosvercomoelevoa—observouoVovô.—Muitobem.Pronto,Bailey?Entendiqueissosignificavaquealgoestavaparaacontecerefiqueialerta.O

meninolevouobraçoàscostaselançouoflipnoar,ondeobrinquedogirouecaiudocéucomosetivessebatidoemalgumacoisa.

Deixeiavarandaefuicheiraraquilo.—Trazoflip,Bailey!—comandouomenino.Peguei-ocomcuidadodochão.Lembreidacadelinhacorrendoatrásdodisco

voadorelegantenoparqueesentiumapontadade inveja.Levei-odevoltaatéondeestavaomeninoeolargueiaseuspés.

—Nãoéaerodinâmico—comentouoVovô.—Resistênciademais.—Équeprecisolançá-lodireito—disseomenino.OVovôentrounacasa edurante ameiahora seguinteomenino treinouo

lançamento do flip lá fora no pátio e eu ia buscá-lo. Dava para ver que odesesperodelecrescia,eporessemotivo,deumafeita,quandooflipdespencounochão,leveidevolta,emvezdobrinquedo,umgraveto.

—Não,Bailey—disseele,comtristeza.—Oflip.Tragaoflip.

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Lati,abaneiorabo,tenteifazê-lovercomopodiaserdivertidoograveto,seaomenoseledesseumachance.

—Bailey!Oflip!Então,alguémfalou:—Oi.EraumagarotadaidadedeEthan.Corriatéela,abanandoorabo,eelame

afagou a cabeça. Numa dasmãos, levava uma cesta contendo alguns pães dearomadoce,querealmenteatraíramminhaatenção.Sentei-me,tentandopareceromaisatraentepossível,paraganharoquehavianacesta.

—Comoéseunome,mocinha?—perguntou-meagarota.—Eleémenino—disseEthan.—OnomeéBailey.Olheiparaomenino,porqueouvimeunomeeviqueeleagiadeum jeito

estranho. Era quase como se tivesse medo, mas não exatamente, emborahouvesse recuado meio passo quando a viu. Olhei de novo para a garota, dequemrealmentegosteiporcausadospãezinhoscheirososdacesta.

—Moromais abaixo na estrada.Minhamãe fez unsbrownies para a suafamília—explicouelaapontandoparaabicicleta.

—Sei—respondeuomenino.Mantiveminhaatençãonacesta.—Então,hã...—começouagarota.—Vouchamarminhaavó—emendouomenino,virando-seeentrandona

casa.Eu,porém,opteiporficarcomagarotaeseusbiscoitoscaninos.—Bailey?Vocêéumcachorrobonzinho?Vocêéumcachorrobonzinho—

medisseagarota.Bonzinho,masnãobomobastanteparaganharumbiscoitocanino,descobri,

ainda que, passado um minuto, eu tenha dado uma sacudida na cesta com ofocinhoparafazê-lalembrar-sedoassuntoemquestão.Seucabeloeraclaroeelao alisou enquanto esperava que Ethan voltasse. Também parecia um tantinhonervosa,emboraeunãovissenadacapazdedeixarqualquerumansioso,salvoumpobrecachorrofamintonecessitadodeumaguloseima.

—Hannah!—exclamouaVovó,saindodecasa.—Quebomvervocê.—Oi,sra.Morgan.—Entre,entre.Oquetemosaí?—Minhamãefezunsbrownies.—Ora,quemaravilha!Ethan,vocêprovavelmentenãoselembra,masvocê

eHannahcostumavambrincarjuntosquandoerambebezinhos.Elatemumanoepoucomenosquevocê.

—Nãomelembro—disseEthan,chutandootapete.

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Elecontinuavaagindodeumaformaesquisita,massentiqueerameudeverprotegeracestadebiscoitoscaninos,queaVovópôsemcimadeumamesinha.OVovôestavasentadoemsuacadeira, segurandoum livro,eestendeuamãoparaacesta,olhandoporcimadosóculos.

—Nãoantesdojantar!—repreendeuaVovó.Elerecolheuamãoenósdoistrocamosolharesdesgostosos.

Durante os vários minutos seguintes não aconteceu grande coisa, no quetange a biscoitos. AVovó se incumbiu damaior parte da conversa, enquantoEthanpermaneciadepécomasmãosnosbolsoseHannah,sentadanosofá,nãoolhavaparaele.Finalmente,EthanperguntouaHannahseelaqueriaveroflip,e, ao ouvir aquela palavra temida, virei o pescoço com força para olhá-lo,descrente,pois jámeconvenceradequeaquelecapítulodenossasvidashaviasidodefinitivamenteencerrado.

Nóstrêssaímosparaopátio.EthanmostrouoflipaHannah,masquandoolançou,novamenteobrinquedoseesborrachounochãocomoumpássaromorto.

—Precisofazeralgumasalteraçõesnoprojeto—explicouEthan.Aproximei-me do flip, mas não o peguei, na esperança de que o menino

resolvessepôrfimdevezaesseconstrangimento.Hannah encompridou a visita, indo até o lago observar os patos idiotas,

afagando o focinho de Flare e fazendo uns dois ou três lançamentos do flip.Subiu, então, nabicicleta e sedirigiuparaoportão.Eua acompanhei atéqueouvioassoviodomeninomechamandoevolteicorrendo.

Algomedissequevoltaríamosaveraquelagarota.Mais tarde naquele verão, cedo demais para voltar para casa e começar a

escola, na minha opinião, a Mãe arrumou as coisas no carro. Ethan e euaguardamosdoladodefora,enquantooVovôeaVovóocupavamseuslugares.

—Eudirijo—disseoVovô.—Vocêvaiestardormindoantesqueagenteatravesseadivisadocondado

—retrucouaVovó.— Ethan, você é um rapazinho. Comporte-se. Ligue, se tiver qualquer

problema.Ethanseremexeudentrodoabraçodamãe.—Eusei—disseele.—Voltamos daqui a dois dias. Se precisar de qualquer coisa, peça ao sr.

Huntley,ovizinho.Deixeicomidaparavocê.—Eusei!—disseEthan.—Bailey,tomecontadeEthan,viu?Abaneio raboalegremente, sementender coisa alguma.Agente iaounão

andardecarro?

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—Eu ficava sozinho o tempo todo, quando tinha a sua idade— disse oVovô.—Vaiserbomparaele.

Pude sentir preocupação e relutância naMãe,mas no final das contas, elaassumiuovolante.

—Euteamo,Ethan—disseaMãe.Ethanresmungoualgumacoisa,chutandoaterra.Ocarropassoupeloportãoesefoi.Ethaneeuobservamossolenemente.— Vem, Bailey! — gritou ele, quando perdemos o automóvel de vista.

Corremosparadentrodecasa.Tudo,derepente,ficoumaisdivertido.Omeninoalmoçou,equandoacabou

pôsopratonochãoparaqueeuolambesse.Fomosatéoceleiroeelesubiunoscaibrosenquantoeulatia,equandopulounummontedefenoeuoagarrei.Umasombra preta no cantome disse que o gato estava assistindo a tudo isso,masquandofuiinvestigarelemeescapouesumiu.

Fiquei nervoso quando Ethan destrancou o armário de armas, algo que eujamais o vira fazer sem a presença do Vovô. Armasme afligiam,me faziamlembrardequandoToddsoltoufogoseelescaíramtãopertodemimquesentiaexplosãona pele.MasEthan estava tão animadoque sóme restou saltitar emvoltadosseuspés.Elearrumoualgumaslatassobreacercaeatiroucomaarma.As latas saíramvoando.Nãoconseguientendermuitobemaconexãoentreaslataseobarulhodaarma,masviquedealgumaformahaviaumarelaçãoentreambas as coisas e, a julgar pela reação do menino, isso era fantasticamentedivertido. Flare bufou e se mandou para o extremo oposto do pátio,distanciando-sedetodaessacomoção.

Depois disso, o menino aqueceu uma galinha suculenta para o jantar.Sentamosna sala, ele ligouaTVe comeucomopratonocolo, jogandoparamim pedacinhos de pele de galinha.Bom, esse era o tipo de diversão que euentendia!

NaquelemomentonãomeinteressavasaberseaMãeumdiavoltariaounão.Depoisdeterlambidooprato,queomeninodeixounochão,resolvitestaras

novasregrasesubinacadeiramaciadoVovô,olhandoporcimadoombroparaverseatraíaoesperado“Desçadaí!”.OmeninocontinuouassistindoàTV,eeumeenrosqueiparatirarumcochilo.

Meiozonzo,registreiotoquedotelefoneeouviomeninodizer“cama”,masquandodesligou,elenãofoidormir;voltouasentar-sediantedatelevisão.

Eu dormia profundamente quando uma súbita sensação de que havia algoerradomedespertoudeumsalto.Omeninoestavasentadoereto,comacabeçainclinada,alerta.

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—Ouviuessebarulho?—sussurrouparamim.Perguntei-me se a urgência em sua voz significava o fim domeu cochilo.

Concluí que uma influência calmante seria recomendável e voltei a deitar acabeçanaalmofadamacia.

Dedentrodecasaveioumruídoabafado.—Bailey!—sibilouomenino.Certo,acoisaeraséria.Levanteidacadeira,meespreguiceieolheiparaele,

aguardando. Ele estendeu amão e passou-a naminha cabeça e pude sentir omedoemsuapele.

—Olá?Temalguémaí?Elecongeloueimiteisuaposturadealertatotal.Eunãosabiaaocertooque

estavaacontecendo,masmeconvencidequehaviaumaameaça.Quandooutroruídoabafadoofezdarumpuloeomedofezsuapelesearrepiar,preparei-mepara enfrentar qualquerque fosseoproblema.Pude sentir o pelo se eriçar emmeulomboesolteiumrosnadogravedeaviso.

Aoouvirmeurosnado,omeninoatravessousilenciosamenteasala.Fuiatrásdele, ainda alerta, e observei-o abrir o armário de armas pela segunda veznaqueledia.

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CAPÍTULO11

Segurando o rifle doVovô nasmãos trêmulas, omenino subiu, pé ante pé, aescada, atravessou o corredor e entrou no quarto daMãe. Eu fui atrás. Ethanchecouobanheirodasuíte,debaixodacama,e,aoabrircomumsafanãoaportadoarmáriogritou“ah”,quasemematandodesusto.Repetimosessachecagemnoquartodele,nodoVovôedaVovóenoquartinhocomosofáemqueaVovódormiaquandooVovôfaziaaquelebarulhodetrovãoànoite.Antesdepartirnaviagemdecarro,aVovótrabalharaalinoflip,tentandoconsertá-losegundoasinstruçõesdeEthan.Oquartinhoerachamadodequartodecostura.

O menino checou a casa toda, apontando o rifle do Vovô com o braçoestendido,sacudindocadamaçanetaetestandocadajanela.Passandopelasala,dirigi-me,esperançoso,paraacadeiradoVovô,masomeninoqueriacontinuarexplorandoacasa.Comumsuspirodesalentado,euoacompanheinoexamedascortinasdecadaboxe.

Finalmente,elevoltouparaoquartodaMãe.Mexeunamaçanetaedepoispuxouacômodaeencostou-anaporta.Pôso rifle juntoàcamaemechamouparadeitaraseulado.Quandomeabraçou,lembreidecomo,àsvezes,elevinhapara a casade cachorronagaragemquandoaMãeeoPaigritavam.Era essemesmo terror solitário que eu via nele agora. Eu o lambi da forma maisconfortadora que conhecia — estávamos juntos, como podia haver algo deerrado?

Namanhãseguinte,acordamos tardeedepois tomamosumcafé fantástico.Comicascasdetorradaelambiovosmexidos,terminandodetomaroleitequeEthannãoquis.Quediamaravilhoso!Ethanpôsmaiscomidanumasacolajunto

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comumagarrafa que encheude água e acomodou tudo em suamochila. Seráqueíamospassear?Àsvezes,Ethaneeusaíamosparaumpasseioeelelevavasanduíchesparadividirmos.Ultimamente,essasexcursõessemprepareciamnoslevarapassarporondeagarotamorava.Davaparaeu sentirocheirodelanacaixadecorreio.Ethanparavaeficavaolhandoacasa.Depoisvoltávamos.

Omedodanoiteanteriorsumiraporcompleto.Assoviando,omeninofoiláforacuidardeFlare,queseaproximoudobaldedesementessecaseinsossas,oudoquequerquefossequeelemascavaquandonãoestavatentandoficarenjoadocomendograma.

Mesurpreendi,porém,quandoomeninopegouumcobertoreumaseladecouro lustroso no celeiro e pôs os dois sobre o lombodo cavalo. Já tínhamosfeitoissoalgumasvezes,eEthanmontavanocavaloesesentavalánoalto,massemprecomoVovôpresenteesemprecomoportãoquedáacessoaopátiodeFlaremuitobem-fechado.Agora,porém,omeninoabriuoportão,montandonoanimalcomumsorriso.

—Vamos,Bailey!—chamou.Fuiemfrente,demauhumor.NãomeagradavaofatodeFlareatrairtodaa

atençãoedemever tãodistantedomenino,obrigadoaandarao ladodaquelacriatura enorme, que eu já concluíra ser mais burra que os patos. Fiqueiparticularmente aborrecido quando, comumabanar do rabo, Flare deixou cairumapilhafedorentadecocônaestrada,nãomeatingindoporpouco.Levanteiaperna sobre a porcaria, porque agora, afinal, elame pertencia,mas tive quasecertezadequeaintençãodocavalohaviasidomeofender.

Logosaímosdaestradaeentramosnomato, seguindouma trilha.Perseguiumcoelho,eoteriaapanhadoseelenãotivessemeroubadonojogomudandoderumorepentinamente.Farejeimaisdeumgambáecomdesdémmerecuseiadarsequerumpassonessadireção.Paramosjuntoaumapequenapoça,eFlareeeubebemoságua.Maistardeomeninocomeuseusanduíche,jogandoparamimascascasdepão.

—Istonãoéomáximo,Bailey?Vocêestásedivertindo?Observeisuasmãos, imaginandoseesse tomquestionador indicavaqueele

fossemeoferecermaispão.Afora o fato de termos a companhia de Flare, eu estava realmente me

divertindo.Claroquesóficar longedaqueleflip idiota jáeramotivosuficienteparacomemorar,maspassadasváriashorasadistânciadecasaeratamanhaqueeunãofarejavamaisqualquersinaldela.

Pude ver que Flare estava ficando cansado, mas pela atitude do meninoentendique ainda faltavaumbocadopara chegarmos anossodestino.Acertaaltura,Ethanperguntou:

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—Seráquevamosporaquiouporali?Vocêselembra,Bailey?Sabeondeestamos?

Olhei para ele, ansioso, e passado um momento continuamos em frente,tomandoumatrilhaondehaviamuitíssimosodoresanimais.

Eutinhamarcadoterritóriotantasvezesqueaminhapernadoía.Flareparoupara se aliviar com um jato gigantesco de urina, o que me pareceu umcomportamento totalmente impróprio, já que esse odor apagaria o meu e ocachorroeraeu.Saíandandonafrenteparalivrarmeufocinhodessecheiro.

Subiumapequenaelevaçãoefoientãoqueviacobra.Estavaenroscadanumtrecho ensolarado, pondo a língua para fora ritmicamente, e eu congelei,fascinado.Nuncatinhavistoumacobra.

Lati,oquenãoprovocouqualquerreação.Volteiatéondeestavaomenino,querecomeçaraaandarcomFlare.

—Oquefoi,Bailey?Oquevocêviu?Resolviqueoquequerqueeletivessedito,nãoeravámorderaquelacobra.

VolteiacaminharaoladodeFlare,queseguiaadiantesemexpressãoalguma,emepergunteiqualseriaasuareaçãoaoveracobraenroscadaàsuafrente.

A princípio, ele não a viu, mas quando se aproximou, a cobra recuou,levantando a cabeça, e Flare relinchou agudamente. Suas patas dianteiras seergueram do solo e ele empinou. O menino voou de cima da sela. Corriimediatamenteatéele,éclaro,masestavatudobem.Eleselevantoudeumsaltoegritou:

—Flare!Observeicontrariadoocavalobateremretiradaagalope,oscascosbatendo

na terra. Quando omenino saiu correndo, percebi o que precisava ser feito ecorri a toda avelocidade atrásdo cavalo,masnão adiantou e logo adistânciaentremimeomeninoaumentoudemaisevolteiparajuntodele.

—Ah,não!—exclamouEthan,maso“não”nãoeraparamim.—Ai,meuDeus!Oquevamosfazer,Bailey?

Parameu desânimo total, o menino começou a chorar, uma coisa que elefaziacadavezmenos,àmedidaquecrescia,fatoquesócontribuíaparatornarasituaçãomais aflitiva.Davapara sentir seu desespero, e enfiei a cara em suasmãos, tentando consolá-lo. A melhor coisa, concluí, seria voltar para casa ecomermaisgalinha.

Omeninoacabouparandodechorareolhoucomindiferençaàsuavolta.— Estamos perdidos, Bailey— disse ele, tomando um gole de água. —

Muitobem.Venha.Aparentemente, o passeio não havia acabado, porque tomamos um rumo

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totalmentenovo,deformaalgumaaquelequenoslevaraatéali.Entramosbemfundonomato,acertaalturacruzandoonossopróprioodor,

masomenino continuou andando.Meu cansaço era tamanho, quequandoumesquilo surgiu bem na minha frente nem me dei ao trabalho de persegui-lo.Simplesmenteseguiomenino,que,davaparanotar,tambémiaficandocansado.Quandoocéucomeçouaescurecer,nósnos sentamosnum troncocaídoeelecomeuoúltimosanduíche,tendoocuidadodemedarumnaco.

—Sintomuito,Bailey.Pouco antes de cair a noite, o menino demonstrou interesse por gravetos.

Começouaarrastá-losatéumaárvorequehaviasidoderrubada,amontoando-oscontra uma parede de lama e raízes retorcidas. Empilhou cedrinhos na terradebaixo desse caramanchão e pôs mais gravetos em cima. Observei curioso,disposto,apesardocansaço,acorrerebuscarumgravetoseeleoatirasse,masomeninocontinuouconcentradoemsuatarefa.

Quando ficou demasiado escuro para enxergar, ele subiu no monte decedrinhos.

—Vem,Bailey!Paracá!Deitei a seu lado.Meveioà lembrançaacasadecachorro.Compesarme

lembrei da cadeira doVovô, imaginandopor que não podíamos simplesmentevoltar para casa e dormir lá.Mas logo omenino começou a tremer e botei acabeça em cima dele, encostando a barriga nas suas costas, do jeito quecostumavamedeitarjuntoaosmeusirmãosquandoelessentiamfrio.

—Vocêéumcachorrobonzinho,Bailey—medisseele.Empoucotempo,suarespiraçãoficoumaisprofundaeeleparoudetremer.

Embora eu não me sentisse lá muito confortável, mantive-me deitado numaposiçãocapazdeaquecê-loomáximopossívelaolongodanoite.

Acordamos quando os pássaros começaram a cantar e antes que clareassetotalmentejáestávamosnovamenteacaminho.Farejei,esperançoso,amochila,iludidopelosodores,masquandoomeninomedeixouenfiaracabeçaládentronãoacheicoisaalgumaparacomer.

—Vamos guardá-los para o caso de precisarmos de uma fogueira—medisseele.Concluíqueatraduçãoera“precisamosdemaissanduíches”eabaneioraboconcordando.

Anaturezadanossaaventuramudounaqueledia.Minhafometransformou-senumadoragudaeomeninochoroudenovo,fungandodurantemaisoumenosumahora.Pudesentiraansiedadepulsandoemseucorpo,seguidadeumaapatiasoturna,letárgica,quemepareceuigualmentealarmante.Quandoelesesentouemeencaroucomolhosvidrados,lambiseurostotodo.

Euestavapreocupadocomomeumenino.Precisávamosvoltarparacasa.Já.

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Chegamos a um regato e omenino se deitou de bruços e, sedento, bebeuágua.Aágualhedeu,aomesmotempo,energiaedisposição.Quandopartimosnovamente, seguimos o regato, que serpenteava emmeio às árvores e, a certaaltura, atravessava uma campina cheia de insetos cantores. Omenino virou orosto para o sol e aumentou o ritmo da caminhada, tomado por uma onda deesperança,masseusombrosseencolheramdepoisdeumahoraepouco,quandooregatovoltouapenetrarnamataescura.

Passamos aquela noite abraçados um ao outro como antes. Farejei umacarcaça nas redondezas, algo velho,mas provavelmente aproveitável,mas nãoquis deixar omenino sozinho. Ele precisavamais que nunca do calor. Estavaperdendoasforças.Eupodiasenti-lasseesvaindo.

Nuncativetantomedo.Nodia seguinte, omenino tropeçoualgumasvezes enquanto andava.Senti

cheiro de sangue. Seu rosto havia sido atingido por um galho. Farejei oferimento.

—Sai,Bailey!—gritoucomigo.Sentiraiva,medoedornele,masnãorecuei,continueibemalieviquehavia

feitooqueeracertoquandoeleenterrouorostonomeupescoçoechoroumaisumpouco.

—Estamosperdidos,Bailey.Sintomuito—sussurrouomenino.Abaneioraboaoouvirmeunome.

O regato penetrou numa área pantanosa, perdendo a forma e tornandolamacentaacaminhada.Omeninoafundouatéostornozelos,ospésfazendoumbarulho de sucção quando ele andava. Fomos atacados por insetos, queaterrissavamemnossosolhoseouvidos.

Nomeiodopântano,omeninosimplesmenteparou.Seusombrosbaixarameoqueixoseafundounopeito.Oarlhesaíadospulmõesemumsuspiroprofundoecomprido.Nervoso,encontreiocaminhoemmeioàquelasujeiraomaisrápidopossível,pondoumapataemsuaperna.

Eleestavadesistindo.Umasensaçãoacachapantedederrota lhecresciapordentroeEthancomeçavaaseentregar,começavaaperderavontadedeviver.Era comomeu irmãoFaminto, deitado pela última vez no interior damanilhaparajamaisselevantardenovo.

Lati, assustando tantoaelequantoamim.Seusolhos sembrilhopiscaramparamim.Latinovamente.

— Está bem — resmungou ele. Letargicamente, retirando o pé da lama,tornouaenfiá-lonela,relutante,afundandomaisumavez.

Levamos mais de meio dia para atravessar aquele pântano. Quandoreencontramos o regato do outro lado do charco, suas águas se mexiam com

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maisdisposição,maisfundasemaisrápidas.Logo,umoutrobraçodeáguasejuntoua ele, emaisoutros,obrigandoomeninoa tomar impulsopara saltá-loquandoumaárvorecaídabloqueouocaminhodeumladoedooutro.Cadasaltopareciaexauri-lo,eacabamostirandoumcochilodealgumashoras.Deiteiaseulado, apavorado com a hipótese de ele não acordar, mas ele acordou,despertandolentamente.

—Vocêéumcachorrobonzinho,Bailey—disseelecomvozrouca.A tarde já chegava ao fim quando vimos o regato juntar-se a um rio. O

menino olhou sem ver para a água escura durante um bom tempo, depoisresolveudesceroriocomigo,seguindoatravésdomatoedavegetaçãofechada.

A noite começava a cair quando farejei gente. A essa altura, Ethanaparentemente andava sem propósito, arrastando automaticamente os pés naterra.Todavezquecaía,levavamaisemaistempoparatornaraficardepé,enãodeuporissoquandosaícorrendo,ofocinhocoladonochão.

—Venha,Bailey—resmungou.—Aondevocêvai?Acho que sequer reparou quando cruzamos a vereda. Seus olhos estavam

entrefechados contra a luz mortiça, tentando impedir novos tropeções, e nãosenti nadanele durante vários segundosquando a grama sobnossospés virouuma trilha de terra bastante usada.Eu podia sentir o cheiro de vários homensdiferentes— odores antigos,mas tão evidentes paramim quanto o rastro dascrianças para baixo e para cima nas ruas perto de casa. Então, de repente, omeninoseempertigou,respirandofundo.

—Ei!—exclamoubaixinho,concentrandooolharnatrilha.Agoraqueeutinhaumasensaçãoclaradanossadireção,saíapassolargona

frente, meu cansaço desaparecendo diante da crescente animação do menino.Tantoatrilhacomoorioinclinavam-se,paralelamente,paraadireita,emantivemeu focinhoabaixado,notandoqueocheirodehomemse tornava, aomesmotempo, mais forte e mais recente. Alguém andara por aqui não muito tempoantes.

Ethanparou.Volteiatéele,queestavaimóvel,deolhosarregaladosecomabocaaberta.

—Uau!—exclamou.Medeiconta,então,dequehaviaumaponteatravessandoorio,e,quando

olhei, vi surgir das sombras uma figura que caminhou junto ao parapeito,examinando a água. O coração de Ethan disparou. Eu podia ouvi-lo. Suaanimação, porém, transformou-se em medo, e ele se encolheu, me fazendolembrar da reação da minha primeira mãe quando esbarrávamos em gentequandocaçávamos.

—Bailey,fiquequieto—sussurrouEthan.

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Eunãosabiaoqueestavaacontecendo,mas reconheciseuhumor—eraomesmo daquela noite em casa, da noite em que ele pegou o rifle e examinoutodososarmários.Olhei,alerta,paraomenino.

— Ei! — chamou o homem na ponte. Senti o menino ficar tenso e seprepararparafugircorrendo.

—Ei!—gritounovamenteohomem.—SeunomeéEthan?

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CAPÍTULO12

Ohomemdapontenosdeucaronaemseucarro.—ProcuramosporvocêemtodooestadodeMichigan,filho—disseele.Ethan baixou os olhos, e senti nele tristeza, vergonha e um pouquinho de

medo.Fomosatéumprédiograndee,assimqueparamos,oPaiabriuaportadocarroeaMãeabraçouEthan.OVovôeaVovóestavamláetodossemostravamfelizes, embora não houvesse qualquer guloseima canina à vista. O meninosentou-senumacadeiracomrodinhaseumhomemempurrou-oparadentrodoprédio. Antes de entrar, o menino se virou e acenou para mim. Achei queprovavelmente tudo daria certo, embora me causasse bastante ansiedade ficarafastadodele.OVovô,porém,seguroufirmeaminhacoleira,nãomedeixandoqualquerescolhaquantoaisso.

OVovôme levou para uma volta de carro, como cão de banco dianteiro.Fomosaumlugarondederamaele,atravésdajanela,umsacoumcomcheirodeliciosoeeledeumeujantaralimesmonocarro,desembrulhandosanduíchesquenteseosentregandoamim,umdecadavez.Eletambémcomeu.

—NãoconteissoparaaVovó—recomendou.Quandochegamosemcasa,fiqueipasmoaoverFlareemseulugarhabitual

nocercado,meolhandocomumaexpressãoindolente.LatiparaelepelajaneladocarroatéoVovômemandarparar.

Omeninopassouapenasumanoite fora,maseraaprimeiravezdesdequenos conhecíamos que eu dormia sem ele, e andei para baixo e para cima nocorredoratéoPaigritar“Deitado,Bailey!”.Enrosquei-menacamadeEthaneadormecicomacabeçanotravesseiro,ondeseucheiroeramaisforte.

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Quando aMãe trouxe Ethan para casa no dia seguinte, reagi com euforia,masoânimodogarotoestavasombrio.OPaiochamoudemeninomau.OVovôconversoucomelenafrentedoarmáriodearmas.Todossemostravamtensos,mas ninguém sequermencionou o nome Flare, e Flare era o responsável pelacoisa toda!Concluíque, comoninguémmaisestivera lá,ninguémsabiaoqueaconteceraedescontavamtodaaraivanogarotoemvezdeculparemocavalo.

Minharaivamefazia tervontadedeir láforaemorderaquelecavalo,masnãofizisso,éclaro,porqueacriaturaeraenorme.

Agarotafoivisitaromenino,eosdoissesentaramnavarandaenãofalarammuito,apenasresmungaramedesviaramoolharumdooutro.

—Vocêtevemedo?—indagouagarota.—Não—respondeuomenino.—Euteriatido.—Bem,eunãotive.—Faziafrioànoite?—insistiuela.—Umbocado.—Ah!—É.Acompanhei atentamente a conversa, alerta à menção de palavras como

“Bailey”, “volta de carro” e “guloseimas”. Como não ouvi nenhuma delas,baixeiacabeçaesolteiumsuspiro.Agarotaseinclinouemeafagou,porissovireidebarrigaparacimaparaganharumcarinho.

Concluíquegostavadagarotaequeadorariaqueelanosvisitassecommaisfrequênciaetrouxessemaisdaquelesbiscoitosemepresenteassecomalguns.

Então, antesqueeuestivessepronto, aMãeempacotou tudoepartimosnalongaviagemdecarro,oquesignificavaqueasaulasseaproximavam.Quandoestacionamos na entrada da casa, várias crianças surgiram correndo, eMarshmalloweeunosreencontramosnagrama, imediatamentedando inícioànossalutalivreconstante.

Havia outros cães na vizinhança, mas o meu preferido era Marshmallow,provavelmenteporvê-laquasetododia,quandoomeninoficavacomamãedeChelsea ao chegarda escola.Muitasvezes, quandoeu saíaparaumaaventurapassando pelo portão aberto, encontravaMarshmallow e elame acompanhavaparaexplorarmosaspossibilidadesdaslixeirasalheias.

Por isso, leveiumsustoaoouvirChelsea,debruçadana janeladocarrodamãe,chamar:

—Marshmallow!Marshy!Aqui,Marshmallow!Para mim era óbvio que Marshmallow havia sido uma cadela malvada e

partiraparaseaventurarporcontaprópria.

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Seuodorpareciamaisrecenteemtornodoriacho,mashaviatantascriançase tantoscãesquenãorastreeiadireção tomadaporela.Chelseaestava tristeechorosa, e me senti mal ao vê-la assim. Pus a cabeça em seu colo e ela meabraçou.

TodderaumdosqueajudavamaprocurarMarshmallow,ecuriosamenteocheirodoanimalestavaemsuacalça.Farejeiatentamenteeelefranziuatesta,afastando minha cabeça. Seu sapato enlameado também cheirava forte aMarshmallow,alémdeexalaroutrosodoresquenãopudeidentificar.

—Venha,Bailey—chamouEthanaoverareaçãodeToddaomeuexame.Marshmallow jamaisvoltouparacasa.Me lembreidaminhaprimeiramãe,

fugindopeloportãoparaentrarnomundosemolharparatrás.Algunscachorrosqueremserlivresparavagar,porquenãotêmummeninoqueosame.

Comopassardotempo,ocheirodeMarshmallownoarfeneceu,maseunãoconseguia parar de farejar à sua procura. Quando me lembrava das nossasbrincadeiras, me via pensando emCoco, lá no pátio. Eu adoraria ver Coco eMarshmallow de novo, mas começava a entender que a vida é bem maiscomplicada do que parecia ser no pátio e que é controlada por gente, não porcachorros.Oqueimportavanãoeraoqueeuqueria,masofatodeterestadonomato comEthan quando omenino sentia frio e fome,mantendo-o aquecido ànoite,sendoseucompanheiro.

Naqueleinverno,porvoltadaépocaemqueoPaipunhaumaárvorenasalaparaoFelizNatal,Chelseaganhouumacachorrinhanova,batizadadeDuquesa.Elabrincavaincansavelmente,apontodemedeixarcansadodosseusdentinhosafiados nasminhas orelhas e ser obrigado a rosnar de leve para fazê-la parar.Duquesa então piscava inocentemente e recuava apenas uns poucos segundos,até concluir que eu não falava sério e voltar para cima de mim. Que coisairritante!

Naprimavera,apalavra“carrinhoderolimã”seespalhoupelavizinhança,ena rua inteira as crianças serravam e martelavam madeira, ignorando porcompletoseuscachorros.OPai,todanoite,iaatéagaragemeconversavacomofilho enquanto este continuava a mexer com o que quer que estivesse semexendo.Quanto amim, chegueimesmoa entrar no armáriodomeninoparabuscar o abominável flip na esperança de poder seduzi-lo com aquilo. Ethan,porém, permaneceu totalmente concentrado em brincar com os pedaços demadeira,jamaisjogandoumsequerparaeupegarelevardevolta.

— Está vendo o meu carrinho de rolimã, Bailey? Vai andar a toda avelocidade!

Finalmente, o menino abriu a porta da garagem, sentou-se no carrinho derolimã e desceu o pequeno trecho até a entrada de carros da casa, dirigindo-o

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como se fosse um trenó. Caminhei ao seu lado, imaginando que ambos jáhavíamosnosesforçadoumbocadoparachegaraumfinaltãosemsentido,masquandoo carrinhode rolimãalcançouo fimdocaminho,omeninopegou-oevoltoucomeleparaagaragemafimdebrincardenovo!

Aomenosofliperaalgoquesepodiamorder.Numdiaensolaradoemquenãohaviaescola,todasascriançasdavizinhança

levaram seus carrinhos de rolimã para uma rua comprida e íngreme, algunsquarteirõesadiante.ADuquesaerajovemdemaisparaaderiràprocissão,maseuacompanheiomeumenino,emborasemgrandeentusiasmopelaideiaoriginal,queconsistiaemelesesentarnocarrinhoderolimãeserpuxadopormim,pormeiodeumacoleiraamarradanobrinquedo,ruaabaixo.

Todd e o irmão mais velho, Drake, estavam entre as crianças e disseramcoisas sobre o carrinho de rolimã deChelsea, que, pude perceber, a deixarammagoada.Quandooscarrinhosforamenfileiradosnoaltodaladeira,odeToddestavaaoladododeEthan.

Eunãomeachavapreparadoparaoqueaconteceuemseguida:alguémgritou“Já!” eos carrinhospartiram,descendoa ladeira, ganhandovelocidade.Drakecorria atrás de Todd e deu um bom impulso no carrinho do irmão, fazendo-odisparar.

—Issoéroubo!—gritouChelsea.Seu carrinho de rolimã andava muito devagar, mas o de Ethan ganhava

velocidade, e logo precisei correr para acompanhá-lo. Os outros tombaram e,passadoumtempo,sobrouapenasodeEthan,consistentementeseaproximandododeTodd.

Corricomnaturalidade,numaliberdadeesfuziante,galopandoladeiraabaixoatrásdomeumenino.Nosopédaladeira,umgarotochamadoBillyempunhavaumabandeirapresaaumavara,epercebique,dealgumaforma,elefaziapartedo que estava acontecendo. Ethan, debruçado sobre si mesmo, mantinha acabeçabaixa, e tudoera tãodivertidoque resolviviajarnocarrinhode rolimãcomele.Numimpulsoextradevelocidade,salteinoar,aterrissandonatraseiradoveículoequasesendojogadodele.

A força do impacto nos lançou à frente, e lá estávamos nós ultrapassandoTodd!Billyagitousuavaraepudeouvirosgritoseaplausosàsnossascostasenquantooscarrinhos,agoranaparteplanadarua,deslizavamatéparar.

—Cachorrobonzinho,Bailey!—medisseomenino,rindo.Todos os outros carrinhos corriam atrás de nós, seguidos pelo restante das

crianças, que gritavam e riam. Billy se aproximou e ergueu no ar a mão deEthan, largando a vara com a bandeira. Peguei a vara e desfilei com ela,desafiandoqualquerumquesedispusesseatomá-lademimparasedivertirde

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verdade.—Nãoéjusto,nãoéjusto—gritouTodd.Amultidãodecriançassecalou.UmaverdadeirafúriaemanavadeTodd,de

pé,encarandoEthan.— O maldito cachorro pulou no carrinho. Por isso você venceu. Está

desclassificado—disseDrake,postando-seaoladodoirmão.—Ora,vocêempurrouoseuirmão!—gritouChelsea.—Edaí?—Euteriaalcançadovocê,dequalquerjeito—disseEthan.—QuemachaqueToddtemrazão,diga“Eu!”—comandouBilly.Toddeoirmãogritaram“Eu!”.—QuemachaqueEthanvenceu,diga“Eu!”.—Eu!—todasasoutrascriançasgritaram.Fiqueitãoapalermadocomesse

alvoroço,quelargueiminhavara.TodddeuumpassoàfrenteedesferiuumsocoemEthan,quesedesvioue

acertouTodd.Amboscaíramnochão.—Briga!—gritouBilly.Comeceiameadiantarparaprotegeromeumenino,masChelseapôsamão

comfirmezaemminhacoleira.—Não,Bailey.Quieto.Os garotos rolaram no chão, ambos enlaçados em um nó cego de raiva.

Remexi-me,tentandomesoltardacoleira,masChelseanãorelaxou.Frustrado,lati.

Empoucotempo,EthanestavasentadoemcimadeTodd.Ambosarfavam.—Vocêdesiste?—perguntouEthan.Todd desviou o olhar, apertando bem os olhos. Humilhação e ódio

emanavam dele em quantidades iguais. Finalmente, anuiu com a cabeça. Osmeninossepuseramdepé,desconfiados,espanandoapoeiradascalças.

Senti uma súbita raiva eclodir em Drake no exato momento em que eleinvestiu,empurrandoEthancomasduasmãos.Ethanbalançou,masnãocaiu.

—Venha,Ethan,venhacá—rosnouDrake.Fez-seumalongapausa,enquantoEthanencaravaogarotomaisvelho.Billy,

então,deuumpassoàfrente.—Não—disseBilly.—Não—entoaramalgumasoutrascrianças.—Não.Drake olhou para nós um minuto, cuspiu no chão e pegou o carrinho de

rolimã.Semdizerumapalavra,osdoisirmãosseforam.—Muitobem,Bailey.Mostramosa todomundoquemsomos,não foi?—

medisseEthan.

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Todoscarregaramseuscarrinhosatéoaltodaladeiraedesceramneles,vezapósvez,aolongodetodoodia.EthandeixouChelseausaroseu,poisodelaperderaumaroda.Elamelevoujuntotodasasvezes.

Naquela noite, Ethan mostrou-se animado no jantar, conversandoatropeladamente com o Pai e a Mãe, que sorriam enquanto ouviam o filho.Levou um bocado de tempo para o menino pegar no sono, e depois queadormeceusuainquietudemeobrigouadescerdacamaemedeitarnochão.Porcausa disso, eu ainda não dormia profundamente quando ouvi um enormeestrondoláembaixo.

—Oquefoiisso?—indagouomenino,sentando-senacama.Pulouparaochãoquandoasluzesseacenderamnocorredor.

—Ethan,fiqueemseuquarto—instruiuoPai,queestavatenso,zangadoecommedo.—Venha,Bailey.

ObedientementedesciaescadacomoPai,quepisavacomcuidadoeacendeualuzdasala.

—Quemestáaí?—perguntouemvozalta.Oventobalançouascortinasdajaneladafrente—janelaquedehábitonão

ficavaaberta.—Nãodesçamdescalços!—gritouoPai.—Oquefoi?—indagouaMãe.—Alguémjogouumapedranajanela.Paratrás,Bailey.SentiapreocupaçãodoPaiefarejeitodoovidroespalhadopelasala.Havia

umapedranochão,compequenoscaquinhosgrudadosnela.Quandoencosteiofocinhonela,imediatamentereconheciocheiro.

Todd.

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CAPÍTULO13

Umanoepoucomaistarde,naprimavera,Smokey,ogato,caiudoente.Passavaotempotododeitadoegemendoenãoprotestavaquandoeupunhaofocinhoemsua cara para investigar esse novo comportamento. AMãe foi ficando muitoaflita e levou Smokey para uma volta de carro. Quando chegaram, ela estavatriste,provavelmenteporquegatosnãosãodivertidosnumcarro.

Maisoumenosumasemanadepois,Smokeymorreu.Terminadoojantar,afamília foiaoquintal,ondeEthancavouumburacograndeeelesenrolaramocorpodeSmokeynumcobertor,puseramnoburacoecobriramcomterra.Ethanmartelouumpedaçodemadeiranosoloaoladodomontinhodeterramolhadae,juntocomaMãe,chorouumpouco.Cutuqueiambosparalembrar-lhesdequenãohaviarealmentemotivoparalamentar,jáqueeuestavabemecomcertezaeraumanimaldeestimaçãomelhordoqueSmokeyjamaisfora.

Nodiaseguinte,depoisqueaMãeeomeninopartiramparaaescola,fuiatéo quintal e desenterrei Smokey, imaginando que eles não deviam ter tido aintençãodeenterrarumgatomortoemtãobomestado.

Naquele verão, não fomos para a Fazenda. Ethan e alguns amigos davizinhança todo dia de manhã cortavam a grama na casa dos vizinhos commáquinasbarulhentas.Omeninomelevavacomele,massempremeamarravaaumaárvore.Euadoravaocheirodagramarecém-cortada,masnãoachavamuitagraçaemcortargramaemepareciaqueessaatividade,dealgumaforma,tinhaavercomofatodenãovisitarmosaFazenda.OVovôeaVovósehospedaramláemcasaduranteumasemana,mas,emtermosdediversão,nãofoigrandecoisa,principalmenteporqueoPaieoVovôtrocarampalavrasdurasquandoestavam

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sozinhosnoquintaldebulhandomilho.Sentiaraivadeambosemepergunteiseseria uma reação ao fato de as espigas não estarem boas, algo que eucomprovara, tantocheirandoquantomastigandoasditas-cujas.Depoisdaqueledia,oPaieoVovôficavammuitoconstrangidosnapresençaumdooutro.

Quandoasaulasrecomeçaram,váriascoisasmudaram.OmeninonãoiamaisparaacasadeChelseaaochegaremcasa—naverdade, elecostumava seroúltimoachegar,cheirandoaterra,gramaesuorquandosubiacorrendoaentradadacasa,depoisdedescerdeumcarronarua.Ehavianoitesemquesaíamosdecarroparaoqueacabeidescobrindoserumjogodefutebolamericano,ocasiãoemqueeuficavapresoaumaguianaextremidadedeumlongopátio,aoladodaMãe, e as pessoas gritavam sem qualquer motivo. Os meninos lutavam eatiravamumparaooutroumabola,àsvezescorrendoatébempróximodeondeeuestava,eoutrasjogandonoextremoopostodopátioenorme.

Eu podia, de vez em quando, farejar Ethan no grupo. Erameio frustranteficar ali sentado e não participar do jogo — em casa, tinha aprendido aabocanharumaboladefutebol.Certavez, jogavacomomeninoemordi fortedemais.Abolamurchou até virar umpedaço flácido de couro,meio parecidocomo flip.Depois disso,Ethannãomedeixoumaismorderbolasde futebol,maseupodiacontinuarbrincandocomelasdesdequefossecuidadoso.AMãenãosabiadissoeseguravacomfirmezaaminhaguia.Eunãotinhadúvidasdeque se elame deixasse ir pegar a bola, osmeninos se divertiriammuitomaiscorrendoatrásdemimdoqueunsdosoutros,porqueeueramaisrápidodoquetodoseles.

A cachorrinha deChelsea,Duquesa, cresceu e nos tornamos bons amigos,depoisquelhemostreicomosecomportarnaminhapresença.Umdia,quandooportãoestavaaberto,meaproximeiparavê-laeelausavaumconedeplásticoem volta do pescoço e dava a impressão de estarmuito adoentada.Abanou orabodeleveaomeverdoladodeforadasuagaiola,masnãosedeuaotrabalhodelevantar.Fiqueimeionervoso,torcendoparaqueninguémpretendessebotarumdessestroçosemmimoutravez.

Quando nevava, Ethan e eu brincávamos com trenós, e quando a nevederretia, com bolas de tênis. De vez em quando, o menino tirava o flip doarmárioeolhavaparaele,enquantoeudesviavaoolhar,temeroso.Ethanerguiao brinquedo e o examinava, sentindo seu peso, e depois o guardava com umsuspiro.

Aquele foi umoutroverão semestadanaFazenda, e novamenteomeninocortougramacomosamigos—penseiqueelejátivessesecansadodisso,masaparentemente continuava a gostar. Naquele ano, o Pai viajou durante váriosdias,eenquantoeleestavaforaoVovôeaVovóapareceramdevisita.Ocarro

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delescheiravaaFlareeafenoeaolago,efiqueialifarejandoumtempão,alémdefazerxixinospneus.

