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1 “À serviço da ciência”: a fotografia como instrumento da pesquisa científica no Brasil imperial (1865-1877). Clarissa Franco de Miranda Apresentação "Parmi les inventions qui depuis le commencement de ce siècle ont excité un intérêt universel, celle du Daguerreótype est certainement l'une des plus extraordinaires." 1 No ano de 1839 a invenção da fotografia, sua confiabilidade e precisão técnica foram anunciadas pela Academia de Ciências e Belas Artes de Paris. O invento tornou- se conhecido como obra de Louis Jacques Mandé Daguerre. O protótipo apresentado na capital francesa foi intitulado daguerreótipo. Esse equipamento consistia em uma caixa preta na qual se aplicava uma fina camada de prata polida, sobreposta a uma placa de cobre, que submetida a vapores de iodo, era exposta a luz e revelada a partir de vapores de mercúrio formando uma imagem de alta precisão 2 . Em pouco tempo a novidade se expandiu pelo mundo. Em 1840 a fotografia chega ao Brasil, os mais variados grupos sociais atrelaram a nova técnica diversos valores e significados. O seu alcance, no entanto, não foi tão hegemônico como se poderia pensar. Ainda deveras custosa, portanto utilizada por determinados grupos e instituições, tornara-se um importante elemento de distinção social 3 . Fotografias de família, cartes de visite 4 , cartões-postais, dentre os muitos usos, a técnica “vestiu-se” de 1 “Entre as invenções que têm despertado interesse universal desde o início deste século, o daguerreótipo é certamente um dos mais extraordinários." (Tradução livre). In: Magasin Pittoresque. Paris, França 1839, p.374-376. Disponível no site da Bìbliothéque Nationale de France: http://gallica.bnf.fr/?lang=PT. 2 Ver: BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. (pp. 115-120). 3 Ana Maria Mauad analisa em três séries fotográficas o caráter tipicamente burguês das representações sociais e dos comportamentos da classe dominante no Rio de Janeiro, durante a primeira metade do século XX. Ver: MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: A Produção da Fotografia e o Controle dos Códigos de representação Social da Classe Dominante, no Rio de Janeiro, na Primeira Metade do Século XX. 1990. 340f.: Dissertação (mestrado) em História UFF. 4 A carte de visite era uma modalidade fotográfica feita a partir de um aparelho que permitia fazer de seis a oito clichês em uma mesma placa fotográfica, impressas em tamanho pequenos (5,7x10,8cm). Foi inventada pelo fotógrafo francês André A. Eugène Disdéri e tornou-se modismo mundial durante a década de 1860, provocando o barateamento e a popularização da fotografia. A carte de visite era geralmente trocada entre parentes e amigos. Ver: (BORGES, 2011.p. 115-120); (MAUAD, 1996. p. 73- 98); (LIMA, 2011, p.31).

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“À serviço da ciência”: a fotografia como instrumento da pesquisa científica no

Brasil imperial (1865-1877).

Clarissa Franco de Miranda

Apresentação

"Parmi les inventions qui depuis le commencement de ce siècle ont excité un

intérêt universel, celle du Daguerreótype est certainement l'une des plus

extraordinaires."1

No ano de 1839 a invenção da fotografia, sua confiabilidade e precisão técnica

foram anunciadas pela Academia de Ciências e Belas Artes de Paris. O invento tornou-

se conhecido como obra de Louis Jacques Mandé Daguerre. O protótipo apresentado na

capital francesa foi intitulado daguerreótipo. Esse equipamento consistia em uma caixa

preta na qual se aplicava uma fina camada de prata polida, sobreposta a uma placa de

cobre, que submetida a vapores de iodo, era exposta a luz e revelada a partir de vapores

de mercúrio formando uma imagem de alta precisão 2.

Em pouco tempo a novidade se expandiu pelo mundo. Em 1840 a fotografia

chega ao Brasil, os mais variados grupos sociais atrelaram a nova técnica diversos

valores e significados. O seu alcance, no entanto, não foi tão hegemônico como se

poderia pensar. Ainda deveras custosa, portanto utilizada por determinados grupos e

instituições, tornara-se um importante elemento de distinção social3. Fotografias de

família, cartes de visite4, cartões-postais, dentre os muitos usos, a técnica “vestiu-se” de

1“Entre as invenções que têm despertado interesse universal desde o início deste século, o daguerreótipo é

certamente um dos mais extraordinários." (Tradução livre). In: Magasin Pittoresque. Paris, França – 1839,

p.374-376. Disponível no site da Bìbliothéque Nationale de France: http://gallica.bnf.fr/?lang=PT. 2 Ver: BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

(pp. 115-120). 3Ana Maria Mauad analisa em três séries fotográficas o caráter tipicamente burguês das representações

sociais e dos comportamentos da classe dominante no Rio de Janeiro, durante a primeira metade do

século XX. Ver: MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: A Produção da Fotografia e o Controle

dos Códigos de representação Social da Classe Dominante, no Rio de Janeiro, na Primeira Metade do

Século XX. 1990. 340f.: Dissertação (mestrado) em História UFF. 4 A carte de visite era uma modalidade fotográfica feita a partir de um aparelho que permitia fazer de seis

a oito clichês em uma mesma placa fotográfica, impressas em tamanho pequenos (5,7x10,8cm). Foi

inventada pelo fotógrafo francês André A. Eugène Disdéri e tornou-se modismo mundial durante

a década de 1860, provocando o barateamento e a popularização da fotografia. A carte de visite era

geralmente trocada entre parentes e amigos. Ver: (BORGES, 2011.p. 115-120); (MAUAD, 1996. p. 73-

98); (LIMA, 2011, p.31).

