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DADOS DE COPYRIGHT · resposta). Flores altas com pendões roxos talvez. E por aí vai. O tempo todo estou vestindo a figura de mim mesma em minha própria mente, em namoro furtivo,

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DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudosacadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

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Sobre nós:

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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1917 -1921A marca na parede

Kew Gardens

Noite de festa

Objetos sólidos

Um romance não escrito

Casa assombrada

Uma sociedade

Segunda ou terça

O quarteto de cordas

Azul e verde

1922 -1925Uma escola de mulheres vista de fora

No pomar

O vestido novo

A apresentação

Juntos e à parte

O homem que amava sua espécie

1926 -1941Momentos de ser: “pinos de telha não têm pontas”

A dama no espelho: reflexo e reflexão

Lappin e Lapinova

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O holofote

O legado

ANEXOFicção moderna

Sugestões de leitura

Sobre a autora

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1917-1921

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A marca na parede

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Foi talvez em meados de janeiro deste ano que olhei pela primeira vez para cimae vi a marca na parede. Para fixar uma data é preciso lembrar o que se viu. Porisso eu penso agora no fogo; no inalterável véu de luz amarela sobre a página domeu livro; nos três crisântemos na jarra de vidro redonda na lareira. Sim, deveter sido no inverno, e tínhamos acabado de terminar nosso chá, pois lembro queeu estava fumando quando olhei para cima e vi a marca na parede pela primeiravez. Olhei para cima, através da fumaça do cigarro, e meu olhar foi alojar-sepor um momento nas brasas, e aquela velha fantasia da bandeira carmesimtremulando na torre de um castelo me veio à mente, e pensei no cortejo decavaleiros vermelhos subindo pelo penhasco negro. Mas, para meu alívio, afantasia foi interrompida pela visão da marca, porque é uma fantasia antiga, umafantasia automática, constituída talvez na infância. A marca, negra na paredebranca, era pequena e arredondada, a uns quinze centímetros acima do parapeitoda lareira.

Quão de pronto nossos pensamentos se atiram a um novo objeto, erguendo-o por um pouco, assim como formigas que carregam febrilmente uma lasca depalha e depois a abandonam… Se a marca fosse de prego, não devia ter sidopara quadro, só podia ser para miniatura — a miniatura de uma dama de cachosempoados de branco, faces empoadas de creme e lábios como cravosvermelhos. Uma fraude decerto, pois as pessoas que moraram nesta casa antesde nós teriam escolhido quadros assim — para um cômodo antigo, um quadroantigo. Eis o tipo de pessoas que eram — pessoas muito interessantes, e é tãofrequente eu pensar nelas, nesses lugares tão estranhos, porque nunca voltaremosa vê-las, nunca saberemos o que aconteceu a seguir. Pretendiam sair desta casaporque queriam mudar o estilo dos móveis, assim disse ele, e estava em processode dizer que em sua opinião a arte deveria ter ideias por trás quando fomosseparados à força, como somos separados da velha senhora que está para serviro chá e do jovem que está para atingir a bola de tênis no quintal da casasuburbana quando passamos de trem.

Mas, quanto à marca, não estou certa; não creio, afinal, que tenha sido feitapor um prego; é muito grande e redonda para ser de prego. Eu poderia levantar-me, mas se o fizesse, para a olhar, é quase certo que não saberia dizerexatamente o que é; porque, uma vez feita uma coisa, ninguém nunca sabe como

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aconteceu. Oh, meu Deus, o mistério da vida! A inexatidão do pensamento! Aignorância da humanidade! Para mostrar como é pouquíssimo o controle quetemos sobre nossas posses — sendo questão acidental que este modo de vida sejaafinal nossa civilização —, deixem-me enumerar apenas algumas das coisasperdidas em nosso tempo de vida, a começar por — que gato iria comer, querato iria roer? — três caixas azuis de ferramentas para encadernação de livros,que sempre pareceu a mais misteriosa das perdas. Depois houve as gaiolas depássaros, os aros de ferro, os patins de aço, a caixa de carvão Queen Anne, oquadro de bugigangas, o realejo — tudo se foi, e também joias. Opalas eesmeraldas jazem em torno das raízes de nabos. Como é preciso aparar e rasparpara ter certeza! Espanta é que eu tenha roupas no corpo, que me sente rodeada,neste momento, de móveis sólidos. Porque, se quisermos comparar a vida aalguma coisa, temos de equipará-la a ser levada pelo metrô a oitenta quilômetrospor hora — desembarcando no outro extremo sem um único grampo no cabelo!Lançada totalmente nua aos pés de Deus! De pernas para o ar nas campinas deasfódelos como embrulhos de papel pardo jogados, no correio, pela calhaabaixo! Com o cabelo voando para trás como o rabo de um cavalo de corrida.Sim, isso parece expressar a rapidez da vida, o gasto perpétuo e a perpétuarecuperação; e tão por acaso, tão a esmo…

Mas após a vida. A queda lenta dos pedúnculos verdes e grossos para que ocálice da flor, à medida que vira, banhe-nos de luz vermelha e púrpura. Por que,afinal, não se há de nascer lá como se nasce aqui, sem defesa e sem fala,incapaz de focar os olhos, agarrando-se às raízes da grama, aos pés dos Gigantes?Quanto a dizer o que são árvores, o que são homens e mulheres, ou se existemtais coisas, isso não estaremos em condições de fazer por cinquenta anos ou mais.Não haverá nada a não ser espaços de luz e escuridão, cruzados por pedúnculosgrossos, e talvez bem altos, traços em forma de roseta de uma cor indistinta —rosas pálidos e azuis — que se tornarão, com o passar do tempo, mais definidos,mais — não sei o quê…

E no entanto a marca na parede nem chega a ser um buraco. Pode até tersido causada por alguma coisa arredondada e preta, como uma folhinha deroseira deixada pelo verão, e não sendo eu uma dona de casa muito atenta —vejam só, por exemplo, quanta poeira em cima da lareira, a poeira que, pelo quedizem, cobriu Troia por três vezes, apenas fragmentos de vasos negando-seobstinadamente à aniquilação, como se pode crer.1

A árvore perto da janela bate de leve na vidraça… Quero pensar comcalma, em paz, espaçosamente, nunca ser interrompida, nunca ter de melevantar da cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra, sem nenhumasensação de hostilidade, nem obstáculo. Quero mergulhar cada vez mais fundo,longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis. Firmar-me bem,deixar-me agarrar a primeira ideia que passa… Shakespeare… Bem, tanto faz

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ele ou outro. Um homem que solidamente sentou-se numa poltrona e olhou parao fogo e assim… Uma chuva de ideias caiu perpetuamente de algum Céu muitoalto para atingir sua mente. Ele, abaixando a cabeça, apoiou a testa na mão, e osoutros, olhando pela porta aberta — pois supõe-se que esta cena aconteça numanoite de verão… Mas como é enfadonha esta ficção histórica! Não me interessaem nada. Bem que eu gostaria de dar com uma linha de pensamento agradável,uma linha que indiretamente refletisse crédito em mim, pois tais são ospensamentos mais agradáveis e muito frequentes até mesmo nas mentes demodestas pessoas cor de rato, que sinceramente acreditam que não gostam dereceber elogios. Não são pensamentos diretamente autoelogiosos; e essa é que éa sua beleza; são pensamentos como este:

“E então entrei na sala. Eles estavam falando de botânica. Falei da flor queeu tinha visto crescendo num monte de lixo no quintal de uma casa velha emKingsway. A semente, disse, deve ter sido plantada no reinado de Carlos i. Queflores ocorriam no reinado de Carlos I?”, perguntei — (mas não me lembro daresposta). Flores altas com pendões roxos talvez. E por aí vai. O tempo todo estouvestindo a figura de mim mesma em minha própria mente, em namoro furtivo,não a adorando abertamente, pois, se o fizesse, eu deveria considerar-me emerro e esticar a mão de imediato para em autoproteção apanhar um livro. Écurioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria oude qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais dooriginal para que ainda acreditem nela. Ou isso não é, afinal de contas, tãocurioso assim? É uma questão de grande importância. Suponha-se que o espelhose despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundoverde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca deuma pessoa que é vista por outras — que mundo raso, árido, proeminente e semar ela se torna! Não um mundo no qual viver. Quando nos encontramos face aface, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; oque explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos. E os romancistas dofuturo dar-se-ão cada vez mais conta da importância dessas reflexões, pois claroestá que não há só um, mas sim um número quase infinito de reflexões; são essasprofundidades que eles irão explorar, esses os fantasmas que perseguirão,deixando a descrição da realidade cada vez mais fora de suas histórias, jácontando com um conhecimento dela, como fizeram os gregos e talvezShakespeare — mas essas generalizações são muito inúteis. Basta o timbre militarda palavra, que lembra editoriais, ministros de gabinete — toda uma categoria decoisas que em criança tomávamos pelo que podia haver de mais sério, de maisgrave, de mais importante, e das quais não se podia escapar, a não ser sob riscode inominável danação. As generalizações trazem de volta, de alguma forma, odomingo em Londres, os passeios nas tardes de domingo, os almoços dedomingo, e também modos de falar de mortos, roupas, hábitos — como o hábito

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de se sentarem todos juntos numa sala até certa hora, embora ninguém gostassedisso. Havia uma regra para tudo. A regra para toalhas de mesa, nessa épocaespecífica, é que deveriam ser feitas em tapeçaria, com pequenoscompartimentos amarelos voltados para o lado de cima, como se pode ver emfotografias dos tapetes nos corredores dos palácios reais. As toalhas de outro tiponão eram verdadeiras. Quão chocante, no entanto quão maravilhoso, descobrirque essas coisas verdadeiras, os almoços de domingo, os passeios de domingo, ascasas de campo e as toalhas de mesa, não eram afinal tão verdadeiras assim,sendo de fato meio fantasmais, e que a danação que se abatia sobre quem nãoacreditava nelas era apenas uma impressão de liberdade ilegítima. O que agoratoma o lugar dessas coisas, pergunto-me, dessas coisas importantes e sérias?Talvez os homens, caso você seja mulher; o ponto de vista masculino quegoverna nossas vidas, que fixa o padrão, que estabelece a Ordem de Precedênciade Whitaker,2 a qual desde a guerra se tornou meio fantasma, suponho eu, paramuitos homens e mulheres, e que em breve, é lícito esperar, será motivo de risona lata de lixo para onde vão os fantasmas, os bufês de mogno e as gravuras deLandseer,3 deuses e demônios, o Inferno e assim por diante, deixando-nos atodos uma impressão intoxicante de liberdade ilegítima — se existe liberdade…

Sob certas luzes essa marca na parede parece na verdade se projetar daparede. Não é perfeitamente circular. Não posso ter certeza, mas parece lançaruma sombra perceptível, sugerindo que, se eu corresse o dedo para baixo,naquela faixa da parede, a um certo ponto ele iria subir e descer por ummontículo, liso como os de South Downs, que ou bem são túmulos, segundodizem, ou bem, acampamentos. Dos dois, eu preferiria que fossem túmulos,desejando a melancolia, como a maioria dos ingleses, e achando natural, ao fimde uma caminhada, pensar nos ossos esticados que há embaixo da terra… Devehaver algum livro sobre isso. Algum antiquário deve ter escavado essas ossadas,dando-lhes depois um nome… Que espécie de homem, pergunto-me, é umantiquário? A maioria é de coronéis reformados, creio eu, guiando grupos detrabalhadores idosos até o cume, examinando torrões e pedras e correspondendo-se com o clero das redondezas, o qual lhes dá, já estando aberto à hora dodesjejum, um sentimento de importância, e a comparação de pontas de flechasnecessita de longas viagens às cidades da região, necessidade agradável tantopara eles quanto para suas velhas esposas, que querem fazer uma geleia deameixa, ou uma faxina no escritório, e têm todas as razões para manter essagrande questão de acampamento ou túmulo em suspensão perpétua, enquanto opróprio coronel sente-se satisfatoriamente filosófico ao acumular evidênciassobre os dois lados da questão. É verdade que ele finalmente se inclina a crer noacampamento; e, quando se opõem à sua hipótese, redige um panfleto que está aponto de ler na reunião trimestral da sociedade local quando um infarto oderruba, e seus últimos pensamentos conscientes não se reportam a mulher nem

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aos filhos, mas ao acampamento e àquela ponta de flecha, que agora está navitrine do museu da cidade, junto com o pé de uma assassina chinesa, umpunhado de pregos elizabetanos, muitos cachimbos de barro Tudor, umfragmento de cerâmica romana e o copo em que Nelson bebeu vinho —provando realmente não sei o quê.

Não, não, nada é provado, nada é sabido. E se eu me levantasse, neste exatomomento, e me certificasse de que a marca na parede é na verdade — comodevo dizer? — a cabeça de um velho prego gigante, cravado ali há uns duzentosanos e que agora, devido ao paciente atrito causado por muitas gerações defaxineiras, apontou a cabeça por cima das camadas de tinta para dar suaprimeira olhada na vida moderna, captando-a numa sala onde as paredes sãobrancas e a lareira está acesa, o que eu ganharia? Conhecimento? Tema paraespeculação posterior? Quer em pé, quer sentada sem me mexer, eu sou capazde pensar. E o que é conhecimento? O que são nossos homens de saber senãodescendentes de bruxas e eremitas que se acocoravam em grutas e nas mataspreparando suas beberagens de ervas, interrogando musaranhos e anotando alinguagem das estrelas? E quanto menos os respeitamos, à medida que nossassuperstições se reduzem e aumenta nosso respeito pela beleza e a saúde mental…Sim, poder-se-ia imaginar um mundo muito agradável. Um tranquilo mundoespaçoso, com flores bem azuis e vermelhas pelos descampados. Um mundosem professores, sem especialistas, sem zeladores com perfis de polícia, ummundo que se pudesse cortar com o pensamento como um peixe corta a águacom suas nadadeiras, roçando em talos de nenúfares que pendem suspensossobre ninhos de ovos brancos do mar… Como é tranquilo aqui embaixo,enraizado no centro do mundo e olhando para cima pelo acinzentado das águas,com seus repentinos fachos de luz, com seus reflexos — ah, se não fosse oAlmanaque de Whitaker — se não fosse a Ordem de Precedência!

Tenho de me levantar para ir ver em pessoa o que é realmente esta marcana parede — um prego, uma folha de roseira, uma racha na madeira?

Aqui está mais uma vez a Natureza em seu velho jogo de autopreservação.Esta linha de pensamento, percebe ela, ameaça tornar-se pura perda de energia,ameaça até mesmo colidir com a realidade, pois quem jamais será capaz de pôrum dedo em riste contra a Ordem de Precedência de Whitaker? O arcebispo deCanterbury é seguido pelo presidente da Câmara dos Pares; o presidente daCâmara dos Pares é seguido pelo arcebispo de York. Todo mundo segue alguém,tal é a filosofia de Whitaker; e a grande coisa é saber quem segue quem.Whitaker sabe, e você que se console com isso, como a Natureza aconselha, aoinvés de enraivar-se; mas, se você não puder ser consolada, se tiver de estragaresta hora de paz, pense então na marca na parede.

Entendo o jogo da Natureza — sua prontidão para agir como modo deinterromper qualquer pensamento que ameace agitar ou causar dor. Daí provém,

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suponho, nosso leve desprezo pelos homens de ação — homens, presumimos, quenão pensam. Seja como for, não faz mal ficar olhando uma marca na paredepara pôr um ponto final em nossos desagradáveis pensamentos.

De fato, agora que fixei o olhar nela, sinto que me agarrei a uma tábua desalvação; tenho uma satisfatória noção de realidade que de uma vez por todastransforma os dois arcebispos e o presidente da Câmara dos Pares em merassombras. Eis aqui alguma coisa concreta, definida. Assim, despertando de umsonho de horror à meia-noite, logo a pessoa acende a luz e se mantémquiescente, adorando o gaveteiro, adorando a solidez, adorando a realidade,adorando o mundo impessoal que é prova de alguma existência que não a sua. Édisso que queremos estar seguros… A madeira é uma boa coisa na qual pensar.Vem de uma árvore; e as árvores crescem, e não sabemos como crescem. Poranos e anos elas crescem, sem nos dar nenhuma atenção, em campinas, emflorestas e à beira dos rios — coisas nas quais, sem exceção, nós gostamos depensar. As vacas dão chicotadas com o rabo, à sombra delas, nas tardes quentes;elas pintam tão de verde os rios que, quando um frango-d’água mergulha,esperamos vê-lo com as penas todas verdes, quando volta à tona. Gosto de pensarnos peixes que balançam contra a correnteza como bandeiras ao vento; e nosbesouros-d’água que lentamente vão erguendo domos de lama sobre o leito dorio. Gosto de pensar na árvore em si: primeiro na íntima e seca sensação de sermadeira; depois na trituração pela tempestade; depois na lenta, deliciosapenetração de seiva. Gosto de pensar nisso também nas noites de inverno, quandome ergo no campo vazio com as folhas todas dobradas, fechando-me sem nadaexpor de sensível aos projéteis de ferro que vêm da lua, um mastro nu na terraque não para, ao longo de toda a noite, de rodopiar. O canto dos passarinhos devesoar muito alto e estranho em junho; e que frio devem sentir nos pés os insetos,quando fazem seus laboriosos avanços, subindo pelas rugas da casca, ou tomamsol sobre o toldo verde e fino das folhas, olhando reto para a frente com seusolhos vermelhos, cortados em forma de diamante… Uma a uma as fibrasestalam sob a imensa pressão fria da terra e vem então o temporal mais recentee os galhos mais altos, caindo, cravam-se na terra de novo, e fundo. Nem assim avida acaba; para uma árvore, ainda há um milhão de vidas pacientes e atentasem todo o mundo, em quartos de dormir, em barcos, no assoalho, forrando salasonde homens e mulheres sentam-se depois do chá para fumar seus cigarros. Estácheia de pensamentos tranquilos, de pensamentos felizes, esta árvore. Bem queeu gostaria de pegar cada um deles separadamente — mas alguma coisa estáatrapalhando. Onde é que eu estava? De que é mesmo que se tratava? Umaárvore? Um rio? A região dos Downs? O Almanaque de Whitaker? Os campos deasfódelos? Não consigo me lembrar de nada. Tudo está se movendo, caindo,deslizando, sumindo… Há uma vasta sublevação da matéria. Alguém está de pé,acima de mim, e diz:

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“Vou sair um instante para comprar um jornal.”“Hein?”“Se bem que nem adianta comprar jornais… Nunca acontece nada. Maldita

guerra; que Deus maldiga esta guerra!… Seja como for, não vejo por quetínhamos de ter um caramujo na parede.”

Ah, a marca na parede! Era um caramujo.

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KEW GARDENS

Do canteiro de flores em forma oval erguia-se talvez uma centena de talos queno meio da ascensão se alargavam em folhas em forma de coração ou de línguae se desfraldavam na ponta em pétalas vermelhas ou azuis ou amarelas commanchas de outra cor a marcá-las na superfície; e da obscuridade do colo,vermelha, azul ou amarela, emergia uma haste reta, coberta de pó dourado eligeiramente rombuda na ponta. As pétalas eram suficientemente volumosaspara serem sopradas pela brisa do verão e, quando se moviam, as luzesvermelhas, azuis e amarelas passavam umas sobre as outras, lançando em doisdedos da terra escura por baixo uma pequena mancha de coloração intrincada.Ou bem a luz caía no dorso liso e acinzentado de uma pedrinha, ou bem nascostas de um caracol, sobre sua concha de veios pardos circulares, ou ainda,caindo numa gota de chuva, expandia com tal intensidade de vermelho, azul eamarelo as paredes finas da água, que se esperava que fossem rebentar e sumir.Em vez disso, voltou a gota a receber um segundo cinza-prateado, e a luz foiconcentrar-se agora na carne de uma folha, revelando, por baixo da superfície, aesgalhada trama de fibras, e de novo se moveu e estendeu sua iluminação aosvastos espaços verdes sob a abóbada de folhas em forma de coração e de língua.A brisa então soprou ligeiramente mais forte e a cor, sendo esbatida para cima,desapareceu pelo ar, pelos olhos dos homens e mulheres que andavam em julhopor Kew Gardens.

As figuras desses homens e mulheres passaram desgarradas pelo canteirode flores numa movimentação curiosamente irregular, não destituída desemelhança com a das borboletas brancas e azuis que cruzavam o gramado emvoos em ziguezague de canteiro em canteiro. O homem ia a uns dois palmos nafrente da mulher, vagando distraidamente, enquanto ela se demorava maisconcentrada, só virando a cabeça de vez em quando para ver se as crianças nãotinham ficado muito para trás. O homem mantinha aquela distância à frente damulher de propósito, embora talvez inconscientemente, porque queria seguir com

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seus pensamentos.“Faz quinze anos que estive aqui com Lily”, pensava ele. “Sentamo-nos à

beira de um lago por ali e eu, durante toda a tarde quente, pedi que ela se casassecomigo. Em torno de nós, circulando sem parar, um louva-a-deus: que agora euvejo tão claramente como o sapato dela, com uma fivela quadrada prateada naponta. O tempo todo em que eu falava, olhava para o sapato e, quandoimpacientemente ele se mexia, eu sabia sem olhar para cima o que ela iria dizer:toda ela parecia estar no sapato. Já meu amor, meu desejo estavam no louva-a-deus; por alguma razão eu pensava que, se ele pousasse lá, naquela folha, a folhalarga com uma flor vermelha no meio, se o louva-a-deus pousasse ali ela iriadizer ‘Sim’ sem pestanejar. Mas o louva-a-deus voava sem parar, nunca pousouem canto algum — felizmente aliás, porque senão eu não estaria passeando poraqui com Eleanor e as crianças. — Você às vezes pensa no passado, Eleanor?”

“Por que a pergunta, Simon?”“Porque eu andei pensando no passado. Lembrei de Lily, a mulher com

quem eu poderia ter-me casado… Mas por que você ficou tão calada? Importa-lhe que eu pense no passado?”

“Mas por que importaria, Simon? Não pensamos todos nós no passado, numjardim com homens e mulheres sob as árvores? Não são eles o nosso própriopassado, tudo o que resta dele, esses homens e mulheres, esses fantasmas quejazem sob as árvores… nossa felicidade, nossa realidade?”

“Para mim, uma fivela de sapato, quadrada e prateada, e um louva-a-deus…”

“Para mim, um beijo. Imagine seis mocinhas sentadas diante de seuscavaletes, há vinte anos, na beira de um lago, pintando nenúfares, os primeirosnenúfares vermelhos que eu via. E de repente um beijo, bem na minha nuca.Não pude mais pintar, porque fiquei a tarde toda com a mão tremendo. Pegueimeu relógio e marquei a hora em que me permitiria pensar no beijo por somentecinco minutos — era tão precioso —, o beijo de uma velha grisalha com umaverruga no nariz, a mãe de todos os meus beijos na vida. Venha, Caroline, venha,Hubert.”

Passaram pelo canteiro de flores, andando agora os quatro lado a lado, elogo diminuíram de tamanho entre as árvores, dando a impressão de seremsemitransparentes à medida que a luz e sombras boiavam nas suas costas emmanchas trêmulas, grandes e irregulares.

No canteiro oval de flores o caracol, cuja concha fora tingida de vermelho,azul e amarelo por mais ou menos dois minutos, parecia mover-se agora muitolentamente na concha, para logo se esforçar sobre fragmentos de terra fofa quese despedaçavam rolando quando ele passava por cima. Dava a impressão de terpela frente um objetivo definido, diferindo nesse aspecto do singular inseto verdee anguloso que com altas passadas tentou atravessar na sua frente e esperou por

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um segundo com as antenas tremendo, como que em deliberação, e depois puloufora na direção oposta, tão rápida e estranhamente como tinha chegado.Íngremes e escuros rochedos com fundos lagos verdes nas cavidades, árvoreslisas como lâminas que tremiam das raízes ao topo, pedregulhos redondosacinzentados, vastas superfícies enrugadas de uma rala textura quebradiça —todos esses obstáculos contrapunham-se ao avanço do caracol entre um talo eoutro em direção ao seu destino. Antes de ele haver decidido se contornava atenda arqueada de uma folha seca ou se a peitava, os pés de outros sereshumanos passaram também pelo canteiro.

Ambos dessa vez eram homens. E a expressão do mais novo dos dois era decalma talvez inatural; ele erguia os olhos e os fixava com absoluta regularidade àfrente enquanto seu companheiro falava e, tão logo o companheiro tinha acabadode falar, olhava para o chão novamente e às vezes abria os lábios, mas só depoisde uma longa pausa, e às vezes nem sequer chegava a abri-los. O homem maisvelho tinha um método curiosamente irregular e desengonçado de andar,esticando a mão para a frente e jogando a cabeça abruptamente para o alto,mais ou menos à maneira de um impaciente cavalo de carruagem cansado deesperar na frente de uma casa; mas no homem esses gestos eram irresolutos edespropositados. Ele quase não parava de falar; sorria para si mesmo e retomavaa conversa, como se aquele seu sorriso tivesse sido uma resposta. Estava falandosobre espíritos — os espíritos dos mortos que, segundo ele, neste exato momentolhe contavam as mais variadas e estranhas coisas sobre suas experiências no Céu.

“O Céu era conhecido pelos antigos como Tessália, William, e agora, comesta guerra, os temas espirituais estão rolando entre as colinas como um trovão.”Fez uma pausa, parecia escutar, sorriu, soergueu a cabeça e prosseguiu:

“Trata-se de uma pequena bateria elétrica, com uma capa de borrachapara isolar o fio — isolar? — insular? — bem, vamos deixar de lado os detalhes,não adianta entrar em detalhes que não seriam entendidos —, e a maquininha,em suma, fica em qualquer lugar conveniente à cabeceira da cama, digamos,sobre uma mesinha de mogno, de bom gosto. Sendo todos os preparativoscorretamente executados por trabalhadores dirigidos por mim, a viúva encosta oouvido ali e convoca o espírito por sinal, como combinado. Mulheres! Viúvas!Mulheres de preto…”

A essa altura ele deu a impressão de ter avistado ao longe um vestido demulher que parecia ser, na sombra, de um preto arroxeado. Tirou o chapéu, pôsa mão no coração e, com gestos e murmúrios febris, precipitou-se em seuencalço. Mas William pegou-o pela manga e, para distrair a atenção do velho,apontou com a ponta da bengala para uma flor. Depois de a olhar por ummomento, meio confuso, o velho se dobrou e encostou o ouvido nela, como seouvisse uma voz vindo dali, pois começou a falar sobre as florestas do Uruguaique ele tinha visitado centenas de anos antes em companhia das jovens mais

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bonitas da Europa. Podia ser ouvido murmurando sobre as florestas do Uruguaicobertas de pétalas brilhantes de rosas tropicais, rouxinóis, praias, sereias emulheres afogadas no mar, enquanto condescendia em ser levado adiante porWilliam, em cuja face a expressão de estoica paciência tornava-se pouco apouco mais drástica.

Seguindo-lhe os passos com atenção, a ponto de ficarem ligeiramenteintrigadas com seus gestos, vinham duas velhotas da classe média baixa, umagorda e pesada, a outra lépida e de rosto corado. Como a maioria das pessoas desua condição, elas eram francamente fascinadas por quaisquer sinais deexcentricidade que denunciassem um cérebro em desordem, especialmenteentre os ricos; mas estavam muito longe para saber ao certo se eram gestosmeramente excêntricos ou autenticamente loucos aqueles. Depois deexaminarem em silêncio, por um momento, as costas do velho, e de lançaremuma à outra o mesmo olhar zombeteiro, continuaram elas com a montagem,ambas cheias de energia, de seu muito complicado diálogo:

“Nell, Bert, Lot, Cess, Phil, Pa, ele diz, eu diz, ela diz, eu diz, eu diz, eudiz…”

“Meu Bert, Sis, Bill, Vovô, o velho, açúcar,Açúcar, farinha, peixe seco, verduras,Açúcar, açúcar, açúcar.”Pelo padrão de palavras em cascata a mulher pesadona olhou com uma

curiosa expressão para as flores que se mantinham na terra, serenas, firmes,eretas. Viu-as como alguém que ao acordar de um sono profundo vê umcandelabro de bronze refletindo a luz de um modo estranho e fecha os olhos evolta a abri-los e, vendo o candelabro ali de novo, finalmente acorda de vez e oencara com toda a força que tem. A pesadona se deteve ao lado do canteiro ovalde flores e cessou até de fingir que ouvia o que a outra mulher ia dizendo. Ficouali, deixando que as palavras lhe caíssem por cima, balançando lentamente aparte superior de seu corpo para a frente e para trás, olhando as flores. Sugeriuentão que elas sentassem nalgum canto para tomar seu chá.

O caracol a essa altura já havia considerado todas as possíveis maneiras deatingir seu objetivo sem contornar a folha seca nem subir por cima dela. Alémdo esforço necessário para escalar uma folha, restava-lhe a dúvida se a finatextura que vibrava com estalidos tão alarmantes, quando tocadas só pela pontade seus chifres, aguentaria seu peso; por isso ele decidiu finalmente se arrastarpor baixo dela, pois havia um ponto em que a folha se arqueava bem acima dosolo para admiti-lo. Tinha acabado de enfiar a cabeça na abertura e já se estavaacostumando, enquanto considerava a altura do telhado, à luz terrosa e fresca queatravés dele se filtrava, quando vieram duas outras pessoas passando no gramadolá fora. Dessa vez eram ambos jovens, um rapaz e uma moça. Ambos no vigordos anos, ou mesmo nessa estação que precede o vigor dos anos, antes de as

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dobras cor-de-rosa e aveludadas da flor se livrarem do seu viscoso invólucro,quando as asas da borboleta, embora já crescidas, mantêm-se imóveis no sol.

“Que sorte que não é sexta-feira”, observou ele.“Por quê? Você acredita em sorte?”“Na sexta eles cobram meio xelim.”“Mas o que é meio xelim? Isso não vale?”“Isso o quê? O que você quer dizer com ‘isso’?”“Oh, qualquer coisa — quero dizer —, você sabe o que é que eu quero

dizer.”Houve longas pausas entre cada uma dessas observações pronunciadas em

vozes inexpressivas e monótonas. De pé na beira do canteiro de flores, o casal semantinha imóvel, e juntos eles fizeram pressão para enfiar a ponta da sombrinhadela bem fundo na terra mole. Tal ação e o fato de ele ter a mão sobre a delaexpressavam de um modo estranho seus respectivos sentimentos, como aquelaspalavras curtas e insignificantes expressavam também alguma coisa, palavrascom asas curtas para seu corpo tão prenhe de significado, inadequadas para levá-las longe e assim pousando desajeitadamente nos próprios objetos comuns que ascircundavam e que a seu tato inexperiente eram tão maciças: mas quem sabe(desse modo pensaram eles, ao espetarem a sombrinha na terra) que precipíciosnão estão ocultos nelas, ou que encostas de gelo não estão brilhando ao sol dooutro lado? Quem sabe? Quem já viu isso antes? Mesmo quando ela seperguntava que tipo de chá poderia ser servido em Kew, sentia ele que algumacoisa assomava por trás de suas palavras e por trás delas se mantinha, vasta esólida; e muito lentamente a neblina se levantou revelando — oh, meu Deus —,que formas eram aquelas? — mesinhas brancas e também garçonetes queolharam primeiro para ela e depois para ele; e houve uma conta que ele pagariacom uma moeda real de dois xelins, real mesmo, totalmente real, garantia-seele, pondo os dedos na moeda em seu bolso, real para todo mundo, a não ser paraeles dois; aliás para ele já começava a parecer real; e aí — mas, sendo pordemais excitante continuar de pé e pensando, ele puxou a sombrinha para fora daterra, com um safanão, e mostrou-se impaciente para achar o lugar em que setomava chá em companhia dos outros, como os outros.

“Vamos, Trissie; está na hora do chá.”“Onde é que se toma chá por aqui?”, perguntou ela, com o mais estranho

frêmito de animação na voz, olhando vagamente ao redor, deixando-se arrastar earrastando sua sombrinha pela trilha na grama, virando a cabeça para este ladoou aquele, esquecendo-se completamente do chá, querendo chegar lá embaixo edepois mais baixo ainda, lembrando-se de orquídeas e grous entre floressilvestres, um pagode chinês e uma ave de crista vermelha; e ele sempre a levá-la.

Assim um casal depois do outro passava pelo canteiro de flores, com muito

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da mesma movimentação irregular e sem objetivo, e era envolvido em camadaapós camada de vapor verde-azulado, no qual a princípio seus corpos tinhamsubstância e um pouco de cor, embora cor e substância se dissolvessem maistarde na atmosfera verde-azulada. Que calor fazia! Estava tão quente que até otordo preferiu ir pular à sombra das flores, com longas pausas entre ummovimento e o seguinte, como um passarinho mecânico; em vez de vagarem aoacaso, as borboletas brancas dançaram umas sobre as outras, formando comsuas móveis camadas brancas o contorno de uma coluna de mármoredespedaçada sobre as flores mais altas; os telhados de vidro da casa daspalmeiras brilhava como se todo um mercado cheio de cintilantes sombrinhasverdes tivesse aberto no sol; e no zumbido do aeroplano a voz do céu de verãomurmurava sua alma impetuosa. Amarelo e preto, rosa e branco-neve, formasde todas essas cores, homens, mulheres e crianças foram localizadas por umsegundo no horizonte e aí, vendo a extensão de amarelo que se abria na grama,eles acenaram e foram à procura de sombra embaixo das árvores, dissolvendo-se como gotas d’água na atmosfera amarela e verde, tingindo-a levemente devermelho e azul. Parecia que todos os corpos pesados e compactos tinhambaixado imóveis no calor e jaziam amontoados no chão, mas suas vozes partiamdeles tremulantes como se fossem chamas a espichar-se dos grossos corpos decera das velas. Vozes, sim, vozes sem palavras, quebrando de repente o silênciocom um contentamento tão profundo, com paixão tão desejosa ou, nas vozes dascrianças, com tal frescor de surpresa; quebrando o silêncio? Mas não haviasilêncio; o tempo todo os ônibus motorizados viravam suas rodas e mudavam demarcha; como um imenso jogo de caixinhas chinesas, todas em aço trabalhado,dispondo-se incessantemente umas dentro das outras, a cidade murmurava; notopo, vozes gritavam alto e as pétalas de miríades de flores espoucavam suascores no ar.

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NOITE DE FESTA

Ah, mas vamos esperar um pouco! — A lua está no alto; o céu, aberto; e lá,erguendo-se numa elevação contra o céu, com árvores por cima, está a terra. Asnuvens prateadas e fluidas contemplam ondas do Atlântico. Na esquina da rua, ovento sopra de leve e me levanta o casaco, estendendo-o delicadamente no arantes de o deixar curvar-se e cair, como o mar que agora engrossa para rebentarnos rochedos e depois se afasta de novo. — A rua está quase vazia; as venezianasdas janelas estão fechadas; as vidraças amarelas e vermelhas dos navios lançampor um momento um reflexo sobre o azul flutuante. Doce é o ar da noite. Ascriadas deixam-se ficar ao redor da caixa de correio ou namoram na sombra daparede onde a árvore derrama sua chuvarada escura de flores. Tal como nacasca da macieira as mariposas tremem sugando açúcar pelo longo filamentonegro da probóscide. Onde estamos? Que casa pode ser a casa da festa? Todasessas são pouco comunicativas, com suas janelas cor-de-rosa e amarelas. Ah —dobrando a esquina, ali no meio, lá onde a porta está aberta —, espere ummomento. Vamos observar as pessoas, uma, duas, três, que se precipitam na luzcomo as mariposas vão de encontro ao vidro de uma lanterna que ficou no chãoda floresta. Eis um táxi que passa depressa para o mesmo local. Dele desce umadama volumosa e pálida, que entra na casa; um senhor vestido para a noite, empreto e branco, paga ao chofer e a segue, como se ele também estivesse muitoapressado. Venha, porque senão nos atrasamos.

Sobre todas as cadeiras há almofadinhas macias; nesgas tênues de gazeenroscam-se por sobre sedas brilhantes; velas vertem chamas periformes nosdois lados do espelho oval; há escovas de fino casco de tartaruga; frascos talhadoscom lavores de prata. Pode isto ter sempre esta aparência — não é isto aessência — o espírito? Alguma coisa dissolveu meu rosto. Coisa que aliás malaparece em meio à névoa prateada da luz das velas. Pessoas passam por mimsem me ver. Como têm rostos, as estrelas parecem cintilar em seus rostos,através da rósea coloração da carne. A sala está repleta de figuras vívidas,

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contudo insubstanciais, que se postam eretas à frente de prateleiras listadas porinumeráveis volumezinhos; cabeças e ombros maculam quinas de moldurasquadradas com douração; e a massa de seus corpos, lisos como estátuas depedra, conglutina-se contra uma coisa cinzenta, tumultuosa, brilhante também,como que tendo água dentro, além das janelas sem cortinas.

“Venha para o canto e vamos conversar.”“Maravilhosos! Maravilhosos seres humanos! Espiritualizados e

maravilhosos!”“Porém eles não existem. Você não está vendo o lago, pela cabeça do

Professor? Não está vendo o cisne nadar, pela saia de Mary ?”“Posso imaginar umas rosinhas de fogo espalhadas em torno deles.”“As rosinhas de fogo não são senão como os vaga-lumes que vimos juntos

em Florença dispersos pela glicínia, átomos flutuantes de fogo, que vãoqueimando enquanto voam — queimando, não pensando.”

“Queimando, não pensando. E assim todos os livros por trás de nós. Aquiestá Shelley — aqui está Blake. Basta jogá-los no ar para ver seus poemasdescerem como paraquedas dourados que rodopiam e brilham e vão deixandocair sua chuva de florações em forma de estrelas.”

“Quer que eu lhe cite Shelley? ‘Vamos! faz escuro no matagal sob a lua…’”“Espere, espere! Não condense nossa atmosfera tão fina em gotas de chuva

salpicando a calçada. Vamos respirar mais um pouco no pó de fogo.”“Vaga-lumes na glicínia.”“Bem cruel, reconheço; mas veja como as grandes floradas surgem diante

de nós; vastos candelabros de ouro e roxo fosco pendentes dos céus. Você nãosente como a bela douradura nos tinge as coxas, quando entramos, e como asparedes cor de ardósia oscilam pegajosamente sobre nós, quando nosarremessamos, cada vez mais fundo, pelas pétalas, ou então se esticam comotambores?”

“O professor se agiganta sobre nós.”“Diga-nos, Professor…”“Madame?”“Em sua opinião é necessário escrever gramáticas? E a pontuação? A

questão das vírgulas de Shelley interessa-me profundamente.”“Vamos sentar. Para dizer a verdade abrir janelas após o pôr-do-sol — eu

de pé com as minhas costas — conversa todavia agradável — Sua pergunta,sobre as vírgulas de Shelley. Questão de certa importância. Ali, um pouco para asua direita. A edição da Oxford. Meus óculos! O castigo dos trajes de noite! Nãome aventuro a ler… Além do mais vírgulas… O tipo moderno é execrável.Concebido para corresponder à exiguidade moderna; pois eu confesso queencontro pouco de admirável nos modernos.”

“Nisso eu concordo inteiramente com o senhor.”

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“Ah, é? Pois eu temia oposição. Na sua idade, nos seus — trajes.”“Professor, eu encontro pouco de admirável nos antigos. Estes clássicos —

Shelley, Keats; Browne; Gibbon; haverá uma página que o senhor possa citarinteira, um parágrafo perfeito, uma frase mesmo que não se possa veremendada pela pena de Deus ou do homem?”

“Xi, Madame! Sua objeção tem peso, mas falta-lhe sobriedade. Além domais a sua escolha de nomes… Em que câmara do espírito pode a senhoraconsorciar Shelley e Gibbon? A não ser de fato pelo ateísmo de ambos — Masvamos ao ponto. O parágrafo perfeito, a frase perfeita; hum! — minha memória— e depois meus óculos, que eu larguei lá por trás, no parapeito da lareira.Garanto. Mas a sua crítica aplica-se à própria vida.”

“Certamente esta noite…”“A pena do homem, imagino, poderia ter pouco trabalho para reescrever

isso. A janela aberta — de pé na corrente de ar — e, permitam-me sussurrá-lo, aconversa destas senhoras, compenetradas e benevolentes, com opiniões exaltadassobre o destino do negro que está neste momento mourejando sob chicote paraextrair borracha para alguns dos nossos amigos envolvidos em amenasconversações aqui. Para desfrutar da perfeição da senhora…”

“Concordo com o senhor. Há que excluir.”“A maior parte de tudo.”“Mas, para demonstrar corretamente isso, temos de descer à raiz das coisas;

pois temo que sua crença seja apenas um desses amores-perfeitos que sãocomprados e plantados para uma noite de festa e de manhã já estão murchos. Osenhor mantém a exclusão de Shakespeare?”

“Madame, eu não mantenho nada. Estas senhoras me deixaram fora demim.”

“São mulheres benevolentes, que armaram seu acampamento à margemde um dos riachos tributários de onde, colhendo ali caniços para flechas emergulhando-os bem em veneno, com o cabelo entrançado e a pele pintada deamarelo, elas saem de vez em quando para plantá-los nos flancos do conforto;tais são as mulheres benevolentes.”

“Os dardos que elas atiram ardem. Isso, somado ao reumatismo…”“O professor já se foi? Coitado do velho!”“Mas, na idade dele, como ainda poderia ter o que, na nossa, nós já estamos

perdendo? Quero dizer…”“O quê?”“Você não se lembra, bem na infância, quando, em conversa ou

brincadeira, se a gente pisava no atoleiro ou alcançava uma janela ao cair, umaespécie de choque imperceptível congelava o universo numa sólida bola decristal que se tinha um instante em mãos? Tenho certa crença mística de que todoo tempo passado e o futuro também, as lágrimas e cinzas das gerações,

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coagularam-se numa bola; éramos então absolutos e inteiros; nada então eraexcluído; e uma coisa era certa — felicidade. Mais tarde porém, quando a genteos segura, esses globos de cristal se dissolvem: há alguém falando sobre negros.Vê no que dá tentar dizer o que se tem em mente? Em contrassenso.”