—Minhanossa,comovocêcresceu—disseaVovóaEthan.Houve mais futebol quando o tempo esfriou, além de uma surpresa

maravilhosa: Ethan passou a dar voltas de carro sozinho! Isso mudou tudo,porqueagoraeuiapraticamenteatodososlugarescomele,ofocinhoparaforadajanela,esparramadonobancodafrente,ajudandoomeumeninoadirigir.Naverdade,omotivoparaqueeleficasseforaatétãotardeéquetodanoitehaviafuteboldepoisdaescola,eelemeamarravaàcercajuntoaumatigeladeágua.Erachato,masaomenoseuestavacomele.

Àsvezes,quandosaíadecarro,Ethanmeesquecia,por issoeumesentavanoquintal e gania para ver se ele voltava.Emgeral, quando isso acontecia, aMãevinhamever.

— Quer dar uma volta, Bailey?— repetia ela, várias vezes, até eu ficaranimadoapontodedançaremcírculos.

Elaprendiaaguiaàminhacoleiraepatrulhávamosasruas,parandodevezem quando para eumarcar território.Quase sempre encontrávamos grupos decrianças brincando e eume perguntava por que Ethan já não fazia isso tantoquantoantes.AMãeàsvezesdesprendiaaguiaemedeixavacorrerumpoucocomascrianças.

EugostavaumbocadodaMãe.Minhaúnicaqueixaéquequandoelasaíadobanheirocostumavafecharatampadomeubaldedeágua.Ethansempredeixavaatampaabertaparamim.

Quandoas aulas terminaramnaqueleverão,Ethane aMãeme levaramdecarro até a Fazenda. Fiquei eufórico por voltar lá. Flare fingiu não mereconhecereeunãosoubeaocertoseaquelespatoseramosmesmosououtros,mastudopareciaexatamenteigual.

Quasediariamente,Ethan trabalhava comoVovô e algunsoutros homens,martelando e serrando tábuas. Supus, a princípio, que o menino estivesseconstruindooutrocarrinhoderolimã,maspassadoummêsepoucoficouclaroqueelesestavamerguendoumnovoceleiro,bemaoladodovelho,quetinhaumenormeburaconotelhado.

Fuioprimeiroa repararnamulherquesubiapelaentradadecarrosecorriparaproverasegurançanecessária.Quandochegueisuficientementepertoparacheirá-la,percebiqueeraagarota,bemcrescidaagora.Elaselembroudemim,emecontorcideprazerquandoelameafagouatrásdasorelhas.

—Oi,Bailey.Sentiusaudadesminhas?Quecachorrobonzinho!Quandonotaramapresençadamoça,oshomenspararamdetrabalhar.Ethan

vinhasaindodoceleirovelhoeparou,surpreso.

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—Hannah!Comovai?—Oi,Ethan.OVovô e os outros sorriram entre si. Ethan olhou para eles de relance e

corou.DepoisfoiatéondeHannaheeuestávamosparados.—Oi—disseele.—Oi.Ambosdesviaramoolhar.Hannahparoudemeafagareeulhedeiumleve

cutucãoparaqueselembrassedecontinuar.—Vamosentrar—convidouEthan.Norestantedoverão,semprequeeusaíaparaumavoltadecarro,ocheiroali

impregnado indicava que a garota havia sentado nomeu banco.Às vezes elajantava conosco em casa, e depois os dois se sentavam na varanda econversavam, enquanto eu ficava deitado aos pés deles para lhes fornecer umassuntointeressante.

Certa vez, acordei de ummerecido cochilo devido a um certo alarme quesenti emanar de ambos. Os dois estavam sentados no sofá, com os rostosrealmentepróximos.Seuscoraçõesbatiamrápidoepudesentirmedoeexcitaçãonum e noutro. Dava a impressão de que estavam comendo, mas não farejeicomidaalguma.Semsaberaocertodoquesetratava,subinosofáeenfieimeufocinhonolugarondesuascabeçassetocavam,provocandoumagargalhadaemuníssono.

NodiaemqueaMãeeEthanvoltaramparaoreiníciodasaulas,ocheirodetintadonovoceleiropairavanoar,eagarotaapareceu.ElaeEthanforamatéocaisesesentaramcomospésnaáguaparaconversar.Agarotachoroueelesseabraçaramumbocado e não atiraramgravetos nem fizeramqualquer umadascoisasquenormalmenteaspessoasfazemàbeiradeumlago,oquemedeixousemsaberdireitooqueestavaacontecendo.Houvemaisabraçosjuntoaocarroedepoisfomosembora,comEthanbuzinando.

As coisas haviam mudado em casa. Para começar, o Pai tinha agora seupróprio quarto, com uma cama nova. Dividia o banheiro com Ethan e,francamente,nãomeagradavaentrarládepoisqueelesaía.Aoutradiferençaéque quando não estava jogando futebol com os amigos, Ethan passava umtempãonoquartofalandoaotelefoneerepetindoonomeHannah.

AsfolhascomeçaramacairdasárvoresnodiaqueEthanmelevoudecarroaumlugarcomgrandesônibusescolaresprateadoscheiosdegente.Ali,saindodeumdestes,surgiuagarota!Nãoseiseelaficoumaisfelizdeveromeninoouamim— eu queria brincar com ela, mas tudo que Ethan queria era abraçá-la.Fiquei tão animado com a novidade que não me importei de virar,automaticamente,umcãodebancotraseironaviagemdevolta.

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—OtreinadordissequevêmolheirosdaUniversidadedeMichiganparameverestanoite,Hannah—disseomenino.

EntendiapalavraHannah,éclaro,mastambémpercebiumaondademedoeexcitação no garoto.EmHannah havia felicidade e orgulho.Olhei pela janelaparatentardescobriroquesepassava,masnãovinadadeespecial.

Naquela noite, fiquei orgulhoso de acompanhar Hannah enquanto Ethanjogava futebolcomosamigos.Euestavapraticamentecertodequeela jamaishaviavistoumlugartãomaravilhosoquantoaquelepátioenorme,elevei-aatéondeaMãecostumavaficar,bemcomolhemostreiondesentar.

Mal tínhamoschegado,quandoToddseaproximou.Ultima-menteeuoviapouco, embora a irmã, Linda, continuasse a pedalar sua bicicleta para cima eparabaixonaruaotempotodo.

—Oi,Bailey—mecumprimentouele, realmenteamistoso.Havia,porém,alguma coisa muito errada ali e eu apenas cheirei sua mão quando ele aestendeu.

—VocêconheceoBailey?—indagouagarota.Abaneioraboàmençãodomeunome.

—Somosvelhosamigos,nãoé,garoto?Quecachorrobonzinho.Nãome fazia falta alguma ser chamado de cachorro bonzinho por alguém

comoTodd.—Vocênãofrequentaaescolaaqui.Édefora?—perguntouTodd.—EstouvisitandoafamíliadeEthan.—Éparentedeles?—Não.Sousó...umaamiga.—Quersedivertir?—perguntouTodd.—Como?—Quersedivertir?Umpessoalaívaisereunir.Estejogonãovailábemdas

pernas.—Não,émelhoreuesperarporEthan.—Olhei,curioso,paraagarota.Por

algummotivo,elamepareceuansiosaeeutambémpudesentiraraivadeToddcrescerdentrodele,comosempreacontecia.

—Ethan!—exclamouTodd,ecuspiunagrama.—Querdizerquevocêsdoissãoumcasal?

—Bem...—Porque,paraseuconhecimento,eleestásaindocomMicheleUnderwood.—Oquê?—É.Todomundosabedisso.—Ah!—Éissoaí.Sevocêestáachando,sabe,quevocêsdois...Quersaber?Não

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vaiacontecer.Toddseaproximoumaisdagarota,e,quandoelaseretesou,viamãodele

pousada em seuombro.A tensãoque crescia emHannahme fez ficar empé.Todd olhou para mim e nos encaramos. Senti meu pelo se eriçar atrás dopescoço. Quase involuntariamente, um rosnado grave escapou do fundo daminhagarganta.

—Bailey!—exclamouagarota,ficandodepénumsalto.—Oquehouve?—Qualé,Bailey?Soueu, seuamigão.—Virando-separaagarota,Todd

prosseguiu:—Apropósito,meunomeéTodd.—OmeuéHannah.—Porquenãoamarraocachorroevemcomigo?Vaiserdivertido.—Hã...Nãoposso.—Porquê?Vamos!—Não,precisocuidardoBailey.Todddeudeombroseaencarou:—Vocêéquesabe.A intensidadeda raivadeleera tamanhaque rosneidenovo,edessaveza

garotanadadisse.—Tudobem—disseTodd.—PergunteaEthansobreaMichele,certo?—Estábem.—Não se esqueça de perguntar.—Todd enfiou asmãos nos bolsos e se

afastou.Ethanestavamuitofelizeanimadoquandosurgiucorrendomaisoumenos

umahoramaistarde.— A Universidade de Michigan que nos aguarde. Spartans! — gritou.

Abaneioraboelati,mas,então,visuafelicidadedesaparecer.—Qualéoproblema,Hannah?—QueméMichele?PusminhapatanapernadeEthanparaqueelesoubessequeeuestavapronto

parabrincarcomabola.—Michele?QueMichele?Ethanriu,masseurisoestancouapósumsegundo,comoseeletivesseficado

semfôlego.—Oquehouve?Osdois andaramemcírculos ao redor daquele pátio enorme, conversando,

tão envolvidos na conversa que não me viram comer meio cachorro-quente,algumaspipocasepedaçosdeumsanduíchedeatum.Logo,praticamentetodoshaviamidoembora,masosdoiscontinuaramdandovoltasemaisvoltas.

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—Não conheço essa garota— repetia Ethan.— Com quem você andoufalando?

—Nãomelembrodonomedele.MaseleconheceBailey.Congeleiaoouvirmeunome,imaginandosememeteriaemapurosporcausa

dopapeldebalaqueestavamastigando.Engoli rapidamente, mas aparentemente não haveria problema. Apósmais

umcircuitoemvoltadopátio,bemdesinteressante,vistoqueeupraticamentejáhavia devorado tudo de bom à vista, o menino e a garota pararam e seabraçaram.Faziamissoumbocado.

—Vocêestátodosuado—disseagarotarindoeempurrandoogaroto.—Querdarumavoltadecarro,Bailey?—indagouomenino.Claro que eu queria! Voltamos para casa e houve mais conversa em voz

baixa.Os doisme deram de comer eme contentei em adormecer no chão dasala,ondeomeninoeagarotabrincaramdeluta,emsilêncio,emcimadosofá.

Tínhamos,agora,umanovaportadecachorro,umapassagemdaportadosfundos diretamente para o quintal, e ninguém sequer sugeriu que eu dormissenovamente na garagem.Ainda bemque demovi a famíliadesse hábito. Fui láforamealiviarefiqueipasmodeencontrarumpedaçodecarnenagrama,juntoàcerca.

Oengraçadoéqueacoisanãocheiravabem.Haviaalgoacreali,umodorestranho,azedo.MaisestranhoaindaeraapresençadocheirodeTodd.

Pegueiopedaçodecarneeleveiparaoquintal,ondedeixei-ocair,ogostoazedofazendobrotarespumanaminhaboca.Depoismesenteieolheiparaele.Osaborerabemruim,mas,poroutrolado,tratava-sedeumbelonacodecarne.Seeumastigassesuficientementerápido,talvezconseguisseengolirsemsentirogosto.

Empurreiacarnecomofocinho.Porque,meperguntei,elacheiravatantoaTodd?

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CAPÍTULO14

Quando aMãe foi lá foranodia seguinte emeviu, baixei a cabeça ebati nochãoapenascomapontinhadomeu rabo.Poralgummotivo,emboraeunadativessefeitodeerrado,mesentirealmenteculpado.

—Bomdia,Bailey—disseela.Foi,então,quenotouacarne.—Oqueéisso?Quando se inclinou para olharmais de perto a coisa,me deitei de barriga

paracimaparaganharumcafuné.Tinhapassadoanoite todadeolhonaquelepedaçodecarne,oquemedeixaraexausto,eprecisavameassegurardeterfeitoacoisacerta,aindaquenãoentendesseporquê.Haviaalgodeerradocomele,fatoquemeimpediradeaproveitararefeiçãogratuita.

—Deondeveioisso,Bailey?—indagouaMãe,afagandodeleveaminhabarriga.Emseguidaestendeuobraçoepegouacarne.—Eca!—exclamou.

Sentei-me,atento.Seelamedesseaquiloparacomererasinaldequeestavabom.Mas,aoinvés,aMãemevirouascostasparalevaracarneparadentrodecasa.Eumeequilibreinaspatastraseiras,meioansioso—agoraqueacarnenãoestavamaisali,mudeideideia.Euqueriacomê-la!

—Eca,Bailey,vocênãoqueristo,sejaláoquefor—disseaMãe,jogandoacarnenalatadelixo.

Hannah sentou-se no meu lugar na viagem até os gigantescos ônibusescolaresprateados,eeufiqueiumbomtemposozinhonocarroenquantoEthaneelaseabraçavamdoladodefora.Quandovoltouparaocarro,omeninoestavatriste e sozinho.Pusminha cabeça em seu colo emvezde botar o focinhona

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janela.Agarotanosvisitounovamentenodiaseguinteàqueleemqueafamíliase

sentouemtornodaárvorepostanasalaerasgoupapéisdeFelizNatal.EuestavademauhumorporqueEthantinhadadoàMãeumnovogatinho,pretoebranco,chamadoFelix,quenãoeranadinhaeducadoeatacavameuraboquandoeumesentavaequasesemprevoavaemcimademim,vindodedetrásdosofá,emebatiacomsuaspatinhasminúsculas.Quandoeutentavabrincar,eleenroscavaaspernasemvoltadomeufocinhoememordiacomdentesbemafiados.Hannahdavademasiadaatençãoaobichanonosprimeirosdiasdesuaestada,emboraeua conhecesse há mais tempo e fosse, obviamente, seu animal de estimaçãofavorito.Oscãestêmfunçõesimportantes,comolatirquandoacampainhatoca,masosgatosnãoservemparanadanumacasa.

Umacoisaqueogatinhonãopodiafazererairláfora.Ochãoestavacobertoporumagrossacamadadeneve,eaúnicavezqueseaventurouapisarnaquilo,Felixdeumeia-voltaevoltouparacasacorrendo,comose tivessequeimadoapata.Por isso,quandoHannaheEthan juntaramumagrandepilhadenevenopátioda frente epuseramumchapéuemcima, euestavacomeles.Omeninogostavademeagarraremearrastarnaqueletroçobranco,eeumedeixavapegarsimplesmentepeloprazer de sentir seusbraços àminhavolta, comoaconteciadiariamentequandoeleeramenor.

Sempre que íamos andar de trenó,Hannah se sentava atrás e eu corria aolado,latindoetentandoarrancarasluvasdasmãosdomenino.

Umatarde,osolbrilhava,eoar,detãofrioecristalino,chegavaatergostoquando me descia garganta abaixo. Todas as crianças do bairro estavam naladeiraandandodetrenó,eHannaheEthanlevaram,paraempurrarascrianças,o mesmo tempo que gastaram aproveitando o programa. Logo me cansei decorrer para cima e para baixo da ladeira, razão pela qual me encontrava láembaixoquandoToddchegoudecarro.

Elemeolhouquandodesceu,masnãomedissenadanemestendeuamão.Nãomeaproximei.

—Linda!Vamos, estánahoradevoltarparacasa!—gritouele, seubafoescapandodabocacomoumanuvemdefumaça.

Lindaestavanarampacomtrêsamiguinhas,descendonumtrenóemformadepiresaumavelocidadedequasedoisquilômetrosporhora.EthaneHannahpassarampelosmenoresnopróprioveículo,rindo.

—Nãoqueroirembora—gritouLindadevolta.—Agora!Amamãemandou!EthaneHannahpararamnosopédaladeiraecaíramdotrenó.Ficaramum

emcimadooutro,àsgargalhadas.Toddficousimplesmenteobservando.

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FoiquandoalgumacoisaemToddaflorou.Nãosetratava,propriamente,deraiva,masdecoisapior,umaemoçãosombriaqueeujamaissentiraemanardeoutra pessoa. Estava presente na maneira como ele contemplava Ethan eHannah,semqualquerexpressãonorosto.

Ethaneagarotaselevantaram,limpandoaneveumdooutro,esedirigiram,debraçosdados,atéondeestavaTodd.IrradiavamtantoamorefelicidadequenãoenxergaramatorrentedeódioquefluíadeTodd.

—Oi,Todd.—Oi.—EssaéaHannah.Hannah,Todd.Elemoranaminharua.Hannahestendeuamão,sorrindo:—Prazer—disseela.Toddseretesou:—Naverdade,jánosconhecemos.Hannahfezumaexpressãoindagadoraeafastouocabelodosolhos.—Sério?—Quandofoiisso?—perguntouEthan.—Nojogodefutebol—disseTodd.Depoisdeuumagargalhada,oumelhor,

umcurtolatido.Ethanbalançouacabeça,indiferente,masHannahpiscou.—Ah!Émesmo—confirmou,repentinamentesemgraça.—Oquefoi?—indagouEthan.—Precisolevarminhairmãparacasa.Linda!—gritouTodd,pondoasmãos

emconchapróximoàboca.—Venhajá!Lindaseafastoudogrupodeamigasecaminhou,emburrada,sobreaneve.—Eleé...eleéosujeitocomquemfalei—disseHannahaEthan.UmasombradepreocupaçãopassoupelorostodeHannaheeuaolheicom

curiosidade.EmseguidadesvieioolharparaEthan,aosentira raivadespertarnele.

—Espereaí,comoé?Você?FoivocêquedisseaHannahqueeunamoravaaMichele?EunemconheçoaMichele!

—Preciso ir— resmungou Todd.—Entre no carro, Linda— ordenou àirmã.

— Não, espere — interveio Ethan, estendendo a mão. Todd, porém,esquivou-sedela.

—Ethan—murmurouHannah,encostandoaluvanobraçodorapaz.—Porquê,Todd?Porquementir?Oquehádeerradocomvocê,cara?Emboraos conflitos e as emoçõesque fervilhavamdentrodeTodd fossem

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combustível suficiente para derreter a neve sob nossos pés, ele apenas ficouparadoencarandoEthan,semdizerpalavra.

—Épor issoquevocênão temamigos,Todd.Porquenãoagecomoumapessoa normal?Está sempre fazendo asneiras desse tipo—disseEthan.—Édoentio.

Araivaestavapassando,maspudesentirqueonervosismo,não.—Ethan—atalhouHannah,maisincisiva.Emsilêncio,Toddentrounocarro,batendoaporta.Seurosto,quandoelese

virouparaolharHannaheEthan,nãotinhaexpressãoalguma.—Issofoicruel—disseHannah.—VocênãoconheceTodd.—Nãofazdiferença—argumentouHannah.—Vocênãodeviaterditoque

elenãotemnenhumamigo.—Ora, elenão temmesmo.Está sempreaprontando,comonaocasiãoem

quedissequeumoutrocararoubouseurádioportátil.Foitudomentira.—Elenão...Existe algumacoisa diferente nele, não é?Tipo algumatraso

mental...—Nadadisso,eleémuitointeligente.Nãoéesseocaso.EleéoTodd,só

isso.Semprefoitorto,sabe?Nóséramosamigosquandocrianças,maseletinhaumasideiasestranhassobreoqueeradivertido,comojogarovosnascriançasdacrecheenquantoavanparaacolôniadefériasnãochegava.Euaviseiquenãoqueriafazerisso.Aprópriairmãdeleestavanogrupo,minhanossa!Eelepisounacaixadeovosque tinha levado.Fezumasujeiranaentradadaminhacasa,quefuiobrigadoalavarcomamangueiraantesqueomeupaichegasse.Baileyadorouessaparte.

Abaneioraboaoouvirmeunome,satisfeitoporverquefalavamdemim.—Apostoquesim—riuHannah,afagandomeulombo.AlgunsdiasdepoisdapartidadeHannah,nevouumbocadoeoventoeratão

fortequepassamosodiatrancadosemcasa,emfrenteaoaquecedor(aomenos,foiissoqueeufiz).Naquelanoite,dormidebaixodascobertasnacamadeEthane continuei ali,mesmo quando comecei a ofegar de calor, só porque era bomdemaisficargrudadinhonele,comonaépocaemqueeraumfilhote.

Na manhã seguinte, finalmente parou de nevar e Ethan e eu saímos epassamoshorascavandonaentradadecasa.Corrernaquelanevealtaepesadaeradifícil,edepoisdeummetrooudois,euprecisavapararparadescansar.

A luanasceu logoapóso jantar, tãobrilhantequepudevê-lacomamaiorclareza,eoarcheiravaafumaçadelareira.Ethan,cansado,foisedeitarcedo,maseusaípelaportadecachorroefiqueinoquintal,meufocinhoviradoparaa

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brisaleve,enfeitiçadopelanoiteexóticaegelada.Quando descobri que a neve se amontoara numa pilha enorme ao lado da

cerca, subi, eufórico, até o alto dela e escorreguei para o outro lado.Era umanoiteperfeitaparaumaaventura.FuiatéacasadeChelseaverseaDuquesaseencontrava disponível, mas não havia sinal da cadelinha, salvo um trecho deneve recém-molhado de urina. Atenciosamente, ergui a pata ali para fazê-lasaberqueeupensavanela.

Emgeral,quandosaíaparaumaexpediçãonoturna,meudestinoeraoriacho,quemetrazialembrançasdequandoeucaçavacomManaeVeloznainfânciaeoscheiroseramsempreestimulantes.Agora,porém,fuiforçadoamelimitaràsruasdesobstruídasdeneve,meaproximandodas casas cujas entradas estavamlimpasparameterofocinhonoespaçoentreasportasdegaragemeacalçada.Algumaspessoasjáhaviamremovidoparaojardimasárvoresdasala,emboranacasadeEthanelacontinuassejuntoàjaneladafrente,cheiadeobjetoseluzesà esperadas investidasdeFelix.Todavezque encontravaumaárvorede salanumaentradasemneve,euamarcavacommeucheiro,efoiisso—asucessãoaparentementeintermináveldeárvorespararotular—quememanteveforadecasaatétãotarde.Senãofossepeloaromademaisumaárvoredeslocadaameatrair, eu teria voltado e talvez chegasse em casa a tempo de impedir o queaconteceu.

Finalmente,fuiatingidoemcheiopelosfaróisdeumcarroquepassava,eelediminuiupor um instante a velocidade.O cheiro vindodeleme fez lembrar ocarrodaMãetodavezqueelaeEthansaíamatrásdemimquandoeudemoravademaisavoltardeumaaventura,esentiumapontadadeculpa.Baixeiacabeçaetomeiorumodecasa.

Ao virar a esquina, várias coisas chamaram a minha atenção ao mesmotempo,todaserradas.

Aportadafrenteestavaabertaeoaromadecasasaíaemgrandesbaforadas,empurradoparaanoitegélidapelaforçadaschamas.Nacorrentedessearhaviaocheirodeumasubstânciaquímicaqueera,aomesmotempo,forteeconhecido— eu sentia esse cheiro toda vez que saíamos para uma volta de carro eparávamos no lugar em que Ethan gostava de ficar em pé atrás do carrosegurandoumamangueiragrossaepreta.Afastando-sedacasa,vitambémumafiguraqueaprincípiopenseiseromenino.Sóquandoessapessoasevirouparajogarmais líquidodecheirofortenosarbustosdaentrada,consegui identificarseucheiro:eraTodd.

Eledeutrêspassosparatrásepuxoudobolsoalgunsjornais,queincendiou,ofogotremulandosoborostocomexpressãodepedra.Quandoatirouosjornaisnosarbustos,umachamaazulseergueucomumruído.

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Todd não me viu. Ele contemplava o fogo. E eu não lati. Sequer rosnei.Simplesmenteseguiemfrentenumaraivasilenciosa.Investicontraelecomosetivessepassadoavidaderrubandohomens,eumasensaçãodepodersurgiuemminhasentranhas,comoseeufosseolíderdeumbando.

Qualquer relutância que eu pudesse ter em atacar um ser humano foisuperada pela noção de que o que quer que Todd estivesse fazendo causariaprejuízoaomeninoeàfamíliaquemecabiaproteger.Nãohaviapropósitomaisfortequeesse.

Todd gritou, caiu e chutou minha cara. Abocanhei o pé que o chute meofereceu,deiumabaitamordidaeoprendienquantoToddgritava.Acalçadeleserasgou,osapatosaiuesentigostodesangue.Elemeatacoucomospunhos,masnãosolteiseutornozelo,balançandoacabeçaesentindoacarneserasgarmaisumpouco.Euestavadominadopelafúria,totalmentealheioaofatodequenaminhabocaimperavaosaborexóticodepeleesanguehumanos.

Umbarulho súbito e penetrantemedistraiu, eTodd conseguiu soltar o pé,quandomevireiparaolharacasa.Aárvorenasalapegavafogoeumafumaçadensa e acre saía pela porta da frente. O ruído eletrônico era dolorosamenteagudoealto,einstintivamentemeafasteidele.

Todd ficoudepée saiumancandoomais rapidamentequepôde.Registreisuaretiradacomocantodoolho,masjánãomeimportavamais.Acioneimeupróprio alarme, latindo, tentando chamar atenção para as chamas que seespalhavamrapidamentepelacasaecomeçavamasubiremdireçãodoquartodomenino.

Corri para os fundosda casa,mas descobri, frustrado, que a pilha de nevequeme ajudara a escapar estava do lado errado da cerca. Enquanto fiquei alilatindo,aportadevidroseabriueoPaieaMãeapareceram.Amãetossia.

—Ethan!—gritouela.Umafumaçanegrasaíapelaportadevidro.AMãeeoPaicorreramparao

portãoemejunteiaelesali.Passarampormimcorrendopelaneveatéafrentedacasa,comaintençãodeolharparaajanelaescuradoquartodeEthan.

—Ethan!—gritaramambos.Soltei-medelesecorrinadireçãodoportãodosfundos,agoraaberto.Passei

correndo por ele. Felix estava lá fora no quintal, enroscado sob um banco depiquenique,emiouparamim,masnãoparei.Espremi-meparapassarpelaportade vidro, com os olhos e o focinho ardendo devido à fumaça. Incapaz deenxergar,cambaleeiatéaescada.

O somdas chamas parecia tão alto quanto o do vento, quando saíamos decarro com as janelas abertas.A fumaça sufocava,mas foi o calor queme fezrecuar.Aintensidadedofogomequeimouofocinhoeasorelhas,e,frustrado,

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baixei a cabeça e corri para a porta dos fundos, o ar frio instantaneamentealiviandoaminhador.

AMãeeoPaicontinuavamagritar.Luzesforamacesasemtodaaruaenacasa vizinha pude ver um dos moradores olhando pela janela e falando aotelefone.

Nãohavia,ainda,sinalalgumdomenino.—Ethan!—gritaramaMãeeoPai.—Ethan!

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CAPÍTULO15

NuncaanteseusentiraummedodotamanhodaquelequefluíadoPaiedaMãeenquantoosdoisgritavamparaajaneladomenino.AMãesoluçavaeavozdoPaieraestrangulada.Quandocomeceialatirdenovo,histericamente,ninguémfezqualquermovimentoparamecalar.

Meusouvidosidentificaramogemidofinodeumasirene,masoqueeumaisouviaerammeuslatidos,aMãeeoPaigritandoonomedeEthane,acimadetudo,otroardofogo,tãoaltoqueumavibraçãopercorreumeucorpointeiro.Osarbustos ànossa frente continuavamaarder, nuvensde fumaça subindodeles,enquantoanevederretiacomumchiado.

—Ethan!Porfavor!—gritouoPai,comavozentrecortada.Nesse instante, algo saiu voando pela janela de Ethan, provocando uma

chuvadecacosdevidrosobreaneve.Eraoflip!Frenético, eu o apanhei do chão paramostrar a Ethan que sim, ele estava

comigo. Sua cabeça apareceu no buraco que o flip abrira na janela, a fumaçanegraemoldurando-lheorosto.

—Mãe!—gritouele,tossindo.—Vocêtemquesairdaí,Ethan—trovejouoPai.—Nãoconsigoabrirajanela,estáemperrada!—Entãopule—respondeuoPai.Acabeçadomeninosumiuládentro.—Afumaçavaimatá-lo.Oqueelefoifazer?—perguntouoPai.—Ethan!—gritouamãe.A cadeira da escrivaninha domenino voou pela janela, estraçalhando-a, e,

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um segundo depois, o menino saltou. Deu a impressão de ficar preso aospedaços remanescentes demadeira e vidro, porém, e assim, que em lugar depassaraolargodosarbustosemchamas,acaboucaindoemcheiosobreeles.

—Ethan!—gritouaMãe,descontrolada.Latihistericamente,esquecidodoflip.OPaiestendeuobraço,agarrouEthan

dentrodofogoeopuxouparafora,jogando-onaneveerolando-oparaláeparacá.

—MeuDeus,meuDeus!—soluçavaaMãe.Ethanestavadeitadodecostasnaneve,comosolhosfechados.—Vocêestábem,filho?Vocêestábem?—perguntouoPai.—Minhaperna—disseomenino,tossindo.Pude sentir o cheiro da pele queimada. O rosto estava preto e ferido.Me

aproximei,comoflipnaboca,sentindoadorlancinantedeleequerendoajudar.—Saidaqui,Bailey—disseoPai.Omeninoabriuosolhosesorriudebilmenteparamim.—Não,tudobem.Cachorrobonzinho.Bailey,vocêpegouoflip.Vocêéum

cachorrobonzinho.Abaneio rabo.Eleestendeuumadasmãoseafagou-meacabeça.Cuspio

flip,que,para falar francamente,não tinhaumgostomuitobom.Aoutramãodeleseguravaopeito,deondeescorriasangue.

Carros e caminhões começaram a chegar, com as luzes piscando.Homenscorreram até a casa e começaram a lavá-la com enormes mangueiras. Outroshomenstrouxeramumacama,deitaramomeninonela,tornaramalevantá-laeapuseramnatraseiradeumcaminhão.Tenteisubiratrásdele,masohomemquecuidavadasportasmeempurrou:

—Lamento—disseele.—Quieto,Bailey.Estátudobem—acrescentouomenino.Eu sabia direitinho o que era Quieto: o comando que eu mais odiava. O

meninoaindaestavacomdoreeuqueriaficarcomele.—Possoir?—indagouaMãe.—Claro.Euajudoasenhora—respondeuohomem.AMãesubiunatraseiradocaminhão.—Tudobem,Bailey—disseelatambém.AmãedeChelseaseaproximoueaMãeergueuosolhosparaela.—Laura?VocêpodeolharoBaileyparamim?—Claro.A mãe de Chelsea me pegou pela coleira. Suas mãos tinham o cheiro da

Duquesa.AmãodoPai,porém,cheiravaafogo,eeuviqueelesentiador.EletambémentrounocaminhãoparafazercompanhiaàMãeeaomenino.

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Quasetodososvizinhosestavamnarua,masnãohavianenhumcachorro.Ocaminhãopartiuedeiumúnicolatidopesaroso.Comosaberseomeninoficariaseguro?Eleprecisavademim!

AmãedeChelseaficoumeioafastada,mesegurando.Davaparaverqueelaestava um tanto insegura sobre o que fazer. A maioria dos vizinhos seencontravanarua,maselaeraamaispróximadacasaeagoratodosagiamcomoseesperassemqueelapermanecessealiemlugardesejuntaraosamigos.

—Nãohádúvidadequeoincêndiofoicriminoso—disseumdoshomensaumamulherquetinhaumaarmanacintura.Euaprenderaquegentequesevesteassim é chamada de polícia. — Os arbustos, a árvore, tudo pegou fogo aomesmotempo.Váriospontosdeignição,montesdecatalisadores.Afamíliatemsortedeestarviva.

—Tenente,vejaisto!—gritououtrohomem.Essetambémtinhaumaarma.Osdecasacodeborrachanãocarregavamarmasecontinuavama lavaracasacommangueiras.

AmãedeChelsearelutantementeseesticouparaveroque todospareciamolhar.EraosapatodeTodd.Vireiacabeça,culpado,torcendoparaqueninguémreparasseemmim.

—Achei este tênis, ao que parece sujo de sangue— observou o homem,iluminandoanevecomumalanterna.

—Omeninosecortoubastantenaquedadajanela—outrocomentou.— Foi. Daquele lado, não deste. Tudo que existe aqui são pegadas de

cachorroeestesapato.Me encolhi ao ouvir a palavra “cachorro”. Amulher da arma pegou uma

lanternaeaapontouparaaneve.—Adivinhem...—disseela.—Ésangue—disseoutrapessoa.—Certo.Vocêsdois,vejamaondelevamaspegadas,sim?Vamoslacraristo

aqui.Sargento?—Sim,senhora—respondeuumhomem,aproximando-sedogrupo.—Temosumatrilhadesangue.Queroqueisolemessaárea,fechemaruaao

tráfegoefaçamessaspessoasrecuarem.AmãedeChelseaseabaixou,repentinamenteprestandoatençãoamim.—Tudobemcomvocê,Bailey?—indagou,meafagando.Abaneiorabo.Subitamente,elaparoudemeafagareolhouparaaprópriamão.—Porfavor,asenhoramoraaqui?—perguntouamulherdaarmaàmãede

Chelsea.—Não,masocachorro,sim.—Possolhepedir...Espere.Asenhoraévizinhadeles?

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—Moroduascasasabaixo.—Viualguémporaquihojeànoite?—Não.Euestavadormindo.—Certo.A senhora se importade juntar-seaosoutrosali?Seestiver com

frio,podeirparacasa,masdeixeumnúmeroparacontato.—Estábem,mas...—começouamãedeChelsea.—Poisnão?—AlguémpodedarumaolhadaemBailey?Achoqueeleestásangrando.Abaneiorabo.—Claro—respondeuamulher.—Eleéamistoso?—Muito.Amulherseabaixou.—Você está ferido, rapaz?Como semachucou?— indagou comcarinho.

Pegoualanternaeexaminoucomcuidadoomeupescoço.Timidamentelambiseurostoeelariu.

—Muitobem,éamistoso,sim.Masachoqueosanguenãoédele.Vamospegá-loemprestado,tudobem?

—Possoesperar,seforpreciso.—Nãoénecessário—disseamulher.Fui levado para um dos carros, onde um homemmuito gentil pegou uma

tesouraecortouumpedaçodomeupelo,queguardounumsacoplástico.—Querapostarqueéomesmo tipodesanguequeestáno tênis?Eudiria

queonossoamigoquadrúpedeaquiestavadeserviçoestanoiteesapecouumabaitamordidanoresponsávelpeloincêndio.Temosumsuspeitoeosanguevainosajudaraprendê-lo—disseamulheraomeubarbeiro.

—Tenente— interveio umhomem, aproximando-se de nós.—Posso lhedizerondemoraonossosuspeito.

—Entãodiga—atalhouamulher.—Via trilhaensanguentadado idiota traçandouma linha retaatéaquarta

casa,contandodaqui.Dáparaverosanguenanevedacalçada.Chegaatéumaportalateral.

—Eudiriaquejátemosobastanteparaummandadodebusca—respondeuamulher.—Eapostoque algummorador dessa casa temumabelamarcadedentesnaperna.

AolongodeváriosdiasmoreinacasadeChelsea.ADuquesaaparentementeachouqueeuláestavaparalheservirdecompanhiavinteequatrohoraspordia,mas era difícil esquecer a tensãoquemeobrigava a andar para lá e para cá àesperadequeEthanvoltasseparacasa.

AMãeapareceunosegundodia.Elameelogiou,mechamandodecachorro

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bonzinho,epudesentirocheirodomeninoemsua roupa, razãopelaqualmeanimei umpouco e concordei em aderir à brincadeira favorita deDuquesa—“quemficacomameia?”—durantemaisoumenosumahora,enquantoamãedeChelseaserviaumcafédearomaforte.

—Quediabos aquelegaroto fez?Porquepôs fogona suacasa?Podia termatadotodosvocês.

—Nãosei.ToddeEthanjáforamamigos.Virei a cabeça ao ouvir o nome de Ethan, e a Duquesa escolheu esse

momentoparaarrancarameiadaminhaboca.—ElestêmcertezadequefoioTodd?Acheiqueapolíciahaviaditoqueo

testedosanguelevariamaistempo.—Eleconfessouquandofoilevadoparaointerrogatório—disseaMãe.—Explicouporquefezisso?A Duquesa empurrou a meia para mim, me desafiando a agarrá-la. Fiz

questãodedesviaroolhar.—Eledissequenãosabeporquê.— Ah, pelo amor de Deus! Olha, sempre achei aquele garoto estranho.

Lembra de quando ele empurrouChelsea nomato sem nenhummotivo?Meumaridoteveumataque.FoifalarcomopaideToddeacheiqueosdoisfossemseatracar.

—Eununcasoubedisso.EleempurrouChelsea?— Foi. E Sandy Hurst diz que o pegou tentando espiá-la pela janela do

quarto.—Penseiqueelanãosoubessedireitoquemtinhasido.—Bom,agoraeladissequefoioTodd.Com um mergulho repentino, agarrei a meia. Duquesa travou a boca e

rosnou.Puxei-apelasala,maselanãolargouameia.—Baileyagoraéumherói.Toddlevouoitopontosnaperna.À menção do meu nome, Duquesa e eu congelamos. Biscoitos caninos,

talvez?Paramosdedisputarameia.—Queremfotografá-loparaojornal—disseaMãe.—Aindabemquedeiumbanhonele—falouamãedeChelsea.Comoassim?Outrobanho?Eu tinha acabadode tomarum!Cuspi ameia,

deixandoaDuquesabalançá-lasatisfeitaedesfilarpelasalaemtriunfo.—ComoestáindooEthan?A Mãe descansou a xícara de café. O nome do menino e a onda de

preocupaçãoedorquevitomarcontadelafizeramcomqueeumeaproximasseepusesseacabeçaemseucolo.Elaestendeuobraçoemeafagou.

—Tiveramquepôrumpinonapernadele, eelevai ficar...Vai ficarcom

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cicatrizes.AMãefezumgestoindicandoorostoecobriuosolhoscomasmãos.—Sintomuito.Nossa,comosinto!—disseamãedeChelsea.AMãeagorachorava.Pusumapatanapernadelaparaconsolá-la.—Quecachorrobonzinhovocêé,Bailey—disseaMãe.Duquesa pôs a cara idiota bem na minha frente, a meia frouxamente

penduradanaboca.Solteiumrosnadograveeelarecuou,parecendoconfusa.—Sejambonzinhos,porfavor—pediuamãedeChelsea.Umpoucodepois,amãedeChelseadeuumpedaçodetortaàMãe,masnão

aos cachorros. Duquesa estava deitada de costas, segurando a meia acima daboca com as patas, exatamente como eu costumava fazer comCoco no pátiotodaumavidaatrás.

Algumas pessoas chegaram e eu me sentei com a Mãe na sala, piscandoquandorelampejava,maseramrelâmpagossemtrovoadas.Depois fomosatéanossacasa,agoracobertacomumacamadadeplásticoquetremulavaaovento,evierammaisrelâmpagos.

Uma semana depois, a Mãe me levou para uma volta de carro e nosmudamosparao“apartamento”.Eraumacasapequenaconstruídanumprédiogrande cheio de casas, e havia cachorros por todo lado, a maioria deles detamanhobempequeno.Àtarde,aMãemelevavaparavê-losnumgrandepátiocimentado,sentava-seemumbancoeconversavacomoutraspessoas,enquantoeucorria,faziaamigosemarcavaterritório.

Nãogosteidoapartamento.OPaitambémnão.ElegritavacomaMãemuitomaisdoquenacasa.Olugarerapequenoe,piorainda,faltavaomenino.TantooPaiquantoaMãefrequentementecheiravamaEthan,maselenãomoravamaisconosco, emeucoraçãodoía.Ànoiteeuandavapara láeparacá,obrigadoavagar, inquieto, até que o Pai gritava comigo,memandando deitar. O jantar,ponto alto domeu dia, nãome parecia tão interessante servido pelaMãe. Eusimplesmentenãosentiafome,eàsvezesnemcomiatudo.

Porondeandariaomeumenino?

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CAPÍTULO16

Continuávamosmorandonoapartamentoquandoomeninovoltouparacasa.Euestavaenroscadonochão,comFelix,obichano,dormindoencostadoemmim.Já havia desistido de empurrá-lo para longe e tinha a impressão de que Felixpensavaqueeufossesuamãe,fatoesseofensivo,mas,setratandodeumgato,justificável,porelesertotalmentedesprovidodecérebro.

Eu aprendera a identificar os nossos carros pelo ruído de seus motoresquandoelesentravamnoestacionamento,porissoquequandoaMãechegoumepusdepénumsalto.Felixpiscou,confuso,enquantoeucorriaparaa janelaedavaumpulo,encostandoaspatascontraamolduraparapoderveraMãesubirosdegraus.

O que vi ali no estacionamento fez meu coração disparar: era o menino,lutando para sair do carro. Amãe se abaixara para ajudá-lo e foram precisosváriossegundosparaqueeleseempertigasse.

Nãopudeevitar:comeceialatireacorrerdajanelaparaaporta,paraquemedeixassemsair,edevoltaparaajanelaparaacompanhartudo.Felixentrouempânicoeserefugioudebaixodosofá,deondecontinuouameobservar.

Quando a chave foi inserida na fechadura, eu já estava grudado à porta,tremendo.AMãeentreabriu-aeoodordomeninopenetrounacasaemcorrentesdear.

—Paratrás,Bailey.Sentado,Bailey.Quieto.Ora,nãodavaparaeufazerisso.Meutraseiromaltocouochãoejámepus

de pé novamente num salto. AMãe me puxou pela coleira, me obrigando arecuarquandoaportaseescancarou.

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—Oi,Bailey,oi,rapaz—saudouEthan.AMãeme afastou domenino enquanto ele entravamancando, apoiado no

que eu logo aprenderia chamar-se muleta. Ele foi até o sofá e se sentou,enquanto eu me contorcia, tentando escapar da coleira, e gania. Quando,finalmente,aMãemesoltou,dispareipelasalanumúnicosalto,aterrissandonocolodomeninoelambendo-lheorosto.

—Bailey!—exclamouaMãe,severa.—Tudobem.Ah,Bailey,vocêéumcachorromuitoboboca—meelogiouo

menino.—Comovocêvai,hein?Tambémsentisaudadessuas.Todavezqueeuoouviadizermeunome,umarrepiodeprazermeeriçava

todo.Nãomecansavadesentirsuasmãosacariciandomeupelo.Omeninoestavadevolta.Aospoucos,aolongodosdiasqueseseguiram,descobriqueascoisasnão

iam bem com omenino. Ele sentia dores que jamais lhe haviam incomodadoantes,eandareraalgodifícilesemjeito.Umatristezapungenteemanavadele,misturada a uma raiva sombria que surgia às vezes quando ele estava sentadoolhandopelajanelasemnadaparafazer.

Naquelas primeiras semanas, omenino saía diariamente para umavolta decarro com aMãe e voltava cansado e suado.Quase sempre tirava, então, umcochilo.Otempoesquentoueasfolhascaíram.AMãetevequeirtrabalhar,eomeninoeeuficamossozinhosnoapartamentocomFelix,quepassavaotempotodo planejando escapar pela porta da frente. Não faço ideia do que eleimaginavapoderfazer láfora,masomenino tinhaumaregraqueoproibiadesair,epontofinal.OproblemaéqueFelixnãoobedeciaaregraalguma,oque,paramim,eradeenlouquecer.Viraemexe,elearranhavaumpostenasala,masaúnicavez em que erguiminha perna contra o troço todomundo gritou. Elejamais terminava seu jantar, embora ninguémme agradecesse por limpar seuprato—naverdade,essaeraumaoutraocasiãoemquegritavamcomigo.Umapartedemimdesejavavê-loserbem-sucedidoemseuplanodefuga,sóparanãoprecisar mais aturá-lo. Por outro lado, Felix se mostrava sempre disposto abrincardeluta,desdequeeunãoabusassedaforça.Chegavaatéatransformarem jogo a perseguição a uma bola queEthan deixava rolar pelo corredor, emgeralsedesviandoparamedeixarpegá-lae levá-ladevolta,oquemepareciasinal de grande espírito esportivo por parte dele. Na verdade, porém, não lherestavamuitaopção,jáque,afinal,eraeuocachorrocomandante.