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arte5 e propunha um diálogo entre a fotografia e a pintura, por outro lado foi

enormemente utilizada como um instrumento da ciência. A fotografia foi considerada a

partir daí, um objeto preciso de análise. Os naturalistas trouxeram para suas pesquisas a

fotografia como parte do método científico. Em sociedades que ansiavam pelo

maquinário, pelo inovador, pelo progresso, a fotografia é absorvida rapidamente, sendo

ela própria um grande experimento. Considerada o reflexo da realidade impresso em

papel, viria para dar à ciência maior confiabilidade e precisão.

Entre os séculos XVIII e XIX as chamadas expedições científicas atreladas ao

sentido cosmopolita do imperialismo europeu, se espalhavam por todo o mundo.

Seguindo um padrão sistemático de estudo e pesquisa, os naturalistas visavam analisar e

classificar os lugares visitados, sua natureza, sua cultura e seus nativos. Os registros

dessas experiências, relações e estranhamentos compõem a parte mais considerável de

fontes para o presente trabalho.

Em meio às discussões sobre uma Teologia Natural6 e sobre os princípios da

teoria evolutiva, vários cientistas vieram ao Brasil, trazendo consigo aprendizes,

especialistas, curiosos, e um outro profissional, o fotógrafo, este agora indispensável

nos trabalhos de desbravamento e levantamento de dados das expedições. As imagens

pré-estabelecidas sobre o Império brasileiro foram reproduzidas largamente. A idéia de

um paraíso tropical selvagem e exótico estava presente tanto nos relatos dos viajantes,

como nas ilustrações e fotografias.

É a partir da atuação de cientistas no Brasil em um período de crise no

paradigma científico que busco compreender a produção de imagens fotográficas a

serviço da ciência, entendendo sua apropriação como um instrumento do método

empírico. Compreendendo como o Brasil foi inserido no debate científico e como os

5 A dimensão artística da fotografia, principalmente no período do reconhecimento oficial da técnica, foi

encarada com resistência e até negação por muitos artistas e conhecedores de arte, a discussão sobre a

natureza artística da fotografia é suscitada até hoje. Este tipo de rejeição explica, pelo menos

parcialmente, porque tantos fotógrafos daquela época passaram a produzir imagens fotográficas a partir

de critérios que norteavam o universo da pintura. Dialogar com a tradição era, talvez, o caminho mais

seguro para validar a nova forma de olhar e dar a ver o mundo. (BORGES, 2005.p.40-50). 6 Refiro-me aqui à Teologia Natural, como o pensamento científico que tenta explicar a origem orgânica

e a ocorrência de fenômenos naturais por meio da ação de Deus, procurando conciliar ciência e religião.

Ver: FARIA, Felipe. Georges Cuvier: do estudo dos fósseis à paleontologia. São Paulo: Editora 34, 2012.

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cientistas se utilizaram dos registros de casos locais para compor um entendimento da

ciência universal.

De qualquer forma, digo e repito, meu tio era um verdadeiro cientista.

Apesar de quebrar por vezes suas amostras pela sua brusquidão, reunia a

visão do mineralogista ao gênio do geólogo. Com seu martelo, seu buril de

aço, sua agulha imantada, seu maçarico e seu frasquinho de ácido nítrico, era

um grande profissional. Pela fratura, pelo aspecto, pela dureza, pela

fusibilidade, pelo som, pelo cheiro ou pelo gosto, era capaz de classificar sem

hesitação um mineral qualquer entre as seiscentas espécies com que a ciência

conta hoje em dia.

[...] O gabinete era um verdadeiro museu, onde todas as amostras

estavam etiquetadas na mais perfeita ordem, de acordo com as três grandes

divisões dos minerais: inflamáveis, metálicos e litóides.

[...] Confesso que me entreguei com grande apetite às ciências

geológicas. Tinha sangue de mineralogista nas veias e nunca me entediei na

companhia de meus preciosos pedregulhos. (VERNE, 2002, pp. 2-4)

Júlio Verne, em seu livro Viagem ao centro da Terra de 1864, descreve a

história do cientista Otto Lidenbrock, um professor de geologia e mineralogia obsessivo

pelo método científico, que junto ao seu sobrinho Axel, empreende uma viagem no

interior de um vulcão rumo ao centro do planeta. Apesar de o livro tratar de uma

narrativa ficcional, se faz presente ao longo da aventura, uma gama de nomenclaturas,

pressupostos técnicos e questionamentos aos moldes do pensamento empirista do século

XIX. Como nos esclarece Nicolau Sevcenko, “todo escritor possui uma espécie de

liberdade condicional de criação, uma vez que os seus temas, motivos, valores, normas

ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo” (SEVCENKO,

1999, p.20) Assim compreendido, podemos entender que Verne traz à luz a

representação de uma sociedade pautada pelo cientificismo.