“Precisamente. Porém que coisa triste é o bom senso! Que vasta renúnciaele representa! Ouça um instante. Distinga uma das vozes. Agora. ‘Tão frio deveparecer depois da Índia. Sete anos também. Mas o hábito é tudo.’ Isso é bomsenso. É acordo tácito. Todos fixaram os olhos em alguma coisa visível para cadaum. Não tentam mais olhar para a centelha de luz, a pequena sombra roxa quepode ser terra fértil no horizonte, ou apenas um brilho esvoaçante na água. É tudocompromisso — tudo segurança, o modo mais comum de relações entre sereshumanos. Por isso não descobrimos nada; nós paramos de explorar; paramos deacreditar que há alguma coisa para descobrir. ‘Contrassenso’, você diz; querendodizer que eu não verei seu globo de cristal; e me envergonho um pouco de otentar.”

“A fala é uma rede velha e rasgada, pela qual os peixes escapam quando éjogada neles. O silêncio talvez seja melhor. Venha até a janela, vamos tentar.”

“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas;mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e seextingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”

“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril dajanela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica,em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol,deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos,colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou deme falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use estamaravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. Noentanto é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registrodo nosso descontentamento.”

“Nossa insígnia de superioridade; nossa ambição de honrarias. Você há deadmitir que gosta mais das pessoas descontentes.”

“Gosto do som melancólico do mar distante.”“Que história é essa de falar de melancolia em minha festa? É claro que, se

vocês ficarem cochichando num canto… Mas venham e deixem-me apresentá-las. Este é Mr. Nevill, que aprecia seus escritos.”

“Nesse caso — boa noite.”“Nalgum lugar, esqueci o nome do jornal — qualquer coisa de sua autoria

— esqueço agora o título do artigo — ou era um conto? Você escreve contos?Não é poesia que você escreve? São tantos os amigos da gente, e depois todo diaestá saindo alguma coisa que… que…”

“Que a gente não lê.”

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“Bem, para ser honesto, por desagradável que possa parecer, ocupadocomo estou o dia todo com assuntos de natureza odiosa, ou melhor, fatigante — otempo que eu tenho para a literatura eu dedico a…”

“Aos mortos.”“Detecto ironia na sua correção.”“Inveja, não ironia. A morte é da maior importância. Como os franceses, os

mortos escrevem muito bem, e, por alguma razão, podemos respeitá-los e sentir,enquanto iguais, que são mais velhos e sábios, como nossos pais; orelacionamento entre vivos e mortos é certamente dos mais nobres.”

“Ah, se você pensa assim, vamos falar dos mortos. Lamb, Sófocles, deQuincey, Sir Thomas Browne.”

“Sir Walter Scott, Milton, Marlowe.”“Pater, Tenny son.”“Agora, agora, agora.”“Tenny son, Pater.”“Feche a porta; puxe as cortinas para que eu veja apenas seus olhos. Eu me

ponho de joelhos. Cubro o rosto com as mãos. Adoro Pater. Venero Tenny son.”“Prossiga, filha.”“É fácil confessar nossos erros. Mas que escuridão é tão fechada para

ocultar nossas virtudes? Eu amo, adoro — não, não consigo lhe dizer como minhaalma é uma rosa de devoção por — o nome treme em meus lábios —Shakespeare.”

“Concedo-lhe absolvição.”“No entanto, com que frequência se lê Shakespeare?”“Com que frequência é a noite de verão impecável, a lua perfeita, os

espaços entre as estrelas profundos como o Atlântico? Com que frequência asrosas mostram branco no escuro? A mente, antes de ler Shakespeare…”

“A noite de verão. Oh, isto sim é que é maneira de ler!”“Rosas que ondulam…”“Ondas quebrando…”“Ares singulares da aurora vindos pelos campos afora para forçar as portas

da casa sem surtir efeito…”“Deitando então para dormir, a cama é…”“Um barco! Um barco! A noite inteira no mar…”“Com estrelas que se postam a prumo…”“E lá no meio do oceano nosso barquinho flutuando sozinho, isolado mas

sustentado, atraído pela compulsão das luzes nórdicas, seguro, cercado, dissipa-seonde a noite repousa sobre a água; lá diminui e desaparece, e nós, já submersos,lacrados na frieza das pedras lisas, abrimos nossos olhos de novo; traço, batida,ponto, salpico, mobília de quarto, e a barulhada da cortina no trilho. — Eu ganhoa vida. — Apresente-me! Oh, ele conheceu o meu irmão em Oxford.”

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“E você também. Venha para o meio da sala. Tem alguém aqui que selembra de você.”

“Em criança, querida. Você usava um vestidinho cor-de-rosa.”“O cachorro me mordeu.”“Ficar jogando paus no mar, já pensou que perigo? Mas sua mãe…”“Na praia, na barraca…”“Sorria sentada. Ela adorava cachorros. — Você conhece a minha filha?

Este é o marido dela. — Era Tray que ele chamava? o grande, o amarronzado,porque havia um outro, o menor, que mordeu o carteiro. Posso ver isso agora.Ah, as coisas de que a gente se lembra! Mas estou impedindo…”

“Oh, por favor (Sim, sim, eu escrevi, estou indo). Por favor, por favor. —Pro inferno, Helen, interrompendo! E lá vai ela, nunca mais — abrindo caminhoentre as pessoas, ajeitando seu xale, descendo lentamente os degraus: foi-se! Opassado! o passado!…”

“Ah, mas ouça. Diga-me; estou com medo; tantos estranhos; algunsbarbudos; outros tão bonitos; ela esbarrou na peônia; caíram todas as pétalas. Eferoz — a mulher com aqueles olhos. Os armênios morreram. E os trabalhosforçados. Por quê? Tanta tagarelice também; a não ser agora — cochichos —todos nós devemos cochichar — nós estamos ouvindo — esperando — mas entãoo quê? A lanterna acender! Cuidado com sua gaze! Certa vez uma mulhermorreu. Dizem que isso acordou o cisne.”

“Helen está com medo. Essas lanternas de papel acendendo e as janelasabertas deixando a brisa entrar levantam nossos babados. Mas eu não estou commedo das chamas, sabe. É o jardim — quero dizer, o mundo. Que me assusta.Aquelas pequenas luzes lá longe, cada qual com um círculo de terra por baixo —cidades e morros; e depois as sombras; os movimentos do lilás. Não fiqueconversando. Vamos sair. Pelo jardim; sua mão na minha.”

“Vamos. Faz escuro no matagal sob a lua. Vamos, haveremos de enfrentá-las, essas ondas de escuridão coroadas pelas árvores, que se erguem parasempre, solitárias, trevosas. As luzes se levantam e caem; a água é rala como oar; por trás dela está a lua. Você afunda? Ou você se levanta? Você enxerga asilhas? Sozinha comigo.”

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OBJETOS SÓLIDOS

A única coisa a se mover no vasto semicírculo da praia era um pontinho preto.Quando ele chegou mais perto das vértebras e espinha do barco de sardinhas naareia, tornou-se visível, por certa tenuidade em seu pretume, que o ponto tinhaquatro pernas; e tornou-se mais claro, de momento a momento, que eracomposto pelas pessoas de dois jovens. Mesmo assim, em contorno contra aareia, havia neles uma vitalidade inconfundível; um vigor indescritível naaproximação e no retraimento dos corpos a indicar, malgrado sua insuficiência,alguma discussão violenta que saía das bocas diminutas das cabecinhas redondas.O que era confirmado, a uma inspeção mais atenta, pelas repetidas estocadasque uma bengala vinha dando pelo lado direito. “Você então quer me dizer…Você de fato acredita…”, assim, do lado direito, perto das ondas, pareciasustentar a bengala, enquanto cortava pela areia tiras retas e longas.

“Que se dane a política!”, adveio claramente do corpo à esquerda e, aoserem pronunciadas tais palavras, as bocas, narizes, queixos, bigodinhos, gorrosde lã, botas grosseiras, capotes de caça e meias axadrezadas dos dois falantestornaram-se cada vez mais distintos; a fumaça dos seus cachimbos subia pelo ar;nada era tão sólido, tão vivo, tão rijo, rubro, viril e hirsuto quanto esses corpos porquilômetros e mais quilômetros de mar e dunas de areia.

Lançaram-se os dois ao fundo das seis vértebras e espinha dorsal do barconegro de sardinhas. Sabe-se como o corpo parece sacudir-se para livrar-se deuma discussão e desculpar-se por uma exaltação de ânimo; lançando-se ao fundoe exprimindo em seu afrouxamento de atitude a presteza para se ocupar de algonovo — seja o que for que a seguir venha à mão. Assim Charles, cuja bengalaestivera, por quase um quilômetro, a retalhar a praia, começou a atirar pedaçosplanos de lousa para ricochetear sobre a água; e John, que havia exclamado“Que se dane a política!”, começou a meter seus dedos na areia, cada vez maisfundo. Quanto mais ele enfiava a mão, que ao chegar além do pulso forçou-o apuxar a manga um pouco mais para cima, mais seus olhos perdiam em

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intensidade, ou melhor, o substrato de pensamento e experiência que dáprofundidade inescrutável aos olhos das pessoas adultas desaparecia, para deixarapenas a clara superfície transparente, nada expressando além do espanto que osolhos das crianças demonstram. Sem dúvida o ato de cavar na areia tinha algumacoisa a ver com isso. Lembrava-se ele como, depois de cavar um pouco, a águaescorre pelas pontas dos dedos; o buraco então se torna um fosso; um poço; umanascente; um canal secreto para o mar. Enquanto ele decidia qual dessas coisasfazer, seus dedos, ainda se movendo na água, enroscaram-se em torno de algoduro — toda uma gota de matéria sólida — para desentocar pouco a pouco,trazendo-o à superfície, um grande e irregular fragmento. Ao ser lavada a areiaque o cobria, surgiu um verde desmaiado. Era um caco de vidro, tão grosso aponto de se tornar opaco; tudo o que fosse forma ou gume já se gastara porcompleto com o alisamento do mar, sendo impossível dizer assim se havia sidode garrafa, vidraça ou copo; não era nada, a não ser vidro; era quase uma pedrapreciosa. Bastaria circundá-lo de uma borda de ouro, ou perfurá-lo com umarame, para que se tornasse uma joia; parte de um colar, ou uma luz verde efosca sobre um dedo. Afinal, talvez fosse realmente uma gema; alguma coisausada por uma princesa negra que, sentada na popa da embarcação, iaarrastando o dedo pela água enquanto ouvia os escravos que cantavam aoconduzi-la a remo através da baía. Ou então as tábuas de carvalho de uma arcado tesouro elizabetana é que se haviam despregado, tendo suas esmeraldas, aosabor das ondas, para cá e para lá, finalmente chegado à praia. John se pôs arevirá-lo nas mãos; e o ergueu na luz; ergueu-o de tal modo que sua massairregular eclipsou o corpo e o braço direito esticado de seu amigo. O verde seatenuava e turvava ligeiramente ao ser mantido contra o céu ou o corpo.Causava-lhe prazer; intrigava-o; comparado ao vago mar e à costa tão imersaem brumas, era um objeto bem duro, bem concentrado, bem definido.

Uma visão o perturbava agora — decisiva e profunda, tornando-oconsciente de que seu amigo Charles havia jogado todas as pedras planas aoalcance da mão, ou chegado à conclusão de que não valia a pena fazê-lo. Lado alado eles comeram seus sanduíches. Tendo-o feito, já se punham de pé esacudiam-se quando John pegou o caco de vidro para o olhar em silêncio.Charles olhou também. Mas imediatamente viu que ele não era achatado e,enchendo seu cachimbo, disse com a energia que rejeita um descabido esforçode pensamento:

“Para voltar ao que eu estava falando…”.Ele não tinha visto ou, se visse, mal teria notado que John, após examinar

por um momento o vidro, como que em hesitação, o enfiara no bolso. Talimpulso poderia também ter sido o impulso que leva uma criança a apanhar umapedrinha num caminho no qual elas se esparramam, prometendo-lhe uma vidaem segurança e quentura sobre a lareira do quarto, deleitando-se com a sensação

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de poder e benignidade que uma ação como essa propicia e acreditando que ocoração da pedra pula de alegria quando se vê escolhido, dentre um milhão deiguais, para gozar de tal felicidade, não de uma vida de umidade e frio naestrada. “Bem que poderia ter sido qualquer outra dos milhões de pedras, mas fuieu, eu, eu!”

Estivesse ou não essa ideia na cabeça de John, o fato é que o pedaço devidro encontrou seu lugar em cima da lareira, onde solidamente se plantou sobreuma pequena pilha de cartas e contas, servindo não só como excelente peso depapéis, mas também como ponto natural de parada para o olhar do rapaz, quandoele se desviava do livro. Visto repetidas vezes e de modo semiconsciente por umacabeça que pensa noutra coisa, qualquer objeto se mescla tão profundamente àsubstância do pensar que perde sua forma verdadeira e se recompõe comalguma diferença numa feição ideal que obseda o cérebro, quando menos seespera. John se via assim atraído, quando saía para andar, pelas vitrines das lojasde raridades, simplesmente por ter visto alguma coisa que o lembrava daquelecaco de vidro. Qualquer coisa, desde que fosse algum tipo de objeto, mais oumenos redondo, talvez com uma chama agonizante imersa a fundo em suamassa, qualquer coisa — porcelana, vidro, âmbar, rocha, mármore — atémesmo o ovo liso e oval de uma ave pré-histórica serviria. Habituou-se eletambém a andar de olhos no chão, especialmente nas adjacências dos terrenosbaldios onde são jogados fora os refugos das casas. Tais objetos ocorriam lá comfrequência — jogados fora, de nenhuma utilidade para ninguém, disformes,descartados. Em poucos meses ele fez uma coleção de quatro ou cincoespécimes que foram para o mesmo lugar, parando em cima da lareira. Eramúteis também, pois um homem que concorre ao parlamento, no limiar de umabrilhante carreira, tem uma boa quantidade de papéis para manter em ordem —comunicados a eleitores, plataformas políticas, apelos a subscrições, convitespara jantares e assim por diante.

Um dia, saindo de seus aposentos no Temple para pegar um trem, a fim defalar aos eleitores, seus olhos bateram num objeto extraordinário que jaziasemioculto numa dessas bordaduras de grama que orlam as bases dos grandesprédios forenses. Não podendo senão tocá-lo, através da cerca, com a ponta dabengala, ele podia ver no entanto que era um caco de porcelana de forma bemsingular, quase tão parecido com uma estrela-do-mar como qualquer coisaformada — ou acidentalmente quebrada — em cinco pontas irregulares, nãoobstante inconfundíveis. Se em sua coloração predominava o azul, ao azul sesobrepunham faixas ou manchas verdes de algum tipo, enquanto linhascarmesins davam-lhe uma riqueza e um brilho da mais atraente espécie. Johnestava decidido a possuí-lo; quanto mais perseverava nisso, mais no entanto eleretrocedia. John por fim se viu forçado a voltar a seus aposentos para improvisaruma argola de arame presa na ponta de uma vara, com a qual, à força de grande

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habilidade e com muito cuidado, finalmente trouxe o pedaço de porcelana aoalcance das mãos. Ao apanhá-lo, soltou uma exclamação de triunfo. E o relógiobateu nesse momento. Já não lhe era mais possível cumprir seu compromisso. Areunião foi realizada sem ele. Mas como o caco de porcelana se partira daquelemodo notável? Um exame cuidadoso deixou fora de dúvidas que a forma deestrela era acidental, o que tornava tudo ainda mais estranho, e pareciaimprovável que pudesse existir outro assim. Posto sobre a lareira, no ladocontrário ao do caco de vidro que havia sido retirado da areia, dava ele aimpressão de ser uma criatura de outro mundo — fantástica e extravagantecomo um arlequim. Parecia estar fazendo piruetas no espaço, tremeluzindocomo uma estrela que pisca. Fascinado pelo contraste entre a porcelana, tãovívida e alerta, e o vidro, tão contemplativo e calado, ele se perguntou, pasmo eperplexo, como os dois tinham vindo a existir no mesmo mundo, para plantar-se,além do mais, no mesmo cômodo, na mesma estreita faixa de mármore. Mas apergunta permaneceu sem resposta.

Ele então passou a frequentar os lugares em que os cacos de porcelana maisproliferam, como as nesgas de chão que sobram entre as linhas de trem, osterrenos de casas demolidas e as áreas públicas dos arredores de Londres. Éporém muito raro, é um dos mais raros dentre os atos humanos, que se jogueporcelana de uma grande altura. É preciso achar em conjunção uma casa bemalta e uma mulher tão impulsiva e de prevenções tão coléricas que é capaz deatirar pela janela seu jarro ou pote, sem pensar em quem está embaixo.Encontravam-se em abundância cacos de porcelana, porém quebrados natrivialidade de um acidente doméstico, não de propósito, e sem caráter. Nãoobstante ele se admirava com frequência, quando veio a entrar mais a fundo naquestão, da imensa variedade de formas a encontrar-se apenas em Londres,havendo ainda mais motivos para especulação e espanto nas diferenças depadrões e qualidade. Os melhores espécimes ele levaria para casa e colocariaem cima da lareira, onde a função que lhes cabia era porém cada vez mais denatureza ornamental, já que os papéis que necessitavam de um peso para osmanter sem voar tornavam-se progressivamente mais raros.

Descuidou-se de suas obrigações, talvez, ou as cumpria de um modo pordemais desatento, ou então seus eleitores, quando o visitavam, viam-sedesfavoravelmente impressionados pelo aspecto de sua lareira. Fosse comofosse, não foi eleito para os representar no parlamento, e seu amigo Charles,sentindo muito e se apressando a manifestar seu pesar, achou-o tão poucoabalado com a derrota que não pôde senão supor que a questão era grave demaispara ele a entender de imediato.

Na verdade, John havia estado nesse dia nas áreas públicas de Barnes, ondeachara, sob uma moita de tojo, um pedaço de ferro bem pouco comum. Era, naconformação, quase idêntico ao vidro, maciço e globuloso, mas tão frio e pesado,

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tão metálico e negro, que evidentemente era estranho à Terra, tendo sua origemnuma das estrelas mortas, se não fosse em si mesmo escória de uma lua. Em seubolso, pesava muito; e pesou muito em cima da lareira, irradiando frio. Noentanto o meteorito ficou na mesma prateleira com o caco de vidro e aporcelana em forma de estrela.

Quando seus olhos passavam de um para o outro, a determinação de possuirobjetos que chegassem a ultrapassar aqueles atormentava o rapaz.Resolutamente ele se consagrou cada vez mais à procura. Se não ardesse deambição, se não estivesse convencido de ser recompensado algum dia por ummonte de lixo recentemente descoberto, as decepções que sofreu, sem falar docansaço e do ridículo, teriam-no feito desistir da empreitada. Munido de umabolsa e de uma vara comprida na qual se adaptava um gancho, revolveu todos osmonturos de terra; escarafunchou sob densos emaranhamentos de mato; buscoupor todas as vielas e espaços entre paredes onde se habituara a esperar descobrirobjetos desse tipo jogados fora. Tornando-se seus critérios mais rígidos e seugosto mais exigente, as decepções eram inumeráveis, mas sempre um brilho deesperança, um caco de porcelana ou de vidro com alguma marca curiosa oucuriosamente quebrado, o enganava. Passou-se um dia após o outro. E ele já nãoera mais jovem. Sua carreira — isto é, sua carreira política — tornou-se coisa dopassado. As pessoas deixaram de visitá-lo. Ele era muito calado para que valessea pena convidá-lo para jantar. Nunca falava com ninguém sobre as ambições tãosérias que tinha; a falta de compreensão dos outros transparecia no seucomportamento.

Recostado em sua cadeira, ele agora observava Charles, que repetidas vezeserguia as pedras em cima da lareira e enfaticamente as repunha em seu lugarpara marcar o que ele estava dizendo sobre a orientação do governo, sem nemsequer notar a existência delas.

“Qual é a verdade, John?”, perguntou Charles de repente, virando-se paraencará-lo. “O que o levou a desistir de tudo assim sem mais nem menos?”

“Eu não desisti”, respondeu John.“Mas agora você não tem mais chance nenhuma”, disse Charles com

aspereza.“Nisso eu discordo de você”, disse John convictamente. Charles, olhando-o,

sentiu-se profundamente incomodado; foi possuído pelas dúvidas maisextraordinárias; teve uma impressão esquisita de que os dois estavam falando decoisas diferentes. Olhou em torno, a fim de encontrar algum alívio para suahorrorosa depressão, mas a aparência desordenada do quarto o deprimiu aindamais. O que eram aquela vara e a velha bolsa de tapeçaria pendurada na parede?E aquelas pedras? Ao olhar para John, algo fixo e distante em sua expressão oalarmou. Ele sabia muito bem que a presença do amigo num palanque já estavafora de questão.

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“Bonitas pedras”, disse tão jovialmente quanto pôde; e foi dizendo que tinhaum compromisso a cumprir que ele se despediu de John — para sempre.

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UM ROMANCE NÃO ESCRITO

Uma tal expressão de infelicidade era bastante em si mesma para fazer o olhardeslizar pela beira do papel até o rosto da pobre mulher — insignificante semaquela expressão, quase um símbolo do destino humano com ela. A vida é o quevocê vê nos olhos dos outros; a vida é o que as pessoas aprendem e, tendoaprendido, nunca, embora o tentem esconder, deixam de estar conscientes de —do quê? De que a vida é assim, ao que parece. Cinco rostos opostos — cincorostos maduros — e o conhecimento em cada um. Por estranho que seja, comoas pessoas querem disfarçar isso! Em todos esses rostos há sinais de reticência:boca fechada, olhos sombrios, cada um dos cinco fazendo alguma coisa paraocultar ou estultificar seu conhecimento. Um fuma; outro lê; um terceiro confereanotações numa agenda; um quarto estuda o mapa da linha pendurado defronte;e o quinto — o que há de terrível em relação ao quinto é que ela não fazabsolutamente nada. Fica vendo a vida. Ah, minha pobre, infeliz mulher, nãodeixe de entrar no jogo — e, em atenção a todos nós, disfarce bem!

Ela olhou para cima, como se tivesse me ouvido, mexeu-se ligeiramente noassento e suspirou. Parecia desculpar-se e ao mesmo tempo dizer-me: “Ah, sevocê soubesse!”. Depois voltou a olhar para a vida. “Bem que eu sei”, respondiem silêncio, dando uma olhada no Times para manter as aparências: “Eu sei detudo. ‘Paz entre Alemanha e potências aliadas declarada oficialmente ontem emParis — Signor Nitti, o primeiro-ministro italiano — um trem de passageiroscolidiu em Doncaster com um trem de carga…’ Todos nós sabemos — The Timessabe — mas fingimos não saber”. Meus olhos tinham se arrastado de novo pelabeirada do papel. Ela estremeceu, virou um braço para trás que estranhamentelevou até o meio das costas e balançou a cabeça. Mergulhei novamente no meugrande reservatório de vida. “Pegue o que você gosta”, prossegui, “nascimentos,casamentos, mortes, notícias da corte, os hábitos das aves, Leonardo da Vinci, ocrime de Sandhills, altos salários e o custo de vida — sim, o que você gosta”,repeti, “está tudo aqui no Times!”. De novo e com infinito cansaço ela moveu de

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lado a lado a cabeça, até que essa, como uma tampa que ao ser girada se exaure,fosse encaixar-se em seu pescoço.

The Times não era proteção adequada contra um tal sofrimento como odela. Mas outros seres humanos impediam a comunicação. Contra a vida, nadamelhor do que dobrar o jornal para fazê-lo um quadrado crespo, grosso, perfeito,impérvio até à própria vida. Feito isso, dei uma rápida olhada para cima, armadade meu escudo. Mas através do escudo ela me viu; ela me olhou nos olhos, comoque procurando, bem lá no fundo, um sedimento de coragem que umedecia embarro. Sua simples postura negava toda esperança, desconsiderava ilusões.

Fomos assim aos solavancos por Surrey para depois da divisa entrar emSussex. Mas eu, de olhos fitos na vida, não vi que os outros passageiros tinhamsaltado, um por um, até que, a não ser pelo homem que estava lendo, nósficamos sozinhas. Chegamos à estação Three Bridges. Passamos lentamente pelaplataforma e paramos. Iria ele descer? Rezei para que sim e que não — efinalmente pedi que ele ficasse. Nesse instante ele se levantou, embolou comdesprezo seu jornal, como coisa já liquidada, abriu a porta de arranco e nosdeixou a sós.

A infeliz mulher, inclinando-se um pouco para a frente, pálida edescoloridamente se dirigiu a mim — falou de estações e feriados, de irmãos emEastbourne, da época do ano que, se era cedo ou tarde, já nem lembro. Masolhando por fim pela janela e vendo, como eu sabia, somente a vida, ela tomoufôlego. “E o pior de tudo — é ficar fora de casa —”. Ah, agora a catástrofe seaproximava, “Minha cunhada” — o azedume de seu tom era como limão emaço frio, e falando, não para mim, mas para si mesma, ela resmungou: “Ela diriaque é bobagem — é isso que todos dizem”, e enquanto ia falando se repuxavatoda, como se a pele de suas costas fosse igual à de uma galinha depenada navitrine do açougue.

“Oh, aquela vaca!”, ela exclamou nervosamente, como se a grande vacaestatelada no pasto a tivesse chocado e livrado de alguma indiscrição. Depois elatremeu, e depois de tremer fez o desajeitado movimento angular que eu já tinhavisto, como se, após o espasmo, algum ponto entre os ombros lhe coçasse ouardesse. Depois voltou a parecer a mais infeliz mulher do mundo, e eu, mais umavez, a censurei, se bem que não com a mesma convicção, pois se houvesse umarazão, e se eu soubesse a razão, o estigma estaria removido da vida.

“Cunhadas”, disse eu…Seus lábios se contraíram, como se fossem cuspir veneno na palavra; e

contraídos ficaram. Tudo o que ela fez foi apanhar sua luva para esfregá-la comforça num ponto da vidraça. Esfregou-a como se quisesse fazer sumir parasempre alguma coisa — alguma mancha, alguma contaminação indelével. Defato, a mancha lá continuou, malgrado toda sua esfregação, e novamente elaafundou entortando o braço e tremendo, como eu já esperava. Algo impeliu-me

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a apanhar minha luva para esfregar na minha janela, onde também havia umamanchinha no vidro. A qual, malgrado minha esfregação, lá continuou. E oespasmo então veio por dentro de mim; curvei meu braço e cocei no meio dascostas. Minha pele, também, era como a das galinhas, muito úmida, na vitrine doaçougueiro; um ponto entre meus ombros coçava e irritava, parecia melado,parecia em carne viva. Será que eu conseguiria alcançá-lo? Tentei-osubrepticiamente. Ela me viu. Um sorriso de infinita ironia, de infinitosofrimento, perpassou-lhe pela face e sumiu. Mas ela havia comunicado,partilhado seu segredo, transmitido seu veneno; não iria mais falar. Recostando-me em meu canto, protegendo dos olhos dela os meus olhos, vendo somente assubidas e os vales, os cinza e os púrpuras, da paisagem de inverno, li suamensagem, decifrei seu segredo, lendo-a sob seu olhar fixo.

A cunhada é Hilda. Hilda? Hilda? Hilda Marsh — a exuberante Hilda, apeituda, a matrona. Hilda já está à porta quando o cabriolé se aproxima, comdinheiro na mão. “Pobre Minnie, mais do que nunca está parecendo umgafanhoto — com a mesma capa que já estava no ano passado. Mas é isso, comdois filhos, nos tempos que correm, não se pode fazer mais. Não, Minnie. Euentendo; o do senhor, seu cocheiro — não me venha com nenhuma das suas —aqui está. Vamos lá, Minnie. Oh, eu podia até carregar você, quanto mais a suacesta!” Entram assim na sala de jantar. “Crianças, a tia Minnie.”

Garfos e facas afundam lentamente na vertical. Descem os dois (Bob eBarbara), esticando bem as mãos; e voltam para suas cadeiras, olhando-seenquanto retomam as bocadas. [Isso porém vamos pular; adornos, cortinas, pratode porcelana em forma de trevo, retângulos amarelos de queijo, biscoitosbrancos quadrados — vamos pular — mas espere aí! Bem no meio do almoçouma tremedeira daquelas; Bob olha para ela, de colher na boca. “Acabe logo asobremesa, Bob”; mas Hilda desaprova. “Que ideia é esta de se coçar?” Vamospular, pular, até chegarmos ao patamar do andar de cima; escada presa comlatão; linóleo gasto; oh, sim! o quartinho que dá para os telhados de Eastbourne —telhados ziguezagueantes como as espinhas das lagartas, para lá e para cá,riscados de amarelo e vermelho, feitos de ardósia preta azulada.] Agora, Minnie,a porta está fechada; Hilda desce pesadamente ao porão; você desata as alças dacesta, estende na cama a magra camisola, põe lado a lado os chinelos peludos defeltro. O espelho — não, o espelho você evita. Certa metódica disposição dosgrampos de chapéu. Talvez haja alguma coisa na caixinha de conchas. Vocêbalança para ver; é o botão de madrepérola que no ano passado já estava lá — eé tudo. Depois, sentando perto da janela, suspirar e fungar. Três horas de umatarde em dezembro; a chuva fina; uma luz baixa na claraboia de uma loja detecidos; outra alta num quarto de empregada — a qual se apaga. Com isso elanão tem o que olhar. Um momento em branco — e depois, em que é que vocêestá pensando? (Eu, do outro lado, vou poder espiá-la; ela está dormindo ou está

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fingindo que dorme; no que haveria então de pensar, sentando-se à janela às trêsda tarde? Em saúde, dinheiro, contas; em seu Deus?) Sim, sentando-se bem nabeira da cadeira, a contemplar os telhados de Eastbourne, Minnie Marsh reza aDeus. E está tudo muito bem; e ela também pode esfregar a vidraça, como quepara ver melhor a Deus; mas que Deus ela vê? Quem é o Deus de Minnie Marsh,o Deus das vielas de Eastbourne, o Deus das três horas da tarde? Eu também vejotelhados, vejo céu; mas esse modo de ver Deuses — mais como o presidenteKruger do que como o príncipe Albert — é o que de melhor posso fazer por ele;vejo-o numa cadeira, de sobrecasaca negra, também não tão alta; posso atéarranjar algumas nuvens que lhe sirvam de assento; arrastando-se entre elas, suamão aí empunha um cajado, ou será um bastão de comando? — preto, grosso,espinhento — um velho e brutal tirano — o Deus de Minnie! Foi ele que mandoua coceira e a tremedeira e a mancha? É por isso que ela reza? É a mancha dopecado que ela limpa no vidro. Oh, ela cometeu algum crime!

Quanto aos crimes, posso escolher. Voam, passam arvoredos — campânulasflorescem no verão; naquela clareira lá, quando chega a primavera, florescemprímulas. Foi num adeus, não foi, há vinte anos? Promessas quebradas? Não porMinnie!… Ela foi fiel. Como ela cuidou da mãe dela! Todas as suas economiasem lápides — coroas em vidro — narcisos em jarras. Mas eu estou fugindo doassunto. Um crime… Eles diriam que ela segurou sua dor, reprimiu seu segredo— seu sexo, diriam eles — o pessoal da ciência. Mas que bobagem, botar nestamulher os arreios do sexo. Não — mais do mesmo. Descendo pelas ruas deCroy don há vinte anos, voltas de fita violeta que cintilam à luz elétrica na vitrineda loja de tecidos vão atrair seu olhar. Ela se atarda — passa das seis. Correndoainda pode chegar em casa. Ela entra pela porta de vaivém de vidro. É época deliquidação. Bandejas rasas transbordam de fitas. Ela faz uma pausa, pega uma,passa os dedos por outra com rosas em relevo por cima — mas não tem deescolher, não precisa comprar, e cada bandeja traz suas surpresas. “Só fechamosàs sete”, e aí já são sete. Ela corre, vai correndo, chega em casa, mas é tardedemais. Vizinhos — o médico — irmão pequeno — a chaleira — queimado —hospital — morto — ou apenas o choque, a culpa? Ah, mas os detalhes nãoimportam! O que importa é o que vai com ela; a mancha, o crime, a coisa aexpiar, sempre lá entre os seus ombros. “Sim”, ela parece me dizer com acabeça, “é a coisa que eu fiz”.

Se fez ou não fez, ou o que foi que você fez, não me interessa; não é isso queeu quero. As voltas de violeta na vitrine da loja — isso sim; um pouco fácil talvez,um pouco lugar-comum — quando se tem tal sortimento de crimes, se bem quemuitos (deixem-me dar outra espiada — dormindo ainda, ou fingindo quedorme! branca, de boca fechada, exausta — com um toque de obstinação, maisdo que se pensaria encontrar — e nenhum sinal de sexo) — muitos crimes porémnão são o seu; o seu crime foi banal; só a punição é solene; pois que agora a porta

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da igreja se abre, o banco duro de madeira a recebe; nos ladrilhos do chão ela seajoelha; e todos os dias, verão e inverno, bem de tarde e muito cedo (comoagora), reza. Seus pecados caem todos, caem, caem para sempre. Mas amancha os recebe. Vermelha, protuberante, ardente. Depois ela começa a secoçar. Criancinhas apontam. “Bob hoje no almoço” — Mas o pior são as velhas.

Você agora de fato não pode continuar aí rezando. Kruger afundou sob asnuvens — como que encoberto pelo cinza líquido de um pincel de pintor, ao queele acrescenta um toque de preto — e até a ponta do bastão sumiu agora. É o quesempre acontece! Basta você o ver, basta senti-lo, para que venha alguéminterromper. Agora é Hilda.

Como você a odeia! Ela é bem capaz de deixar a porta do banheirotrancada a noite toda, e o que você quer é só água fria, às vezes, quando era umanoite ruim, parece que adiantava lavar. No café da manhã tem John — ascrianças — o pior são as refeições, e há amigos às vezes — as samambaias nãodão para escondê-los — eles adivinham também; você então sai andando pelabeira-mar, onde as ondas são cinzentas, e os papéis voam, e o vento bate nascabines verdes de vidro, e se alugam cadeiras por dois pence — é muito — poisdeve haver pregadores pela praia. Ah, este é negro — este é um homem gozado— este é um homem com periquitos — coitados dos bichos! Não tem ninguémpensando em Deus por aqui? — bem ali, no cais flutuante, com seu bastão —mas não — não existe nada a não ser o cinza no céu ou, se o céu estiver azul, asnuvens brancas o ocultam, e a música — é música militar — e para que elesestão pescando? Pescam alguma coisa? Como as crianças olham! Bem, bem,então casa, caminho de volta — “Caminho de volta para casa”. As palavras têmsignificado; poderiam ter sido ditas pelo velho barbudo — não, não, na realidadeele não falou; mas tudo tem significado — avisos pendurados na entrada dascasas — nomes por cima de vitrines de lojas — fruta vermelha em cestas —cabeças de mulher em cabeleireiros — tudo diz “Minnie Marsh!”. Mas aqui háuma contração. “Os ovos são mais baratos!” É o que sempre acontece! Lá ia eua levá-la pela cachoeira, direto para a loucura, quando, como um bando decarneiros de sonho, ela se vira do outro lado e escorre entre os meus dedos. Ovossão mais baratos. Levada às últimas nas costas do mundo, nenhum dos crimes,padecimentos, rapsódias ou insanidades para Minnie Marsh; nunca atrasada parao almoço; nunca surpreendida por um temporal sem sua capa; nunca totalmenteinconsciente da barateza dos ovos. E assim ela chega em casa — limpando asbotas.

Eu a li direito? Mas a face humana — a face humana no topo da mais cheiafolha de impressão contém mais, comporta mais. Agora, de olhos abertos, elaolha para fora; e no olho humano — como é mesmo que o definem? — há umaquebra — uma divisão — quando você vê o galho, assim, a borboleta já voou —a mariposa que paira à tardinha sobre a flor amarela — mova, levante sua mão,

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bem longe, bem alto. Pois não levantarei minha mão. Pare então e não pare detremer, ó vida, alma, espírito, ó você qualquer coisa de Minnie Marsh — comoeu em minha flor — o falcão na chapada — sozinha, ou de que valeria a vida?Pular da cama; ficar quieta de tardinha, ao meio-dia; ficar quieta na chapada. Amão que esvoaça — que vai, que sobe! e depois volta à indecisão. Sozinha semser vista; vendo tudo tão tranquilo lá em baixo, tão agradável. E ninguém vendo,ninguém ligando. Os olhos dos outros nossas prisões; seus pensamentos nossasgaiolas. Ar em cima, ar embaixo. E a lua e a imortalidade… Oh, mas eu dei umtropeção. E você aí no canto — mulher — como é mesmo seu nome, MinnieMarsh, um nome assim, não é? Você também levou um tombo? Lá está ela,agarrada à sua flor; abrindo sua bolsa de mão, da qual tira uma casca vazia —um ovo — quem estava dizendo que os ovos são mais baratos? Você ou eu? Oh,foi você que disse isso, a caminho de casa, lembra, quando o senhor idoso,abrindo de repente seu guarda-chuva — ou espirrando? Fosse como fosse,Kruger se foi, e você veio pelo “caminho de volta para casa” e limpou suasbotas. E agora você estende nos joelhos um lenço no qual deixa cair pequenos eangulosos fragmentos de casca de ovo — fragmentos de um mapa — umquebra-cabeça. Bem que eu gostaria de conseguir juntá-los! Se ao menos vocêparasse quieta. Ela porém já afastou os joelhos — o mapa está de novo empedaços. Pelas encostas dos Andes os blocos brancos de mármore vão saltando eferindo, esmagando até a morte toda uma tropa de carregadores espanhóis, comsua escolta — o butim de Drake, ouro e prata. Mas, para voltar…

A quê? Aonde? Ela abriu a porta e, pendurando sua sombrinha na entrada —isso nem precisa dizer: nem, também, o cheiro de carne que subia do porão;ponto, ponto, ponto. Mas o que eu não posso eliminar assim, o que devo atacar edispersar, cabeça baixa, olhos fechados, com a coragem de um batalhão e acegueira de um touro, são, indubitavelmente, as figuras por trás das samambaias,os caixeiros-viajantes. Ali os deixei todo esse tempo ocultos, na esperança de quepudessem desaparecer, ou melhor, emergir ainda, como de fato deverão fazer,se o conto continuar acumulando rotundidade e riqueza, destino e tragédia, comocabe aos contos, arrastando consigo dois, senão três, caixeiros-viajantes e umatouceira de aspidistra. “As folhas da aspidistra só encobriam uma parte docaixeiro-viajante…” Os rododendros o encobririam todo, e me dê nessa trocaminha dose de vermelho e branco, pela qual me empenho e definho; masrododendros em Eastbourne — em dezembro — e na mesa dos Marshes — não,não, eu não me atrevo; tudo é uma questão de cascas e frascos, de samambaias ebabados. Mais tarde talvez haja um momento à beira-mar. Sinto além disso,quando agradavelmente me empino pela treliça verde e por cima do glaciz devidro cortado, um desejo de espiar e espreitar o homem do outro lado — sendoesse o único que eu consigo ver. É James Moggridge, que os Marshes chamam deJimmy? [Espero que você prometa não se coçar, Minnie, enquanto eu não tiver

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resolvido isso.] James Moggridge viaja vendendo — botões, vamos dizer? — masainda não está na época de trazer de todos — os grandes, os pequenos emgrandes cartelas, os de olho de pavão, os de ouro fosco; há uns que parecemmontes de pedras, outros, espumas de coral — mas a época, como eu digo, aindanão chegou. Ele viaja e, na quinta-feira, que é o seu dia em Eastbourne, vai fazersuas refeições com os Marshes. Seu rosto vermelho, seus olhinhos sempre fixos— porém jamais vulgares de todo — seu enorme apetite (isso é certo; ele nãoolha para Minnie antes de o pão bem encharcado secar o molho), guardanapodobrado em diamante no peito — mas isso é primitivo e, cause o que causar aoleitor, não creia em mim. Vamos seguir para a própria casa da famíliaMoggridge, vamos pô-la na ação. Lá, as botas de todos são remendadas, aosdomingos, pelo próprio James, que lê Truth. Mas qual é sua paixão? Rosas — esua esposa, enfermeira de hospital aposentada — interessante — pelo amor deDeus, deixe-me ter uma mulher com um nome do qual eu goste! Mas não; ela éum dos filhos em gestação da mente, ilícito, nem por isso menos amado, como osmeus rododendros. Em cada romance escrito, quantos morrem — os melhores,os mais queridos, enquanto Moggridge vive. Culpa da vida. Aqui está Minnie,comendo seu ovo no momento oposto e na outra extremidade da linha — jápassamos de Lewes? — Jimmy deve estar lá — ou por que ela se contorce?

Lá deve estar Moggridge — culpa da vida. A vida impõe suas leis; a vidabarra a passagem; há vida por trás da samambaia; a vida é um tirano; oh, masnão a dona do pedaço! Não, pois lhe garanto que vim por minha livre vontade;vim perseguida sabe Deus por qual compulsão por samambaias e frascos, mesacheia de borrões e garrafas imundas. Vim irresistivelmente para alojar-menalgum lugar da carne firme, da espinha rija, algum lugar em que eu possapenetrar ou tomar pé da pessoa, da alma, do homem Moggridge. A enormeestabilidade do arcabouço; a espinha como um osso de baleia, reta que nem umpé de carvalho; as costelas que são galhos lançados; a pele de lona muito bemesticada; as vermelhas reentrâncias; a sucção e regurgitação do coração;enquanto a carne cai do alto em cubos marrons e a cerveja escorre paraespumar em sangue de novo — e assim chegamos aos olhos. Que estão vendouma coisa, por trás da aspidistra: preta, branca, desalentadora; agora outra vez oprato; que por trás da aspidistra estão vendo uma mulher idosa; “A irmã deMarsh. Hilda é mais o meu tipo”; e a toalha da mesa agora. “Marsh saberia o quehá de errado com os Morrises…” falam disso; chega o queijo; outra vez o prato;vira-o ao contrário — dedos enormes; agora a mulher do outro lado. “A irmã deMarsh — nem um pouco como Marsh; uma velha muito infeliz… Você devia erair cuidar das galinhas… Em nome de Deus, por que é que ela está se contorcendoassim? Não foi o que eu disse? Meu Deus, meu Deus, essas velhotas! SantoDeus!”