NuncafoitãodivertidoquantonaFazenda,nemmesmoquantonacasa,maseumesentiafeliznoapartamentoporqueomeninopassavaquaseotempotodoali.

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—Achoquechegouahoradevocêvoltarparaaescola—disseaMãeumdia no jantar. Ouvi a palavra “escola” e olhei para o menino, que cruzou osbraços.Sentiumaraivatristonhacrescerdentrodele.

—Nãoestoupronto—disseomenino.Erguendoodedotocouumacicatrizprofundaeroxanabochecha.—Sóquandoeupuderandarmelhor.

Sentei-me.Andar?Íamossairparaandar?—Ethan,nãohámotivo...—Nãoquerofalarsobreisso,Mãe!—gritouEthan.Ethan jamais gritava com a Mãe, e pude sentir imediatamente seu

arrependimento,masnenhumdosdoisfaloucoisaalgumadepoisdisso.Algunsdiasmaistarde,porém,bateramnaporta,equandoEthanatendeuo

apartamento se encheu de garotos. Reconheci alguns pelo cheiro. Eram osmeninosquejogavamfutebolnospátiosgrandões,eamaioriamechamavapelonome. Dei uma olhada para ver como Felix estaria encarando meu statusespecial,maselefingiunãosentirinvejaalguma.

Osmeninosriram,gritarameláficaramdurantemaisoumenosumahora,epudesentirocoraçãodeEthanseanimar.Suaalegriamedeixoualegre,porissofui pegar uma bola e desfilei pela sala com ela na boca. Um dos meninosagarrou-aeafezrolarpelocorredor.Jogamosduranteváriosminutos.

Algunsdiasdepoisdavisita,EthanacordoucedoesaiucomaMãe.Aescola.Omeninoandavacomaajudadeumavaralustrosachamadabengalaquando

nos mudamos do apartamento. A bengala era um bocado especial: o meninojamaisaatiravae,instintivamente,entendiquenãodeviamordê-la,nemmesmodeleve.

Eu não sabia aonde estávamos indo quando entramos todos no carro,masfiquei animado assim mesmo. Viagens de carro são sempre excitantes, nãoimportaaondesevá.

Fiqueiumbocadoeufóricoquandoosodoresconhecidosdoriachoedaruapenetrarampelajanelaepasseiemdisparadapelaportadafrenteassimquemedeixaram sair do carro.Embora aindadessepara farejar fumaça, o ar tambémcheiravaamadeiranovaecarpete,easjanelasdasalaerammaisamplas.Felixpareciabastantedesconfiadoquantoaoambiente,maseudesembesteipelaportadecachorrodiretoparaarelativaliberdadedoquintal,poucossegundosapósachegada.Quandolatidealegria,Duquesamerespondeuládarua.Devoltaaolar!

MalhavíamosnosacomodadoquandopegamosocarroafimdeviajarparaaFazenda. A vida voltara, finalmente, ao normal, embora o menino estivessemenosinteressadoemcorrerdoqueemandarapoiadonabengala.

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UmdosprimeiroslugaresquevisitamosfoiacasadeHannah.Euconheciamuitobemocaminhoesaígalopandonafrente,motivopeloqualaviprimeiro.

— Bailey! Oi, Bailey!— exclamou ela. Corri para ganhar aquele cafunébem-feitoeomeninofoiatrás, levementeofegante.Hannahdesceuaescadaeficoualisobosol,àsuaespera.

—Oi—disseomenino,parecendomeioinseguro.—Oi—disseagarota.Bocejeiecoceiumacomichãonoqueixo.— E aí, você vai me beijar ou não? — indagou a menina. Ethan se

aproximouelhedeuumlongoabraço,largandoabengala.Algumascoisasmudaramnaqueleverão.Ethanpassouaacordarbemantes

donascerdosoledirigirocaminhãodoVovôpelaestrada,enfiandojornaisnascaixas de correio dos outros. Eram os mesmos jornais que um dia ele haviaaberto em cima do tapete lá em casa, mas, sei lá por que, achei que nãogostariam muito se eu urinasse em cima deles, embora tivesse havido umaépoca,quandoeueraumfilhote,emquemolharjornaismegranjeavaummontedeelogios.

Hannaheomeninopassavamváriashoras juntos, sentadose tranquilos,àsvezes sem se falar, apenas brincando de luta. Às vezes, ela chegava a sairconosconospasseiosdecarrodemanhãzinha,emboranormalmentefôssemossóomeninoeeu,Bailey,ocachorrodobancodianteiro.

— Preciso ganhar dinheiro, Bailey— dizia Ethan de vez em quando. Euabanavaoraboaoouvirmeunome.—Nãovoumaisterbolsaesportiva,podecrer.Jamaisseriacapazdevoltarapraticaresportes.

Atristezaemsuavozmelevavasempreaenfiarofocinhosobsuamão.—Osonhodetodaaminhavida.TudoacabadoagoraporcausadoTodd.Poralgummotivo,EthanlevaraoflipcomeleparaaFazenda,eàsvezesele

o cortava e tornava a costurar, em geral tornando-o aindamais desengonçadoqueantes.Meusmomentosfavoritoseramosquepassávamosnadandojuntosnolago.Aparentemente,sónessasocasiõesapernadomeninonãodoía.Tambémbrincávamosdeafogamento,comofazíamosháanos.Agora,porém,eleestavabemmaispesado,maisdifícildeser tiradodaágua.Quandomergulhavaatrásdele,eumesentiatãofelizquenãoqueriaqueissoacabassenunca.

Sabia, contudo, que acabaria. As noites iam ficando mais longas, o quesignificavaqueembrevevoltaríamosparacasa.

Eu estava deitado debaixo da mesa uma noite enquanto a Mãe e a Vovóconversavam.EthansaíradecarrocomHannahsemme levar junto,oquemefezconcluirqueosdoisprecisavamfazeralgonãomuitodivertido.

—Queroconversarcomvocêsobreumacoisa—disseaVovóàMãe.

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—Ah,mãe!—Não,escute.Essemeninomudoutotalmentedesdequeveioparacá.Está

feliz, saudável, tem uma namorada... Por que levá-lo para a cidade?Ele podeterminarosestudosaqui.

—Vocêfalacomosemorássemosnumgueto—queixou-seaMãe,rindo.—Vocênãomerespondeuporque...Ora,nósduassabemosporquê.Eusei

que o seu marido vai ser contra. Mas Gary viaja praticamente o tempo todoagora,evocêdissequeoexpedientenaescolaandaexaustivo.Omeninoprecisadeumafamíliaàsuavoltaenquantoserecupera.

—É.Garyviaja,mascontinuaaquererverEthanquandoestáemcasa.Eeunãopossolargaroemprego.

—Nãoestoudizendoparalargaroemprego.Vocêsabequeserábem-vindasempre que quiser e por que Gary não pode pegar um avião e descer noaeroportinho daqui para passar um fim de semana? Será que, sem querer meintrometer, porque só quero o melhor para você, não faria bem a vocês doisficaremsozinhosnestemomento?SevocêeGaryvãoresolverosproblemasquetêm,éprecisoquefaçamissolongedavistadeEthan.

Aguceiosouvidosaoouvironomedomenino.Eleestavaemcasa?Inclineiacabeça,masnãoouviobarulhodoseucarro.

Quando as noites ficaram mais frias e os patos filhotes já estavam dotamanho damãe, aMãe arrumou as coisas no carro. Eu não conseguia pararquieto,detãonervoso,commedodeserdeixadoparatrás.Nomomentocerto,puleiadequadamentenobanco traseiro.Poralgummotivo, todos riram.Senteino carro e observei aMãe abraçar a Vovó e oVovô e depois, curiosamente,Ethan,queentãoveioabriraportadocarro.

—Eaí,Bailey?VocêquerircomaMãeouficaraquicomigo?Nadahavianaperguntaqueeuentendesse,porissoapenasfiqueiencarando

omenino.—Venha,cachorroboboca.Bailey!Venha!Relutantemente,salteidocarro.Nãohaveriapasseio?AMãepartiudirigindo,eEthan,aVovóeoVovôficaramacenando.Embora

nãofizessesentido,omeninoeeuíamoscontinuarnaFazenda!Por mim, estava ótimo. Quase todos os dias começavam com um longo

passeiodecarroaindanoescuro,indodecasaemcasadistribuirjornais.Quandochegávamosdevolta,aVovóestavapreparandoocaféeoVovôsempredeixavacairalgoparamimdebaixodamesa—bacon,presunto,umpedaçodetorrada.Aprendi amastigar em silêncio para que a Vovó não perguntasse “Você estádandocomidaaocachorrodenovo?”.Otomemsuavoz,quandoeupercebiaapalavra“cachorro”,sugeriaqueoVovôeeutínhamosquemantersegredosobre

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todaaoperação.A palavra “escola” voltou à cena, mas não havia ônibus. Ethan partia de

carro,emboraàsvezesagarotaviessedevisitaeosdoisfossemdarumavoltanocarrodela.Descobriquenãohaviamotivoparaalarme,queEthanestariadevoltanofimdodiaeHannahjantariaconosco,comoaconteciaquasesempre.

AMãeapareciaumbocado,etantoelaquantooPaipassaramnaFazendaoFelizNatal.AsmãosdaMãecheiravamaFelix,ogato,quandoelaseabaixouparameafagar,masnãomeimportei.

AcheiqueomeninoeeuhavíamosdecididoficarparasemprenaFazenda,maspertodofinaldaqueleverãosentiqueseaproximavamaisumamudança.Omeninocomeçouaguardarascoisasemcaixas,umsinal infalíveldequelogoestaríamosvoltandoparacasa.Hannahpassavaquaseo tempo todoconoscoepareciameiotristeeamedrontada.Quandoabraçavaomenino,haviatantoamorentreosdoisqueeueraobrigadoamemeterentreeles,oquesempreprovocavarisadas.

Numacertamanhã,sentiqueestavanahora.OVovôacomodouascaixasnocarro.AVovóeaMãeconversaram,eEthaneHannahseabraçaram.Euandeideumladoparaoutro,aguardandoumabrecha,masoVovôagoraeraperitoembloquearomeucaminhoeeunãoconseguiaentrarnocarro.

Omeninoseaproximoudemimeseajoelhouaomeulado.Pudesentirumacertatristezanele.

—Sejaumcachorrobonzinho,Bailey—medisse.Abaneioraboparalhemostrarquehaviaentendidoqueeueraumcachorro

bonzinhoeestavanahoradeentrarnocarroparaalongaviagemdevoltaparacasa.

—EuvoltonoferiadodeAçãodeGraças,certo?Vousentirsaudadessuas,cachorroboboca.

Ele me deu um abraço comprido e amoroso. Entrefechei os olhos— nãohavia no mundo nenhuma sensação melhor do que ser abraçado pelo meumenino.

—Émelhorvocêsegurá-lo,elenãovaientender—avisouEthan.Agarotadeuumpassoàfrenteeagarrouminhacoleira.Atristezafluíadela

em ondas, e havia lágrimas. Fiquei dividido entre o desejo de consolá-la e anecessidade de entrar no carro. Relutantemente, me sentei aos pés dela,esperando o desfecho desse estranho drama para poder ocupar meu lugar nocarrocomofocinhoparaoladodeforadajanela.

—Escrevaparamimtodososdias—pediuHannah.—Podedeixar!—respondeuEthan.Observei, descrente, enquanto ele e aMãe entravam no carro e batiam as

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portas.TenteimesoltardeHannah,quenãohaviaentendidoqueeuprecisavapartircomeles!Elanãodeixou.

—Não,Bailey,estátudobem.Vocêfica.Fica?Fica?Ocarrobuzinouese foi.OVovôeaVovóacenavam—será

queninguémviaqueeuaindaestavaali?—Vaidartudocerto.AFerriséumaótimaescola—disseoVovô.—Big

Rapidséumabelacidade.Todosseafastaramdaentradadecarros,eHannahdiminuiuaforçacomque

seguravaaminhaguiaosuficienteparaeuescapar.—Bailey!—gritouela.Emboraocarrotivessesumido,atrilhadepoeiracontinuavaapairar,fácilde

serseguidapormim,quedispareiatrásdomeumenino.

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CAPÍTULO17

Oscarrossãorápidos.Eunão sabiadisso.Emcasa, antesde ir embora,Marshmallowcostumava

correrruaabaixo,latindoparaoscarros,queemgeralparavam,oupelomenosdiminuíamavelocidadeosuficienteparaqueelaosalcançasse,emboraaessaalturatudoqueaminhaamigafaziaerasedesviarefingirnuncaterpensadoematacá-los.

Enquantoeucorriaatrásdocarrodomenino, tiveasensaçãodequeelesedistanciavacadavezmais.Ocheirodepoeiraefumaçafoificandotênue,maspercebi um sinal claro de uma curva à direita quando começou a estradaasfaltada,emboranão tivessecertezadeaindasentiroodordocarro.Masnãodavaparadesistir.Cediaopânicoinsensatoecontinueiacorrer.

Àminhafrenteouviotrovejarsonorodeumtrem,sacudindoetilintando,equandosubiumaladeiraepudevê-lo,finalmentesentiumabafejadadoaromado menino. O carro, com as janelas abertas, estava parado na estrada numcruzamentoferroviário.

Eume sentia exausto.Nunca correra tanto e tão rápido na vida,mas corrimaisaindaquandoaportaseabriueomeninosaltou.

—Bailey!—exclamouele.Emboracadamilímetrodemimdesejasseagarrá-loeseramado,eunãoiria

perderaminhaoportunidade,porissodesviei-medelenoúltimosegundoemeaboleteidentrodocarro.

—Bailey!—exclamouaMãe,rindo.Lambi os dois, perdoando-os por teremme esquecido. Depois que o trem

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passou, a Mãe deu partida no carro e fez meia-volta, mas acabou parando,porqueoVovôsurgiuemseucaminhão—quemsabedessavezelefossevoltarparacasaconosco!

—Qual um foguete— disse o vovô.—Mal dá para acreditar que tenhachegadotãolonge.

—Atéondevocêteriaido,hein,Bailey?Seucachorroboboca—medisseEthancomafeto.

Foi com grande desconfiança que pulei no caminhão do Vovô, porém—desconfiançaquesereveloujustificada,porqueenquantoEthaneaMãeseguiamseucaminho,oVovôdeumeia-voltaemelevouparaaFazenda.

Na maior parte do tempo eu gostava do Vovô. De vez em quando elerealizava “tarefas”, o que significava dizer que íamos para o novo celeiro, napartedos fundos, onde empilhavam fenomacio, e tirávamosuma soneca.Nosdiasfrios,oVovôlevavaalgunscobertorespesadosnosquaisnosenrolava.Masnosprimeirosdiasapósapartidadomenino,euficavaemburradonapresençadele,punindo-opormelevardevoltaàFazenda.Quandoissonãofuncionava,sómerestavaroerumpardesapatosdaVovó,oque,apesardetudo,nãotraziaomeninoparacasa.

Eusimplesmentenãoconseguiasuperaragenuínatraiçãosofrida.Sabiaqueem algum lugar, provavelmente em casa, o menino precisava de mim,desconheciameuparadeiro.

Todos se mostravam irritantemente calmos, aparentemente indiferentes àmudançacatastróficaque seabatera sobreonosso lar.Perdide talmaneiraasestribeiras,quechegueiafuçarnoarmáriodomeninoedeláextrairoflipparaemseguidacorrercomeleeojogarnocolodaVovó.

—Quediaboséisto?—exclamouela.—ÉagrandeinvençãodeEthan—respondeuoVovô.Lati.Isso!Ethan!—Querirláforabrincar,Bailey?—perguntouaVovó.—Porquenãodá

umpasseiocomele?Passeio?Passeioparaencontraromenino?—Penseiemassistirdaquiaumpedaçodojogo—retrucouoVovô.—PeloamordeDeus!—disseaVovó,quefoiatéaportaeatirouoflipno

pátio, mal conseguindo que a coisa percorresse cinco metros. Saí correndo,agarreiobrinquedoedepois fiqueiolhando, sementenderabsolutamentenadaquandoelafechouaporta,medeixandodoladodefora.

Ora,tudobem.CuspioflipepasseiporFlare,acaminhodoportão.Fuiatéacasadagarota,excursãoque já fizeraváriasvezesdepoisdapartidadeEthan.

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Dava para sentir o cheiro dela por todo lado, mas o do menino aos poucosfenecia.UmcarroparounaentradaeHannahdesceu.

—Tchau!—disseela,olhandodepoisparamim.—Ora,Bailey!Tudobem?Corriatéela,abanandoorabo.Podiasentiroodordeváriasoutraspessoas

emsuasroupas,masnemsinaldeEthan.Hannahcaminhoucomigoatéemcasa,equandobateunaporta,aVovódeixou-aentrarelhedeuumpedaçodetorta,masnãoparamim.

Viraemexeeusonhavacomomenino.Sonhavacomelepulandono lago,enquanto eu mergulhava fundo para brincar de resgate. Sonhava com ele nocarrinhode rolimã, felizeanimado.Eàsvezes sonhavacomelepulandopelajanela, a fissura aguda da dor escapando em forma de grito de seus lábiosduranteaquedanosarbustosemchamas.Euodiavaessessonhoseacabavadeacordardeumdeles,certanoite,quandoviomeninodepéàminhafrente.

—Oi,Bailey!—sussurrouele,seuaromachegandoamim.EstavadevoltaàFazenda!Fiqueidepénumsalto,pusaspatasemseupeitoelambiseurosto.—Psssiu—disseele.—Jáétarde.Acabeidechegar.Estãotodosdormindo.

EraaépocadoFelizDiadeGraças,eavidavoltouaonormal.AMãeveio,masoPainão.Hannahnosvisitavaquasetodososdias.

Omeninoparecia feliz,maspude sentir tambémumacertadispersãonele.Passava um bocado de tempo olhando para os jornais em lugar de brincarcomigo,mesmoquando eu lhe trouxe o flip idiota para tentar acordá-lo desseestupor.

Nãomesurpreendiquandoelepartiudenovo.Essaeraaminhanovavida,percebi.EumoravanaFazendacomoVovôeaVovó,eEthansóapareciadevisita.Nãoeraoqueeuqueria,masdesdequeelevoltassesempre,eramaisfácilparamimvê-loirembora.

Foi numa dessas visitas, quando o tempo estava mais quente e as folhasacabavamdenascer,queEthaneeufomosverHannahcorrernumpátioenorme.Pudesentirseucheiro,assimcomoodeoutrosrapazesegarotas,porqueoventosopravacontraopátioeeles suavamenquantocorriam.Mepareceudivertido,mas permaneci ao lado de Ethan, porque tive a sensação de que enquantoestávamosalidepéadornasuapernapiorou,espalhando-sepelocorpo todo.Emoçõesestranhasesombriasfervilhavamemseuinterior,enquantoeleassistiaàcorrida.

—Oi!—disseHannah,seaproximandodenós.Lambisuaperna,quetinhaogostosalgadodesuor.—Quebelasurpresa!Oi,Bailey!

—Oi.—Omeutempoestábaixandodeverdade—comentouela.—Quemeraaquelecara?—indagouEthan.

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—Quecara?Comoassim?—Ocaraqueestavafalandocomvocê.Tiveaimpressãodequevocêssão

muito amigos, com tanto chamego— disse Ethan numa voz tensa. Dei umaolhadaàvolta,masnãoviperigoalgum.

—Eleésóumamigo,Ethan—atalhouHannah,incisiva.Ojeitocomoeladisseonomedomeninosugeriaqueelehaviasidomalvado.

—Éotalde...Comoémesmoonome,Brett?Semdúvida,eleérápidonogatilho.— Ethan golpeou o chão com a bengala e eu cheirei o tufo de terrarevirada.

— Aonde você pretende chegar?— perguntou Hannah com as mãos nosquadris.

—Voltalá.Seutreinadorestáolhandoparacá—disseEthan.HannaholhouporcimadoombroedepoistornouaencararEthan.—É.Precisovoltar...—disseela,hesitante.—Ótimo—resmungouEthan,queseafastoumancando.—Ethan!—chamouHannah.Olheiparaela,masomeninosimplesmente

continuouaandar.Amisturasombriaeconfusade tristezae raivapermanecianele.AlgocomrelaçãoaolugaraparentementefaziacomqueEthansesentissemal,porquenuncamaisvoltamos.

Overãotrouxegrandesmudanças.AMãechegouàFazenda,dessavezcomumcaminhãoatrásdela,doqualalgunshomensdescarregaramalgumascaixas,quelevaramparaoseuquarto.AVovóeaMãepassavamumbocadodetempoconversando baixinho, e às vezes a Mãe chorava, o que deixava o Vovôconstrangidoeoobrigavaairtratardesuastarefas.

Ethantinhaquesairatodahoraparair“trabalhar”,oqueequivaliaàescola,já que nãome permitiam ir com ele,mas chegava em casa comumdeliciosocheirodecarneegordura,oquemefazia lembrardavez,depoisdeFlarenosabandonarnomato,emqueoVovômedeuumacomidaquetiroudeumsaco,nobancodianteirodocaminhão.

Amaiormudançaemnossasvidas,porém,foiqueagarotanãonosvisitavamais. Às vezes, o menino me levava para uma volta de carro, e quandopassávamos pela casa dela eu farejavaHannah, o queme fazia saber que elacontinuava por ali, mas o menino jamais parava ou entrava pelo portão. Eusentiasaudade.Elameamavaetinhaumcheiromaravilhoso.

Omeninotambémtinhasaudade.QuandopassávamosdecarropelacasadeHannah, ele sempre olhava pela janela, sempre diminuía a velocidade e davaparaverafaltaquesentiadela.Nuncapudeentenderporquesimplesmentenãoentrareverseelanosdavaalgunsbiscoitos,masnuncafizemosisso.

Naquele verão, aMãe costumava ir até o lago, sentar-se no ancoradouro e

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ficarmuitotriste.Eutentavafazê-lasentir-semelhorlatindoparaospatos,masnadaaalegrava.Finalmente,elatiroualgumacoisadodedo—nãoeracomida,mas algo feito de metal, uma coisinha redonda que ela jogou na água, ondesumiusobasuperfíciecomummicrobarulhinho.

Fiqueisemsaberseelaqueriaqueeufosseatrásdoobjetoeaencarei,prontoparafazerumatentativa,emboraachassequeseriaemvão,maselasómedisse“venha”,enósdoisvoltamosparacasa.

Depoisdaqueleverão,avidaassumiuumpadrãoconfortável.AMãepassouatrabalhar,também,evoltavacheirandoaóleosdocesefragrantes.Àsvezeseupassavacomelapeloranchodascabrasepelapontebarulhentaegastávamosodia numa sala grande cheia de roupas e velas de cera malcheirosas, além deobjetosdemetalnadainteressantes.Voltaemeiaentravaalguémparamevereàsvezessaíacomsacolascheiasdeobjetos.OmeninochegavaepartiunaépocadoFelizDiadeGraçasedoFelizNatale,depois,nasfériascompridas.

AtécertopontoeusuperarameuressentimentocomFlare,que jánãofazianadasenãoolharparaoventoodia todo.FoientãoqueoVovôapareceucomumacriaturaquesemexiacomoumcavalobebêecujocheiroeradiferentedetudoqueeujáencontrara.SeunomeeraJasper,ojumento.OVovôgostavadedarrisadaenquantoapreciávamosJaspersaltitarnopátio,eaVovódizia:

—Nãoseiporquevocêachaqueprecisadeumjumento.Jaspernãotinhamedoalgumdemim,adespeitodomeupostodepredador-

mornaFazenda.Eubrincavaumpoucocomele,masmecansavacomfacilidadeenãovaliaapenainvestirminhaenergianumacriaturaquenãosabiapegarumabola.

Umdia,umhomemchamadoRickapareceuparajantar.AMãemostrou-sefeliz e envergonhada, enquantooVovôaparentavaconstrangimentoeaVovó,euforia.RickeaMãesentaram-senavarandaexatamentecomoHannaheEthancostumavamfazer,masnãobrincaramdeluta.Depoisdisso,porém,comeceiaencontrarRickcadavezmais,umhomemgrandalhão,cujasmãoscheiravamamadeira.Elejogavaabolaparamimmaisquequalqueroutrapessoa,porissoeugostavaumbocadodele,emboranãotantoquantodomenino.

AminhahorafavoritadodiaeraquandooVovôfaziaastarefas.Àsvezes,mesmoassimquandoelenãoasfazia,euiatirarumcochilonoceleiro.Euviviatirando cochilos e já nãome interessavam as aventuras compridas. Quando aMãeeRickmelevavamparacaminhar,eusemprevoltavaexausto.

A única coisa que me animava eram as visitas do menino à Fazenda. Euaindadançavaeabanavaoraboelatia,brincavanolagoecaminhavanomatoouqualqueroutracoisaqueelequisesse, inclusivecorreratrásdoflip,emborafelizmente omeninoparecesse ter esquecidoondeo tinha guardado.Àsvezes

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íamosàcidade,aoparquedoscachorros,eemboramedesseprazerobservarosoutros cães, eu achava os mais novos meio infantis, incansáveis em suasbrincadeiraselutas.

Então,umanoite,umacoisaestranhaaconteceu:oVovôpôsojantardiantedemimenãosentivontadedecomer.Minhabocaseencheudesaliva,bebiumpoucodeáguaevolteiamedeitar.Logoumadorpesadaeforteatravessoumeucorpoemedeixouquasesemar.

Fiqueialideitadoanoitetodaaoladodaminhatigeladecomida.Namanhãseguinte,aVovómeviuechamouoVovô.

— Tem alguma coisa errada com o Bailey!— exclamou ela. Pude ouvirafliçãoemsuavozquandoeladisseomeunomeeabaneioraboparamostrarqueeuestavabem.

OVovôseaproximouemetocou:—Tudobem,Bailey?Oquefoi?Depois de conversarem, a Mãe e o Vovô me levaram até o caminhão e

partimosparaasalalimpaegeladadomoçobonzinho,omesmomoçobonzinhoquevisitávamoscadavezmaisnosúltimosanos.Elemeapalpoueeuabaneideleveorabo,masnãomesentiamuitobemenãotenteimesentar.

AMãe entrou, chorando, e a Vovó e o Vovô estavam com ela. Até Rickapareceu.Tenteilhesmostrarcomoeueragratoportodaessaatenção,masadorpiorou,esómerestourevirarosolhosnadireçãodostrês.

Então,omoçobonzinhopegouumaagulha.Sentiocheiroforteeconhecidoe uma picadinha. Passados alguns minutos, minha dor melhorou à beça, masagoraeuestavasonolento,sóqueriaficardeitadoeexecutartarefas.Meuúltimopensamento,antesdeadormecer,foi,comosempre,sobreomenino.

Quandoacordei,viqueestavamorrendo.Haviadentrodemimasensaçãodeumaescuridãocrescente,eeu jápassarapor issoantes,quandomeunomeeraTobyemepuseramnumquartopequenoequentecomSpikeeoutroscachorrosbarulhentos.

Eu nunca havia pensado nisso, embora provavelmente soubesse, no fundo,queumdiaacabariaacontecendocomigoomesmoqueaconteceucomSmokey,ogato.EumelembravadomeninochorandonodiaemqueenterraramSmokeynoquintaleesperavaqueelenãochorasseaminhamorte.Meupropósito,todaaminhavida, tinha sidoamá-loe ficar comele, fazê-lo feliz.Eunãoqueria lhetrazernenhuma infelicidade—assim,concluíqueprovavelmente seriamelhorqueelenãoestivessealiparaassistir,emborasentissetantafaltasuaqueessadorfossetãograndequantoaquela,estranha,quesentianabarriga.

Omoçobonzinhoentrounasala.—Vocêestáacordado,Bailey?Estáacordado,companheiro?Pobrezinho.

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Meunome,euquisdizer,nãoéCompanheiro.Omoçobonzinhoseinclinouparafalarcomigo.—Você pode se entregar,Bailey.Você fez umótimo trabalho, cuidou do

menino.Essa era a sua função,Bailey, e você se saiumuito bem.Você é umbomcachorro,umcachorromuitobom.

Tiveasensaçãodequeomoçobonzinhofalavadamorte.Emanavadeleumaespéciedepaz.EntãoaMãe,aVovó,oVovôeRickentraram.Meabraçaramedisseramquemeamavamequeeueraumcachorrobonzinho.

Noentanto,sentiumacertatensãonaMãe,acertezadealgumacoisa—nãopropriamentedeperigo,masdealgocontraoqueeuprecisavaprotegê-la.Deiumalevelambidaemsuamãoe,conformeaescuridãoseapossavademim,eulutavacontraela.Tinhaquememanteralerta:aMãeprecisavademim.

Atensãocresceupassadamaisumahora,primeiroadoVovô,edepoisadaVovó,se juntandoàdaMãe.AtéRickpareciaansioso, fazendocomque justoquandoeucomeceiaesmorecer,umanovaresoluçãodeprotegerminhafamíliadessaameaçadesconhecidarenovouminhasforças.

Foiquandoouviomenino.—Bailey!Eleirrompeuportaadentroeatensãodetodosdesapareceu—eraisso,me

dei conta, que todos estavam esperando. Sabe-se lá como, eles sabiam que omeninochegaria.

Omenino enterrouo rostonomeupescoço e soluçou.Usei toda a energiaque ainda tinha para erguer a cabeça e lambê-lo, para que ele soubesse queestavatudobem,queeunãotinhamedo.

Minha respiração tornou-se áspera, e todos ficaram ali comigo, meabraçando.Foimaravilhosorecebertantaatenção,masaíumespasmoviolentode dor no meu estômago me obrigou a gritar de verdade. O moço bonzinhoentrou,então,trazendoumaoutraagulha.

—Temosdefazerissoagora.Baileynãoprecisasofrer.—Estábem—disseomenino,chorando.Tenteiabanaroraboquandoouvi

meunome,masdescobriquenãoeracapaz.Sentioutrapicadanopescoço.— Bailey, Bailey, Bailey. Vou sentir saudades suas, cachorro boboca —

sussurrou Ethan emmeu ouvido. Seu hálito era cálido e delicioso. Fechei osolhosdeprazer,opuroprazerdoamorquevinhadomenino,doamordelepormim.

Então,semmaisnemmenos,adorsumiu—comefeito,senti-menovamenteum filhote, cheio de vida e alegria. Lembrei-me de que me sentira assim daprimeiravezqueviomenino,saindodacasaecorrendonaminhadireçãocom

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osbraçosabertos.Issomelevouapensaremquandoeumergulhavaatrásdeledurante o resgate, na luz esmorecendo quantomais fundo eumergulhava, nojeito como a água empurrava meu corpo, exatamente como agora. Eu já nãosentiamaisasmãosdomeninome tocando.Sentiaapenasaágua,de todososlados:quente,suaveeescura.

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CAPÍTULO18

A percepção se instalou bem depois que reconheci o cheiro de minha mãe eaprendicomoalcançarsuastetasparamealimentar.Meusolhosestavamabertose minha visão começava a se aguçar o suficiente para que eu visse sua caramarrom-escuranodiaemqueentendi,pasmo,quevoltaraaserumfilhote.

Não,não foi bemassim.Naverdade, eu eraum filhotequede repentemelembreidequeera,novamente,eu.Tiveasensaçãodeadormecer,cienteapenasdalongapassagemdetempo,semsonhar,nemmesmopensar,paraentão,numpiscar de olhos, enxergar omundo pelos olhos de um cãozinhomuito jovem,tentando, atabalhoadamente, tomar o leite da minha mãe sem qualquerconsciênciadasminhasvidasanteriores.

Agora que me lembrava de tudo que acontecera antes, me vi realmenteconfuso.Eumesentira tãocompletoque simplesmentenãohaviamotivoparaseguir em frente — como seria possível que me coubesse uma missão maisimportantedoqueamaromenino?

AfaltaqueEthanmefaziaera tamanhaqueàsvezeseugania,oquemeusirmãos sempre interpretavamcomo fraqueza, pulando emcimademimcomaintenção de dominar. Eles eram sete, todos marrons-escuros com manchaspretas,emecausava impaciênciaa ideiadenão registraremquemassumiriaocomandoali.

Umamulhercuidavadenósduranteboapartedo tempo,emborahouvesseumhomemquedesciaaoporãocomfrequênciaparanosalimentar.Foielequenoslevounumacaixaatéoquintalquandotínhamosalgumassemanas.Umcãomacho numa gaiola nos cheirou quando corremos até ele, e entendi,

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instintivamente,quesetratavadonossopai.Eununcaconheceraumpaiantes,efiqueicuriosoparasaberoqueeleestariafazendoali.

—Eleparecesedarbemcomosfilhotes—disseohomemàmulher.—Vaificartudobem,Bernie?Quersairdaí?—Amulherabriuagaiolado

Pai,cujonome,obviamente,eraBernie,eomachosaiucorrendo,cheirou-nosedepoisfoiurinarnumacerca.

Corremosatrásdele,caindodecaranochão,porquenossaspernasdefilhotesmalconseguiamandar.Berniebaixouacaraeumdosmeusirmãosdeuumpuloe desrespeitosamente mordeu suas orelhas, mas Bernie não se importou,chegando mesmo a brincar um pouco conosco, derrubando-nos aqui e ali atédirigir-seàportadosfundosparaqueodeixassementrar.

Poucassemanasdepois,euestavanopátio,mostrandoaumdemeusirmãosquemeraochefe,quandopareiemeagacheiparaemseguidamedarcontadeque era uma fêmea! Cheirei, espantado, a minha urina, rosnando em alertaquandomeuirmãoaproveitouachanceparainvestircontramim.OquepensariaEthandisso?

Comoeu,Bailey,podiaserumacadela?SóqueeunãoeraBailey.Umdia,apareceuumhomemquebrincouconosco

deumjeitoestranho.Bateupalmaseosfilhotesquenãoseacovardaramcomobarulho (comoeu) forampostosnumacaixa.Então, umporum, ele pegouoscachorrosdacaixae levouparaopátio—quandochegouaminhavez,elesevirou e se afastou demim como se tivesse se esquecido de que eu estava ali,motivopeloqualosegui.Elemedissequeeueraumcachorrobonzinho,apenaspor terfeito isso—ocaranãopassavadeumcaipira.Tinhamaisoumenosaidade daMãe no dia em que ela quebrou a janela do carro eme deu água: aprimeiravezemqueviomenino.

Ohomemmepôsdentrodeumacamisetaedepoisfaloucomigo.—Oi,mocinha,vocêécapazdedescobrirasaída?Imaginei que ele tivesse mudado de ideia quanto a me manter dentro da

camiseta,porissopuleiforaecorrinasuadireçãopararecebermaiselogios.Amulhervieraatéopátioparaassistir.— A maioria leva um minuto para entender, mas esta é um bocado

inteligente—observouohomem.Elemeviroudebarrigaparacima,eeumecontorci, pensando comigo mesmo que isso era injusto, dado o seu tamanho,muitomaiorqueomeu.

—Elanãogostadisso,Jakob—comentouamulher.—Nenhum deles gosta. A questão é saber se ela vai parar de lutar eme

deixar ser quemmanda ou vai continuar lutando. Preciso de um cachorro quesaibaquemdáasordens—disseohomem.

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Ouviapalavra“cachorro”enãomepareceuqueotomfossedezanga—eunãoestavasendopunido,masestavasendoimobilizado.Concluíquenãosabiaquetipodejogoeraesseerelaxeisemluta.

—Meninaboazinha!—disseele.Então,pegandoumaboladepapel,quemostrouamim,eleacenoucomela

atémedeixartotalmentefascinado.Senti-meidiotaesemcoordenação,tentandodarumamordidanacoisacomminhaboquinhadefilhote.Otroçoestavabemali na minha frente, mas eu não conseguia mexer a cabeça com rapidezsuficiente.Então,eleatirouabolaaumapequenadistânciaeeucorriemeatireiemcimadela.Ah-ha!Quetaltirá-lademim?

FoiquandomelembreideEthanedoflipidiota,decomoeuodeixavafelizquando lhe levava de volta o brinquedo. Dei meia-volta e me aproximei dohomem,largandoabolaaseuspésemesentando,àesperadequeeleaatirassedenovo.

—Éeste—disseohomemàmulher.—Voulevareste.Ganiquandoviotipodepasseiodecarroquemeesperava—natraseirade

um caminhão, trancado numa gaiola muito parecida com aquela em que fuilevado ao quarto quente e barulhento com Spike. Eu era um cão de bancodianteiro,todossabiamdisso!

Meunovo larme fez recordar o apartamento onde fomosmorar depois doincêndio—pequeno,comumavarandadandoparaumestacionamento—,masficavapertodeumbeloparqueaondeohomemmelevavaváriasvezesaodia.

Eusabia,pelocheirodasárvoresedosarbustos,quemeencontravamuitolongedeEthan—essenãoeraum lugarúmidocomoaFazenda,comchuvasfrequentes, embora fosse exuberante, com flores e vegetação.No ar pairava oodorfortedosautomóveis,queeupodiaouviragrandeeapequenadistância,aqualquermomento do dia.Às vezes soprava umvento seco e quente, quemefazialembrardopátio,mashaviadiasemqueoareradensodeumidade,oquejamaisaconteciaquandoeumechamavaToby.

OnomedohomemeraJakobeelemebatizoudeElleya.—Significa“alce”,emsueco.Vocênãoémaisumpastor-alemão,agoraé

umpastor sueco.—Abanei o rabo sem entender patavina.—Elleya, Elleya.Venha,Ellie,aqui.

Suasmãoscheiravamaóleoeseucarro,ajornaisegente.Jakob usava roupas escuras e objetos de metal no cinto, inclusive um

revólver,oquemefezconcluirqueerapolicial.Quandoseausentavaduranteodia, uma mulher chamada Georgia aparecia de tantas em tantas horas parabrincarcomigoemelevarparapassear—elamelembravaChelsea,amenina

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quemoravanamesmaruaqueEthaneteveumacadelachamadaMarshmallowe,depois,outrachamadaDuquesa.Georgiamechamavadeummontedenomes,alguns realmente ridículos, como Ellie-lelly-lu. Equivalia a ser chamado decachorroboboca—eraomeunome,masdiferente,ditocomumadoseextradeafeto.

EumeviravacomopodiaparameadaptaraessanovavidacomoEllie,tãodiferentedavidaque leveicomoBailey.Jakobmedeuumacamadecachorromuitoparecidacomaqueeutinhanagaragem,masdessavezesperava-sequeeudormissenela—Jakobmeempurravaquandoeutentavaentrardebaixodascobertascomele,aindaqueeuvissequeespaçonãofaltava.

Descobriqueoqueseesperavademimeraqueeuvivessedeacordocomasnovasregras,dojeitoqueeuaprenderaaviverquandoEthanfoifazerfaculdade.Adoragudaqueeusentiaquandopensavaemquantafaltamefaziaomeninoeraalgoaqueeuteriaquemehabituar:afunçãodeumcachorroéfazeroqueaspessoasquerem.

Havia,porém,umadiferençaentreobedeceracomandoseterumpropósito,umarazãoparaexistir.AcheiqueomeupropósitoeraficarcomEthanequejáhaviacumpridotalpropósito,estaraseuladoenquantoelecrescia.Seeraesseocaso,porqueeutinhaviradoEllieagora?Seriapossívelqueumcachorrotivessemaisdeumpropósito?

Jakobmetratavacomumapaciênciatranquila—quandoaminhapequeninabexiga dava um sinal repentino e deixava rolar ao mesmo tempo, ele jamaisgritava e me punha porta afora como o menino costumava fazer. Emcompensação,meelogiavatantoquandoeuia láforaquedecidicontrolarmeucorpo assim que foi possível. Jakob, porém, não extravasava afeto como omenino, me dava atenção da mesma forma burocrática com que Ethan davaatenção a Flare, o cavalo, e, até certo ponto,me agradava o senso de direçãoderivado daí, embora houvesse momentos em que eu ansiava pelo calor dasmãosdomeninoemalpodiaesperarachegadadeGeorgiaparamechamardeEllie-lelly-lu.

Havia,acabeiporconcluir,algopartidodentrodeJakob.Eunãosabiaoquê,maspodia sentir algumacoisadrenarenergiade suasemoções,umaamargurasombria que me parecia muito semelhante ao que percebi dentro de Ethanquandoelevoltouparacasadepoisdoincêndio.Fosseoquefosse,issoreprimiaossentimentosdeJakobpormim.Semprequeeleeeufazíamosalgojuntos,eusentiaqueelemeavaliavacomolhosfrios.

—Vamostrabalhar—diziaJakob,antesdemepôrnocaminhãoepartirmosparabrincarnoparque.

Aprendi “Deitar”, que significavame esticar no chão, e aprendi que, para

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Jakob, “Quieto” queria dizer “Fica”, e supostamente eu devia permanecer nomesmolugaratéqueelemedissesse“Venha”.

Otreinamentomeajudavaa tirarEthandacabeça.Ànoite,contudo,quasesempre eu adormecia pensando no menino. Imaginava as mãos dele no meupelo, o cheiro dele dormindo, a sua risada e a sua voz. Onde quer que eleestivesse, o que quer que fizesse, eu torcia para que fosse feliz. Eu sabia quenuncaoverianovamente.

Georgia começou a aparecermais raramente àmedida que eu crescia,masdescobri que elanãome fazia falta, conformeeumeenvolviamais emaisnonossotrabalho.Umdia,fomosaumbosqueeencontramosumhomemchamadoWally,quemeafagouedepoisfugiucorrendo.

—Oqueeleestáfazendo,Ellie?Aondeelevai?—perguntouJakob.Observei Wally, que olhava para mim por cima do ombro, acenando

animado.—Váatrásdele!Atrásdele!—comandouJakob.Hesitando,mepusacorreratrásdeWally.Oqueeraisso?Wallymeviuem

seuencalçoeseajoelhou,batendopalmas,equandooalcanceimemostrouumgravetoebrincamoscomeledurantealgunsminutos.Então,Wallysepôsdepé.

—Veja,Ellie!Oqueeleestáfazendo?Váatrásdele!—comandouWally.Jakobestavaseafastando,ecorriatrásdele.—Meninaboazinha!—elogiouJakob.Em termos de jogos inteligentes, eu provavelmente poria esse na mesma

categoria do flip, masWally e Jakob aparentemente o apreciavam, o quemelevou a entrar na brincadeira, sobretudo porque depois passamos a brincar depuxar o graveto, que, na minha opinião, ganhava de lavada de “EncontrarWally”.

Mais ou menos na mesma época em que comecei a aprender a jogarEncontrar Wally, uma estranha sensação se apossou de mim, uma ansiedadeconstanteacompanhadadeumodorconstrangedorquevinhadomeutraseiro.AMãeeaVovócostumavamreclamartodavezqueeuemitiagasescheirososporbaixodorabo,porisso,quandopasseiaexalaressecheiro,vilogoqueeraumcachorromalvado(oVovôficavatãoenojadocomfedores,quedizia“Bailey!”mesmoquandoocheirovinhadele).

Jakobnãopercebeuoodor,masficoualarmadoaovermontesdecachorroserguendo suas patas de encontro aos arbustos em volta do apartamento,cachorrosque,instintivamente,eusoubequeandavamporaliporminhacausa.

AreaçãodeJakobfoiextremamentecuriosa:elemevestiuumshortcomooqueusava debaixoda calça, commeu rabo saindopor umburacona parte detrás.Sempretivepenadoscachorrosqueusavamsuétereseoutrasroupas,ecá

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estavaeu,brincandodefigurinodiantedetodosaquelescachorrosmachos.Eraaltamente constrangedor, ainda por cima porque havia alguma coisa muitosedutora na atenção demonstrada pelo grupo heterogêneo de machos quepassavamtantotempomolhandoasfolhagensdoladodeforadaminhacasa.

—Estánahoradeumaconsultacomoveterinário—disseJakob,antesdeme levar para uma volta de carro até um lugar muito conhecido meu: a salageladacomluzesbrilhanteseumamesademetal.Adormecie,previsivelmente,acordeiemcasausandoumagolaidiotaemformadecone.