Em primeiro de abril de 1865, “bem ao modo de Otto Lindenbrock”, o cientista

suíço Louis Agassiz professor de Zoologia e Geologia da Universidade de Harvard,

embarca para o Brasil liderando a Thayer Expedition. Composta aproximadamente por

quinze integrantes, dentre eles o geólogo Charles Frederick Hartt7, “talvez seu sobrinho

Axel”, a comissão permanece no “Império Tropical” 8 até o seguinte ano de 1866.

Durante a viagem de aproximadamente um mês, de Nova Iorque ao Rio de Janeiro,

“Agassiz ocupou-se de ministrar palestras aos seus jovens assistentes, como forma de

7 Hartt viria mais tarde à frente de outras expedições. 8 Termo utilizado por Lilia Moritz Schwarcz para referir-se ao Brasil. Ver: SHWARCZ, Lilia Moritz. As

barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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dirigi-los às pesquisas e, sobretudo, às conclusões que lhe interessavam” (FREITAS,

2001, p. 54). Em seu livro Viagem ao Brasil 1865-18669, o professor deixa claro os

objetivos da expedição.

“[...] A origem da vida é o grande problema do dia. Como o mundo orgânico

se tornou o que é? Eis uma questão sobre a qual devemos querer que a nossa

viagem traga algum esclarecimento. Como se tornou o Brasil habitado pelos

animais e plantas que nele vivem atualmente? Quais os seres que o povoaram

nas eras passadas? Que razões há para crer que o atual estado de coisas nesse

país, derive de um modo qualquer de um estado de coisas anterior?...”

(AGASSIZ, 1975, pp. 22-23)

Agassiz demonstra em suas palavras uma preocupação em discutir sobre as

idéias trazidas pelo livro A Origem das Espécies. Em sua última questão supracitada, ele

indaga se existem razões para se acreditar em uma possível evolução. Prestigiosamente

reconhecido como um dos grandes nomes da Teologia Natural10, Louis Agassiz busca

no Brasil a comprovação de suas teorias criacionistas e poligênicas11. Com o estudo dos

peixes da Bacia Amazônica, das raças humanas e da geologia brasileira, o professor

entendia que suas “profecias” sobre a não-relação entre espécies distintas e sobre

catastrofismo12 estavam sendo atestadas.

Nada mais condizente com tal comprovação do que registrar tais motivos através

da fotografia, já que esta era corriqueiramente referida como a própria “materialidade

9 O livro Viagem ao Brasil 1865-1866 é um conjunto de relatos de Louis Agassiz e Elizabeth Cary

Agassiz, sua esposa, sobre a Expedição Thayer. Escrito a duas mãos, o livro traz relatos em primeira e

terceira pessoa. 10 A Teologia Natural entendida por Agassiz, constituía na imagem do cientista, um ser inspirado , um

profeta que revela a palavra divina dentro da natureza. Ver: FREITAS, Marcus Vinícius de. Hartt:

Expedições pelo Brasil Imperial 1865-1878. São Paulo: Metalivros, 2001. 11 A Poligenia era uma corrente do pensamento científico que obtivera muitos adeptos entre os séculos

XIX e XX, defendia que a humanidade não era una, e teria sido formada por espécies distintas. As teorias

poligênicas eram contrárias a Monogenia, corrente que acreditava que a humanidade seria oriunda de uma

só espécie. (A historiografia atual traz como um dos principais nomes representantes do poligenismo

Louis Agassiz, opositor ao monogenismo de Darwin). Ver: MACHADO, Maria Helena; HUBER, Sasha.

(T)Races of Louis Agassiz: Photography, Body, and Science, Yesterday and Today. São Paulo: Capacete -

29º Bienal de Arte de São Paulo, 2010. 12 A Teoria das Revoluções ou Catástrofes foi desenvolvida pelo naturalista Georges Cuvier, entendendo

que a Terra ao longo de sua história, sofreu a ação de fenômenos catastróficos, principalmente

inundações, que resultaram nas configurações geológicas e biológicas atuais, o que explica, por exemplo,

a ocorrência de fósseis marinhos em regiões distantes da costa. Ver: Faria, Felipe. Georges Cuvier: do

estudo dos fósseis à paleontologia. São Paulo: Editora 34, 2012.

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do real” 13. De certa forma, as fotografias da expedição de Agassiz propunham uma

confirmação de teorias pré-estabelecidas. O professor e seus assistentes contavam com o

auxílio de três fotógrafos. Augusto Stahl, italiano que residia no Rio de Janeiro e

obtivera do imperador D. Pedro II o título de Photographo da Casa Imperial, Walter

Hunnewell14, estudante de Harvard e membro voluntário da expedição e George

Leuzinger15, fotógrafo suíço proprietário da Casa Leuzinger no Rio de Janeiro, que teria

fornecido um conjunto de fotografias paisagísticas especialmente para a expedição.

Stahl e Hunnewel foram os responsáveis pelas séries fotográficas tipológicas que

focavam em sujeitos de “raça pura” e “híbridos”. A primeira, registrando etnias

africanas diversas no Rio de Janeiro e a outra para compor um quadro comparativo,

registrando os tipos “mistos” ou híbridos da Amazônia. Agassiz esperava construir um

grande acervo visual para ilustrar suas idéias sobre as diferenças entre as raças humanas

e as conseqüências da degeneração racial.