[Sim, Minnie; sei que você teve uma contração, mas um momento —

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James Moggridge.]“Meu Deus, meu Deus!” Que bonito é o som! como a pancada de um

malho em madeira bem seca, como a batida do coração de um baleeiro antigoquando o mar engrossa e o verde se anuvia. “Meu Deus, meu Deus!” Que sinotangente para acalmar e consolar a alma dos que se irritam e colocá-los emlinha, dizendo: “Adeus, amigos, boa sorte!” e depois: “Querem alguma coisa?”pois se bem que Moggridge fosse capaz de colher uma rosa para ela, isto estáfeito e acabado. E agora então o que é que vem? “Madame, vai perder seutrem”, porque eles não perdem tempo.

Isto é o jeito de homem; isto é o som que reverbera; isto é a basílica de SãoPaulo e os ônibus a motor. E nós para limpar as migalhas. Oh, Moggridge, vocêentão não vai ficar? Tem de sair? Vai passar por Eastbourne hoje à tarde numdesses coches apertados? É você que aí vai emparedado numa caixa de papelãoverde, você que às vezes puxa a cortina, que às vezes se senta bem solene paraolhar fixamente como uma esfinge, sempre com um toque sepulcral naaparência, com alguma coisa de agente funerário, de caixão, de lusco-fusco emcavalo e cavaleiro? Diga-me — mas as portas bateram. Nunca iremos nosencontrar novamente. Adeus, Moggridge!

Sim, sim, já estou indo. Subindo para o alto da casa. Vou ficar um momentolá. Como entra lama na cabeça e rola — que remoinho esses monstros deixam,as águas agitadas, as moitas que ondulam, aqui verdes, além negras, até bateremna areia, até que os átomos gradualmente se reagrupam, a jazida se depura e oque se vê pelos olhos vem claro e calmo de novo, vindo aos lábios uma espéciede prece pelos que partiram, de obséquias pelas almas das pessoas com as quaistrocamos algum sinal de cabeça, e que nunca voltaremos a ver.

Agora James Moggridge está morto, foi-se para sempre. Pois bem, Minnie— “Não aguento mais isso”. Se ela disse tal frase — (Deixem-me dar umaolhada nela, que varre a casca de ovo para os declives mais fundos). Comcerteza que disse, encostada na parede do quarto e brincando com as bolinhasque orlam a cortina cor de clarete. Mas quando o eu fala com o eu, quem é quefala? — a alma sepulta, o espírito empurrado para dentro, cada vez mais paradentro da catacumba central; o eu que tomou véus e abandonou o mundo — umcovarde talvez, contudo belo de algum modo, quando em seu desassossegoperpassa de lampião na mão, a subir e descer nos corredores escuros. “Nãoconsigo suportar mais isso”, diz o espírito dela. “Aquele homem no almoço —Hilda — as crianças.” Oh, céus, seu soluço! É o espírito a deplorar o própriodestino, o espírito impelido de um lado para o outro, que ora se aloja nos tapetesque encolhem — pontos de apoio instáveis — minguados frangalhos de todo oevanescente universo — amor, vida, fé, marido, filhos, não sei que pompas eesplendores reluziam na vida de menina. “Não para mim — não para mim.”

Mas aí — os bolinhos, o cachorro velho e careca? Esteiras de contas,

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imagino eu, e a consolação da roupa de baixo. Se Minnie Marsh fosse atropeladae levada ao hospital, as enfermeiras e até os médicos exclamariam… Há a vistae a visão — há a distância — há no fim da alameda a mancha azul, ao passo queo chá, afinal de contas, é ótimo, o bolinho está quente e o cachorro — “Benny, jápara a sua cesta, ouviu, e olhe o que a mamãe trouxe para você!”. Assim, tirandoa luva que está com o polegar puído, desafiando mais uma vez o espírito abusivoe maligno que a obriga a tapar furos, você renova as fortificações, cosendo coma lã cinzenta, passando-a para lá, para cá.

Passando-a para cá e para lá, de través e por cima, tecendo uma teia pelaqual Deus em pessoa — não, não pense em Deus! Como os pontos estão firmes!Você deve estar orgulhosa da sua obra. Que nada a incomode. Que a luz caiamansamente, que as nuvens mostrem vestes íntimas da cor do primeiro verdedas folhas. Que o pardal pouse no galho e derrube a gota de chuva pendurada noponto em que o galho entorta… Por que olhar para cima? Foi um som, umaideia? Oh, meu Deus! De novo à coisa que você fez, à bandeja com as fitasvioleta? Mas Hilda virá. Ignomínias, humilhações, oh! Feche a brecha.

Tendo remendado sua luva, Minnie Marsh vai guardá-la na cômoda. Fechacom decisão a gaveta. Vejo-lhe o rosto de relance no espelho. O queixo está bemerguido. Os lábios, repuxados. Ela amarra, a seguir, os sapatos. Depois toca nagarganta. Que broche usa? O de folha ou o em forquilha? E o que é que estáacontecendo? A não ser que eu esteja muito enganada, o pulso se acelerou, omomento está chegando, as linhas disparam, Niágara à frente! É a crise! QueDeus lhe acompanhe! Lá vai ela descendo. Coragem, coragem! Não a deixe deenfrentar, torne-se nela! Pelo amor de Deus não fique esperando aí a passar malagora! Olhe a porta! Eu estou do seu lado. Fale! Confronte-a, confunda-lhe aalma!

“Oh, desculpe-me! Sim, é aqui Eastbourne. Vou pegar para a senhora.Deixe que eu pego pela alça.” [Mas, Minnie, apesar de mantermos asaparências, eu li você direitinho — e estou com você agora.]

“É toda sua bagagem?”“Com certeza, obrigada.”(Mas por que você olha à sua volta? Hilda não virá à estação, nem John; e

Moggridge está num coche pelos confins de Eastbourne.)“Vou esperar junto da mala, madame, é mais seguro. Ele disse que vinha

me esperar. Ah, olhe ele ali! É o meu filho.”E juntos lá se vão eles.Bem, mas estou confusa. Sem dúvida, Minnie, você sabe melhor que eu!

Um rapaz estranho… Pare! Eu mesma direi a ele — Minnie! Miss Marsh! —apesar de eu não saber. Tem uma coisa esquisita no casaco dela, quando o ventoo levanta. Oh, não, não é verdade, mas que indecência… Veja como ela seinclina quando eles chegam ao portão de saída. Ela achou a passagem. Qual é a

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graça? E lado a lado eles vão descendo a estrada, depois que saem… Bem, meumundo caiu! No que me apoio? Que é que eu sei? Esta aí não é Minnie. Nuncahouve Moggridge. Quem sou eu? A vida nua, no osso.

No entanto uma última olhada neles — ele a descer do meio-fio e ela asegui-lo pela beira do grande prédio enchem-me de espanto — me inundam denovo. Desconhecidas figuras! Mãe e filho. Quem são vocês? Por que andam ruaabaixo? Onde vão dormir esta noite, e depois, amanhã? Oh, como isso cresce erola — me revigora, me faz flutuar! É deles que eu parto. As pessoas me levampor aqui ou por lá. A luz branca respinga, escorre. As janelas espelham. Cravos;crisântemos. Hera em jardins escuros. Leite entregue na porta. Aonde quer queeu vá, desconhecidas figuras, vejo vocês dobrando a esquina, mães e filhos;vocês, vocês, sempre vocês. Às pressas, vou atrás. Imagino que aqui já seja omar. É cinzenta a paisagem; cinzenta e fosca como a cinza; a água mexe emurmura. Se eu cair de joelhos, se eu passar pelo ritual, com os antigos trejeitos,são vocês, ignotas figuras, são vocês que eu adoro; se abro os braços, são vocêsque eu recebo, é você que eu puxo para mim — mundo adorável.

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CASA ASSOMBRADA

A qualquer hora que você acordasse havia alguma porta batendo. De quarto emquarto eles iam, e de mãos dadas, erguendo aqui, abrindo ali, certificando-se —um casal de fantasmas.

“Deixamos aqui”, ela disse. E ele acrescentou: “Oh, mas aqui também!”.“No andar de cima”, murmurou ela. “E no jardim”, sussurrou ele. “Silêncio”,disseram ambos, “porque senão vamos acordá-los”.

Mas não era que nos acordassem. Oh, não. “Eles estão procurando; estãoabrindo a cortina”, bem que eu poderia dizer, e assim ler ainda uma ou duaspáginas. “Agora acharam”, saberia então com certeza, parando o lápis namargem. E aí, cansada de ler, poderia me levantar para ir ver com meus olhos acasa toda vazia, as portas todas abertas, só as pombas da mata borbulhando decontentamento e a zoada da máquina de debulhar que vem da fazenda. “Por quefoi que entrei aqui? O que era que eu queria encontrar?” Minhas mãos estãovazias. “Talvez lá em cima?” As maçãs estavam no sótão. E assim de novo parabaixo, o jardim tranquilo como sempre, só o livro que escorregou para a grama.

Na sala de visitas o encontraram porém. Sem que alguém pudesse vê-losjamais. As vidraças refletiam maçãs, refletiam rosas; todas as folhas eramverdes no vidro. A maçã se limitava a virar seu lado amarelo, se as folhas semexessem na sala. Entretanto, no momento seguinte, se a porta fosse aberta,estendia-se no chão, descia pelas paredes, pendia do teto — o quê? Minhas mãosestavam vazias. A sombra de um tordo atravessou o tapete; dos poços de silênciomais fundos a pomba da mata extraiu sua bolha de som. “Em segurança, emsegurança”, suavemente bate o pulso da casa. “O tesouro enterrado; o quarto…”para o pulso de repente. Oh, então era o tesouro enterrado?

Um momento depois a luz se apaga. Talvez lá fora no jardim? Mas asárvores protelam a escuridão por causa de um peregrino raio de sol. Tão fino, tãoraro, cravado tão friamente sob a superfície, o raio que eu sempre procureiqueimava além da vidraça. A morte era o vidro; a morte estava entre nós dois;

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primeiro indo à mulher, há centenas de anos, deixando a casa, lacrando todas asjanelas; os quartos se escureciam. Ele as deixava, mulher e casa, ia para o Norte,ou para o Leste, viu o giro das estrelas no céu do Sul; procurou pela casa, achou-aafundada na região dos Downs. “Em segurança, em segurança”, batiaalegremente o pulso da casa. “O tesouro é seu.”

O vento ruge na alameda. As árvores encurvam, dobram-se de variadasmaneiras. O luar se esparrama e respinga forte na chuva. Mas direto da janelavem o facho de luz. A vela queima tesa e quieta. Pervagando pela casa, abrindoas janelas, cochichando para não nos despertar, o casal de fantasmas procura suaalegria.

“Aqui nós dormimos”, diz ela. E ele acrescenta: “Beijos sem conta”.“Acordando de manhã…” “Com o prateado entre as árvores…” “Lá emcima…” “Lá no jardim…” “Quando o verão chegou…” “Na época de neve doinverno…”. E bem ao longe as portas vão se fechando, batendo lentamente comoum coração a pulsar.

Eles chegam mais perto; param na entrada. O vento sopra, a chuva escorreprateada no vidro. Nossos olhos se toldam; não ouvimos passos ao lado; nãovemos mulher alguma abrindo sua fantasmal vestimenta. Já ele protege olampião com as mãos. “Olhe só”, sussurra. “Dormem a fundo. Com amor noslábios.”

Dobrando-se, mantendo acima de nós seu lampião de prata, longa eprofundamente eles olham. Longa é a pausa que fazem. O vento impele certeiro;a flama enverga fragilmente. Fachos fortes de luar cruzam pelo chão e a paredee, ao se encontrarem, mancham as faces que se dobram; as faces queponderam; as faces que revistam os dormentes e buscam sua oculta alegria.

“Em segurança, em segurança”, bate orgulhoso o coração da casa. “Muitosanos…”, suspira ele. “De novo você me achou”. “Aqui”, murmura ela,“dormindo; no jardim, lendo; rindo, rolando maçãs no sótão. Foi aqui que nósdeixamos nosso tesouro…”. Dobrando-se, sua luz ergue em meus olhos aspálpebras. “Em segurança! em segurança! em segurança!”, bate descontroladoo pulso da casa. E eu, despertando, grito: “Oh, é isto o seu — tesouro enterrado? Aluz no coração”.

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UMA SOCIEDADE

Eis aqui como tudo aconteceu. Sentadas um dia depois do chá, éramos cinco ouseis. Umas olhavam pela rua para as vitrines de uma chapelaria onde a luz aindabrilhava intensamente sobre plumas escarlates e chinelos dourados.

Outras estavam ociosamente ocupadas em construir pequenas torres deaçúcar na borda da bandeja de chá. Passado um tempo, pelo que eu lembro,juntamo-nos em volta do fogo e começamos a elogiar os homens, como dehábito — tão fortes, tão nobres, tão brilhantes, tão corajosos, tão belos — comoinvejávamos as que por bem ou por mal deram um jeito de se ligar para semprea um deles! — quando Poll, que não tinha dito nada, explodiu em lágrimas. Poll,devo dizer-lhes, sempre foi esquisita. A começar por seu pai, homem estranho.Deixou-lhe uma fortuna em testamento, mas com a condição de que ela lessetodos os livros da Biblioteca de Londres. Fizemos o possível para a consolar;embora soubéssemos, no íntimo, que era tudo inútil. Pois, apesar de nósgostarmos de Poll, ela não é lá essas coisas; anda de sapatos desamarrados; edevia estar pensando, quando elogiamos os homens, que nunca um deles iriaquerer casar com ela. Por fim enxugou as lágrimas. Mas nós, por algum tempo,não entendíamos nada do que ela estava dizendo. Em sã consciência era muitoestranho. Disse-nos que, como sabíamos, ela passara a maior parte do seu tempolendo, na Biblioteca de Londres. Contou-nos que tinha começado pela literaturainglesa, no andar de cima; e que avançava a passos firmes para chegar a TheTimes, no de baixo. Mas a meio caminho, ou talvez apenas a um quarto,aconteceu uma coisa horrível. Ela não conseguia mais ler. Os livros não eram oque nós pensávamos. “Os livros”, gritou ela, pulando em pé e falando com umaintensidade de desolação que nunca hei de esquecer, “são em sua maior parteindescritivelmente ruins!”.

E gritamos nós, naturalmente, que Shakespeare escreveu livros, e Milton, eShelley.

“Ah, sim”, ela interrompeu. “Estou vendo que foram bem ensinadas. Mas

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vocês não são leitoras da Biblioteca de Londres.” Seus soluços aqui serenovaram. Por fim, melhorando um pouco, ela abriu um dos livros da pilha quesempre levava ao lado — intitulado “De uma Janela” ou “Num Jardim” ou maisou menos assim e escrito por um homem chamado Benton ou Henson ou algosemelhante. E leu as primeiras páginas. Nós ouvimos em silêncio. “Mas isso aínão é um livro”, alguém disse. Ela então escolheu outro. Dessa vez era um livrode história, mas esqueci o nome do autor. Nossa trepidação crescia à medida queela avançava. Nem uma palavra ali parecia ser verdade, e o estilo no qual estavaescrito era execrável.

“Poesia! Poesia!”, gritamos impacientemente. “Leia poesia!” Não consigodescrever a desolação que se abateu sobre nós quando ela abriu um volumezinhoe recitou a baboseira sentimental e verbosa que nele estava contida.

“Deve ter sido escrito por mulher”, alegou uma de nós. Mas não. Ela nosdisse que o autor era um jovem, um dos poetas mais famosos do momento. Quevocês mesmos imaginem o choque que essa descoberta causou. Apesar degritarmos todas e de pedirmos todas que não lesse mais, ela insistiu e nos leutrechos das Vidas dos Presidentes da Câmara dos Pares. Quando acabou, Jane, amais velha e sábia de nós, pôs-se de pé para se declarar não convencida.

“Por quê?”, perguntou, “se os homens escrevem porcarias assim, deveriamnossas mães ter perdido sua juventude para trazê-los ao mundo?”.

Ficamos todas em silêncio; e a pobre Poll, no silêncio, pôde ser ouvida aossoluços: “Por que, por que meu pai me ensinou a ler?”.

Clorinda foi a primeira a demonstrar sensatez. “É tudo culpa nossa”, disse.“Todas nós sabemos ler. Mas nenhuma, a não ser Poll, já se deu ao trabalho de ofazer. Eu, quanto a mim, sempre achei que o dever de uma mulher era passarsua juventude tendo filhos. Eu venerava minha mãe, que teve dez; e mais aindaminha avó, que teve quinze; minha própria ambição, confesso, era ter vinte.Passamos por todas essas épocas supondo que os homens fossem igualmenteindustriosos e que suas obras eram de igual mérito. Enquanto criávamos os filhos,eles, supúnhamos, criavam livros e quadros. Povoamos o mundo. E eles ocivilizaram. Mas agora que nós sabemos ler, o que nos impede de julgar osresultados? Antes de trazermos outra criança ao mundo, temos de nos jurar quevamos descobrir como o mundo é.”

Constituímo-nos assim numa sociedade de fazer perguntas. Uma de nós iriavisitar um navio de guerra; outra iria se esconder no gabinete de um erudito; umaterceira assistiria a um encontro de homens de negócios; e todas deveríamos ler,ver quadros, ir a concertos, andar de olhos bem abertos nas ruas e fazerperpetuamente perguntas. Éramos muito jovens. Vocês podem calcular nossaingenuidade se eu lhes disser que naquela noite, antes de nos despedirmos,concordamos que o objetivo da vida era formar boas pessoas e produzir bonslivros. Nossas perguntas seriam direcionadas para saber até que ponto esse

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objetivo era atualmente alcançado pelos homens. Prometemo-nos solenementeque nenhuma de nós teria um filho antes de nos darmos, todas, por satisfeitas.

Lá então fomos nós, umas para o Museu Britânico; outras à Marinha deGuerra; umas a Oxford; outras a Cambridge; visitamos a Real Academia e aTate; ouvimos música moderna em salas de concerto, fomos ao Tribunal deJustiça e vimos peças novas. Nenhuma de nós jantava fora sem fazer ao seuacompanhante certas perguntas, anotando cuidadosamente as respostas. De vezem quando nos encontrávamos para comparar nossas observações. Oh, essesencontros, que farra! Nunca ri tanto quanto no dia em que Rose leu suasanotações sobre “Honra” e descreveu como ela tinha se vestido de PríncipeEtíope e entrado a bordo de um dos navios de Sua Majestade. Descobrindo oembuste, o Capitão foi visitá-la (disfarçado agora de cavalheiro à paisana) eexigiu que a afronta à honra fosse reparada. “Mas como?”, ela perguntou.“Como?”, ele berrou. “Com a bengala, é claro!” Vendo que ele estava fora de si,de tanta raiva, e crendo que seu último momento havia chegado, ela se dobrou eganhou, para seu espanto, seis tapinhas no traseiro. “A honra da MarinhaBritânica está salva!”, gritou ele, e ela, reerguendo-se, viu que o suor escorria porseu rosto e que sua mão direita estendida estava trêmula. “Calma lá”, exclamou,assumindo uma atitude e imitando a ferocidade da própria expressão dele: “Faltasalvar a minha!”. “É como diz um cavalheiro”, retrucou ele, e caiu em profundopensamento. “Se seis palmadas vingam a honra da Marinha de Guerra de SuaMajestade”, ele ponderou, “quantas vingarão a honra de um particular?”. E disseque preferia levar o caso aos oficiais de sua arma. Ela respondeu altivamenteque não podia esperar. Ele louvou sua suscetibilidade. “Deixe-me ver”, exclamoude repente, “o seu pai tinha carruagem?”. “Não”, disse ela. “Ou um cavalo deraça?” “Tínhamos um burro”, considerou, “que puxava a ceifadeira”. A facedele então se iluminou. “O nome de minha mãe…”, ela acrescentou. “Pelo amorde Deus, não mencione o nome de sua mãe!”, gritou ele, trêmulo como umavara verde e rubro até a raiz dos cabelos, e só depois de uns dez minutos ela opôde induzir a prosseguir. Por fim ele decidiu que se ela lhe desse quatropalmadas e meia no meio das costas e num ponto indicado por ele mesmo (ameia concedida, disse, em reconhecimento ao fato de o tio de sua bisavó ter sidomorto em Trafalgar), sua opinião era que a honra dela estaria nova em folha. Eassim foi feito; retirando-se a um restaurante, eles beberam duas garrafas devinho, pelas quais ele insistiu em pagar; e se despediram com protestos de eternaamizade.

Tivemos depois o relato de Fanny sobre sua ida ao Tribunal de Justiça. Naprimeira visita ela já chegara à conclusão de que os juízes ou eram feitos demadeira ou personificados por grandes animais semelhantes ao homem queforam treinados para mover-se com extrema dignidade, resmungar e balançar acabeça. Para testar sua teoria ela abriu um lenço cheio de moscas-varejeiras no

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momento crítico de um julgamento, mas não foi capaz de julgar se as criaturasdavam sinais de humanidade, pois o zumbido das moscas induziu a um sono tãopesado que ela só acordou a tempo de ver os prisioneiros levados para as celasembaixo. Mas pelo seu depoimento decidimos por voto ser injusto supor que osjuízes são homens.

Helen foi à Real Academia; porém, quando solicitada a fazer seu relatosobre os quadros, começou a recitar, lendo num volume azul claro: “Oh, o toquede mão que se esvaece, o tom de voz que apazigua. É a casa à caça, a casa àespreita na colina. Ele deu um puxão em suas rédeas. Pouco dura o doce amor.Primavera, meiga primavera, gentil rainha do ano. Estar na Inglaterra, ó, quandolá é abril. Aos homens a pugna, às mulheres o pranto. A trilha do dever é ocaminho da glória…”. Não podíamos mais ouvir tanto palavreado.

“Não queremos mais poesia!”, gritamos.“Filhas da Inglaterra!”, ela começou, mas logo a puxamos para baixo,

derramando-se nela, na refrega, uma jarra d’água.“Por Deus!”, ela exclamou, sacudindo-se como um cachorro. “Agora eu

vou rolar no tapete e ver se consigo me livrar do que ainda resta da bandeira doReino Unido. Depois talvez…”, e nesse ponto, com toda a energia, rolou mesmo.Ao levantar-se, começava a nos explicar como são os quadros modernos quandoCastalia a interrompeu.

“Qual o tamanho médio de um quadro?”, perguntou. “Talvez uns setenta poruns noventa centímetros”, ela disse. Castalia tomava notas enquanto Helen falavae, feito isso, quando tentávamos evitar uma o olhar da outra, levantou-se e disse:“Seguindo o que vocês me mandaram, fiquei a semana passada em Oxbridge,disfarçada de arrumadeira. Tive assim acesso aos quartos de vários professores eagora vou tentar lhes dar uma ideia — só que”, interrompeu-se, “não sei comofazer. É tudo tão esquisito. Esses professores”, continuou, “vivem em grandescasas construídas no meio de terrenos gramados, cada qual numa espécie de celaà parte. No entanto eles têm todo o conforto, todas as comodidades. Basta apertarum botão ou acender uma lâmpada. Seus papéis estão sempre perfeitamentearquivados. Livros não faltam. Não há crianças nem animais, salvo uma meiadúzia de gatos errantes e um velho passarinho de canto — um macho. Lembro”,contou ela, “de uma tia minha que morava em Dulwich e criava cactos.Chegava-se à estufa pela dupla sala de visitas, e lá, sobre os canos de águaquente, eles se achavam às dúzias, feios, atarracados, miúdos, espinhentos, cadaqual em seu vaso. O aloé só florescia uma vez em cem anos, disse minha tia.Mas ela morreu antes de isso acontecer…”. Nós lhe pedimos que não fugisse doassunto. “Bem”, retomou ela, “quando o professor Hobkin estava fora euexaminei o trabalho de sua vida, uma edição de Safo. É um livro de aparênciamuito estranha, com um meio palmo de grossura, nem tudo de Safo. Oh, não. Amaior parte é uma defesa da castidade de Safo, que certos alemães haviam

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negado, e posso garantir-lhes qual não foi meu espanto ante o ardor com queesses dois cavalheiros discutiram, a erudição que demonstraram, a prodigiosainocência com que se altercaram quanto ao uso de determinado implemento quepara mim era em todos os respeitos semelhante a um grampo de cabelo;especialmente quando a porta se abriu e o próprio Professor Hobkin apareceu.Um senhor idoso, bondoso, afável, mas que podia ele saber de castidade?”. Nósnão a entendemos direito.

“Não, não”, protestou ela, “ele é a honra em pessoa, tenho certeza — não separece nem um pingo com o capitão de Rose. Eu estava pensando era nos cactosde minha tia. Que poderiam eles saber de castidade?”.

De novo lhe dissemos para não se afastar do ponto — contribuíam osprofessores de Oxbridge para formar boas pessoas e produzir bons livros? — oobjetivo da vida.

“E essa agora!”, exclamou ela. “Nem lembrei de perguntar. Nunca meocorreu que eles fossem capazes de formar ou produzir qualquer coisa.”

“Creio”, disse Sue, “que você cometeu um erro. Provavelmente o professorHobkin era ginecologista. Um erudito é um tipo de homem muito diferente. Oerudito transborda de inventividade e bom humor — talvez um pouco dependentedo vinho, mas e daí? — um ótimo companheiro, generoso, sutil, imaginativo —como o bom senso indica. Pois ele passa sua vida na companhia dos melhoresseres humanos que jamais existiram.

“Hum”, disse Castalia. “Talvez fosse melhor eu voltar lá e tentar de novo.”Aconteceu de eu me achar sozinha, cerca de três meses depois, quando

Castalia entrou. Não sei bem o que em sua aparência me impressionava; masnão pude refrear-me e, precipitando-me pelo quarto, apertei-a nos braços. Nãosomente ela estava muito bonita; parecia também irradiar alegria. “Que ar maisfeliz!”, exclamei enquanto se sentava.

“Estive em Oxbridge”, ela disse.“Fazendo perguntas?”“Respondendo”, retrucou.“Não quebrou nosso voto, não é?”, disse eu, ansiosa, notando algo em sua

expressão.“Oh, o voto”, disse ela descuidadamente. “Eu vou ter um filho, se é isso que

você quer saber. Você não pode imaginar”, explodiu, “como é estimulante, comodá satisfação, como é bonito…”.

“O quê?”, perguntei.“Ah — bem — responder perguntas”, respondeu ela meio confusa. E aí me

contou a história toda. Mas, no meio de uma narrativa que me interessava eexcitava mais do que qualquer outra coisa que eu jamais tinha ouvido, deu ela omais estranho dos gritos, mistura de oi e opa…

“Castidade! Castidade! Onde está minha castidade?”, gritava. “Socorro, me

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acudam! A garrafa de cheiro!”Não havia nada no quarto, a não ser um frasco com mostarda, que eu já

estava a ponto de lhe administrar quando ela recuperou a calma.“Você devia ter pensado nisso há três meses”, disse eu severamente.“É verdade”, retrucou ela. “Não adianta muito pensar nisso agora. Por sinal,

pôr em mim esse nome de Castalia foi uma ideia infeliz de minha mãe.”“Oh, Castalia, sua mãe…” Quando eu mal começava ela alcançou o pote

de mostarda.“Não, não, não”, disse balançando a cabeça. “Se você fosse mesmo casta,

teria soltado um berro ao me ver — não ia se atirar pelo quarto para me tomarem seus braços. Não, Cassandra. Nenhuma de nós duas é casta.” E assim nósfomos conversando.

Enquanto isso o quarto foi se enchendo, pois era o dia marcado paradiscutirmos os resultados de nossas observações. Todas, parecia-me, sentiam-secomo eu em relação a Castalia. Beijavam-na, diziam como estavam contentespor revê-la. Por fim, com o grupo completo, Jane se levantou, disse que era horade começar. E começou por lembrar que já havia cinco anos que vínhamosfazendo perguntas e que, apesar de os resultados não serem conclusivos — aíCastalia me deu uma cotovelada, cochichando não estar assim tão certa disso.Depois se levantou, interrompeu Jane no meio de uma frase e disse:

“Antes de você falar mais, quero saber — posso ficar no quarto? Porque”,acrescentou, “tenho de confessar que sou uma mulher impura”.

Todas olharam para ela espantadas.“Você vai ter um filho?”, perguntou Jane.Ela confirmou com a cabeça.Foi extraordinário ver a expressão dos diferentes rostos. Uma espécie de

zumbido percorreu o quarto, no qual eu pude distinguir palavras como “impura”,“bebê”, “Castalia”, e assim por diante. Jane, ela mesma consideravelmenteabalada, foi que nos colocou a questão:

“Ela deve sair? É impura?”.A barulhada que se fez pelo quarto poderia ter sido ouvida na rua.“Não! Não! Não! Ela fica! Impura? Bobagem!” Mas percebi que algumas

das mais novas, meninas de dezenove ou vinte, tinham ficado bem por trás, comose a timidez as dominasse. Todas nós a rodeamos, fazendo-lhe perguntas, e porfim vi uma das novas, até então lá no fundo, aproximar-se timidamente e dizer-lhe:

“Mas então o que é castidade? É uma coisa boa, é uma coisa ruim ou afinalnão é nada?” E ela respondeu tão baixo que nem pude entender o que dizia.

“Fiquei chocada, sabe”, disse outra, “mas só por uns dez minutos”.“Em minha opinião”, disse Poll, que estava se tornando irritável de tanto ler

na Biblioteca de Londres, “a castidade não é nada a não ser ignorância — um

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estado de espírito dos mais lamentáveis. Na nossa sociedade só deveríamosadmitir as não castas. Proponho que Castalia seja a nossa Presidente”.

O que causou profunda dissensão.“É tão injusto marcar uma mulher por castidade como por não castidade”,

disse Poll. “Muitas de nós nem têm a oportunidade. Além do mais, não creio quea própria Cassy sustente ter agido como agiu por um puro amor aoconhecimento.”

“Ele só tem vinte e dois anos e é divinamente bonito”, disse Cassy com umgesto exuberante.

“Proponho”, disse Helen, “que a ninguém se permita falar de castidade ounão-castidade, a não ser às que estão amando”.

“Nem vem”, disse Judith, que havia pesquisado sobre questões científicas,“não estou amando e sim desejosa de explicar minhas medidas para a isenção deprostitutas e virgens fertilizadoras por Ato do Parlamento”.

E foi em frente, falando-nos de um invento dela, para ser instalado emestações de metrô e outros lugares públicos, o qual, com o pagamento de umamodesta taxa, salvaguardaria a saúde da nação, atendendo a seus filhos, ealiviando ao mesmo tempo as filhas. Além disso ela concebera um método parapreservar em tubos lacrados os embriões de futuros Presidentes da Câmara “oude poetas ou pintores ou músicos”, prosseguiu, “supondo-se, por assim dizer, queessas raças não estejam extintas e que as mulheres ainda queiram ter filhos…”.

“Claro que queremos ter filhos!”, gritou Castalia impacientemente. Janebateu na mesa.

“Foi para discutir este ponto que nos reunimos”, disse. “Há cinco anostentamos descobrir se estamos justificadas em dar continuidade à raça humana.Castalia já antecipou nossa decisão. Faltam agora as conclusões de cada uma denós."

Uma após outra, nossas enviadas se ergueram e apresentaram então seusrelatórios. As maravilhas da civilização excediam em muito nossas expectativase, ao saber pela primeira vez como o homem voa no ar, como fala através doespaço, como penetra no interior de um átomo, como abrange o universo inteiroem suas especulações, um murmúrio de admiração nos veio aos lábios.

“Dá-nos orgulho”, exclamamos, “que nossas mães tenham sacrificado suajuventude por uma causa como essa!”. Castalia, que a tudo ouvia com a maioratenção, parecia a mais orgulhosa de todas. Então Jane nos lembrou de que aindatínhamos muito o que aprender, e Castalia pediu que nos apressássemos. Láfomos pois por um vasto emaranhado de estatísticas. Soubemos que a Inglaterratem uma população de tantos milhões, uma ou certa proporção da qual viveconstantemente faminta e na prisão; qual o tamanho médio da família de umtrabalhador e que uma grande porcentagem de mulheres morre de doençasdecorrentes do parto. Foram lidos relatórios de visitas a fábricas, ao comércio, a

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bairros pobres e às docas. Foram feitas descrições da Bolsa de Valores, de umagigantesca casa de negócios no centro de Londres e de uma repartição pública.Foram também discutidas as colônias britânicas, prestando-se informações sobreo domínio que exercemos na Índia, na África e na Irlanda. Eu, sentada ao ladode Castalia, notei seu desassossego.

“Nunca chegaremos a uma conclusão nesse ritmo”, disse ela. “Como acivilização se mostra muito mais complexa do que imaginávamos, não seriamelhor nos limitarmos à nossa indagação original? Concordamos que o objetivoda vida era formar boas pessoas e produzir bons livros. Mas esse tempo todo nóssó falamos de fábricas, aeroplanos, dinheiro. Vamos falar dos próprios homens, ede suas artes, pois este é o cerne da questão.”

Deram assim um passo à frente as que tinham jantado fora, com tiras depapel com as respostas às perguntas feitas, formuladas depois de muitasconsiderações. Um bom homem, concordáramos, ao menos deveria ser honesto,apaixonado e desinteresseiro. Mas só fazendo perguntas, e partindo em geral deuma distância bem remota do centro, era possível descobrir se determinadohomem possuía ou não tais virtudes. Kensington é um bom lugar para se morar?Onde é que seu filho estuda — e sua filha? Agora me diga, por favor, quantocustam seus charutos? Sir Joseph, por falar nisso, é baronete ou apenas cavaleiro?Frequentemente parecia que aprendíamos mais com questões triviais desse tipodo que com as perguntas mais diretas. “Aceitei meu pariato”, disse LordBunkum, “porque minha mulher queria”. Quantos títulos foram aceitos pelamesma razão, nem lembro mais. “Trabalhando quinze das vinte e quatro horasdo dia, como eu…”, assim começavam dez mil profissionais.

“Não, não, naturalmente o senhor não sabe ler nem escrever. Mas por quetrabalha tanto?” “Minha senhora, com a família crescendo…” “Mas por que suafamília cresce?” Suas esposas também queriam isso, ou talvez fosse o ImpérioBritânico. Mais significativas do que as perguntas, porém, eram as negativas aresponder. Bem poucos respondiam todas as perguntas sobre religião emoralidade, e as respostas que eram dadas, não eram sérias. Perguntas sobre ovalor do dinheiro e do poder invariavelmente eram postas de lado, oucontrapostas, com extremo risco, à entrevistadora. “Estou certa de que”, disseJill, “se ele não estivesse cortando a costeleta quando eu lhe perguntei sobre osistema capitalista, Sir Harley Tightboots teria me cortado o pescoço. A únicarazão que nos fez escapar tantas vezes vivas é que os homens são, ao mesmotempo, tão esfomeados e tão cavalheirescos. Eles nos desprezam demais paraligar para o que nós dizemos”.

“Claro que nos desprezam”, disse Eleanor. “Ao mesmo tempo, fiz pesquisaentre os artistas — como se explica isto: nunca houve uma mulher artista, não émesmo, Poll?”

“Jane—Austen—Charlotte—Brontë—George—Eliot”, gritou Poll, como um

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ambulante apregoando quitutes numa rua dos fundos.“Maldita mulher!”, exclamou alguém. “A mulher é uma chata.”“Desde Safo não se tem visto uma mulher de primeira grandeza…”,

começou Eleanor, lendo nas páginas de um semanário.“Já é agora bem sabido que Safo foi invenção algo libidinosa do professor

Hobkin”, interrompeu Ruth.“Seja como for, não há razão para supor que alguma mulher já foi capaz ou

um dia será capaz de escrever”, continuou Eleanor. “No entanto, quando estouentre autores, eles nunca deixam de me falar dos seus livros. Magistral! digo eu,ou: nem o próprio Shakespeare! (pois é preciso dizer alguma coisa), e garantoque eles acreditam em mim.”

“Mas isso não prova nada”, disse Jane. “Todos fazem o mesmo. Oproblema”, suspirou, “é que isso não parece nos ajudar muito. Talvez fossemelhor examinarmos agora a literatura moderna. Liz, é a sua vez”.

Elizabeth se levantou e disse que, para fazer sua pesquisa, teve de se vestirde homem e passar por resenhista de livros.

“Li livros novos praticamente sem parar durante os últimos cinco anos”,disse ela. “Wells é o mais popular dentre os autores vivos; depois vem ArnoldBennett; depois é Compton Mackenzie; McKenna e Walpole podem ser postosjuntos.” E aí sentou-se.

“Mas você não nos disse nada”, reclamamos. “Ou estará querendo dizerque esses senhores ultrapassaram em muito Jane—Eliot e que a ficção inglesaestá — onde está mesmo aquela sua resenha? — Ah, sim, ‘está bem entregue nasmãos deles’”.

“Bem entregue, garantida”, disse ela, mudando intranquilamente de pé. “Eestou certa de que eles dão ainda mais do que recebem.”

Disso estávamos todas certas. “Mas eles”, pressionamo-la, “eles escrevembons livros?”.

“Bons livros?”, disse ela, olhando para o teto. “Vocês devem se lembrar”,continuou, falando com extrema rapidez, “de que a ficção é o espelho da vida. Enão podem negar que a educação é da maior importância, e que seriaimensamente desagradável achar-se você sozinha em Brighton, tarde da noite,sem saber qual a melhor pensão onde ficar e, supondo-se que fosse uma tardechuvosa de domingo — não seria bom ir ao cinema?”.

“Mas o que é que isto tem a ver com aquilo?”, perguntamos.“Nada — nada — nada de nada”, respondeu ela.“Diga-nos então a verdade”, pedimos.“A verdade? Pois não é uma maravilha?”, ela se abriu: “Há trinta anos que

Mr. Chitter escreve um artigo semanal sobre o amor ou sobre torradasamanteigadas quentes e com isso mandou todos os filhos para Eton…”.

“A verdade!”, exigimos.

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“Oh, a verdade”, ela gaguejou, “a verdade não tem nada a ver com aliteratura”, e recusou-se, sentando-se, a dizer qualquer coisa mais.

Tudo era, a nosso ver, muito inconclusivo.“Senhoras, temos de tentar resumir os resultados”, ia dizendo Jane, quando

um rumor, que há algum tempo já se ouvia pela janela aberta, abafou sua voz.“Guerra! Guerra! Guerra! Declaração de guerra!”, gritavam homens na

rua embaixo.Entreolhamo-nos horrorizadas.“Que guerra?”, gritamos. “Que guerra?” Lembramo-nos, mas tarde

demais, de que nunca tínhamos pensado em mandar ninguém para a Câmara dosComuns. A respeito disso, esquecêramos tudo. Viramo-nos então para Poll, quealcançara as prateleiras de história da Biblioteca de Londres, pedindo-lhe que nosesclarecesse.

“Por que”, gritamos, “os homens entram em guerra?”.“Às vezes por uma razão, às vezes por outra”, explicou ela calmamente.

“Em 1760, por exemplo… ” A berraria lá fora sobrepôs-se às suas palavras.“Novamente em 1797 — e em 1804 — em 1866 foram os austríacos — em1870, os franco-prussianos — em 1900, por outro lado…”

“Mas já estamos em 1914”, interrompemos.“Ah, agora”, ela admitiu, “não sei por que é que estão em guerra não”.

* * *

A guerra tinha acabado e a paz já estava sendo assinada quando estive mais umavez com Castalia no quarto onde costumeiramente ocorriam nossos encontros.Logo nos pusemos a revirar as páginas de nossos velhos cadernos de anotações.“É gozado”, refleti, “ver o que nós pensávamos há cinco anos”. “Concordamos”,citou Castalia, lendo por cima do meu ombro, “que o objetivo da vida é formarboas pessoas e produzir bons livros”. Não fizemos o menor comentário a isso.“Um bom homem deve ao menos ser honesto, apaixonado e desinteresseiro.”“Que linguagem de mulher!”, observei. “Oh, querida”, exclamou Castalia,afastando o livro de si, “como éramos tolas! E tudo por culpa do pai de Poll”,continuou. “Aquilo que ele fez de propósito — aquele testamento ridículo, aquelacláusula obrigando Poll a ler todos os livros da Biblioteca de Londres. Se nãotivéssemos aprendido a ler”, disse ela amargamente, “ainda poderíamos estartendo filhos na ignorância, e afinal essa seria, creio eu, a mais feliz das vidas. Seio que você há de dizer sobre a guerra”, examinou-me, “e o horror que é terfilhos para os ver mortos, mas nossas mães passaram por isso, e as avós, e asbisavós, e nenhuma reclamou. Elas não sabiam ler. Eu mesma fiz o que pude”,suspirou, “para impedir minha filhinha de aprender a ler, mas de que adianta?

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Ontem mesmo peguei Ann com um jornal na mão, e logo ela foi meperguntando se ele dizia ‘a verdade’. Em breve me perguntará se Mr. LloydGeorge é um bom homem, depois se Mr. Arnold Bennett é um bom romancista efinalmente se eu acredito em Deus. Como posso educar minha filha sem nada noque acreditar?”, perguntou.