Assim que a gola foi retirada, Jakob e eu voltamos a frequentar o parquequase diariamente ao longo dosmeses seguintes.Os dias encurtaram, emborajamais tenha esfriadoounevado, e encontrarWally foi ficandocadavezmaisdifícilporqueasregrasviviamsendomudadas.Àsvezes,Wallysequerestavaláquandochegávamos,eeuprecisavairatrásdelenolugarparaondesemandara.EuoencontravadeitadocomooVovôquandorealizavatarefas,eaprendimaisum comando: “Mostre!”, que significava levar Jakob até o lugar onde eudescobriraocorpopreguiçosodeWallyesparramadosobumaárvore.Sabe-selácomo,Jakoberacapazdesaberquandoeuhaviaencontradoalgo,aindaquesetratasse apenas das meias de Wally largadas na grama — o homem era umdesastre,semprelargandosuasroupasparaqueasachássemoserecolhêssemos.Jakob interpretava minha expressão quando eu voltava correndo até ele.“Mostre!”,dizia,massóquandoeutinhaalgoaMostrar.

Trabalhávamos em outras coisas, também. Jakobme ensinou a escalar umescorrega e sair por uma escada do outro lado, fazendo com que eu descessedegraupordegrau,emlugardesimplesmentepulardo topo,comoeupreferia.Eleme ensinou a rastejar para dentro de tubos apertados e a pular sobre umapilhadetoras.Aprendiemoutrodiaamesentarenquantoelesacavaorevólverdocoldreeatirava,provocandoexplosõesque,noinício,meassustaram.

—Meninaboazinha,Ellie.Istoéumrevólver,viu?Nãohámotivoparatermedo.Elefazumbarulhão,masvocênãotemmedo,nãoé,garota?

Cheireiaarmaquandoeleaestendeuparamimefiqueimuitofelizporqueelenãotentoumefazerpegá-la.Acoisacheiravamalepareciavoaraindapiordoqueoflip.

Àsvezes,Jakobsesentavaaumamesadoladodeforacomoutraspessoasarmadase,juntos,bebiamdiretamentedegarrafas.Nessasocasiõesseutumultointerior ficavamaisevidenteparamim:opessoalàmesaria,eàsvezesJakobtambém,masemoutraselesevoltavaparasimesmo,sombrio,tristeesozinho.

—Nãoestácerto,Jakob—disse,certavez,umdoshomens.Ouvionome,masJakobcontemplavaoespaço,semprestaratenção.Meempertigueiepasseiofocinhoemsuamão,masquandoelemeafagou,percebiquenãoregistrara,de

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fato,aminhapresença.—Eudissequenãoestácerto,Jakob.Jakob virou-se e olhou para todos que o observavam, e notei que ficou

envergonhado.—Oquê?—SeoY2Kvaisertãoruimquantoestãodizendo,vamosprecisardetodas

asK-9quepudermosconseguir.UmrepetecodeRodneyKing.—Ellienãoéessetipodecachorro—argumentoucomfriezaJakob.Retesei-me ao ouvir meu nome, consciente, ao fazê-lo, de que todos os

homens à mesa me olhavam. Senti-me constrangido por algum motivo, domesmo jeito como alguns homens pareciam desconfortáveis com o olhar deJakob. Quando recomeçaram a falar, foi entre eles, ignorando Jakob. Passeinovamente o focinho em sua mão, e dessa vez ele reagiu coçando minhasorelhas.

—Cadelaboazinha,Ellie—disseele.EncontrarWally evoluiupara simplesmenteEncontrar. Jakob e eu íamos a

algum lugar e às vezes ele me dava algo para cheirar, um casaco velho, umsapato ou uma luva. Eu precisava, então, Encontrar o dono daquilo. Outrasvezes,nãohavianadaparacheirareeupercorriaumaáreaenormedeumladoaoutro, me pondo alerta toda vez que farejava algo interessante. Encontrei ummontedegentequenãoeraWally,eàsvezes,obviamente,osencontradosnãohaviamsidoinformadosdojogoediziam“Vemcá,rapaz!”oudealgumaformareagiamaomever.EusempreMostravaaJakobessaspessoas,eelesempremeelogiava, mesmo quando aqueles que eu Encontrava não eram espertos obastanteparadescobriroqueestavaacontecendo.Aideia,concluí,eraEncontrarpessoaselevarJakobatéelasparaque,então,eledecidisseseeramaspessoascertasounão.Essaeraaminhafunção.

EujámoravacomJakobhácercadeumanoquandoelecomeçouamelevardiariamenteparao seu trabalho.VáriaspessoasvestidascomoJakobandavamsempre por lá e a maioria era amistosa comigo, embora quase todas tenhamrecuadorespeitosamentequandoJakobmemandousegui-lo.Elemelevouaumcanil nos fundos, onde havia dois outros cães,Cammie eGypsy.Cammie eranegro-azevicheeGypsy,marrom.

A despeito de estarmos engaiolados juntos, meu relacionamento comCammieeGypsysedistinguiadetodososqueeujátiveracomoutroscaninos.Éramos cães trabalhadores e não nos sentíamos livres para brincar à vontade,pois precisávamos estar sempre preparados para servir a nossos donos— namaiorpartedotempo,simplesmentenossentávamos,atentos,juntoàcerca.

GypsytrabalhavacomumpolicialchamadoPaulesaíaumbocado.Àsvezes

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eu assistia a Paul e Gypsy trabalharem no pátio. Faziam tudo errado. Gypsysimplesmentefarejavaemmeioacaixasepilhasderoupaseficavaalertasemqualquermotivo,emboraPaulaelogiasseassimmesmo,tirandodomeiodaquilotudoumpacoteelhedizendoqueelaeraumacadelaboazinha.

Cammie era mais velho e não se dava ao trabalho de observar Gypsy,provavelmente porque se envergonhava da pobre cadela. Cammie trabalhavacomumapolicialchamadaAmyenãoseausentavamuito.Quandosaía,porém,eraderepente—Amyvinhapegá-loeambospartiama toda.EununcasoubequetrabalhoCammiefazia,masdesconfioquenãofossetãoimportantequantoEncontrar.

—Ondevocêestátrabalhandoestasemana?—perguntouAmy,certavez,aPaul.

—Lánoaeroporto,atéGarciavoltardalicençaparatratamentodesaúde—respondeuPaul.—Comovãoascoisasnoesquadrãoantibombas?

— Tranquilas. Só estou preocupada com Cammie. Seus resultados andammeioirregulares.Ficomeperguntandoseofaroestaráfalhando.

Aoouvirseunome,Cammieergueuacabeçaeolheiparaele.—Cammietemoquê,dezanos?—indagouPaul.—Maisoumenos—respondeuAmy.Fiquei de pé e me sacudi porque senti que Jakob se aproximava. Alguns

segundos depois, ele virou a esquina. Ele e os amigos ficaram de péconversando,enquantonós,oscachorros,osobservávamos,imaginandoporquenãonossoltavamparalhesfazercompanhianopátio.

Derepente,percebiumacertaexcitaçãoemJakob.Elefaloucomopróprioombro:

—10-4,unidade8K6respondendo—disseele,enquantoAmycorriaparaoportão.Cammiedeuumpulo.

—Ellie!—comandouAmy.—Venha!Em questão de segundos, saímos do pátio e entramos no caminhão. Me

pegueiofegando,contagiadopelaexcitaçãodeJakob.Algo me disse que o que quer que estivesse acontecendo era bem mais

importantedoqueEncontrarWally.

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CAPÍTULO19

Jakobnoslevouatéumprédiograndeeplano,ondeváriaspessoasseachavamreunidasemcírculo.Davaparasentiratensãonelasquandoestacionamos.Jakobdeuavoltaemeafagou,masnãometiroudocaminhão.

—Meninaboazinha,Ellie—disseele,alheio.Sentei-meeobserveicomansiedadeenquantoeleseaproximavadogrupo.

Váriaspessoasfalavamaomesmotempo.—Não percebemos que ela sumira até a hora do almoço,mas não temos

ideiadequantotempofaz.—MarilyntemAlzheimer.—Nãoentendocomoelafugiusemservista.Enquantoeupermaneciaalisentado,umesquilodesceupelotroncodeuma

árvore e se ocupou buscando comida na grama. Fiquei olhando, embasbacadodiantedasuaindiferençaaudaciosaanteofatodequeeu,umperigosopredador,estavaapenasamerostrêsmetrosdedistância!

Jakobveioatéagaiolaeabriuaporta.— Venha comigo! — comandou ele, sem me dar sequer uma chance de

pegaroesquilo.Reagi prontamente: hora de trabalhar. Jakob me afastou das pessoas, me

levando até o pátio frontal do prédio. Segurou duas camisas, cujo odor melembroulevementeodeVovó.Enfieimeufocinhonotecidomacio,inspirandoprofun-damente.

—Ellie,Encontrar!Passei,correndo,peloamontoadodegente.

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—Nãocreioqueelatenhaidoporali—dissealguém.—DeixemEllietrabalhar—retrucouJakob.Trabalhar.Eulevavacomigoalembrançasensorialdaroupaconformeerguia

o focinhopara farejar o ar, andandopara a frente e para trás como tinha sidotreinado. Havia um bocado de cheiros, de gente, de cães, de carros, mas nãoconseguiEncontrar.Frustrado,volteiatéJakob.

Elepercebeumeudesapontamento.—Tudobem,Ellie.Encontrar.Começouadescerarua,eeumeadianteiàsuafrente,percorrendoospátios.

Virei a esquina e reduzi o passo: lá estava o cheiro, sedutor, vindo atémim...Concentrei-meneleecorriemfrente.Dezmetrosadiante,caídojuntoaalgunsarbustos,ocheiroerainconfundível.Virei-meecorriatéJakob,queagoraestavacercadodeváriospoliciais.

—Mostre,Ellie!Levei-oatéosarbustos.Eleseinclinoucutucandoalgocomumavara.—Oqueéisso?—indagouumdospoliciais,chegandoportrásdeJakob.—Umlenço.Meninaboazinha,Ellie,muitoboazinha!Ele me agarrou e por um instante brincou de luta comigo, mas senti que

haveriamaistrabalho.—Comovamossaberqueédela?Podetersidojogadoporqualquerum—

discordouumdospoliciais.Jakobseabaixou,ignorandooshomensàssuascostas.—Muitobem,Ellie.Encontrar!Eu podia seguir o aroma agora, suave porém rastreável. Ele prosseguia ao

longodedoisquarteirões,viravaàdireita,ficandomaisforte.Numadeterminadacasa,dobrouabruptamenteàdireita,eatravesseiumportãoaberto.Láestavaelasentada num balanço, embalando-se levemente. Uma genuína sensação defelicidadederramou-sedela,quepareceusatisfeitademever.

—Oi,cachorrinho—falou.Corri até Jakobepude constatar pela sua excitaçãoque ele sabiaque eu a

encontraraantesmesmodeeualcançá-lo,emboratenhaesperadoeuchegarparareagir.

—Muitobem,Mostre!—insistiu.Levei-oatéasenhoranobalanço.SentioalíviodeJakobaovê-la.—AsenhorasechamaMarilyn?—indagoubaixinho.Elainclinouacabeça,curiosa:—VocêéoWarner?Jakob falou no microfone em seu ombro e logo estávamos cercados de

policiais.Jakobmepuxoudelado.

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—Meninaboazinha,Ellie!Puxoudobolsoumaargoladeborrachaeatirou-anagrama.Deiumsalto,

peguei a argola e a levei devolta, segurandoobrinquedo com forçapara queJakobtentassetomá-lodemim.Brincamosduranteunscincominutos,enquantomeuraboseagitavanoar.

Quando Jakob me fechou dentro da gaiola na traseira do caminhão, pudesentirseuorgulho.

—Meninaboazinha,Ellie.Vocêémuitoboazinhamesmo.Aquilo, refleti, era o mais próximo que Jakob podia chegar da adoração

incondicional que um dia senti em Ethan. Deduzi daí que hoje eu realmentecompreendiameupropósitocomoEllie:nãosóEncontrarpessoas,mastambémsalvá-las.Apreocupaçãoqueemanavadogrupoemfrenteaoprédionãopodiater sidomais evidente, assim como foi evidente o alívio quando voltamos. Asenhora havia corrido algum tipo de perigo e ao Encontrá-la Jakob e eu asalvamos. Era isso que fazíamos juntos, esse era o nosso trabalho, o que eleconsiderava mais importante na vida. Como o jogo que eu fazia com Ethan:Resgate.

Nodiaseguinte,Jakobmelevouaumalojaecomprouumasflorescheirosas,quedeixounocaminhãoenquantotrabalhávamosumpouco(Wallyseesconderanoaltodeumalixeiradecheiroforte,masnãomeenganou).Depois,Jakobeeufomosdarumalongavoltadecarro—tãolongaquemecanseideficarcomofocinhoencostadonalateraldagaiolaemedeiteinochão.

Quando Jakob veio me soltar, havia um peso nele — o que quer que oestivessemachucandopor dentro nunca fora tão forte.Estávamos numgrandepátiocheiodepedras.Preocupado,semsaberaocertodoquesetratava,fiqueiaoladodeJakobenquantoelepercorriaalgumasdezenasdemetros,carregandosuasflores.Eleseajoelhouepôsasfloresjuntoaumadaspedras,osofrimentolatejando tão profundamente que as lágrimas escorriam, silenciosas, pelo seurosto.Afaguei-lheamãocomofocinho,alarmado.

—Tudobem,Ellie,vocêéumameninaboazinha.Senta.Sentei-me,unidoaJakobnosofrimento.Elepigarreou.—Sintotantasaudadesua,meubem.Eu...àsvezesachoquenãovouchegar

ao fim do dia, sabendo que você não vai estar em casa quando eu voltar—sussurroucomvozrouca.

Erguiminhasorelhasaoouvirapalavra“casa”.Issomesmo,vamosemboradestelugartriste.

— Estou na patrulha K-9 no momento, busca e salvamento. Eles não me

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querem numa patrulha regular porque ainda estou tomando antidepressivos.Arrumeiumcachorro,onomedelaéEllie,umpastor-alemãofêmea,deumano.

Abaneiorabo.—Acabamosdepassarnocredenciamento,eagoravamosparaarua.Vaiser

bom largaro trabalhoburocrático.Engordei uns cincoquilosdepois depassartantotemposentado.

Jakobriu,eosomdessarisadafoitãopeculiar,tãotristeeamargurado,quenãohavianelaumpingodealegria.

Continuamosali,quase imóveis,duranteunsdezminutos,e, aospoucos,oânimodeJakobsealterou,tornou-semenosagudamentesofridoemaiscomoeraodeEthaneHannahquandosedespediamnofinaldoverão—meioparecidocommedo.

—Euteamo—murmurouJakob,antesdevirar-separairembora.Daquele dia em diante, passávamosmuito mais tempo longe do canil. Às

vezes viajávamos de avião ou de helicóptero, e, em ambos, tamanha era avibraçãoqueeuficavasonolentoapesardobarulho.

—Vocêéumcachorrodehelicóptero,Ellie!—mediziaJakobsemprequeviajávamosnumdeles.

Um dia, chegamosmesmo a ir aomaior lago que eu já vira, uma enormeextensão de água, cheia de cheiros exóticos. Corri pela areia atrás de umamenininha até um playground cheio de crianças que me chamaram, todas,quandonosaproximamos.

— Quer brincar no mar, Ellie? — perguntou-me Jakob depois que lheMostreiamenininha,eseuspaisalevaramparaumavoltadecarro.

Chegamosatéo lagoeeucorriemeesbaldeinaágua,queeraumbocadosalgadaquandoentravanomeufocinho.

—Este é omar, Ellie, omar!— exclamou Jakob, rindo.Brincar nomar,notei,faziaacoisaqueapertavatantoseucoraçãoafrouxarumpouco.

CorrernaáguarasamerecordouaépocaemqueeuperseguiaEthanemseutrenó—euprecisavamelançarcomvontadeafimdeprogredir,exatamenteomesmoprocessoqueeucostumavausarnaneve.Issomelevouaperceberqueembora os ciclos doSol sugerissemque uns dois anos haviam se passado, alijamais nevava. Não incomodei as crianças, porém— elas tinham trenós queandavam sobre as ondas. Apenas observei-as brincar, sabendo que Jakob nãogostaria que eu as perseguisse. Um menino se parecia um pouco com Ethanquandomaisnovo,e,maravilhado,repareiqueeueracapazdemelembrardomeumeninoquandopequeno,etambémdepoisdehomem.Umadorseapossoudemim, então, acompanhadadeumapontada agudade tristezaque sópassouquandoJakobassovioumechamando.

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Quandoeu iaaocanil,Cammiequase sempreestava lá,masGypsy,quasenunca.Numdiadesses,eutentavainteressarCammienofantásticojogoPegueiaBola,quandoJakobfoimeapanhar.

—Ellie!Eununcaouviratamanhaurgênciaemsuavoz.Saímos a toda a velocidade, os pneus do carro guinchando de tal forma

quandovirávamosesquinasqueeuconseguiaouvi-losacimadoruídodasirene.Deitei-menochãodagaiolaparanãodeslizardeumladoparaoutro.

Comosempre,quandochegamosaonossodestino,haviaummontedegentereunida.Umadessaspessoas,umamulher,estavacomtamanhomedoquenãoconseguiaficarempé,eduasoutrasaseguravam.AansiedadedemonstradaporJakobaopassarpormimcorrendopara ir falar comogrupoera tão fortequesentimeupelosearrepiar.

Tratava-sedeumestacionamento,enoprédiohaviagrandesportasdevidroqueseabriamsozinhasparaaspessoaspassaremcarregandopequenassacolas.Amulherquedesabararemexeunabolsaepuxouumbrinquedo.

—Mandamosfecharoshopping—avisoualguém.Jakob se aproximou da gaiola e abriu a porta,me entregando o brinquedo

paraqueeucheirasse.—Certo,Ellie?Pegou?PrecisoquevocêEncontre,Ellie!Saltei do caminhão e tentei identificar os cheiros, Encontrar um que fosse

igualaodobrinquedo.Detãoconcentrado,nãorepareiqueestavanafrentedeumcarroemmovimento,quebalançouquandoomotoristapisounofreio.

Muitobem,achei.Eraumodorestranhamentecasadocomoutro,umcheiromasculinoforte.Rastreeiambos,muitoseguro.

Oodordesaparecianumcarro,oumelhor,juntoaocarro,oquemedissequeas pessoas que eram nosso alvo haviam partido em um veículo diferente, eaquelealiestacionaraemsuavaga.AlerteiJakob,chateadoaoversuasensaçãodefrustraçãoedesapontamento.

—Certo,garota.Ellieéumameninaboazinha.Seus agrados forammeramente de praxe, porém, e me senti um cachorro

malvado.—Nósarastreamosatéaqui.Parecequeelaentrouemumveículoesefoi.

Vocêstêmcâmeradevigilâncianoestacionamento?—Estamosverificando.Seeleéquempensamos,porém,ocarrofoiroubado

—disseaJakobumhomemdeterno.—Aondeelealevaria?Seéele,aondeiria?—indagouJakob.O homem de terno virou a cabeça olhando osmorros verdejantes atrás de

nós.

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—Osúltimosdoiscorposqueencontramosestavamláemcima,nocânionTopanga.AchamosoprimeironoParqueEstadualWillRogers.

—Vamostomaressadireção—disseJakob.—Vamosverseconseguimosfarejaralgo.

FiqueipasmoquandoJakobmesentouaseulado.Elenuncamedeixaraserum cão de banco dianteiro até então! Mas estava tenso, por isso continueiconcentrado e não lati quando cruzamos com alguns cachorros que ladraramparamimcomumainvejaevidente.Jakobeeusaímosdoestacionamentoeelemeestendeuomesmobrinquedo,quecheireiobedientemente.

—Certo,garota.Seiquevaiparecerestranho,masqueroquevocêEncontre.Aoouvirocomando,virei-meeoencareiconfuso.Encontrar?Nocaminhão?Oscheirosqueentravampelajanelaatraírammeufocinhonaqueladireção.—Isso,garota!—elogiouJakob.—Encontre!Encontreamenina!Meufocinhoaindaretinhaoodordobrinquedo,razãopelaqualfiqueiatento

quandoumabrisaperdidametrouxeomesmocheiro,aindamescladocomodohomem.

—Meninaboazinha!—exclamouJakob,parandoocarroemeobservandoatentamente.Atrásdenós,oscarrosbuzinavam.

—Pegou,garota?Eunãosentiamaisocheirodela.—Tudobem,tudobem,Ellie—disseJakob.Agora eu entendia— estávamos trabalhando de dentro do caminhão. Ele

dirigiaeeumantinhao focinhopara forada janela,alerta, rejeitando tudoquenãofosseocheirodobrinquedo.

Senti a inclinação do caminhão quando subimos o morro e com ele umacrescentesensaçãodedesapontamentovindadeJakob.

—Achoqueaperdemos—resmungouele.—Nada,Ellie?Aoouvirmeunome,eumevireiedepoisvolteiaotrabalho.—Unidade8K6,qualéasualocalização?—cacarejouorádio.—8K6naescuta,estamossubindoparaAmalfi.—Algumanovidade?—HaviaalgumacoisanaSunset.Depois,maisnada.—Câmbio,desligo.Lati.Normalmente eu não latia quando farejava algo, mas quando esse cheiro

surgiueratãoforteeconstante,levadopelacorrentedear,queencheuacabinedocaminhão.

—8K6chamando,pegamosalgumacoisanadivisadeAmalfieUmeo.Ocaminhãoreduziuamarchaecontinueiatento.Aindapodiasentirocheiro

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delaeodohomem,maisfortequenunca.Jakobparou.—Muitobem,paraquelado,Ellie?—indagouele.Passeiparaooutroladodobanco,enfiandoacarapelajaneladomotorista.—VirandoàesquerdaemCapri—gritouJakob.Algunsminutosdepoiso

caminhãocomeçouasacudir.—Estaéumatrilhacorta-fogo!—10-4,estamosacaminho—falouorádio.Atento, eu me concentrava adiante, enquanto Jakob lutava para manter o

caminhão na estradinha estreita. De supetão, paramos diante de um portãoamarelo.

—Fiquemdesobreaviso,precisamosdosbombeirosaquiemcima.Temumportão.

—10-4.Saltamos,então.Umcarrovermelhoestavaparadonoacostamento,ecorri

diretoparaele,alerta.Jakobempunhavasuaarma.— Temos aqui um Toyota Camry vermelho e vazio. Segundo Ellie, ele

pertenceaonossohomem.Jakobmelevouatéatraseiradoveículo,meobservandoatentamente.—Nadaindicaquehajaalguémnamaladocarro—afirmouJakob.—Câmbio.Ocheiroquevinhadocarronãoeratãofortequantooqueascorrentesdear

queseerguiamdocânion, láembaixo, traziam.Umaestrada íngremecheiravaaohomemàmedidaquedescia,enquantooaromadameninaficavamaissuave.Eleacarregara.

—Osuspeitopegouatrilhaquedesceatéoacampamento.Estáapé.—8K6,aguardereforços.— Ellie — disse Jakob, tornando a pôr o revólver no coldre. — Vamos

encontraramenina.

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CAPÍTULO20

Eusentiaummedo intensoemJakobconformedescíamosocânion,ummedotamanhoquevoltaemeiarecuavaatéeleparasertranquilizado.Então,oodordamenina me impeliu à frente e saí correndo na direção de um conjunto depequenosprédios.

Vi a menininha sentada quietinha nuns degraus que levavam a umavarandona, enquanto um homem forçava a porta da frente da casa com umaespéciedeferramenta.Elaaparentava tristezaemedo,masergueuosolhosaomever,estendendoumadesuasmãozinhas.

O homem de repente se virou e me encarou. Meu pelo se eriçou quandonossos olhares se encontraram— percebi nele a mesma doença sombria quecostumavasentiremTodd,sóquemaisforte,maisviciosa.Eleergueuacabeça,olhandoparaotrechodaestradadeondeeuviera.

Corri de volta até Jakob, ouvindo a voz da menina gritar “Cãozinho!”enquantomeafastava.

—Vocêaencontrou—disseJakob.—Muitobem,Ellie.Agora,meMostre!Levei-o até o prédio. A menininha continuava sentada na varanda, mas o

homemsumira.—Aquié8K6.Avítimaestáemsegurançaeilesa.Osuspeitofugiuapé—

disseJakob.—Permaneçacomavítima,8K6.—Entendido.Câmbio.Davaparaouvir adistânciaobarulhodahélicedeumhelicópterobatendo

contra o ar, bem como o ruído de passos na estrada às nossas costas. Dois

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policiaissurgiram,suados.—Vocêestábem,Emily?Estámachucada?—indagouumdeles.—Não—respondeuamenina,mexendonumafloremseuvestido.—MeuDeus,elaestábem?Vocêestábem,neném?—indagouumterceiro

policial,ofegandoenquantocorriaepondoasmãosnos joelhos.Eleeramaiorqueosoutros, tantoemalturaquantoempeso.Senticheirodesorveteemseuhálito.

—OnomedelaéEmily.—Possofazerfestinhanocachorro?—indagou,timidamente,amenina.—Claro.Depoisprecisamosvoltaraotrabalho—disseJakobcomdoçura.Erguiasorelhasàmençãodapalavra“trabalho”.—Muito bem, eu... Eu vou com vocês— disse o policial grandalhão.—

Johnson, vocês fiquemaqui comamenina.Vigiemparaque ele não contorneportrás.

—Seeleestiverporperto,aEllienosdirá—garantiuJakob.Olheiparaele.Estávamosprontosparatrabalhar?

—Encontre!—comandouJakob.Avegetaçãoeradensaemalguns lugares,o soloporbaixodela, arenosoe

fofo.Noentanto,pudefacilmenterastrearohomem,que,nomomento,desciaomorro.DescobriumahastedeferroimpregnadadoseucheiroecorridevoltaatéJakob.

—Mostre!—comandouele.Quandovoltamosatéolocalondeestavaaferramenta,precisamosaguardar

maisdeumminutoparaqueopolicialgrandalhãonosalcançasse.— Eu escorreguei... umas duas vezes — arfou ele. Senti que estava

envergonhado.—Segundo a Ellie, ele levava este pé de cabra. Parece que deixou cair a

arma—observouJakob.—Certo.Eagora?—indagouopolicial,ofegante.—Encontre!—ordenouJakob.Ocheirodohomemestavagravadoemarbustosepairavanoar,elogoeuo

ouviàfrente,arrastandoospés.Encurralei-onumlugarondeabrisaeraúmidadevidoaummicrorregatoeasárvoreserguiamseusgalhosbemalto,provendosombra.Elemeviueseagachouatrásdeumadelas,exatamentecomoteriafeitoWally.CorridevoltaatéJakob.

—Mostre!—comandouJakob.Permaneci próximo a Jakob quando entramos na mata. Eu sabia que o

homemestavaescondido,podiafarejarseumedoeseuódio,bemcomoseuodorfétido.LeveiJakobdiretamenteatéaárvore,equandoohomemsaiudetrásdela

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ouviJakobgritar“Parado!Polícia!”.Ohomemergueuamãoeouviu-seum tiro.Era sóumaarma.Haviamme

asseguradoquearmasnãofaziammal,maspercebiumaondadedoremanardeJakobeovicairnochão,seusanguequenteespirrandonoar.AarmadeJakobsaiurolando.

Foi quando entendi, associando informações independentes num merosegundo: as armas do Vovô, e a forma como as latinhas de Ethan foramderrubadas da cerca; os fogos de Todd, e a dor que senti quando um delesexplodiudemasiadopertodemim.OhomemjuntoàárvoreestavausandosuaarmaparafazermalaJakob.

Ele continuava de pé ali, a arma apontada para nós, medo e fúriatransformadosemeuforia.

O que me assaltou então foi exatamente o mesmo impulso selvagem quetomou posse demim quando ataquei Todd na noite do incêndio. Não rosnei,apenasbaixeiacabeçaeinvesti.Doistirosruidosossoaram.Então,abocanheiopulsodohomem,quedeixoucairnaterraapistola.Elegritoucomigoeeunãosoltei,balançandoacabeçacomviolênciaesentindomeusdentesseenterraremnobraçodele.Ohomemchutouasminhascostelas.

—Mesolte!—gritou.—Polícia!Parado!—ordenouopolicialgrandalhão,seaproximando.—Tireocachorrodecimademim!—Tudobem,Ellie.Sentada,Ellie!—comandouopolicial.Solteiobraçodo

homem,quecaiudejoelhos.Farejeisangue.Seusolhosencontraramosmeuserosnei.Davaparasentirsuador,mastambémsuaesperteza,aexpectativadequesesafariadessa.

—Venha,Ellie—disseopolicial.—Ocachorroarrancoumeubraço!—gritouohomem.Eleacenouparaalgo

atráseàesquerdadopolicial.—Estouaqui—berrou.Quandoopolicialsevirourapidamenteparavercomquemohomemgritava,

obandidoinvestiu,arrancando-lheaarma.Eulati.Ohomematirouedepoisopolicial atirou, vários tirosqueprovocaramumadorprofundanohomem,quecaiunaterra.Sentiavidaesvair-sedeledechofre,aperversãonegraeraivosaafrouxandoseudomínioedeixando-opartirempaz.

— Não acredito que caí nessa — resmungou o policial, que continuouapontandoaarmaparaohomem,agoramorto,eavançandocomcuidadoparachutarlongeaarmadooutro.

—Tudobemcomvocê,Ellie?—indagouJakobdebilmente.—Elaestábem,Jakob.Vocêfoiatingido?

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—Noestômago.Ansioso,medeiteiaoladodeJakob,passandoofocinhonasuamãoinerte.

Pude sentir a dor perpassando seu corpo, e o cheiro de sangue era assustador,poishaviamuito.

—Policialabatido,suspeitoabatido.Estamos...—Otiraolhouparaocéu.— Estamos debaixo de algumas árvores cá embaixo no cânion. Preciso desocorroaéreoparaopolicial.Osuspeitoestá10-91.

—Confirmequeosuspeitoestá10-91.Opolicialseaproximouedeuumchutenohomem.—Estámorto,sim.—Queméopolicial?—O8K6.Precisamosdeajudaaquiembaixoagora.Eu não sabia o que fazer. Jakob não aparentava medo, mas eu estava tão

apavoradoqueofegavaetremia.Lembrei-medanoiteemqueEthanficoupresonoincêndioeeunãopodiachegaraele—amesmasensaçãodeimpotência.OpolicialvoltoueseajoelhouaoladodeJakob.

—Elesestãoacaminho,amigo.Aguentefirmeenquantoisso.Senti preocupação na voz do policial, e quando, com cuidado, ele abriu a

camisadeJakobparadarumaolhada,omedoqueoassaltoumefezganir.Poucodepoisouviobarulhodeváriaspessoas correndoemnossadireção.

ElasseajoelharamjuntoaJakob,metirandodocaminho,ecomeçaramajogarprodutosquímicosneleparadepoisoenvolverememataduras.

—ComoestáaEmily?—indagouaelesJakob,numavozinhadébil.—Quem?—Amenininha—explicouopolicial.—Elaestábem,Jakob.Nãoaconteceunada.Vocêaencontrouantesqueele

fossecapazdelhefazermal.Mais gente chegou e afinal levaram Jakob embora numa cama. Quando

chegamos ao local onde os carros haviam sido estacionados, um helicópteroaguardava.

O policial me segurou enquanto acomodavam Jakob no helicóptero, seubraçoinertependendodacama.Quandoamáquinabarulhentaalçouvoo,eumesoltei e corri sob ela, latindo. Eu era um cão de helicóptero, por que nãomedeixaramirjunto?EuprecisavaficarcomJakob!

Todosmeobservavamenquantoeuandavaemcírculos,impotente,erguendoaspatasdianteiras.

Afinal,Amychegouemepôsnumagaiolanumcaminhãodiferente,gaiolaquecheiravaaCammie.Elame levoudevolta ao canil emepôsno lugarde

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Cammie,quepassoucorrendopormimeentrounocaminhão,comoseestivesseofendidoporeuterandadonele.NãoviGypsy.

— Alguém virá cuidar de você, e vamos descobrir onde você vai morar,Ellie.Sejaboazinha.Vocêéboazinha—disseAmy.

Deitei na minha cama no canil, com a cabeça zonza. Não me sentia umcachorro bonzinho.Morder o homem armado não era parte do Encontrar, eusabia.EondeestavaJakob?Lembrei-medocheirodoseusangueeissomefezganirdeangústia.

Eucumpriraomeupropósitoeencontraraamenina,queestavasegura.Masagora Jakob havia sido ferido, tinha desaparecido e eu dormia no canil pelaprimeiraveznavida.Nãopudedeixardepensarquedealgumaformaissoeraumapunição.

Os vários dias seguintes foram confusos e perturbadores para todos. Eumoravanocanilesóerasoltonopátioumasduasvezespordia,sempreporumpolicial totalmente sem jeito para a nova e inesperada tarefa de cuidar de umcão.Amyfalavaebrincavaumpoucocomigo,maselaeCammiepassavamumbocadodetempofora.

NãohaviasinaldeJakob,eaospoucosseucheirodesapareceudoambiente,fazendocomque,mesmoquandomeconcentrava, eu jánãoconseguissemaislocalizá-lo.

Umdia,Cammieeeuestávamosjuntosnopátio.TudoqueCammiequeriaera cochilar, mesmo quando lhe mostrei um osso de borracha que um dospoliciais tinhamedado.EunãoentendiaqualeraopropósitodeCammie,nãoatinavacomomotivoporquealguémhaveriadequererumcãodorminhoco.

Amy levou seu almoço para uma mesa no pátio, e Cammie se dispôs aacordarparaisso.Aproximou-sedeondeestavaAmyedeitou-sepesadamenteaseuspés,comoselhepesassemtantaspreocupaçõesquesomenteumamordidanosanduíchedepresuntopudessealiviar.UmamulhersejuntouaAmy.

—Oi,Maya—saudouAmy.Maya tinhacabeloeolhosescuroseeraaltaparaumamulher,combraços

musculosos. Sua calça cheirava levemente a gatos. Ela se sentou e abriu umacaixinhadecomidapicante,quecomeçouacomer.

—Oi,Amy.Oi,Ellie.Amulher não cumprimentou Cammie, notei, com empáfia. Aproximei-me

dela,efuiafagadoporumamãocheirosa.Distinguiumamisturadesaboneteetomatespicantes.

—Deuentradanapapelada?—indagouAmy.—Dei.Estoutorcendo—respondeuMaya.

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DeiteinochãoeataqueioossodeborrachaparaqueMayaconcluíssequeeuestava me divertindo tanto que a única coisa capaz de me seduzir seria umalmocinho.

—PobrezinhadaEllie.Eladeveestarumbocadoconfusa—disseAmy.Erguiosolhos.Almoço?—Vocêtemcertezadequequermesmofazerisso?—indagouAmy.Mayasoltouumsuspiro.—Seiqueotrabalhoéduro,masqualnãoé?Estouchegandonaqueleponto

emque tododiaé amesmacoisa,virou rotina.Gostariadeexperimentar algonovo, de fazer algo diferente durante uns anos. Está servida de um taco? Foiminhamãequefez,estãodeliciosos.

—Não,obrigada.Mesentei.Taco?Euqueria,sim!Mayaembrulhouoalmoçocomosenemmevisse.— Vocês, do K-9, estão em ótima forma. Tenho tanta dificuldade para

emagrecer...Vocêachaquedouconta?—Oquê?Não,vocêestáótima!Nãopassounoexamemédico?—Claro—respondeuMaya.—Ora,entãopronto—disseAmy.—Querdizer,sequisercorrercomigo,

em geral faço isso depois do expediente. Mas garanto que você vai se sairsuperbem.

SentiumaleveansiedadedapartedeMaya.—Tomara—disseela.—EuodiariadecepcionarEllie.Concluíque,pormaisquedissessemmeunome,essaconversanãoresultaria

em nada comível. Esparramei-me ao sol com um suspiro, imaginando quantomaistempolevariaparaJakobvoltar.

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CAPÍTULO21

Maya estava feliz e animadanodia emqueme levouparadar umpasseiodecarro.

—Vamostrabalharjuntas.Nãoéótimo,Ellie?Vocênãovaiterquedormirmaisnocanil.Compreiumacama,vocêpodedormirnomeuquarto.

Tenteidecodificarsuafala:“Ellie”,“canil”,“cama”,“quarto”.Nadaalifaziasentido algum para mim, mas fiquei feliz de enfiar meu focinho na janela einspiraroodordealgoquenãofosseCammienemGypsy.

Maya estacionou na entrada de uma casa pequena que percebi, assim queentramos, ser a sua— seu cheiro estava impregnado em tudo, além do odordecepcionante de gatos. Examinei a moradia, que era menor do que oapartamentodeJakob,eimediatamenteacheiumfelinocordelaranja,sentadonumadascadeirasemvoltadamesa.Elemelançouumolharfrio,equandomeaproximei,abanandoorabo,abriuabocaesoltouumsilvoquasesilencioso.

—Stella,sejaboazinha.EssaéaStella.Stella,essaéaEllie,queagoravaimoraraqui.

Stellabocejou,indiferente.Comocantodoolhoviumflashcinzaebrancoespocarnocantodocômodo.

—Sin?EssaéaSininho.Elaétímida.Outrogato?FuiatrásdeMayaatéoquarto,deondeumterceirofelino,um

machopesado,pretoemarrom,saiudespreocupadoemecheiroucomhálitodepeixe.

—EesseéEmmet.Stella,SininhoeEmmet.Porquediabosumamulherhaveriadequerertrês

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gatos?Sininhoestavaescondidadebaixodacama,crentequeeunãoafarejariaali.

Emmetmeseguiuatéacozinhaeolhou,curioso,ointeriordatigelaqueMayaencheudecomida.Emseguida,levantouacabeçaeseafastoucomosenãolheincomodasseofatodeeucomereelenão.Stellameobservava,sempiscar,doseupostonacadeira.

Depoisquecomi,Mayamesoltouemseupátiominúsculo,quenãocontinhaumamarca canina sequer.Dei conta domeu recado comdignidade, ciente dequeaomenosumapartedapopulaçãofelinameobservava.

—Meninaboazinha,aEllie—entoouMaya.Aparentementeeraadeptadapersuasão“adoreivervocêurinarnopátio”.

Mayapreparouoprópriojantar,quetinhaumcheiroótimoeatraiuaatençãodeStella,quepuloudiretonamesaedançouumavalsacomoumgatomalvado!Maya nada disse a ela, aparentemente ciente de que gatos eram inúteis eimpossíveisdeeducar.

Mayamelevouparapassearnacoleiradepoisdojantar.Haviaummontedegente nos quintais, a maioria crianças, que me deixou nervoso. Eu nãotrabalhavahávariassemanasemeusmúsculosestavamtensos.Euqueriacorrer,Encontrar,resgatargente.

Comosepercebessecomoeumesentia,Mayacomeçouafazerjogging.—Quercorrerumpouco,garota?—perguntou.Aumenteiopasso,semme

afastardoseulado,comoJakobhaviameensinado.Logo,elacomeçouaarfar,epudesentirocheirodosuorquebrotavadeseusporos.Acalçadairradiavaumcalorquemeaqueciaaspatas,equandopassávamosporcachorrosdomésticos,ouvíamoslatidosinvejosos.

Então,Mayaparouabruptamente.—Ufa!—exclamouofegante.—Muitobem,vamosprecisardemaistempo

naesteira,podecrer.Eunãohaviarealmenteentendidooqueestavaacontecendoatéaquelanoite.

Euestavadeitadono tapete enquantoMaya tomavabanhoevestiauma roupadiferente,antesdemechamardoseuquarto.

—Muitobem,deiteaí,Ellie.Garotaboazinha—disseela, indicandoumacamadecachorro.Obedientemente,meenrosqueidentrodela,masfiqueipasmo.Aparentemente, eumoraria ali durante algum tempo. Seria essa aminha casaagora?EJakob?Eomeutrabalho?

Na manhã seguinte, Maya e eu trabalhamos juntos, embora de um modomeioestranho.Wallyapareceuemecumprimentoufeitoumvelhoamigo,juntocom umamulher que às vezes brincava conosco de Encontrar. Seu nome era

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Belinda e estava sempre impregnada do cheiro de Wally, razão pela qualdesconfiei de que quando não brincavam comigo, os dois brincavam deEncontrarumcomooutro.

Wally ficou com Maya enquanto Belinda se embrenhou no mato. Eleconversou com Maya, ensinando-lhe os sinais e os comandos que usávamosdurante o trabalho. Então Maya disse: “Ellie, Encontrar!”, e eu saí correndoenquantoWallyeMayameseguiam.Belindaestavasentadadentrodeumcarro,oquenãomeenganounemporumsegundo,evolteiparapertodeMaya.

—Estávendo?Estávendoacaradela?—indagouWally.—ElaEncontrouBelinda,dáparadizerpelaexpressãoquetem.

Aguardei,impaciente,paraqueMayamemandasseMostrar,maselaeWallypareciamdemasiadoocupadosemconversar.

—Nãotenhocerteza,elanãoparecemuitodiferentedoquedasoutrasvezesemquevoltou—disseMaya.

—Observe seusolhos,o jeito comoaperta aboca.A línguanãoestáparafora,viu?Ellieestáalerta,temalgoparanosmostrar.

Aoouvirapalavra“mostrar”estremeci,ejáestavaparasairagalopequandoparei.Aquilonãohaviasido,propriamente,umcomando.

—EntãoagoraeudigoaelaparaMostrar?—indagouMaya.Dáparaparardebrincar?Estamostrabalhandoounão?—Mostre!—comandou,finalmente,Maya.BelindasaiudocarrorindoquandoaEncontramos.—Quemeninaboazinha,Ellie—medisseela.—Agora brinque com Ellie. É importante. É a recompensa pelo trabalho

difícil.QuandoMayabrincavacomigoeradiferentedojeitocomoJakobbrincava.

Maya parecia gostar disso de verdade. Não era uma coisa que fazia porobrigaçãodepoisdoMostrar.Elaestavacomoossodeborrachadocanileeufirmei as patas e o prendi na boca com força, enquanto ela tentava tirá-lo demim.

Mayaviviadeumjeitodiferentedetodomundoqueeujáconhecera.Nãosóficavaatoladaporcuidarde tantosgatos,comoquasetodanoite iaaumacasamaior, cheia de gente, ondemorava umamulher dona de um cheiro deliciosoque se chamavaMama.Mama era como aVovó, sempre cozinhando, e haviacriançaspequenascorrendoemvoltaebrincando todavezque íamosvisitá-la.As criançasmontavam emmim atéMayamandar que parassem.Osmeninosjogavambolacomigo,coisaqueeuadorava,easmeninasbotavamchapéusnaminhacabeça,coisaqueeutolerava.

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Maya tinha um vizinho chamado Al, que gostava de aparecer em casa eperguntar a ela sobre “ajuda”. “Você precisa de ajuda com essas caixas?”,indagava.“Não,não”,diziaela.“Precisadeajudaparaconsertaraporta?”“Não,não”, dizia Maya. Maya ficava sempre ansiosa, corando e suando nas mãos,quando Al aparecia, mas não tinha medo dele. Quando Al ia embora, Mayaficavatriste.

—Vocêarrumouumnovocachorro?—perguntouAl.Esticandoamão,elecoçouatrásdaminhaorelhadeum jeitoque fez comque eugostassedeledecara.Seucheiroeradepapel,tintasecafé.

—Arrumei,elaédodepartamentodebuscaeresgate.Eusabiaqueosdoisfalavamdemimeabaneioraboamistosamente.—Vocêprecisadeajudaparatreinarseunovocachorro?—indagouAl.—Não,não—respondeuMaya.—Elajáfoitreinada.Precisamosaprender

atrabalharemequipe.Abaneioraboquandoouvi“Ellie”e“trabalhar”.Alencerrouasessãodecafuné.—Maya,você...—começouele,nervoso.—Precisoirandando—disseMaya.—Seucabeloestámuitobonitohoje—desembuchouAl.Os dois se encararam, ambos tão ansiosos que pareciam estar correndo o

riscodeumataqueiminente.Olheiemvolta,masnãovinadamaisameaçadorqueEmmet,nosobservandodajanela.