Após a Thayer Expedition, em um momento crucial na História Natural, as

teorias de Agassiz estavam sendo cada vez mais questionadas e a aceitação ao

evolucionismo de Darwin caminhava apressadamente. Um dos mais notáveis aprendizes

de Agassiz, o geólogo Charles Frederick Hartt, agora professor da Universidade de

Cornell, empreendeu mais outras grandes expedições exploratórias e de formação

naturalista no Brasil. Em seu contato com os trópicos, Hartt rompe com as idéias

criacionistas de Agassiz e revisa sua posição diante à teoria da ação glacial16 no

13 Termo utilizado de forma figurativa, o trabalho prima pela compreensão da fotografia como uma

representação do real, considerando esta passível de escolhas e modificações, tanto no ato de sua

produção, quanto ao longo do tempo. 14 Hunnewell, chegando ao Rio de Janeiro foi enviado por Agassiz para aprender os rudimentos da

fotografia em um dos estabelecimentos fotográficos da cidade, provavelmente de Leuzinger ou mesmo de

Augusto Stahl. 15 George Leuzinger pertencia a família proprietária da Casa Leuzinger, pioneira no ramo iconográfico no

Brasil. Além de ter produzido uma grande quantidade de litografias da cidade do Rio de Janeiro em

meados de 1840, no início dos anos 1860 instala em seus aposentos uma oficina fotográfica. 16 A Teoria da “Ação Glacial” defendida por Agassiz, consiste na tentativa de explicação da origem das

formações geológicas dos continentes. Observando materiais “transportados” de outras regiões e eras, o

naturalista conclui que a força aplicada a tais materiais, seria produto da ação da água e das geleiras que

no período de degelo das eras glaciais foram esculpindo e deslocando tais massas. Uma vertente da Teoria

das Catástrofes, a qual relaciona esta “força das águas” ao dilúvio presente na Bíblia, é chamada de

“diluvianista”. Para Darwin, a ação da água (em forma líquida ou sólida) muito pouco age e raramente

transporta materiais, acreditando que a denudação (remoção da superfície de uma região por

efeito erosivo), explica como materiais de diferentes eras compõem uma formação geológica. Ver:

(DARWIN, 2014, pp.360-365) e (AGASSIZ, 1975, pp.26-28).

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território brasileiro, defendida em seu livro Geologia e Geografia Física do Brasil de

1870.

Em 1875, são iniciadas as atividades da Comissão Geológica do Império no

Brasil. Guiado pelos anseios das ciências naturais, Hartt propôs a instituição de uma

pesquisa profunda e um levantamento de dados que pudesse fomentar a questão das

formações geológicas e quiçá da origem da vida com um estudo regular do caso

brasileiro. Tal empreendimento contou com o total apoio do Imperador, as promessas de

desenvolvimento da atividade agrícola e mineradora, motivara a criação da comissão.

Talvez não mais do que a possibilidade que se apresentava no horizonte, pois as

pesquisas e os materiais coletados na expedição seriam mostrados no estande brasileiro

da Exposição Universal da Filadélfia17, em 1876. Tal mostra ganhara mais ênfase ainda

com a participação de Marc Ferrez18, fotógrafo da expedição que conseguira registrar

um conjunto grandioso de imagens panorâmicas principalmente de paisagens, da

geomorfologia e do cotidiano de “tipos humanos” do Brasil.

“Se as exposições não podem, ainda, por parte do Brasil significar uma

competição na área industrial, elas têm proporcionado ensejo para que o

Império seja melhor conhecido e apreciado como região de solo fertilíssimo e

nacionalidade pacífica, inteligente e laboriosa”19.

17 As exposições universais movimentavam vários aspectos da vida social, econômica e cultural, eram

grandes “espetáculos da modernidade” e tinham o caráter de publicisar os inventos e mercadorias como

em uma vitrine. Demonstravam além dos produtos disponíveis pelo sistema de fábrica, as crenças e

virtudes do “progresso”, da disciplina do trabalho, do tempo útil e das possibilidades redentoras da

técnica. Promoviam os avanços tecnológicos e científicos, e por outro lado serviam como uma grande

mostra de excentricidades de diversas civilizações do mundo, dando ênfase no caráter cosmopolita e

imperialista do evento. Ver: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições universais; espetáculos da

modernidade do século XIX. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. A Exposição da Filadélfia, realizada em

1876, comemorou oficialmente a passagem do centenário da independência norte-americana, foi a feira

que obteve maior número de expositores e visitantes até então, sendo ultrapassada dois anos depois pela

Exposição de Paris. Dentre os produtos mostrados pela primeira vez ao grande público, estava o telefone

de Alexander Gram Bell. Doze nações possuíam estandes de exibição, o Brasil estava entre elas. Ver:

HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras,

1988 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São

Paulo: Companhia das Letras, 1998. 18 Marc Ferrez nasceu no Rio de Janeiro em 1843. Seu pai Zepherin Ferrez, e seu tio, Marc, escultores

franceses formados pela École dês Beaux-Arts de Paris, haviam chegado ao Rio de Janeiro em 1817,

passando a integrar a Missão Artística Francesa. Marc Ferrez, trabalhou na Casa Leuzinger e ficou

famoso pelo seu ateliê na Rua do Ouvidor e sua vasta atuação compõe ainda hoje um dos maiores acervos

de fotografias do Brasil oitocentista. 19 Advertência que abre as explicações brasileiras para a exposição de 1876. Apud. SHWARCZ, 1998,

pp. 396-397.