“Certamente você poderia ensiná-la a crer que o intelecto do homem é eserá sempre fundamentalmente superior ao da mulher?”, sugeri eu. Com isso elase animou e voltou a revirar os nossos velhos cadernos. “Sim”, disse, “pense nasdescobertas, na matemática, na ciência, na filosofia, na erudição deles…”, e aícomeçou a rir, “nunca vou me esquecer do velho Hobkin e o grampo de cabelo”,acrescentou, e continuou lendo e rindo e eu já achava que estava muito felizquando de repente ela jogou o livro de lado e exclamou: “Oh, Cassandra, por quevocê me atormenta? Você não sabe que nossa crença no intelecto do homem é amaior falácia de todas?”. “O quê?”, exclamei eu. “Pergunte a qualquerjornalista, mestre-escola, político ou dono de botequim do país e todos eles lhedirão que os homens são muito mais inteligentes do que as mulheres.” “Como seeu duvidasse disso”, disse com escárnio. “Como ser de outro modo? Não fomosnós que os criamos e nutrimos e mantivemos em conforto desde o começo dostempos para que eles pudessem ser inteligentes, mesmo que não sejam nadaalém disso? Foi feito por nós, o que aí está!”, gritou. “Quisemos tanto ter intelecto,que agora temos de sobra. É o intelecto”, continuou, “que está na base de tudo. Oque há de mais encantador que um garoto, antes de começar a cultivar seuintelecto? É bonito de ver; não se dá ares de importância: compreendeinstintivamente o significado da arte e da literatura; anda por aí aproveitando suavida e fazendo com que outros aproveitem também as suas. Mas aí lhe ensinam acultivar seu intelecto. Ele se torna um advogado, um funcionário público, umgeneral, um autor, um professor. Todos os dias vai para o escritório. Todos os anosproduz um livro. Mantém toda uma família com as produções do seu cérebro —pobre coitado! Em breve não poderá entrar num quarto sem que nos sintamostodas incomodadas; ele se mostra condescendente com qualquer mulher queencontra, e nem sequer à própria esposa ousa dizer a verdade; se tivermos detomá-lo nos braços, temos de fechar nossos olhos, não de alegrá-los. Na verdadeeles se consolam com estrelas em todos os formatos, com faixas de todas ascores e com todos os montantes de renda — mas o que temos nós para nosconsolar? Que dentro de dez anos seremos capazes de passar uma semana emLahore? Ou que o menor inseto do Japão tem um nome que é o dobro daextensão de seu corpo? Oh, Cassandra, pelo amor de Deus, vamos inventar ummétodo que permita aos homens terem filhos! É a nossa única esperança. Pois, anão ser que lhes propiciemos uma ocupação inocente, não teremos boas pessoas,nem sequer bons livros; pereceremos sob os frutos de sua desembestadaatividade; e não sobreviverá nem mesmo um ser humano para saber que outrora

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existiu Shakespeare!”.“Já é tarde demais”, repliquei. “Não podemos nem cuidar dos filhos que já

temos.”“E você quer que eu acredite em intelecto?”, ela disse.Enquanto conversávamos, homens roucos e exaustos gritavam pela rua e,

ouvindo-os, ficamos sabendo que o Tratado de Paz tinha sido assinado haviapouco. As vozes foram sumindo ao longe. A chuva caía e por certo interferiacom a correta explosão dos fogos de artifício.

“Minha empregada já terá comprado o Evening News”, disse Castalia, “queAnn deve estar soletrando enquanto toma seu chá. Tenho de ir para casa”.

“Não adianta — não adianta nada”, disse eu. “Depois que ela aprender aler, somente numa coisa você poderá ensiná-la a acreditar — nela mesma.”

“Bem, já seria uma mudança”, disse Castalia.Passamos pois a mão nos papéis da nossa Sociedade e, embora Ann

estivesse brincando com a sua boneca na maior felicidade, solenemente apresenteamos com o monte, dizendo-lhe que a tínhamos escolhido para ser aPresidente da Sociedade do futuro — com o que a coitadinha caiu em prantos.

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SEGUNDA OU TERÇA

Preguiçosa e indiferente, arredando espaço de suas asas com a maior facilidade,e sabendo o caminho, a garça passa embaixo do céu por sobre a igreja. Branco edistante, absorto em si mesmo, infinitamente o céu cobre e descobre, fica e seafasta. Um lago? Apague logo sua margem! A montanha? Oh, é perfeita —dourando ao sol sua encosta. Ora desce, descai. E depois samambaias, ou penasbrancas, incessantemente…

Desejando a verdade, à espera dela, destilando laboriosamente algumaspalavras, desejando sem parar — (parte um grito da esquerda, depois outro àdireita. Movem-se rodas que divergem. Ônibus se conglomeram em conflito) —sem parar desejando — (o relógio assevera com doze badaladas distintas que émeio-dia; escamas de ouro se desprendem da luz; crianças se embolam) —desejando eternamente a verdade. Vermelha é a cúpula; há moedas penduradasnas árvores; a fumaça se espicha pelas chaminés; clamam, berram, gritam“ferro à venda” — e a verdade?

Propagando-se até um ponto nos pés de homens e mulheres, comincrustações douradas ou negras — (Esse tempo nevoento — Açúcar? Não,obrigado — A comunidade do futuro) —, a luz do fogo se arremessa e avermelhatoda a sala, exceto as figuras negras e seus brilhantes olhos, enquanto lá fora umcarro descarrega, Miss Thingummy toma chá à sua mesa e casacos de pele sãopreservados em vidro…

Agitada, folha-luz, levada pelas esquinas, soprada por entre as rodas,salpicada de prata, em casa ou fora de casa, juntada, espalhada, derramada emseparadas escamas, varrida para lá e para cá, dilacerada, deprimida, reunida —e a verdade?

Agora refazer-se ao lado do fogo no quadrado branco de mármore. Vindasde ebúrneas profundidades, palavras soltam seu negrume ao se erguer,florescem, penetram. Caído o livro; na chama, na fumaça, nas fagulhasmomentâneas — ou agora viajando, o quadrado de mármore pendente, por

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baixo minaretes e os mares da Índia, enquanto o espaço corre azul e as estrelascintilam — a verdade? ou, agora, satisfação com a reclusão?

Preguiçosa e indiferente a garça retorna; o céu cobre com véu suas estrelas;depois desnuda-as.

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O Q UARTETO DE CORDAS

Bem, cá estamos, e se você correr os olhos pela sala verá que bondes, metrôs eônibus, não poucas carruagens particulares e até, ouso crer, landaus puxados porcavalos baios participaram de tudo, trançando fios de uma à outra extremidadede Londres. No entanto, começo a ter minhas dúvidas…

Se de fato for verdade, como estão dizendo, que a Regent Street estáfervilhando, que o Tratado foi assinado, que para a época do ano o tempo nãoestá frio, que nem por muito de aluguel se arranja apartamento e que o pior dagripe são as consequências; se me ocorre pensar ter esquecido de escrever sobrea goteira na despensa, e que deixei minha luva no trem; se os laços de sanguemandam-me, a mim que me dobro à frente, aceitar cordialmente a mão que seoferece talvez com hesitação…

“Há sete anos não nos víamos.”“A última vez foi em Veneza.”“E onde você está morando agora?”“Bem, para mim é melhor no fim da tarde, se bem que, se não fosse pedir

muito…”“Mas eu logo a reconheci.”“É, a guerra abriu uma brecha…”Se é a mente varada por tais insignificantes flechinhas, e se — pois que a

tanto compele a sociedade humana — assim que uma é disparada, já outrapressiona à frente; se isso gera calor e se, em acréscimo, acenderam a luzelétrica; se dizer uma coisa, em tantos casos, deixa por trás uma necessidade derever, de melhorar, revolvendo além do mais nos lamentos, prazeres, vaidades,desejos — se são todos os fatos a que me refiro, os chapéus, os boás de pele, ascasacas dos cavalheiros e os alfinetes de gravata de pérola que vêm à superfície— qual é a chance?

De quê? A cada minuto se torna mais difícil dizer por que, a despeito detudo, sento-me aqui acreditando que agora eu não posso dizer de quê, nem

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mesmo me lembrar da última vez em que isso aconteceu.“Você viu o desfile?”“O rei parecia tão frio.”“Não, não, não. Mas o que era mesmo, hein?”“Ela comprou uma casa em Malmesbury.”“Que sorte, achar uma!”A mim, pelo contrário, parece mais que certo ela estar, seja ela quem for, é

desgraçada, já que é tudo uma questão de casotas e chapéus e gaivotas, ou assimparece ser para a centena de pessoas bem-vestidas, emparedadas, empelicadas,repletas que aqui tomaram assento. Não que eu possa me gabar, pois tambémpassivamente me sento numa poltrona dourada, e apenas reviro a terra, comofazemos todos nós, sobre uma memória sepulta, pois há sinais, se não me engano,de que todos estamos lembrando de uma coisa, furtivamente à procura de umacoisa. Por que se inquietar? Por que tanta ansiedade sobre o acerto das roupas;das luvas — desabotoá-las ou não? Observe a seguir o rosto idoso, em destaquena tela escura, há um momento cortês e enrubescendo; agora triste e taciturno,como que na sombra. Era o som do segundo violino a se afinar na antes-sala? Aívêm eles; quatro negras figuras com instrumentos, que se sentam de frente paraos quadrados brancos sob a torrente de luz; pousam as pontas de seus arcos naestante de música; com um movimento simultâneo os levantam; bem de leve osmantêm em suspensão e, olhando para o instrumentista à sua frente, o primeiroviolino conta um, dois, três…

Que floresça a primavera, que o broto nasça! Há uma pereira no alto damontanha. Jorram fontes; caem gotas. O Ródano porém corre profundo e célere,precipita-se por sob as arcadas e arrasta as folhas que boiavam sobrando,lançando sombras nos peixes prateados, nos peixes malhados impelidos ao fundopelas águas velozes e ora puxados por um redemoinho para — como é difícil isto— a conglomeração de todos num poço; peixes que saltam, que espadanam, queafiam suas nadadeiras cortantes; e tal a agitação da corrente que os seixosamarelos rolados vão se tornando cada vez mais redondos, roliços, rotundos —livres agora, quando se precipitam ao fundo, ou mesmo ascendem de algummodo no ar em espirais primorosas; que se enrolam, como aparas tiradas poruma plaina; e não param de subir… Como é bela a bondade em quem, pisandode leve, passa sorrindo pelo mundo! E também em velhas e animadas peixeirasque se agacham debaixo das arcadas, pândegas e obscenas velhotas que, aoandarem de um lado para outro, hum, ah!, riem às gargalhadas, sacudindo-se amais não poder.

“Isto é do jovem Mozart, naturalmente…”“Mas a melodia, como todas as melodias dele, leva ao desespero — ou

melhor, à esperança. Que é que eu quero dizer? Que o pior da música é isto!Quero dançar, rir, comer bolos cor-de-rosa, bolos amarelos, beber vinho suave

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ou forte. Ou, agora mesmo, uma anedota indecente — bem que me agradaria.Quanto mais velha uma pessoa fica, mais gosta de imoralidades. Ra-ra-ra! euestou rindo. De quê? Nem você, nem o senhor idoso do outro lado, nadadisseram… Mas suponha que — suponha — Silêncio!”

O rio da melancolia nos leva. Quando a lua penetra por entre os ramospendentes do salgueiro, vejo seu rosto, ouço sua voz e os passarinhos cantando aopassarmos pelo canteiro de vime. O que dizem seus murmúrios? Aflição, aflição.Alegria, alegria. Trançadas juntas, inextricavelmente mescladas, ligadas pela dore juncadas de sofrimento — até se romper!

O barco afunda. Soerguendo-se, as figuras ascendem, mas finas comofolhas agora, e gradualmente se reduzem a um nevoento espectro que, com asextremidades em fogo, arranca-me do coração sua paixão dobrada. Para mimele canta, deslacra minha dor, induz à compaixão, inunda de amor o mundo semsol, não reprime, cessando, sua ternura, mas ágil e sutilmente tece para dentro epara fora, até que neste padrão, nesta consumação, venha unificar as fendas;voar, soluçar, afundar em repouso, aflição e alegria.

Então, por que se atormentar? Pedir o quê? Continuar insatisfeita? Digo quetudo está resolvido; sim; posto para descansar debaixo de uma colcha de folhasde roseira caindo. Caindo. Ah, mas elas param. Uma folha de roseira, caindo deenorme altura, como um pequeno paraquedas lançado de um balão invisível,vira-se, adeja indecisamente. Não conseguirá alcançar-nos.

“Não, não. Não notei nada. O pior da música é isto — estes sonhos absurdos.O segundo violino se atrasou, é?”

“É a velha Mrs. Munro, sentindo que está no fim — cada ano mais cega,coitada — neste piso escorregadio.”

Velhice sem olhos, esfinge de cabeça grisalha… Lá está ela na calçada,fazendo sinal, na maior austeridade, para o ônibus vermelho.

“Como foi bom! Como eles tocam bem! Como — como — como!”A língua não passa de uma matraca. A própria simplicidade. As penas do

chapéu a meu lado são reluzentes e deleitam como um matraquear de crianças.A folha do plátano cintila em verde pela fresta da cortina. Muito estranho, muitoemocionante.

“Como — como — como!” Chega!Estes aqui são os namorados na grama.“Se aceitar minha mão, madame…”“Bem que eu lhe confiaria, senhor, meu coração. Mas acontece que

deixamos nossos corpos no salão de banquete. São as sombras de nossas almasque se estendem na grama.”

“São nossas almas então que assim se acariciam.” Os limoeiros acenam emconcordância. O cisne se desloca da margem e, sonhador, vai nadando para omeio da água.

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“Mas, para voltar. Ele me seguiu pelo corredor abaixo e, quando dobramosa esquina, pisou nas rendas da minha anágua. O que eu podia fazer senão gritar‘Ah!’ e parar para ajeitá-las? Nisso ele desembainhou sua espada, deu algunsgolpes como se a fosse cravar para matar e gritou: ‘Louca! Louca! Louca!’.Tendo eu aí dado um berro, o Príncipe, que estava escrevendo no grande livroem velino à janela em sacada, saiu com seu gorro de veludo e seus chinelosforrados para arrancar da parede uma espada de dois gumes — presente do reida Espanha, sabe — e foi nessa que escapei, me enrolando bem na capa paraesconder os estragos na minha saia — para esconder… Mas ouça! as trompas!”

O cavalheiro responde com tal rapidez à dama, e ela sobe na escala comtão espirituosa troca de atenções, a culminar agora num apaixonado soluço, queas palavras são indistinguíveis, embora seu significado seja bastante claro —amor, riso, arroubo, perseguição, ventura celestial — tudo flutuando às claras nomais alegre encrespar-se de carinhosa estima — até que o som das trompasprateadas, a princípio muito distante, pouco a pouco adquire cada vez maisclareza, como se houvesse senescais saudando a aurora ou proclamandoominosamente a escapada dos amantes… O jardim verde, poça enluarada, oslimoeiros, os namorados e os peixes estão todos dissolvidos no céu de opala, peloqual, quando as trompas se juntam a trompetes e são acompanhadas por clarins,sobem arcadas brancas apoiadas firmemente em pilares de mármore…Caminhar e clarinar. Clangorar e clangor. Firme estabelecimento. Fixasfundações. Marcha de miríades. Confusão e caos postos por terra. A cidade paraa qual viajamos não tem pedra nem mármore; mas paira duradoura; permaneceinabalável; nenhum rosto, nenhuma bandeira para saudar ou dar as boas-vindas.Deixe então perecer sua esperança; e minha alegria esmorecer no deserto;avance nua. Há nudez nos pilares; jamais auspiciosos; jamais lançando sombras;resplandecentes; severos. Caio pois de regresso, não mais ansiosa, desejandoapenas ir, achar a rua, marcar bem os prédios, cumprimentar a vendedora demaçãs, dizer para a empregada que vem abrir a porta: Uma noite estrelada.

“Boa noite, boa noite. Você vai para lá?”

“Ah, não! Vou para cá.”

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AZUL E VERDE

VERDEOs dedos de vidro pendurados apontam para baixo. A luz, ao deslizar pelo vidro,derrama uma poça verde. O dia inteiro os dez dedos do lustre derramam verdeno mármore. As penas dos periquitos — seus gritos dissonantes — cortanteslâminas de palmeiras — verdes também; verdes agulhas reluzindo no sol. Masnão para o duro vidro de gotejar sobre o mármore; sobre a areia do deserto aspoças ficam suspensas; por elas cambaleiam camelos; as poças se assentam nomármore; juncos as margeiam; e ervas se grudam nelas; aqui e ali uma florbranca; o sapo salta por cima; de noite as estrelas são afixadas intactas.Aproxima-se a noite, e o verde, varrido pela sombra, vai para cima da lareira; asuperfície enrugada do oceano. Não há navios chegando; as ondas a esmobalançam sob o céu vazio. A noite avança; das agulhas agora pingam traços deazul. O verde ficou de fora.AZULO monstro de nariz achatado surge na superfície e esguicha por suas rudesnarinas duas colunas de água que, de um branco ardente no centro, ao redor seespalham numa orla de borrifos azuis. A tela preta do seu couro é riscada porpinceladas azuis. Enchendo-se de água pela boca e as narinas, pesado de tantaágua ele afunda, e o azul se fecha sobre ele, a procurar por artes mágicas osseixos polidos dos seus olhos. Lançado à praia ei-lo que jaz, rude, obtuso, soltandoescamas secas e azuis. O azul metálico delas mancha na praia o ferroenferrujado. São azuis as nervuras do barco a remo que afundou. Sob os sinosazuis rola uma onda. Mas é diferente o da catedral, frio, cheio de incenso, umazul desmaiado, com véus de madonas.

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1922-1925

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UMA ESCOLA DE MULHERES VISTA DE FORA

A lua, com seu branco plumoso, nunca deixava o céu ficar escuro; a noite inteiraeram brancas contra o verde as flores do castanheiro, como indistinta pelosprados era a salsa-do-campo. Nem à Tartária nem à Arábia ia o vento dos pátiosde Cambridge, mas mergulhava sonhador em meio a nuvens cinza-azuladassobre os telhados de Newnham. Lá no jardim, se precisasse de espaço paraandar, ela o encontraria entre as árvores; e, como apenas faces de mulherespoderiam encontrar sua face, tirando o véu ela seria capaz de a revelar apática,inexpressiva, e fixar o olhar nos quartos onde, àquela hora, apáticas,inexpressivas, pálpebras brancas sobre os olhos, mãos sem anéis sobre lençóis,dormiam numerosas mulheres. Mas aqui e ali ainda havia uma luz acesa.

No quarto de Angela, poder-se-ia imaginar uma luz dupla, tendo em vistaquão luminosos eram não só a própria Angela, mas também seu reflexo que oespelho quadrado devolvia. Toda ela perfeitamente delineada – até a alma talvez.Pois o espelho apresentava uma imagem que era incapaz de tremer – branca edourada, chinelos vermelhos, cabelo claro com pedrinhas azuis, e nunca umaruga ou sombra para interromper o prolongado beijo de Angela e seu reflexo noespelho, como se ela estivesse radiosa de ser Angela. Radioso, fosse como fosse,era o momento – o quadro reluzente pendurado no coração da noite, o santuárioescavado nas trevas. É estranho de fato ter essa prova visível da retidão dascoisas; esse lírio a flutuar impecável, e sem medo, sobre as águas do Tempo,como se isto bastasse – este reflexo. Meditação que ela traiu ao virar-se, e oespelho já não exibia mais nada, ou somente a armação da cama, e ela,correndo de lá para cá, pisando de leve e disparando, tornou-se igual a umamulher numa casa e mudou de novo: franziu os lábios por cima de um livro pretoe com seu dedo marcou o que não seria decerto uma apreensão muito firme daciência econômica. Somente Angela Williams estava em Newnham com oobjetivo de ganhar a vida, não podendo se esquecer, nem mesmo em momentosde adoração apaixonada, dos cheques de seu pai em Swansea; de sua mãe

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lavando roupa no tanque: vestidos cor-de-rosa para estender no varal; sinais deque nem o lírio ainda flutua impecável sobre as águas, tendo sim, como qualquerum, um nome escrito num cartão.

A. Williams – pode-se ler à luz da lua; e a seguir alguma Eleanor ou Mary,Mildred, Sarah, Phoebe em cartões quadrados nas suas portas. Nada a não sernomes, apenas nomes. A luz branca e fria os embranquecia e engomava atérestar a impressão de que o único objetivo desses nomes todos era se pôrmarcialmente em ordem caso houvesse um chamamento a que fossem apagarum incêndio, abafar uma insurreição ou submeter-se a um exame. Tal é o poderdos nomes escritos em cartões afixados nas portas. Tal também a semelhança,vejam-se as telhas, corredores, portas de quartos de dormir, com um conventoou um estábulo, um lugar de reclusão ou disciplina, onde a vasilha de leite semantém fresca e pura e há muita lavação de roupa.

Neste exato momento partiu de trás de uma porta uma risadaria abafada.Um relógio de voz alambicada batia as horas – uma, duas. Mas, se o relógioestivesse dando ordens, essas eram desobedecidas. Incêndio, insurreição, exame,tudo se cobria de neve com as risadas, ou com jeito era extinto, dando o som aimpressão de borbulhar das profundas para meigamente afastar, de um sopro,hora, regras, disciplina. A cama estava cheia de cartas de baralho espalhadas.Sally, no chão. Helena, na cadeira. Bertha, perto da lareira, esquentava as mãosjuntas. A. Williams entrou bocejando.

“Porque é profunda e intoleravelmente irritante”, disse Helena.“Irritante”, ecoou Bertha. E depois bocejou.“Não somos eunucos.”“Eu vi quando ela ia escapulindo pelo portão dos fundos, com aquele chapéu

velho. Eles não querem que a gente saiba.”“Eles?”, disse Angela. “Ela.”Daí as risadas.As cartas foram dadas, com suas faces vermelhas e amarelas a cair sobre a

mesa, e às cartas se atiraram as mãos. Bertha, encostando a cabeça na cadeira,suspirou fundo. Bem que ela teria preferido dormir, mas, já que a noite é umpasto livre, um campo ilimitado, já que a noite é riqueza por moldar, convémabrir na sua escuridão um túnel. Convém cobri-la de joias. A noite era partilhadaem segredo, de dia o rebanho todo pastava. A cortina estava aberta. Neblinava nojardim. Sentando-se no chão à janela (enquanto as outras jogavam), corpo,mente, os dois juntos pareciam levados pelo ar para arrastar-se através doarvoredo. Ah, mas ela queria era esticar-se na cama e dormir! Ninguém sentiacomo ela, acreditava, um tal desejo de sono; acreditava, humilde – esonolentamente –, cabeceando e já quase arriando às vezes, que as outrasestavam plenamente acordadas. Quando riram todas juntas, um passarinho quedormia pipilou no jardim, como se a risadaria…

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Sim, como se a risadaria (pois ela agora cochilava) flutuasse também comoa neblina e se amarrasse com tiras de suave elasticidade nos arbustos e nasplantas, tornando vaporoso e anuviado o jardim. A seguir, levados pelo vento,curvar-se-iam os arbustos, sendo o vapor branco soprado pelo mundo afora.

De todos os quartos onde as mulheres dormiam esse vapor emanava,aderindo como neblina às plantas para depois soltar-se livremente no ar.Dormiam mulheres velhas que de imediato empunhariam o bastão de marfim daordem, se acordassem. Agora, no entanto, tão sem cor e serenas, em repousoprofundo, elas jaziam rodeadas, jaziam sustentadas pelos corpos das jovens queali se recostavam ou iam se agrupar à janela; derramando no jardim suasborbulhantes risadas, sua risadaria irresponsável: um riso de corpo e alma, quepunha regras, horas, disciplina a voar para longe: imensamente fertilizador,contudo informe, caótico, arrastando-se erradio e recobrindo de tufos e nesgas devapor as roseiras.

“Ah”, suspirou Angela, plantada de camisola à janela. Havia dor em suavoz, com a cabeça curvada para fora. A neblina se fendeu como se sua voz apartisse. Enquanto as outras jogavam, ela estivera conversando com Alice Averysobre o castelo de Bamborough; a cor da areia ao crepúsculo; ao que Alicedissera que ia escrever e anotar o dia, em agosto, e inclinando-se lhe deu umbeijo, ou pelo menos tocou sua cabeça com a mão, e Angela, positivamenteincapaz de sentar-se quieta, como se um mar encapelado batesse em seucoração, vagou de um lado para outro no quarto (a testemunha de tal cena),mantendo os braços bem abertos para aliviar a emoção, esse espanto ante oincrível abaixamento da árvore milagrosa coroada por um fruto de ouro – quenão veio cair em suas mãos? Ela o abrigava junto ao seio, brilhando, coisa paranão ser tocada, nem pensada ou comentada, mas para ficar lá em seu brilho. Eentão, lentamente pondo aqui suas meias, ali seus chinelos, dobrando por cima,com cuidado, a anágua, Angela, cujo sobrenome era Williams, deu-se conta deque – como poderia expressá-lo? – de que após a negra turbulência de umainfinidade de épocas aqui estava a luz no fim do túnel; a vida; o mundo. Embaixodela – tudo ótimo; tudo adorável. Tal foi sua descoberta.

Como então sentir surpresa, com efeito, se, deitada na cama, ela nãoconseguia fechar os olhos de vez? – algo voltava irresistivelmente a abri-los – sena escuridão pouco profunda o gaveteiro e a cadeira pareciam tão majestosos, etão precioso o espelho, quando cinéreo anunciava o dia? Chupando o polegar feitocriança (com dezenove anos feitos em novembro passado), lá ficou ela poisnesse mundo bom, nesse mundo novo, nesse mundo no fim do túnel, até que umdesejo de o ver ou de a ele antecipar-se a impeliu a jogar de lado as cobertaspara se guiar à janela e lá, ao olhar para o jardim, onde se espalhava a neblina,todas as janelas abertas, com um azul afogueado, com algo murmurando aolonge, o mundo, é claro, e a manhã chegando, “Oh”, gritou ela, como se sentisse

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uma dor.

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NO POMAR

Miranda dormia no pomar, deitada numa espreguiçadeira sob o pé de maçã. Seulivro tinha caído na grama e seu dedo ainda parecia apontar para a frase “Cepays est vraiment un des coins du monde où le rire des filles éclate le mieux…”,como se justamente aí ela houvesse começado a dormir. As opalas em seu dedocambiavam de cor ao faiscar, ora em verde, ora em rosa, ora ainda em laranja,à medida que o sol vinha cobri-las, filtrado pelas macieiras. Depois, quando abrisa soprou, como uma flor presa na haste seu vestido roxo ondulou; dobrou-se agrama; e a borboleta branca, bem por cima do seu rosto, veio esvoaçando aesmo.

No ar, a mais de um metro sobre sua cabeça, as maçãs pendiam. Derepente houve um barulho estridente, como se gongos de metal rachado fossempercutidos de um modo irregular, brutal, violento. Eram contudo apenas ascrianças da escola recitando a tabuada em uníssono, interrompidas peloprofessor, repreendidas, e começando a dizer a tabuada outra vez. Mas o alaridopassou a mais de um metro sobre a cabeça de Miranda, enfiou-se nos galhos dasmacieiras e, ao ir de encontro ao filho do vaqueiro, que estava apanhandoamoras na cerca, quando deveria estar na escola, levou-o a rasgar seu polegar noespinhal.

A seguir houve um grito solitário – triste, humano, brutal. O velho Parsley,que estava, de fato, torto de bêbado.

Aí as folhas mais do alto da macieira, planas como peixinhos contra o azul,a mais de três metros sobre a terra, vibraram com uma nota pensativa e lúgubre.Era o órgão da igreja que tocava um dos “Hinos antigos e modernos”. O somsaía flutuando e era cortado em átomos por um bando de tordos que voava aenorme velocidade – fosse para onde fosse. Lá embaixo, a mais de três metros,Miranda continuava dormindo.

E aí acima de macieira e pereira, seiscentos metros acima de Miranda adormitar no pomar, tocaram sinos, surdos, intermitentes, soturnos, didáticos, pois

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seis pobres mulheres da paróquia eram levadas nesse instante à igreja, dando opastor graças a Deus por seus dízimos.

E acima disso, com um brusco rangido, a seta dourada da torre da igrejavirou de Sul para Leste. O vento tinha mudado. Acima de tudo mais ele zunia,acima das matas, dos pastos, dos morros, quilômetros acima de Miranda que nopomar dormia. Varreu persistente, sem olhos, sem cérebro, nada encontrandopara lhe opor resistência, até fazer meia-volta e rumar ao Sul novamente.Quilômetros abaixo, num espaço tão grande quanto um buraco de agulha,Miranda se pôs em pé e gritou: “Oh, vou me atrasar para o chá!”.

Miranda dormia no pomar – ou talvez não dormisse, porque seus lábios semoviam muito de leve, como se estivessem dizendo “Ce pays est vraiment un descoins du monde… où le rire des filles… éclate… éclate… éclate…”, e ela sorria edeixava o corpo afundar com todo o peso na terra enorme que se ergue, pensouentão, para me levar nas costas como se eu fosse uma folha, ou uma rainha (eaqui as crianças diziam a tabuada), ou, prosseguiu Miranda, eu poderia estardeitada no topo de um penhasco com os gritos das gaivotas por cima. Quantomais alto elas voam, ocorreu-lhe a seguir, quando o professor ralhou com ascrianças e bateu nos nós dos dedos de Jimmy até fazê-los sangrar, mais fundoolham para o mar – para o mar, repetiu, e seus dedos relaxaram e seus lábios sefecharam serenamente, como se ela estivesse flutuando nas ondas, e depois,quando acima da cabeça soou o berro do bêbado, ela respirou num êxtaseextraordinário, pois pensou ter ouvido os próprios gritos da vida vindos de umaboca escarlate com sua língua grosseira, do vento, dos sinos, das folhas verdes ecurvas dos repolhos.

Naturalmente ela estava se casando quando o órgão atacou a melodia dos“Hinos Antigos e Modernos” e, quando os sinos tocaram depois que as seis pobresmulheres foram levadas à igreja, a intermitência surda e soturna a fez pensarque a própria terra tremia sob os cascos do cavalo que galopava na sua direção(“Ah”, suspirou, “eu só tenho de esperar!”), parecendo-lhe então que para ela eao redor, até vará-la ao través, tudo havia começado a se mover e gritar, a voare cavalgar, numa disposição em conjunto.

Mary está rachando lenha, pensou; Pearman está cuidando das vacas; ascarroças estão vindo dos pastos; o cavaleiro – e ela traçou as linhas que oshomens, as carroças, os pássaros e o cavaleiro faziam por essa parte do campoaté parecer que eram repelidos todos, ao redor e ao través, pelo pulsar do seupróprio coração.

No ar, quilômetros acima, mudou o vento; a seta dourada da torre da igrejarangeu; e Miranda pulou em pé e gritou: “Oh, vou me atrasar para o chá!”.

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Miranda dormia no pomar, ou estava ou não estava dormindo? Seu vestido roxose esticava entre os dois pés de maçã. Havia vinte e quatro macieiras no pomar,umas ligeiramente inclinadas, outras crescendo retas numa investida que iatronco acima para alargar-se em galhos e formar gotas redondas, vermelhas ouamarelas. Cada macieira tinha bastante espaço. O céu se encaixava à perfeiçãonas folhas. Quando a brisa soprou, a linha dos ramos contra o muro inclinou-seum pouco, voltando logo depois ao normal. Uma rabirruiva voou em diagonal deum canto a outro. Em pulinhos cautelosos, um tordo se aproximou de uma maçãcaída; e um pardal passou rente à grama, vindo do outro muro. A investida dasárvores, para o alto, era amarrada, em baixo, por esses movimentos; sendo otodo compactado pelos muros do pomar. A terra, por quilômetros adentro, todapresa e apertada; e na superfície enrugada pelo ar tremulante; além, naextremidade do pomar, uma faixa roxa cortava o verde-azul. Mudando o vento,uma penca de maçãs foi atirada tão alto que eclipsou duas vacas no pasto (“Oh,vou me atrasar para o chá!” gritou Miranda), mas as maçãs logo voltaram adependurar-se no muro.

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O VESTIDO NOVO

Mabel teve sua primeira grave suspeita de que alguma coisa estava erradaquando tirou a capa e Mrs. Barnet, enquanto lhe passava o espelho, apanhava asescovas e assim chamava sua atenção, de modo um pouco exagerado talvez,para todos os utensílios de arrumar e melhorar o cabelo, a pele, as roupas, quehavia no toucador, confirmou a suspeita – de que não estava bom, não muitobom, a qual, tornando-se mais forte quando ela subiu pela escada e assomando-lhe como convicção quando cumprimentou Clarissa Dalloway, a fez irdiretamente até o fundo da sala, a um canto sombreado onde havia um espelhode parede, e olhar. Não! Não estava nada bom. E de imediato a angústia quesempre ela tentava esconder, a profunda insatisfação – a impressão que tinha,desde criança, de ser inferior às outras pessoas – dominou-a impiedosa eimplacavelmente, com uma intensidade que ela não podia afastar, como o faria,quando acordava à noite em casa, lendo Borrow ou Scott; porque esses homens,oh, e essas mulheres, oh, estavam todos pensando – “O que Mabel resolveu usar?Ficou que nem um espantalho! Que vestido novo horroroso!” – com aquelaspálpebras tremelicantes que se apertavam depois para fechar-se, quandoavançavam para ela. Era sua própria e estarrecedora inadaptação; sua covardia;seu reles sangue borrifado de água que a deprimiam. E de imediato todo o quartoonde, por tantas, tantas horas, ela planejara com a costureirinha como deveriaficar, pareceu sórdido, repulsivo; e sua própria sala de visitas, tão bolorenta, e elamesma, saindo, inchou de vaidade ao tocar nas cartas sobre a mesa da entrada edisse: “Que chato!” para se mostrar – tudo isso agora parecia indizivelmente tolo,provinciano e desprezível. Tudo isso se tornou evidente, acabado, consumado, nomomento em que ela entrou na sala de visitas de Mrs. Dalloway.

Naquela tarde, quando, sentada à mesa do chá, recebera o convite de Mrs.Dalloway, a ideia que lhe tinha ocorrido foi que, naturalmente, ela não podiaestar na moda. Ter uma tal pretensão era até mesmo absurdo – moda era corte,era elegância, era um gasto de pelo menos trinta guinéus – mas por que não ser

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original? Por que não ser ela mesma, fosse lá como fosse? E, levantando-se, elaapanhara o velho figurino de sua mãe, um figurino parisiense da época doImpério, e, pensando como elas eram mais bonitas então, mais dignas efemininas, resolvera – oh, mas que bobagem – tentar ser daquele jeito, gabando-se de fato de ser modesta e antiquada, mas muito charmosa, dando-se, semdúvida alguma, a uma orgia de amor-próprio que merecia ser castigada, e assimse enfarpelara toda.

Mas não ousou se olhar no espelho. Não conseguia encarar tanto horror – ovestido amarelo-claro de seda, insensatamente em desuso, com a saia compridae as mangas altas e a cintura e tudo o mais que parecia tão lindo no figurino, masnão enfiado nela, não no meio de tanta gente tão comum. Sentia-se ali em pécomo um manequim de modista no qual pessoas jovens poderiam espetaralfinetes.

“Mas está uma beleza, querida!”, disse Rose Shaw, olhando-a de alto abaixo, como ela já esperava, com um leve e sarcástico franzir dos beiços – umavez que a própria Rose sempre se vestia pela última moda, exatamente, de resto,como todo mundo.

Somos todas como moscas tentando se arrastar pela beirada do pires,pensou Mabel, e repetiu a frase como se estivesse fazendo o sinal da cruz, comose procurasse alguma fórmula mágica para anular essa dor, para tornarsuportável a agonia. Citações de Shakespeare, linhas de livros que lera temposatrás vinham-lhe bruscamente quando, ao se achar numa dessas agonias, punha-se sem parar a repeti-las. “Moscas tentando se arrastar”, disse de novo. Se ela odissesse tantas vezes até por fim levar-se a ver as moscas, tornar-se-iaindiferente e gélida, entorpecida e muda. Agora de fato já podia ver moscas quelentamente se arrastavam para fora de um pires de leite com as asas muitogrudadas; e ela se esforçava ao máximo (em pé diante do espelho, dandoatenção a Rose Shaw) para levar-se a ver Rose Shaw e as outras pessoas alicomo moscas, tentando içar-se para fora ou então lançar-se dentro de uma coisaqualquer, pobres, insignificantes, laboriosas moscas. Não conseguia porém vê-lasassim, as demais pessoas. Era a si mesma que assim via – e, sendo ela mosca, osoutros eram borboletas, libélulas, belos insetos adejando, deslizando, dançando,enquanto apenas ela se arrastava para fora do pires. (A inveja e o despeito, osmais detestáveis dos vícios, eram seus maiores defeitos.)

“Sinto-me como uma mosca velha e decrépita, suja, terrivelmenteasquerosa”, disse ela, fazendo com que Robert Haydon parasse só para ouvi-ladizer isso, só para reanimar a si mesma ao polir uma pobre frase irresoluta eassim mostrar-se tão desprendida, tão espirituosa, que em absoluto não se sentiafora de nada. E Robert Haydon, claro está, respondeu algo bem cortês, beminsincero, que instantaneamente ela viu não ser aquilo, e disse com seus botões(citando de novo um livro), assim que ele se afastou: “Mentiras, mentiras,

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mentiras!”. Pois que uma festa torna as coisas, pensou, ou muito mais ou muitomenos reais; ela viu, num relance, o que estava no fundo do coração de Robert;via tudo o que havia por trás. Via a verdade. A verdade era isto, esta sala devisitas, esta pessoa, sendo a outra falsa. Era de fato terrivelmente abafado,quente, sórdido, o quartinho de trabalho de Miss Milan. Cheirava a roupas e arepolho cozido; no entanto, quando Miss Milan lhe deu o espelho na mão e ela seolhou com o vestido acabado, uma extraordinária alegria se manifestou em seuíntimo. Banhada em luz ela tomou existência. Livre de preocupações e rugas, alise achava tal qual se havia sonhado – uma bela mulher. Apenas por um segundo(não ousou olhar por mais tempo e Miss Milan quis saber sobre o comprimentoda saia), uma garota encantadora, de misterioso sorriso, de cabelos nevados, ocerne de si mesma, a alma de sua própria pessoa, emoldurada nos arabescos demogno, deu-lhe de lá uma olhada; e não foi só a vaidade nem foi somente oamor-próprio que a fizeram achar aquilo bom, terno e verdadeiro. Miss Milandisse que a saia não ficaria bem mais comprida; de todo modo a saia, disse MissMilan, franzindo a testa, examinando-a com todo seu bom senso e atenção,deveria ser mais curta; e ela, súbita e sinceramente, sentiu-se cheia de amor porMiss Milan, gostando mais, muito mais de Miss Milan que de qualquer outrapessoa no mundo, e poderia ter clamado por compaixão ao vê-la rastejando noassoalho com a boca cheia de alfinetes, o rosto vermelho, os olhos saltados – porter um ser humano de fazer isso por outro, quando a todos ela via meramentecomo seres humanos, e ela saindo dali para sua festa, e Miss Milan pondo a capana gaiola do canário, ou deixando-o pegar de entre seus lábios uma semente decânhamo, e a ideia disso, desse lado da natureza humana e sua paciência eresignação, seu contentamento com prazeres tão ínfimos, minguados, reles,sórdidos, lhe encheu os olhos de lágrimas.

E agora tudo tinha sumido. O vestido, o quarto, o amor, a compaixão, oespelho cheio de arabescos, a gaiola do canário – tudo tinha sumido e eis que alise achava ela, num canto da sala de visitas de Mrs. Dalloway, submetida atorturas e desperta, plenamente desperta para a realidade.

Mas quão indigno aquilo, quanta futilidade e fraqueza preocupar-se tantoassim, na idade dela, com dois filhos, depender tão profundamente da opiniãoalheia e não ter convicções nem princípios, não ser capaz de dizer, como outraspessoas faziam: “Há Shakespeare! E a morte! Nenhum de nós é mais que mofoem pão guardado” – ou fosse lá o que fosse que as pessoas diziam.

Ela então se encarou no espelho, sem mais rodeios; ela deu uma ajeitadaem seu ombro esquerdo; e dali ela saiu pela sala como se lanças estivessemsendo atiradas, de todos os lados, em seu vestido amarelo. Porém, em vez de semostrar impetuosa ou trágica, como faria Rose Shaw – Rose assumiria aaparência de uma Boadiceia –, mostrou-se acanhada e tola, sorriu sem graçacomo uma menina de escola e com ar desleixado e expressamente furtivo

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atravessou a sala, como se fosse um vira-lata chutado, para ir olhar um quadro,uma gravura. Como se alguém fosse a uma festa para olhar para um quadro!Todos sabiam por que tinha feito aquilo – foi por vergonha, por humilhação.

“A mosca agora está no pires”, disse ela consigo mesma, “bem no meio, enão consegue sair e o leite”, pensou, olhando rigidamente para o quadro, “deixousuas asas grudadas”.

“É tão antiquado”, disse ela a Charles Butt, fazendo-o parar (o que aliás eleodiava) quando ia falar com outra pessoa.

Queria dizer, ou tentava se convencer de que queria dizer, que era o quadroe não seu próprio vestido que estava fora de moda. Uma palavra de elogio, umapalavra de afeição partida de Charles faria enorme diferença para ela na hora.Se ao menos ele tivesse dito “Como você está charmosa hoje, Mabel”, tal frasepoderia modificar sua vida. Mas então ela deveria ter sido bem direta e sincera.Charles, é claro, não disse nada nessa linha. Ele era a própria malícia. Via portrás de qualquer um, sobretudo quando a pessoa se sentia particularmente fraca,apatetada, insignificante.