—Obrigada,Al—disseMaya.—Vocêquer...—Voudeixarvocêempaz—retrucouAl.—Ah...—exclamouMaya.—Amenosque...—Amenosque...?—repetiuMaya.—Amenosquevocêprecisedealgumaajuda.—Não,não—disseMaya.Mayaeeutrabalhávamosquasediariamente.MayamemandavaEncontrare

nosembrenhávamosnomato,àsvezesperseguindoWallyouBelinda,àsvezesosmeninosmaisvelhosdacasadaMama.

Maya era muito mais lenta que Jakob, ofegando e suando a partir domomento em que começávamos. Em geral, um sofrimento genuíno emanavadela,eaprendianãoserimpacientequandovoltavaetudooqueelaconseguiafazer era apoiar as mãos nos joelhos durante alguns minutos. Às vezes, umaonda de impotência e frustração se apossava dela e a fazia chorar, mas aslágrimaseramsempreenxugadasantesdeencontrarmosWally.

Uma tarde, ela e Wally fizeram um piquenique com bebidas refrescantes

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enquantoeudescansavasobasombradeumaárvore.ApreocupaçãodeMayaeraevidenteparamim,maseutinhaaprendidoaconvivercomissoenãodeixarqueinterferissenomeutrabalho.

— Não temos grande chance de passar no credenciamento, temos? —indagouMaya.

—AchoqueEllieéomelhorcachorroquejávinavida—respondeuWally.Sentiumcertoalarmeealgumacautelaemseutomeoencarei,curioso.

—Euseiqueoproblemasoueu,semprefuipesada.— O quê? Não, eu não quis dizer... — emendou Wally, com crescente

alarme.Sentei-me,imaginandoqualseriaoperigo.—Tudobem.Naverdade,emagreciumpouco,unsdoisquilos.—Sério?Maravilha!Querdizer,claroquevocênãoeragorda...—gaguejou

Wally. Senti o cheiro do suor brotando em sua testa.—Você... sei lá.Quemsabedarumacorrida?Talvezajude.

—Eucorro!—Certo! Isso!—Wally irradiava agoramedopuro, e bocejei ansioso.—

Beleza.Agoraprecisoir.—Sei lá,não imagineique tivesse tantacorrida.Ébemmaisdurodoque

pensei que seria. Talvez eu deva pedir demissão, deixar alguém em melhorformaassumirmeulugar.

—Ora, por que não conversa comBelinda sobre isso?— sugeriuWally,desesperado.

MayasoltouumsuspiroeWally,cheiodealívio,levantou-seepartiu.Torneiamedeitar.Qualquerquefosseoperigopavorosoqueespreitava,aparentementeagorajánãoameaçavamais.

Nodiaseguinte,Mayaeeunãotrabalhamos.Elacalçouunssapatosnovosmacios, pegou aminha guia eme levou até uma estrada comprida que corriaparalelaàareiajuntoaolagão,omar.Haviacachorrosportodolado,e,emboranãoestivéssemostrabalhando,sentiumadeterminaçãoimplacávelemMayaeosignorei enquanto corríamos rua abaixo, como sol subindonohorizonte.Foi amaiorcorrida já feitapornósdois,nãoacabavanunca, e apenasquandoeu jápodiasentirocorpodelaexaustoedoído,Mayadeumeia-volta.Paroualgumasvezes para que eu bebesse água nas torneiras embutidas no concreto perto deprédios bem fedorentos, mas, de resto, o retorno foi igualmente determinado,apenasmaislento.Quandochegamosaocaminhão,Mayamancava.

—Minhanossa...—gemeuela.Estávamosambosbastanteofegantes.Elabebeuáguaepôsacabeçaentreas

pernas,enquantoeuaobservava,tristonho,vomitarnoestacionamento.

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—Tudobemcomvocê?—perguntouuma jovemsolidária.Maya acenoucomamãosemsequerlevantarosolhos.

NodiaseguintetrabalhamosemEncontrarBelinda.OandardeMayaestavatãoretesadoedoloridoque,depropósito,eutrabalheiameia-bomba,reduzindoopassoassimquesumiadevista.Volteiparareceberinstruçõesmuitomaisqueo necessário, apenas para saber como ela ia, e quando, finalmente, encontreiBelindasentadadebaixodeumaárvore,eladormia.

—Vocêéumameninaboazinha,Ellie,muitoboazinha—sussurrouMayapara mim. Acordamos Belinda, que consultou o relógio e soltou umaexclamaçãodesurpresa.

—Estoutendoummaudia...—disseMaya.Belindanãorespondeu.Naquela noite, Maya me chamou enquanto tomava banho de banheira.

Cheirei, curioso, as bolhas de sabão e espadanei um pouquinho de água,imaginando por que alguém haveria de querer nadar num lugar tão apertado.Decerto os gatos não estavam interessados. Sininho, como de hábito, seesconderadomundo,Stellaconduziaumexamenãoautorizadodaminhacama(davapara saberpelo cheiroque ela chegara a tentar dormir ali!) eEmmet seachava no banheiro comigo, lambendo o próprio corpo e esperando que algoacontecesseparaqueelepudesseignorar.

Mayaestavatriste.Estendeuumamãomolhadaeafagouminhacabeça.— Desculpe, Ellie, simplesmente não sirvo para isso. Não consigo

acompanhar seu passo nasmissões.Você é um cachorro tão bomquemerecealguémqueoacompanhe.

Perguntei-meseelaficariamaisfelizseeuentrassenabanheiratambém.Pusaspatasnabeiradadabanheira, testandode leve a teoria.Emmetparoude selamber e me olhou sem um pingo do respeito que me devia, erguendo emseguida o rabo e saindo dali valsando como se me desafiasse a persegui-lo,reduzindoapopulaçãofelinadacasa.

—Amanhã vou fazer uma surpresa para você, Ellie—disseMaya, aindatriste.

Certo,jáchegueiatéaqui,pensei...Entreinabanheira,afundandoemmeioàsbolhasdiáfanas.

—Ellie!—exclamouMayaedesatouarir,seudeleiteapagandoatristezacomoseelafosseumavela.

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CAPÍTULO22

Namanhãseguinte,meanimeiadarumavoltadecarroporque...ora,porqueeraumavoltadecarro!TambémmecontagieicomaexpectativaalegredeMaya,oque me fez saber que não íamos trabalhar, já que, ultimamente, isso nãoimplicava grande felicidade.Mas apenas quando ela parou e abriu a porta docarro,medeicontadeondeeuestava.

NoapartamentodeJakob.CorriàfrentedeMaya,subindoatodaaescadaelatindoemfrenteàporta,

algoquenuncafizquandomoravacomele.DavaparafarejarJakobládentroeouvi-loaproximar-sedaporta.Quandoaabriu,meatireiemcimadele,pulandoemecontorcendodealegria.

—Ellie!Comovai,garota?Sentada!—comandou.Baixeimeutraseiroatéochão,maselenãoquisficarali.—Oi,Jakob—saudouMaya,daporta.—Entre,Maya—convidouJakob.Fiquei tão eufórico de ver Jakob que sentei a seu lado quando ele se

acomodounumapoltrona.Minhavontadeerasubirnoseucolo,eseJakobfosseEthan,euprovavelmente teria feito isso,mascomJakobnãodavasequerparacogitaressetipodebobagem.

Saí cheirando o apartamento enquanto os dois conversavam. Minha camasumira,reparei,masmeuodoraindapodiasersentidonoquarto,eeunãoteriaqualquerproblemaparadormirnotapeteounacamadeJakob,seelequisesse.

EntãovolteiparaoladodeJakob,passandoporMaya,queestendeuamão,amistosa, para afagar meu lombo. Foi aí que me ocorreu: voltar para Jakob

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significariadeixarMaya.Aoscãesnãosepermiteescolherondevãomorar.Meudestinoseriadecidido

porgente.Aindaassim,mesentidivididopordentro,emconflito.JakoberamuitomelhornotrabalhodoqueMaya,masMayanãocarregava

aquelenúcleo interiorde tristezao tempotodo.Elasentiaumaalegriagenuínana casa da Mama, onde havia tanta criança para brincar. Jakob, emcompensação,nãotinhagatos.

Meupropósitoeraclaro—Encontrar,Mostrareresgatarpessoas.Eueraumbom cachorro. TantoMaya quanto Jakob se concentravam no trabalho, o quesignificavaquenenhumdosdoisseriacapazdeumdiameamarcomaentregatotal de Ethan.MasMayame abraçava com um afeto sem defesas que Jakobjamaissepermitiusentir.

Comeceiaandarparacáeparalá,ansioso.—Estáprecisandoirláfora?—perguntou-meMaya.Ouviapalavra“fora”,

masditasemgrandeentusiasmo,razãopelaqualnãoreagi.—Não,quandoquer,elasentajuntoàporta—disseJakob.—Émesmo.Jáavi fazer isso—concordouMaya.—Aminhaportados

fundosficaabertaboapartedotempo.Elapodeentraresair.Osdoissecalaramdurantealgumtempo.Saídefininhoparaacozinha,mas,

como sempre, o chão estava imaculadamente limpo, livre de qualquer coisacomestível.

—Eusoubequevocêestáseaposentandoporinvalidez—disseMaya.—Bom, fui baleado duas vezes em cinco anos. Para qualquer um já seria

suficiente—respondeuJakobcomumarisadaríspida.—Vocêvaifazerfalta—observouMaya.—Nãovoumemudardecidade.MeinscrevinaUCLA,horáriointegral.Em

umanoemeioconsigomeudiplomadedireito.Fez-se mais um silêncio. Pude sentir um ínfimo sinal de nervosismo em

Maya,algoqueeu járepararaantesquandooutraspessoas tentavamfalarcomJakob e, ao invés, acabavam nada dizendo. Havia alguma coisa nele queprovocavadesconfortonosoutros.

—Eentão,quandovaiserseutestedecredenciamento?—indagouele.Descobriumpontoneutronochãoentreosdoisemedeiteicomumsuspiro,

incapazdededuziroqueiriaacontecer.—Daquiaduassemanas,mas...—interrompeu-seMaya.—Mas?—pressionouJakob.—Estoupensandoempedirdemissão—confessouMayanumrompante.—

Simplesmente não consigo dar conta. Eu não imaginava... Bem, outra pessoaprovavelmentehádesesairmelhor.

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—Vocênãopodefazerisso—interveioJakob,eerguiacabeça,olhando-ocomcuriosidade,perguntandoamimmesmoporqueeleestariacomraiva.—Umcachorronãopode ficarmudandodedono.Ellieéomelhorcãoque jáseviu.Largue-adessejeitoeissoécapazdeacabarcomela.Wallymedissequevocêstêmumaligaçãobacana.

BaticomorabonoassoalhoaoouvirmeunomeeodeWallymencionadosporJakob,masseutomcontinuavasevero.

—Nãosoufisicamentetalhadaparaisso,Jakob—disseMaya.—Tambémnelaerapossívelsentiraraivacrescer.—Nãosouumex-fuzileiro,apenasumatiracansadaquemalconseguepassarnoexamemédicoanual.Venhotentando,masestádifícildemais.

— Difícil demais — repetiu Jakob, encarando-a, até que Maya deu deombros e desviou o olhar. Sua raiva transformou-se em vergonha, e meaproximeidelaparaafagarcomofocinhoasuamão.—EquantoàdificuldadequeEllieterá?Issonãoimporta?

—Claroqueimporta.—Vocêdissequenãoestádispostaatrabalhar.—Eudissequenãosoutalhadaparaisso,Jakob!Nãotenho,dentrodemim,

oqueépreciso.—Oqueépreciso.Dentrodevocê.DavaparaperceberqueMayatentavacontrolaramarécrescentedeemoção

que às vezes levava a uma enchente de lágrimas. Eu quis consolá-la e enfieinovamenteo focinho sobamãodela.Quandovoltoua falar, JakobnãoolhouparaMaya,esuavozeramaissuave.

— Da primeira vez que levei um tiro, meu ombro ficou tão ferrado queprecisei reaprender a usá-lo. Fazia fisioterapia diariamente. Tinha um peso deum quilo numa polia... Como aquele troçodoía! E aminhamulher estava naúltimasessãodequímio.Maisdeumavezeuquisdesistir.Eradifícildemais.—JakobvirouacabeçaepiscouparaMaya.—MasSusanestavamorrendo.Eelajamaisdesistiu,sóquandochegouofim.Eseelapodiacontinuar,eusabiaquetambémprecisavafazeromesmo.Porqueéimportante.Porqueofracassonãoéumaopçãoquandoo sucesso é só umaquestãodemais esforço.Eu sei que édifícil,Maya.Tentecommaisvontade.

A mesma dor, velha e sombria, torcia as entranhas de Jakob, como umatempestade, e a raivaodeixoucomose tivesse sido levadaporuma rajadadevento.Eleseencolheunacadeira,repentinamenteexausto.

Seilácomo,entendientãoquenãoficariacomJakob.ElesimplesmentenãoestavamaisinteressadoemEncontrar.

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Mayaseencheude tristeza,mas senti crescernelaumadeterminação,umaforça como aquela que havia demonstrado no dia queme levou para correr àbeiradomar.

—Certo.Vocêtemrazão—disseelaaJakob.Jakob afagou minha cabeça quando fomos embora, despedindo-se sem

arrependimento. O último vislumbre que tive dele foi quando fechou a porta,semolharparamim.EleeMayahaviamdecididomeudestino,emecabiafazeroqueelesqueriam.

Maistarde,Mayaeeusubimosomorrodecarro.Elacorreuatéficarcansadaapontodecambalear.Nodiaseguinte,depoisdotrabalho,corremosoutravez.Era fantasticamente divertido, embora Maya quase sempre terminasse oexercíciocheiadedesesperoedor.

Algumas noites depois, chegamos em casa e Maya estava literalmentecansadademaisparasairdocarro.Ficamosalisentados,osuor lheescorrendopelorosto,comasjanelasabertas.

—Vouserreprovada,Ellie,sintomuito—disseelaemtomdelamento.Pude ver queEmmet e Stella nos observavamda janela—provavelmente

nemsabiamoqueeraumcarro.Sininho,supus,ficaraassustadacomobarulhodanossachegadaeseesconderadebaixodealgumacoisa.

— Você está se sentindo bem, Maya?— indagou Al com delicadeza. Ovento soprava contra mim, por isso meu faro não percebeu que ele seaproximara.Pusacabeçaparaforadajanelaparaserafagado.

—Ah...Oi,Al—disseMaya,saindodocarro.—Eusóestava...pensando.—É,euvivocêentrardecarro.—Foi.—Porissovimverseprecisavadeajuda.—Não,não.Fuicorrercomocachorro.Deslizeiparaforadobancodianteiroemealivieinopátio,propositadamente

encarandoEmmeteStella,quedesviaramoolhar,ofendidos.—Estábem—concluiuAlcomumsuspiroprofundo.—Vocêemagreceu,

Maya.—Oquê?Alseencolheuamedrontado.—Nãoquevocêestivessegorda,maséquerepareique,deshort,suaspernas

parecem tão finas... — Uma lufada de constrangimento emanou dele, querecuou.—Precisoirandando.

—Obrigada,Al.Vocêfoiumamor—disseMaya.Eleinterrompeuaretiradaeseempertigou.— Na minha opinião, você não precisa mais de exercícios. Está perfeita

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dessejeito.Maya riu, então, e depoisAl riu.Abanei o raboparamostrar aos gatos na

janelaqueeuentenderaapiadaeelesnão.Mais oumenos uma semana depois,Maya e eu fizemos omeu programa

favorito,queerairaoparquecomummontedeoutroscachorrosetrabalharcomosbrinquedos.Sobseucomando,rastejeidentrodeumcanoapertadoe,depois,subiedescinoescorrega.Subidevagarosdegrausdeumaescadaedemonstreisercapazdemesentarpacientementenumatraveestreitaamaisdemeiometrodochão,otempotodoignorandoosoutroscães.

Nosso Encontrar consistiu em localizar um homem que deixara cair umasmeiasvelhasquandoseembrenhounomato.Mayaesbanjavaansiedade,porissofuia toda,mesmoquandoelacomeçouabufare suar.Eusabiaqueohomemestavanoaltodeumaárvore,antesmesmodeencontrá-lo,porqueWallytentaraessetruquecomigoalgumasvezeseissosempreafetavaamaneiracomooodorhumanoera levadopelovento.Maya ficouumpoucoperplexa,porém,comofatodeeumepôremalertanabasedaárvore,jáque,nitidamente,ohomemnãoestavaali.Sentei-me,pacientementeencarandoohomemquesorrialáemcima,atéqueelaentendesse.

Naquela noite, houve uma baita festa na casa da Mama. Todos queriambrincarcomigoedizermeunome.

—Agoraquefoicredenciada,vocêprecisacomer—disseaMamaaMaya.Acampainhadaportasoou,oqueraramenteacontecianaquelacasa,ondeas

pessoascostumavamentrarsembater.SeguiaMamaatéaporta,equandoelaaabriu, seucoraçãodisparou.EraAl,que lheentregouumas flores.LembreideEthandandofloresaHannahefiqueiconfuso,porqueachavaqueAlgostavadeMaya,nãodaMama,masnuncavouconseguirentenderoshumanosquantoaessetipodecoisa.

AfamíliainteiraseaquietouquandoAlapareceunoquintal,ondeestavamasmesas de piquinique.Maya foi ao encontro deAl, e ambos ficaram nervososquandoelepressionouoslábioscontraorostodela.EntãoMayadisseosnomesdetodos,Alapertouamãodoshomensetodomundocomeçouaconversarerirnovamente.

Ao longodosváriosdiasque se seguiram, encontramose resgatamosduascrianças que haviam se perdido e refizemos o percurso de um cavalo paraencontrar umamulher que fora derrubada e machucara a perna. Lembrei queFlare havia derrubado Ethan na mata e me perguntei por que as pessoas sedavam ao trabalho de ter cavalos, já que, obviamente, eles não eram nadaconfiáveis. Se o dono de um ou dois cachorros não se desse por satisfeito,melhorseria,provavelmente,pensaremarrumarumjumento,comoJasper,que,

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aomenos,faziaoVovôdarrisada.Maya e eu também encontramos nomato um velho que estavamorto. Foi

deprimentecheirarseucorpofriodeitadonaterra,porqueissonãoeraresgatargente, e emboraMaya tenhame elogiado, nenhumde nós demonstrou grandeinteressepelabrincadeiradogravetodepois.

FomosàcasadeAl,eeleserviuaMayaumagalinhanojantar.Osdoisrirame depois comeram uma pizza que um rapaz entregou. Cheirei os pedaços degalinha que Al pôs no chão para mim e os comi mais por educação do quequalqueroutracoisa,porqueincrustadaneleshaviaalgumacoisacomgostodefuligem.

Maistardenaquelanoite,pudesentirqueelalhecontousobreovelhomorto,porque a tristeza que vi ali era a mesma. Jakob e eu também tínhamosencontradoalgunsmortos,mas issonuncaodeixou triste,domesmo jeitoqueencontrar e salvar gente nunca o deixava realmente alegre.Ele apenas fazia otrabalho,semsentirmuitacoisa,fosseboaouruim.

QuandopensavaemJakob,eumedavacontadecomoasuadedicaçãofriaaEncontrarmeajudouasuperaraminhaseparaçãodeEthan—nãohaviatempopara lamentar,eu tinhaumbocadode trabalhoa fazer.Maya,porém,eramaiscomplexa, e a maneira como me amava me deixava com saudade do meumenino. Não com a mesma pontada aguda e doída no peito, mas com umatristezanostálgicaque,emgeral,seapossavademimquandoeumedeitavaparadormirànoiteeinvadiaosmeussonhos.

Umdia,Mayaeeutomamosumaviãoedepoisumhelicópterodiretoparaosul. Pensei no dia em que Jakob foi levado, e fiquei feliz de voltar a ser umcachorrodehelicóptero.Ela semostrou animadaepoucoàvontadeduranteovoo, que não foi, francamente, nem de longe divertido como um passeio decarro,porqueobarulhofezdoeromeuouvido.

Aterrissamosnumlugardiferentedetudoqueeujátinhavisto.Haviamontesde cachorros e policiais, alémdo ruído de sirenes e do cheiro de fumaça. Portodolado,osprédiospareciamprestesadesabar,ostelhadosdealgunsdelesjánochão.

Maya ficouboquiaberta emeencosteinela,bocejandocomansiedade.Umhomemseaproximoudenós.Estavasujoeusavaumcapacetedeplástico.Asmãos, quando as estendeu paramim, cheiravam a cinzas, sangue e argila.EleapertouamãodeMaya.

—Estoucoordenandoaoperaçãoamericananestesetor.Obrigadoporviratéaqui.

—Eunãofaziaideiadequeasituaçãofossetãoruim—disseMaya.— Isto é só a ponta do iceberg. O governo de El Salvador está

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sobrecarregado. São mais de quatro mil feridos, centenas de mortos, e aindaestamos encontrandogente presa nos destroços.Forammais demeia dúzia depequenos tremores desde 13 de janeiro, alguns muito violentos. Cuidado aoandarporaí.

Maya prendeu uma guia à minha coleira e entrou comigo no labirinto deentulho.Quandochegávamosaumacasa,algunsdoshomensquenosseguiamaexaminavamedepois, àsvezes,Mayamesoltavaeeuentrava, emoutras,memantinhapresoàguiaenósjogávamosEncontrardoladodefora.

—Estanãoestáfirme,Ellie.Precisomantervocêpresaparaevitarqueentre—mediziaMaya.

Um dos homens se chamava Vernon e cheirava a cabras, me fazendorecordarasviagensatéacidadecomEthaneoVovô.FoiumadasrarasvezesemquepenseiemEthanenquantotrabalhava—jogarEncontrarsignificavameafastardissotudoemeconcentrarnatarefa.

Aolongodasváriashorasseguintes,MayaeeuEncontramosquatropessoas.Todas estavam mortas. A euforia que Encontrar me dava azedou depois dasegunda. Quando trombei na quarta, por pouco deixei de alertar Maya. Elaregistroumeu humor e tentoume tranquilizar, afagandomeu pelo e acenandocomoossodeborracha,noqualeuestavabempoucointeressado.

—Vernon,vocêpoderia,por favor,seesconderemalgumlugar?—pediuela.Deitei-me,cansado,aseuspés.

—Meesconder?—indagouele,reticente.—Elaprecisaencontraralguémvivo.Vocêpodeseesconder?Porexemplo,

naquela casa que acabamosde vistoriar.E quando ela localizar você, aja comgrandeanimação.

—Hã...Estábem.RegistreiapartidadeVernonsemmuitointeresse.—Muitobem,Ellie.Estápronta?ProntaparaEncontrar?Aborrecido,mepusdepé.—Vamos,Ellie!—comandouMaya.Suaanimaçãopareceufalsa,mascorri

paraumacasaquejáhavíamosexaminado.—Encontre!Entreinacasaeparei,confuso.Emborajátivéssemostodosestadolá,achei

queocheirodeVernon,poralgummotivo,eramaisintensoalidentro.Curioso,fuiatéosfundosdacasa.Isso!Haviaumapilhadecobertoresnocanto,doqualvinhaumforteodordesuor,calorecabras.Vernon!CorridevoltaatéMaya.

—Mostre!—comandouela.Ela me seguiu correndo e quando levantou os cobertores Vernon deu um

salto,rindo.

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—Vocêmeencontrou!Meninaboazinha,aEllie!—gritouele,rolandonoscobertores comigo. Pulei em cima dele e lambi seu rosto. Depois, brincamosdurantealgumtempocomoossodeborracha.

Mayaeeu trabalhamosanoite todaeencontramosmaispessoas, inclusiveVernon, que cada vez ficava mais perito em se esconder. Só que eu haviatrabalhado comWally, e por isso ninguém conseguia me enganar por muitotempo.TodososdemaisqueMayaeeuencontramosestavammortos.

Osolcomeçavaanascerquandochegamosaumprédiodoqualaindasubiauma fumaça densa e acre. Eu estava novamente preso à guia, meus olhoslacrimejando com o cheiro intenso de substâncias químicas que emanava doconcretodemolido.

Encontrei um homemmorto deitado e esmagado sob uma parede e alerteiMaya.

— Já sabíamos dele — alguém disse a Maya. — Não podemos retirá-loainda.Asubstâncianessesbarris,sejaqualfor,étóxica.Vaisernecessáriaumaequipededesinfecção.

Dealgunsbarrisdemetalvazava,deformaconstante,umlíquidoqueencheuminhas narinas com um odor que ardia. Concentrei-me em ignorar o cheiro,tentandoEncontrar.

—Certo,garotaboazinha.Vamosparaoutrolugar,Ellie.Ali!Farejeioutrapessoaemepusemalerta,enrijecendoocorpo.Erauma

mulher, e seu odor era muito leve, mal conseguindo se impor sobre o dassubstânciasquímicasqueempesteavamoar.

— Tudo bem, Ellie. Vamos deixar este aqui. Venha — disse Maya. Elapuxoucomdelicadezaaminhaguia.—Venha,Ellie.

Fiqueinovamenteemalerta,agitado.Nãopodíamosirembora!Essapessoaestavaviva.

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CAPÍTULO23

—Jávimosavítima,Ellie.Teremosquedeixá-loaqui.Venha—insistiuMaya.Concluí que ela queria ir embora eme perguntei se estaria achando que o

meualertatinhaavercomomorto.—ElaestáquerendomeEncontrardenovo?—indagouVernon.ErguiosolhosparaMaya,querendoobrigá-laaentender.Mayaolhouàvolta.—Aqui?Está tudodestruído.Éperigosodemais.Vamosfazeroutracoisa.

Serádivertidoseelapuderperseguirvocê.Vásubindoaruaedepoischameporela.Entãoeuasoltodaguia.

Não prestei atenção a Vernon quando ele se afastou.Meu foco estava napessoaescondidanosdestroços.Davaparafarejarmedo,emboraoodorcáusticodas substâncias químicas me assaltasse as narinas, do jeito que uma vezaconteceracomojatodogambá.Mayadesprendeuaguiadaminhacoleira.

—Ellie?OqueoVernonestáfazendo?Aondeelefoi?—Ei,Ellie!Olha!—gritouVernon,queapertouopassoruaacima.Olhei

para ele, querendo persegui-lo e brincar,mas eu tinha trabalho a fazer.Volteiparaoprédiodesabado.

—Ellie!Não!—gritouMaya.Vinda de Jakob, a palavra “não” teriame imobilizado,masMaya nãome

comandavacomomesmo tomduro.Mergulheidecabeçanumespaçoestreitojuntoaomorto,cavandoaterraparairemfrente.Minhaspatasencontraramumvazamento e começaram a arder, o cheiro das substâncias químicas, de tãointenso, empanava tudo o mais. Lembrei-me da brincadeira de resgate com

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Ethan,decomoeuoencontravanasprofundezaspormeiodeumínfimoaromaseunaágua.

Sufocando,fuiemfrenteporessetúnel.Umarmaisfriotocouminhacaraeme espremi por um buraco, caindo num poço estreito. Uma corrente de arascendente permitia respirar melhor ali, embora minhas narinas continuassemembrasaporcausadoácidoqueespirraranomeufocinho.

Passadoummomento,viumamulherencolhidanocantodopoço,apertandoumpanonorosto.Seusolhosseesbugalharamaomever.

Lati,incapazdevoltaratéMayaparaMostrar.—Ellie!—chamouMaya,tossindo.—Volte,Maya—advertiuVernon.Continueialatir.— Ellie!— gritouMaya de novo, parecendo mais próxima. Dessa vez a

mulheraouviuecomeçouagritartambém,oterrorextravasandodela.—Temalguémali,alguémvivo!—gritouMaya.Sentei-me,pacientemente,juntoàmulher,sentindoseumedotransformar-se

emesperançaatéqueumhomemusandoumcapaceteeumamáscaraapontouumalanternaparao interiordopoçoedirigiua luzparanósdois.Meusolhoslacrimejavamemeufocinhoescorria,todaaminhacaraaindaardendoporcausado que quer que tivesse caído em mim. Logo, os ruídos de pás e picaretascomeçaram a reverberar à nossa volta e umquadrado de claridade penetrou aescuridãodopoço,vindodecima,eumhomemdesceupresoaumacorda.

Amulher,obviamente,nuncatreinaraparaseralçadaporcordasetevemuitomedoquandoobombeiroaamarroueosoutrosapuxaramparafora,maseujápassara por essa operação várias vezes e me posicionei, sem hesitação, nointeriordosnósda cordaquandochegouaminhavez.Mayaestava láno altoquandometirarampeloburacoabertonaparede,masseualíviotransformou-seemsustoquandoelameviu.

—MeuDeus,Ellie,seufocinho!Corremosambosatéumcaminhãodosbombeiros,ondeMaya,paragrande

consternaçãodaminhaparte, convenceuumdoshomens amedar umbanho!Bom, foi mais um enxágue, com água fria escorrendo pela minha cara ealiviandoumpoucoaqueimaduranomeufocinho.

Mayaeeutomamosoutrohelicópteronaqueledia,depoisumavião,eentãovisitamosomoçoda salagelada,oveterinário,quecuidadosamenteexaminoumeufocinhoepassouneleumpoucodeumcremequefediahorrores,masquemedeuumasensaçãomaravilhosa.

—Oquefoiisso,ácido?—perguntouoveterinárioaMaya.—Nãosei.Elavaificarboa?

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Sentio amore apreocupaçãodela e fecheiosolhosquandoa senti afagarmeupescoço.Comoeuqueriaquehouvesseumjeitodefazê-lasaberqueadornãoeratãoruimassim.

—Vamosobservarqualquersinaldeinfecção,masnãovejomotivoparaqueelanãoserecuperedireitinho—disseeleaMaya.

Durante mais ou menos duas semanas, Maya passou o creme no meufocinho.EmmeteStellaaparentementeachavamissobemdivertidoeassistiamatudoempoleiradosnabancada.Sininho,noentanto,amavaoprocesso.Saíadeonde estivesse escondida para cheirar o creme e depois esfregava sua cabeçacontraaminha,ronronando.Quandoeumedeitava,Sininhoficavasentadaemecheirava, o minúsculo focinho indo de cima a baixo. A certa altura chegoumesmoaseenroscarameuladoparadormir.

Eraquasemaisdoqueaminhapaciênciapodiasuportar.Fiqueialiviadodemeafastardosgatosevoltaraotrabalho.QuandoMayae

euchegamosaoparque,corriparaWallyeBelinda,queadorarammever.—Ouvidizerquevocêéocãoherói,Ellie!Quegarotaboazinha!Abaneiorabo,encantadocomoselogios.Wally,então,seafastoucorrendo,

enquantoBelindaeMayapermaneceramsentadasaumamesadepiquenique.—Eaí,comovocêeWallyvãoindo?—indagouMaya.Sentei-me, impaciente — se fôssemos atrás dele agora, poderíamos

EncontrarWallyrapidinho!—Elevaimelevarparaconhecerospaisnoferiado,porisso...—respondeu

Belinda.—Queótimo!Gemicomtodaessaconversafiada.Oshumanossãocapazesdecoisasum

bocado bacanas,mas com demasiada frequência ficam simplesmente sentadosinventandopalavrasenãofazendonada.

—Quieta,Ellie—disseMaya.Comrelutânciamedeitei,fazendoquestãodeolharparaadireçãotomadaporWally.

Depoisdoquepareceuumséculo,MayaeeufinalmentepudemospartirparaEncontrar. Dei a largada feliz, sem precisar diminuir o ritmo, porque ela foicapazdemeacompanhar.

Wallyhaviaconseguidobrilhantementedisfarçarseucheiro!Erguiofocinho,buscandoalgumsinaldele.Haviapoucosodoresnoarparamedistrair,masnãodeicontadeEncontrarWally.Andeiparaafrenteeparatrás,retornandoaMayaembuscadeinstruções.Elapalmilhouaárea,equandoviuquenãofarejeicoisaalgumamelevouparaoutrolugar,ondevolteiatentar.

—Qualéoproblema,mocinha?Tudobem,Ellie?

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Por incrível que pareça, embora o vento soprasse às costas dele, acabeiouvindoWallyantesdesentirseucheiro.Elejáestavanosalcançando.Dispareiqual um foguete atémeu focinho confirmar sua identidade e então retornei aMaya,quejácomeçaraafalarcomWally,aosgritos.

—Estamostendoummaudia!—berrouela.—Éoqueparece.Nuncaavi falhar.Ei,Ellie, comovai?—disseWally.

Brincamosumpoucocomumgraveto.— Quer saber, Maya? Desvie a atenção dela de mim. Vou me afastar e

depoistornoameaproximarumpouco.Medêunsdezminutos—disseWally.—Temcerteza?—Elaestáforadeaçãoháumasduassemanas.Vamosfacilitar.Eu estava consciente da partida deWally, por mais queMaya tivesse me

entregadooossodeborrachaeagoratentassetirá-lodemim.Eupodiaouvi-loeconcluíqueiriaseesconderdenovo,oquemedeixoufeliz.Quando,finalmente,Mayagritou“Encontre!”,dispareiansioso,tomandoadireçãodopontoemqueouviraavozdele.

Subi correndo uma ladeira e parei, inseguro. Não sabia como ele haviaconseguido, mas Wally apagara seu cheiro do ar. Corri até Maya atrás deinstruções,eelamemandouseguirparaadireita.Andeiparaafrenteeparatrás,procurando.

NadadeWally.Então, Maya me direcionou para a esquerda. Novamente, nada deWally.

Dessa vez, elame fez voltar à esquerda e caminhou comigo, obrigando-me acontornarabasedaladeira.EujáestavapraticamenteemcimadeWallyquandooencontrei—elesemexeueeumepusemalerta.Nãopreciseivoltar,porqueMayaestavaaomeulado.

—Algumacoisaestáerrada,nãoé?—indagouMaya.—Oveterináriodissequeelajádeveriaestarplenamenterecuperadaaestaaltura.

—Bom...Vamos lhe darmais uma semana e ver se elamelhora—disseWally.Poralgummotivoeleestavatriste,razãopelaqualafagueicomofocinhosuamão.

Mayaeeunãotrabalhamosmuitoduranteosquinzediasqueseseguiram,equando voltamos ao trabalho,Wally continuou ame enganar, disfarçando tãobemoseucheiroqueeusóofarejavaquandoeleestavabemdiantedemim.

—Oquesignificaisso?QueElliefoidescredenciada?Significaquevocêvaiperderoemprego?—indagouAl,certanoite.

Nãosouumgrandefãdepés,masdeixeiqueAltirasseossapatosefizessecafunénaminhabarrigacomeles,poisnãocheiravamtãomalcomodehábito.

— Não, mas vou ser remanejada. Há várias semanas faço trabalho

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burocrático, mas não sou talhada para isso. Provavelmente vou requerer umatransferênciaparaapatrulha—respondeuMaya.

Sub-repticiamente,Aldeixoucairumpedacinhodecarnenotapeteàminhafrente.Esseeraoprincipalmotivoporqueeugostavademesentaraseuspésduranteojantar.LambiemsilêncioomeupresenteenquantoStellamelançavaolharesfulminantesdosofá.

—Nãomeagradaaideiadevocêtrabalharnapatrulha.Émuitoperigoso.—Albert...—suspirouMaya.—EaEllie?Erguiosolhosaoouvirmeunome,masAlnãomedeumaisnada.— Não sei. Ela não tem mais condições de trabalhar. O faro está

comprometidodemais.Vaiseraposentada.Vaimorarcomigo,nãoé,Ellie?Abanei o rabo, satisfeita com o tom cheio de afeto em que ela dissemeu

nome.Depois do jantar fomos de carro até a praia!O sol se punha eMaya eAl

estenderam um cobertor entre duas árvores e conversaram enquanto as ondasquebravamaseuspés.

—Quelindo!—disseMaya.Concluí que provavelmente eles quisessem brincar com um graveto, uma

bolaoualgodogênero,maseuestavapresoàguiaenão tinhacomoprocurarumadessascoisas.Fiqueichateadoporelesnãoteremoquefazer.

Alchamouminhaatençãoaoficarcommedo.Seucoraçãocomeçouabaterforteepudesentir seunervosismo,poiseleenxugavaasmãosnacalçaa todahora.

—Maya, quando você se mudou para cá... Passei tantos meses querendofalarcomvocê.Comovocêébonita!

Mayadeuumarisada.—Ora,Al,eunãosoubonita,tenhadó.Alguns meninos corriam à beira d’água, atirando um disco entre eles.

Observei com atenção, lembrando de Ethan e do flip idiota. Perguntei-me seEthan algum dia havia ido à praia e, em caso afirmativo, se levara o flip e oatirara às ondas, onde, esperava eu, ele tivesse sumido para nunca mais serencontrado.

Ethan.Lembreiqueelejamaisiaaalgumlugarsemmelevarjunto,salvoàescola.Euadoravaasensaçãodepropósitoquemedavaotrabalho,mashaviadias,comoesse,emqueeupensavaemEthanesentiafalta,maisdoquetudonomundo,deserumcachorroboboca.

Alcontinuavacommedoedeiumaolhadanele,curioso,desviandoosolhosdosmeninosdevidoàconstânciadessetemor.Seráquehaviaalialgumtipode

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perigo?Eunãovianenhum.Estávamos totalmente sozinhosnaquele trechodapraia.

—Vocêéamulhermaismaravilhosadomundo—disseele.—Eu...Euteamo,Maya.

Maya também começou a ficar com medo. O que estaria acontecendo?Sentei-me.

—Eutambémteamo,Al.—Seiquenãosourico.Seiquenãosoubonito...—disseAl.— Ai, meu Deus! — murmurou Maya. Seu coração também batia forte

agora.—Masvouteamarpelorestodavida,sevocêdeixar.Alsevirounocobertor,ficandodejoelhos.—Ai,meuDeus,ai,meuDeus!—disseMaya.—Quersecasarcomigo,Maya?—pediuAl.

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CAPÍTULO24

Umdia,Maya,aMamaetodososirmãoseirmãs,maisosparentessereuniramnum prédio enorme e se sentaram calados enquanto eu mostrava um novotruque, que consistia em caminhar bem devagar por uma trilha estreita entrebancos de madeira, subir alguns degraus acarpetados e ficar paradopacientemente enquantoAl tirava alguma coisa do pequenino pacote preso aomeu lombo. Todos, então, me admiraram enquanto Maya e Al conversavam.Maya usava uma roupa grandona e macia, o que me fez entender que nãoiríamosaoparquedepoisparabrincar.Isso,porém,nãofaziamal,porquetodospareciammuito satisfeitos comomeu talentopara encenaro truque.AMamachegouachorar,detãofeliz.

Depois fomosparaacasadaMamaeascriançascorreramsempararemederamboloparacomer.

Passados alguns meses, nos mudamos para uma casa diferente, com umquintal muito melhor. A casa tinha uma garagem, também, mas felizmenteninguémsugeriuqueeudormisselá.AleMayadormiamjuntos,eemboranãoseimportassemquandoeupulavanacamacomeles,francamentenãohaviaaliespaçoparaumaboanoitedesonoe,detodojeito,osgatosinsistiamemsubirtambém,oqueme levou,afinal,aaprenderamedeitarnochão juntoao ladoocupado por Maya na cama, onde eu podia me levantar e segui-la, caso elaacordassenomeiodanoiteparairaalgumlugar.

Aos poucos me convenci de que não trabalharíamos mais. Só me restouconcluirquehavíamosEncontradotodomundoqueprecisavaserEncontradoeque Wally e Belinda tinham perdido o interesse por todo o processo. Maya

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continuavaacorrer,porém,eAlàsvezesiajunto,emborafossedifícilparaeleacompanharonossoritmo.

Por essemotivo fiquei surpreso quandoMaya, animada,me acomodou nocaminhãoemelevouparadarumavolta.Pareciaqueestávamosindotrabalhar,sóqueohumordeMayamepareceudiferente,menosansioso.

Elamelevouatéumprédiograndeemedissequesetratavadeumaescola.Paramimsoouestranho,poiseutinhaaprendidoqueescolaeraumacoisaquetinha a ver como sumiço deEthan—não era um lugar,mas um estado quesignificava ficar sem o menino. Ainda assim, permaneci ao lado de Mayaquandoentramosnumasalagrandeebarulhentacheiadecrianças,todasagitadaserindo.Sentei-mecomMayaeobserveiascriançasfazeremopossívelparasemanteremquietas.LembreideEthan,deChelseaedascriançasdonossobairro,semprecheiasdeenergia.

Uma luz brilhante iluminou meus olhos. Uma mulher falou e depois asmeninas e os meninos bateram palmas, me dando um susto. Abanei o rabo,sentindoumaalegriacoletivaemanardascrianças.

Maya foi comigo até a frente da sala, e quando falou sua voz saiu alta,parecendovirtantodomeuladoquantodosfundosdasala:

—Esta éEllie, umacadeladebusca e resgate aposentada.Comoparte donossoprogramadeorientaçãocomunitária,euquisvirfalarcomvocêssobreaajudadeEllieparaencontrarcriançasperdidas,eoquevocêspodemfazerseumdiaseperderem—disseMaya.

Eudeiumbocejo,imaginandoqualafinalidadedaquilotudo.Depoisdeficarmosalisemfazernadaduranteumameiahora,Mayadesceu

comigo do palco e as crianças ficaram em fila, aproximando-se em pequenosgrupos para me afagar. Algumas mostravam um afeto evidente, outras semantinhamafastadas,meiomedrosas.Abaneioraboparatranquilizá-las,eumameninaestendeuumatímidamãozinha,quelambi.Elaarrancouamão,comumgritinhoanimado,jásemmedo.

EmboraMayaeeunãotrabalhássemosmais,fazíamosumbocadodeescola.Àsvezesascriançaserampequenas,outrasvezesnemeramcrianças,masgentevelha como o Vovô e a Vovó. Às vezes, Maya e eu íamos a lugares quecheiravamasubstânciasquímicaseviviamcheiosdegentecomdores,outristesedoentes,deitadasnacama.Ficávamosaliatéqueatristezadelesfosseembora.

Eu sempre sabiaquandoeradiade fazer escola,porqueMaya levavamaistempo para se vestir demanhã.Nos dias em que não fazíamos escola, ela sevestiarápidoeàsvezessaíacorrendoenquantoAlria.Emseguida,Altambémsaía,eeuficavaemcasacomosidiotasdosgatos.

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Emboraeunãousassemais cremeno focinho,Sininho insistia em ficarnaminhacolaeseenroscaraomeuladoquandoeucochilava.AindabemqueAlnão estava ali para ver. Ele gostavamuito demim,mas dos gatos nem tanto.SininhoseescondiadeAl,enquantoStellasóseaproximavadelequandohaviacomida por perto. Emmet, vez por outra, se achegava e com arrogância seesfregavaemAl,comosesoltarpelodegatonassuascalçasfossealgumtipodefavor.

Já fazíamosescolaháváriosanos,quandoMaya saiuda rotina.Estávamosnumlugarchamadoclasse,menordoquealgumassalasqueeujávisitaraecheiade crianças que pareciam ser da mesma idade. Essas crianças eram muitopequenas e se sentavam em cobertores no chão. Senti uma certa inveja— eucochilavaamaiorpartedotempoemcasaeaparentementenãotinhaaenergiadeantes,porissoconcluíqueseascriançasquisessemqueeumedeitassecomelasnumcobertor,porquenão?

Mayachamouàfrenteumadelas,queseaproximoutimidamente.SeunomeeraAlyssa,eelameabraçou.Quandolambiseurosto,ascriançasriram—masMayaeeununcahavíamosfeitoissoantes,chamarumaúnicacriança,eeunãosabiaaocertoqualeraaideia.

Amulhersentadaàescrivaninhagrande,aprofessora,disse:— Alyssa nunca viu a Ellie, mas se não fosse a Ellie, Alyssa não teria

nascido.Logo,todasascriançasestavamtocandoemmim,oquesemprecostumava

acontecernaescola.Àsvezes,elaserammeiobrutasenessaescolaumgarotopuxoucomforçaasminhasorelhas,masaguenteifirme.

Nofinaldaescola,ascriançascorreramparaaporta,masagarotinhaAlyssaficou,assimcomoaprofessora.Mayapareciaanimadacomalgumacoisa,porisso aguardei ansioso, até que umhomem e umamulher entraramna classe eAlyssacorreuparaeles.