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As fotografias da comissão de Hartt, além de um elemento de comprovação,

objetivavam estabelecer um caráter investigativo e documental. Somados a estes

interesses, visava-se a promoção de uma imagem excêntrica e ao mesmo tempo

moderna do Império na Exposição Universal da Filadélfia.

O interesse em estudar o tema mencionado justifica-se por perceber a partir da

experiência de naturalistas vindos ao Brasil, como a fotografia passou tão rapidamente a

ser algo imprescindível na investigação científica. Ciência esta, não delimitada em “do

ou para o Brasil”, mas antes universal, comprometida em responder e questionar teorias

gerais sobre a natureza. Entretanto, busco entender como foi inserido no debate

científico o Império brasileiro, assim como este, incorporado na figura de D. Pedro II e

de seus funcionários letrados, se apropriara de tal prática para erigir e promover uma

imagem de “civilização tropical”, mesmo que eminentemente agrária, atrelada ao

progresso trazido pelo conhecimento científico e tecnológico.

O recorte cronológico situa-se entre os anos de 1865 e 1877, datas limites de

duas expedições científicas em especial, a Thayer Expedition (1865- 1866) e a

Comissão Geológica do Império (1875-1877). Os dois empreendimentos, tendo

resguardadas suas especificidades, apresentavam um interesse comum que os unia, o

progresso da ciência. Tomando a fotografia como um objeto possuidor de historicidade,

pretendo entender a sociedade que recebia, apropriava-se e empregava vários

significados a estas, proporcionando-nos o contato com várias leituras de mundo,

posicionamentos e conflitos. Tornando possível uma compreensão da sociedade e de

suas representações em meados do século XIX.

Objetivos

OBJETIVO GERAL:

Compreender a fotografia como um instrumento da pesquisa científica a partir

da Expedição Thayer e da Comissão Geológica do Império, entre os anos de 1865 a

1876. Atentando aos seus diversos usos, procuro alcançar a experiência social dos

sujeitos atrelada aos interesses, conflitos e diversos significados atribuídos à fotografia.

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OBJETIVOS ESPECÍFICOS:

1. Analisar a fotografia apropriada pelo método empirista como um instrumento

comprobatório em um momento de mudanças e conflitos dentro do pensamento

científico, a partir da atuação de Louis Agassiz e Charles Hartt no Brasil.

2. Entender como o “Império Tropical” foi inserido no discurso científico compondo

um entendimento da ciência universal.

3. Traçar um paralelo das permanências e rupturas entre a pintura romântica e a

fotografia naturalista.

4. Alcançar a experiência social dos sujeitos e suas manifestações em relação a atuação

das expedições científicas no Brasil na segunda metade do século XIX.

5. Problematizar a ligação entre poder e ciência a partir do interesse de empresários e do

próprio Imperador em financiar as pesquisas naturalistas.

Conclusão

A fotografia era considerada uma evidência científica, a “semelhança

garantida”20 fornecia aos estudos naturais o mérito da comprovação. No caso do Brasil

oitocentista, as expedições exploratórias, portanto, se utilizaram da técnica para ilustrar,

analisar e validar suas teorias. Na expedição Thayer, Louis Agassiz em uma carta

destinada ao professor Pierce, salienta sua satisfação em encontrar uma prova da

ocorrência do fenômeno drift21 no Brasil:

“Felizmente descobri ontem, perto do Hotel Bennett, na Tijuca, a

superposição mais visível e menos contestável de drift em rochas

decompostas. A linha de demarcação entre os dois terrenos é perfeitamente

nítida, e quero dela tirar uma boa fotografia.” (AGASSIZ, 1975, p.70)

20 Expressão utilizada por Elizabeth Cary Agassiz, para referir-se a fotografia. (AGASSIZ, 1975, p.171) 21 “Agassiz queria demonstrar a a presença do drift na conformação geológica brasileira. A palavra drift

define as camadas geológicas encontradas na superfície de uma determinada região, que não apresentam

relação com a rocha subjacente. Essa ausência de relação entre a superfície e as rochas subjacentes

significa que o material exposto não se originaria de decomposição das rochas próprias do local. Ou seja,

trata-se de um material ‘transportado’, daí a palavra drift. [...] Agassiz havia proposto [...] a teoria da ação

das geleiras na constituição dos Alpes suíços. Como o material parecia ter sido transportado, somente a

ocorrência de uma força enorme, capaz de mover montanhas, explicaria o modo como esse material

apareceria ‘fora de lugar’. E tal força não era outra senão o deslocamento de imensas massas de gelo, fato

ocorrido na época pleistocenta.” (FREITAS, 2001, p.59)

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Aqui fica bem claro o papel atribuído a fotografia dentro da ciência neste

momento. As palavras do naturalista ganham mais veracidade se forem acompanhadas

de uma “boa fotografia”. Charles Frederick Hartt, em seu livro Geologia e Geografia

Física do Brasil de 1870, se posiciona contrário as teorias de Agassiz.