“Mabel está de vestido novo!”, disse ele, e a pobre mosca foi de uma vezpor todas empurrada para o meio do pires. Bem que ele gostaria, acreditou ela,que logo o inseto se afogasse. Não tinha coração, não era fundamentalmentebom, tinha tão só um verniz de amistosidade. Muito mais real e bondosa era MissMilan. Se ao menos fosse possível sentir assim e ater-se sempre a isso! “Porque”, ela se perguntou – respondendo com excesso de atrevimento a Charles,deixando-o ver que estava descontrolada, ou “encrespada”, como ele mesmoafirmou (“Um tanto encrespada?”, disse ele e foi em frente, para rir dela comoutra mulher adiante) – “por que”, ela se perguntou, “não consigo sentir semprea mesma coisa, ter certeza absoluta de que Miss Milan está certa, Charles,errado, e apegar-me a isso, ter certeza quanto ao canário, a compaixão, o amor,e não ficar levando lambadas que vêm de todos os lados, assim que entro numasala cheia de gente?”. Era de novo seu caráter fraco, vacilante, odioso, sempredando no momento crítico e não se interessando seriamente por concologia,etimologia, botânica, arqueologia, nem por cortar batatas em pedaços e vê-lasfrutificando, como Mary Dennis, como Violet Searle.

Foi então que Mrs. Holman, vendo-a ali em pé, abriu caminho até ela paraimportuná-la. Claro que algo como um vestido se punha abaixo da capacidade deobservação de Mrs. Holman, cuja família estava sempre descendo aostrambolhões pela escada ou pegando escarlatina. Saberia Mabel dizer-lhe seElmthorpe já tinha sido alugado para agosto e setembro? Oh, era uma conversaque a aborrecia além da conta! – e ela ficou furiosa por ser tratada como umcorretor de imóveis ou um mensageiro, por ser usada assim. Não ter valor, eraisso, pensou, tentando apegar-se a alguma coisa real, alguma coisa sólida,enquanto se esforçava para dar respostas sensatas sobre o banheiro e a vista para

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o Sul e a água quente na parte alta da casa; e o tempo todo ela podia verpedacinhos de seu vestido amarelo no espelho redondo que reduzia ao tamanhode botões de bota ou girinos os que ali se encontravam; era espantoso pensar oquanto de humilhação e agonia e aversão por si e esforço e apaixonados altos ebaixos sentimentais se continham numa coisa do tamanho de uma moedinhairrisória. E o que era ainda mais esquisito é que essa coisa, essa Mabel Waring,estava à parte, desconectada de todo; e, apesar de Mrs. Holman (o botão preto)se inclinar para a frente e lhe contar que seu menino mais velho tinha forçadodemais o coração correndo, ela também podia vê-la, no espelho, bem separada,e ao ponto preto, inclinado para a frente, gesticulando, era impossível fazer oponto amarelo, sentado solitário, autocentrado, sentir o que ele próprio sentia,embora os dois fingissem isso.

“É impossível manter garotos quietos” – eis o tipo de coisa que era dito.E Mrs. Holman, que nunca conseguia despertar muita simpatia e se

agarrava com avidez ao pouco mesmo que houvesse, como se fosse seu direito(mas ela merecia muito mais, pois ainda havia sua garotinha que tinha aparecidocom um inchaço no joelho hoje cedo), aceitou a mísera oferta e a examinoususpeitosa, relutante, como se fosse meio pêni, quando deveria ser uma libra,para guardá-la então na bolsa, tendo de conformar-se com ela, mesmo mísera ereles como era, por ser difícil, tão difícil, a época; e Mrs. Holman, prejudicada echiando, não parava de falar da garota que tinha as juntas inchadas. Ah, quetrágica essa ganância, esse clamor de seres humanos que, como um bando decormorões, batem asas e berram a pedir simpatia – era trágica, caso se pudesserealmente sentir, e não apenas fingir que se sentia tal coisa!

Mas essa noite ela não podia espremer nem uma gota de seu vestidoamarelo; queria tudo, tudo para si. Sabia (continuando a olhar no espelho,mergulhava na poça azul de exibições enfadonhas) que estava condenada, que adesprezavam, que fora deixada assim num remanso por ser assim como era,uma criatura vacilante e frágil; e tinha a impressão de que o vestido amarelo erauma penitência merecida e que, se estivesse vestida como Rose Shaw, num beloverde colante com uma pala de algodão pregueada, teria merecido isso também;e pensou não ter saída – nenhuma saída mesmo. Mas não era de todo culpa dela,afinal de contas. Era por ser mais uma de uma família de dez; porque o dinheiro,sempre escasso, raspado, nunca foi suficiente; e sua mãe a carregar grandeslatas e nas quinas da escada o linóleo gasto e pequenas e sórdidas tragédiasdomésticas em sucessão contínua – nada de catastrófico, a fazenda de criação decarneiros fracassando, mas não completamente; seu irmão mais velho secasando abaixo, mas não tão abaixo assim, de seu próprio nível – não haviaromantismo, nada de excessivo, em relação a eles. Respeitavelmente iam todos àexaustão nas praias; cada balneário tinha ainda agora uma de suas tias dormindonuma pensão qualquer onde as janelas da frente não davam bem para o mar.

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Isso aliás combinava muito com eles – que sempre tinham de olhar as coisas deesguelha. E ela fizera o mesmo – era tal e qual suas tias. Pois todos os seus sonhosde viver na Índia, casada com algum herói como Sir Henry Lawrence, comalgum construtor de império (a visão de um nativo de turbante a enchia deromantismo ainda), tinham dado em nada. Ela se casara com Hubert, com seuemprego de subalterno, seguro e permanente, no Tribunal de Justiça, e eles searranjavam razoavelmente numa casa muito apertada, sem boas empregadas, eem grande confusão quando ela estava sozinha, ou só no pão com manteiga, masde vez em quando – Mrs. Holman, agora ao longe, tomava-a pela magricelamais seca e antipática que jamais conhecera, vestida além disso de maneiraridícula, e falaria a todos da fantástica aparência de Mabel – de vez em quando,pensou Mabel Waring, deixada sozinha no sofá azul, mexendo na almofada paraparecer ocupada, pois não iria juntar-se a Charles Burt e Rose Shaw, quetagarelavam como gralhas, rindo dela talvez perto da lareira – de vez em quandolhe vinham, sim, uns deliciosos momentos, ao ler de noite na cama, por exemplo,ou na areia e ao sol, à beira-mar, na Páscoa – que ela o recorde pois – umgrande tufo de vegetação praiana a erguer-se todo retorcido como um embate delanças contra o céu, que era azul e liso como um ovo de porcelana, tão firme, tãoduro, e ademais a melodia das ondas – “Silêncio, silêncio!”, eles diziam, e agritaria das crianças que se divertiam na água – sim, esse era um momentodivino, e ela ali se achava então, sentia, nas mãos da Deusa que era o mundo;uma Deusa de coração meio duro, mas belíssima, um cordeirinho posto no altar(a gente pensava essas bobagens, mas não tinha importância, desde que as nãodissesse nunca). E também com Hubert ela às vezes e inesperadamente vivia –ao cortar a carne do almoço de domingo, ou sem razão, ao abrir uma carta, aoentrar num quarto – seus momentos divinos, quando disse a si mesma (poisjamais o diria a outra pessoa): “É isso aí. Foi o que aconteceu. É isso mesmo!”. Eera igualmente surpreendente o contrário disso – ou seja, quando tudo estava emordem – música, tempo, férias, quando havia razões de sobra para ser feliz –nada de nada acontecia. A felicidade não vinha. Tudo era chato, apenas chato, epronto.

De novo sua deplorável pessoa, sem dúvida! Ela sempre tinha sido umamãe rabugenta, fraca, insatisfatória, uma esposa vacilante, que se recostavaindolentemente numa espécie de crepuscular existência com nada de muito claroou de ousado, ou de mais isso que aquilo, como seus irmãos e irmãs, à exceçãotalvez de Herbert – todos eles eram as mesmas e pobres criaturas que tinhamágua nas veias e que nada faziam. Porém em meio àquela vida rastejante e lentasubitamente ela se achava na crista de uma onda. A desditosa mosca – onde foique lera o conto, que insistia em lhe voltar à lembrança, sobre a mosca e o pires?– se debatia para fora. Sim, ela tinha tais momentos. Mas, agora que estava comquarenta anos, eles poderiam se tornar cada vez mais raros. E ela cessaria pouco

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a pouco de continuar seu esforço. Só que isso era deplorável! Não era para seraguentado! Isso a fazia sentir-se envergonhada de si!

Amanhã ela iria à Biblioteca de Londres. E encontraria algum livroproveitoso, maravilhoso, surpreendente, por mero acaso, um livro escrito por umclérigo, por um americano de quem ninguém jamais ouvira falar; ou andariapela Strand, para também por acaso entrar num auditório onde um trabalhadorfalava sobre a vida nas minas, e de repente haveria de tornar-se uma novapessoa. Ela seria completamente transformada. Ela usaria um uniforme; elapertenceria a uma irmandade qualquer; não voltaria nunca mais a pensar emroupas. Depois disso nunca lhe faltaria uma perfeita clareza no tocante a CharlesBurt e a Miss Milan, a esta sala e àquele quarto; e seria assim para sempre, diaapós dia, tal qual se cortasse a carne ou estivesse deitada ao sol relaxando. Assimseria!

Assim ela se levantou do sofá azul onde estava, e o botão amarelo, noespelho, levantou-se também, e dali acenou para Charles e Rose, para mostrarque não dependia deles em nada, e o botão amarelo saiu do espelho e as lançastodas se juntaram para cravar-se em seu peito quando ela andou em direção aMrs. Dalloway e disse: “Boa noite”.

“Mas ainda é tão cedo”, disse Mrs. Dalloway, que era sempre a delicadezaem pessoa.

“Tenho mesmo de ir”, disse Mabel Waring. “Mas lamento”, acrescentou emsua voz vacilante e fraca, que só soava ridícula quando ela tentava reforçá-la,“porque eu tive um imenso prazer”.

“Tive um imenso prazer”, disse a Mr. Dalloway, quando cruzou com ele naescada.

“Mentiras, mentiras, mentiras!”, disse a si mesma, nisso que continuou adescer, e “Bem no meio do pires!”, disse ainda consigo, ao agradecer a ajudaque Mrs. Barnet lhe dava, para então enrolar-se toda, e mais, e mais, naquelacapa chinesa que ela usava há vinte anos.

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A APRESENTAÇÃO

Ao ver que Mrs. Dalloway a espiava com ar reprovador lá do outro lado da sala,Lily Everit quase chegou a rezar para que ela não viesse incomodá-la; noentanto, quando Mrs. Dalloway se aproximou com a mão direita levantada e umsorriso que Lily sabia (embora fosse sua primeira festa) que queria dizer: “Masvocê tem de sair aí do seu canto para conversar”, um sorriso ao mesmo tempobenevolente e enérgico, imperioso, ela sentiu a mais estranha mistura deexcitação e medo, do desejo de ser deixada sozinha com o anseio de que atirassem dali para ser lançada ao fundo dos escaldantes abismos. Mrs. Dallowayporém foi interceptada; abordada por um idoso senhor de bigode branco e dandoassim um prazo de dois minutos para Lily Everit se apertar bem nos braços,como um mastro no mar, e saborear, como um copo de vinho, a lembrança doseu trabalho sobre o caráter do deão Swift, ao que o professor Miller tinha dado,na manhã desse dia, três estrelas vermelhas; primeiro lugar. Primeiro lugar;repetia-se isso, mas a bebida agora estava muito mais fraca do que diante dogrande copo esvaziado aos poucos (um gole aqui, outro ali), quando ela estiveracom sua irmã e Mildred, a empregada. Ao moverem-se à sua volta as mãos dasduas, sentiu que se punham em deleitável animação na superfície, mas que porbaixo jazia intacto, como um bloco de metal reluzente, seu ensaio sobre o caráterdo deão Swift, e todos os elogios feitos, quando ela desceu pela escada e ficou naentrada à espera de um carro de aluguel – Rupert tinha saído de seu quarto e ditoque ela estava ótima –, agitaram-se na superfície, passaram como brisa entrefitas, mas não mais que isso. Dividia-se a vida (ela tinha certeza) em fato, aqueletrabalho, e ficção, a saída de agora, em pedra e em onda, pensou ela já rolando acaminho e vendo as coisas com tal intensidade que haveria para sempre de ver averdade e a si, branco reflexo inextricavelmente mesclado ao negrume dascostas do chofer: o momento de visão. Depois, quando ela entrou na casa, assimque viu tanta gente, uns a subir, outros descendo escadas, aquele duro fragmento(seu trabalho sobre o caráter de Swift) começou a perder a consistência, a

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derreter, não havia mais como segurá-lo e toda a sua pessoa (não mais cortantecomo um diamante partindo o coração da vida em pedaços) transformou-senuma névoa de alarme, apreensão e defensiva, quando acuada ela ficou em seucanto. Este então era o mundo, o famoso lugar: a sociedade.

Olhando em volta, Lily Everit instintivamente escondeu seu ensaio, de tãoenvergonhada que estava agora, e também tão confusa, e na ponta dos pés nãoobstante para ajustar seu foco e manter nas devidas proporções (pois que asanteriores eram vergonhosamente indevidas) aquelas coisas em constantediminuição e expansão (como chamá-las? – de pessoas – de impressões das vidasdas pessoas?) que pareciam ameaçá-la e sobrepor-se a ela, transformando tudoem água, deixando-lhe apenas – pois disso ela não abdicaria – o poder de estaracuada.

Agora Mrs. Dalloway, que nunca tinha arriado o braço de vez, dando aentender pelo modo como o movia que não se esquecera dela, fora apenasinterrompida pelo velho soldado de bigode branco, esticou-o decididamente parapartir em sua direção e dizer à moça tão encantadora e tímida, de pele clara,brilho nos olhos, cabelo preto poeticamente encaracolado na cabeça e o corpomagro num vestido que parecia estar deslizando:

“Venha que eu vou lhe apresentar”, e nisso Mrs. Dalloway hesitou, elembrou-se então de que Lily era a inteligente, a que lia poesia, e olhou em voltaprocurando algum jovem, um rapaz que tivesse acabado de sair de Oxford, quetivesse lido tudo e pudesse conversar sobre Shelley. E, pegando-a pela mão, levouLily Everit para um grupo onde havia rapazes conversando, entre os quais BobBrinsley.

Lily Everit se retraiu um pouco, poderia ter sido o barco a vela, instável ereverente, na esteira de um vapor, e sentiu, enquanto era conduzida por Mrs.Dalloway, que agora isso ia acontecer; que nada o poderia impedir agora; nemlivrá-la (e só pedia que acabasse logo) de ser lançada num redemoinho onde elairia perecer ou salvar-se. Mas o que era esse redemoinho?

Oh, era feito de um milhão de coisas, todas diferentes dela; a abadia deWestminster; a sensação de que eram enormemente altos e solenes os prédiosem derredor; e a de ser mulher. Era essa talvez a que se tornava evidente, a quepermanecia, e era em parte o vestido, mas todos os pequenos gestos decavalheirismo e respeito da sala de visitas – tudo a fazia crer que ela saía entãoda crisálida para ser proclamada o que na confortável escuridão de sua infâncianunca tinha sido – essa frágil e bela criatura diante da qual os homens securvavam, essa criatura limitada e circunscrita que não podia fazer o que bemquisesse, essa borboleta com milhares de facetas nos olhos e uma delicada e finaplumagem, com dificuldades e suscetibilidades e tristezas inúmeras; uma mulher.

Ao andar com Mrs. Dalloway, atravessando a sala, ela aceitou o papel quelhe era imposto agora e, naturalmente, excedeu-se um pouco nele, como um

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soldado, orgulhoso das tradições de um uniforme antigo e famoso, é capaz deexceder-se, sentindo-se consciente, enquanto andava, de seus adereços; de seussapatos apertados; de seu cabelo cacheado e enrolado; e de que, se deixasse cairum lenço (o que já tinha acontecido), um homem se abaixaria às pressas para oapanhar para ela; acentuando assim a fragilidade, a artificialidade de seu porteantinatural, já que afinal não eram dela essas coisas.

Dela, isto sim, era a inclinação a correr, a meditar em longos passeiossolitários, pulando portões, pisando na lama, para através da névoa, do sonho, doêxtase da solidão ver os volteios da tarambola, espantar os coelhos, entrar nocoração das matas ou de vastos e ermos matagais com pequenas cerimônias aque ninguém assistia, ritos privados, pura beleza oferecida por besouros, porlírios-do-vale, por folhas secas, por águas paradas, que não ligavam a mínimapara o que os seres humanos pensavam a seu respeito e lhe enchiam o espírito deentusiasmo e espanto e a mantinham por lá, até que ela viesse a tocar, para serefazer, no pilar do portão – tudo isso, até essa noite, era o comum em sua vida,por isso ela se conhecia, por isso gostava de si mesma e conquistava a afeiçãodos seus, de pai e mãe, de irmãos e irmãs; já esta outra era uma flor que tinhadesabrochado há dez minutos. Ao abrir-se a flor também se abria,irreversivelmente, o mundo da flor, tão diferente, tão estranho; as torres deWestminster; os prédios altos e formais; conversas; esta civilização, sentia ela, umpouco para trás, mas puxada por Mrs. Dalloway, este modo ordeiro de vida, quelhe caía dos céus como uma canga no pescoço, lenta e inflexivelmente, numaevidência sem contestação. Ao contemplar seu ensaio, obscureceram-se, maspacífica e pensativamente, as três estrelas vermelhas, como que cedendo àpressão do inquestionável poder, ou melhor, à convicção de não ser dela, de nãolhe tocar, nem dominar nem se fazer valer; cabia-lhe, isto sim, ventilar eembelezar a vida ordeira, onde tudo já estava feito; torres altas, sinos solenes,apartamentos construídos de tijolo em tijolo pelo trabalho dos homens, igrejasconstruídas pelo trabalho dos homens, parlamentos também; e até mesmo oentrelaçado dos fios do telégrafo, pensou ela, olhando pela janela enquantoandava. O que tinha para opor a essas grandes realizações masculinas? Umensaio sobre o caráter do deão Swift! Quando afinal chegou ao grupo, que eradominado por Bob Brinsley (de calcanhar no guarda-fogo da lareira, cabeçajogada para trás), com sua testa grande e honesta, sua autoconfiança e finura,sua honra e pujante bem-estar físico, seu bronzeado, seu desembaraço, sua diretadescendência de Shakespeare, o que podia ela fazer senão pegar seu ensaio e oh!toda sua própria pessoa e estendê-los no chão como um casaco para ele pisar emcima, como uma rosa na qual ele atirar? O que ela fez, de modo enfático, quandoMrs. Dalloway, ainda a segurá-la pela mão, como para a impedir de fugir destasuprema prova, apresentou um ao outro: “Mr. Brinsley – Miss Everit. Dois quetêm amor por Shelley”. Mas o dela, comparado ao dele, nem era amor.

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Ao dizer isso, Mrs. Dalloway se sentiu, como sempre se sentia ao selembrar da sua mocidade, absurdamente comovida; o brilho de um encontroentre jovens, por suas mãos, a atiçar como o da concussão de aço em sílex(ambos perceptivelmente endurecidos pelo seu sentimento) o mais belo e o maisantigo dos fogos, tal como o viu na mudança de expressão de Bob Brinsley, daindiferença à aquiescência, ao formalismo para o aperto de mãos, quepressagiava, pensou Clarissa, a ternura, a bondade, a solicitude de mulher latentesem todos os homens, visão que era para ela de trazer lágrimas aos olhos, assimcomo se comovia ainda mais intimamente ao ver em Lily o próprio olhar datimidez, o olhar assustado, decerto o mais bonito de todos no rosto de uma garota;e um homem sentindo isso por uma mulher, e uma mulher, por um homem, paraderivar de tal contato toda essa profusão de casas, provações, sofrimentos,profunda alegria e vedação definitiva em face da catástrofe, doce era o coraçãoda humanidade, pensou Clarissa, e sua própria vida (apresentar um casal a fazialembrar de seu primeiro encontro com Richard!), infinitamente abençoada. Eassim ela foi em frente.

Mas, pensou Lily Everit. Mas – mas – mas o quê?Oh, nada, pensou às pressas, abafando suavemente seu instinto aguçado.

Sim, ela disse. Ela gostava de ler.“Então também deve escrever?”, disse ele, “Talvez poemas?”.“Ensaios”, ela disse. E não deixaria aquele horror se apossar de sua pessoa.

Igrejas e parlamentos, apartamentos e até os fios do telégrafo – tudo, disse a simesma, feito pelo trabalho dos homens, e este rapaz, disse a si mesma, descendiade Shakespeare em linha direta, e ela assim não deixaria esse terror, essa suspeitade alguma coisa diferente, apropriar-se dela e contrair-lhe as asas e a impelirpara longe, na solidão. Mas, quando disse isso, ela o viu – de que outro modopoderia descrevê-lo? – matar uma mosca. Ele arrancou as asas de uma mosca,pé apoiado no guarda-fogo, cabeça jogada para trás, enquanto falavainsolentemente, arrogantemente de si; porém ela nem ligava para o grau dearrogância ou insolência que ele lhe demonstrava, lamentando apenas ser cruelcom as moscas.

Mas, disse ela, inquietando-se ao abafar essa ideia, por que não, já que ele éo maior dos objetos mundanos? E adorar, adornar, embelezar era tarefa sua,como também ser adorada, para o quê tinha asas. Mas ele falava; mas eleolhava; mas ele ria; ele arrancou as asas de uma mosca. Puxou-as das costascom suas mãos ágeis e fortes, e ela o viu fazendo isso; e não podia ocultar a simesma essa lembrança. Mas é necessário que seja assim, argumentou, pensandonas igrejas, nos parlamentos, nos blocos de apartamentos, e assim tentou dobrarsuas asas nas costas, depois de as ter completamente abaixadas. Mas – mas, oque era isso, por que era assim? Apesar de tudo ela podia tornar seu ensaio sobreo caráter de Swift cada vez mais importuno e fazer as três estrelas luzirem

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novamente, só que não mais tão claras, tão brilhantes, e sim perturbadas emanchadas de sangue como se este homem, este ilustre Mr. Brinsley, apenas porarrancar as asas de uma mosca enquanto falava (de seu próprio ensaio, de simesmo e, uma vez, rindo, de uma garota que lá se achava), sobrecarregasse denuvens sua leve existência e a deixasse confusa para o resto da vida e contraíssesuas asas nas costas, fazendo-a pensar com horror, quando ele se afastou dela, nacivilização e nas torres, e a canga que havia caído dos céus em seu pescoçoesmagou-a, e ela se sentiu na infeliz situação de uma pessoa nua que, indo àprocura de refúgio nalgum jardim sombreado, de lá é expulsa e lhe é dito – não,não há santuários, nem borboletas, neste mundo, e esta civilização, igrejas,parlamentos e apartamentos – esta civilização, disse Lily Everit a si mesma, aoagradecer os gentis elogios da velha Mrs. Bromley à sua aparência, depende demim, e Mrs. Bromley disse depois que Lily, como todos os Everit, parecia “ter opeso do mundo em suas costas”.

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JUNTOS E À PARTE

Mrs. Dalloway apresentou-os, dizendo você vai gostar dele. A conversa começouminutos antes de qualquer coisa ser dita, pois tanto Mr. Serle quanto Miss Anningolharam para o céu, e o céu, na cabeça de ambos, prosseguiu a verter seussignificados, embora de um modo bem diferente, até que a presença de Mr. Serlea seu lado tornou-se tão perceptível para Miss Anning que ela nem pôde mais versimplesmente o céu em si mesmo, céu que lá se foi a espraiar pelo corpo alto,olhos negros, cabelo grisalho, mãos entrelaçadas, pela grave e melancólica (masjá lhe haviam dito “falsamente melancólica”) face de Roderick Serle, e ela,sabendo que tolice era aquilo, sentiu-se no entanto compelida a dizer:

“Que noite linda!”.Pura bobagem! Pura idiotice! Mas qualquer tolice, aos quarenta anos, era

perdoável em presença do céu, que transforma os mais sábios em imbecis –meros fiapos de palha – e ela e Mr. Serle em átomos, em grãos de poeira, aliplantados à janela de Mrs. Dalloway, fazendo suas vidas, vistas ao luar, tão longasquanto e não mais importantes que a de um inseto.

“Bem!”, disse Miss Anning, alisando enfaticamente a almofada do sofá. Eele se sentando a seu lado. Seria mesmo “falsamente melancólico”, como osoutros diziam? Premida pelo céu, que parecia tornar tudo aquilo um pouco fútil –o que os outros diziam, o que os outros faziam –, ela disse novamente outra coisacompletamente banal:

“Havia uma Miss Serle que morava em Canterbury nos meus tempos decriança lá”.

Com o céu na cabeça, todos os túmulos de seus antepassados surgiram deimediato a Mr. Serle numa luz azul e romântica, e foi com olhos que seexpandiam e escureciam simultaneamente que ele disse: “Sim”.

“Somos na origem uma família normanda, que veio com o Conquistador.Há um Richard Serle enterrado na catedral. Foi cavaleiro da Ordem daJarreteira.”

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Miss Anning sentiu ter chegado por acaso ao homem verdadeiro, sobre oqual foi montado o homem falso. Sob a influência da lua (a lua que para elasimbolizava o homem, podia vê-la por uma fresta da cortina, e tomava banhos delua, goles de lua), era capaz de dizer quase qualquer coisa, e assim se pôs aexumar o homem verdadeiro que jazia enterrado sob o falso ao dizer a simesma: “À frente, Stanley, à frente” – que para ela era um lema, um secretoincentivo, quando não um açoite, como pessoas de meia-idade costumam terpara se flagelarem por algum vício inveterado, sendo o dela uma timidezdeplorável, ou melhor, indolência, pois não era tanto que lhe faltasse coragem,faltava-lhe, isto sim, energia, especialmente para falar com homens, que aassustavam um pouco, e assim frequentemente suas conversas descambavampara puras banalidades e ela tinha pouquíssimos amigos homens – pouquíssimosamigos íntimos em geral, pensou, mas, pensando bem, ela os queria? Já tinhaSarah, Arthur, o chalé, o cachorro chinês e, naturalmente, aquilo, pensoumergulhando, encharcando-se, mesmo estando sentada no sofá ao lado de Mr.Serle, naquilo, na impressão que lhe vinha ao chegar em casa de algo recolhidoali, uma agregação de milagres, que não podia acreditar que outras pessoastivessem (pois era a única a ter Arthur, Sarah, o chalé e o cachorro chinês), emais ainda se encharcando na fruição satisfatória e profunda, sentindo que porter aquilo e a lua (a lua que era música) ela podia se permitir deixar este homeme o grande orgulho que ele tinha dos Serle enterrados. Não! Este era o perigo –não lhe convinha, na sua idade – afundar na letargia. “À frente, Stanley, àfrente”, disse a si mesma e perguntou para ele:

“Conhece Canterbury?”.Se ele conhecia Canterbury ! Mr. Serle sorriu, pensando como a pergunta

era absurda – como ela sabia tão pouco, essa mulherzinha calada que tocavaalgum instrumento e parecia inteligente e tinha uns olhos bonitos e estava usandoum interessante colar antigo – bem que ela sabia o significado disso. Serperguntado se conhecia Canterbury – quando os melhores anos de sua vida, suasmemórias todas, coisas que ele nunca tinha sido capaz de contar a ninguém, masque tentara escrever – ah, tinha tentado escrever (e suspirou), estavam todascentradas em Canterbury : isso o fez rir.

Seu suspiro e depois sua risada, sua melancolia e seu senso de humortornavam-no estimado por todos, e ele sabia disso, no entanto o fato de serbenquisto não compensava as decepções e, se dependia dessa estima que osoutros tinham por ele (fazendo longas, longas, longas visitas a simpáticas damas),não era porém sem amargor, pois nunca fizera uma décima parte do que poderiater feito e sonhou em fazer quando garoto em Canterbury. Com uma estranhasentiu uma renovada esperança, porque não poderiam dizer que ia deixar decumprir o prometido, e a capitulação a seu charme dar-lhe-ia um novo começo– aos cinquenta! Ela tocou na fonte. Campos e flores e prédios cinzentos

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formaram gotas prateadas que escorriam pelas paredes desoladas e negras desua mente. Seus poemas frequentemente começavam com uma imagem assim.E ele, sentado ao lado dessa mulher tão quieta, sentiu o desejo de fazer imagensagora.

“Sim, eu conheço Canterbury”, disse, sentimental e reminiscentemente,dando margem, sentiu Miss Anning, a perguntas discretas, e era isso o que o faziainteressante a tantas pessoas, mas essa receptividade e extraordinária facilidadepara conversar de sua parte é que foram sua ruína, como não raro ele pensava,tirando as abotoaduras e pondo suas chaves e moedas no toucador depois de umadaquelas festas (durante a temporada ele às vezes saía quase todas as noites), eao descer para o café tornando-se muito diferente, ranzinza, desagradável àmesa com sua esposa, que era inválida e não saía nunca de casa, mas tinhavelhos amigos, em geral velhas amigas, que a vinham ver de vez em quando,interessadas em filosofia hindu e diferentes curas e diferentes médicos, queRoderick Serle mandava às favas com alguma observação cáustica e inteligentedemais para ela, que se limitava a responder com gentis reclamações e uma ouduas lágrimas – tinha fracassado, como tantas vezes pensava, porque nãoconseguia se desligar totalmente da sociedade e da companhia das mulheres, quelhe era tão necessária, para escrever. Envolvera-se muito a fundo com a vida – ea essa altura ele cruzaria as pernas (seus movimentos eram sempre um poucoanticonvencionais e distintos) e, para não se culpar, punha a culpa na exuberânciade sua natureza, que comparava favoravelmente com a de Wordsworth, porexemplo, e, posto que ele já dera tanto aos outros, sentia, deixando repousar nasmãos a cabeça, que os outros deveriam por sua vez ajudá-lo, sendo isso oprelúdio, trêmulo, fascinante, estimulante, da conversa a manter; e em sua menteborbulhavam imagens.

“Ela parece uma árvore frutífera – uma cerejeira em flor”, disse ele,olhando para uma mulher ainda moça com um belo cabelo branco. Era umaimagem de tipo primoroso, pensou Ruth Anning – sim, um primor, porém ela nãotinha certeza de estar gostando desse homem distinto, melancólico, com seusgestos; e é curioso, pensou ela, como os nossos sentimentos são influenciados.Não gostava dele, mas reconhecia ter gostado da comparação da mulher com acerejeira que foi feita por ele. Fibras dela, sem rumo fixo, em flutuaçãocaprichosa, como os tentáculos de uma anêmona-do-mar, ora vibravam, ora serepuxavam, e o seu cérebro, a quilômetros dali, frio e distante, suspenso no ar,recebia mensagens que processaria a tempo de, quando as pessoas falassem deRoderick Serle (e ele era uma figura e tanto), ela poder dizer sem hesitar: “Gostodele”, ou “Não gosto dele”, e assim ter definida sua opinião para sempre. Umaideia estranha; uma ideia solene; lançando uma luz insólita sobre a composiçãoda sociabilidade humana.

“É estranho que a senhora tenha conhecido Canterbury ”, disse Mr. Serle. “É

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sempre um choque”, prosseguiu (tendo a dama de cabelo branco passado),“quando se encontra alguém” (nunca eles tinham se encontrado antes), “poracaso, por assim dizer, que toca nas fímbrias do que significa tanto para a própriapessoa, e o faz fortuitamente, pois suponho que Canterbury não lhe tenha sidosenão uma cidade antiga e bonita. Pois então a senhora passou um verão lá comuma tia?”. (Isso era tudo que Ruth Anning ia dizer a ele sobre a visita que elafizera a Canterbury.) “E viu o que havia lá para ver e foi-se embora e nuncapensou nisso de novo.”

Deixe ele pensar assim; não gostando dele, queria mais é que sumisse àscarreiras com uma ideia absurda a seu respeito. Pois seus três meses emCanterbury, na realidade, tinham sido incríveis. Lembrava-se nos menoresdetalhes, embora fosse tão só uma visita casual, da ida à casa de Miss CharlotteSerle, uma conhecida de sua tia. Era capaz de repetir ainda agora as própriaspalavras de Miss Serle sobre o trovão: “Sempre que acordo e ouço um trovão denoite, penso que alguém foi morto”. E via o tapete de pelos duros, com desenhosem forma de diamante, e os olhos castanhos, impregnados de brilho, da idosasenhora, segurando sua xícara de chá pelo meio enquanto falava aquilo sobre otrovão. E via sempre Canterbury, com suas nuvens de trovoada, a lívida floraçãodas macieiras e os longos, cinzentos fundos de seus prédios.

O trovão despertou-a de sua pletórica síncope de indiferença, que é típica dameia-idade; “À frente, Stanley, à frente”, disse a si mesma; ou seja, esse homemnão há de me escapar, como todos os outros, com essa falsa suposição; vou dizer-lhe a verdade.

“Adorei Canterbury”, ela disse.Instantaneamente ele se animou. Era seu dom, seu defeito, seu destino.“Adorou”, repetiu. “Bem se vê que adorou.”Seus olhos se encontraram; ou melhor, colidiram, pois ambos sentiram que

por trás dos olhos a pessoa apartada, que se senta no escuro enquanto seucompanheiro superficial e ágil faz todas as piruetas e acenos, sem deixar parar oespetáculo, bruscamente se ergueu; tirou a capa; confrontou-se com a outra. Foialarmante; foi terrível. Mas ambos, brunidos pela idade, tinham sua reluzentelisura, e Roderick Serle sairia assim para talvez umas dez festas ou mais natemporada sem sentir nada fora do comum, ou apenas remorsos sentimentais e odesejo de belas imagens – como aquela da cerejeira em flor – estagnando-senele o tempo todo, sem a menor alteração, uma espécie de superioridade emrelação ao circunstante, uma impressão de recursos inexplorados, que omandava de volta para casa insatisfeito com sua vida, consigo mesmo,bocejando, vazio, volúvel. Mas agora, e não mais que de repente, como um raiobranco no nevoeiro (imagem que assomava forjada pela inevitabilidade da luz),aquilo tinha acontecido ali; o velho êxtase da vida; sua invencível investida; pois,se não era agradável, ao mesmo tempo alegrava e rejuvenescia, enchendo

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nervos e veias de filamentos de fogo e gelo; era aterrador.“Canterbury há vinte anos”, disse Miss Anning, como alguém põe uma

sombra numa luz intensa ou cobre um pêssego em brasa, por estar muitomaduro, muito forte, muito pleno, com uma folha verde.

Às vezes ela sentia vontade de ter casado. Às vezes a tíbia paz da meia-idade, com seus mecanismos automáticos para evitar que o corpo e a mente semagoassem, parecia-lhe, comparada ao trovão e à lívida floração das macieirasde Canterbury, torpe. Podia imaginar uma coisa diferente, mais como umrelâmpago, mais intensa. Podia imaginar uma sensação física. Podia imaginar…

E, por estranho que fosse, pois ela nunca o tinha visto, seus sentidos, aquelestentáculos que vibravam e eram repuxados antes, agora não mandavam maismensagens, jaziam quiescentes, como se ela e Mr. Serle se conhecessem àperfeição, como se estivessem de fato tão unidos que lhes bastava flutuar lado alado descendo pela corrente.

De tudo que existe, nada é tão estranho como as relações humanas, pensouela, com suas mudanças, sua extraordinária irracionalidade, pois o desagrado queela havia sentido já era agora quase amor intenso e arrebatado, mas, tão logoessa palavra “amor” lhe ocorreu, ela a rejeitou, pensando novamente quãoobscura era a mente, com suas pouquíssimas palavras para todas essaspercepções surpreendentes, essas alternâncias de prazer e dor. Pois que nome sedava àquilo? Era o que ela agora sentia, o retraimento da afeição humana, odesaparecimento de Serle e a necessidade instantânea sob a qual se achavamambos de encobrir o que era tão desolador, tão degradante para a naturezahumana, que todos tentavam enterrá-lo em recato para eximir-se à visão – esseretraimento, essa violação da confiança e, procurando uma fórmula decorosa,reconhecida e aceita, de funeral, ela disse:

“Por mais que façam, não conseguirão, é claro, estragar Canterbury”.Ele sorriu; aceitou a frase; cruzou as pernas ao contrário. Ela fez seu papel;

ele, o dele. E assim as coisas terminaram. Veio logo sobre ambos essa paralisantecessação de sentimento, quando nada irrompe da mente, quando suas paredesparecem de ardósia; quando o vazio quase dói, e os olhos petrificados e fixosveem o mesmo ponto – uma forma, um balde de carvão – com uma exatidãoque é aterradora, pois nenhuma emoção, nenhuma ideia, nenhuma impressão dequalquer tipo surge para alterá-la, modificá-la, embelezá-la, uma vez que asfontes do sentir parecem lacradas e, enrijecendo-se a mente, enrijece-setambém o corpo; fortemente estatuesco, sem deixar que Mr. Serle ou MissAnning pudessem se mexer ou falar, e sentindo-se eles como se um encantadoros tivesse salvo, e a fonte fez a vida correr por todas as veias, quando MiraCartwright, dando um malicioso tapinha no ombro de Mr. Serle, disse:

“Eu o vi nos Meistersinger, passando bem na minha frente. Seu malvado”,disse Miss Cartwright, “não merece que eu volte a lhe dirigir a palavra”.

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E eles puderam separar-se.

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O HOMEM Q UE AMAVA SUA ESPÉCIE

Indo às pressas por Deans Yard essa tarde, Prickett Ellis deu de cara com RichardDalloway, ou melhor, nisso que eles iam passando, o encoberto olhar de relanceque cada qual lançou ao outro, por baixo do chapéu e por cima do ombro,alargou-se numa explosão de reconhecimento; há vinte anos que eles não seencontravam. Na escola, tinham sido colegas. E Ellis, o que andava fazendo?Advocacia? Ah, sim, é claro – acompanhara pelos jornais o caso. Mas eraimpossível conversar ali. Que tal aparecer logo mais lá em casa? (Eles moravamno mesmo lugar de sempre – na primeira transversal.) Viriam uma ou duaspessoas. Talvez Joynson. “Um figurão agora”, disse Richard.

“Está bem – então até logo à noite”, disse Richard e seguiu seu caminho,“feliz da vida” (o que era pura verdade) por haver encontrado aquele camaradaengraçado, que não mudara nem um pingo desde os tempos de escola – omesmo garotinho gorducho e baixote, saturado de preconceitos, masincomumente brilhante – ganhou o Newscastle. Pois bem – e lá se foi ele.

Prickett Ellis, contudo, ao se virar e ver Dalloway sumindo, preferia agoranão o ter encontrado ou, pelo menos, pois pessoalmente sempre gostara dele, nãoter prometido que iria à reunião. Dalloway era casado, dava festas; não era damesma espécie que ele, que teria de se vestir. Entretanto, chegando a noite, supôsque, como havia prometido, e não querendo ser grosseiro, tinha mesmo de ir.

Mas que entretenimento mais pavoroso! Joynson estava lá; e eles nãotinham nada o que dizer um ao outro. Em criança, era um garoto presunçoso;crescido, parecia dar mais importância a si mesmo – e isso era tudo; não haviana sala outra simples alma que Prickett Ellis conhecesse. Nenhuma mesmo.Assim, não podendo ir-se embora logo, sem dizer uma palavra a Dalloway, queparecia sobrecarregado de obrigações, num colete branco, indo e vindo emazáfama, o jeito era aguentar e esperar. Era o tipo de coisa que o deixavaindignado. Pensar em homens e mulheres adultos, responsáveis, fazendo isso avida inteira, toda noite! Os traços de seu rosto barbeado, azul e vermelho,

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acentuaram-se quando ele se encostou na parede, em completo silêncio; emboratrabalhasse como um cavalo, mantinha-se em boa forma com exercícios; e semostrava ameaçador e duro, como se tivesse o bigode enregelado. Ele se eriçou,ele se irritou. As roupas pobres que usava faziam-no parecer desleixado,insignificante, anguloso.

Ociosos, tagarelas, com roupas demais e sem ideias, sem uma que fosse, nacabeça, os elegantes cavalheiros e damas seguiam conversando e rindo; PrickettEllis observava-os e comparou-os aos Brunner que, quando ganharam a causacontra a Cervejaria Fenners’ e receberam duzentas libras de indenização (nem ametade do que deveriam ter ganho), logo gastaram cinco num relógio para ele.Bem o tipo de comportamento adequado; o tipo de coisa que o comovia, e olhoucom mais severidade ainda para aquelas pessoas, supervestidas, cínicas,prósperas, e comparou o que estava sentindo agora com o que sentira às onzehoras da manhã em que o velho Brunner e esposa, em suas melhores roupas,pessoas idosas, com o ar mais limpo e respeitoso possível, foram vê-lo para dar-lhe essa pequena lembrança, como disse o velho, perfeitamente aprumado parafazer seu discurso de gratidão e apreço pela maneira tão capaz de conduzir nossacausa e como, aparteou Mrs. Brunner, eles sabiam que tudo se devia a ele. Eestavam profundamente gratos por sua generosidade – porque ele, é claro, nãotinha cobrado nada.

