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Revista Sociedade e Estado - Volume 30 Número 1 Janeiro/Abril 2015 225 Da obediência ao consenmento: reflexões sobre o experimento de Milgram à luz das instuições modernas Sandra Leal de Melo Dahia* Resumo: O objevo do presente ensaio é fornecer uma leitura sobre os resultados do clássico experimento de Stanley Milgram em torno da obediência à autoridade a parr de algumas cate- gorias extraídas dos estudos teóricos do sociólogo Anthony Giddens e da filósofa Hannah Arendt. O texto está estruturado em torno de dois aspectos centrais. O primeiro afirma o contexto das tendências culturais e as caracteríscas das instuições modernas como fatores decisivos para a compreensão dos resultados experimentais. Enfaza, para tanto, a modalidade de confiança que os sistemas sociais, como os sistemas peritos, instauram na vida hodierna, capaz de produzir uma peculiar subordinação ao conhecimento cienfico e técnico, concomitante a uma plena de- sinformação sobre seus princípios de funcionamento. O segundo aspecto do argo visa realçar a importância da responsabilidade moral dos sujeitos experimentais, propondo, com base nas refle- xões de Hannah Arendt, o deslocamento do eixo central da análise do experimento da categoria obediência para a categoria consenmento. Palavras-chave: sistemas peritos, confiança, obediência, responsabilidade moral, consenmento. Introdução O presente ensaio traz à tona mais uma leitura, entre tantas outras, a respei- to dos resultados do célebre experimento de Stanley Milgram (1963; 1974) sobre obediência à autoridade, realizado há mais de 50 anos. Desta vez, ulizamos como suportes principais à análise algumas categorias elaboradas pelo sociólogo Anthony Giddens (1991) para compreender a sociedade moderna com suas instuições sociais e as reflexões da filósofa Hannah Arendt (2004) sobre res- ponsabilidade moral. De acordo com Giddens, os modos de vida engendrados pela Modernidade – seja pelo ritmo de mudanças empreendidas, seja pelo seu alcance – produziram uma desconnuidade em todos os pos tradicionais de ordem social. Tal fato se atribui, sobretudo, ao deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e à sua reorganização em extensões indefinidas de tempo e de espaço, o que o autor denomina de desencaixe. Nessa nova configuração social, Giddens enfaza a importância da confiança para o funcionamento das relações sociais, principal- mente, ante os mecanismos de desencaixe que ele define como fichas simbólicas e * Doutora em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas. <sandradahia@ yahoo.com.br>. Recebido: 05.06.13 Aprovado: 30.01.14

DAHIA, Sandra Leal de M. Da Obediência Ao Consentimento

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  • Revista Sociedade e Estado - Volume 30 Nmero 1 Janeiro/Abril 2015 225

    Da obedincia ao consentimento: reflexes sobre o experimento de Milgram luz das instituies modernas

    Sandra Leal de Melo Dahia*

    Resumo: O objetivo do presente ensaio fornecer uma leitura sobre os resultados do clssico experimento de Stanley Milgram em torno da obedincia autoridade a partir de algumas cate-gorias extradas dos estudos tericos do socilogo Anthony Giddens e da filsofa Hannah Arendt. O texto est estruturado em torno de dois aspectos centrais. O primeiro afirma o contexto das tendncias culturais e as caractersticas das instituies modernas como fatores decisivos para a compreenso dos resultados experimentais. Enfatiza, para tanto, a modalidade de confiana que os sistemas sociais, como os sistemas peritos, instauram na vida hodierna, capaz de produzir uma peculiar subordinao ao conhecimento cientfico e tcnico, concomitante a uma plena de-sinformao sobre seus princpios de funcionamento. O segundo aspecto do artigo visa realar a importncia da responsabilidade moral dos sujeitos experimentais, propondo, com base nas refle-xes de Hannah Arendt, o deslocamento do eixo central da anlise do experimento da categoria obedincia para a categoria consentimento.

    Palavras-chave: sistemas peritos, confiana, obedincia, responsabilidade moral, consentimento.

    Introduo

    Opresente ensaio traz tona mais uma leitura, entre tantas outras, a respei-to dos resultados do clebre experimento de Stanley Milgram (1963; 1974) sobre obedincia autoridade, realizado h mais de 50 anos. Desta vez, utilizamos como suportes principais anlise algumas categorias elaboradas pelo socilogo Anthony Giddens (1991) para compreender a sociedade moderna com suas instituies sociais e as reflexes da filsofa Hannah Arendt (2004) sobre res-ponsabilidade moral.