“Na minha primeira visita à Tijuca, depois da minha chegada ao Brasil, e

depois que o professor Agassiz anunciara a descoberta do drift no Rio, fiquei

impressionado com o aspecto de algumas massas de trape numa vertente

próxima à fazenda Bennett, que pareciam francamente ser erráticas; um

estudo, porém, mais aprofundado levou-me a crer que eram o resultado da

decomposição superficial de um grande dique de trape. [...] cheguei

decididamente à conclusão de que os depósitos superficiais do Rio não eram

drift mas eram devidos de certo modo à decomposição da rocha, como até

então se havia suposto.” (HARTT, 1975, p.50)

Também em nome da “objetividade fotográfica”, para contrapor a teoria da

ocorrência do fenômeno drift na Tijuca, Hartt se utiliza de uma imagem pertencente a

mesma coleção de gravuras22 usadas por Agassiz em seu livro Viagem ao Brasil.

Fig. 1 – LEUZINGER, George. Paisagem da Tijuca, 18- . Coleção D. Theresa Chrsitina Maria, Biblioteca

Nacional, Rio de Janeiro Brasil.

Fig. 2 – Gravura “Boulders at Tijuca”. Geology and Physical Geography of Brazil, Chales Frederick Hart,

1975, p.30. A partir de fotografia de George Leuzinger.

Uma das últimas tentativas de oposição ao evolucionismo configura-se nas

“descobertas” de Agassiz sobre a ocorrência do drift no Brasil. Após uma revisão

teórica Hartt se coloca em oposição às hipóteses de Agassiz sobre a formação geológica

22 As gravuras eram litografadas a partir de fotografias de paisagens do Rio de Janeiro produzidas por

George Leuzinger. Litografia é o processo de reproduzir por impressão os desenhos traçados numa pedra

calcária especial.

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brasileira. Tais disputas fazem com que entendamos as divergências em um período de

mudanças dentro do pensamento científico. Fortemente utilizada pelos dois naturalistas

a técnica fotográfica adentrou a ciência para defender e contrapor. A fotografia, neste

momento ganha outro significado, configura-se como um espaço de conflitos.

Os trabalhos dos fotógrafos, além de auxiliarem as pesquisas científicas,

ajudaram a reforçar ícones da paisagem tropical do Império. As historiadoras Solange

Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho, afirmam que “Apesar de ser símbolo de

modernidade, a fotografia foi absorvida por sociedades tradicionais, que a

transformaram em instrumento de atualização ‘moderna’ de antigos valores, normas e

costumes” (LIMA Apud PINSKY, 2011, p. 31). A técnica havia mudado, mas as poses,

as vestimentas, as paisagens, os objetos e as práticas eram as mesmas que apareciam nas

pinturas e desenhos.

As imagens paisagísticas da pintura romântica23 dos séculos XVIII e XIX são

trazidas com recorrência também nas fotografias deste período. As densas folhagens, as

formações rochosas, a amplidão do território e o exotismo das espécies exprimindo a

exuberância dos trópicos, são elementos comuns às duas categorias. “Eram fortes os

laços a ligar ciências naturais e paisagismo no interior da cultura americana da metade

do século XIX.” (FREITAS, 2001, p. 178). Subordinada à ciência, porém não menos

importante, a arte se fazia presente nos livros, nas exposições e nos museus. Nas

viagens exploratórias, os ilustradores eram encarregados de registrar tudo o que

interessasse à ciência, adornadas pelos motivos românticos, as pinturas técnicas tinham

grande valor estético. Com a inserção da fotografia neste meio, a nova técnica adquiria

praticamente os mesmos objetivos, por isso talvez, imagens tão parecidas.

23 A arte romântica enfatiza os estudos mentais e subjetivos, tais como sentimento, disposição de espírito

e intuição. Valorizava o sublime, o encontro com a imensidão da natureza, no qual o homem reconhecia

sua efemeridade e seu caráter moral. A pintura de paisagens se desenvolveu muito por causa da

fascinação com o meio natural. Ver: LITTLE, Stephen. Ismos: para entender a arte. São Paulo, editora

Globo, 2010.

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Fig. 3 – Gravura Praia da Itapuca (Baía do Rio de Janeiro). Viagem ao Brasil 1865-1866, Louis Agassiz e

Elizabeth Cary Agassiz, 1975, p. 44. Ilustração de Jacques Burkhardt.

Fig. 4 - FERREZ, Marc.Pedra da Itapuca, 1876. Coleção Gilberto Ferrez, Instituto Moreira Salles.

A primeira imagem referida trata-se da “Pedra de Itapuca 1865”, retirada do

livro Viagem ao Brasil, trata-se de uma obra de Jacques Burkhardt que ilustra as

narrativas da Expedição Thayer. Importante percebermos a recorrência da imagem,

agora se tratando de uma fotografia produzida por Marc Ferrez na Comissão Geológica

do Império. A imagem é praticamente a mesma, a técnica, porém, sugere a diferença.

Uma prática não suplanta a outra, estas coexistem nas expedições, ilustradores e

fotógrafos faziam parte do corpo das comissões. A fotografia, no entanto,

processualmente ganha mais espaço na prática científica como elemento de prova.