Quando ele apanhou o relógio e colocou-o em cima da lareira, bem nomeio, sentiu estar com vontade de que ninguém visse seu rosto. Para isso é quetrabalhava – era essa sua recompensa; e olhou para as pessoas que na realidadeestavam diante de seus olhos como se elas dançassem por cima da cena em seuescritório e por ela fossem expostas e, quando tudo sumia – quando os Brunnersumiam –, só restava ele mesmo, como que deixado daquela cena e aconfrontar-se com esta população hostil, um homem completamente simples,sem nenhuma sofisticação, um homem do povo (ele se endireitou), muitomalvestido, chamando a atenção, sem nenhum ar, nenhum encanto especial,homem pouco calejado em disfarçar seus sentimentos, um homem comum, umser humano como outro qualquer, lançado contra o mal, a corrupção, aimpiedade da sociedade. Mas ele não ia continuar olhando. Pôs os óculos e já sepunha a examinar os quadros agora. Leu os títulos de uma fileira de livros; quasetodos de poesia. Bem que ele gostaria de reler alguns de seus velhos favoritos –Shakespeare, Dickens –, bem que gostaria de ter tempo para ir um dia à NationalGallery, mas não podia – não podia mesmo. Com o mundo na situação em queestava – era realmente impossível. O dia inteiro havia gente querendo sua ajuda,clamando, a bem dizer, por ajuda. Não era uma época para se ter luxo. E eleolhava as poltronas e os cortadores de papel e os livros bem encadernados ebalançava a cabeça, sabendo que nunca teria tempo, nunca teria coragem, ealegrava-se ao pensar assim, de se permitir tais luxos. Aqui, as pessoas ficariam

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chocadas se soubessem quanto ele pagava por seu tabaco; e que a roupa quevestia tinha sido emprestada. Sua única extravagância era um barquinho a velana lagoa de Norfolk. Isso ele se permitia. Gostava de uma vez por ano sumir davista de todos para se pôr de costas num campo. Pensou como se espantariam –essas pessoas tão finas – se soubessem quanto prazer ele extraía do amor ànatureza, termo que usava por ser tão antiquado; desde garoto ele conheceracampos e árvores.

Ficariam chocadas essas finas pessoas. E ele de fato, ali em pé, pondo seusóculos no bolso, a cada instante se sentia mais chocante. Sentimento dos maisdesagradáveis. Não sentira aquilo – que amava a humanidade, que pagava cincopence pela onça de tabaco, que amava a natureza – natural e tranquilamente.Cada um desses prazeres tinha se transformado num protesto. Sentia que essaspessoas que ele desprezava faziam-no aguentar e pronunciar-se e justificar-se.Não parava de dizer: “Eu sou um homem comum”. E o que disse a seguir,envergonhou-se de fato de o ter feito, mas disse: “Eu já fiz mais por minhaespécie num só dia do que o resto de vocês em suas vidas”. Realmente era maisforte do que ele; vivia a se lembrar de cena após cena, como a de quando osBrunner tinham lhe dado o relógio – vivia a se lembrar das belas coisas que jáhaviam dito de sua generosidade, seu humanitarismo, de como já ajudara atantos. Estava sempre a se ver como sábio e tolerante servidor da humanidade. Edesejou que pudesse repetir em voz alta seus louvores. Era desagradável que asensação de sua bondade o afligisse por dentro. E ainda mais desagradável quenão pudesse contar a ninguém o que haviam dito a seu respeito. Graças a Deus,dizia-se a toda hora, volto a trabalhar amanhã; entretanto já não ficaria maissatisfeito em apenas se esgueirar pela porta e ir para casa. Tinha de ficar, tinhade ficar até se justificar. Mas como poderia fazê-lo? Naquela sala cheia de gente,não conhecia vivalma a quem falar.

Finalmente Richard Dalloway apareceu.“Quero lhe apresentar Miss O’Keefe”, disse ele. Miss O’Keefe olhou-o em

cheio nos olhos. Era uma mulher meio arrogante, de maneiras abruptas, na casados trinta.

Miss O’Keefe quis um sorvete ou algo para beber. E a razão de o ter pedidoa Prickett Ellis, de um modo que lhe pareceu soberbo e injustificável, foi que elatinha visto uma mulher e duas crianças, paupérrimos, exaustos, agarrados nasgrades de uma praça, de olhos compridos para dentro, naquela tarde tão quente.Não podem deixar que entrem?, tinha pensado, subindo sua compaixão comoonda; e sua indignação fervendo. Não; no momento seguinte ela se reprovou comaspereza, como se se enfrentasse no boxe. Nem toda a força do mundo é capazdisso. Ela assim apanhou e devolveu a bola de tênis. Nem toda a força do mundoé capaz disso, disse furiosa da vida, e foi por isso que disse tão imperiosamente aohomem desconhecido:

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“Dê-me um sorvete”.Muito antes de ela o ter acabado, Prickett Ellis, de pé a seu lado sem tomar

nada, disse-lhe que há quinze anos ele não vinha a uma festa; disse-lhe que oterno que estava usando fora emprestado por seu cunhado; disse-lhe que nãogostava desse tipo de coisa e teria sentido grande alívio se continuasse e dissesseque era um homem comum, com marcada preferência por pessoas bemsimples, quando então lhe falaria (para envergonhar-se disso depois) dos Brunnere do relógio, mas ela disse:

“O senhor viu A tempestade?”.Ou então (pois A tempestade ele não tinha visto) leu algum livro? De novo

não, e então, nisso que ela punha seu sorvete de lado, costumava ler poesia?E Prickett Ellis, sentindo subir-lhe algo por dentro que acabaria por decapitar

esta moça, transformá-la em vítima, massacrá-la, fê-la sentar-se lá, ondeninguém os interromperia, em duas cadeiras, no jardim vazio, pois todos estavamno andar de cima, podendo-se ouvir apenas um incessante zumbido e a falação eum trintlim, como o louco acompanhamento de uma orquestra fantasma a umgato ou dois atravessando o gramado, e a ondulação das folhas e as lanternaschinesas vermelhas e amarelas balançando como frutas penduradas no ar – aconversa parecia uma frenética dança musical de esqueletos relacionada a algomuito real, e cheia de sofrimento.

“Que beleza!”, disse Miss O’Keefe.Oh, essa nesga de grama, com a massa negra e alta das torres de

Westminster em torno, era bela mesmo, depois da sala de visitas; depois dabarulheira, era silenciosa. E eles, afinal de contas, tinham aquilo – a mulhercansada, as crianças.

Prickett Ellis acendeu seu cachimbo. Isso a deixaria chocada; enchera-o defumo vagabundo – cinco pence e meio a onça. Pensou como estaria em seubarco, fumando deitado, pôde ver-se sozinho, à noite, fumando sob as estrelas.Pois durante essa noite ele estivera sempre pensando que aparência teria, se aspessoas ali o olhassem. Ali, disse a Miss O’Keefe, riscando um fósforo na sola dabota, não conseguia ver nada de particularmente bonito.

“Talvez”, disse Miss O’Keefe, “o senhor não ligue para a beleza”. (Eledissera não ter visto A tempestade; não ter lido nenhum livro; seu bigode, seuqueixo, a corrente de relógio de prata, tudo nele exalava um ar de penúria.) Maspara isso, pensou ela, ninguém precisava gastar nada; os museus e a NationalGallery eram grátis; e o campo também. Decerto sabia das objeções – lavar,cozinhar, crianças; mas a essência da coisa, o que eles todos tinham medo dedizer, era que a felicidade é barata à beça. Pode até sair de graça. A beleza.

Prickett Ellis deu-lhe então o que ela merecia – essa mulher abrupta,arrogante e pálida. Disse-lhe, com uma baforada de seu fumo barato, o quehavia feito esse dia. De pé às seis; ouvindo gente; suportando o cheiro de esgoto

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de uma área sórdida; e depois no tribunal.Nisso hesitou, querendo dizer-lhe algo de si, dos seus afazeres pessoais.

Porém, por reprimir isso, tornou-se ainda mais sarcástico. Disse que já se sentiamal só de ouvir mulheres bem-vestidas e bem-alimentadas (ela encolheu oslábios, pois era magra e sua roupa não estava assim tão na moda) falando debeleza.

“A beleza!”, disse ele. Temia não entender a beleza tomada à parte dosseres humanos.

Olharam assim para o jardim vazio, onde oscilavam luzes e, bem lá nomeio, com uma pata no ar, hesitava um gato.

A beleza à parte dos seres humanos? O que ele queria dizer com isso?,perguntou ela de repente.

Pois bem, isto: entrando cada vez em mais pormenores, contou-lhe ahistória dos Brunner e do relógio, sem disfarçar seu orgulho. Isso era belo, disseele.

Já ela não teve palavras para especificar o horror que a história lhe causou.Primeiro, sua vaidade; depois, sua falta de pudor em falar de sentimentoshumanos; era uma blasfêmia; ninguém no mundo devia contar um caso paraprovar que amava sua espécie. Entretanto quando ele contou o dele – como ovelho tinha se posto de pé para fazer seu discurso – ela quase foi às lágrimas; ah,se algum dia alguém lhe tivesse falado assim! Mas aí de novo ela sentiu que forajustamente isso que condenara para sempre a humanidade; nunca eles iriammais longe do que deixar-se comover por cenas com relógios; os Brunnerfazendo discursos para os Prickett Ellis, e esses sempre dizendo que amavam suaespécie; seriam sempre preguiçosos, transigentes, temerosos diante da beleza.Daí surgiam revoluções; da preguiça e do medo e desse amor por cenasimpressionáveis. Ainda assim esse homem teve prazer com seus Brunner; e elaestava condenada a sofrer eternamente por causa de suas pobres mulheresimpedidas de entrar nas praças. Sentavam-se assim em silêncio. Ambos muitoinfelizes. Pois Prickett Ellis não se aliviou nem um pouco com o que tinha dito;em vez de arrancar o espinho dela, enfiara-o ainda mais para o fundo; suafelicidade da manhã fora arruinada. Miss O’Keefe estava confusa e aborrecida;estava turva, e não clara.

“Temo ser uma dessas pessoas muito comuns”, disse ele, levantando-se,“que amam sua espécie”.

Ao que Miss O’Keefe quase gritou: “Eu também”.E assim odiando-se, odiando a casa cheia de gente que lhes proporcionara

essa noite desilusiva e dolorosa, esses dois amantes de sua espécie se levantarame, sem uma palavra, se despediram para sempre.

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1926-1941

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MOMENTOS DE SER:“PINOS DE TELHA NÃO TÊM PONTAS”

“Pinos de telha não têm pontas – você não nota isso sempre?”, disse Miss Cray e,virando-se pelo meio quando a rosa caiu do vestido de Fanny Wilmot, que porsua vez se dobrou, com os ouvidos cheios de música, para procurar o pino nochão.

Tais palavras, que Miss Craye disse ao tocar o último acorde de uma fugade Bach, deram-lhe um choque extraordinário. Então Miss Craye ia de fato aoTelhador comprar pinos?, perguntou-se Fanny Wilmot, paralisada um momento.Pois então ficava lá no balcão, como qualquer um, esperando, e lhe davammoedas embrulhadas na conta, moedas que ela fazia deslizar para a bolsa daqual, uma hora mais tarde, já em pé ao toucador tirava os pinos? Quenecessidade tinha de pinos, se em vez de se vestir se encasulava, como umbesouro compactado na couraça, de azul no inverno e verde no verão? Quenecessidade tinha ela de pinos – Julia Craye –, que vivia, ao que tudo indicava, nomundo frio e vítreo das fugas de Bach, tocando para si o que lhe dava prazer e sóconsentindo em aceitar um ou dois alunos do conservatório de música da ArcherStreet (assim dissera a diretora, Miss Kingston) por especial deferência a ela, quenutria “a maior admiração possível” por Miss Craye. Miss Cray e ficou em mauslençóis, temia Miss Kingston, com a morte do irmão. Oh, eles tinham coisas tãolindas, quando moravam em Salisbury e o irmão, Julius, era então, decerto, umhomem muito conhecido: um famoso arqueólogo. Foi um grande privilégiohospedar-se com eles, disse Miss Kingston (“Minha família os conheceu desdesempre – era tradicional em Salisbury”, Miss Kingston disse), mas um poucoassustador para uma criança; todo cuidado era pouco para não bater com a portanem entrar no quarto às carreiras. Miss Kingston, que fez breves descrições decaráter como essa no primeiro dia de aula, enquanto recebia cheques e assinavarecibos, deu aqui um sorriso. Sim, em menina ela era mesmo levada; tinhacorrido pela casa, pondo os vidros verdes romanos e todas aquelas coisas para

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pular nas vitrines. Nenhum dos Crayes era casado. Os Crayes não estavamacostumados com crianças. Criavam gatos. Os gatos, percebia-se, sabiam tantosobre as urnas romanas e outras coisas como qualquer um.

“Muito mais do que eu!”, disse alegremente Miss Kingston, assinando seunome na estampilha com a caligrafia cheia, impetuosa e bem-disposta que tinha,pois sempre havia sido prática.

Talvez então foi ao acaso, pensou Fanny Wilmot, procurando o pino, queMiss Craye disse aquela frase, “Pinos de telha não têm pontas”. Nenhum dosCray es tinha se casado. Ela não entendia nada de pinos – nada mesmo. Masqueria quebrar o encantamento que se abatera sobre a casa; quebrar a placa devidro que os separava das demais pessoas. Quando Polly Kingston, aquelagarotinha espevitada, fez os vasos romanos balançarem ao bater com a porta,Julius, vendo que não havia estragos (sua primeira reação instintiva),acompanhou-a com os olhos, pois a vitrine ficava bem na janela, enquanto Pollyescapulia de casa pelos campos afora; olhou-a com o mesmo olhar que às vezessua irmã também tinha, prolongado, desejoso.

“Estrelas, lua, sol”, parecia dizer aquele olhar, “margarida na grama, fogos,geada na vidraça, meu coração vai logo atrás de você. Mas você”, pareciaacrescentar sempre, “você escapa, você passa e some”. E cobriasimultaneamente a intensidade desses dois estados de espírito com um “Eu nãoconsigo lhe alcançar – não consigo chegar até você”, dito sôfrega efrustradamente. Desapareciam as estrelas, e a criança também.

Era esse o encantamento, era essa a superfície de vidro que Miss Crayequeria quebrar quando mostrava, após tocar Bach com tal mestria para brindar auma aluna favorita (Fanny Wilmot sabia ser a aluna favorita de Miss Craye), queela sentia o mesmo que os outros em relação aos pinos. Os pinos de telha nãotinham pontas.

Sim, o “famoso arqueólogo” também era assim. “O famoso arqueólogo” –ao dizer isso assinando cheques, certificando-se do dia do mês, falando com talvivacidade e franqueza, Miss Kingston punha sua voz num tom indescritível, quedava a entender alguma coisa estranha, alguma coisa excêntrica, em JuliusCray e. A mesmíssima singularidade que talvez houvesse em Julia também. Eupodia até jurar, pensou Fanny Wilmot, enquanto procurava o tal pino, que emfestas, em cultos (o pai de Miss Kingston era pastor), ela captou partes de algumboato, ou quem sabe apenas um sorriso, um certo tom, ao ser mencionado onome dele, e que isso a deixou com “uma desconfiança” sobre Julius Craye.Desnecessário dizer que ela nunca falara disso a ninguém. Provavelmente malsabia o que queria dizer com isso. Porém, sempre que se referia a Julius, ou queouvia menções a ele, era esta a primeira ideia que lhe vinha à cabeça: haviaalguma coisa esquisita sobre Julius Craye.

Era assim que Julia olhava também, sentada no banquinho de música,

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virada pelo meio, sorrindo. Ei-la no campo, na vidraça, no céu – a beleza; e eunão consigo chegar até ela; não a posso ter – eu, parecia acrescentar, com seujeito ríspido, e tão característico, de ter a mão pronta a pegar, que a adoro comtal paixão, que daria o mundo inteiro para possuí-la! E ela apanhou o cravo quecaíra no chão enquanto Fanny procurava o pino. Apanhou-o e voluptuosamenteamassou-o, sentiu Fanny, em suas mãos macias e de veias saltadas, cheias deanéis da cor da água e com pérolas. A pressão de seus dedos parecia aumentarna flor o que ela de mais brilhante continha; realçá-lo; torná-lo mais fresco,franzido, imaculado. O que havia de estranho nela, e também em seu irmão, éque essa atividade dos dedos, agarrando e esmagando, combinava-se a umafrustração perpétua. Assim era ainda agora com o cravo. Ela o tinha nas mãos;apertava-o; mas não chegava a possuí-lo, não o desfrutava de todo.

Nenhum dos Crayes se casou, recordou-se Fanny Wilmot. Tinha em menteuma noite, quando a aula durou mais que de hábito e já estava escuro, em queJulia havia dito: “Os homens servem para nos proteger, sem dúvida”, dando-lheaquele mesmo estranho sorriso, quando a ajudava, de pé, a amarrar a capa, oque a tornava, como a flor, consciente até a ponta dos dedos de juventude ebrilho, mas, também como a flor, suspeitava Fanny, inibida.

“Oh, mas eu não quero proteção”, disse Fanny rindo e, quando Julia Cray e,nela fixando seu extraordinário olhar, disse não estar assim tão certa disso, Fannydecididamente corou sob a admiração que ela estampava nos olhos.

Os homens só serviam para isso, dissera ela. Foi então por essa razão,perguntava-se Fanny, de olhos no chão, que ela nunca se casou? Afinal, não tinhapassado a vida toda em Salisbury. “De longe a melhor parte de Londres”,comentara certa vez, “(mas estou falando de quinze ou vinte anos atrás) éKensington. A dez minutos dos jardins – como que em pleno campo. Podíamosjantar ao ar livre de chinelos, sem pegar resfriado. Kensington – era então comouma aldeia, sabe”, dissera ela.

Nisso se interrompeu, para denunciar acerbamente as correntes de ar nostúneis do metrô.

“Os homens serviam para isso”, dissera ela, com uma espúria e aberranteaspereza. Por acaso isso lançava alguma luz sobre o problema de ter ficadosolteira? Era possível imaginar cenas de todo tipo em sua juventude, quando ela,com seus bondosos olhos azuis, o nariz firme e reto, as músicas ao piano e asrosas que em casta paixão desabrochavam no peito de seu vestido de musselina,tinha atraído primeiramente os rapazes para quem essas coisas, somadas àsxícaras de porcelana, aos candelabros de prata e às mesas de marchetaria (poisos Craigs possuíam tais raridades), eram maravilhosas; rapazes nãosuficientemente distintos; rapazes da cidade-catedral com ambições.Primeiramente os atraíra e, depois, aos amigos dos seus irmãos de Oxford ouCambridge. Esses, que viriam no verão, levavam-na pelo rio a remo,

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prosseguiam por carta a discussão sobre Browning e combinavam talvez, nasraras ocasiões em que ela passava tempos em Londres, de lhe mostrar – osjardins de Kensington?

“De longe a melhor parte de Londres – Kensington. Estou falando de quinzeou vinte anos atrás”, ela dissera certa vez. “A dez minutos dos jardins – como queem pleno campo.” Disso eu poderia extrair o que bem quisesse, pensou FannyWilmot; fixar-me por exemplo em Mr. Sherman, o pintor, velho amigo dela;levá-lo a bater em sua casa, com hora marcada, num dia ensolarado de junho;para levá-la a tomar chá embaixo das árvores. (Encontravam-se também nasfestas às quais se ia de chinelos, saltitando e sem medo de pegar resfriado.) A tiaou outra parente idosa ficaria esperando enquanto eles fossem olhar o Serpentine.Deram mesmo uma olhada lá. Podem ter inclusive atravessado de barco oSerpentine, com ele nos remos. Compararam-no ao Avon. Comparação que elatomaria muito a sério, porque dava importância às considerações sobre rios. Emparte angulosa, em parte arqueada, não obstante graciosa, sentava-se nocomando. No momento crítico, pois ele havia decidido que devia falar agora –era sua única chance de estar a sós com ela – já estava falando, com a cabeçavirada num ângulo ridículo, em seu grande nervosismo, por cima do ombro –momento exato em que ela o interrompeu com energia. Gritou que ele os levasseaté a Ponte. Foi um momento de horror, de desilusão, de revelação para os dois.Não a posso ter, não a consigo possuir, pensava ela. E ele não entenderia por queentão tinha vindo. Mas virou o barco, batendo o remo com toda força na água.Apenas para rejeitá-lo? Levou-a de volta e disse adeus.

A locação desta cena poderia variar à vontade, refletiu Fanny Wilmot.(Onde tinha caído o tal do pino?) Tanto fazia ser Ravena – ou Edimburgo, ondeela cuidara da casa para o irmão. Podiam variar a própria cena e o rapaz e aexata maneira como tudo ocorreu; mas uma coisa era constante – sua recusa,seu ar carrancudo, sua raiva de si mesma depois e seus raciocínios e o alívio –sim, certamente seu imenso alívio. No dia seguinte talvez ela se levantasse às seishoras para colocar sua capa e caminhar de Kensington até o rio. Sentia-seagradecida por não haver sacrificado seu direito de ir olhar as coisas no melhormomento – ou seja, antes que se levantem os outros. Ela, se quisesse, poderia terseu café na cama. Não havia sacrificado sua independência.

Sim, sorriu Fanny Wilmot, Julia não havia posto em risco seus hábitos.Hábitos que permaneciam a salvo e iriam sofrer reveses, caso se casasse. “Sãoogros”, disse ela ao cair de uma noite, meio sorrindo, quando outra aluna, jovemrecém-casada, de repente se lembrou de que tinha de encontrar seu marido esaiu às carreiras.

“São ogros”, dissera ela, com um riso sinistro. Um ogro talvez interferissecom o café na cama; com caminhadas matinais até o rio. O que teria acontecido(o que mal se podia conceber) se ela tivesse tido filhos? Tomava surpreendentes

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precauções contra friagem, fadiga, comida muito temperada, a comida errada,correntes de ar, quartos quentes, viagens de metrô, pois nunca conseguiadeterminar qual dessas era exatamente a causa das terríveis dores de cabeça quetransformavam sua vida num verdadeiro campo de batalha. Estava sempreempenhada em ludibriar o inimigo, até lhe parecer que a própria perseguiçãotinha lá algum interesse; ela acharia a vida um pouco monótona, se pudessederrotar de vez o inimigo. Tal como era, o esforço de guerra era perpétuo – deum lado, o rouxinol ou a vista que lhe inspiravam paixão –, não era menos quepaixão, de fato, o que sentia por panoramas e pássaros; e de outro a trilha úmidaou a lenta e horrível subida de uma ladeira íngreme que por certo não lhe fariabem no dia seguinte, trazendo-lhe uma dor de cabeça. Quando, por conseguinte,de tempos em tempos, ela reunia com acerto suas forças e empreendia umavisita a Hampton Court, na semana em que os açafrões (essas flores tãobrilhantes eram as suas prediletas) estavam no máximo esplendor, obtinha umavitória. Era algo que durava; algo que importava para sempre. Punha a tarde emquestão no seu colar de dias memoráveis, que por não ser muito extenso atornava capaz de recordar-se de alguns; de tal vista, de tal cidade; de tatear, sentire saborear, suspirando, a qualidade que a tornava única.

“Estava tão bonito na sexta-feira passada”, disse ela, “que resolvi ir até lá”.Saíra assim para Waterloo a fim de realizar sua façanha – visitar Hampton Court– sozinha. De um modo natural, se bem que tolo, compadeciam-se dela por algopelo que ela própria nunca pedira compaixão (de hábito, era de fato reticente, sófalando de sua saúde como um guerreiro pode falar do adversário) –compadeciam-se dela por sempre fazer tudo sozinha. Seu irmão tinha morrido.Sua irmã, que era asmática, achava bom para si o clima de Edimburgo. ParaJulia, era muito frio. Talvez também ela achasse as associações penosas, pois seuirmão, o famoso arqueólogo, tinha morrido lá; e ela adorava aquele irmão. Viviatotalmente só numa casinha perto de Brompton Road.

Fanny Wilmot, vendo o pino no tapete, apanhou-o. E olhou para Miss Craye.Era Miss Craye assim tão solitária? Não, Miss Craye era firme e bem-aventuradamente, ainda que só por um momento, uma mulher feliz. Fanny asurpreendera num instante de êxtase. Sentava-se ao piano, virada para trás até omeio, e mantinha o cravo erguido entre as mãos cruzadas no colo, tendo por trásde si o abrupto quadrado da janela, sem cortinas e roxo no começo da noite,intensamente roxo depois que o brilho das lâmpadas elétricas se esparziu semsombras pela despojada sala de música. Julia Cray e, sentando-se arqueada ecompacta a segurar sua flor, parecia emergir da noite londrina, que a envolviapor trás como uma capa. E aquilo parecia ser, pela nudez e intensidade, aefluência de seu espírito, algo que a rodeava e ela tinha feito, algo que era elamesma. Fanny olhou.

Por um momento tudo pareceu transparente ao olhar de Fanny Wilmot,

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como se, olhando através de Miss Craye, ela visse a própria fonte de sua vida ajorrar em puras gotas de prata. Viu além dela, muito além, recuando cada vezmais em seu passado. Viu os vasos verdes romanos em suas caixas de vidro;ouviu os coristas jogando críquete; viu a tranquilidade de Julia ao descer para ogramado pelos degraus em curva; viu-a servindo o chá, embaixo do pé de cedro;meigamente encerrando as mãos do velho nas suas; viu-a de um lado para outropelos corredores da residência da antiga catedral com toalhas na mão paramarcá-las; lamentando ao passar a banalidade da vida cotidiana; e envelhecendolentamente, desfazendo-se de certas roupas, quando o verão chegava, porque,para se usar na sua idade, eram brilhantes demais; e cuidando da doença do pai;e abrindo seu caminho de um modo cada vez mais decidido à medida que seudesejo a impelia, fortificado, à sua meta solitária; viajando só de vez em quando;calculando gastos, avaliando cada quantia que teria de sair de sua bolsa apertadapara pagar tal viagem, ou comprar um espelho velho; agarrando-seobstinadamente, dissessem o que dissessem os outros, à escolha de seus própriosprazeres. Ela viu Julia…

Ela viu Julia abrir os braços; viu-a abrasar-se; viu-a crepitar. Vinda da noiteela ardeu como uma estrela branca e morta. Julia a beijou. Julia a possuiu.

“Pinos de telha não têm pontas”, disse Miss Craye, rindo de um modosingular e relaxando seus braços, enquanto Fanny Wilmot, com dedos trêmulos,prendia a flor no seu seio.

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A DAMA NO ESPELHO:REFLEXO E REFLEXÃO

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não sedevem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem algum crimehorroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelhoque havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Daprofundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelhoitaliano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também umanesga do jardim além. Podia-se ver uma longa trilha de grama que se estendiaentre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.

Estando a casa vazia, sentia-se alguém, sendo esse alguém a única pessoana sala de visitas, como um desses naturalistas que, cobertos de capim e folhas,deitam para observar os animais mais tímidos – texugos, lontras, martins-pescadores – e, por não serem vistos, podem se mover à vontade. Nessa tarde asala estava cheia de tais criaturas tímidas, luzes e sombras, cortinas ao vento,pétalas caindo – coisas que nunca acontecem, ao que parece, se alguém estiverolhando. A velha e calma sala campestre, com seus rústicos tapetes e a lareira depedra, suas estantes afundadas e os armários de laca, em vermelho e ouro,estava cheia dessas criaturas noturnas. Vinham elas em piruetas pelo assoalho,pisando delicadamente com pés bem levantados, caudas bem abertas e bicosalusivos bicando como se fossem grous ou garças ou grupos de elegantesflamingos cuja cor desbotou, ou leques de pavões raiados de prata. E haviatambém uns pontos negros e jatos obscuros, como se repentinamente uma sibaimpregnasse o ar de sépia; e a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoasa sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano. Nada continuava o mesmoem dois segundos juntos.

Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e atrilha do jardim com tanta fixidez e exatidão, que tais coisas pareciam mesmoestar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho – aqui tudo

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mudando e, lá, tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro.Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, haviaum perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transientes, ao que parecia, e dosque se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelhoas coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.

Meia hora antes a dona da casa, Isabella Tyson, tinha descido pela trilha degrama, com uma cesta, em seu leve vestido de verão, e sumiu, cortada pelamoldura do espelho. Provavelmente fora ao jardim colher flores; ou, comoparecia mais natural supor, colher alguma coisa leve e fantástica e rastejante efolhuda, uma clematite ou uma dessas elegantes ramagens de ipomeia que seenroscam em muros desgraciosos para aqui e ali desabrocharem em flores roxase brancas. Sugeria ela a fantástica e trêmula ipomeia, mais do que o aprumadoáster, a engomada zínia ou suas próprias e ardentes rosas, que se acendiam comolâmpadas nos postes retilíneos das roseiras. A comparação mostra quão pouco sesabia a respeito dela, depois de todos esses anos; pois é impossível qualquermulher de carne e osso, de cinquenta e cinco ou sessenta anos, ser tomadarealmente por ramalhete ou gavinha. Tais comparações não são apenas vãs esuperficiais – pior que isso, chegam até a ser cruéis por virem a se interportremendo, como a própria ipomeia, à verdade e aos olhos. Deve haver umaverdade; deve existir um muro. No entanto era estranho que, conhecendo-adepois de tantos anos, ninguém pudesse dizer qual a verdade referente a Isabella;frases como essas, sobre a ipomeia e a clematite, ainda tinham de ser feitas. Notocante aos fatos, tome-se por fato que ela era rica; que era uma solteirona; quecomprara essa casa e com as próprias mãos juntara – não raro nos cantos maisremotos do mundo e a grande risco de picadas venenosas e doenças orientais – ostapetes, as cadeiras, os armários que agora levavam sua vida noturna diante dosolhos do observador. Parecia às vezes que os móveis sabiam mais sobre ela doque a nós, que aí nos sentávamos, que aí escrevíamos e que aí pisávamos comtanto cuidado, era permitido saber. Em cada um desses armários havia muitasgavetinhas, todas, com quase toda a certeza, contendo cartas em maçosamarrados com elástico e perfumadas por ramos de lavanda ou folhas de rosa.Pois outro fato – se eram fatos que se queria – é que Isabella conhecera muitaspessoas, tinha tido muitos amigos; assim, alguém que tivesse a audácia de abriruma gaveta para ler suas cartas encontraria vestígios de agitações sem conta, decompromissos a manter, de exprobrações por o não ter feito, longas cartas deintimidade e afeição, cartas violentas de ciúme e censura, terríveis palavrasfinais de despedida – pois nenhum daqueles encontros e combinações deencontros levara a nada – ou seja, ela nunca se casara e no entanto, a julgar pelaindiferença de máscara que lhe cobria o rosto, passara por um acúmulo deexperiência e paixão vinte vezes maior do que o daqueles cujos amores sãotrombeteados para o mundo inteiro ouvir. Sob a tensão de pensar sobre Isabella,

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sua sala se tornava mais sombria e simbólica; os cantos pareciam mais escuros,as pernas das cadeiras e mesas, mais espichadas e hieroglíficas.

De súbito essas reflexões, sem que houvesse nenhum som, foramviolentamente encerradas. Assomou ao espelho uma forma grande e negra queeclipsou tudo o mais; que espalhou sobre a mesa um monte de plaquinhas demármore, raiadas de rosa e cinza, e se foi. Mas o quadro se alterou por completo.No primeiro momento, era irreconhecível, irracional e inteiramente desfocado.Não havia como relacionar tais plaquinhas a qualquer objetivo humano. Porém,depois, certo processo lógico começava pouco a pouco a entrar em ação a seurespeito, para ordená-las e arrumá-las e trazê-las ao âmbito da experiênciacomum. Por fim se perceberia que não eram senão cartas. O homem tinhatrazido o correio.

Sobre a mesa de tampo de mármore, lá estavam elas, todas a princípiopingando luz e cor, não digeridas nem assimiladas. E era estranho então vercomo se contraíam, se harmonizavam, se compunham e se tornavam parte doquadro, recebendo aquela quietude e imortalidade que o espelho conferia. Jaziaminvestidas de uma nova realidade, de uma nova significação e também de maispeso, como se fosse necessário um formão para desalojá-las da mesa. E, querisso fosse ou não fantasia, pareciam ter se tornado, não simplesmente umpunhado de cartas eventuais, mas sim plaquinhas gravadas com a verdade eterna– sendo possível lê-las, saber-se-ia tudo que havia para ser sabido sobre Isabella,sim, e também sobre a vida. Dentro daqueles envelopes de aparência marmórea,as folhas deviam ser cortadas a fundo e densamente eivadas de sentido. Isabellaviria para os apanhar um a um, bem devagar, abri-los para ler com atenção,palavra por palavra, e depois, com um profundo suspiro de compreensão, comose ela já tivesse visto a essência de tudo, rasgar os envelopes em pedacinhos,amarrar as cartas juntas e fechar a chave a gaveta do armário, em suadeterminação de ocultar o que não desejava que se tornasse notório.

Tal ideia servia como um desafio. Isabella não queria ser conhecida – masnão conseguiria mais escapar. Era absurdo, era monstruoso. Se ela sabia tanto eocultava tanto, a alternativa que restava era abri-la à força com a primeiraferramenta de que se dispunha – a imaginação. Nesse exato momento, erapreciso fixar a atenção nela. Era preciso retê-la, segurá-la ali onde estava.Recusar-se a continuar a ser descartado por dizeres e afazeres que a ocasiãoproduzia – por jantares e visitas e conversas polidas. Era preciso pôr-se em suapele, saber onde lhe apertava o sapato. A se tomar literalmente a frase, seria fácilver os sapatos nos quais estava metida, lá embaixo no jardim, nesse momento.Eram muito estreitos e compridos e à moda – feitos do mais macio e flexívelcouro. Como tudo que ela usava, eram refinadíssimos. E ela haveria de estar naponta dos pés, sob a alta cerca-viva na parte mais baixa do jardim, erguendo atesoura que trazia presa à cintura para cortar uma flor seca ou um galho que

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crescera demais. O sol lhe bateria em cheio no rosto, nos olhos; mas não, nomomento crítico um véu de nuvem cobriria o sol, tornando duvidosa a expressãode seus olhos – seria essa de ternura ou de troça, de fulgor ou de enfado? Podia-se ver apenas o indeterminado contorno de seu rosto fino e definhado a olharpara o céu. Ela estava pensando, talvez, que tinha de encomendar uma novaproteção para os morangueiros; que tinha de mandar flores à viúva de Johnson;que já era tempo de ir fazer uma visita aos Hippesley em sua nova casa. Dessascoisas, com certeza, é que falava no jantar. Mas as coisas das quais ela falava nojantar eram cansativas. Seu modo mais profundo de ser é que se queria captar econverter em palavras, o modo que para o espírito é o que é a respiração para ocorpo, o que se chama de felicidade ou infelicidade. À menção dessas palavrasse tornava óbvio, decerto, que ela devia ser feliz. Era rica; era distinta; tinhamuitos amigos; viajava – comprava tapetes na Turquia e vasos azuis na Pérsia.Aleias de prazer por aqui e ali se aclaravam onde ela erguia a tesoura para podarramos trêmulos, enquanto as nuvens rendadas lhe velavam a face.

Então, com um brusco manejo da tesoura ela cortou o ramalhete declematite, que caiu no chão. Ao cair, trouxe junto sem dúvida um pouco de luztambém, permitindo penetrar ainda mais em sua vida e pessoa. Ternura eremorso enchiam-lhe a essa altura o espírito… Podar um ramo que crescerademais a entristecia, porque nele houvera vida e a vida lhe era cara. Sim e, aomesmo tempo, a queda do ramo sugeria que ela também haveria de morrer, quetudo era futilidade e evanescência das coisas. E mais uma vez então, agarrando-se a essa ideia com seu bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a tinhatratado bem; sua queda, ainda que inevitável, seria para jazer na terra esuavemente apodrecer nas raízes das violetas. Assim pois, ali em pé, ela ficoupensando. Sem formular qualquer ideia precisa – porque era uma dessas pessoascujas mentes têm pensamentos enredados em nuvens de silêncio –, via-se repletade ideias. Sua mente era como sua sala, na qual as luzes avançavam eretrocediam, fazendo piruetas, dando passos delicados, desdobrando caudas eabrindo espaço a bicadas; todo seu ser era banhado, como de novo a própria sala,pela nuvem de algum conhecimento profundo, algum lamento não expresso, eela se via então cheia de gavetas trancadas, recheada de cartas como seusarmários. Falar de “abri-la à força” como se ela fosse uma ostra, aplicar-lhequalquer ferramenta que não a mais maleável, a mais afiada e penetrante, seriaabsurdo e ímpio. Era preciso imaginar – ei-la que aparecia no espelho. E issocausava um sobressalto.

A princípio ela estava tão distante que era impossível vê-la com nitidez.Andava lenta e pausadamente, ora endireitando uma rosa, ora levantando umcravo para cheirá-lo, mas não parava nunca; e de instante a instante tornava-semaior no espelho, de modo a completar-se cada vez mais a pessoa em cujamente se tentava entrar há algum tempo. Gradualmente o observador a

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examinava – ajustando as características que havia descoberto naquele corpovisível. Lá estavam seu vestido verde-cinza, seus sapatos compridos, sua cesta ealgo que cintilava em seu pescoço. Tão devagar ela vinha que nem pareciadesarranjar a própria imagem no espelho, mas tão só lhe acrescentar algumelemento novo que suavemente se movia e alterava os demais objetos, como selhes pedisse, com polidez, que dessem espaço para ela. E assim as cartas e amesa e a trilha de grama e os girassóis, que já se achavam à espera no espelho,apartavam-se abrindo caminho para admiti-la em seu meio. Finalmente lá estavaela, no vestíbulo. E ali parou completamente. Parou em pé junto à mesa. Parousem nem se mexer. De imediato o espelho passou a verter por cima dela uma luzque a parecia fixar; que era como um ácido a corroer o que fosse superficial edispensável, deixando apenas a verdade. Era um fascinante espetáculo. Tudo desi caía – nuvens, vestido, cesta, diamante –, tudo que se havia chamado detrepadeira e ipomeia. Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própriamulher, desnuda e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella estavacompletamente vazia. Não tinha ideias. Não tinha amigos. Não se importava comninguém. Quanto às suas cartas, não eram todas senão contas. Via-se, nisso queela ali se plantava, angulosa e idosa, enrugada e veiada, com seu nariz empinadoe estrias pelo pescoço, que nem sequer se preocupava em abri-las.

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa.

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LAPPIN E LAPINOVA

Eles se casaram. Chegou ao fim a marcha nupcial. Os pombos bateram asas.Garotinhos com casacos de Eton jogaram arroz; no meio do caminho saracoteouum fox terrier; e Ernest Thorburn conduziu sua noiva ao carro por entre opequeno e inquisitivo aglomerado de completos estranhos que sempre se formaem Londres para desfrutar da felicidade ou infelicidade dos outros. Por certo eletinha boa aparência e ela aparentava ser tímida. Mais arroz foi jogado e o carropartiu.

Isso foi na terça-feira. Hoje era sábado. Rosalind tinha de acostumar-seainda ao fato de agora ser Mrs. Ernest Thorburn. Talvez nunca se acostumasse aofato de ser senhora Ernest Fosse-o-que-fosse, pensava ela, sentada na janelaarcada do hotel que dava para o lago e as montanhas, esperando seu maridodescer para o café. Era difícil se acostumar a um nome como Ernest. Não, nãoera o nome de sua preferência. Se pudesse, teria escolhido Timothy, Antony ouPeter. Além do mais ele não tinha cara de Ernest. Tal nome sugeria o AlbertMemorial, móveis de mogno, gravuras em metal do príncipe consorte e família –em suma, a sala de jantar da sogra dela em Porchester Terrace.

Mas aí vem ele. Graças a Deus ele não tinha cara de Ernest – não. Masentão cara de quê teria? Com olhares de soslaio, ela pôde observá-lo. Bem,assim, comendo torrada, parecia um coelho. Não que outra pessoa fosse versemelhança com uma criatura tão diminuta e tímida naquele rapagão musculosoe guapo, de nariz reto, olhos azuis e boca bem talhada. Mas por isso é que eramais divertido ainda. Quando comia, o nariz dele tremia um pouco. Tal e qual ocoelho de estimação que Roselind tinha. Observou-o com tão grande insistência,o nariz que tremia, que acabou tendo de explicar, quando ele a surpreendeuolhando-o, por que sorria.

“É porque você parece um coelho, Ernest”, disse ela. “Um coelhoselvagem”, acrescentou, olhando para ele. “Um coelho caçador; o rei doscoelhos; um coelho que faz leis para todos os demais.”

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Ernest não ligou de ser tomado por um coelho dessa espécie e, como ela sedivertia tanto vendo o nariz dele tremer – sem que ele soubesse até então que seunariz tremia –, ele o fez tremer de propósito. E ela riu a mais não poder; e ele riutambém, de modo que as moças solteiras e o pescador e o garçom suíço dejaleco preto ensebado, todos adivinharam certo; eles eram muito felizes. Masquanto tempo dura essa felicidade? perguntavam-se eles próprios; e cada qualrespondia de acordo com suas próprias circunstâncias.

Na hora do almoço, sentada numa moita de urze à beira do lago, “Queralface, coelho?”, disse Rosalind, exibindo a verdura que havia sido levada paracomer com os ovos cozidos. “Vem pegar na minha mão, vem”, acrescentou, eele se esticou todo, deu dentadinhas na alface e fez seu nariz tremer.

“Coelho bonzinho, coelho bonito”, dizia ela, alisando-o como costumavaalisar seu bicho domesticado em casa. Mas era um absurdo. Ele, fosse lá o quefosse, não era um coelho domesticado. Ela então tentou chamá-lo em francês:“Lapin”. Mas ele, fosse lá o que fosse, também não era um coelho francês. Erapura e simplesmente inglês – nascido em Porchester Terrace, educado emRugby ; atualmente funcionário do serviço público de Sua Majestade. Assim, aseguir, ela tentou “Coelhinho”; mas foi ainda pior. “Coelhinho” era alguémgordinho e fofo e gozado; ele era magro e duro e sério. Apesar disso, seu nariztremia. “Lappin”, exclamou ela de repente; e deu um gritinho como se tivesseencontrado a palavra exata que vinha procurando.

“Lappin, Lappin, rei Lappin”, repetia. Parecia encaixar-se nele à perfeição;ele não era Ernest, era o rei Lappin. Por quê? Ela não sabia.