    De acordo com Giddens, os modos de vida engendrados pela Modernidade seja pelo ritmo de mudanas empreendidas, seja pelo seu alcance produziram uma descontinuidade em todos os tipos tradicionais de ordem social. Tal fato se atribui, sobretudo, ao deslocamento das relaes sociais de contextos locais de interao e sua reorganizao em extenses indefinidas de tempo e de espao, o que o autor denomina de desencaixe. Nessa nova configurao social, Giddens enfatiza a importncia da confiana para o funcionamento das relaes sociais, principal-mente, ante os mecanismos de desencaixe que ele define como fichas simblicas e

    * Doutora em sociologia pela Universidade Federal da Paraba, professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas. .

    Recebido: 05.06.13

    Aprovado: 30.01.14

    Gisele HigaTexto digitadoDOI: 10.1590/S0102-69922015000100013

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    sistemas peritos. Estes assumem particular importncia para o nosso estudo. So sistemas abstratos dirigidos por um saber tcnico e profissional especializado, os quais regulam extensas reas da nossa vida hodierna. A relao com seus usurios ou consumidores implica uma modalidade de confiana que se caracteriza por um desconhecimento total de seus processos de funcionamento.

    Os sistemas sociais modernos adotam uma dinmica distinta de outros perodos histricos, particularmente pelo nvel impessoal e abstrato de seus sistemas sociais e pela natureza da confiana que eles inspiram. Parte do pensamento de Giddens, portanto, servir como referncia para realar a importncia de aspectos histricos e culturais na interpretao dos resultados experimentais de Milgram, em detri-mento de anlises de carter psicolgico que valorizem inclinaes ou caractersti-cas pessoais dos sujeitos do experimento. A partir de circunstncias experimentais especficas, sob a gide das instituies modernas, sobretudo da cincia conside-rada instituio basilar na organizao social da Modernidade, cidados comuns (denominados de sujeitos experimentais), afeitos a valores humanitrios, foram po-tencialmente uma vez que se tratava de mera simulao capazes de provocar choques eltricos de fortssima intensidade em supostos alunos. Estes resultados do experimento de Milgram, que atestam, para ele prprio, forte submisso a uma autoridade cientfica em prejuzo de pessoas inocentes, repetidamente alcanado em diferentes pases, somente ratificam a tese da penetrao das instituies em nosso estilo de vida, a reverncia cincia e ao conhecimento tcnico considerados instituies centrais em nossa sociedade e aos seus sistemas peritos e reguladores.

    Guardadas as devidas diferenas, diramos, parafraseando o socilogo Zygmunt Bauman, em seu discurso sobre o Holocausto, que os achados do experimento de Milgram no deveriam ser compreendidos fora do contexto das tendncias cultu-rais e das caractersticas das instituies modernas. Trata-se de uma questo dessa sociedade e dessa cultura (Bauman, 1998: 12). Com isso, no temos a inteno de oferecer justificativas s aes dos sujeitos experimentais, tendo em vista que re-cusamos qualquer concepo passiva de homem que implique a subtrao de sua capacidade de submeter acontecimentos a juzo. por essa razo que tentamos reabilitar, a partir de Hannah Arendt, a importncia da responsabilidade moral de cada sujeito na deciso de aplicar os choques, propondo, para isso, o consentimento como nova categoria de anlise para compreenso do experimento. Na verdade, tal leitura de Arendt, que compe a segunda parte do artigo, representa a nossa contribuio particular para a presente discusso.

    A categoria obedincia tem sido o vis interpretativo historicamente dominante nas anlises do experimento o que, na nossa compreenso, obscurece a respon-sabilidade moral dos sujeitos experimentais. Com a proposio do consentimento

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    como nova categoria de anlise, buscamos evidenciar a questo moral implicada no contexto experimental, reafirmando, com Arendt (2004), que no existe obedincia em questes morais, uma vez que estas exigem deciso e escolha.