OhomemeraJakob.Aproximei-meatoda.Eleseabaixouparameafagaratrásdasorelhas.—Comovaivocê,Ellie!Estáficandogrisalha!AmulherpegouAlyssanocolo.—OpapaicostumavatrabalharcomEllie,sabia?—Sabia—respondeuAlyssa.MayaabraçouJakobeamulher,quepôsAlyssadenovonochãoparaque

elapudessemeafagarumpoucomais.Sentei-meecontempleiJakob.Eleestavatãodiferentedequandoeuovira

pela última vez! A frieza que havia nele parecia ter sumido. Essa garotinha,

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Alyssa,percebi,erasuafilha,eamulher,amãedamenina.Jakobagora tinhaumafamíliaeestavafeliz.

Essaeraadiferença.Durantetodootempoemqueoconhecielenuncafoifeliz,nemumavez.

—Ficofelizporvocêpromoveresseprogramacomunitário—disseJakobaMaya.—UmcachorrocomoEllieprecisatrabalhar.

Registrei meu nome e a palavra “trabalhar”, mas não havia naquela salaqualquersinaldeumanecessidadeurgentedeEncontrar.SimplesmenteesseeraojeitodeJakob,falarotempotodoemtrabalho.

Foi muito agradável estar com Jakob e sentir o amor derramar-se dele aoolharaprópriafamília.Relaxeiocorponochão,tãofelizqueacheiqueiriatirarumcochilo.

—Estánahoradelevarvocêparacasa—disseamulheraAlyssa.—AElliepodeirtambém?—perguntouagarotinha.Todomundoriu.—Ellie— falou Jakob. Eume sentei. Ele voltou a se abaixar, segurando

com asmãos aminha cabeça.—Você é umamenina boazinha, Ellie.Muitoboazinha.

Asensaçãodassuasmãosásperasnomeupelomelevoudevoltaaotempoem que eu era filhote, quando estava aprendendo a trabalhar. Abanei o rabo,cheio de amor por esse homem. Ainda assim, sem dúvida eu vivia feliz comMaya,motivopeloqualquandotodossesepararamnocorredoreuaseguisemhesitar.

—Meninaboazinha,aEllie—murmurouMaya.—NãofoidivertidoestarcomJakob?

— Tchau, Ellie! — exclamou a pequena Alyssa, a vozinha ecoando nocorredor silencioso. Maya parou e se virou, e fiz o mesmo. Meu últimovislumbredeJakobfoidelepegandoafilhanocoloesorrindoparamim.

Naquele ano, tanto Emmet quanto Stella morreram. Maya chorou e ficoumuitotriste.Altambémseentristeceuumpouco.Acasapareciavaziasemeles,e Sininho precisava ser constantemente confortada por mim, agora que era oúnico felino residente — várias vezes ao dia eu acordava e a encontravaencostadaemmimou, algoaindamaisdesconcertante, depé,meobservando.Eunãoentendiaasualigaçãocomigoesabiaquemeupropósitonavidanãoerasubstituiramãedeumgato,masnãomeimportavamuito,chegandomesmoadeixarqueelamelambesseporqueissoadeixavafeliz.

Osmelhoresdiaseramosdechuva,emborararos—oscheirossaltavamdosolo,comoaconteciaquandoeuerafilhote.Eupodia,emgeral,sentirquandoasnuvens que se adensavam significavam umidade, o queme fazia lembrar quechoviacomassiduidadebemmaiorlánaFazenda.

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Notei que vinha pensando com muito mais frequência na Fazendaultimamente, naFazenda e emEthan.Embora aminha vida na companhia deVeloz e Mana e, depois, no pátio com Coco tivesse se transformado numalembrança distante, eu às vezes acordava sobressaltado e erguia a cabeça,achando terouvidoaportadocarrodeEthanbatere imaginandoqueele logosurgiria,chamandomeunome.

Umdia,quandonãorestavadúvidadequeiriachover,Mayaeeufazíamosescolanumaclassecomcriançassentadasemcadeirasemlugardecobertores,quandoumrelâmpagorepentinoprovocouumsaltonascriançasemuitarisada.Em seguida, todos se viraram para observar uma enorme tempestade queescureceu o céu e caiu sobre o prédio com um barulho intenso. Inspirei,lamentandoqueas janelasnãoestivessemabertasparapermitirqueosaromasentrassemnasala.

—Acalmem-se,crianças—disseaprofessora.Aportadasaladeaulaseabriurepentinamenteeumcasalentrou,molhado

dechuva.—GeoffreyHickssumiu—disseohomem.Percebiatensãoemsuavoze

observeiosdoiscomatenção.Aafliçãodemonstradaporambosmeerafamiliar,umaemoçãoqueeu jáencontraraváriasvezesquando trabalhava.—Eleédaprimeirasérie—disseohomemaMaya.

Todasascriançascomeçaramafalaraomesmotempo.—Silêncio!—repreendeuaprofessora.—Elesestavambrincandodeesconde-escondequandoachuvacomeçou—

explicouamulher.—Otemporalsurgiudonada.Numminutoestavatudobem,no outro...—Ela tapou os olhos com asmãos para esconder as lágrimas.—Quandomandei todosentrarem,Geoffreynãoestavacomosoutros.Eraa suavezdeseesconder.

—Seráqueocachorro...—indagouohomem.Mayaolhouparamimemeempertiguei.—Émelhorligarparaosbombeiros—disseela.—Ellienãotrabalhacom

buscaeresgateháseteouoitoanos.— A chuva não vai apagar o cheiro? Está caindo um verdadeiro toró—

argumentouamulher.—Tenhomedodequandooutrocachorrochegar...Mayamordeuolábio.—Certamenteajudaremosaprocurar,masvocêsprecisamchamarosocorro.

Ondeachamqueelepodeterido?—Tem ummato atrás do playground. É separado por uma cerca,mas as

criançasconseguemlevantá-la—respondeuohomem.—Estaéamochiladele.Seráqueajuda?—indagouamulher,estendendo

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umabolsadelona.SentionervosismodeMayaenquantoatravessávamoscorrendoocorredor.

Paramosàportadaescola,eumasensaçãodederrotaseapossoudela.—Olha essa chuva!—murmurouMaya.— Tudo bem, Ellie?— Ela se

abaixouemeencarou:—Vocêestápronta,garota?Tome,cheireisto.Dei uma profunda cheirada na mochila. Dava para farejar manteiga de

amendoim,chocolate,lápisdecoreumapessoa.—Geoffrey,Geoffrey—disseMaya.—Pronta,Ellie?Mayaabriuaportaeachuvainvadiuocorredor.—Encontre!Deumsalto,mergulheinachuva.Àminhafrenteviumagrandeextensãode

cimentomolhadoeandeiparaa frenteepara trás,minhasunhasarranhandoochão. Dava para sentir de leve o cheiro de muitas crianças, embora a chuvacomeçasse a apagar os odores. Maya estava do lado de fora e se afastava,correndo,daescola.

—Aqui,Ellie,Encontreaqui!Refizemosopercursoatéacerca:nada.Mayaparecia frustradae temerosa

enquantopatinhavanosolomolhado.Descobrimosumtrechodacercaquehaviasidoempurrado,masnadaalisugeriaumalerta.

—Muitobem,seeleestiverali,vocêvaifarejá-lo,garota.Certo?Geoffrey!—gritouMaya.—Geoffrey,saiadaí.Estátudobem!

Voltamos na direção da escola grudados à cerca, atentos ao outro lado dopátio.Umcarrodepolíciaestacionou,as luzesdacapotapiscando,eMayaseapressouairfalarcomomotorista.

Continuei a tentar Encontrar Geoffrey. Embora não farejasse praticamentecoisaalguma,eusabiaquesemeconcentrasse,comohaviasidotreinadoafazer,semeconcentrassecomvontade,seriacapazdesepararocheirodamochiladetodososoutros.Bastavanãodesistir...

Pronto. Achei algo. Virei a cabeça, animado. Havia um pequeno vão nacerca, dois postes entre os quais nenhum adulto conseguiria passar,mas davapara farejar Geoffrey — ele se espremera para sair por ali, tinha saído doplayground.

CorridevoltaatéMayaeaalertei.Elafalavacomopolicialenãonotou,aprincípio,masdepoissevirouparamim,emchoque:

—Ellie?Mostre!Corremosdebaixodachuvaatéosdoispostes.Mayaespreitoupeloburaco

nacerca.—Venha!—gritouela,correndoaolongodacercaatéafrentedaescola.

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—Elesaiudoterrenodaescola!Estádooutroladodacerca!—gritouparaopolicial,quecorreuatrásdenós.

Do outro lado da cerca pude farejar junto aos dois postes e dali rastrear adireçãotomadaporele.Sim,eletinhafeitoessecaminho!

Repentinamente, o cheiro se dissipou. Apenas dois passos dados porGeoffrey,eparamimnemsinaldele,apesardaintensidadedoodorduranteumsegundo.

—Oquefoi?—indagouopolicial.—Elepodeterentradonumcarro—respondeuMaya.Opolicialrosnou.Baixeiofocinhoefoientãoquesentidenovo.Mudeidedireçãoeocheiro

seintensificou.Narua,aáguacaíasempararjuntoaomeio-fio,borbulhandonaentrada de um bueiro. Enfiei o focinho no buraco, ignorando os cheiroscarregados pela água que escorria para dentro do bueiro, concentrado. Sequisesse, eu poderiame espremer por aquela fenda e entrar no bueiro onde achuva penetrava ruidosamente, mas não era preciso — dava para farejarGeoffreyagora.Eleestavabemdiantedemim,aindaqueeunãopudessevê-lonaescuridão.

ErguiosolhosparaMaya.—MeuDeus,eleestáalidentro,dentrodobueiro!—gritouMaya.Opolicialacendeuumalanternaevirouseufachoparaointeriordobueiro.

Todosvimosaomesmotempoorostopálidodeummenininhoassustado.

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CAPÍTULO25

—Geoffrey!Tudobem,vamos tirarvocêdaí!—gritouMayaparaomenino.Indiferenteàágua,elaseajoelhounarua,esforçando-separaalcançarogaroto.Aáguaoafastaradapequenaaberturaeeleagoraseagarravaàparedeoposta,opavoremanandodelecomtamanhaintensidadequechegavaacegar.Logoatrásde Geoffrey, um túnel escuro sugava a água da chuva com um estrondo.Gemendo,Maya esticou-seomaisquepôde,masnão foi capazde alcançar omenino.

—Comofoiqueeleentrouaí?—gritouopolicial.—É um bocado apertado. Ele deve ter se espremido para passar antes de

começarachover.Nossa,quetoró!—AvozdeMayaesbanjavafrustração.Haviaumachapacirculardeferrosobreoconcreto,logoacimadacabeçade

Geoffrey.Opolicialtentouremovê-lacomosdedos,resmungando.—Precisodeumachavederoda!—berrou.EntregandoalanternaaMaya,

elesaiucorrendo,ospéspatinhandonaágua.Geoffrey tremia de frio e seus olhos pareciamvidrados quando focavamo

fachodeluzdalanternadeMaya.Ocapuzdafinacapinhadechuvaamarelaquelhecobriaacabeçadavapoucaproteçãocontraofrio.

—Aguentefirme,viu,Geoffrey?Aguentefirme,vamostirarvocêdaí,certo?Geoffreynãoesboçouqualquerreação.Asirenedocarrodepolíciafoiligadaeemmenosdeumminutoeledobrou

aesquina,derrapandode leveaoparar juntodenós.Opolicialsaltouecorreuparaamaladocarro.

—Aequipederesgateestáacaminho!—gritouele.

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—Não há tempo— gritouMaya de volta.—Ele está escorregando paradentrodaágua.

Opolicialseafastoudamaladocarrocomumpedaçodeferrocurvo.—Geoffrey,aguentefirme,nãodesista!—gritouMaya.O policial começou a mexer na placa circular com a ferramenta. Quando

Mayacorreuparavê-lotrabalhar,fuijunto,razãopelaqualvioborrifodelamacair no rosto de Geoffrey quando a placa de ferro foi deslocada. O meninoergueuamãoparalimparalamadorostoe,aofazerisso,sesoltoudaparedeecaiu dentro d’água. Num segundo ele nos olhava, no outro, foi varrido paradentrodotúnel.

—Geoffrey!—gritouMaya.EucontinuavaconcentradoemEncontrar,porissonãohesitei,mergulhando

decabeçaatrásdele.Nominutoemquebatinaágua,aforçadelamecarregouparaotúnelenadeinessadireção.

Estavaescurono túnel,eenquantoeubalançavaparacimaeparabaixoaosabordacorrentezaminhacabeçabateunocimentoacimademim.Ignoreiporcompleto o fato, concentrando-me emGeoffrey, que seguia àminha frente naescuridão, lutando silenciosamente pela própria vida. Seu cheiro era débil,porémpresente,sumindoereaparecendonaságuasfatais.

Sem aviso, o solo cedeu debaixo demim, e, namais completa escuridão,deslizeiesacudi—otúnelmenorsejuntaraaummuitomaior,maisprofundo,com sons mais altos. Foquei no cheiro de Geoffrey, nadando com toda adisposição. Embora não pudesse vê-lo, ele estava a apenas alguns metrosadiante.

Umsegundoantesdeafundar,vioqueiriaacontecer—quantasvezesEthannãofizeraamesmagracinhacomigo,deesperaratéqueeuchegassepertoparaentãomergulharfundonolago?Ecomoantes,damesmaformacomoeusempresoube onde encontrar o menino nas profundezas escuras, tive, então, umapercepção clara de Geoffrey, logo abaixo de mim. Mergulhei, no limite dasforças,abocaaberta,cegoesovadopelacorrentezadaágua.Então,agarreicomabocaocapuzdogaroto.Juntos,subimosàtona.

Nãohaviacomotomarqualquerdireção,salvoaquelaparaondenoslevavaaágua.Concentrei-meemmanteracabeçadeGeoffreyforadaágua,puxandoocapuz.Omeninoestavavivo,mashaviaparadodechutar.

Umaluzinhafracalánafrenterefletiu-senasparedesdecimentomolhadas— o túnel em que estávamos era quadrado, tinha uns dois metros e era semsaída.ComosalvarGeoffrey?

Aluzficoumaisforteeentãomeusouvidosseencheramcomumfortetroar,que ecoouna nossa direção.A corrente aparentemente se tornaramais rápida.

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ContinueisegurandofirmeocapuzdeGeoffrey,sentindoquealgoestavaprestesaacontecer.

Aclaridadedodiaexplodiusobrenósquandodescemosrolandoumarampade cimento, aterrissando ruidosamente em um rio com forte correnteza. Luteiparanosmanteràtonanaquelaáguarevolta,pararesistiraoassaltodasmarolas.Asmargensdorioeramrevestidasdecimento,masquandopuxeiGeoffreyparaamaispróxima,acorrentezamerechaçou,tentandonossugardevolta.Exausto,com amandíbula e o pescoço doendo por causa do esforço, arrasteiGeoffreyparaamargem,nadandoomaisrápidopossível.

Luzes piscantes iluminaram meus olhos, e vi homens de capas à minhafrente,correndoemdireçãoàmargem.Eupassariaporeles, levadopelaágua,antesqueconseguissetirarGeoffreydorio.

Dois desses homens mergulharam. Estavam amarrados um ao outro, e acordaseesticavaatéosdemais,que,porsuavez, tambémseescoravam.Comáguana altura dos quadris, os dois esticaramos braços para nós, e empregueitodaaminhaenergianatentativadechegaratéeles.

—Peguei!—gritouumdoshomens,quandoGeoffreyeeu lhedemosumencontrão.Eleagarrouaminhacoleira,enquantoosoutroserguiamGeoffreynoar.Acordaficouesticada,fomospuxadosdaáguaparaamargem.

Umavezem terra,ohomemmesoltoue seajoelhouao ladodeGeoffrey.Apertou o corpinho do menino, que vomitou um esguicho de água marrom,tossindo e chorando. Aproximei-me dele mancando, e seu medo, quando seesvaiu,levoujuntoomeu.Tudoiadarcerto.

OshomensrasgaramaroupadeGeoffreyparalivrá-lodelaeoenrolaramemcobertores.

—Vocêvaificarbom,garoto,vaificarbom.Essecachorroéseu?Elesalvousuavida.

Geoffreynãorespondeu,masmeolhouporuminstantenosolhos.—Vamos!—gritouumdoshomens,etodossaíramcorrendoencostaacima

carregandoGeoffreyparaumcaminhão,quepartiucomasireneligada.Eu me deitei na lama. Minhas patas tremiam violentamente e, como

Geoffrey,tambémvomitei,umacólicarasgandominhasentranhas.Euestavatãofraco que quase não conseguia enxergar. A chuva fria me açoitava, e fiqueisimplesmentedeitadoali.

Umcarrodepolíciaestacionou,desligandoasirene.Ouviasportasbaterem.—Ellie!—gritouMaya,darua.Erguiacabeça,cansadodemaisparasequer

abanaro rabo.Mayacorreu,histérica,paraamargem,enxugandoas lágrimas.Estavaensopada,maspudesentirseucaloreafetoquandomeabraçoujuntoaopeito.

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—Vocêéumameninaboazinha,Ellie.VocêsalvouGeoffrey.Comovocêéboazinha!Ai,meuDeus,penseiquetivesseperdidovocê,Ellie.

Passei a noite no veterinário, e ao longo de vários diasmal conseguiamemexerdetãodoído.Então,Mayaeeufizemosescola,dessavezsócomadultosda idade dela. Sentamos enquanto luzes fortes iluminavamnossos olhos e umhomemfalavamuitoalto.Depoiseleseaproximouebotouumacoleiraidiotanomeu pescoço e luzes ainda mais brilhantes, parecidas com relâmpagossilenciosos, espocaram por todo lado à nossa volta, igual ao que aconteceucomigo e com aMãe depois do incêndio quemachucou a perna de Ethan.OhomemtambémprendeualgonouniformedeMaya,e todosaplaudiram.SentiorgulhoeamorvindodeMaya,equandoelasussurrouparamim,mechamandode“meninaboazinha”,tambémmesentiorgulhoso.

Nãomuitodepoisdisso,umclimanovose instalou láemcasa.MayaeAlestavam animados e nervosos, passando um bocado de tempo conversando àmesa.

—Seformenino,porquenãopodesechamarAlbert?—perguntouAl.—Éumnomebacana.

—Éumnomeótimo,meubem,mascomoiremoschamá-lo?VocêéomeuAlbert,omeuAl.

—Podemoschamá-lodeBert.—Ora,meubem.—Então,quenomevamosdaraele?Asuafamíliatemtantagente,quejá

usou todos os nomes que existem. Não podemos chamá-lo de Carlos, Diego,Francisco,Ricardo...

—QuetalAngel?—Angel?VocêquerqueomeufilhosechameAngel?Estouachandoque

talvez não seja uma boa ideia deixar o nome dessa criança a cargo de umamulherquebatizouagatade“Sininho”.

Agata,quedormiaencostadaemmim,sequerlevantouacabeçaaoouviropróprio nome. Gatos são assim. Não se consegue chamar a atenção deles, amenosqueelesqueiramseexibir.

Mayariu:—QuetalCharles?—Charley?Nem pensar.O nome domeu primeiro patrão eraCharley—

discordouAl.—Anthony?—VocênãotemumprimochamadoAnthony?—OnomedeleéAntonio—corrigiuMaya.—Bom,eunãogostodele.Temumbigoderidículo.

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Maya desandou a rir. Bati com o rabo no chão uma vez, aprovando ahilaridade.

—George?—Não.—Raul?—Não.—Jeremy?—Claroquenão.—Ethan?Deiumpulo,eAleMayameolharam,surpresos.—AchoqueaEllieaprova—disseAl.Inclineiacabeça,desconfiado.Sininhomelançouumolharzangado.Fuiaté

aporta,erguimeufocinho.—Oquefoi,Ellie?—perguntouMaya.Não havia sinal domenino, e eu já não estavamais seguro de ter ouvido

direito.Doladodeforahaviacriançaspedalandobicicletas,masnenhumadelaseraEthan.Euachavaoquê?QueEthan,comoJakob, ressurgiriadeumahorapara outra na minha vida? Eu sabia, instintivamente, que algo assim jamaisaconteceria com um cachorro. Por outro lado,Maya havia dito o nome dele,não?Porquefariaisso?

Aproximei-medeMayaparaque elame tranquilizasse, depois voltei amedeitar com um suspiro. Sininho veio se aninhar junto a mim e evitei, meioenvergonhado,encararoolharcompreensivodeAl.

Nãodemorouparaquetivéssemosumnovoresidenteemcasa:Gabriella,quecheiravaaleiteazedoepareciaaindamenosútildoqueagata.Quandotrouxeacriança para casa, Maya teve o cuidado de segurar Gabriella para que eu acheirasse, mas não fiquei muito impressionado. Daquele momento em diante,Maya se levantava com frequência à noite e eu ia atrás dela, que apertavaGabriella junto ao peito, enquanto eu ficava deitado a seus pés. O amorincondicional que fluía deMaya nessesmomentos sempreme embalava paracairnumsonoprofundoesereno.

Asdoresnosmeusossos eramminhas conhecidas.Eu sentiraomesmonaépoca em queme chamava Bailey e passava boa parte do tempo ajudando oVovô a executar tarefas. Os sons ficaram abafados, o que também me erafamiliar.

Perguntei-meseMayasabiaque logochegariaodiaemqueeunãoestariamais com eles. Era perfeitamente racional concluir que eu ia morrer, comomorreram Emmet e Stella, porque foi isso que aconteceu. O mesmo se deuquandofuiTobyequandofuiBailey.

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Enquanto euponderava tudo isso, deitado sobreum retalhode sol, percebique havia passado aminha vida sendo um cachorro bonzinho.O que aprendicom aminha primeiramãeme levou a Ethan e o que aprendi comEthanmepossibilitoumergulharnaquelaáguaescuraeencontrarGeoffrey.Ao longodopercurso,JakobmeensinouaEncontrareMostrar,eajudeiasalvarmuitagente.

Tinhaqueserporissoque,quandodeixeiEthan,renascicomoEllie—tudoque eu havia feito, tudo que eu havia aprendido, tinha como destino metransformar num cachorro bonzinho que salvava vidas. Não era tão divertidoquantoserumcachorroboboca,masagoraeusabiaporqueessascriaturas,essessereshumanos,tantomefascinaramdesdeomomentoemqueosvi—porquemeu destino estava indissoluvelmente ligado ao deles, sobretudo no caso deEthan,ovínculodetodaumavida.

Agora,cumpridoomeupropósito,eu tinhacertezadeestarno fim,dequenãohaveriamaisrenascimento,eissomedeixavaempaz.Pormaismaravilhosoque fosse ser um filhote, eu não iria querer partilhar essa maravilha comninguémalémdomenino.MayaeAlcontavamcomapequenaGabriellaparadistraí-los, o que fazia demim uma espécie demembro acessório da família,exceto,éclaro,paraSininho,quemeconsideravaafamília.

Perguntei-meporuminstanteseosgatostambémvoltavamdepoisdamorte,maslogodescarteiaideiaporque,namedidadoquepudeobservardurantetodoessetempo,osgatosnãotinhamqualquerpropósito.

Constrangedoramente,eucomeçaraaterproblemasparamerefrearotemposuficiente para fazer minhas necessidades do lado de fora, e, com umafrequênciacadavezmaior, sujavaochãodentrodecasa.Piorainda,Gabriellatinhaomesmoproblema,portantoalixeiramuitasvezescontinhaosdejetosdenósdois.

Almelevouparaváriospasseiosdecarronobancodianteiroafimdevisitaroveterinário,quemeapalpavatodinhoenquantoeugemiadeprazer.

—Vocêéumameninaboazinha,sóestáficandovelha—diziaAl.Eu abanava o rabo ao ouvir o elogio. Maya andava muito ocupada com

Gabriella, razão pela qual quase sempre éramos só Al e eu, o que para mimestavaótimo.Davaparasentirseuafetocarinhosotodavezqueelemebotavanocoloparameacomodarnocarroparaumpasseio.

Um dia, Al precisou me levar ao pátio para que eu fizesse as minhasnecessidades, e senti sua tristeza aflorar, aguda, no momento em que eleentendeuosignificadodisso.Lambiseurostoparaconsolá-loepusacabeçaemseucoloquandoelesesentounochãoparachorar.

Quandochegouemcasa,Mayalevouobebêparaforaetodosnossentamos

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juntos.—Vocêtemsidoumameninatãoboazinha,Ellie—viviarepetindoMaya.

—Éumacadela-heroína.Salvouvidas.Salvouaquelegarotinho,Geoffrey.Uma vizinha apareceu para apanhar Gabriella. Maya inclinou-se sobre a

filha,comadoração,sussurrandoalgoemseuouvido.—Tchau,Ellie—disseGabriella,estendendoamão,que lambi,quandoa

vizinhaparou.—Dátchau—instruiuavizinha.—Tchau—repetiuGabriella.AmoçaentroucomGabriellanacasa.—Issoétãodifícil!—exclamouMayacomumsuspiro.—Eusei.Sevocêquiser,eucuidodetudo,Maya—sugeriuAl.—Não,não.PrecisoficaraoladodeEllie.Almepegounocolocomcuidadoemelevouatéocarro.Mayasentou-seno

bancotraseirocomigo.Eusabiaaonde íamos.Gemendocomtodasasminhasdores,desmonteino

banco, com a cabeça no colo deMaya. Eu sabia para onde nos dirigíamos eesperavaansiosopelapazqueissometraria.Mayameafagouacabeçaefecheiosolhos.Penseicomigosehaveriaalgumacoisaqueeugostariade fazerumaúltima vez—Encontrar?Nadar nomar? Pôr a cabeça para fora da janela docarro? Todas essas coisas eram maravilhosas. Eu fizera todas elas, porém, eestavadebomtamanho.

Abanei o rabo quando me deitaram na conhecida mesa de aço. Mayachorava,murmurando“Vocêéumameninaboazinha”,vezapósvez,eforamassuas palavras e a sensação do seu amor que levei comigo quando senti aespetadelanomeupescoçoedepoisfuicarregadopelaságuasmaravilhosamentecálidasdooceano.

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CAPÍTULO26

Minhanovamãe tinhaumacaragrande epreta e sua língua era cor-de-rosa equente. Ergui um olhar entorpecido para ela na primeira vez em que me deicontadequeestavaacontecendodenovo—nãopareciapossível,nãodepoisdetersidoEllie.

Eram oito os meus irmãos, e todos pretos, todos saudáveis e cheios deenergiaparabrincar.Namaiorpartedotempo,porém,eupreferiavagarsozinhoeponderarosignificadodevoltar,maisumavez,aserfilhote.

Não fazia sentido.Euentendiaque jamais teriaencontradoEthanse,comoToby,nãotivesseaprendidoaabrirumportão,enoperíodoemquevivicomoanimalde ruanão tivessedescobertoquenadahaviaa temerdooutro ladodacerca. Com Ethan, aprendi sobre o amor e o companheirismo e senti estarrealmente cumprindo omeu propósito,meramente por acompanhá-lo em suasaventuras diárias. Ethan, porém, também me ensinou como fazer resgates nolago,razãopelaqual,quandofuiEllieeaprendiaEncontrareMostrar,conseguisalvarogarotinhopresonotúneldeágua.EunãoteriasidotãobomnotrabalhosemaexperiênciaquevivicomocachorrodeEthan—adistânciafriadeJakobseriaincompreensíveledolorosa.

Mas... e agora? O que poderia acontecer agora para justificar meurenascimentocomofilhote?

Estávamosnumcanilbem-administrado,comchãodecimento,eduasvezesao dia um homem aparecia para limpá-lo e nos levar para um pátio a fim decorrernagrama.Outraspessoas—homensemulheres—tambémiamnosver,erguendo-nosdochãoparaexaminarnossaspatas,eemboraeusentissealegria

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por parte delas, nenhuma irradiava aquele amor especial que me dedicaramEthan,MayaeAl.

—Parabéns,quebelaninhada,Coronel—disseumhomem,meerguendonoarenquantofalava.—Osenhorvaifaturaralto.

— Estou preocupado com esse aí, no seu colo— retrucou um outro. Elecheiravaafumaçaeareaçãodaminhanovamãenomomentodasuaentradanocanilmefezsaberquesetratavadoseudono.—Nãoparecetermuitaenergia.

—Oveterináriojáoexaminou?—Ohomemquemeseguravamevirouecorreuospolegaressobmeuslábiosparaexporosdentes.Passivamente,permitiqueofizesse.Tudoqueeuqueriaeraserdeixadoempaz.

—Nãoparecehavernadadeerrado.Eleapenasandasozinhoedormeumbocado—oqueatendiaporCoronelrespondeu.

—Bem,nãopodemsertodoscampeões—observouoprimeiro,mepondonochão.

OCoronelfezumaexpressãoestranhaenquantoeumeafastavadevagar.Eunemdesconfiavaoquepodiaterfeitodeerrado,massupusquenãoficariaporalimuitotempo.Seéqueaprenderaalgocomaexperiência,eraqueosdonosdefilhotesgostavamdeles,masnãoobastanteparaosmanteremporperto.

Mas errei. Algumas semanas depois, a maioria dos meus irmãos e irmãshavia sido levada, restandoapenas eu emaisdois.Senti uma resignação tristeporpartedaminhanovamãe,quepararadeamamentar,masqueaindabaixavao focinho afetuosamente quando qualquer um de nós se aproximava paralamber-lheacara.Aparentemente,elajápassaraporissoantes.

Aolongodosváriosdiasqueseseguiram,apareceugenteparanosvisitarefazer jogos,como,porexemplo,nosenfiaremfronhas,balançarchavesdiantedonossofocinhoeatirarumabolaparaverqualseriaanossareação.Nadadissomepareciaumcomportamentomuito racionalpara se ter juntoa filhotes,mastodosdavamaimpressãodelevaracoisatodamuitoasério.

—Édinheirodemaisparaumcãotãopequeno—observouumhomemparaoCoronel.

— O pai foi duas vezes campeão nacional. A mãe concorreu seis anosseguidos,venceuduasvezes.Achoqueoanimalvaleoseudinheiro—disseoCoronel.

Osdoisapertaram-seasmãose,comisso,ficaramapenasminhamãeeumairmã que chamei deAtrevida, porque vivia pulando emmim como se eu nãopudesseanteciparseugesto.Comaperdadooutroirmão,Atrevidapassouameperseguirsemdartréguaemevilutandocomelaemlegítimadefesa.OCoronelreparounomeucomportamentomaisativoesentiumaespéciedealíviodapartedele.

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Então,Atrevidafoilevadaemboraporumamulherquecheiravaacavaloseeufiqueitotalmentesó,oque,paraserfranco,meagradoumuito.

—Achoquevouprecisarabaixaropreço—comentouoCoronelalgunsdiasdepois.—Éumapena.

Nem tentei erguer a cabeça ou correr até ele para convencê-lo a não ficardecepcionadocomigo,oque,aparentemente,eraocaso.

Na verdade, eu estava nostálgico. Simplesmente não conseguia entender oque estava acontecendo comigo, por que,mais uma vez, eu era um filhote.Aideiadepassarporumtreinamento,deaprenderaEncontrarcomoutrapessoaque não Maya ou Jakob, de viver uma outra vida, simplesmente meacabrunhava.Eumesentiaumcachorromalvado.

Nãocorriaatéacercaparaverasvisitasquandoelasapareciam,nemmesmoquando traziamcrianças—eunãoqueriapassarpor issodenovo.Ethanfoiaúnicacriançaquemedespertouinteresse.

—Oquehádeerradocomele?Seráqueestádoente?—ouviumhomemperguntarcertavez.

—Não.Équeeleprefereficarsozinho—respondeuoCoronel.Ohomementrounocanilemepegounocolo.Tinhagrandesolhosazuise

meolhoucomcarinho.—Você é um sujeito sentimental, certo?— perguntou-me ele. Senti uma

enormeansiedadedasuapartee,seilácomo,entendiquedeixariaocanilcomelenessemesmodia.Meaproximeidaminhanovamãeelhedeiumalambidade despedida na cara. Ela também pareceu entender, e me cutucou emretribuição.

—Eulhedouduzentosecinquenta—disseohomemdosolhosazuis.SentiumasurpresaagudanoCoronel.

—Oquê?Meusenhor,alinhagemdessecachorro...—Seidisso,lioanúncio.Olheaqui,éumpresenteparaaminhanamorada.

Elanãovaicaçarcomele,sóquerumcachorrinho.Vocêdissequeentraríamosnumacordo.Agora,vamoscombinar:sevocêtemumfilhotedetrêsmeseseseunegócio é criação de cães, existe algum motivo para ninguém ter queridocomprareste.Achoquevocêtambémnãoquerocoitado.Possoadotardegraçaumlabradornainternet,masesteaquitemdocumentaçãoepedigree.Chegoatéduzentosecinquentapaus.Temmaisalguémnafilaparacomprarestecachorro?Nãocreio.

Poucodepois,ohomemjáestavameacomodandonobancodianteirodoseucarro. Apertou a mão do Coronel, que sequer se deu ao trabalho de umapalmadinha de adeus na minha cabeça. O homem entregou ao Coronel um

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pequenopedaçodepapel.—Sealgumdiaquisercomprarumautomóvelde luxoporumbompreço,

meligue—disseele,satisfeito.Avalieimeu novo dono.Apreciei o fato de eleme permitir ser um cão de

banco dianteiro, mas quando olhou para mim não senti nada semelhante aafeiçãodasuaparte,apenasumatotalindiferença.

Logodescobriporquê:eunãomorariacomohomem,cujonome,afinal,eraDerek. Meu novo lar seria o de uma mulher chamada Wendi, que soltougritinhosedeupulinhosquandoDerekchegouemcasacomigo.WendieDerekimediatamentecomeçaramabrincardeluta,eeudecidiexploraroapartamentoemqueagorairiamorar.Haviasapatoseroupasespalhadosportodolado,bemcomocaixascomcomidasecagrudadanapartededentro,esquecidasemcimadeumamesinhadefronteaosofá.Deixei-astinindodelimpas.

DerektambémnãodemonstrouqualquerafeiçãoespecialporWendi,emboraaabraçassenahoradesairportaafora.TodavezqueAlsaíadecasa,abrevedemonstraçãodoamordeleporMayasempremefaziaabanarorabo,masessehomemnãosepareciaemnadacomAl.

OamordeWendipormimfoiinstantâneo,emboraconfuso,umamisturadeemoçõesquenãoentendi.Aolongodosváriosdiasseguintes,elamechamoudeUrsinho Puff, Google, Bisbilhoteiro, Leno e Pistache. Depois voltei a serUrsinhoPuff,embora,logoemseguida,elatenhaoptadoapenasporUrsoesuasvariações:Urso-Surso,Urso-Russo,UrsoDoce,UrsoFofoeUrsoBaby.Elameapertava e me beijava o tempo todo, como se jamais bastasse, até ouvir otelefonetocaremelargarnochãoparairatender.

Toda manhã, Wendi remexia seus pertences, tomada pelo mais absolutopânico, dizendo: “Estou atrasada! Estou atrasada!” Saía batendo a porta e euficavasozinhoodiatodo,semnadinhaparafazer.

Elaforravaochãocomjornais,maseunãoconseguiamelembrarseeraparafazerxixiemcimadelesoucuidarparanãomolhá-los,porissofaziaumpoucodecadacoisa.Meusdentesdoíamtantoqueaminhabocaseenchiad’água,porissoeuacabavaroendoalgunssapatos,oqueprovocavaumasaraivadadegritosdeWendiaodescobrir.Àsvezeselaseesqueciademedardecomerenãomerestavaescolhasenãomergulharnalixeiraatrásdealgo.Issotambémprovocavagritaria.

Pelo que eu podia ver, a vida comWendi não tinha propósito algum.Nãotreinávamos e sequer caminhávamos muito juntos — ela abria a porta e medeixavacorrer láforaànoite,masdificilmenteduranteodia,emesmoànoitepareciaestranhamentefurtiva,amedrontada,comoseestivéssemosfazendoalgoerrado. Tornei-me tão frustrado, tão cheio de energia represada, que acabava

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latindo,àsvezesdurantehoras,minhavozricocheteandonasparedesevoltandoparamim.

Umdia,houveumabatidafortenaporta.—Urso,venhacá!—sibilouWendi,antesdemetrancarnoquarto.Mesmo

lá dentro, pude tranquilamente ouvir um homem falando com ela. Ele pareciafurioso.

—Éproibidotercachorro!Estáescritonoseucontrato!Inclineiacabeçaaoouvirapalavra“cachorro”,imaginandosepoderiasereu

acausada raivadohomem.Queeu soubesse,nãohavia feitonadadeerrado,mas todas as regras eram diferentes nessa casa de doidos, então quem podiagarantir?

Navezseguinteemquesaiuparatrabalhar,Wendirompeuopadrão.Elamechamouemesentounochão.Pareciatotalmenteindiferenteaofatodeeusabermesentarmediantecomandosemterjamaisaprendido.

—Olhaaqui,Urso-Surso,vocênãopodelatirquandoeunãoestiveremcasa,viu?Vouterproblemascomosvizinhos.Latir,não,certo?

Davaparaperceberumacerta tristezanas fímbriasdos seus sentimentos, emepergunteiqualseriaacausadisso.Talvezelatambémpassasseodiadesacocheio.Porquenãomelevavajunto?Adoropasseiosdecarro!Latidurantetodaatardeparaliberaraenergiareprimida,masnãoroínenhumsapato.

Umou dois dias depois,Wendi abriu a porta comuma dasmãos e puxoucomaoutraumpedaçodepapel presodo ladode fora.Corri para ela, comabexigaexplodindo,maselanãomedeixousair.Emvezdisso,olhouopapelecomeçouagritar,furiosa.Nãotiveescolhasenãosujarochãodacozinhaeleveiuma palmada no traseiro com a mão espalmada. Em seguida,Wendi abriu aporta.

—Olha,tantofazvocêsair,todomundojásabemesmoquevocêestáaqui— resmungou. Terminei meu serviço no pátio. Lamentei ter feito sujeira nacozinha,mas,simplesmente,nãomerestaraalternativa.

Nodiaseguinte,Wendidormiuatétardeedepoisentramosnocarroedemosumpasseiomuitocomprido.Fuicomocãodebancotraseiroporcausadetodasascoisasempilhadasnobancoda frente,masela fezquestãodeabrir a janelapara que eu pusesse o focinho para fora. Estacionamos na entrada de umacasinhamodesta, onde havia vários carros— dava para perceber, pelo cheirodeles,quehámuitotempoestavamparados.Erguiapernacontraumpneu.

Umamulhermaisvelhaabriuaporta.—Oi,mãe—saudouWendi.—Éesse?Queenorme!Vocêdissequeerafilhote.—Bom,euboteineleonomedeUrso.Porqueserá?

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—Issonãovaidarcerto.—Mãe, não tenho escolha! Recebi uma notificação de despejo!— gritou

Wendi,zangada.—Ora,oquevocêachouqueiaacontecer?—FoiumpresentedoDerek!Oqueeuiafazer,devolver?—Porqueelelhedeuumcachorro,sabendoqueéproibidoteranimaisno

apartamento?—Porqueeudissequequeriaqueelemedesseumcachorro,estábem,mãe?

Estásatisfeita?Eudissequequeriaumcachorro,meuDeus!Os sentimentos que as duas mulheres nutriam uma pela outra eram tão

complexos que não consegui identificá-los. Wendi e eu passamos a noite nacasinha modesta, ambos meio amedrontados. Um homem chamado Victorchegouemcasaquandojáestavaescuro,earaivadeleeratamanhaquetornavatudo perigoso e insano. EnquantoWendi e eu dormíamos numa cama estreitanumquartoatulhado,Victorgritavanoutrapartedacasa.

—Nãoqueroumcachorroaqui!—Ora,acasaéminhaefaçooquequero!—Oqueagentevaifazercomumcachorro?—Queperguntaidiota.Oquesefazcomumcachorro?—Calaaboca,Lisa,calaaboca.—Vai dar tudo certo,Urso-Murso. Eu não deixaria que nada acontecesse

comvocê—sussurrouWendinomeuouvido.Elaestavatãotristequelambisuamãoparaconsolá-la,massóconseguifazê-lachorar.

Namanhã seguinte, as duasmulheres conversaramparadas junto ao carro.Cheirei o canto da porta, querendo que me deixassem entrar no automóvel.QuantomaiscedoWendieeusaíssemosdesselugar,melhor.

—MeuDeus,mãe,comoéquevocêaguentaessecara?—disseWendi.—Elenãoédospiores.Émelhorqueoseupai.—Ah,nãocomece.As duas ficaram caladas durante umminuto.Dei uma cheirada no ar, que

levavacomeleafragrânciaácidadolixoempilhadojuntoàcasa,fragrânciaestaque,honestamente,eradeliciosa.Eunãomeincomodariaderemexeraliumdia.

— Bom, me ligue quando chegar em casa— disse, finalmente, a mulhermaisvelha.

—Podedeixar,mãe.CuidedireitinhodoUrso.—Está bem.—Amulher pôs um cigarro na boca e acendeu, soltando a

fumaçacomdecisão.Wendiajoelhou-seameulado.Suatristezaeratãograndeefamiliarquevi

logooquemeaguardava.Elaacariciouminhacaraemedissequeeueraum

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cachorrobonzinho,abrindodepoisaportadocarroeentrando,sempermitirqueeu fizesse omesmo.Observei o carro se afastar semgrande surpresa, emboranãosoubesseoquehaviafeitodeerrado.Seeueraumcachorrotãobonzinho,porquemeudonoestavameabandonando?

—Eagora?—resmungouamulheraomeu lado,dandobaforadasemseucigarro.

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CAPÍTULO27

Ao longo das várias semanas seguintes, aprendi a ficar longe de Victor. Namaiorpartedotempoissoerafácil,poismeacorrentavamaumpostenoquintaldosfundoseVictorjamaisseaproximavademim.Noentanto,eupodiavê-lo,emgeralsentadojuntoaumajanelanacozinha,fumandoebebendo.Àsvezesànoite,elevinhaatéoquintalparaurinar,e,basicamente,essaeraaúnicahoraemquefalavacomigo.

—Táolhandooquê,cachorro?—gritavaele.Nuncahaviaalegriaemsuagargalhada.

Os dias ficarammais quentes, motivo pelo qual cavei um buraco na terraentreaclaudicantecercadosfundoseumamáquinaparadasobosol.

—O cachorro jogou terra em cima domeu limpa-neve!— berrouVictorquandoviuoqueeutinhafeito.

— Esse troço não funciona há dois anos! — gritou a mulher, Lisa, emresposta.

Os dois gritavam um bocado um com o outro, o queme fazia lembrar dequandoaMãeeoPaificavamzangados,salvoquenessacasaeuouviaàsvezesum baque e um grito de dor, em geral acompanhados pelo som de garrafascolidindoecaindonochão.

Umasenhorasimpáticamoravanacasaatrásdacercademadeirapodre,eelacomeçouavirfalarcomigoatravésdasfendasedosburacosnastábuas.

—Umcachorrinhotãobonzinho!Temáguaparavocêbeber?—sussurrouelanaprimeiramanhãrealmentequente.Foiemboraelogoreapareceutrazendouma jarra, da qual despejou água fresca naminha tigela suja. Bebi tudo com

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avidez e gratidão e lambi a mão trêmula e magricela que ela estendeu peloburaconacerca.

Asmoscasquezumbiamemvoltadomeucocôpousavamnosmeuslábioseolhos,medeixandomaluco,masdemodogeral eunãome importavade ficardeitado no quintal, desde que isso me mantivesse longe de Victor. Ele meassustava; amaldade que emanava dele passava uma sensação de perigo real,quemefazialembrardeToddedohomemquedisparouaarmaqueferiuJakob.Eumorderaambos.SeráqueissoqueriadizerqueumdiaeumorderiaVictor?

Eusimplesmentenãopodiaacreditarquemeupropósitonavidafosseatacarsereshumanos.Issoeramaisqueinaceitável.Ameraideiamedeixavaenojado.

QuandoVictornãoestavaemcasa,eulatiaeLisaiaatéoquintal,medavacomidaemesoltavadacorrenteumpouquinho,maseujamaislatiaquandoeleestavaemcasa.