Quando não havia nada de novo sobre o que conversar, em seus longospasseios solitários – e chovia, como todos lhes tinham dito que ia chover; ouquando eles sentavam de noitinha à lareira, pois fazia frio, tendo as moçassolteiras e o pescador se retirado e só vindo o garçom se se tocasse o sino, eladeixava sua imaginação brincar com a história da tribo de Lappin. Em suas mãos– ela estava costurando; ele estava lendo – seus integrantes se tornavam muitoreais, muito vívidos, muito engraçados. Ernest largou seu jornal para ajudá-la.Havia coelhos pretos e coelhos vermelhos; havia amigos e inimigos. Havia amata na qual eles viviam e as campinas em volta e o charco. Acima de tudohavia o rei Lappin, que, longe de apenas ter um tique – o de tremer o nariz –,tornou-se com a passagem do tempo um animal de grande reputação; Rosalindsempre encontrava novas qualidades nele. Mas acima de tudo era um grandecaçador.

“E o que foi”, perguntou Rosalind, no último dia da lua de mel, “que o reifez hoje?”.

Na realidade eles dois, o dia todo, tinham subido morros; e ela ficara comuma bolha no calcanhar; mas não era isso que tinha em mente.

“Hoje”, disse Ernest, fazendo o nariz tremer enquanto abria nos dentes a

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ponta de seu charuto, “ele caçou uma lebre”. Fez uma pausa; riscou um fósforo eseu nariz tremeu de novo.

“Uma lebre mulher”, acrescentou.“Uma lebre branca!”, exclamou Rosalind, como se já contasse com isso.

“Uma lebre um tanto pequena; cinza-prateada; de olhos grandes e brilhantes?”“Sim”, disse Ernest, olhando para ela como ela o olhava, “um bichinho

assim; de olhos saltando para fora das órbitas e com as duas patinhas dianteirasbalançando no ar”. Era exatamente assim que ela sentava, com sua peça decostura balançando nas mãos; e seus olhos, tão grandes e brilhantes, eram porcerto algo proeminentes.

“Ah, Lapinova”, murmurou Rosalind.“É assim que ela se chama?”, disse Ernest, “a Rosalind real?”. Sentindo-se

profundamente apaixonado, não parava de olhar para ela.“Sim; é assim que ela se chama”, disse Rosalind. “Lapinova.” E antes de

irem para a cama, nessa noite, ficou tudo resolvido. Ele era o rei Lappin; ela, arainha Lapinova. Eram o completo contrário um do outro; ele, decidido eaudacioso; ela, desconfiada e insegura. Ele governava o atarefado mundo doscoelhos; já o mundo dela era um lugar desolado, misterioso, que ela percorriapincipalmente ao luar. De todo modo, seus territórios se tocavam; eram rei erainha.

Ao voltarem de sua lua de mel, eles assim já possuíam um mundoparticular, habitado apenas, com a exceção da lebre branca, por coelhos.Ninguém adivinhava a existência desse lugar, o que decerto tornava a coisa aindamais divertida. Era algo que os fazia sentir-se, mais ainda do que a maioria dosjovens casais, em aliança contra o restante do mundo. Não raro trocavamirônicos olhares quando as pessoas falavam de coelhos e matas e armadilhas ecaça. Trocavam-se piscadelas furtivas pela mesa quando tia Mary dizia que eraincapaz de aguentar ver uma lebre num prato – parecia tanto um bebê: ouquando John, o irmão brincalhão de Ernest, disse-lhes a que preços os coelhoschegavam, nesse outono, com pele e tudo, em Wiltshire. Os dois, às vezes, senecessitassem de um guarda-caça, de um caçador ilegal ou de um Senhor doSolar, divertiam-se distribuindo os papéis entre seus amigos. A mãe de Ernest,Mrs. Reginald Thorburn, por exemplo, encaixava-se à perfeição no papel deProprietária Rural. Mas tudo isso era segredo – e isso é que era bom. Ninguém anão ser eles sabia que esse mundo existia.

Sem esse mundo, como, perguntava-se Rosalind, teria ela sobrevividoàquele inverno? Houve, por exemplo, a festa de bodas de ouro, quando todos osThorburn se reuniram em Porchester Terrace para celebrar o quinquagésimoaniversário daquela união tão abençoada – não havia ela gerado ErnestThorburn? e tão fecunda – não gerou de quebra nove irmãos e irmãs, muitosdeles casados e igualmente fecundos? Ela temia aquela festa. No entanto foi

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inevitável. Já quando ia escada acima possuiu-a o amargo sentimento de ser filhaúnica e além do mais órfã; uma simples gota entre todos aqueles Thorburnreunidos na grande sala de visitas onde brilhavam o papel de parede acetinado eos ilustres retratos da família. Os Thorburn vivos pareciam-se muito com osretratados; só que, em vez de lábios pintados, tinham lábios reais; dos quais saíamcasos gozados; casos sobre as horas de estudo, sobre como tinham puxado acadeira para a governanta cair; casos sobre sapos, sobre alguém ter posto umsapo entre os virgens lençóis de moças solteiras. Quanto a ela, nunca sequerarrumou a cama direito. Segurando seu presente na mão, avançou para suasogra, suntuosa num cetim amarelo; e para seu sogro, decorado com um ricocravo amarelo. Ao seu redor espalhavam-se tributos de ouro sobre mesas ecadeiras; uns aninhando-se em lã de algodão; outros esgalhando-seresplandecentes – candelabros; caixas de charutos; correntes; todos com adeclaração do ourives gravada de que era ouro do bom, certificado, autêntico.Mas o presente dela era apenas uma caixinha de pechisbeque com um crivo; umantigo espalhador de areia, uma relíquia do século XVIII, usado para aspergirareia sobre tinta molhada. Um presente, pensava ela, meio sem sentido – numaépoca de papel mata-borrão; e, ao oferecê-lo, viu pela frente a letra negra egrossa na qual sua sogra tinha expressado a esperança, quando eles secomprometeram, de que “Meu filho a fará feliz”. Não, feliz ela não era. Nemum pouco. Olhou para Ernest, reto que nem uma vareta, com um nariz igual atodos os narizes dos retratos da família; um nariz que não tremia nunca.

Depois desceram para o jantar. Ela ficou meio escondida pelos crisântemoscujas pétalas vermelhas e amarelas se apertavam caindo em grandes cachos.Era tudo de ouro. Um cartão debruado a ouro com iniciais entrelaçadas em ourodeclinava a lista das delícias que, uma após outra, seriam postas diante deles.Num prato de claro fluido de ouro ela mergulhou a colher. E até a bruma brancae em bruto de fora foi transformada por lâmpadas num emaranhado douradoque se refletia nas beiradas dos pratos e dava aos abacaxis uma casca áspera eáurea. Somente ela, em seu vestido branco de casamento, olhando em frentecom seus olhos proeminentes, parecia insolúvel como um pingente de gelo.

Ao prolongar-se o jantar, contudo, o calor se propagou pela sala.Formavam-se gotas de suor na testa dos homens. Seu pingente, ela sentiu, estavavirando água. Ela estava derretendo; dispersava-se; dissolvia-se em nada; e iadesmaiar dentro em pouco. Então, por entre a compressão na cabeça e aalgazarra em seus ouvidos, ela ouviu a voz de uma mulher que exclamava: “Masé assim que eles procriam!”.

Os Thorburn – sim; é assim que eles procriam, repetiu ela; olhando paratodos os rostos redondos e vermelhos que, na vertigem que a dominava,pareciam duplicar-se; e magnificar-se na neblina dourada que os aureolava. “Éassim que eles procriam.” A essa altura John berrava:

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“São uma praga!… É bala neles! É esmagá-los no tacão da bota! É a únicamaneira de enfrentar esses bichos… os coelhos!”.

A essa palavra, a essa palavra mágica, ela reviveu. Espiando por entre oscrisântemos, viu o nariz de Ernest tremer, enrugar-se um pouco e voltar a tremersucessivas vezes. Nisso uma misteriosa catástrofe se abateu sobre os Thorburn. Amesa dourada tornou-se uma charneca com o tojo em plena floração; aalgaravia das vozes reduziu-se a um ressoar de riso de cotovia pelo céu. Era umcéu azul – nuvens passavam lentamente. E eles, os Thorburn – todos elesmudaram. Ela olhou para o sogro, homenzinho furtivo de bigode pintado. Seufraco era colecionar coisas – selos, caixinhas esmaltadas, bugigangas de toucadordo século XVIII que ele escondia da esposa nas gavetas do seu gabinete. Nesseinstante ela o viu como ele era – um caçador ilegal, que se esgueirava, com osfaisões e perdizes que furtou a lhe estufar o capote, para às escondidas jogá-losnum caldeirão de três pernas em seu enfumaçado casebre. Era este o seu sogroverdadeiro – um caçador em terra alheia. E Celia, a filha solteira, que vivia seintrometendo nos segredinhos dos outros, nas coisas que queriam manter ocultas– ela era um furão branco de olhos avermelhados, com restos de terra no focinhoprovindos de seu horrível fuçar e bisbilhotar subterrâneo. Apoiada em ombros dehomens, numa rede, e enfiada por um buraco abaixo – era uma vida lamentável– a de Celia; não por culpa dela. Foi assim que ela viu Celia. Depois olhou parasua sogra – que eles chamavam de Proprietária Rural. Corada, grosseira,arrogante – sim, tudo isso ela era, ali em pé retribuindo agradecimentos, masagora que Rosalind – isto é, Lapinova – a via, via por trás dela a mansão familiardecadente, o emboço descascando nas paredes, e a ouvia dar graças, com umsoluço na voz, a seus filhos (que a detestavam) por um mundo que já haviadeixado de existir. Houve um súbito silêncio. Todos se postaram com seus coposerguidos; todos beberam; depois tudo se acabou.

“Oh, rei Lappin!”, gritou ela, quando já iam para casa, juntos, no nevoeiro,“se o seu nariz não tivesse tremido bem naquele momento, eu cairia naarmadilha!”

“Mas você está salva!”, disse o rei Lappin, apertando-lhe a patinha.“Totalmente”, respondeu ela.E assim de novo eles atravessaram o parque, rei e rainha dos brejais, da

neblina e da charneca perfumada de tojo.E assim se passou o tempo; um ano; dois anos. E numa noite de inverno, que

por coincidência caiu no aniversário da festa de bodas de ouro – mas Mrs.Reginald Thorburn estava morta; a casa, para alugar; e havia apenas um zeladormorando lá –, Ernest, vindo do escritório, chegou em casa. Era uma casinhaagradável, a deles; a metade de uma casa por cima da loja de um seleiro emSouth Kensington, não muito longe da estação do metrô. Fazia frio, com neblinano ar, e Rosalind estava sentada à lareira, costurando.

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“Sabe o que aconteceu comigo hoje?”, começou ela, tão logo ele se instalouao calor esticando as pernas. “Eu estava atravessando o riacho, quando…”

“Que riacho?”, interrompeu Ernest.“O riacho do fundo, onde nossa mata se encontra com a mata negra”,

explicou ela.Ernest parecia ter ficado perplexo.“De que diabo você está falando?”, perguntou.“Ernest, meu querido!”, ela gritou consternada. “Rei Lappin”, acrescentou,

balançando à luz do fogo suas patinhas dianteiras. Mas o nariz dele não tremeu. Eas mãos dela – voltando a ser mãos – agarraram-se ao pano que ela segurava;seus olhos quase saltaram da cabeça. Ele levou ao menos cinco minutos paramudar, para passar de Ernest Thorburn a rei Lappin; e ela, enquanto esperava,sentia um peso na nuca, como se houvesse alguém a ponto de lhe torcer opescoço. Finalmente ele virou o rei Lappin; seu nariz tremeu; e eles passaram anoite, como de hábito, pervagando pelas matas.

Ela porém não dormiu bem. Acordou no meio da noite, sentindo quealguma coisa estranha lhe tinha acontecido. Estava enrijecida e fria. Acabouacendendo a luz e, quando olhou para Ernest a seu lado, ele dormia a sono solto,roncando. Mas, muito embora roncasse, seu nariz se mantinha completamenteimóvel. Dava aliás a impressão de nunca ter se mexido. Seria possível que aquelefosse realmente o Ernest; e que ela realmente fosse casada com um Ernest?Surgiu-lhe pela frente uma visão da sala de jantar de sua sogra; e lá sentavam-seeles, ela e Ernest, envelhecidos, por baixo das gravuras, diante do aparador… Erao dia de suas bodas de ouro. E ela não conseguia aguentar.

“Rei Lappin, rei Lappin!”, sussurrou, e por um momento o nariz delepareceu tremer por moto próprio. Mas ele mesmo continuava dormindo.“Acorde, Lappin, acorde!”, gritou ela.

Ernest acordou; e, ao vê-la sentada assim, tão tensa e reta a seu lado,perguntou:

“Que foi que houve?”.“Pensei que meu coelho tinha morrido!”, choramingou ela. Ernest se

aborreceu.“Não diga uma bobagem dessas, Rosalind”, disse ele. “Deite-se e volte a

dormir.”E virou de costas. Mais um momento e já estava dormindo fundo e

roncando.Ela porém não conseguia dormir. Enroscava-se em seu lado da cama como

uma lebre em sua forma. Tinha apagado a luz, mas a lâmpada da rua clareavaligeiramente o teto, sobre o qual as árvores de fora compunham uma tramarendada, como se houvesse nele um arvoredo sombrio pelo qual ela vagava,entrando e saindo, dando voltas e mais voltas, desorientando-se, caçando e sendo

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caçada, ouvindo as trombetas e os latidos dos cães; fugindo, escapando… até aempregada abrir as cortinas e lhes trazer o chá da manhã.

No dia seguinte ela não foi capaz de fixar-se em nada. Parecia ter perdidouma coisa. Sentia-se como se seu corpo tivesse encolhido; como se, além demenor, ele estivesse duro e preto. Suas juntas também se mostravam rígidas e,ao olhar-se no espelho, o que ela fez várias vezes ao andar pelo apartamento,seus olhos davam a impressão de estar saindo do rosto, como passas que saltamda superfície de um bolo. Também os cômodos pareciam ter encolhido. Grandespeças do mobiliário assumiam relevo em ângulos inesperados, e ela deu consigoa bater de encontro aos móveis. Afinal pôs um chapéu na cabeça e saiu. Foicaminhando ao longo de Cromwell Road; e cada sala por que passava, e na qualdava uma espiada, parecia ser uma sala de jantar onde as pessoas sentavam-secomendo sob gravuras em metal, com cortinas rendadas, amarelas e grossas, eaparadores de mogno. Finalmente chegou ao Museu de História Natural; gostavadali, quando criança. Mas a primeira coisa que ela viu, assim que entrou, foi umalebre empalhada, de pé sobre neve falsa e com olhos de vidro cor-de-rosa. Umtremor a percorreu de alto a baixo. Ao cair o crepúsculo talvez melhorasse. Elafoi para casa e sentou-se à lareira, sem acender a luz, e tentou imaginar queestava sozinha num matagal; que um riacho corria por ali; e que além do riachohavia a mata escura. Ela porém só ia até o riacho. Finalmente acocorou-se nocapim molhado da margem, e se agachou na cadeira na qual estava sentada,com as mãos vazias balançando e os olhos, como se fossem mesmo de vidro,vidrados na luz do fogo. Fez-se então o barulho de uma arma engatilhada…Como se houvesse levado um tiro, ela tremeu. Era apenas Ernest, virando suachave na porta. Ela esperou, tremendo ainda. Ele entrou e acendeu a luz. Láestava de pé, alto, bonito, esfregando as mãos vermelhas de frio.

“Sentada no escuro?”, disse.“Oh, Ernest, Ernest!”, exclamou ela, levantando-se de sua cadeira.“Bem, o que foi dessa vez?”, perguntou ele com aspereza, esquentando as

mãos no fogo.“É Lapinova…”, balbuciou ela, fitando-o tumultuosamente com seus

grandes olhos sobressaltados. “Ela se foi, Ernest. Eu a perdi!”Ernest franziu as sobrancelhas. E apertou bem os lábios. “Oh, então foi

isso?”, disse ele, sorrindo de um modo algo implacável para sua esposa. Ficou ali,em pé, calado, por dez segundos; e ela esperou, sentindo mãos a apertarem seupescoço por trás.

“Pois é”, disse ele enfim. “Pobre Lapinova…” No espelho em cima dalareira ele endireitou a gravata.

“Caiu numa armadilha”, disse ele, “morreu”, e sentou-se para ler seujornal.

E esse foi o fim daquele casamento.

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O HOLOFOTE

A mansão do conde do século XVIII foi transformada no século XX num clube.E era agradável, depois de jantar no salão com pilares e candelabros sob uma luzofuscante, sair para a sacada que dava para o parque. As árvores estavamcobertas de folhas e, se houvesse lua, poder-se-ia enxergar os cocares dascastanheiras, tingidos de creme e cor-de-rosa. Contudo era uma noite sem lua;muito quente, depois de um belo dia de verão.

Os convidados de Mr. e Mrs. Ivimey tinham ido fumar e tomar café nasacada. Como que para poupá-los à obrigação de conversar, para distraí-los semnenhum esforço da parte deles, feixes de luz giravam pelo céu. Era tempo depaz; mas a força aérea fazia seus exercícios; procurando no céu um aviãoinimigo. Depois de se deter num ponto suspeito para esquadrinhá-lo, a luz voltavaa rodar, como as pás de um moinho, ou então como as antenas de algumprodigioso inseto, e revelava aqui uma cadavérica fachada de pedra; acolá umacastanheira coroada de flores; de repente a luz bateu na sacada e, por umsegundo, um disco brilhou intensamente – talvez um pequeno espelho na bolsinhade mão de uma senhora.

“Olhem”, exclamou Mrs. Ivimey.A luz passou. Eles ficaram novamente no escuro.“Ninguém adivinha o que isso me fez ver!” Naturalmente, eles

adivinharam.“Não, não, não”, protestou ela. Ninguém podia adivinhar; só ela sabia; só ela

era capaz de saber, porque ela era a bisneta do próprio homem. Foi ele quem lhecontou a história. Que história? Bem, se eles quisessem, ela tentaria contá-la.Ainda havia tempo antes da peça.

“Mas por onde eu começo?”, ponderou. “Pelo ano de 1820?… Deve ter sidopor aí a época da infância do meu bisavô. Eu mesma já não sou mais tãojovem”, não, mas mantinha-se bonita e bem conservada, “e ele já era muitoidoso em meus tempos de menina – quando me contou a história. Um velho, sim,

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e muito bonito”, explicou ela, “de basta cabeleira branca e olhos azuis. Deve tersido um garoto lindo. Mas estranho… O que era apenas natural – vendo-se comoeles viviam. O nome era Comber. Tinham decaído de nível. Depois de seremfazendeiros; de terem tido terras no Yorkshire. Mas, quando ele era garoto, sórestava a torre. A casa era o mesmo que nada, uma simples casinhola de fazendano meio dos campos. Demos uma passada por lá há uns dez anos. Tivemos dedeixar o carro e atravessar os campos a pé. Não há estrada até a casa, que ficaisolada, com capim crescendo pelo portão acima… havia umas galinhasciscando, que entravam e saíam dos cômodos. Tudo na mais completa ruína.Lembro que da torre caiu subitamente uma pedra”. E ela fez uma pausa. “Era láque eles viviam”, prosseguiu, “o velho, a mulher e o menino. Ela não era mulherdele, nem a mãe do menino. Era uma simples ajudante da fazenda, uma garotaque o velho levou para viver com ele quando sua esposa morreu. Outra razãotalvez por que ninguém os visitava – por que a casa toda estava que era puraruína. Lembro porém de um brasão por cima da porta; e de livros, livros velhos,mofados. Foi nos livros, sozinho, que ele aprendeu tudo que sabia. Lia muito, liasem parar, ele me disse, livros antigos, livros de cujas páginas se desdobravammapas. Arrastou-os para o alto da torre – a corda ainda está por lá, como osdegraus quebrados. Ainda há uma cadeira à janela, sem fundo; a janela abertadespencando, as vidraças quebradas e uma vista quilométrica pelos matagaisafora”.

Ela se interrompeu, como se estivesse na torre olhando pela janela quedespencava aberta.

“Mas não conseguimos”, disse, “encontrar o telescópio”. Na sala de jantarpor trás deles o barulho de pratos se tornou mais forte. Mas Mrs. Ivimey nasacada parecia intrigada, porque não conseguia achar o telescópio.

“Por que um telescópio?”, perguntou-lhe alguém.“Por quê? Porque, se não tivesse havido um telescópio”, ela riu, “eu não

estaria sentada aqui agora!”.E certamente ela estava sentada ali agora, uma bem conservada mulher de

meia-idade com alguma coisa azul nos ombros.“Deve ter sido lá”, retomou, “porque ele me disse que todas as noites,

quando os mais velhos iam para a cama, ele se sentava à janela, olhando pelotelescópio as estrelas. Júpiter, Aldebarã, Cassiopeia”. E ela estendeu a mão paraas estrelas que estavam começando a despontar sobre as árvores. Ficava escuro.E o holofote parecia mais brilhante ao varrer o céu, parando aqui e ali paratambém se fixar nas estrelas.

“Lá estavam elas”, prosseguiu, “as estrelas. E ele, o meu bisavô, o garoto –se perguntou: ‘O que elas são? E por que são? E quem sou eu?’ como nosperguntamos, estando a sós, sem ninguém com quem conversar, quando olhamospara as estrelas”.

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Ela se calou. E todos olharam para as estrelas que surgiam na escuridão porcima das árvores. Estrelas que pareciam bem permanentes, bem imutáveis. Osbarulhos de Londres abafaram-se ao longe. Cem anos não pareciam ser nada.Eles sentiram a presença do garoto olhando para as estrelas com eles. Sentiram-se na torre a seu lado, à procura de estrelas por sobre os matagais.

Uma voz então disse por trás deles:“Certo, sim. Sexta-feira”.Todos se viraram, se mexeram, sentindo-se cair de regresso na sacada.“‘Certo, sim – sexta-feira…’ Ah, mas não havia ninguém para dizer isso a

ele”, murmurou ela. O casal se levantou para andar.“Ele estava sozinho”, retomou ela. “Era um belo dia de verão. Um dia de

junho. Um desses dias perfeitos de verão, quando tudo parece manter-se imóvelno calor. Mas havia galinhas ciscando pelo terreiro; o velho cavalo esperneandono estábulo; o homem velho cochilando sobre seus óculos. A mulher areandobaldes no tanque. Talvez tenha caído uma pedra da torre. Parecia que o dia nãoacabaria nunca. E ele não tinha com quem conversar – nada em absoluto parafazer. Subiu pois para sua Torre. O mundo todo estendeu-se à sua frente. Osmatagais subindo e baixando; o céu se encontrando com os matagais; verde eazul, verde e azul, para sempre e sempre.”

À meia-luz, podiam ver que Mrs. Ivimey já se debruçava à sacada, com oqueixo apoiado em suas mãos, como se do topo de uma torre ela olhasse osmatagais por cima.

“Nada, só mato e céu, mato e céu para sempre e sempre”, murmurou ela.Depois fez um movimento, como se endireitasse um objeto no lugar.“E com o que é que a terra parecia através do telescópio?”, perguntou.Fez outro movimento bem rápido, como se estivesse rodando alguma coisa

nos dedos.“Focalizou-o”, disse ela. “Focalizou-o na terra. Na massa escura de um

arvoredo no horizonte. Focalizou-o de modo a poder ver… cada árvore… cadaárvore em separado… e os pássaros… subindo e baixando… e um fiapo defumaça… lá… no meio das árvores… E depois… mais baixo… mais baixo…(ela abaixou os olhos)… havia uma casa… uma casa no meio das árvores… umacasa de fazenda… toda de tijolos à mostra… e as tinas de ambos os lados daporta… com flores cor-de-rosa e azuis, talvez hortênsias…” Ela fez uma pausa…“E então saiu da casa uma garota… usando uma coisa azul na cabeça… e láficou… alimentando aves… pombos… que esvoaçavam ao seu redor… E aí…vejam… Um homem… Um homem! Que veio vindo do canto. Que a pegou emseus braços! E eles se beijaram… eles se beijaram!”

Mrs. Ivimey abriu e fechou seus próprios braços como se estivesse elamesma beijando alguém.

“Era a primeira vez que ele via um homem beijar uma mulher – no seu

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telescópio – a quilômetros dali pelos matagais afora!”Ela empurrou de si alguma coisa – presumivelmente o telescópio. E sentou-

se reta.“Assim correu escada abaixo. Correu pelos campos. Correu por trilhas, pela

estrada principal, em arvoredos. Correu quilômetros e mais quilômetros e, justoquando as estrelas surgiam sobre as árvores, alcançou a casa… coberto depoeira… banhado em suor…”

Ela parou, como se o visse.“E aí, e aí… o que foi que ele fez? O que foi que ele disse? E a garota…”,

insistiram com ela.Um raio de luz caiu sobre Mrs. Ivimey, como se alguém tivesse focalizado

nela as lentes de um telescópio. (Era a força aérea, caçando aviação inimiga.)Ela tinha se levantado. Tinha uma coisa azul na cabeça. Tinha erguido sua mão,como se à porta de uma casa, em pé, perplexa.

“Oh, a garota… Ela era mi…”, hesitou, como se estivesse a ponto de dizer“eu mesma”. Mas se lembrou; e corrigiu-se. “A garota era minha bisavó”, disse.

Virou-se então para procurar seu casaco, que estava numa cadeira por trás.“Mas diga-nos – o que aconteceu com o outro homem, o que veio vindo do

canto?”, perguntaram.“Aquele homem? Aquele homem”, murmurou Mrs. Ivimey, dobrando-se

ao se atrapalhar com o casaco (o holofote tinha saído da sacada), “ele, creio eu,sumiu”.

“A luz”, acrescentou, juntando suas coisas em volta, “cai somente aqui eali”.

O holofote tinha passado adiante. Estava focalizado agora na área ampla eevidente do palácio de Buckingham. E era hora de eles irem ao teatro.

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O LEGADO

“Para Sissy Miller.” Gilbert Clandon, pegando um broche de pérolas que estavaem meio a uma barafunda de anéis e broches numa mesinha da sala de visitas desua esposa, leu a inscrição: “Para Sissy Miller, com amor”.

Era bem típico de Angela ter se lembrado até mesmo de Sissy Miller, suasecretária. No entanto como era estranho, Gilbert Clandon pensou mais uma vez,que ela tivesse deixado tudo em tal ordem – um presentinho de algum tipo paracada uma de suas amigas. Era como se ela tivesse antevisto a própria morte.Porém se achava na mais perfeita saúde ao sair de casa aquela manhã; faziaentão seis semanas, quando pisou fora da calçada, em Piccadilly, e o carro aatropelou e matou.

Ele estava esperando Sissy Miller. Tinha pedido que ela viesse; sentia dever-lhe, após os anos todos que ela estivera com eles, essa demonstração de estima.Sim, prosseguiu ele, enquanto se sentava à espera, era estranho que Angelativesse deixado tudo tão em ordem. A cada amiga fora destinada uma pequenalembrança de seu afeto. Cada anel, cada colar, cada caixinha chinesa – ascaixinhas lhe inspiravam verdadeira paixão – levava um nome por cima. E cadaqual, para ele, trazia alguma lembrança. Tal joia ele lhe havia dado; a tal outra –o golfinho esmaltado com olhos de rubi – ela mesma se atirara um dia numaruela de Veneza. Seu gritinho de alegria ainda lhe vinha à lembrança. Para ele, éclaro, nada de especial ela deixara, a não ser seu diário. Quinze pequenosvolumes, encadernados em couro verde, enfileiravam-se em sua escrivaninhapor trás dele. Desde que se casaram, ela manteve um diário. Algumas de suaspouquíssimas zangas – já que ele não era capaz de considerá-las brigas – tinhamsido por causa desse diário. Quando ele entrava e a encontrava escrevendo, elasempre o fechava ou encobria com a mão. “Não, não, não”, podia ouvi-la aindaa dizer. “Depois que eu morrer – talvez.” Ela assim o deixara para ele, como seulegado. Era a única coisa que não haviam partilhado quando ela estava viva. Eleporém sempre tomara por certo que ela viveria mais do que ele. Caso houvesse

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parado um instante, e refletido sobre o que estava fazendo, ela agora aindaestaria viva. Mas descera da calçada para a rua de súbito, como alegou nasindicância o motorista do carro. Não lhe dera a menor chance de frear… O somde vozes no corredor o interrompeu a essa altura.

“Miss Miller, senhor”, disse a empregada.Ela entrou. Em toda sua vida, ele nunca a vira a sós, nem, claro está, em

lágrimas. Achava-se terrivelmente abalada, o que não era de estranhar. Angelafora para ela muito mais do que uma simples patroa. Tinha sido uma amiga. Jápara ele, pensou o próprio, ao puxar uma cadeira e convidá-la a sentar-se, elamal se distinguia de qualquer mulher do seu tipo. Havia milhares de Sissy Millers– mulheres de preto, miúdas e insípidas, carregando pastas de documentos. MasAngela, com seu pendor à simpatia, descobrira em Sissy Miller as mais diversasqualidades. Era a discrição em pessoa, de tão calada; e tão digna de confiança,que se podia contar-lhe qualquer coisa, e assim por diante.

Miss Miller, a princípio, nem conseguia falar. Sentada, limitava-se a enxugarrecatadamente seus olhos com um lencinho de bolso. Depois porém fez umesforço.

“Desculpe-me, Mr. Clandon”, disse.Ele murmurou qualquer coisa. É claro que compreendia. Nada mais

natural. Era capaz de imaginar o que sua mulher tinha significado para ela.“Eu fui tão feliz aqui”, disse ela, olhando em volta. Seus olhos pararam na

escrivaninha por trás dele. Era ali que elas trabalhavam – ela e Angela. PoisAngela tinha sua cota das obrigações inerentes à condição de esposa de umdestacado político. Fora ela quem mais o ajudara na carreira. Muitas vezes asvira, ela e Sissy, sentadas à escrivaninha – Sissy à máquina de escrever, batendocartas que a patroa ditava. Miss Miller, sem dúvida, também pensava nisso agora.Tudo que ele tinha pois a fazer era dar-lhe o broche que sua esposa lhe haviadeixado. Um presente que parecia meio incongruente. Deixar-lhe uma soma emdinheiro, ou mesmo a máquina de escrever, poderia ter sido melhor. Mas obroche lá estava – “Para Sissy Miller, com amor”. E ele, apanhando-o, entregou-o com o discursinho que havia preparado. Sabia, disse, que ela lhe daria valor.Sua esposa o usara tantas vezes… E Sissy respondeu ao pegá-lo, quase como setambém tivesse preparado um discurso, que aquele seria um bem muitoestimado… Ele supôs que ela tivesse outras roupas nas quais um broche depérolas não parecesse tão descabido. Estava usando o conjuntinho preto, decasaco e saia, que parecia ser o uniforme de sua profissão. Mas depois ele selembrou – claro, ela estava de luto. Tinha tido também sua tragédia – um irmão,ao qual era devotada, morrera apenas uma ou duas semanas antes de Angela.Um acidente, não foi? Ele somente conseguia lembrar-se de Angela lhe falandoa respeito; Angela, com seu pendor à simpatia, ficara terrivelmente abalada.Sissy Miller, enquanto isso, já se levantara. E estava botando as luvas. Sentia

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evidentemente que não devia incomodar. Ele porém não podia deixar que ela sefosse sem lhe dizer alguma coisa sobre o seu futuro. Que planos tinha? Haviaalgum modo pelo qual ele pudesse ajudá-la?

Ela estava olhando para a escrivaninha, onde se sentara à máquina deescrever e onde jazia o diário. Perdida em suas recordações de Angela, nãorespondeu de imediato à sugestão de ajuda que partira dele. Parecia, por ummomento, não haver entendido. Ele então repetiu:

“Quais são seus planos, Miss Miller?”.“Meus planos? Oh, está tudo bem, Mr. Clandon”, exclamou ela. “Não se

preocupe comigo, por favor.”Ele entendeu que ela queria dizer que não necessitava de ajuda financeira.

Seria melhor, deu-se conta, fazer qualquer sugestão desse tipo numa carta. Tudoque agora lhe cabia era dizer, enquanto apertava sua mão: “Lembre-se, MissMiller, de que se houver algum modo de eu poder ajudá-la, será um prazer…”. Eentão abriu a porta. Por um instante, no limiar, como se um súbito pensamentolhe tivesse ocorrido, ela parou.

“Mr. Clandon”, disse, olhando diretamente para ele pela primeira vez, e pelaprimeira vez ele se impressionou com a expressão de seus olhos, que erasimpática porém penetrante. “Se alguma vez”, dizia [ela], “houver alguma coisaque eu possa fazer para ajudá-lo, lembre-se que, pela memória de sua esposa,será um prazer para mim…”.

E com isso se foi. Suas palavras e o olhar que as acompanhara tinham sidoinesperados. Era quase como se ela acreditasse, ou esperasse, que ele ainda viriaa precisar dela. Uma ideia esquisita, talvez fantasiosa, ocorreu-lhe quando elevoltava para se sentar. Seria possível que, durante todos esses anos em que malchegara a notá-la, ela, como dizem os romancistas, tivesse nutrido uma paixãopor ele? Tinha visto, ao passar, sua própria imagem no espelho. Já estava commais de cinquenta anos; mas não podia deixar de admitir que ainda era, como oespelho lhe mostrara, um homem de aparência muito distinta.

“Pobre Sissy Miller!”, disse ele, rindo um pouco. Como ele gostaria departilhar com a esposa tal pilhéria! Instintivamente voltou-se para o diário dela.“Gilbert”, leu, abrindo-o ao acaso, “estava tão maravilhoso…”. Era como se elativesse respondido à sua pergunta. Para as mulheres, naturalmente, parecia dizerela, você é muito atraente. E naturalmente Sissy Miller também achava isso.Continuou lendo. “Como me sinto orgulhosa de ser sua esposa!” E ele sempre sesentira muito orgulhoso de ser marido dela. Quantas vezes, quando saíam parajantar fora, ele olhava para ela através da mesa e dizia a si mesmo: Não há aquioutra mulher tão bela! Leu mais um pouco. Naquele primeiro ano ele secandidatara ao Parlamento. E juntos tinham percorrido seu distrito eleitoral.“Quando Gilbert se sentou, o aplauso foi estrondoso. Toda a audiência se levantoue cantou: ‘Pois ele é um bom companheiro’. Aquilo me dominou por completo.”

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Ele também se recordava do fato. Ela estava sentada no palanque a seu lado. Eleainda podia ver as olhadas que ela lhe dava, com lágrimas nos olhos. E depois?Ele virou as páginas. Tinham viajado a Veneza. Ele rememorou aquelas fériasfelizes após a eleição. “Tomamos sorvete no Florian.” Ele sorriu – ela era aindatão criança, adorava sorvete. “Gilbert me fez um relato dos mais interessantessobre a história de Veneza. Disse-me que os doges…”, e anotara tudo, em sualetra de estudante. Uma das delícias de viajar com Angela era o fato de ela semostrar sempre tão ávida por aprender. Costumava dizer-se terrivelmenteignorante, como se isso não fosse parte de seu charme. E então – ele abriu ovolume seguinte – regressaram a Londres. “Eu estava tão ansiosa para causarboa impressão. Usei meu vestido de casamento.” Ele agora podia vê-la sentadaao lado do velho Sir Edward; e fazendo a conquista desse homem tão vivido etemível, que era seu líder. Leu bem rápido, completando cena após cena a partirdos fragmentos desconexos. “Jantei na Câmara dos Comuns… Sarau nosLovegroves. Lady L. perguntou-me se eu me dava conta de minharesponsabilidade como esposa de Gilbert.” Com o passar dos anos – e apanhoumais um volume na escrivaninha –, ele se absorvera cada vez mais em seutrabalho. E ela, é claro, foi ficando cada vez mais sozinha, visivelmente muitopesarosa por não terem tido filhos. “Como eu gostaria”, dizia uma passagem,“que Gilbert tivesse um filho!”. Ele, por estranho que fosse, nunca o lamentaratanto. A vida já era tão boa, tão cheia, como estava sendo. Naquele ano lhehaviam dado um cargo de pouca projeção no governo. Apenas um cargosecundário, mas foi este o comentário dela: “Tenho quase certeza agora de queele será primeiro-ministro!”. Bem, se as coisas tivessem tomado um rumodiferente, até que poderia ter sido. E ele aqui fez uma pausa para especular sobreo que poderia ter sido. A política era um jogo arriscado, refletiu; mas as partidasainda não tinham terminado. Não aos cinquenta anos. Rapidamente deu umaolhada em mais páginas, cheias de pequenas trivialidades, das felizes einsignificantes trivialidades cotidianas que constituíam a vida dela.

Pegou ainda outro volume e abriu-o ao acaso. “Como eu sou covarde!Deixei escapulir a oportunidade de novo. Mas parecia egoísmo incomodá-lo commeus próprios problemas, quando ele já tem tanto sobre o que pensar. E é tãoraro passarmos uma noite juntos.” Qual seria o significado disso? Ah, aqui estavaa explicação – era uma referência ao trabalho dela no East Side.

“Enchi-me de coragem e afinal conversei com Gilbert. Ele foi tão gentil,tão bom. Não fez nenhuma objeção.” Ele se lembrava dessa conversa. Ela lhedissera que se sentia muito ociosa, muito inútil. Desejava por isso ter seu própriotrabalho. Queria fazer alguma coisa – ficara tão bonita, recordou-se ele, aoenrubescer quando disse isso sentada naquela mesma cadeira – para ajudar osoutros. E ele brincara um pouco com ela: já não tinha muito a fazer cuidandodele, cuidando de sua casa? Ainda assim, se isso a distrairia, é claro que não faria

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objeções. De que se tratava? Algum trabalho distrital? Algum comitê? Apenas eladevia prometer não abusar de sua saúde. Parecia assim que todas as quartas-feiras ela ia ao distrito de Whitechapel. Lembrou-se de como ele detestava asroupas que nessas ocasiões ela usava. Mas parecia também que ela havia tomadoa coisa muito a sério. O diário estava cheio de referências como esta: “Estivecom Mrs. Jones… Ela tem dez filhos… O marido perdeu o braço num acidente…Fiz o que pude para arranjar um emprego para Lily ”. Ele continuou pulandopáginas. Seu próprio nome surgia menos frequentemente agora. Seu interessediminuiu. Algumas das anotações não lhe diziam nada. Por exemplo: “Tive umadiscussão calorosa sobre o socialismo com B.M.” Quem era B.M.? Ele nãoconseguia decifrar as iniciais; alguma mulher, supôs, que ela conhecera num deseus comitês. “B.M. fez um ataque violento às classes superiores… Volteiandando com B.M., depois da reunião, e tentei convencê-lo. Mas ele é tãobitolado.” B.M. então era um homem – sem dúvida, um desses “intelectuais”,como eles mesmos se dizem, que são tão violentos e tão bitolados, comoescrevera Angela. Ela o convidara, ficava claro, a ir visitá-la em casa. “B.M.veio para jantar. E cumprimentou Minnie com um aperto de mãos!” Esse pontode exclamação deu outra configuração à sua imagem mental. Tudo indicava queB.M. não estava acostumado com empregadas domésticas; tinha apertado a mãode Minnie. Presumivelmente era um desses trabalhadores submissos que arejamsuas opiniões nas salas de visitas das senhoras grã-finas. Gilbert conhecia aespécie e não lhe agradava em nada essa variedade específica, fosse quem fosseo tal B.M. Aqui já estava ele de novo. “Fui com B.M. à Torre de Londres… Eledisse que a revolução é inevitável… Disse que vivemos num paraíso de tolos.”Era bem o tipo de coisa para B.M. dizer – Gilbert até podia ouvi-lo. E podiatambém vê-lo com toda nitidez – um homenzinho atarracado, de barba espessa edescuidada, gravata vermelha, vestindo o terno xadrez que eles usavam sempre eque nunca enfrentara em sua vida um dia honesto de trabalho. Por certo nãofaltara sensatez a Angela para enxergá-lo tal como era. Continuou lendo. “B.M.disse umas coisas muito desagradáveis sobre…” O nome estava cuidadosamenteriscado. “Eu disse a ele que não iria ouvir nenhum desaforo mais contra…” Onome fora suprimido de novo. Poderia ter sido seu próprio nome? Era por issoque Angela cobria a página com tal rapidez, quando ele entrava? Tal ideia veiosomar-se a sua crescente antipatia por B.M., que havia tido a petulância dediscutir a seu respeito nesta mesma sala. Por que Angela nunca lhe contara?Ocultar alguma coisa não combinava com ela, que sempre fora a sinceridadeem pessoa. E lá foi ele, ao virar mais páginas, catando todas as referências aB.M. “B.M. me narrou sua infância. Sua mãe vivia de pequenos biscates…Quando penso nisso, mal suporto continuar a viver com tanto luxo… Três guinéuspor um chapéu!” Se ao menos ela tivesse discutido a questão com ele, em vez dedeixar sua pobre cabecinha intrigada com problemas que eram difíceis demais

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para ela mesma entender! Ele lhe teria passado uns livros. Karl Marx. “Arevolução que se aproxima.” As iniciais B.M., B.M., B.M. reapareciam repetidasvezes. Mas por que nunca o nome todo? Havia uma informalidade, umaintimidade no uso de iniciais que não combinava nada com Angela. Face a face,porventura ela o chamaria de B.M.? Gilbert prosseguiu com a leitura. “B.M. veioinesperadamente para o jantar. Por sorte eu estava sozinha.” Isso havia sido háapenas um ano. “Por sorte” – mas por que por sorte? – “eu estava sozinha”. Ondeestivera ele essa noite? Conferiu a data em sua agenda. Fora a do jantar naresidência oficial do prefeito de Londres. E B.M. e Angela tinham passado a noitea sós! Tentou lembrar-se da ocasião. Estava ela à sua espera quando ele voltoupara casa? A aparência da sala era a mesma de sempre? Havia copos sobre amesa? E as cadeiras, por acaso estavam juntas demais? Não conseguia selembrar de nada – de nada que fosse, de nada a não ser seu próprio discurso nojantar na residência do prefeito. Toda a situação: sua esposa recebendo umdesconhecido sozinha – tornava-se cada vez mais inexplicável para ele. Talvez ovolume seguinte fosse mais esclarecedor. Apressadamente ele apanhou o últimodiário – o que ela deixara inacabado ao morrer. Logo na primeira página láestava de novo o abominável sujeito. “Jantei a sós com B.M… Ele ficou muitoagitado. Disse que já era hora de nós nos entendermos… Tentei ponderar comele. Mas ele não quis me ouvir. Ameaçou que, se eu não…” Todo o resto dapágina estava rabiscado. Pelo espaço afora ela escrevera apenas “Egito. Egito.Egito.” Ele não conseguia decifrar uma palavra sequer; mas só podia haver umainterpretação: o safado lhe pedira para ela se tornar sua amante. A sós em suasala! O sangue subiu ao rosto de Gilbert Clandon. Rapidamente ele virou aspáginas. Qual fora a resposta dela? As iniciais tinham cessado. Agora era “ele”simplesmente. “Ele veio de novo. Eu lhe disse que não podia chegar a umadecisão… Implorei que ele me deixasse.” Ele a pressionara pois ali mesmo emcasa? Mas por que ela não contara nada? Como poderia ter hesitado um instante?E então: “Escrevi-lhe uma carta”. Então páginas deixadas em branco. E entãohavia isto: “Não há resposta para minha carta”. Então mais páginas em branco; eentão isto: “Ele fez o que havia ameaçado”. Depois disso – o que aconteceudepois disso? Virou página após página. Todas em branco. Mas aí, na própriavéspera da morte dela, estava esta anotação: “Será que eu tenho coragem defazer isso também?”. Foi esse o fim.