    O percurso do artigo consistir, portanto, em buscar, inicialmente, recursos no pen-samento de Giddens para compreender a Modernidade e suas instituies, con-ferindo especial ateno ao tipo de relao de confiana suscitada pelos sistemas peritos. Nesse contexto, a teoria do psiclogo social Serge Moscovici servir para reforar a concepo de que discursos cientficos so apropriados extensamente pelo senso comum, assumindo um carter quase prescritivo. Em seguida, com base na ideia de construo social e histrica de emoes sociais, articularemos contri-buies tericas de autores como Richard Sennett e Norbert Elias no sentido de de-monstrar como o processo de refinamento dos sentimentos no Ocidente elaborou a vergonha como mecanismo sutil de imposio de autoridade, dispensando o hist-rico recurso violncia para o estabelecimento da dominao. Particularmente para Sennett, o sentimento de vergonha um meio frequente de imposio de autori-dade exercida por especialistas ante os leigos na sociedade moderna. Finalmente, iremos sugerir, com base no pensamento de Hannah Arendt, uma reconsiderao na anlise do experimento a partir da categoria consentimento em substituio a categoria obedincia.

    Confiana moderna e subjugao aos sistemas peritos

    O experimento de Stanley Milgram realizado originalmente em 1961, na Universi-dade de Yale, consistiu em levar sujeitos experimentais a aplicar (falsos) choques eltricos gradativos at o limite de 450 volts em supostos aprendizes inocentes, sob a falsa alegao de se verificar o efeito da punio sobre a aprendizagem. Cerca de vinte experimentos foram realizados envolvendo centenas de indivduos, pessoas comuns, presumivelmente afeitas aos valores ocidentais e sensveis causa cien-tfica. Tais indivduos, de forma consistente, demonstraram um alto ndice de sub-misso autoridade do pesquisador ao obedecerem ordem de provocar choques eltricos, com a voltagem mxima, em indivduos inocentes. Sobretudo em razo de suas consequncias, o experimento tornou-se um dos mais impactantes e con-troversos das cincias humanas e sociais. Muitos artigos foram escritos contendo anlises minuciosas de seus surpreendentes resultados e suas implicaes ticas (Patten, 1977; Morelli, 1983; Blass, 2000; entre outros).

    No obstante, a grande indagao que permaneceu e ainda permanece ecoando e revulsando nossas conscincias no caso de se considerar o estudo experimen-talmente vlido esta: como seria possvel trair to facilmente o senso moral, os

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    caros valores humanitrios, em favor de uma submisso cega a uma suposta auto-ridade cientfica? Em outros termos, por que seres humanos sensveis e comuns tornaram-se agentes de dor e sofrimento em pessoas inocentes? A mais importante e mais contundente lio da pesquisa a suposio de que a produo da crueldade humana se relaciona a determinados padres de interao social de maneira muito mais significativa do que as caractersticas de personalidade dos indivduos (Bau-man, 1998). O arranjo social, mais que o impulso para agressividade, seria apontado como o grande responsvel por seus resultados experimentais (Milgram, 1963). No apenas reafirmando tal interpretao, mas tambm intencionando especific-la, consideramos que o referido estudo abre espao para perspectivas que podem re-lacionar, de forma mais estreita, as peculiaridades de nossas instituies modernas com os resultados apresentados por Milgram. Particularmente, destacamos as mo-dalidades de confiana que, de acordo com Giddens, so engendradas pelo estilo de vida moderno. Buscar na cultura, nas representaes sociais circulantes e nas instituies modernas as razes para tal achado, em vez de atribu-lo a uma suposta natureza humana, marca uma posio distanciada de um enfoque eminentemente psicolgico na compreenso do fenmeno, sem, contudo, convergir para uma viso fechada que elimine em definitivo a atividade humana e sua capacidade de pensar e julgar.

    Para Giddens, sob determinados pontos de vista, as instituies modernas so singu-lares, considerando-se que a Modernidade1 coloca em curso um ritmo acelerado e extenso de profundas mudanas em sua ordem social, impensvel em qualquer ou-tra ordem social tradicional. A rapidez da mudana, facilmente identificada no mbi-to da tecnologia, atua intensamente em outras esferas da realidade social. Tambm o alcance das transformaes assume propores inimaginveis, envolvendo toda a extenso do globo. Sempre de acordo com Giddens, tal dinamismo da Modernida-de est diretamente relacionado com alguns fatores fundamentais: a separao do tempo e do espao, o desencaixe dos sistemas sociais e a ordenao e reordenao reflexiva das relaes sociais luz dos novos conhecimentos (1991: 25).

    Destacamos, para a presente discusso, a importncia do desencaixe dos sistemas sociais, sobretudo dos sistemas peritos. Por desencaixe, Giddens entende

    [...] o deslocamento das relaes sociais de contextos locais de in-terao e sua reestruturao atravs de extenses indefinidas de tempo-espao (Giddens, 1991: 29).