A senhora do outro lado da cercame levava pedacinhos de carne, quemepassavapeloburaco.Quandoeupegavaacarneaindanoar,elariacomgenuínodeleite,comoseeuacabassedeexecutarumafaçanhaincrível.Aparentemente,tratava-se domeu único real propósito: providenciar umpouquinho de alegriaparaumamulhermisteriosa,cujorostoeusequerpodiaverdireito.

— Isso é uma vergonha, uma verdadeira vergonha. Eles não podem tratarassimumanimal.Vouligarparaalguém—diziaela.Davaparasentircomoseimportavacomigo,emboraissofosseestranho,jáquenuncaaparecianoquintalparabrincar.

Umdia,umcaminhãoparounaentradadacasaedeledesceuumamulhervestidacomoMayacostumavavestir-se,oquemefezentenderquesetratavadeumapolicial.Porumsegundo,tiveaimpressãodequeelahaviaidomebuscarparaEncontrar,porqueficouparadanoportãoquedavaacessoaoquintalameencarar, enquanto anotava alguma coisa. Aquilo não fazia sentido, porém, equandoLisaapareceu,demãosnacintura,medeitei.ApolicialentregouaLisaumpedaçodepapel.

—Ocachorroestáótimo!—gritouLisa,realmentezangada,paraapolicial.Pudesentirasenhoraidosaatrásdemim,dooutroladodacerca.ElarespiravasuavementeenquantoLisaesbravejava.

Naquela noite, Victor vociferou contra mim mais ainda que de hábito. Apalavra“cachorro”erarepetida,praticamente,acadasegundo.

—Porquenãomatamos,simplesmente,omalditocachorro?—berrouele.—Cinquentadólares?Porquê?Nãoestamosfazendonadadeerrado!

Algumacoisaquebroudentrodecasa,umbarulhoviolentoquefezcomqueeumeencolhesse.

— Temos que arrumar uma corrente mais comprida e limpar a merda no

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quintal.Leiaamulta!—gritouLisaemresposta.—Nãoprecisoleramulta!Elesnãopodemnosobrigarafazernadinha!A

casaénossa!Naquelanoite,quando foiaoquintalurinar,Victorestendeuamãopara se

apoiarcontraaparede,maserrouoalvo,despencandonochão.— Está olhando o quê, seu vira-lata idiota? — resmungou comigo. —

Amanhãcuidodevocê.Nãovoupagarcinquentapaus.Meencolhideencontroàcerca,semsequerousarolharparaele.Nodiaseguinte,minhaatençãofoidistraídaporumaborboletaquevoltejava

diante daminha cara, razãopela qual levei um susto quandoVictor surgiu derepenteàminhafrente.

— Quer dar um passeio de carro? — Victor indagou alegremente. Nãoabaneioraboaoouviressaspalavras.Seilácomo,eleasfezsoarcomopuniçãoenãocomoprêmio.Não,pensei,nãoquerodarumpasseiodecarrocomvocê.

—Vaiserdivertidoveromundo—disseele,suarisadatransformadanumatossequeofezvirar-seecuspirnochão.

Eledesprendeuminhacorrentedoposteemelevouatéocarro,mepuxandona direção da traseira quando parei diante da porta. Inseriu a chave no porta-malas,queseabriusozinho.

—Entraaí—comandou.Sentiasuasatisfaçãoeaguardeiumcomandoqueeu entendesse. — Então, tá — disse ele. Abaixou-se e me puxou pela peleflácidaatrásdopescoçoesobreorabo.Sentiolampejodeumadorquandoelemeergueuelogomevidentrodoporta-malas,escorregandoemcimadealgunsjornais engordurados. Soltando a guia da minha coleira, Victor deixou-aenroscar-senochãoàminhafrente.Atampadoporta-malassefechoucomumestrondoefiqueinumaescuridãoquasecompleta.

Deitadoemcimadeunspanosfedorentoseengorduradosquemelembrarama noite do incêndio, quando Ethan machucou as pernas, e de algumasferramentas de metal, não era fácil achar uma posição confortável. Pudeidentificar facilmente uma das ferramentas como sendo um revólver: o cheiroacreerainconfundível.Afastei-medele,tentandoignorarosodoresfortes.

Fiquei ali, semiagachado, com as unhas àmostra na vã tentativa de evitarescorregõesdeum ladoparaoutrono estreitoporta-malas semprequeo carrobalançavaesacudia.

Foiopasseiodecarromaisestranhoquejádei,eoúnicodequepossomelembrarnãotergostado.Aindaassim,passeiosdecarrosempreresultavamemum lugar novo, e lugares novos eram sempre divertidos de explorar. Talvezhouvesseoutroscachorrosou,quemsabe,eufossemorardenovocomWendi.

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O espaço apertado e escuro logo se tornou quente, e me vi pensando noquartoemquefuipostocomSpike,naépocaemquemeunomeeraTobyemetiraramdeMissus.Nãopensavanaquelemomentoassustadorhámuito tempo.Tantacoisahaviaacontecidodesdeentão!Eueraagoraumcachorrototalmentediferente,umcachorrobonzinhoquetinhasalvadomuitagente.

Depoisdeeuterpassadoumtempoumbocadolongoeinsuportávelnaquelamala, o carro começou a vibrar e engasgar, e a poeira se elevou no ar numanuvemdensa e asfixiante. Espirrei, balançando a cabeça. Então, o carro freourepentinamenteefuijogadodeencontroaointeriordoporta-malas.Omotor,noentanto,continuouafuncionareficamosaliparadosduranteumminuto.

Estranhamente, assim que paramos, pude sentirVictor dentro do carro, noladoopostodoporta-malas,pudesentirsuapresença.Tiveanítidasensaçãodequeeletentavatomarumadecisãoarespeitodealgumacoisa—haviaaliumacertaindecisão.Então,eledissealgorispidamente,umapalavraabafada,eouviaportadianteiraseabrir.Ospésdelerangiamnocascalho,eelesedirigiuparaondeeuestavaagachadoeencolhido.Sentiseucheiroantesqueoporta-malasseabrisseautomaticamenteeoarfrescoenchesseoespaçoaomeuredor.

Elemeencarou.Piscando,erguimeusolhosparafitarosseus,depoisdesvieioolharparaqueelenãoachassequesetratavadeumdesafio.

—Muitobem.—Inclinando-seeestendendoobraço,elemexeunaminhacoleira.Supusque fosseprendernelaaguia,por issomesurpreendiquandoaprópria coleira se desprendeu, deixando uma sensação estranha em seu lugar,comosecontinuasseali,maspesassetantoquantooar.

—Saidaí!Já!Fiquei em pé sobre as patas dormentes. Reconheci seus gestos manuais e

salteidamala,aterrissandodesajeitadamente.Estávamosnumaestradadeterra,a grama verde balançando sob o sol. O saibro da estrada havia grudado nointerior do meu focinho e se assentado na minha língua. Ergui a perna, aomesmotempoemquelançavaumolharnadireçãodeVictor.Eagora?

Victor tornouaentrarnocarro,eomotorfezumbarulhoforte.Olheiparaeleconfuso,quandoospneusguincharamnaestrada,cuspindopedras.Eledeumeia-voltacomocarro,tomandoadireçãooposta,edepoisabaixouovidro.

—Estoulhefazendoumfavor.Vocêestálivreagora.Vápegarunscoelhosoualgodogênero.

Sorrindo para mim, Victor arrancou com o carro, deixando uma enormenuvemdepoeiraemseurastro.

Estarrecido,observei-oafastar-se.Quetipodejogoeraesse?Hesitando,fuiatrás,rastreandocomfacilidadeapoeiraquepairavanoar.

Eu sabia, depois de tantos anos de Encontrar, que estava perdendo

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rapidamente o cheiro. Victor devia estar dirigindo a grande velocidade.Disposto, apertei o passo, não mais seguindo a nuvem de poeira, mas meconcentrando,emvezdisso,nosodorescaracterísticosdamaladocarro,ondeeuhaviapassadotantotempo.

Consegui localizá-lo quando ele virou numa estrada asfaltada,mas quandoumaoutraguinadame levouaumaautoestrada,ondeoscarrospassavamcomuma velocidade incrível, percebi que o perdera. Eram tantos os carros quezumbiam à minha volta, cada qual com odores semelhantes (embora nãoexatamente iguais) aos do carro de Victor! Identificar o odor que me fariaEncontrartornou-seimpossível.

A autoestrada intimidava. Dei-lhe as costas e voltei para o lugar de ondeviera.Nafaltadoquefazer,retrocediaolongodamesmatrilhadecheiros,agorajá dispersados pela brisa do final de tarde.Quando cheguei à estradade terra,porém,passeiporelaecontinueiemfrente,semrumo,peloasfalto.

Lembrei-medequandouseiotruquequeaminhaprimeiramãemeensinaraeescapeidocanilquandofuifilhotepelasegundavez.Queaventuramepareceuentãocorreraovento,livreecheiodeenergia!Aí,ohomemmeencontrouemedeuonomedeCompanheiroe,depois,surgiuaMãeemelevouatéEthan.

Asensaçãodeagoranãotinhanadaavercomaquela.Nãomesentialivre,nãomesentiacheiodeenergia,esimculpadoetriste.Nãotinhapropósito,nãotinhadireção.Não seria capazde refazermeucaminhopara casa apartir dali.Lembrei-medodiaemqueoCoronelmevirouascostas,dodiaemqueDerekmelevouparamorarcomWendi—emboranãohouvessequalquersentimentoda parte do Coronel, ainda assim foi um adeus. Victor fizera a mesmíssimacoisa,sóquenãomeentregaraaninguém.

A poeira e o calor me faziam arfar e a minha boca ficava cada vezmaissedenta.Assimque farejei omenor sinal de água, fiz a coisamais normal domundo:seguinessadireção,saindodaestradaemeembrenhandopelamataalta,cujasfolhasseagitavamaosabordovento.

Ocheirodeáguaficoumais forte,maissedutor,me levandoapassarentreum monte de árvores e descer uma margem íngreme que ia dar num rio.Mergulheiatéopeito,mordendoeespadanandoaágua,umaglória!

Quando a sede deixou de serminha única preocupação, permiti quemeussentidospercebessemoespaçoemvolta.Orioencheuminhasnarinascomseudelicioso cheiro úmido, e juntamente com o gorgolejar das águas pude ouvir,muitoaolonge,umpatoreclamardeumaofensaimaginária.Patinheiaolongodamargem,minhaspatasafundandonosolomacio.

Então, uma certeza me assaltou com tamanha clareza que ergui a cabeça,surpreso,eesbugalheiosolhos.

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Eusabiaondeestava.

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CAPÍTULO28

Há muito, muito tempo, eu estivera às margens daquele mesmo rio, talveznaquele mesmíssimo lugar, quando Ethan e eu partimos para a nossa longacaminhada, depois que Flare, o cavalo burro, nos abandonou. O cheiro erainconfundível— depois que tantos anos de Encontrar me haviam ensinado adistinguir odores, categorizar e armazená-los na memória, consegui,instantaneamente,melembrardesselugar.Ajudouofatodeserverão,amesmaépocadoano,edeeuserjovemeterofarotãoaguçado.

EunãopodiaimaginarcomoVictorsabiadisso,ouoquesignificavaeleterme soltado para que eu descobrisse esse lugar. Não tinha pista do que eledesejavaqueeufizesse.Nafaltade ideiamelhor, tomeiadireçãoda jusanteecomeceia trotar, refazendoexatamenteomesmocaminho tomadoporEthanepormimtantosanosatrás.

Nofinaldodia,euestavamaisfamintoquenuncanavida,tãofamintoquesentia cólicas no estômago. Com saudades, pensei na mão pálida da senhoraidosapassandopelacercaedeixandocairpedacinhosdecarneparaqueeuospegasse ainda no ar.A lembrançame fez babar.Amargem do rio tinha umavegetação densa, onde era preciso andar devagar, e quanto mais faminto euficava, menos seguro me sentia quanto ao que fazer. Seria isso, realmente?Seguiresserio?Porquê?

Eueraumcãoquehaviaaprendidoaviverentreoshumanoseaservi-los.Nisso consistia meu único propósito na vida. Agora, apartado deles, me vi àderiva.Não tinhaobjetivo, nemdestino, nemesperança.Qualquerumquemeflagrasse, naquele momento, me esgueirando pela margem do rio poderia me

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confundircomaminhatímidaefurtivaprimeiramãe—oabandonodeVictorhaviamecausadoesseimensoretrocesso.

Uma árvore gigantesca quebrada durante o inverno caíra junto à águaformandoumacavidadenaturalnamargem,equandoosolsumiudocéu,entreinesselugarescuro,mesentindodoloridoeexaustoetotalmenteconfusocomasmudançasemminhavida.

A fomeme acordou namanhã seguinte,mas quando ergui o focinho o arnadame trouxe senão os odores do rio e da floresta em seu entorno. Segui ocursod’águarioabaixoporquenãotinhacoisamelhorafazer,masmelocomovimaisdevagardoquenavéspera,titubeandodevidoàdornabarrigaqueafomemefaziasentir.Penseinospeixesmortosqueàsvezesapareciamnolago—porquehaviaapenasroladojuntoaeles?Porquenãooscomiquandotiveachance?Umpeixemortoseriaagoraummanjardosdeuses,masorionãomeoferecianadapróprioparaconsumo.

Euestavatãopéssimoquequandoamargemáridacedeulugaraumaveredaimpregnada do odor de seres humanos, mal reparei. Segui letargicamente emfrente, parando apenas quando a trilha se tornou íngreme e juntou-se a umaestrada.

A estrada levava a uma ponte sobre o rio. Ergui a cabeça, e a névoadesapareceu da minha mente. Farejando, excitado, percebi que já estivera aliantes. Ethan e eu tínhamos sido pegos por um policial nesse exato local elevadosparaumpasseiodecarroatéaFazenda!

Muitos anoshaviam,obviamente, sepassado—algumasárvorespequenasque eu me lembrava de ter carimbado num dos extremos da ponte tinhamcrescidoese tornadogigantescas,por issocarimbei-asnovamente.Eas tábuaspodresdapontetinhamsidosubstituídas.Deresto,oscheiroseramprecisamenteosmesmosqueguardeinalembrança.

Umautomóvelpassouchacoalhandoenquantoeuestavanaponte.Buzinoupara mim e me afastei amedrontado. Um minuto depois, porém, eu o segui,hesitante,trocandooriopelaestradaàfrente.

Eu não fazia ideia de aonde ir, mas algo me disse que se eu mantivesseaqueladireçãoacabariachegandoàcidade.Ondeháumacidadehágente,eondehágentehácomida.

Quandoaestradaseuniuaumaoutra,omesmosextosentidomedisseparavirar àdireita, oque fiz, porémmeencolhi culpadoquando senti umcarro seaproximar,esgueirando-meparadentrodomato.Mesentiumcachorromalvadoeafomesófezreforçartalsensação.

Passeiporváriascasas,amaioriabemafastadadaestrada,equasesempreoscachorroslatiamparamim,transtornadoscomaminhainvasão.Porvoltadocair

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danoite,eupassava,furtivamente,porumlugarcheirandoacachorroquandoaportalateralseabriueumhomemsaiu.

— Jantar,Leo?Quer jantar?— indagou, num tom carregado de animaçãoexagerada,aquelequeaspessoasusamquandoqueremsecertificardequeumcachorrosaibaquealgodebomestáacontecendo.Umatigelademetalfoipostacomumbaqueruidosonoúltimodegraudeumaescadinha.

Apalavra“jantar”mefezcongelarameiopasso.Contemplei,fascinado,umcachorroatarracado,commandíbulasenormeseumcorpoavantajado,descerasescadasefazersuasnecessidadesnoquintal,apoucosmetrosdedistância.Suamaneiradeandarsugeriaqueeravelho,eelenãomefarejou.Voltouexeretousua tigela durante algum tempo. Depois estendeu a pata e arranhou a porta.Passadoumminuto,elaseabriu.

— Tem certeza, Leo? Tem certeza de que não consegue comer nada?—perguntouohomem.HaviaumatristezaemsuavozquemefezlembrardojeitocomoAlchorounoquintalnaqueleúltimodiaquepasseicomeleecomMaya.—Estábem,então.Entre,Leo.

Ocachorrogemeu,masaparentementenãoconseguiupuxaraspatastraseirasparavenceroúltimodegrau,levandoseudono,comumadelicadezacarinhosa,aseinclinarepegá-lonocolo,carregando-oparadentro.

Senti-me intensamenteatraídopelohomemefuiassaltadopelasúbita ideiadeque ali poderia ser um lar paramim.Ohomemamava seu cão,Leo, emeamaria também. Me daria de comer, e quando eu ficasse velho e fraco, melevarianocoloparadentrodesuacasa.MesmosenãopraticasseEncontrar,nãofizesseescolanemqualqueroutrotrabalho,senadamaismerestassesenãomededicar ao homemdessa casa, eu teria um lugar paramorar. Essa vida louca,sempropósito,queeuvinhalevandocomoUrsoacabaria.

Aproximei-me da casa e agi com juízo: comi o jantar de Leo. Depois desemanasderaçãocaninaarenosaesemgostonacasadeLisaeVictor,arefeiçãosuculenta e consistentena tigeladeLeoera amelhor coisaque eu jáprovara.Quando acabou, lambi o metal, e o choque da tigela com a parede alertou ocachorro residente, que rosnou em alerta. Ouvi quando ele se aproximou dooutroladodaporta,opeitochiandoeumrosnadogravecrescendoemvolumeàmedidaqueLeoregistravaaminhapresençaalifora.

Não tive a impressão de que Leo seria muito receptivo à ideia da minhamudançaparasuacasa.

Desciatodaosdegraus,demodoque,quandoaluzseacendeuparailuminaroquintal,eujávoltaraaomeupostoentreasárvores.AmensagemnorosnadohostildeLeofoiclara:euteriaqueprocurarmeuprópriolar.Tudobem—comafomesaciada,minhavontadedemoraralisumira.

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Dormi em meio ao mato alto, cansado, mas muito mais satisfeito, com abarrigacheia.

Afomebateudenovoquandochegueiàcidade,masalieusabiaqueeraolugar certo. Os arredores me iludiram. Onde a minha memória dizia haverapenascamposecampinas,passeipormuitascasas,pormuitasruasfervilhandodeautomóveisecrianças.FoiquandoesbarreinolugarondeoVovôcostumavasentar-se comos amigos e cuspir uma coisa nojenta, e o cheiro era omesmo,emborahouvessetábuasdemadeiravelhatapandoasjanelaseoprédiovizinhonão estivessemais lá: um buraco lamacento ocupava seu lugar. No fundo doburacohaviaumamáquinaqueiaempurrandoenormespilhasdeterraadianteàmedidaqueavançava.

Os humanos fazem isso: derrubam prédios velhos e constroem novos, dojeitocomooVovôconstruiuumnovoceleiro.Elesmodificamomeioambientecomolhesconvém,restandoaoscachorrosapenasacompanhá-lose,comsorte,sairparadarvoltasdecarro.Ovolumedobarulhoetodososnovosodoresmeindicaramqueoshumanosaliandavambastanteocupadosmodificandoaprópriacidade.

Váriaspessoasmeobservaramenquantoeucruzavaarua,eotempotodoeutinhaasensaçãodeserumcachorromalvado,semqualquerpropósito,agoraqueestava ali. Um saco de lixo caíra de um grande contêiner de metal, e, comenorme sentimento de culpa, rasguei-o para abri-lo e dele tirar um pedaço decarne coberto com ummolho grudento e doce. Em vez de comer alimesmo,corri eme escondi atrás do contêiner, como aprendera com aminha primeiramãe.

Minhas perambulações acabaram me levando ao parque dos cachorros.Sentei-me num extremo, debaixo de algumas árvores, e observei, invejoso, opessoal atirando discos que seus cachorros agarravam no ar. Eume sentia nusemumacoleiraemedeicontadequedeviaagirdiscretamente,masamaneiracomooscachorrosbrincavamnomeiodaquelepátioenormemeatraiucomoumímã,eantesquepudesseevitarláestavaeucomosoutros,brincando,correndoeesquecendodavida,plenamentesatisfeitoemserumcãofeliz.

Alguns cachorros não entraramna brincadeira, ficando com seus donos oufarejandooscantosefingindonãodaramínimaparaanossadiversão.Outrosforam seduzidos para correr atrás de bolas ou discos voadores, mas todosacabaramemdadomomentosendochamadospelosdonoselevadosparavoltasdecarro.Todos,menoseu,masninguémreparouqueeuestava sozinhoouseimportoucomofato.

Jáno fimdodia,umamulherapareceucomumacadelagrandona,depeloamarelo,esoltou-anoparque.Aessaalturaeuestavaexaustodetantobrincare

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ofegavadeitadoenquantoobservavadoisoutroscachorrosseengalfinharem.Acadelaamarelajuntou-se,animada,aeles,interrompendoabrincadeiraparaumasessãodecheiradaseabanosderabo.Levantei-meefuicumprimentararecém-chegada,levandoumchoquecomoodorquesentiemseupelo.

EradeHannah.Agarota.Acadelaamarelase impacientoucommeuexamefebrildoseucheiroese

afastou, ansiosa para brincar, mas ignorei seu convite. Excitado, atravessei oparqueatodanadireçãodasuadona.

AmulhersentadanobanconãoeraHannah,embora,tambémela,cheirasseaHannah.

—Oi,cachorrinho,comovai?—disseela,quandomeaproximeiabanandoorabo.

A maneira como ela se sentava me fez lembrar de Maya pouco antes dachegada de Gabriella, o bebê. Havia um clima de cansaço, excitação,impaciência e desconforto, tudo misturado e centrado na barriga sob as duasmãos.Aproximeimeufocinhodela,inspirandooaromadeHannah,separando-odamulher,dacadelaamarela,dasdezenasdeodoresquesegrudamaalguémeconfundemumcãosem treinamentoparaEncontrar.Essaeraumamulherquehaviaestadolongamentecomagarotahápoucotempo.Dissoeutinhacerteza.

Acadelaamarelaseachegou,amistosa,porémcomumapontinhadeciúme,efinalmentepermitiquemearrastasseparaumfolguedo.

Naquelanoitedeixeiqueassombrasenlaçassemmeucorponegro,vigiando,alerta, os últimos carros a deixarem o estacionamento,mergulhando o parquedos cachorros num silêncio absoluto. Esse comportamento furtivome ocorreucomtanta facilidadequepareciaqueeu jamais fora recolhidoda rua,comosecontinuassenacompanhiadeMana,VelozeFaminto,aprendendoliçõescomanossaprimeiramãe.Caçarfoi fácil.As lixeirasestavamrepletasdequentinhascheiasdedeliciosos restosdecomidaeevitei faróisepedestrescomamesmacautela,novamenteesquivo,escuroeselvagem.

Agora,porém,minhavidatinhaumpropósito,umametaaindamaisurgentedoqueaquemelevaraàcidade.

Se,adespeitodetodootempodecorridoedasmudançasocorridas,agarotaHannahestavaali,talvezomeninoestivessetambém.

E se Ethan ainda estivesse ali, eu iria atrás dele, eu haveria de EncontrarEthan.

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CAPÍTULO29

Passadamaisdeumasemana,eucontinuavamorandonoparquedoscachorros.Namaioriadosdias,amulhercheirandoaHannahlevavasuacadelaamarela

—Carlyeraonomedacadela—aoparque.Oaromadagarotameconfortava,sei láporquemefaziasentirqueEthanestavaporperto,emboraCarlyjamaislevasse no pelo o cheiro dele. Ver a mulher e Carly sempre me fazia saircorrendo,satisfeito,domeuesconderijonosarbustos.Paramim,esseeraopontoaltododia.

De resto, eu era um cachorro malvado. Os frequentadores do parquecomeçavam a agir de forma desconfiada com relação amim,me encarando eirradiandocautelaaomeapontaremefalaremunscomosoutros.Eujánãomeaproximavadeseuscãesparabrincar.

—Ei, companheiro.Cadê a sua coleira?Quem trouxevocê aoparque?—indagouumhomem,estendendoasmãoscomcarinho.Recuei,percebendosuaintençãodemeagarraredesconfiadodonomeCompanheiro.Foientãoquesentiumaprofundasuspeiçãodapartedeleemedeicontadequeaminhaprimeiramãesempretiverarazão:parapermanecerlivre,bastavaficarlongedegente.

Minha ideiaeraencontraraFazenda,assimcomoencontraraacidade,masissomostrousermaisdifícildoqueeusupunha.SemprequesaíaparaumavoltadecarroatéacidadecomEthanouVovô,euusavaocheirodoranchodecabrascomo ponto de referência, um farol para o meu faro. Mas todo e qualquervestígio das cabrasmisteriosamente desaparecera do ar.Desaparecida tambémestavaaponte,cujoruídosinalizavaadiferençaentrevoltadecarroevoltadecarroatéacidade—eunãoencontravaolugardejeitonenhum,nempelofaro

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nem por qualquer outro sentido. Palmilhando as ruas silenciosas depois queescurecia, eu confiava no meu senso de direção até que um prédio grandeaparecia, bloqueando-me o caminho e confundindo minhas narinas com osodoresdecentenasdepessoasedezenasdecarros.Umafonteemfrenteaolocaltornava tudo ainda mais confuso, já que a umidade levava consigo um débilcheiro de alguma substância química, como era possível sentir quandoMayalavavaroupa.Levanteiapernadeencontroàquelacoisa,masissosómedeuumconsolopassageiro.

À noite, meu pelo negro atuava como proteção contra os olhos humanos.Dissolvidonas sombras, eume escondia dos carros, reaparecendoquandonãohavianinguémemvolta,semprealertaparaEncontrar,sempreconcentradonasminhas lembranças daFazenda e seus cheiros, quando inspirava o ar noturno.Paraminhafrustração,eunãoconseguiafarejarsequerumsinaldealgumacoisa.

Asrefeiçõesvinhamdaslatasdelixoouconsistiamdeumououtroanimalmortoàmargemdaestrada—coelhoseramosmelhores;corvos,ospiores.Eutinhaconcorrência:umanimaldotamanhodeumcãopequeno,comcheirofortee um rabo grosso e peludo, de olhos pretos, rondava as lixeiras, escalando-ascom destreza pelas laterais. Sempre que encontrava uma dessas criaturas, elarosnavaparamimeeupassavaaolargo,nãovendooutracoisanaquelesdentesenaquelasgarrassenãoumconviteàdor.Fossemoquefossem,obviamenteeramdemasiadoburrasparaconcluirqueomeutamanhomuitomaiordeveriaenchê-lasdemedo.

Igualmente burros eram os esquilos do parque, que desciam das árvores epulavam na grama como se toda aquela área não fosse protegida por cães!Chegueibempertodecapturarumdeles,maselessempresubiamcorrendonasárvores edepois ficavam lá sentados reclamando.Carly, a cadela amarela, emgeralme acompanhavana caçada,masmesmo juntosnãohavíamos tido êxitoaté então. Eu sabia que se continuasse tentando, o dia chegaria, embora nãosoubesseaocertooquefaríamosentão.

—Qualéoproblema,benzinho?Porqueestátãomagrinho?Vocênãotemcasa?—perguntou-meadonadeCarly.

Percebi a preocupação em sua voz e abanei o rabo, querendo que ela melevasseparaumavoltadecarroemedeixassenaFazenda.Quandoavilevantar-sedobanco,lutandoparaficarempé,sentiumacertahesitação,comosefosseme convidar a caminhar com as duas. Sabia que com Carly não haveriaproblema,poiselasemprechegavacorrendonoparqueàminhaprocura,masmeafasteidapreocupaçãomagnéticadamulher,agindocomosetivessealguémquemeamavaequeagoramechamavaparapertodesi.Andeialgunsmetrosantesdepararedarumaolhadaparatrás—elacontinuavameobservando,umadas

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mãosnacintura,aoutrapousadanabarriga.Naquela tarde, um caminhão parou no estacionamento. Cheirava tanto a

cachorro que na mesma hora registrei sua presença do lugar onde eu estavadeitado na grama, no outro extremo do parque. Um policial saltou dele econversoucomumpunhadodedonosdecachorros,queapontaramparavárioslugares no parque. O policial puxou uma vara comprida com um nó naextremidade, e senti um arrepio me percorrer. Eu sabia exatamente para queserviaavara.

O policial vasculhou os cantos do parque, examinando os arbustoscuidadosamente, mas quando se aproximou do meu esconderijo eu já estavalonge,nomeiodomatoqueficavaatrásdoparque.

Meupânicome fezcontinuaracorrer.Quandoomatoescasseavaemumazona cheia de cães e crianças, eu evitava contato com os humanos e fazia opossívelparapermanecer juntoàvegetação.Jámeencontrava longedacidadequando,finalmente,deimeia-volta,consoladopelofatodequeaminhaaliada,aescuridão,vinhacaindodocéu.

Quando o cheiro de dezenas de cachorros me assaltou, virei-me nessadireção,curioso.Dosfundosdeumprédiogrande,vinhaumatorrentedelatidosprovenientesdedoiscãesengaioladosdesafiandoumaooutro.Umamudançanadireção do vento fez os dois começarem a latir paramim, e o timbre de suasvozessealterou.

Eu jáestiveraali: eraondeomoçobonzinho,oveterinário,meexaminavaquandoeueraBailey.Naverdade,foialiqueestivecomEthanpelaúltimavez.Resolvipassarao largodesse lugar.Corriatéa frentedoprédioe,aocruzaraentrada,congelei,tremendo.

QuandoeueraBailey,um jumentinhochamadoJasperhavia se juntadoaovelho e irresponsável Flare um dia no pátio. Jasper, depois de adulto, nuncaatingiraotamanhodeumcavalo,masemlinhasgeraiseraumcavaloefaziaoVovôsoltarrisadaseaVovóbalançaracabeça.EujáestiverafocinhoafocinhocomJasper, jáocheirarameticulosamenteenquantooVovôopenteava, tendobrincado com ele da melhor maneira que pude. Conhecia o cheiro de Jaspercomo conhecia o da Fazenda, e não havia comome enganar a respeito dissoagora, bem ali na entrada. Refazendo meus passos na direção do prédio,conseguiacharumaárearestritanoestacionamentoondeocheiroerarecenteeavassalador—haviainclusive,sobreocascalho,umrastrodepalhaeterracomocarimbodeJasper.

Oscachorroscontinuavamalatirparamim,indignadosporeuestarsoltoeelesnão,masignoreiaalgazarra.Inalandoaricamisturadeodoresnaterra,dei

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meia-voltaemedirigiparaaestrada.Naprimeiravezqueumcarroseaproximoudemimpelascostas,buzinando

enquantoseusfaróisiluminavamanoite,leveiumsusto,detãoconcentradoqueestavaemseguirocheirodeJasper.Desvieiparaasarjetaàmargemdaestrada,me encolhendo ante o grito acusador do carro, que passou pormim a toda avelocidade.

Depoisdisso,tomeimaiscuidado.EmboraconcentradoemseguiratrilhadeJasper,aguceiosouvidosparaosomdeautomóveisepasseiameafastardelesbemantesqueseusfaróismedescobrissem.

Emboraatrilhafosselonga,foimaisfácildoqueEncontrarWally—durantemais de uma hora percorri uma linha reta, finalmente fazendo uma curva àesquerdaedepoismaisuma.OcheirodeJasperiadiminuindoàmedidaqueeuavançava,oquesignificavaqueestavarastreandoojumentodetrásparaafrenteecorriaoriscodeperdê-lodetodo.Apósumacurvaàdireita,porém,ocheirodeixoudesernecessário:eusabiaondeestava.Bemaliviopontoemqueotrematravessavaaestrada,otremquehaviaparadoocarrodeEthannoprimeirodiade aula na faculdade.Apressei o passo, o cheiro de Jasper avalizando a curvainstintiva que fiz à direita. Logo passei pela casa de Hannah, da qual,curiosamente,nãoemanavaqualqueraromadagarota,emboraasárvores,bemcomoomusgoquerevestiaaparededetijolos juntoàestrada,permanecessemiguais.

PassarpeloportãoesubiraentradadaFazendafoiumgestotãonaturalquemepareceutê-lofeitonavéspera.

OcheirodeJasperlevavadiretoaumgrandetrailerbranco,comummontedesaibroefenodebaixodele.Seusodoresseencontravamregistradosportodolado e havia um novo cavalome observando com ar sonolento e desconfiadoenquanto eu farejava a cerca. Cavalos, porém, já não me interessavam mais.Ethan! Farejei Ethan, seu cheiro estava em toda parte. Omenino ainda deviamorarnaFazenda!

Nunca antes em toda a vida eu sentira o júbilo queme enchia agora, umjúbiloquemeinebriava.

As luzes estavam acesas na casa, e quando a contornei até a lateral, mepostando no morrinho gramado, pude ver, pela janela, a sala de estar. Umhomemda idade doVovô ocupava uma poltrona e assistia à TV,mas não separeciacomoVovô.Ethannãoseachavapresente,nãohaviamaisninguém.

Aportadecachorrocontinuavaali,recortadanaportademetalquedavaparafora, mas a porta grandona de madeira do lado de dentro estava firmementefechada.Frustrado,arranheiaportademetaledepoislati.

Ouvi vibrações dentro da casa quando alguém se aproximou. Meu rabo

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abanoucomtamanhovigorquequasenãoconseguimesentar,elepuxavatodoomeucorpoparaafrenteeparatrás.Aluzpiscounoteto,eaportademadeirafezumruído familiarantesdeseabrir.Ohomemqueeuvirasentadonapoltronaestavaalidepé,meobservandoatravésdovidrocomatestafranzida.

Tornei a arranhar o metal. Queria que ele me deixasse entrar para quepudessesaircorrendoàprocuradomenino.

—Ei!—disseele,comavozabafadapelaportafechada.—Parecomisso.Ouvi a repreensão e tentei me sentar, obediente, mas meu traseiro não

concordouemeobrigouaficarnovamentedepé.— O que você quer? — indagou o homem, finalmente. Ouvi seu tom

inquiridoreimagineioqueeleestariameperguntando.Foiquandomedeicontadequenãoprecisavaesperarqueelesedecidisse—

coma porta de dentro aberta, a porta de cachorro podia ser livremente usada.Baixeiacabeçaemeenfieipelacortinadeplástico,irrompendocasaadentro.

—Ei!—exclamouovelho,surpreso.Tambémeuestavasurpreso.Nosegundoemquemevidentrodacasa,senti,

nitidamente,ocheirodapessoaquemebloqueavaocaminho.Eusabiaquemeraela:seriacapazdereconheceressecheiroemqualquerlugar.

OcheiroinconfundíveldeEthan.Eutinhaencontradoomeumenino.

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CAPÍTULO30

Embora Ethan estivesse em pé, tentei pular em seu colo. Investi contra ele,esticando-mepara lambê-lo,cutucá-lo,pular-lheemcima.Nãoconseguievitaros soluços que me saíam da garganta, não consegui impedir que meu rabovoasse.

— Ei! — exclamou ele, recuando e piscando os olhos. Tentou manter oequilíbrio,apoiando-senabengala,edepoissentoupesadamentenochão.Puleisobreele,lambendoseurosto.Eleempurroucomamãoaminhaboca.

—Estábem,estábem—resmungou.—Parecomisso.Asensaçãodesuasmãosnaminhacarafoiacoisamaismaravilhosaquejá

sentinavida.Entrefecheiosolhosdeprazer.—Paratrás!Paratrás!—comandouEthan.Omeninolevantou-secomesforço.Espremiminhacaracontrasuamãoeele

meafagoubrevemente.—Estábem.Nossamãe!Quemévocê?Acendendomaisumaluz,elemeexaminou.—Uau!Vocêébemmagrela!Ninguémlhedádecomer,hein?Poracasose

perdeu?Eupodiaficarsentadoalianoitetodaouvindosuavozesentindoseuolhar

emmim,masnãoseriaassim.—Olhe, vocênãopode entrar aqui—disse ele, abrindoaporta externa e

segurando-a.—Saiaagora,vamoslá.Era um comando que eu conhecia. Por isso, com relutância obedeci. Ele

ficoualiparadomeolhandopelovidro,eeu,sentado,esperando.

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—Vocêprecisairparacasa,cachorro—disseele.Abaneiorabo.Eusabiaque iria“paracasa”, finalmente,“paracasa”naFazenda,queeraomeu lugar,comEthan,queeraondeeudeviaestar.

Ethanfechouaporta.Esperei obedientemente até que o esforço se tornou demasiado e emiti um

latido cheio de impaciência e frustração. Quando não houve resposta, lati denovo,arrematandocomumaboapatadanaporta.

Perdiacontadequantasvezes latiatéqueaporta fossenovamenteaberta.Ethan trazia nas mãos uma frigideira de metal, de onde vinham odoressuculentos.

—Tome—resmungou.—Estácomfome,amigão?Assimqueelepôsafrigideiranochão,mergulheinojantar,abocanhandoa

comida.—Équasetudolasanha.Nãotenhograndecoisaemmatériadecomidade

cachorroporaqui,masachoquevocênãoédotipoenjoadoparacomer.Abaneiorabo.—Sónãovaipodermoraraqui.Nãoposso tercachorro.Não tenho tempo

paraisso.Vocêprecisavoltarparacasa.Abaneiorabo.—Credo!Quandofoiaúltimavezquevocêcomeu?Nãocomatãorápido,

vaipassarmal.Abaneiorabo.Quando terminei, Ethan inclinou-se lentamente para pegar a frigideira.

Lambiseurosto.—Eca!Quemauhálitovocêtem!Enxugandoorostocomamangadacamisa,voltouaficardepé.Observei-o,

prontoparafazeroquequerqueelequisesse.Darumacaminhada?Umavoltadecarro?Brincarcomaqueleflipidiota?

—Muitobem.Vocêvaiparacasa.Umcachorrocomovocêobviamentenãoéumvira-lata.Alguémdeveestaràsuaprocura.Certo?Boanoite.

Ethanfechouaporta.Fiqueialisentadoalgunsminutos.Quandolati,aluzdotetoseapagoucom

umclique.Deiavoltaatéomorrinhogramadonalateraldacasaeolheiparadentroda

sala.Ethansemovialentamente,apoiadoàbengala,apagandoumaluzdepoisdaoutra.

Meumeninoestavatãovelho!Eujamaisoreconheceria,masagoraquesabiatratar-sedele,oandarmepareceufamiliar,emboramaisemperrado,eamaneiracomo virou a cabeça e tentou espiar na escuridão da noite antes de apagar a

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últimalâmpada,comasorelhasalertascomoseprocurasseescutaralgumacoisa,eratípicadeEthan.

Fiqueiconfusocomofatodeserumcachorroaorelento,masacomidanomeu bucho e a exaustão das minhas patas me venceram e me enrosquei alimesmo,enfiandoofocinhoembaixodoraboemboraanoiteestivesseamena.Euestavaemcasa.

QuandoEthansurgiudoladodeforanamanhãseguinte,eumesacudiecorriatéele,tentandorefrearumaafeiçãoexagerada.Elemeencarou:

—Porquevocêcontinuaaqui,hein,garoto?Oqueestáfazendoaqui?Euoseguiatéoceleiro,deondeeletirouumcavaloqueeujamaisvirapara

levar até o pátio. Obviamente o burro do animal não reagiu ao me ver —simplesmentemeolhoucomoFlarecostumavafazer,semregistrarumpingodecompreensão.Souumcachorro,seuidiota!MarqueiterritórionopátioenquantoEthandavaumpoucodeaveiaaocavalo.

—Comovaivocêhoje,Troy?ComsaudadesdeJasper,nãoé?SaudadesdoseuamigãoJasper.

Ethanestavaconversandocomocavalo,algoqueeupoderiaterlheditoserumtotaldesperdíciodetempo.Afagouacabeçadocavalo,chamou-odeTroyemencionouonomeJaspermaisdeumavez,emboraaoentrarnoceleiroeunãotivesseencontradoojumento,apenasseucheiro,queeraespecialmentefortenotrailer.

—Quediatriste,quediatristeaqueleemqueeuprecisei levarJasperparadescansar.Maseleviveubastanteeteveumavidaboa.Quarentaequatroanoséumbocadoparaumjumento.

Senti tristeza em Ethan e rocei com o focinho sua mão. Ele me olhoudistraído, amente emoutro lugar.AfagouTroyumaúltimavez e voltouparadentrodecasa.

Algumas horas depois eu farejava emvolta do pátio, esperando queEthansaísseparabrincar,quandoumcaminhãopassoupeloportão.Assimqueparou,reconheci um dos que eu havia visto no estacionamento do parque doscachorros,eohomemquedesceudobancodianteiroeraomesmopolicialqueeufarejaraexaminandoosarbustoscomavaraealaçada,queeleagoraretiravadatraseiradocaminhão.

— Você não vai precisar disso!— falou Ethan, saindo de casa. Virei ascostasparaohomememeaproximei,abanandoorabo,domeumenino.—Eleémuitodócil.

—Apareceuporaquiontemànoite?—indagouopolicial.—Issomesmo.Olhesóascostelasdocoitado.Dáparaverqueéde raça,

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masalguémdecertonãootemtratadobem.—Ouvimosfalardeumlabradorbonitoqueandasoltonoparquemunicipal.

Ficopensandoseseráomesmo—comentouopolicial.—Issoeunãosei.Oparqueficaumbocadolonge—respondeuEthan,em

dúvida.Ohomemabriuumagaiolanatraseiradocaminhão.—Achaquevaientrardeboavontade?Nãoestouafimdecorreratrásdele.— Ei, cachorro. Suba aqui, viu? Aqui!— Ethan deu uma palmadinha no

interior da gaiola aberta. Observei-o, curioso, um instante e depois dei umpequenosaltoentrandonelacomgraça.Seeraissoqueomeninoqueriademim,tudobem.Eufariaqualquercoisapelomeumenino.

—Euagradeço—disseopolicial,fechandoaportadagaiola.—Oqueaconteceagora?—perguntouEthan.— Ora, um cachorro como esse vai ser adotado com a maior facilidade,

imagino.—Bem...Elesvãomeligaravisando?Eleéumanimalrealmentebacana.Eu

gostariadesaberqueestábem.—Issoeunãopossolhedizer.Osenhorvaiterqueligarparaoabrigo,pedir

queonotifiquem.Minhafunçãoérecolhê-los.—Voufazerisso,então.Opolicialeomeninoapertaram-seasmãos.Ethanseaproximoudagaiola

enquanto o policial se acomodava no banco dianteiro do caminhão. Pus ofocinho junto à grade, tentando estabelecer contato, inspirando o aroma deEthan.

—Cuide-sebem,viu,amigão?—disseEthancomcarinho.—Vocêprecisadeumlarlegal,comcriançasparabrincar.Souapenasumvelho.

Fiquei pasmoquandopartimos,Ethan aindadepé ali, observando agente.Não consegui me conter: comecei a latir. E lati, lati e lati durante todo opercurso,naestrada,aopassarpelacasadeHannah,edepois.

Essenovodesdobramentomedeixouconfusoedevastado.PorqueestavammelevandoparalongedeEthan?Foielequequismemandarembora?Quandoeuoveriadenovo?Euqueriaficarcomomeumenino!

Acabeiindopararnumprédiocheiodecachorros,muitosdosquaislatiamdemedo o dia todo. Fiquei sozinho numa gaiola e, passado umdia, lá estava eucomumagoladeplásticoidiotaeumadorfamiliarnaquelelugar—eraporissoqueestavaali?QuandoEthanviriamebuscarparaumavoltadecarroatéemcasa?

Toda vez que alguém passava pela minha gaiola, eu dava um salto, na

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esperançadequefosseomenino.Comopassardosdias,àsvezeseudavavazãoà frustraçãome juntando ao interminável corode latidosque ricocheteavanasparedes.OndeestariaEthan?Ondeestavaomeumenino?

Opessoalquemedavacomidaecuidavademimera simpáticoegentil, etenhode admitir que eu estava tão carentede contatohumanoque corria paraqualquer um que abrisse a porta daminha gaiola, oferecendo aminha cabeçaparaserafagada.Quandoumafamíliacomtrêsfilhasveiomevisitarnumasalapequena,subinocolodelasemevireidebarrigaparacima,tãodesesperadoqueestavaparasentirmãoshumanastocaremmeucorpo.

—Podemosficarcomele,pai?—perguntouumadasmeninas.Oafetoquesederramavadastrêscriançasmedeuarrepiosdeprazer.