Gilbert Clandon deixou o caderno escorregar para o chão. Podia vê-la à suafrente. Ela estava de pé no meio-fio, em Piccadilly. Tinha os olhos fixos; ospunhos cerrados. E lá vinha o carro…

Ele não podia mais aguentar. Tinha de saber a verdade. Foi, a passos largos,para o telefone.

“Miss Miller!” Houve silêncio. Mas logo ele ouviu que alguém estava semexendo na sala.

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“Alô, é Sissy Miller” – finalmente respondeu a voz dela.“Quem”, disparou ele, “é B.M.?”.Pôde ouvir o barulho do relógio barato sobre a lareira de Sissy ; pôde ouvir

um suspiro longo e arrastado. E por fim ela disse:“Era meu irmão”.Ele era o irmão dela; o irmão que se matara.“Há”, ouviu Sissy Miller perguntando, “alguma coisa que eu possa

explicar?”.“Não, nada!”, gritou. “Nada!”Ele havia recebido o seu legado. Ela lhe dissera a verdade. Tinha pisado

fora da calçada para reunir-se ao amante. Tinha pisado fora da calçada paraescapar do marido.

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ANEXO

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FICÇÃO MODERNA

Ao se fazer qualquer exame da ficção moderna, mesmo o mais descuidado elivre, é difícil não ter por certo que a prática moderna da arte é de algum modoum progresso em relação à antiga. Pode-se dizer que, com suas toscasferramentas e materiais primitivos, Fielding se saiu bem e Jane Austen aindamelhor, mas compare as oportunidades deles com as nossas! Há por certo umestranho ar de simplicidade em suas obras-primas. No entanto a analogia entre aliteratura e, para dar um exemplo, o processo de fabricar automóveisdificilmente se mantém válida além de um primeiro e rápido olhar. É duvidosoque no decurso dos séculos, apesar de termos aprendido muito sobre a produçãode máquinas, tenhamos aprendido alguma coisa sobre como fazer literatura. Nósnão passamos a escrever melhor; tudo o que podem sugerir que façamos é quecontinuemos a nos mover, ora um pouco nesta direção, ora naquela, mas comuma tendência circular, caso a pista seja vista, em toda a sua extensão, de umpico muito elevado. Nem é preciso dizer que não temos a pretensão de estar, porum momento sequer, nessa posição vantajosa. Lá embaixo, na multidão, meio àscegas na poeira, olhamos para trás com inveja para aqueles guerreiros maisfelizes cuja batalha está ganha e cujas realizações se revestem de um ar deperfeição tão sereno que mal podemos nos abster de murmurar que a luta paraeles não foi tão violenta quanto para nós. Cabe ao historiador da literatura decidir;cabe-lhe dizer se estamos começando ou concluindo ou permanecendo agora nomeio de um grande período da prosa de ficção, pois lá embaixo na planíciepouca coisa é visível. Sabemos apenas que certas gratidões e hostilidades nosinspiram; que certos caminhos parecem conduzir à terra fértil, outros à poeira eao deserto; e que talvez valha a pena tentar uma explicação para isso.

Nossa querela não é pois com os clássicos e, se falamos de discordar de

Wells, Bennett e Galsworthy,1 é em parte porque, pelo simples fato de teremexistência corpórea, suas obras trazem uma imperfeição do dia a dia, viva edotada de fôlego, que nos autoriza a tomar com elas as liberdades que bem

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quisermos. Mas também é verdade que, embora por mil dádivas sejamos gratosa eles, reservamos nossa gratidão incondicional a Hardy, a Conrad e, em graumuito menor, ao Hudson de The Purple Land, Green Mansions e Far Away and

Long Ago.2 Wells, Bennett e Galsworthy despertaram tantas esperanças efrustraram-nas de um modo tão persistente que nossa gratidão assume emgrande parte a forma de agradecer-lhes por nos terem mostrado o que poderiamter feito, mas não fizeram; o que nós certamente não poderíamos fazer, mas quetalvez nem desejássemos. Nenhuma frase isolada resumirá a denúncia ou queixaque temos de apresentar contra essa massa de trabalho tão grande em seuvolume e que incorpora tantas qualidades, sejam elas admiráveis, ou o contrário.Se tentássemos formular numa palavra o que queremos dizer, deveríamosafirmar que esses três escritores são materialistas. É por estarem preocupadosnão com o espírito, e sim com o corpo, que eles nos desapontaram, deixando-nosa impressão de que, quanto mais cedo a ficção inglesa lhes der as costas, tãopolidamente quanto possível, e seguir em frente, ainda que apenas para entrar nodeserto, melhor para a alma dela será. Decerto não há palavra isolada que atinjao centro de três alvos distintos. No tocante a Wells, ela cai muitíssimo longe doobjetivo visado. Contudo indica, em nossa opinião, mesmo em seu caso, umafatal mescla em seu gênio, a do grande torrão de barro que se misturou à purezade sua inspiração. Mas Bennett talvez seja o maior culpado dos três, na medidaem que é, de longe, o melhor artesão. É capaz de fazer um livro tão bemconstruído e sólido em sua carpintaria que se torna difícil, para o mais exigentedos críticos, ver por que fenda ou greta pode a decomposição se arrastar paraadentrá-lo. Não há sequer uma folga nos caixilhos das janelas, sequer umarachadura nas tábuas. E se a vida se negasse no entanto a viver lá? Esse é um

risco que o criador de The Old Wives’s Tale,3 que George Cannon, que EdwinClayhanger e inúmeras outras personalidades bem podem pretender tersuperado. Os personagens dele vivem profusa e até imprevistamente, mas faltaperguntar como vivem, e para quê? Parece-nos cada vez mais que eles,abandonando até mesmo a vivenda bem construída em Five Towns, passam otempo todo em algum vagão estofado da primeira classe de um trem, apertandobotões e campainhas sem conta; e o destino para o qual viajam assim com tantoluxo inquestionavelmente se torna, cada vez mais, uma eterna bem-aventurançapassada no melhor hotel de Brighton. Por certo não se pode dizer de Wells que eleseja um materialista a deleitar-se em excesso com a solidez de sua construção.Sua mente é muito generosa em suas afeições para permitir-lhe gastar tempodemais fazendo coisas bem-acabadas e fortes. É um materialista por purabondade de coração, que põe nos ombros um trabalho de que funcionários dogoverno deveriam desincumbir-se, e que na abundância de seus fatos e ideiasmal encontra uma folga para dar realidade, ou se esquece de julgá-la

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importante, à crueza e grosseria de seus seres humanos. Que crítica mais danosapode contudo haver, tanto à sua Terra quanto ao seu Céu, do que dizer que elesserão habitados, aqui e no além, por esses seus Joans e Peters? A inferioridade danatureza de tais personagens não empana os ideais e instituições que porventuralhes sejam proporcionados pela generosidade de seu criador? Nem nas páginasde Galsworthy, por mais que respeitemos profundamente sua integridade ehumanismo, haveremos de encontrar o que buscamos.

Se em todos esses livros colamos então um mesmo rótulo, no qual há amesma palavra, materialistas, queremos dizer com isso que é sobre coisasdesimportantes que seus autores escrevem; que desperdiçam um esforço imensoe uma imensa destreza para fazer com que o trivial e o transitório pareçamduradouros e reais.

Temos de admitir que somos exigentes e, ademais, que achamos difícilexplicar o que é que exigimos para justificar nossa insatisfação. Diferente é omodo pelo qual, em diferentes momentos, formulamos nossa pergunta. Elaporém reaparece, e com maior persistência, quando largamos o romanceterminado num suspiro que alteia: isto vale a pena? Qual a razão de ser de tudoisto? Será que Bennett, com seu magnífico mecanismo de apreensão da vida,veio pegá-la pelo lado errado, por questão de centímetros, devido a um dessespequenos desvios que o espírito humano parece de quando em quando fazer? Avida nos escapa; e talvez, sem vida, nada mais valha a pena. É uma confissão deimprecisão ter de usar uma figura assim como essa, mas mal chegamos aaprimorar o tema se falarmos, como se inclinam a fazer os críticos, de realidade.Admitindo a imprecisão que aflige toda a crítica de romances, arrisquemo-nospois à opinião de que para nós, neste momento, é mais comum que a forma deficção em voga antes deixe de alcançar que assegure aquilo que estamosprocurando. Quer a chamemos de espírito ou vida, de verdade ou realidade, isso,essa coisa essencial, já mudou de posição e se nega a estar ainda contida emvestes tão inadequadas quanto as que fornecemos. Não obstante prosseguimos,perseverante e conscienciosamente, a construir nossos 32 capítulos de acordocom um plano que deixa cada vez mais de assemelhar-se à visão de nossamente. Muito do enorme esforço narrativo para provar a solidez, a parecença devida, não só é trabalho jogado fora, como também trabalho mal direcionado queacaba por obscurecer e apagar a luz da concepção. O escritor parece obrigado,não por sua livre vontade, mas por algum tirano inescrupuloso e poderoso que otem em servidão, a propiciar um enredo, a propiciar comédia, tragédia, intrigasde amor e um ar de probabilidade no qual o todo é embalsamado de modo tãoimpecável que, se todos os personagens se erguessem, adquirindo vida, achar-se-iam até o último botão de seus casacos vestidos pela moda em vigor. O tirano éobedecido; o romance é cozido ao ponto. Mas às vezes, e com frequência cadavez maior à medida que o tempo passa, desconfiamos de uma dúvida

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momentânea, de um espasmo de rebelião, enquanto as páginas vão sendoenchidas ao modo habitual. A vida é assim? Devem ser assim os romances?

Olhe para dentro e a vida, ao que parece, está muito longe de ser “assimcomo isso”. Examine a mente comum num dia comum por um momento.Miríades de impressões recebe a mente – triviais, fantásticas, evanescentes, ougravadas com a agudeza do aço. E é de todos os lados que elas chegam, numjorro incessante de átomos inumeráveis; ao cair, ao transmutar-se na vida desegunda ou terça-feira, o acento cai de um modo que difere do antigo; não éaqui, mas lá, que o momento de importância chega; assim pois, se o escritorfosse um homem livre, e não um escravo, se ele pudesse escrever o que bemquisesse, não o que deve, se pudesse basear sua obra em sua própria emoção, enão na convenção, não haveria enredo, nem comédia, nem tragédia, nemcatástrofe ou intriga de amor no estilo aceito e, talvez, nem um só botão pregadocomo o que os alfaiates da Bond Street estipulam. A vida não é uma série deóculos que, arrumados simetricamente, brilham; a vida é um halo luminoso, umenvoltório semitransparente que do começo ao fim da consciência nos cerca.Não é missão do romancista transmitir esse espírito variável, desconhecido eincircunscrito, seja qual for a aberração ou a complexidade que ele possaapresentar, com o mínimo de mistura possível do que lhe é alheio e externo? Nãoestamos propondo apenas sinceridade e coragem; sugerimos que a matériaapropriada à ficção difere um pouco do que o hábito nos levaria a crer que fosse.

É pelo menos de um modo assim como esse que tentamos definir acaracterística que distingue a obra de vários autores jovens, entre os quais JamesJoy ce é o mais notável, da de seus predecessores. Eles se esforçam para chegarmais perto da vida e para preservar com mais sinceridade e exatidão o que lhesinteressa e comove, mesmo que para isso tenham de se livrar da maioria dasconvenções normalmente seguidas pelo romancista. Registremos os átomos, àmedida que vão caindo, na ordem em que eles caem na mente, e tracemos opadrão, por mais desconexo e incoerente na aparência, que cada incidente ouvisão talha na consciência. Não tomemos por certo que seja mais no julgadocomumente grande do que no julgado comumente pequeno que a vida existe demodo mais completo. Quem quer que tenha lido Retrato do artista quando jovemou, livro que promete ser muito mais interessante, o Ulysses, ora em publicaçãona Little Review, há de se ter aventurado a alguma teoria desse tipo quanto àintenção de Joy ce. De nossa parte, com o fragmento que temos pela frente,aventuramo-nos mais a fazê-la do que a sustentá-la; porém, seja qual for aintenção do todo, não pode haver nenhuma dúvida de que sua sinceridade éprofunda e o resultado, ainda que o julguemos difícil ou desagradável,inegavelmente importante. Em contraste com os que chamamos de materialistas,Joy ce é espiritual; preocupa-se em revelar, custe o que custar, as oscilaçõesdessa flama interior tão recôndita que dispara mensagens pelo cérebro e, a fim

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de preservá-la, desconsidera com extrema coragem tudo o que lhe pareçafortuito, seja a probabilidade, seja a coerência ou qualquer um dessesbalizamentos que há gerações têm servido para amparar a imaginação de umleitor, quando instada a supor o que ele não pode ver nem tocar. A cena nocemitério, por exemplo, com seu brilho e sordidez, sua incoerência, seus súbitoslampejos de significação, chega indubitavelmente tão perto da própria essênciada mente que é difícil não aclamá-la, pelo menos numa primeira leitura, comoobra-prima. Se é a vida em si que queremos, aqui a temos decerto. De fato,encontramo-nos a tentear, de modo meio desajeitado, se tentamos dizer o quealém disso desejamos ainda e por que razão uma obra de tal originalidade nãoconsegue comparar-se porém, pois devemos tomar altos exemplos, a Juventude

ou a O prefeito de Casterbridge.4 Não o consegue por causa da comparativapobreza da mente do escritor, poderíamos dizer simplesmente e liquidar aquestão. Mas é possível insistir mais um pouco e indagar se não nos caberelacionar nossa impressão de estar num quarto claro, porém pequeno, fechado,restrito, mais do que desimpedido e alargado, a alguma limitação imposta pelométodo, bem como pela mente. Será o método que inibe a força criadora? Serádevido ao método que não nos sentimos joviais nem magnânimos, mas centradosnum ego que, a despeito de seu tremor de suscetibilidade, nunca abrange nemcria o que está fora de si e mais além? A ênfase posta na indecência, talvezdidaticamente, contribui para o efeito de algo isolado e anguloso? Ou será apenasque em qualquer esforço tão original assim se torna muito mais fácil, emparticular para os contemporâneos, sentir o que está faltando do que indicar o queé dado? Seja como for, é um erro ficar de fora examinando “métodos”. Sesomos escritores, todos os métodos estão corretos, qualquer método serve, desdeque expresse o que é nosso desejo expressar; e isso nos traz mais perto, se somosleitores, da intenção do romancista. O método em pauta tem o mérito de nostrazer mais perto do que fomos preparados para tomar por vida em si mesma; aleitura do Ulysses pôde sugerir como é grande a parte da vida que se ignora ou se

exclui, assim como foi um choque abrir Tristram Shandy ou mesmo Pendennis 5e por eles se convencer não só de que há outros aspectos da vida, mas tambémde que esses são, além disso, mais importantes.

Como quer que seja, o problema com o qual o romancista se defronta hoje,como supomos ter ocorrido no passado, é inventar meios de estar livre pararegistrar o que escolhe. Ele tem de ter a coragem de dizer que o que lhe interessanão é mais “aquilo”, mas “isto”: e apenas a partir “disto” é que deve construirsua obra. Para os modernos, o ponto de interesse, “isto”, muito provavelmentejaz nas obscuras paragens da psicologia. O acento cai de imediato, porconseguinte, de modo um pouco diferente; a ênfase é posta numa coisa até entãoignorada; de imediato se torna necessária uma outra ideia de forma, de difícil

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apreensão por nós e, para nossos predecessores, incompreensível. Ninguémsenão um moderno, ninguém talvez senão um russo, sentiria o interesse dasituação que Tchekhov transformou no conto por ele intitulado “Gússev”.Soldados russos doentes estão deitados no navio que os leva de volta à Rússia.Fragmentos da conversa entre eles e alguns de seus pensamentos nos são dados;um dos soldados então morre e é retirado dali; a conversa continua entre osoutros, por algum tempo, até morrer o próprio Gússev, que, “como se fosse umacenoura ou um rabanete”, é jogado no mar. A ênfase é posta em lugares tãoinesperados que a princípio nem parece que há ênfase mesmo; depois, quando osolhos se acostumam à penumbra e distinguem no ambiente as formas das coisas,é que vemos como o conto é inteiriço, como é profundo e como Tchekhov, emfiel obediência à sua visão, optou por isto, por aquilo e pelo restante, colocando-osjuntos para compor algo novo. Mas é impossível dizer “isto é cômico”, ou “aquiloé trágico”, e nem sequer estamos certos, já que os contos, pelo que nos foiensinado, devem ser curtos e conclusivos, de que o texto em questão, sendo vagoe inconclusivo, deva mesmo ser chamado de conto.

Como as observações mais elementares sobre a moderna ficção inglesadificilmente podem evitar alguma alusão à influência russa, corre-se o risco desentir, se os russos são mencionados, que escrever sobre qualquer ficção, excetoa deles, é perda de tempo. Se é entendimento de alma e coração que queremos,onde mais haveremos de encontrá-lo com comparável profundidade? Se jáestamos cansados de nosso próprio materialismo, o menos considerável de seusromancistas tem, por direito de nascença, uma natural reverência pelo espíritohumano. “Aprende a te fazer semelhante aos outros… Mas que essa empatia nãoprovenha da mente – pois com a mente é fácil –, e sim do coração, com amor

por eles.”6 Em cada grande escritor russo temos a impressão de perceber ostraços de um santo, caso a empatia pelos sofrimentos alheios, o amor pelosoutros, o esforço para alcançar algum objetivo digno das mais rigorosasexigências do espírito constituam a santidade. É o santo neles que nosdesconcerta, fazendo-nos sentir nossa própria banalidade irreligiosa etransformando muitos de nossos famosos romances em mero embuste e falsobrilho. Inevitavelmente talvez, as conclusões da mentalidade russa, assimcompreensiva e compassiva, são da maior tristeza. Seria até mais exato falar dainconcludência da mentalidade russa, tendo em vista que não há mesmo resposta,que a vida, se examinada honestamente, faz uma pergunta atrás da outra, asquais devem ser deixadas a repercutir sem parar, depois de acabada a história,numa interrogação sem esperança que nos enche de um desespero profundo eenfim talvez ressentido. Bem pode ser que eles estejam certos; veem mais longedo que nós, isso é inconteste, e sem os grandes impedimentos de visão que temos.Mas talvez vejamos algo que lhes escapa, senão por que essa voz de protesto viriaimiscuir-se em nossa melancolia? A voz de protesto é a de uma outra e antiga

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civilização que parece ter criado em nós o instinto para desfrutar e lutar, mais do

que para compreender e sofrer. De Sterne a Meredith,7 a ficção inglesa dátestemunho de nosso natural deleite com o humor e a comédia, com a beleza daterra, com as atividades do intelecto e o esplendor do corpo. Mas quaisquerdeduções que possamos tirar da comparação entre duas ficções tãoimensuravelmente distantes são vãs, a não ser, de fato, por nos cumularem deuma visão das infinitas possibilidades da arte e nos lembrarem que não há limitealgum no horizonte, que nada – nenhum “método”, nenhuma experiência, nemmesmo a mais extravagante – é proibido, exceto a falsidade e o fingimento. “Amatéria apropriada à ficção” não existe; tudo serve de assunto à ficção, todos ossentimentos, todos os pensamentos; cada característica do cérebro e do espíritoentra em causa; nenhuma percepção é descabida. E, se pudermos imaginar aarte da ficção bem viva e presente em nosso meio, ela mesma há de pedir semdúvida que a provoquemos com transgressões, como pedirá que a respeitemos eamemos, pois assim sua juventude se renova e sua soberania estará garantida.

Publicado pela primeira vez em 10 abr. 1919, com o título “Romancesmodernos”, no Times Literary Supplement, e revisado por Virginia Woolfpara inclusão no primeiro volume de The Common Reader (1925), o únicolivro de ensaios que ela mesma organizou e publicou em vida.

1. Os romancistas ingleses H. G. Wells (1866-1946), Arnold Bennett (1867-1931) e John Galsworthy (1867-1933), todos então no auge da fama. [N. T.]2. Thomas Hardy (1840-1928), Joseph Conrad (1857-1924) e William HenryHudson (1841-1922). Este último, nascido na Argentina, escreveu, além deromances, contos ambientados na América do Sul e, como naturalista, tratadossobre a avifauna de La Plata. [N. T.]3. Arnold Bennett. Os dois nomes seguintes, Cannon e Clayhanger, são depersonagens de outros livros do autor. [N. T.]4. No original, Youth (1902), de Conrad; The Mayor of Casterbridge (1886), deHardy. [N. T.]5. No original, The Life and Opinions of Tristram Shandy (1759-67), de LaurenceSterne; The History of Pendennis (1848-50), de W. M. Thackeray. [N. T.]6. O conto “Gússev”, aqui citado, estava incluído no livro The Witch and OtherStories (1918), de Anton Tchekhov (1848-1904), traduzido do russo para o inglêspor Constance Garnett. [N. T.]7. Laurence Sterne (1713-68); George Meredith (1828-1909). [N. T.]

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SUGESTÕES DE LEITURA

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FICÇÃO

The Voyage Out. Londres: Duckworth, 1915.

The Mark on the Wall. Londres: Hogarth Press, 1917 (reimp. em The CompleteShorter Fiction).

Night and Day. Londres: Duckworth, 1919.

Kew Gardens. Londres: Hogarth Press, 1919 (reimp. em The Complete ShorterFiction).

Monday or Tuesday. Londres: Hogarth Press, 1921 (reimp. em The CompleteShorter Fiction).

Jacob’s Room. Londres: Hogarth Press, 1922.

Mrs. Dalloway. Londres: Hogarth Press, 1925.

To the Lighthouse. Londres: Hogarth Press, 1927.

Orlando: A Biography. Londres: Hogarth Press, 1928.

The Waves. Londres: Hogarth Press, 1931.

Flush: A Biography. Londres: Hogarth Press, 1933.

The Years. Londres: Hogarth Press, 1937.

Roger Fry: A Biography. Londres: Hogarth Press, 1940.

Between the Acts. Londres: Hogarth Press, 1941.

A Haunted House and Other Short Stories, org. Leonard Woolf. Londres: HogarthPress, 1943.

Mrs. Dalloway’s Party: A Short Story Sequence, in Stella McNichol (org.).Londres: Hogarth Press, 1973 (reimp. em The Complete Shorter Fiction).

The Complete Shorter Fiction of Virginia Woolf, in Susan Dick (org.). Londres:Hogarth Press, 1985.

ENSAIO

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Mr. Bennett and Mrs. Brown. Londres: Hogarth Press, 1924.

The Common Reader. Londres: Hogarth Press, 1925. The Common Reader: Firstseries. Boston: Mariner Books, 2002.

A Room of One’s Own. Londres: Hogarth Press, 1929.

The Common Reader: Second Series. Londres: Hogarth Press, 1932.

Three Guineas. Londres: Hogarth Press, 1938.

The Death of the Moth and Other Essays, in Leonard Woolf (org.). Londres:Hogarth Press, 1942.

The Moment and Other Essays, in Leonard Woolf (org.). Londres: Hogarth Press,1947.

The Captain’s Death Bed and Other Essays, in Leonard Woolf (org.). Londres:Hogarth Press, 1950.

Granite and Rainbow, in Leonard Woolf (org.). Londres: Hogarth Press, 1958.

Contemporary Writers, in Jean Guiguet (org.). Londres: Hogarth Press, 1965.

Collected Essays, vols. I-IV, in Leonard Woolf (org.). Londres: Hogarth Press,1966-67.

Books and Portraits, in Mary Lyon (org.). Nova York: Harvest / Harcourt, Brace& Co, 1977.

Women and Writing, in Michèle Barret (org.). Londres: Woman’s Press, 1979.

The London Scene: Five Essays. Londres: Hogarth Press, 1982.

A Woman’s Essays, in Rachel Bowlby (org.). Londres: Penguin, 1992.

The Crowded Dance of Modern Life, in Rachel Bowlby (org.). Londres: Penguin,1993.

Travels with Virginia Woolf, in Jan Morris (org.). Londres: Hogarth Press, 1993.

The Essays of Virginia Woolf, vols. I-VI, in Andrew McNeillie (org.). Londres:Hogarth Press / Nova York: Harcourt, Brace & Co, 1986-92.

TEATRO

Freshwater, in Lucio Ruotolo (org.). Nova York: Harcourt, Brace & Co, 1976.

DIÁRIO

A Writer’s Diary, in Leonard Woolf (org.). Londres: Hogarth Press, 1953.

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Moments of Being, in Jeanne Schulkind (org.). Londres: Hogarth Press, 1978 /Nova York: Harcourt, Brace & Co, 1985.

The Diary of Virginia Woolf, vols. I-IV, in Anne Olivier Bell (org.). Londres:Hogarth Press, 1977-84. Londres: Penguin Books, 1981.

A Passionate Apprentice, in Mitchell Leaska (org.). Londres: Hogarth Press, 1990.

CORRESPONDÊNCIA

The Letters of Virginia Woolf, vols. I-VI, in Nigel Nicolson e Joanne Trautmann(orgs.). Londres: Hogarth Press, 1975-80.

BIOGRAFIA

BELL, Quentin. Virginia Woolf: A Biography. Londres: Hogarth Press, 1972.

CURTIS, Vanessa. Virginia Woolf’s Women. University of Wisconsin Press, 2002.

LEHMANN, John. Virginia Woolf and Her World. Nova York: Harcourt, Brace &Co, 1977.

NATHAN, Monique. Virginia Woolf. Paris: Seuil, 1989.

BRASIL

FICÇÃO

Passeio ao farol, trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Labor, 1976.

Uma casa assombrada, trad. José Antonio Arantes. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1981.

Os anos, trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Osasco:Novo Século, 2011.

Objetos sólidos, trad. Hélio Pólvora. São Paulo: Siciliano, 1985.

Ao farol, trad. Luiza Lobo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.

A cortina da tia Ba, trad. Ruth Rocha. São Paulo: Ática, [1993] 1999.

Noite e dia, trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Orlando, trad. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1978] 2003.

O quarto de Jacob, trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1980] 2003.

A casa de Carlyle e outros esboços, trad. Carlos Tadeu Galvão. Rio de Janeiro:

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Nova Fronteira, 2004.

Flush − memórias de um cão, trad. Ana Ban. Porto Alegre: L&PM, 2004.

Contos completos, trad. Leonardo Fróes. São Paulo, Cosac Naify, 2005.

Cenas londrinas, trad. Myriam Campelo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

Mrs. Dalloway, trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1980]2006.

Entre os atos, trad. Ly a Luft. Osasco: Novo Século, 2008.

A viagem, trad. Lya Luft. Osasco: Novo Século, 2008.

As ondas, trad. Ly a Luft. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1981] 2004. Osasco:Novo Século, 2011.

Mrs. Dalloway, trad. Claudio Alves Marcondes. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Mrs. Dalloway, trad. e notas Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

Mrs. Dalloway, trad. Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2012.

ENSAIO

Um teto todo seu, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Kew Gardens, trad. Patrícia de Freitas Camargo e José Arlindo de Castro. SãoPaulo: Paz e Terra, série Leitura, 1997.

O leitor comum, sel. e trad. Luciana Viégas. Rio de Janeiro: Graphia, 2007.

Profissões para mulheres e outros artigos feministas, sel. [de sete textos] e trad.Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2012.

O valor do riso e outros ensaios, trad. e notas Leonardo Fróes. São Paulo: CosacNaify, 2014.

DIÁRIO

Momentos de vida, in Jeanne Schulkind (org.), trad. Paula Maria Rosas. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1986.

Os diários de Virginia Woolf, sel., trad. e notas José Antonio Arantes. São Paulo:Companhia das Letras, 1989.

BIOGRAFIA

BELL, Quentin. Virginia Woolf: uma biografia (1882-1941), trad. Ly a Luft. Rio de

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Janeiro: Guanabara, 1988.

LEHMANN, John. Virginia Woolf, trad. Isabel do Prado. Rio de Janeiro: Zahar,col. Vidas Literárias, 1975.

MARDER, Herbert. Virginia Woolf − A medida da vida, trad. Leonardo Fróes. SãoPaulo: Cosac Naify, 2011.

STRATHERN, Paul. Virginia Woolf em 90 minutos, trad. Maria Luiza Borges. Riode Janeiro: Zahar, 2009.

SOBRE A AUTORA

ABEL, Elisabeth. Virginia Woolf and the Fictions of Psychoanalysis. Chicago: TheUniversity of Chicago Press, 1993.

ALLEN, Judith. Virginia Woolf and the Politics of Language. Edimburgo:Edinburgh University, 2013. [e-book]

ALT, Christina. Virginia Woolf and the Study of Nature. Cambridge: CambridgePress, 2013. [e-book]

AUERBACH, Eric. Das französische Publikum des 17. Jahrhunderts. Munique: M.Hueber, 1933.

BARTHES, Roland. Le Grain de la voix. Entretiens 1962-1980. Paris: Seuil, 1981.

BEER, Gillian. Virginia Woolf: The Common Ground. Edimburgo: EdinburghUniversity Press, 1996.

BRUGIÈRE, Bernard. “En relisant Mrs. Dalloway” (prefácio), in Virginia Woolf,Mrs. Dalloway, trad. Marie-Claire Pasquier. Paris: Gallimard, col. Folio,1994.

CARAMAGNO, Thomas. The Flight of the Mind: Virginia Woolf’s Art and ManicDepressive Illness. Los Angeles: University of California Press, 1992.

CARAMAGNO, Thomas. The Flight of the Mind: Virginia Woolf’s Art and Manic-Depressive Illness. Los Angeles: University of California Press, 1992.

DALGARNO, Emily. Virginia Woolf and the Migrations of Language. Cambridge:Cambridge Press, 2013. [e-book]

DUSINBERRE, Juliet. Virginia Woolf’s Renaissance: Woman Reader or CommonReader? Iowa: University of Iowa Press, 1997.

FLEISHMAN, Avrom. Virginia Woolf: A Critical Reading. Baltimore, Mary land:The Johns Hopkins University Press, 1975.

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GOLDMAN, Jane. The Feminist Aesthetics of Virginia Woolf. Cambridge:Cambridge Press, 1998.

GOLDMAN, Mark. The Reader’s Art: Virginia Woolf as Literary Critic. TheHague, Netherlands: Mouton & Co B. v. Publishers, 1976.

HUSSEY, Mark. The Singing of the Real World: The Philosophy of Virginia Woolf’sfiction. Ohio: Ohio State University Press, 1986.

LAURENCE, Patricia. The Reading of Silence: Virginia Woolf in the EnglishTradition. Stanford: Stanford University Press, 1991.

MARCUS, Jane. Virginia Woolf and Bloomsbury. Londres: Macmillan, 1987.

______. New Feminist Essays of Virginia Woolf. Londres: Macmillan, 1981.

ROE, Sue. Writing and Gender: Virginia Woolf’s Writing Practice. Nova York:Harvester Wheatsheaf, Saint Martin’s Press, 1990.

ROSEMAN, Ellen Bayuk. A Room of One’s Own: Women Writers and the Politicsof Creativity. Nova York: Tway ne Publishers, 1995.

SCHLACK, Beverly Ann. Continuing Presences: Virginia Woolf’s Use of LiteraryAllusion. Pennsy lvania: Pennsy lvania University Press.

WILLIANS, Raymond. “The Bloomsbury Fraction”, in Problems in Materialismand Culture. Londres: Verso, 1980, pp. 148-69.

BRASIL

BRADBURY, Malcolm. “Virginia Woolf”, in O mundo moderno: dez grandesescritores, trad. Paulo Henriques Britto, pref. Melvyn Bragg. São Paulo:Companhia das Letras, 1989.

MEYER, Augusto. “Evocação de Virginia Woolf”, in A chave e a máscara. Rio deJaneiro: Edições O Cruzeiro, 1964.

PEREIRA, Lucia Miguel. “Dualidade de Virginia Woolf” (sobre Orlando),“Crítica e feminismo” (sobre O leitor comum e Um teto todo seu), “O BigBen e o carrilhão fantasista” (sobre Mrs. Dalloway e Ao farol) e“Assombração” (sobre The Haunted House (antologia dos Contos)) inEscritos da maturidade: seleta de textos publicados em periódicos (1944

-1959), pesq. bibliog., sel. e notas Luciana Viégas, 2 ed. Rio de Janeiro:Graphia / Fundação Biblioteca Nacional, [1994] 2005.

SÜSSEKIND, Flora. “A ficção como inventário do tempo. Nota sobre VirginiaWoolf”, in A voz e a séria. Rio de Janeiro / Belo Horizonte: 7 Letras / ufmg,1998.

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SOBRE A AUTORA

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ADELINE VIRGINIA STEPHEN nasceu em 25 de janeiro de 1882, emLondres. Seu pai, Leslie Stephen, autor de livros como History of English Thoughtin the Eighteenth Century (1876), era filho do historiador James Stephen e irmãode James Fitzjames Stephen, conhecido advogado e autor de livros jurídicos.Educada em casa, numa época em que a formação universitária era vedada àsmulheres, Virginia se beneficiou desde cedo da atmosfera literária que aíprevalecia, tendo acesso irrestrito à grande biblioteca do pai. Leitora voraz aindaem criança, era muito menina quando passou a redigir, com sua irmã Vanessa eo irmão Thoby, um jornalzinho para a distração da família, o Hyde Park GateNews. Em aulas particulares, estudou latim com Clara Pater, desde os dezesseisanos, e grego com Janet Case, a partir dos vinte, línguas nas quais se iniciara emcursos ministrados no setor feminino do King’s College, em Londres.

Sua mãe, Julia Stephen, morreu em 1895, quando ela estava com treze anos.Foi o primeiro de muitos golpes que transtornaram a vida da família, com gravesrepercussões sobre a estabilidade psíquica da jovem particularmente sensível.Em 1897, morreu sua meia-irmã Stella, apenas dois meses depois de se casar.Com a morte do pai, em 1904, Virginia e seus irmãos Vanessa, Thoby e Adrianmudaram-se do casarão de 22 Hyde Park Gate, em Kensington, para a 46Gordon Square, o primeiro de seus sucessivos endereços em Bloomsbury, áreacentral de Londres onde viria a se constituir, em torno deles, o famoso grupo deBloomsbury, composto de eruditos, escritores e artistas empenhados em se lançarcomo renovadores. Em 1906, com 26 anos, morreu Thoby Stephen, o irmão quehavia sido o maior companheiro intelectual de Virginia e que trouxera para ogrupo alguns de seus brilhantes colegas da Universidade de Cambridge.

Por esse tempo, Virginia fez a primeira de suas várias viagens pela Europa –uma viagem de navio a Espanha e Portugal lhe daria a ideia para o primeiroromance – e, para garantir seu sustento, passou a escrever para jornais. Em1905, estreou como resenhista do Times Literary Supplement, função que exerceupor toda a vida e que em poucos anos a tornaria muito respeitada como críticaliterária. Começando também a demonstrar um interesse cada vez maisacentuado por questões sociais, ela atuou como voluntária em certas frentesimportantes de luta, mesmo sendo arredia às formas mais tradicionais da política.Em 1905, deu aulas para adultos no Morley College, em cursos para

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trabalhadores. Em 1910, participou da campanha pelo direito de voto dasmulheres.

Em 1912, ao se casar com Leonard Woolf, um dos amigos do grupo deBloomsbury, Virginia Stephen passou a usar o sobrenome do marido. Até então,ela não publicara nenhum livro. Estava com trinta anos. Apesar de uma gravecrise nervosa, em 1913, e de uma tentativa de suicídio, apesar dos problemasrecorrentes que a afligiam desde a adolescência, quando ela encarou a morte emsérie, foi a partir desse momento – e no conturbado período entre as duas guerrasna Europa – que a escritora Virginia Woolf mais se mostrou produtiva em suaobra. Ao primeiro romance, The Voyage Out (1915), logo sucederam Noite e dia(1919), O quarto de Jacob (1922), Mrs. Dalloway (1925), Rumo ao farol (1927),Orlando, uma biografia (1928), As ondas (1931). O renome da autora, jáconsolidado nos círculos literários, chegou então ao grande público, graças emparticular ao sucesso obtido por Orlando, a vida imaginária de uma pessoa que éora homem, ora mulher, e nessa condição de mutante atravessa várias faseshistóricas.

A Hogarth Press, criada por Virginia e Leonard Woolf em 1917, a princípiocomo uma gráfica artesanal para imprimir folhetos, tornou-se com o tempo umaeditora ativa e importante. Além de livros da própria Virginia, publicou outrosautores modernistas, como T. S. Eliot e Katherine Mansfield, lançou as primeirastraduções de Freud na Inglaterra e também jovens poetas que tiveram depoisgrande projeção, como W. H. Auden, Louis MacNeice e Stephen Spender.

Virginia continuou muito ativa, e cada vez mais voltada para as questõessociais, no início da Segunda Guerra, que a afetou profundamente. Seu últimolivro publicado em vida, a biografia de seu amigo Roger Fry, saiu em julho de1940. Em setembro do mesmo ano, a casa dos Woolf em Londres, naMecklenburgh Place, onde funcionava a Hogarth Press, foi atingida pelobombardeio de aviões nazistas, o que obrigou a editora a se mudar às carreiras.Parte da vizinhança familiar de Bloomsbury, a essa altura, já havia sido destruídapor bombas. Afetada pela brutalidade da guerra, como demonstra em seu diário,e temendo uma nova recaída em crises nervosas, em 28 de março de 1941, ummês depois de terminar de datilografar seu último livro, Between the Acts,publicado postumamente, Virginia Woolf se afogou no rio Ouse, nasproximidades da casa de campo onde ela e o marido se refugiavam em Rodmell,no condado de Sussex.

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© Cosac Naify, 2015

FOTOS: p. 5: Virginia Woolf, c. 1920 © RPS/SSPL/The Image Works;p. 274: Virginia Woolf, c. 1925 © Mansell / Time Life Pictures / Getty Images

COORDENAÇÃO EDITORIAL Florencia FerrariASSISTENTE EDITORIAL Eloah PinaREVISÃO Raquel NakasonePROJETO GRÁFICO Cosac NaifyPRODUÇÃO GRÁFICA Aline Valli

1 edição Cosac Naify Portátil, 2015

Nesta edição, respeitou-se o novoAcordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Woolf, Virginia [1882-1941]A marca na parede e outros contos: Virginia WoolfTradução: Leonardo Fróes

1 edição Cosac Naify PortátilSão Paulo: Cosac Naify, 2015

ISBN 978-85-405-0980-1

1. Contos ingleses 2. Ficção inglesa I. Título.CDD 823

Índices para catálogo sistemático:1. Contos: Literatura inglesa 8231. Ficção: Literatura inglesa 823

COSAC NAIFY

rua General Jardim, 770, 2 andar01223 - 010 São Paulo SP

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cosacnaify.com.br [11] 3218 1444atendimento ao professor [11] 3218 [email protected]

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COSACNAIFY PORTÁTIL

1 Lero-lero, Cacaso2 Khadji-Murát, Liev Tolstói3 A sociedade contra o Estado, Pierre Clastres4 O amante, Marguerite Duras5 O africano, J. M. G. Le Clézio6 Como funciona a ficção, James Wood7 Degas dança desenho, Paul Valéry8 Leão-de-chácara, João Antônio9 O fim da história da arte, Hans Belting

10 Antropologia estrutural, Claude Lévi-Strauss11 Teoria da vanguarda, Peter Bürger12 A prosa do mundo, Maurice Merleau-Ponty13 Carta a D., André Gorz14 A festa de Babette, Karen Blixen15 O som e a fúria, William Faulkner16 A invenção da cultura, Roy Wagner17 Esperando Foucault, ainda, Marshall Sahlins18 Uma criatura dócil, Fiódor Dostoiévski19 O pensamento alemão no século XX – vol. I, Jorge de Almeida e Wolfgang

Bader (orgs.)20 O pensamento alemão no século XX – vol. II, Jorge de Almeida e Wolfgang

Bader (orgs.)21 Estética doméstica, Clement Greenberg22 Este lado do paraíso, Scott Fitzgerald23 Sobre o sacrifício, Marcel Mauss e Henri Hubert24 O olho e o espírito, Maurice Merleau-Ponty25 Ensaio sobre a dádiva, Marcel Mauss26 O cinema do real, Maria Dora Mourão e Amir Labaki (orgs.)27 Performance, recepção, leitura, Paul Zumthor28 A gaivota, Anton Tchekhov

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29 Malagueta, Perus e Bacanaço, João Antônio30 A marca na parede e outros contos, Virginia Woolf