    Enquanto, nas sociedades pr-modernas, as relaes sociais eram estabelecidas sobre uma ideia fixa de tempo e espao determinados, ou seja, eram relaes en-caixadas, nas sociedades modernas, as relaes sociais so transformadas pelo dis-

    1. Giddens (1991: 11) define Modernidade, grosso modo, como [...] estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e que, ulteriormente, se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia.

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    tanciamento cada vez maior do tempo e do espao. Isso traz grandes implicaes e consequncias para os nossos modos de vida. H uma padronizao na organiza-o social do tempo: ele se torna artificial, vazio. O lugar se torna fantasmagri-co (Gid dens, 1991: 27) no sentido de o local ser penetrado por influncias sociais distantes. Local e global passam a associar-se de modo estreito e as relaes so-ciais reorganizam-se atravs de grandes extenses de tempo e do espao. Giddens distingue dois tipos de mecanismo de desencaixe: as fichas simblicas e os expert systems, traduzidos como sistemas peritos ou sistemas especialistas. Estes ltimos, que mobilizam nossa especial ateno, consistem em

    [...] sistemas de excelncia tcnica ou competncia profissional que organizam grandes reas dos ambientes material e social em que vivemos hoje (Giddens, 1991: 35).

    O nvel de influncia que o conhecimento perito integrado aos sistemas exerce na vida cotidiana to profundo e contnuo, que ningum pode escolher estar com-pletamente fora dele. Ele perpassa a maior parte das atividades humanas, das mais prosaicas s mais complexas, como, por exemplo, acender uma luz, abrir uma tor-neira, residir em prdios, telefonar, subir escadas, voar de avio, mesmo sem o menor domnio dos usurios sobre os conhecimentos tcnicos implicados nessas atividades. Em consequncia, a condio de desencaixe requer tambm modifica-es na percepo social sobre confiana e segurana. Na verdade, so exigidas novas modalidades de confiana, sem precedentes na histria, para se lidar com a nova realidade das instituies modernas. A confiana um tipo de f que simboliza muito mais uma expectativa em resultados provveis do que um entendimento ou domnio cognitivo da situao. Ela se associa ausncia no tempo e espao, tendo em vista que seria dispensvel no caso da transparncia das aes de uma pessoa ou dos princpios de funcionamento de um sistema.

    Antes da Modernidade, a confiana era creditada a indivduos, era regulada por sua conduta, por sua presena. Tratava-se de um compromisso com rosto para usar-mos a terminologia de Giddens (1991: 91). Hoje, ela se converte em credulidade em um sistema impessoal e abstrato. A expresso de f dessa modalidade de confiana est portanto baseada na correo de princpios. Em outros termos: a confiana depositada muito mais na legitimidade e na eficcia de um saber e de uma tcnica que no se detm do que nos indivduos que os operam, mesmo se algumas vezes esta credibilidade depositada em figuras humanas concretas os representantes dos sistemas, situados nos chamados pontos de acesso. Estes remetem a noo de reencaixe, conceito complementar de desencaixe que, segundo Giddens, refere-se tentativa de reapropriar as relaes sociais desencaixadas de forma a submet-las a condies encaixadas, isto , a condies locais de tempo e lugar. Desse modo as

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    relaes sociais desencaixadas, sem rosto, interagem com condies reencaixadas que solicitam a presena do rosto. Na verdade, para Giddens, os pontos de acesso dos sistemas abstratos constituem as zonas de interseco entre os compromissos com rosto e os compromisso sem rosto. O fato de o processo vir acompanhado de elementos simblicos, como a postura dos representantes dos sistemas a serie-dade do cientista portador de uma linguagem eminentemente tcnica, o ar solene do juiz, a tranquilidade estudada da tripulao do avio, por exemplo , somente refora o quadro de confiana que pessoas, mais do que sistemas, parecem inspirar. A presena de representantes dos sistemas sociais suscita maior segurana e maior gratificao psicolgica, mas pode revelar, tambm, a vulnerabilidade dos sistemas, tendo em vista o reconhecimento da falibilidade humana na aplicao do conhe-cimento. Em certa medida, os pontos de acesso so os grandes responsveis pela fragilidade dos sistemas peritos especficos, medida que so associados a expe-rincias negativas com seus representantes. Outro aspecto ambivalente, que tanto pode fragilizar a confiana nos sistemas peritos como refor-la, so as atualizaes de conhecimentos amplamente divulgadas tanto para leigos como para peritos.