Por muitas vezes os próprios fotógrafos eram referidos como artistas. Como

podemos observar no relato de Elizabeth Cary Agassiz sobre a experiência da

Expedição Thayer “[...] Hunnewell se aperfeiçoara na arte da fotografia, a fim de estar

em condições de prestar serviços à expedição quando não tivermos mais artistas

conosco.” (AGASSIZ, 1975, p. 53). A arte e a ciência fundiram-se na fotografia, esta

então compreende uma narrativa própria sobre o período estudado e não mais utilizada

como prova ou ilustração.O intento de abordar tal perspectiva se faz importante para

que percebamos as rupturas e as permanências acerca da prática ilustrativa e da prática

fotográfica.

“Civilização e progresso, termos privilegiados da época, eram entendidos não

enquanto conceitos específicos de uma determinada sociedade, mas como modelos

universais.” (SCHWARCZ, 1993, p. 57). Os anseios pela ciência e pela cultura estavam

permeados na sociedade do século XIX. Geralmente tratamos tais interesses atrelados

apenas às elites e ao meio intelectual, nos fechando para outras manifestações e visões

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de mundo. Em um relato contido em Viagem ao Brasil 1865-1866, percebemos pela fala

de um sujeito comum, um determinado juízo e valoração atrelada à ciência.

Meus livros e meu caderno de anotações interessam no mais alto grau

a essa boa gente. Esta manhã, estava eu lendo junto à janela do meu quarto,

quando o índio24 e a mulher se aproximaram; durante alguns minutos,

olharam-me em silêncio, e depois o homem me perguntou se eu não tinha

folhas de algum livro velho, já fora de uso, ou mesmo um pedaço de jornal,

para lhe deixar, quando me fosse embora. “Antigamente disse-me ele, eu

sabia ler um pouco”, e pensava que se voltasse a ler durante algum tempo,

recobraria a ciência perdida. Ficou de nariz comprido quando lhe respondi

que todos os meus livros eram em inglês: foi uma ducha gelada em sua febre

de leitura. Acrescentou então que um dos seus filhos era muito inteligente e

com certeza aprenderia depressa se tivesse recursos para mandá-lo à escola;

[...] ele exclamou: “Ah! Se a Branca não morasse tão longe, eu lhe pedia para

levar minha filha, como criada, para lhe ensinar a ler e a escrever!” Sua

fisionomia inteligente se animou e o tom sinceramente comovido de suas

palavras traduzia bem o desejo que sentia de instruir os filhos.25 (AGASSIZ,

1975, p.123)

O homem acreditava que a instrução e a técnica científica traria uma vida melhor

para seus filhos. Atrelada ao progresso, a ciência e seu porvir poderia apresentar uma

possibilidade de ascensão social. Esse caso nos dá indícios de como a difusão da ciência

era abrangente. Percebemos também manifestações singulares nas fotografias

etnográficas das expedições, geralmente centradas em representações de índios e

negros.

As fotografias produzidas para análises, corporais e frenológicas26, apesar de seu

caráter improvisado, a empanada ao fundo e as posições dos corpos pré-estabelecidas,

nos fazem perceber que o indivíduo aparente na imagem, perde sua condição de sujeito

e, deslocado de seu meio social e cultural, passa a ser basicamente um instrumento da

pesquisa científica. Esses sujeitos, porém, não recebiam tudo isso de forma passiva.

Nosso antigo acampamento pitoresco na Tesouraria [...] serve agora de

‘atelier’ fotográfico. Agassiz passa ali metade dos dias, em companhia de

24 Confusa noção de índio para Agassiz, no decorrer de suas narrativas a palavra índio refer-se com mais

recorrência aos caboclos, tomando ele mesmo tais sujeitos como híbridos. 25 Em uma nota da tradução francesa, traz a seguinte frase: “O desejo do índio foi satisfeito, como se verá

adiante”. No tópico Uma escola para índios, encontra-se a seguinte informação “Por falar em educação

dos índios, vem-me a memória a boa fortuna que tivemos em encontrar um padre francês que forneceu a

Agassiz uma coleção de livros elementares em língua portuguesa. Já os remetemos para o nosso amigo

José Maia, o índio de gosto pelas letras. O bom sacerdote concordou também em encarregar-se do menino

a quem Maia tanto desejava dar instrução.” (AGASSIZ, 1975, p. 128) 26 Frenologia é uma teoria que reivindica ser capaz de conhecer as faculdades intelectuais e morais

(caráter, características da personalidade, grau de criminalidade) através do estudo do crânio humano.

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Hunnewell [...]. O grande obstáculo, porém, são os preconceitos populares.

Entre os índios e os negros reina a superstição de que um retrato absorve

alguma coisa da vitalidade do indivíduo nele representado e que está em

grande perigo de morte próxima quem se deixa retratar. Tal idéia está tão

profundamente arraigada que não tem sido fácil vencer as resistências. Aos

poucos, porém, o desejo deles se verem na imagem vai dominando; o

exemplo de alguns mais corajosos anima os tímidos e os modelos vão se

tornando muito mais fáceis de conseguir do que a princípio. (AGASSIZ,

1975, p. 171)

Mesmo com o mito gerado em torno da técnica, os “objetos da pesquisa”

deixavam transbordar suas condições de sujeitos, demonstrando o interesse em também

serem fotografados. O mito da “realidade”27 talvez chamasse ainda mais atenção.