—Eleépretocomocarvão—disseamãe.—Tição—disseopai,quesegurouminhacabeça,examinoumeusdentese

depoisergueu,umaauma,minhaspatas.Eusabiaosignificadodisso,jápassaraporessetipodeexameantes.Ummedogeladoapertoumeuestômago.Não.Eunãopodiairparacasacomessagente.Eupertenciaaomenino.

— Tição! Tição! — entoaram as garotas. Observei-as indiferente, nãoconsiderandobem-vindaaquelaadoração.

—Vamosalmoçar—disseohomem.—Paieeê!—Masquandoacabarmos,voltamosaquielevamosTiçãoparaumavoltade

carro—concluiuele.—Oba!Ouvi claramente as palavras “volta de carro”,mas fiquei aliviado quando,

depoisdemuitosoutrosabraçosdasmeninas,a famíliase foi.Mepuseramdevoltanagaiola,eeumeenrosqueiparaumcochilo,meioestupefato.LembreidequandoMayaeeufazíamosescola,dequandominhafunçãoeraficarsentadoedeixarascriançasmeafagarem.Talvezaquiacontecesseamesmacoisa,sóqueagoraascriançaséquevinhamatémim.

Tudobem,oimportanteéqueeumeenganara,afamílianãotinhaaparecidopara me levar com ela. Eu esperaria o meu menino. A motivação humana éinimaginável para cachorros, portanto eu não sabia ao certo por que nós doishavíamossidoseparados,massabiaque,quandochegasseahora,EthaniriameEncontrar.

—Boasnovas,rapaz,vocêganhouumnovolar—disseamulherquedavacomida ao enfiar na gaiola uma tigela de água.—Logo, logo eles estarão devoltaevocêvaidaradeusaestelugar.Eusabiaquenãoiriademorar.

Abanei o rabo e deixei-a coçar minhas orelhas, lambendo sua mão e

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partilhandosuaalegria.Sim,pensei,emsintoniacomobomhumordela,aindaestouaqui.

—Vouligarparaohomemquemandouvocêparacá.Elevaigostardesaberqueencontramosumaboafamíliaparavocê.

Quandoamulher se foi, dei algumasvoltas nagaiola eme acomodei paratirarumcochilo,dispostoaesperarpacientementepelomenino.

Meia hora depois, despertei com um susto.Uma voz de homem, uma vozzangada,meacordou.

Ethan.Lati.—Meucachorro...Eleémeu...Mudeideideia!—gritavaele.Pareidelatir

efiqueiimóvel.Podiasenti-lodooutroladodaparedeefixeioolharnaporta,torcendo para que ela se abrisse e eu pudesse farejar omenino.E umminutodepois, isso aconteceu. Amulher queme dera água atravessou o corredor nafrentedomenino.Pusminhaspatasnasgradeseabaneiorabo.

Amulherestavafuriosa,davaparaver.—As crianças vão ficarmuito desapontadas—disse ela.Quando abriu a

minhagaiola,eusaícorrendo,megrudeinomenino,abanandoorabo,lambendoeganindo.Araivadamulhersumiuanteessacena.—Tudobem—disseela.—Deusmeu!

Ethan ficou alguns minutos diante do balcão, anotando alguma coisa,enquantopermanecisentadoaseuspés,tentandomanteraspatasafastadasdele.Logoestávamosdoladodefora,sentadosnobancodianteirodocarro,prontosparadarumavolta!

Emborafizesseumbocadodetempodesdeaúltimavezqueeuvivenciaraamaravilhosaaventuradeumavoltadecarrocomofocinhoparaforadajanela,oqueeumaisqueriaerapôracabeçanocolodeEthanesentirsuamãomeafagar.Efoioquefiz.

—Vocêmeperdoadeverdade,nãoé,amigão?Lanceiumolharatentoparaele.—Botovocênacadeiaevocênãodáamínima.—Durantealgum tempo

mantivemosumsilêncioconfortável.PergunteiamimmesmoseestaríamosindoparaaFazenda.—Vocêéumcachorrobonzinho—disse,afinal,omenino,eabaneiorabo,satisfeito.—Muitobem,vamoscomprarcomidadecachorro.

No finaldas contas, voltamospara aFazendae, dessavez,quandoabriu aportadafrenteEthansegurou-aparaqueeupudesseentrar.

Naquelanoite,depoisdo jantar,deitei a seuspés,mais felizdoque jamaismelembravadeterestado.

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— Sam — disse ele, me olhando. Ergui a cabeça, alerta. — Max. Não.Winston?Murphy?

Euqueriamuitoagradá-lo,masnãofaziaideiadoqueelepretendiademim.Me peguei torcendo para que ele me mandasse Encontrar. Eu adorariademonstrarotipodetrabalhoqueeracapazdefazer.

—Bandit?Tucker?Ah,eusabiaoqueeraisso.Encarei-oansioso,esperandoquesedecidisse.—Sentinela?Rapaz?Amigão?Pronto!Essapalavraeuconhecia.Latieelelevouumsusto.—Opa!Éesseoseunome?CostumavamchamarvocêdeAmigão?Abaneiorabo.—Ora,Amigão,muitobem.Amigão,seunomeéAmigão.Nodiaseguinteeu jáestavaplenamenteadaptadoaatenderpor“Amigão”.

Eraomeunovonome.— Aqui, Amigão. Sentado, Amigão! Quer saber? Alguém, ao que tudo

indica, treinou você muito bem. É um espanto ter vindo acabar aqui.Abandonaramvocê?

Durante a maior parte daquele primeiro dia tive medo de sair do lado deEthan. Fiquei surpreso quando fomos para o quarto doVovô e daVovó paradormir,masnãohesiteiquandoeledeuumapalmadinhanocolchão:puleiparaacamamaciaemeestiqueicomumgemidodepurodeleite.

Ethan levantou da cama várias vezes naquela noite para ir ao banheiro efielmente eu o segui em todas elas, permanecendo à porta enquanto ele faziasuasnecessidades.

—Vocênãoprecisameseguirtodasasvezes,sabia?—disseele.Poroutro lado,Ethan tambémnãodormiuaté tardecomocostumava fazer

antes.Acordouaonascerdosolepreparouocafédamanhãparanósdois.—Bem,Amigão,estousemiaposentado—disseEthan.—Aindatenhoum

punhadodeclientesaosquaisdouconsultoria,eprecisoligarparaumdeleshojedemanhã.Depoisdisso,temosodialivre.Andeipensandoemtrabalharmososdoisnojardim.Vocêestádeacordo?

Abaneiorabo.ConcluíqueonomeAmigãomeagradava.Depoisdocafé(comitorrada!),omeninofalouaotelefone,eresolviexplorar

acasa.Apartedecimapareciameiogasta—osquartoscheiravamamofo,malregistrandoalgumvestígiodapresençadeEthan.Odelecontinuavaigual,masodaMãenãotinhamóveiseestavacheiodecaixas.

Umarmáriono térreoparecia trancado,masquandofarejeipróximoaumarachaduranochão,umaromafamiliarmesubiupelasnarinas.

Oflip.

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CAPÍTULO31

Haviaumatristezanomenino,umamágoaprofundaqueeranovaneleemuitomaisconsistentedoqueadorqueseapossaradasuaperna.

—Moro sozinhoaqui.Não seioquevocêestáprocurando—disseEthanquando me viu examinar todos os cantos da casa.— Sempre quis me casar,cheguei perto umas duas vezes, mas nunca deu certo. Até morei com umamulheremChicagodurantealgunsanos.—Omeninoficouempéeolhousemveratravésdajanela.Suatristezaaumentou.—JohnLennondissequeavidaéoqueacontecequandovocêestáfazendooutrosplanos.Achoqueéumaótimadefinição.

Aproximei-medeleemesentei,erguendoumapataparapousaremsuacoxa.Elebaixouoolharparamimeabaneiorabo.

—Ei,Amigão,vamosprovidenciarumacoleiraparavocê.Subimosparaoseuquarto,eEthanpegouumacaixanumaprateleira.—Vamosver...Muitobem,aquiestá.Um tilintar se fez ouvir na caixa quando Ethan puxou uma coleira e a

sacudiu. O ruído era tão familiar que estremeci. Como Bailey, eu fazia essemesmobarulhosemprequememexia.

—Istoaquieradomeuoutrocachorro,Bailey,hámuito,muitotempo.Abanei o rabo ao ouvir o nome. Ethan me mostrou a coleira e a cheirei,

identificando um odor quase apagado de um outro cachorro— eu. A coleiracheiravaamim—quesensaçãomaisestranha!

Ethanbalançouacoleiraalgumasvezes.—Esse, sim, era um cachorro bonzinho, o Bailey— disse ele. Ficou ali,

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perdidoemlembranças,edepoisolhouparamim.Quandofalou,suavozestavarouca, e senti uma torrente de emoções fortes emanar dele— tristeza, amor,arrependimento e luto.—Acho que émelhor comprar uma coleira nova paravocê, Amigão. Não seria justo fazer você tentar se igualar a Bailey. Bailey...Baileyfoiumcachorromuitoespecial.

Fiqueitensoquandoavoltadecarronodiaseguintenoslevouàcidade—eunão queria voltar para a gaiola naquele lugar com um monte de cachorroslatindo.Masacabouquehavíamossaídoapenasparapegarsacosderaçãoeumacoleira dura para o meu pescoço, na qual Ethan prendeu algumas plaquinhastilintantesquandochegamosemcasa.

—Aquidiz:“MeunomeéAmigão.PertençoaEthanMontgomery”—medisseele,segurandoumadasplacasnamão.Abaneiorabo.

Depoisdeváriasdessasviagensàcidade,aprendiabaixaraguarda—jánãoparecia que Ethan fosseme abandonar. Parei de andar na sua cola e dei paraexcursionar por conta própria, alargando meu território para incluir toda aFazenda e prestando especial atenção à caixa de correio e outros lugares àmargemdaestradaondeoutroscachorrosmachoshaviamestado.

Olagocontinuavalá,eaindahaviaumafamíliadepatosidiotasvivendonassuasmargens.Atéondeeusabia,bemquepodiatratar-sedosmesmospatos—poucoimportava,porém.Elesagiamdomesmojeitoaomever,pulandonaáguaassustadosedepoisnadandodevoltaparameolhar.Eusabiaquenãoadiantavapersegui-los, mas ainda assim fazia isso, exclusivamente pelo prazer que medava.

Ethanpassavaamaiorpartedodiade joelhosnumaáreade terragrandeeúmidaatrásdacasa,edescobriqueelenãoqueriaqueeulevantasseapernaali.Conversavacomigoenquantobrincavacomaterra,eeuoescutava,abanandoorabosemprequeouviameunome.

—Nãodemora vamos começar a ir à feira dos fazendeiros aos domingos.Nossa,issoéqueédivertido!Meustomatesalcançamumótimopreço—disseele.

Uma tarde,me cansei do jogode escavar a terra e dei uma chegadinha aoceleiro.Omisteriosogatopretohámuitodesaparecera—nãohaviaindíciosdoseucheiroemlugaralgum.Fiqueimeiodesapontado,seiláporquê.Aqueleeraoúnicogatoquemedeuprazerconhecer.

Não, isso não é realmente verdade. Embora em geral a coisa toda meirritasse,oafetoincondicionaldeSininhoacabousendogratificante.

Nosfundosdoceleiro,acheiumapilhadecobertoresvelhos,mofadosemeiopodres. Quando enfiei o focinho neles e inspirei profundamente, pude sentir,

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muito de leve, o odor familiar e aconchegante do Vovô. Ali nós doiscostumávamosfazernossastarefas.

—Paramimébomsair,caminhar—medisseEthan.—Nãoseiporquenãopenseiemarrumarumcachorroantes.Oexercíciomefazbem.

TinhanoitesemquecontornávamosafazendaporumatrilhabastanteusadaquecheiravaaTroyemtodaasuaextensão.Haviaoutrasemquecaminhávamosao longo da estrada, numaou noutra direção.Eu sempre sentia algum tipo dereaçãonomeninoquandopassávamospelacasadeHannah,emboraelejamaisparasse ou entrasse para vê-la. Eu me perguntava por que já não era maispossível farejá-la ali, e me lembrava de Carly, no parque dos cachorros,definitivamenteimpregnadadoaromadeHannah.

Numadessasnoites,quandopassamospelacasadeHannah,meocorreualgoque jamais me passara pela cabeça antes: descobri que a dor enterrada lá nofundodasentranhasdomeninosepareciamuitocomaqueeusentiaemJakobtantosanosatrás.Eraumadorsolitária,asensaçãodetertidoquesedespedirdealgumacoisa.

Àsvezes,porém,esseclimasedispersavaporcompleto.Ethanadoravapegara bengala e bater numa bola no quintal, lançando-a num voo para que eu aperseguisse e trouxessedevolta.Praticávamoscom frequência esse jogo, e euteria gasto a sola dasminhas patas só para deixar omenino feliz.Quando eupegavaabolanoar,comosefosseumpedaçodecarnejogadoporcimadeumacerca,Ethansoltavaumarisadagostosa.

Em outras ocasiões, porém, o negro redemoinho da tristeza tomava-o porinteiro.

—Nuncapenseiqueaminhavidafossedarnisto—medisseelecomavozembargada,certa tarde.Afaguei-ocomo focinho,na tentativadeanimá-lo.—Totalmente sozinho, sem ninguém com quem dividir meus dias. Ganhei ummonte de dinheiro,mas passado um tempo o trabalho já nãome dava grandeprazereaífuiparando,oquetambémnãomedeusatisfação.

Corri,pegueiumabolaea jogueiemseucolo,masEthandesviouorosto,ignorandoojogo,seusofrimentotãoagudoquemedeuvontadedeganir.

—Ai,Amigão,ascoisasnemsempresaemdojeitoqueplanejamos—disseele com um suspiro. Enfiei o focinho à procura da bola, que empurrei para omeiodesuaspernas,sendo,afinal,recompensadocomumarremessofraquinho,queme pôs para correr.O coração deEthan não estava naquilo.—Cachorrobonzinho, Amigão— disse ele, distraído.—Acho que não estou commuitavontadedebrincaragora.

Fiquei frustrado. Tinha sido um cachorro bonzinho. Tinha me dedicado aEncontrarevoltadopara juntodomenino.Sóqueelenãoestava feliz,nãodo

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jeito que quase todas as pessoas ficavam quando eram Encontradas, quandoJakobouMayaeosoutroslhesentregavamcobertores,comidaeasajudavamavoltarparasuasfamílias.

FoientãoquemeocorreuqueomeupropósitonestemundonuncahaviasidoapenasEncontrar,mas,sim,salvar.Rastrearomeninonãopassavadepartedaequação.

Quando eumorava com Jakob, ele nutria essemesmo sofrimento sombrio,masquandoovimaistarde,naépocaemqueMayaeeufazíamosescola,Jakobtinhaumafamília—umafilhaeumaparceira.Eestavafeliz, tãofelizquantoEthancostumavaserquandosesentavacomHannahnavarandaeosdoisnãoparavamderir.

ParaqueEthanfossesalvo,eraprecisolhedarumafamília.Eleprecisavadeumamulheredeterumfilhocomela.Assimseriafeliz.

Namanhãseguinte,enquantoEthantrabalhavanaterra,saídecasaepegueiaestrada.Emboranãomaisexistisseo ranchodascabras,eudescobriranovoscheiros-referências nos meus passeios de carro, razão pela qual encontrar ocaminhodevoltaeratãofácilquantoexploraroterrenonosfundosdaFazenda.Uma vez na cidade, logo localizei o parque dos cachorros, embora tenhaconstatado, desapontado, que Carly não andava por ali. Brinquei com algunscãesnopátio,agorasemmedodeservistoporalguém—eupertenciaaEthaneeraumcachorrobonzinho.Tinhaumacoleiraeumnome:Amigão.

Mais tardenaquelemesmodia,Carlyseaproximou, fagueira,encantadademeverdevoltaaoparque.Enquantobrincávamos,inspireiextasiadooaromadeHannah,frescoeintensonopelodeCarly.

—Ora,ora,tudobem,cachorrinho?Hátemposvocênãoaparece.Comoestábonito!—disseamulhersentadanobanco.—Aindabemqueestãolhedandodecomer!—Elaparecia cansada, equando se levantou,passadaapenasmeiahora,apertouascostascomasmãos.—Nossa,estoutãopronta—faloucomumsuspiro.

Começou, lentamente,acaminharnacalçada,comCarlyziguezagueandoàsuafrente.NãolargueiCarly,enósdoisassustamosváriosesquilosquefugiramatoda.

Quando,apósdoisquarteirões,amulherentrounumjardimeabriuaportadeuma casa, achei recomendável não entrar atrás de Carly. Me acomodei navarandadepoisqueamulherfechouaporta,dispostoaaguardar.Eujáconheciaessejogo.

Algumas horas depois, umcarro surgiu e entrou, e uma senhora de cabelobrancodesceudobancodomotorista.Desciosdegrausdavarandaparairaoseu

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encontro.—Oi,cachorro,tudobem?VocêveiobrincarcomCarly?—cumprimentou-

meela,estendendoamão,amistosa.Reconheci a voz antes de sentir qualquer cheiro: Hannah. Com o rabo

abanando, rolei a seus pés, implorando para que suas mãos me tocassem.Conseguimeuintento.Aportadacasaseabriu.

—Oi,mãe.Elemeseguiudesdeoparquedoscachorros—disseamulher,depéàporta.Carly saiuporta aforaepulouemcimademim.Euaempurreicomdelicadeza.Nomomentoeuqueriatodaaatençãodagarota.

— Bom, onde você mora, hein, rapaz?— indagou Hannah, estendendo amãoparaaminhacoleira.Sentei.Carlymeteuacaraentrenósdois.—Cuidado,Carly — disse Hannah, empurrando a cabeça de Carly. — “Meu nome éAmigão”—leuHannahdevagar,segurandoaminhaplaca.

Abaneiorabo.—Pertençoa...Ai,meuDeus.—Oquefoi,mãe?—EthanMontgomery.—Quem?Hannahficoudepé.— Ethan Montgomery, um homem... Um homem que conheci há muito

tempo.Quandoeragarota.—Umantigonamorado?—Maisoumenosisso—respondeuHannah,comumrisinho.—Elefoi...

foimeuprimeironamorado.—Oprimeiro?Minhanossa!Eesseéocachorrodele?—É,esechamaAmigão.Abaneiorabo,enquantoCarlylambiaminhacara.—Bom,oquevamosfazer?—perguntouamulherdepéàporta.—Fazer?Achoquedevíamosligarparaele.Elemorapertodacasavelha,na

mesmaestrada.Vocêestáumbocadolongedecasa,hein,Amigão?EujáestavafartodeCarly,queaparentementenãopegaraoespíritodacoisa

econtinuavatentandosubiremmim.Rosneiparaelaeelasesentou,asorelhascoladas à cabeça. Logo, porém, pulou em cima de mim novamente. Temcachorroqueéanimadodemaisparaoprópriobem.

Eu confiava plenamente queHannahme levasse de volta para omenino eque quando omenino a visse conseguiria tê-la de volta. Era complicado,masnãopassavadeumaespéciedeEncontrar/Mostrar.Sóquecaberiaaosdoisjuntarospedaços.

E foi o que aconteceu.Cerca de uma hora depois, o carro deEthan parou

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diantedacasa.PuleideondeestavaimobilizadoporCarly,nagrama,ecorriatéele.Hannah,sentadanavaranda, ficoudepé,hesitante,enquantoEthandesciadoautomóvel.

—Ei,Amigão,quediabosvocêestá fazendoaqui?—perguntou.—Entrenocarro.

Me aboletei no banco dianteiro. Carly pôs as patas na porta do carro,tentandosentirmeucheiroatravésdovidro,comosenãotivéssemospassadoasúltimasquatrohorasgrudadosumnooutro.

—Carly,desçadaí!—comandouHannah,comseveridade.Carlydesceu.—Ora,tudobem.Oi,Hannah.—Oi,Ethan.Os dois se entreolharam durante umminuto e, então, Hannah soltou uma

gargalhada.Semjeito,elesseabraçaram,osrostossetocandodeleve.—Nãofaçoideiadecomoissoaconteceu—disseomenino.—Ora, seu cachorro estava no parque.Minha filhaRachel vai lá todas as

tardes.Opartodelaestáatrasadoumasemana,eomédicoquerqueelafaçaumpoucodeexercício.Rachelfariapolichinelosseachassequeissoajudaria.

AmimHannahdavaaimpressãodenervosa,masoqueelaestavasentindonemde longesecomparavaaoqueEthansentia—seucoraçãobatia tãoforteque dava para ouvi-lo de onde eu estava. As emoções que vinham dele eramintensaseconfusas.

— Isso é o que não entendo. Eu não estava na cidade. Amigão deve terchegado longeassimporcontaprópria.Não faço ideiadoqueo levoua fazerisso.

—Bom...—disseHannah.Osdoisficaramalisefitando.—Nãoquerentrar?—convidouela,finalmente.—Não,não.Precisovoltar.—Estábem,então.Mais olhares. Ninguém se mexeu. Carly bocejou, ficando sentada para se

espreguiçar,indiferenteàtensãoentreaquelesdois.—Eu ia ligarparavocêquandosoube...Matthew.Meuspêsames—disse

Ethan.—Obrigada—agradeceuHannah.—Fazquinzeanos,Ethan,umbocadode

tempo.—Nãomedeicontadeterpassadoessetempotodo.—É.—Vocêestádevisita?Porcausadonascimentodobebê?—Ah,não.Euagoramoroaqui.

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—Mora?—Ethanpareceuextremamentesurpreso,mas,olhandoemvolta,nada vi de surpreendente a não ser um esquilo que descera das árvores eescavava na grama algumas casas adiante. Carly olhava para o lado errado,repareicomirritação.

—Eumemudeidevoltaparacávaifazerdoisanosnomêsquevem.Racheleomaridoestãocomigoenquanto terminamareformaqueestãofazendoparaacrescentarmaisumquartoparaobebê.

—Ah!—Precisamseapressar—disseHannah,rindo.—Elaestá...Enorme.Ambos riram. Dessa vez, quando o riso cessou, alguma coisa cheirando a

tristezaseapossoudeHannah.OmedodeEthanseesvaiuetambémelepareceuassaltadoporumaestranhamelancolia.

—Foiótimorevervocê,Ethan.—Tambémadorei,Hannah.—Tchau,então.Ela deumeia-volta e se dirigiu para a casa. Ethan deu a volta no carro e

entroupelo ladodomotorista.Estava zangado, amedrontado, triste edividido.Carlyaindanãotinhavistooesquilo.Agarotasubiuoúltimodegraudavaranda.Ethanabriuaportadoautomóvel:

—Hannah!Elasevirou.Ethanrespiroufundo.Estremeceu.— Estive pensando... Você gostaria de jantar lá em casa um dia desses?

Talvez se divirta. Há tempos você não vai à Fazenda. Eu... hã... Eu fiz umahorta.Detomates...—Suavozfalhou.

—Vocêagoracozinha,Ethan?—Bom,euaprendiarequentar.Muitobem.Ambosrirameatristezaseevaporoucomosejamaistivesseestadoali.

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CAPÍTULO32

Depoisdaqueledia,passeiaencontrarHannaheCarlycomfrequência.AsduasapareciamatodahoranaFazendaparabrincar,oque,pormim,nãoconstituíaproblema.Carly sabia que a Fazenda era territóriomeu, algo que dificilmentepoderiaignorar,jáqueeulevantaraapernadeencontroatodasasárvoresdali.Eu era o Maioral, e ela não tentava me desafiar, embora se mostrasseirritantementeindiferenteaosbenefíciosqueaordemnaturalconferiaaonossogrupo declaradamente pequeno. Na maior parte do tempo, ela agia como sefôssemossimplescompanheirosdefolguedosenadamais.

Carly, concluí, não era muito brilhante. Parecia achar que podia pegar ospatosseosperseguissecombastantediscrição,oquenãopassavadeumaideiaabsolutamenteidiota.Euficavaolhandocomabsolutodesprazerenquantoelaseesgueiravapelagrama, comabarrigana terra, avançandocentímetrosde cadavez, enquanto, o tempo todo, amãe pata a observava sem piscar. Então, umarápidainvestida,umruidosoespadanardeágua,eospatosalçavamumvoorasodealgunsmetros,aterrissandopoucoàfrentedeCarlynolago.Elanadavaunsquinzeminutos, esforçando-se a ponto de quase tirar o corpoda água, e latia,frustrada,sempreque,jáestandopertinho,ospatosabriamasasasepulavamnoarparasedistanciaremmaisalgunsmetros.QuandoCarlyfinalmentedesistia,ospatos,decididos,nadavamatrásdela,grasnando,eàsvezeseladavameia-voltaetornava apersegui-los, crenteque enganaraosbobocas.Eunão tinha amenorpaciênciaparatudoisso.

Vezporoutra,EthaneeuíamosàcasadeCarlytambém,masessasvisitasnãoeramdivertidas,jáquetudoquehaviaparafazererabrincarnoquintal.

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Noverãoseguinte,dezenasdepessoassereuniramnaFazenda,sentadasemcadeirasde armarpara assistir ao showqueeuaperfeiçoara comMayaeAl equeconsistiaemandarentreascadeirascomumpassolentoeimponente,dessavez até onde Ethan havia construído uma espécie de tablado com degraus demadeiraparaquetodosmeenxergassem.Eledesamarroualgumacoisapresaaomeulombo,osdoissebeijarameconversaram,etodosriramemeaplaudiram.

Depoisdisso,HannahfoimorarconosconaFazenda,quese transformouatal ponto que quase fazia lembrar a casa da mama de Maya, com visitasaparecendo o tempo todo. Ethan arrumou mais dois cavalos para fazeremcompanhia aTroy no pátio, cavalosmenores, e as crianças que nos visitavamadoravam montar neles, embora, na minha opinião, cavalos sejam criaturasindignas de confiança, capazes de largar qualquer um perdido na floresta aomenorvislumbredeumacobra.

AdonadeCarly,Rachel,logosurgiucomumbebezinhochamadoChase,umgarotinho que adorava montar emmim, puxar meu pelo e cair na risada. Euficavaquieto quando isso acontecia, igualzinho a quandoMaya e eu fazíamosescola. Eu era um cachorro bonzinho, todo mundo dizia. Hannah tinha trêsfilhas,etodastinhamfilhostambém,demodoqueotempotodoeutinhamaiscompanheirosparabrincardoqueeracapazdecontar.

Quandonãotínhamosvisitas,EthaneHannahquasesempresesentavamnavaranda, demãos dadas, enquanto a noite esfriava. Eume deitava aos pés deambos, esbanjando contentamento. A dor do meu menino desapareceu,substituídaporumafelicidadeserena,saudável.AscriançasquenosvisitavamchamavamomeumeninodeVovô,ecadavezqueissoaconteciaocoraçãodeleinchava de alegria. Hannah o chamava de “meu amor” e querido, bem comosimplesmentedeEthan.

Essanovasituaçãosónãoeracemporcentoperfeitadevidoaofatodequequando Hannah começou a dormir com Ethan fui sumariamente enxotado dacama.Noinício,supusquesetratassedeumequívoco—afinal,haviaespaçodesobraparamimentreosdois,queeraondeeupreferiameacomodar.MasEthanmemandouficarnochão,apesardenãohavernadadeerradocomacamadooutro quarto, na qual a garota podia dormir perfeitamente bem. Na verdade,depoisdoshowquedeinopátioparatodaaquelaplateia,Ethanpôscamasemtodos os quartos de cima, até mesmo no quarto de costura da Vovó, masaparentementenenhumaeraboaobastanteparaHannah.

Apenasparatestarateoria,porém,todanoiteeupunhaaspatasnacamae,devagarzinho,tentavasubir,exatamentecomoCarlyfazianoencalçodospatos.EtodanoiteEthaneHannahseesbaldavamderir.

—Não,Amigão,podedescer—diziaEthan.

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—Elenãotemculpaportentar—atalhava,quasesempre,Hannah.Quandocaíaneve,HannaheEthanseenrolavamnumcobertoresesentavam

paraconversardiantedofogo.QuandochegavaoFelizDiadeGraçasouoFelizNatal,acasaseenchiadegente.Muitasvezeseumeviaarriscadoaserpisadoepodia escolher qualquer cama, pois as crianças ficavamencantadas quando eudormiacomelas.OmeufavoritoeraofilhodeRachel,Chase,quemelembravaligeiramente Ethan, por causa do jeito como me abraçava e amava. Quandoparoudequererandardequatrocomoumcachorroecomeçouacorrercomasduaspernas,ChasegostavadeexploraraFazenda,enquantoCarlyperseguiaemvãoospatos.

Eueraumcachorrobonzinho.Cumpriraomeupropósito.Coisasqueaprendiquando era selvagem me ensinaram a escapar e me esconder de gente, senecessário,agarimparcomidaemlixeiras.VivercomEthanmeensinaraaamarememostraraomeupropósitomais importante: cuidardomeumenino.ComJakob e Maya aprendi a Encontrar, Mostrar, e, mais importante que tudo, asalvar pessoas. Todas essas coisas, tudo que aprendi como um cachorro, melevaramaencontrarEthaneHannahejuntarosdois.Euentendiaissoagora:oporquêdetervividotantasvezes.Eraimportanteadquirirummontedetalentose conhecimentospara quando chegasse a horade resgatarEthan, nãodo lago,masdodesesperoqueafogavasuaprópriavida.

OmeninoeeuaindacaminhávamospelaFazendaànoitinha,emgeralcomHannah,masnem sempre.Eu ansiavapor ficar sozinho comEthan, ouvir suavozeoseuandarlentoecuidadosonochãoirregular.

—Comonosdivertimosessasemana.Vocênãosedivertiu,Amigão?Àsvezes,Ethanusavaabengalaparalançarabolaeeudisparava,satisfeito,

atrásdela,mordendo-adeleveantesdedeixá-lacairaseuspésparaumaoutratacada.

—Vocêéumcachorrotãoincrível,Amigão!Nãoseioquefariasemvocê—disseEthannumanoitedessas.Respiroufundo,voltando-separacontemplara Fazenda, acenando para uma mesa de piquenique cheia de crianças, queacenaramdevolta.

—Oi,vovô!—gritaramtodas.Seu evidente contentamento e amor pela vidame fizeram latir, encantado.

Elesevirouparamimeriu.— Pronto para mais uma, Amigão?— indagou, erguendo a bengala para

arremessarnovamenteabola.Chase não foi o último bebê a se juntar à família, eles não paravam de

chegar.ChaseeramaisoumenosdaidadedeEthanquandooconhecinaocasiãoemquesuamãe,Rachel,trouxeparacasaumamenininhaqueatendiaporuma

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variedade de nomes: Surpresa, Raspa do Tacho e Kearsten. Como sempre,seguraramobebêparaqueeucheirassee,comosempre,tenteiseragradecido—jamaissoubeoqueseesperavademimnessascircunstâncias.

—Vamosjogarbola,Amigão!—sugeriuChase.Aessetipodeconviteeusabiadireitinhocomoreagir!

Num belo dia de primavera eu estava em casa sozinho com Ethan ecochilava, preguiçoso, enquanto ele lia um livro à luz cálida do sol que sederramavapelajanelona.Hannahacabaradesairdecarroe,naqueleespecíficomomento, nossa casa estava estranhamente vazia de parentes visitantes. Derepente,meus olhos se abriram num susto. Virei-me e olhei para Ethan, cujoolharencontrouomeu,curioso.

—Ouviualgumacoisa,Amigão?—indagou.—Entroualgumcarro?Haviaalgodeerradocomomenino,pudesentir.Comumlevesuspiro,me

pus de pé. A ansiedade me assaltou. Ele voltara ao livro, mas riu, surpreso,quandopusminhaspatasnosofá,comosepretendessesubiremseucolo.

—Opa,Amigão,oqueéisso?Asensaçãodetragédiaiminenteaumentou.Lati,impotente.—Tudobemcomvocê?Precisairláfora?—Comumgesto,Ethanindicou

aporta,depoistirouosóculoseesfregouosolhos.—Epa,estoumeiotonto.Sentei-me.Elepiscouecontemplouovazio.—Quersaber,meuvelho?Nósdoisvamostirarumcochilo.—Levantou-se,

então, e começou a andar,meio trôpego.Ofegando, nervoso, eu o segui até oquarto.Ethansesentounacamaegemeu.

Alguma coisa se rompeu em sua cabeça, pude sentir. Ele relaxou o corpo,inspirando profundamente. Pulei na cama, mas Ethan não disse uma palavra,apenasmeencaroucomosolhosvidrados.

Não havia nada que eu pudesse fazer.Afaguei com o focinho aquelamãoinerte,assustadoramentecientedasforçasestranhasquesedebatiamdentrodele.Suarespiraçãoeracurta,irregular.

Passadaumahora, ele semexeu.Algumacoisade errado realmente estavaacontecendo,mas pude senti-lo reunindo as forças, lutandopara se libertar doquequerqueodominasse,comoumavezeumesmoluteiparasubirà tonadaáguageladadobueiro,segurandocomabocaopequenoGeoffrey.

—Ai—exclamou,ofegante.—Ai,Hannah!Maistemposepassou.Ganibaixinho,sentindoodesenrolardalutaemseu

interior. Então, seus olhos se abriram. No início pareceram desfocados,confusos,edepoisseiluminaramaomever,bemabertos.

—Ora,ora,Bailey—disseele,mecausandoumchoque.—Porondevocêandou? Senti saudades suas. — Sua mão procurou meu pelo. — Cachorro

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bonzinho,oBailey.Não foi um equívoco. Por algum motivo, ele sabia. Essas criaturas

maravilhosas,comsuasmentescomplexas,eramcapazesdemuitomaisqueumcachorro,eaconvicçãoseguraqueemanavadeEthanmefezentenderqueelejuntaraospedacinhos.OlhavaparamimeviaBailey.

—Lembradodiadoscarrinhosderolimã,Bailey?Agentebemquemostrouaeles,hein?Podecrerquesim.

Eu queria lhe dizer que sim, que eu era Bailey. Era seu único cachorro eentendia que o que quer que estivesse acontecendo dentro dele o deixava vermeuverdadeiroeu.Percebicomopoderiafazerissoe,comoumaflecha,puleidacamae saípelocorredor.Abocanheiamaçanetadoarmárioconformeaprendicom aminha primeiramãe, e o velhomecanismo girou facilmente emminhaboca, fazendo a porta se abrir.Eu a escancarei emergulhei naquelemonte decoisasmofadasno fundo, atirandopara lá eparacábotas eguarda-chuvasatépegá-locomosdentes:oflip.

Quandosubinovamentenacamaelargueioobjetoemsuamão,Ethanlevouumsustocomoseeuotivessedespertado.

—Uau,Bailey,vocêencontrouoflip.Ondefoiquepegouisso,rapaz?Lambiseurosto.—Muitobem.Vejamos.Oqueelefezemseguidaeraaúltimacoisaqueeuqueriaquefizesse.Seu

corpoestremeceucomoesforço,masEthansearrastouatéa janela,quehaviaabertoparadeixarentrararfresco.

—Muito bem, Bailey. Pegue o flip! — comandou. Com um movimentocanhestro,ergueuoflipatéopeitorileoarremessouparaoladodefora.

Eunãoqueriasairdoseulado,nemmesmoporumsegundo,masnãopudedesobedecê-lo quando ele repetiu o comando. Com as unhas das patasarranhando o carpete, passei a toda a disparada pela sala e saí pela porta decachorro, em desabalada carreira até a lateral da casa para resgatar o flip dosarbustos sobre os quais tinha caído. Corri de volta para a casa, odiando cadasegundoqueaqueleflipidiotamemantinhaafastadodomeumenino.

Quandochegueidevoltaaoquarto,viqueasituaçãopiorara.Ethanestavasentado no chão, no lugar onde estivera de pé, com o olhar desfocado e arespiraçãodifícil.Cuspioobjetoquetrouxeraparaele—nãoeramaishoraparaisso.Cuidadosamente,paranãomachucá-lo,avanceiepusminhacabeçaemseucolo.

Logo ele me deixaria, pude sentir pela desaceleração da respiraçãorouquenha.Meumeninoestavamorrendo.

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Eunãopoderiamejuntaraelenessajornadaenãosabiaaondeelaolevaria.Os humanos são muito mais complicados do que os cachorros e têm umpropósitomuitomaisimportante.Atarefadeumbomcachorroé,basicamente,lhesfazercompanhia,ficandoaseuladoindependentementedocaminhoqueavidatome.Tudoquemecabiaagoraeralhedarconforto,bemcomoacertezadequeaodeixarestavidaelenãoestariasozinho,mas,sim,assistidopelocachorroqueoamavamaisdoqueaqualquercoisanestemundo.

Suamão,fracaetrêmula,tocouopeloacimadomeupescoço.—Vousentirsaudadessuas,cachorroboboca—medisseEthan.Encostei minha cara na dele, senti seu hálito e carinhosamente lambi seu

rostoenquantoelelutavaparafixaroolharemmim.Acertaaltura,eledesistiueseusolhosseembaçaram.EunãosabiaseagoraEthanmeviacomoBaileyoucomoAmigão,masnãofaziamal.Eueraoseucachorroeeleeraomeumenino.

Sentiaconsciênciadeixá-logradualmente,comoacontececomaluzdodiaquandoosolsepõe.Nãohouvesofrimento,nemmedo,nada,excetoasensaçãode que o meumenino valente ia partir para onde devia. Ao longo de todo oprocesso, pude senti-lo cientedaminha cabeça em seu colo, até que, comumúltimosuspiro,aconsciênciaoabandonouparasempre.

Fiqueiali,quieto,comomeumenino,nosilênciodaquelatardedeprimaveranacasavazia.Logoagarotachegariaemcasae, recordandoadificuldadequetodoshaviamtidoparasedespedirdeBaileyeEllie—eatémesmodosgatos—, entendi que ela precisaria da minha ajuda para enfrentar a vida sem omenino.

Quantoamim,permaneci lealmenteondeestava,pensandonaprimeiravezqueviomeninoenessaagora,aderradeira—eemtudoqueaconteceuentreasduas.Olutodoídoeprofundoqueeusabiaserinevitávellogomeassaltaria,masnaquelemomentooqueeumaissentiaerapaz,alémdacertezadeque,aoviverminhavidadojeitoquevivera,tudohaviaseencaminhadoparaessemomento.

Meupropósitotinhasidocumprido.

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AGRADECIMENTOS

Muitaspessoasmeajudaramdemuitasformasparaqueeuchegasseatéondemeencontro hoje.Mal sei como começar a identificar todas elas— e terminar éumaescolhaaindamaisdifícil.Assim,querodeixarregistradoqueestoucientedeser,tantocomoescritorquantocomoindivíduo,umaobraemcurso,que,atéagora,éasomade tudoqueaprendievivenciei,bemcomoseiquedevo tudoàquelesquemeensinaram,ajudarameapoiaram.

Nãopossodeixardecitaralgunsdostextosqueuseinaminhapesquisasobreamaneiracomopensamoscães.Dogwatching,deDesmondMorris;WhatDogsHave TaughtMe, deMerrillMarkoe;The Hidden Life of Dogs, de ElizabethMarshall Thomas; Search and Rescue Dogs, da Associação Americana deResgatedeCães;asobrasdeCesarMillan,JamesHarriot,dodr.MartyBeckeredeGinaSpadafori.

Eunadaseriasemoapoiodaminha família, sobretudodosmeuspais,quesempreacreditaramemmimcomoescritor,adespeitodemaisdeumadécadadetrabalhosrejeitados.

ScottMiller,meuagentenaTridentMedia,que jamaisdesistiu,querdestelivro,querdemim,sempredepositouigualconfiançaemmim.

OesforçodeScottmelevouàTor/Forgeeàminhaeditora,KristinSevick,cujaféemQuatrovidasdeumcachorro,associadaaumolharmeticulosoeumtoquedeespecialista,refinarametornarammelhoresteromance.FoiumprazertrabalharcomelaetodososdemaismembrosdostaffdaTor/Forge.

Nomomentoemqueredijoestesagradecimentos,emboraolivroaindanão

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tenhaseguidoparaaimpressão,muitagentejáseesforçaparapromovê-lo,comoSherylJohnston,grandeassessoradeimprensaeumassombroaovolante;LisaNash, que recorreu à sua vasta rede para ajudar a legitimar a voz deste livro;BuzzYancey, que tentou criar... umburburinho;HilaryCarlip, que assumiuoencargoderepaginarowbrucecameron.comecriouositeadogspurpose.comdeformafantasticamentebem-sucedida;AmyCameron,queaplicouaexperiênciaadquirida em anos de ensino na redação de um guia de estudo destinado aqualquereducadorquepretendautilizarQuatrovidasdeumcachorroemsaladeaula; Geoffrey Jennings, um livreiro extraordinário que aprovou um dosprimeirosesboçosdolivro;eLisaZupan,porcaptaroespíritodacoisa.

Agradeço a todos os editores que publicamminha coluna em seus jornais,apesar do rebuliço da indústria jornalística, sobretudo ao Denver Post, quepreencheu a lacuna após o triste desaparecimento do Rocky Mountain News.Obrigado, Anthony Zurcher, por editar tão magistralmente a minha colunadurantetodosessesanos.

ObrigadoaBradRosenfeldePaulWeitzmannaPrefferedArtistsporpreferiramim,eaLaurenLloydporadministrartudo.

Obrigado a Steve Younger e Hayes Michael pelo trabalho jurídico —continuoaacharquedevíamosalegarinsanidade.

Obrigado, Bob Bridges, por continuar a fazer seu trabalho voluntário decorreçãodoserrosdaminhacoluna.Euadorariapagaravocêcemvezesoseusalárioatual.

Obrigado, Claire La Zebnik, por se arriscar, falando comigo a respeito doofíciodeescritor.

Obrigado,TomRooker,peloquequerquesejaquevocêestejafazendo.Obrigado a BigAl e Evie, por investirem pessoalmente naminha carreira

“genial”.Obrigado,Ted,Maria,Jakob,MayaeEthanpeloselogios.Obrigado a todos da Sociedade Nacional dos Colunistas de Jornais por

tentaremimpedirquefaçamospartedalistadasespéciesemriscodeextinção.Obrigado,GeorgiaLeeCameron,quemeapresentouaomundodoresgatede

cães.Obrigado,BillBelsha,portrabalharaminhacabeça.Obrigado,JenniferAltabef,pormeatendersemprequepreciseidevocê.Obrigado,AlbertoAlejandro,pormetransformar,praticamentesozinho,em

umautorbest-seller.Obrigadoavocê,KurtHamilton,pormemotivar.ObrigadoaJulieCypherpormeemprestartudoquepossui.Obrigado,MarciaWallace,vocêéaminhaactionfigurefavorita.

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Obrigado,NormaVela,porseuimensobomsenso.Obrigado,Molly,pelacarona,eSierra,porpermitirqueacontecesse.Obrigado,MelissaLawson,porprovidenciaraediçãodefinitiva.Obrigado,Betsy,Richard,Colin eSharon, por comparecerema tudo e por

tentaremmeensinaradançarrumba.AprimeirapessoaaquemconteiestahistóriafoiCathrynMichon.Obrigado,

Cathryn,porinsistirparaqueeuimediatamenteescrevesseQuatrovidasdeumcachorroeportudoomais.

Agora entendo por que tanta gente continua a falar depois que a orquestracomeçaa tocarnanoitedoOscar: a listadepessoas aquedesejo agradecer ésimplesmente interminável. Por isso, paro por aqui, encerrando com umderradeirocomentário:louvoosacrifícioeoinfindáveltrabalhodurodosvárioshomensemulheresquelabutamnoresgatedeanimais,ajudandoosperdidos,osabandonadoseosmaltratadosadescobriremvidasnovasefelizescomfamíliasamorosas.Vocêstodossãoanjos.

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PUBLISHEROmardeSouza

GERENTEEDITORIALRenataSturm

COORDENAÇÃODEPRODUÇÃOThalitaAragãoRamalho

PRODUÇÃOEDITORIALIsisBatistaPinto

REVISÃOAugustoCoutinho

ADAPTAÇÃODECAPAEDIAGRAMAÇÃOLúcioNöthlichPimentel

PRODUÇÃODOEBOOKRannaStudio