“No Brasil a ciência penetra primeiro como ‘moda’ e só muito tempo depois

como prática e produção”. (SCHWARCZ, 1993, p.30). Segundo Lilia Moritz Schwarcz

a idéia de ciência, tão valorizada e difundida no Brasil, estava mais atrelada às tentativas

de uma sociedade em construir uma imagem “moderna, industriosa e civilizada”28 do

que propriamente a um compromisso com o avanço das pesquisas científicas. A partir

desta reflexão, percebemos a fotografia para além de uma evidência empírica, mas uma

tentativa de afirmação do progresso.

Em 1874 o Institut de France oferece três medalhas comemorativas à D. Pedro

II, “como uma homenagem da ciência a um de seus protetores mais dignos de respeito”,

encarregando da entrega de tal premiação, Marc Ferrez. Percebemos aí o interesse do

Imperador em apoiar os avanços científicos e o envolvimento de um representante da

ciência, sendo este um fotógrafo.

Ajudou de diferentes maneiras, o trabalho de cientistas como Martius, as

pesquisas de Lund, de Gorceix, dos naturalistas Couty, Goeldi e Agassiz, dos

geólogos O. Derby, Charles Frederick Hartt, do botânico Glaziou, do

cartógrafo Seybold, além de vários outros naturalistas que estiveram no país.

D. Pedro financiou ainda profissionais de áreas diversas, como advogados,

agrônomos, arquitetos, um aviador, professores de escolas primárias e

secundárias, engenheiros, farmacêuticos, médicos, militares, músicos, padres

e muitos pintores. Não à toa que nessa época tenha ficado famosa a frase

proferida pelo jovem monarca brasileiro nos recintos do IHGB: “A ciência

sou eu”. Sem dúvida, uma clara alusão ao dito de Luís XIV [...]. (SWARCZ,

1998, p.131)

27 Refiro-me aqui por “mito da realidade” a noção de que a fotografia seria a materialidade do real. 28 Termos utilizado por Lilia Moritz Schwarcz em O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e

questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Neste ensejo de ligação entre fotografia, ciência e poder, é interessante perceber

que além do interesse de naturalistas, de curiosos e de fotógrafos, outros segmentos das

sociedades apropriaram-se e atrelaram a técnica científica ao progresso. As expedições

eram também apoiadas e financiadas por chefes de Estado, empresários, instituições.

Duas expedições em especial que vieram ao Brasil no recorte temporal referido, foram

chamadas de Expedição Thayer (1865-1866) e Expedições Morgan (1870-1871)29. Tais

empreendimentos levaram o nome de seus principais apoiadores financeiros.

[...] Sr. Nathaniel Thayer, em quem sempre encontrara um benfeitor

solícito das ciências. Certamente não me ocorrera a idéia de invocar seu

apoio para a realização de projeto tão considerável; mas ele tomou a

iniciativa. Depois de escutar com vivo interesse a exposição dos meus planos

de viagem, disse-me: “O Sr. não há de deixar de dar um caráter científico a

tal excursão. Leve consigo seis jovens, e eu me encarregarei das despesas

com eles e com a expedição”. [...] Como ocorre sempre em semelhantes

casos, a nossa expedição, do ponto de vista pecuniário, como sob todos os

outros, levou-nos muito além do previsto. (AGASSIZ, 1975, pp. 9-10)

O reconhecimento das doações era publicamente declarado pelos beneficiados,

tanto que o livro Viagem ao Brasil: 1865-1866 traz em suas primeiras páginas uma

dedicatória que representa a gratidão do naturalista para com o empresário financiador,

“Ao Sr. Nathaniel Thayer, ao amigo cuja generosidade permitiu dar a esta viagem o

caráter de uma expedição científica, nossa gratidão oferece este volume”(AGASSIZ,

1975, p.3). Agassiz mostra em seus relatos como era freqüente este tipo de iniciativa.

Seguindo este mesmo norte, o coronel Edwing B. Morgan doara uma grande quantia em

dinheiro para o fundo das expedições que levaram seu nome, as Expedições Morgan.

Salvaguardados os interesses dos financiadores em ter seus nomes atrelados ao

progresso da ciência e a todos os benefícios que tal proeza poderia lhes trazer, seria

talvez antes de um apoio financeiro, um investimento. Compreender essas perspectivas

é problematizar as expedições científicas como um espaço de conflitos e interesses.

Pensar a fotografia e sua inserção no meio científico é refletir sobre as

motivações, os anseios e os conflitos da sociedade que a produz, a recebe e como se dá

sua circulação e significação em determinado recorte temporal. A dimensão da

visualidade está presente em toda e qualquer problemática histórica. (MENEZES, 2012,

29 Mesmo que as Expedições Morgan sejam citadas no corpo do trabalho, a proposta não engloba de

forma central seu conteúdo.

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p. 260). Sendo assim a fotografia pode ser configurada como objeto de pesquisa, porém

para alcançar os objetivos, esta não se faz absoluta como documento.

Fontes

Livros

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