    H, na Modernidade, uma apropriao reflexiva permanente dos conhecimentos produzidos. No obstante, o que especfico da Modernidade que essa reflexivi-dade se desenvolve, indiscriminadamente, em todos os aspectos da vida humana, integrando, constitutivamente, as prticas sociais em que se d a reflexo. Embo-ra as exigncias da razo paream fornecer uma sensao de maior segurana na tradio, o conhecimento na Modernidade no assume o sentido de solidez antigo baseado em certezas, pois nenhum conhecimento, agora, est isento de reviso nem capaz de oferecer maior controle sobre a vida social. Mesmo assim, o co-nhecimento especializado socialmente percebido como a fonte mais confivel de informaes sobre o mundo. Essa confiana , preferencialmente, depositada na percia tcnica, em princpios abstratos e no em seres humanos. Na perspectiva de Giddens, essa confiana caracteriza-se como confiana cega (Giddens, 1991: 41) porque celebra uma troca, na qual a f dada em substituio ao conhecimento dos princpios que regem o funcionamento de tais sistemas. Ela traduz uma espcie de capitulao dos leigos ante o conhecimento especializado, devido impossibi-lidade de verificao necessria e constante dos seus contedos e, ainda, devido falta de alternativas. Como assinala Giddens (1991: 92), [...] s se exige confiana onde h ignorncia.

    No se pode, contudo, simplificar excessivamente essa assero de Giddens, con-siderando-se que esta f pressupe um elemento pragmtico que se baseia na ex-perincia da correspondncia das expectativas dos leigos sobre o funcionamento dos sistemas e sobre a eficincia de suas agncias reguladoras. Na Modernidade, a confiana vincula-se noo de contingncia que vista, primariamente, como con-

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    sequncia da ao humana e no da interveno de entidades divinas. Representa, por fim, uma aceitao implcita da situao na qual outras possibilidades esto afastadas e no, propriamente, uma atitude de compromisso consciente.

    Na Era da Informao, a confiana em sistemas peritos perpassa as atividades co-tidianas de modo permanente, quase prescritivo, sendo reforada continuamente, de maneira, muitas vezes, imperceptvel, pelas circunstncias presentes ao dia a dia. Hoje, em um pas ocidental, o conhecimento especializado e tcnico permeia o discurso e a prtica de qualquer um de seus habitantes. Desde o simples ato de abrir uma geladeira at conduta adequada na educao dos filhos, tudo parece sofrer a influncia dos saberes peritos que representam um verdadeiro divisor de guas sobre o certo e o errado. a competncia especializada que se torna agora a medida de todas as coisas, numa clara ressignificao da viso do sofista Prot-goras de Abdera.

    Sugerimos, retomando os estudos de Milgram, que seus resultados (um ndice de mais de 60% de submisso ordem de aplicar choques) poderiam indicar a apro-priao de um novo modelo de relao de confiana, o qual afirma, prioritariamen-te, o saber tcnico e especializado como regulador da vida social, ante a impotncia e subordinao do leigo, desautorizando qualquer postura de desafio e ousadia. Conforme afirma Giddens,

    [...] o que conta em qualquer situao em que o especialista e o leigo se confrontam um desequilbrio nas habilidades ou na in-formao que para um determinado campo de ao torna al-gum uma autoridade em relao ao outro (Giddens, 2012: 131).

    O respeito cincia estimulado pela educao desde muito cedo. Giddens (1991) assinala que, no ensino formal, no apenas contedos cientficos so transmitidos, mas, sobretudo, atitudes de deferncia cincia propriamente dita. o chamado currculo oculto (Giddens, 1991: 92) que, segundo ele, exerce uma influncia de-cisiva nos sistemas de educao moderna. Os ritos de iniciao cientfica so marca-dos por posturas devocionistas ao conhecimento cientfico e tcnico que os protege de qualquer vulnerabilidade. Somente com a familiaridade da prtica cientfica, tal postura cede lugar a dvidas e questionamentos sobre sua fragilidade, ainda que isso no ocorra de forma absoluta, j que o conhecimento do leigo sobre a cincia sempre teve uma boa dose de ambivalncia, como prprio de toda relao de confiana, que atrela respeito, desconhecimento e submisso a certa dose de d-vida e medo.

    Giddens, entretanto considera que, em um mundo de alta reflexividade, [...] a cincia perdeu boa parte da aura de autoridade que um dia possuiu (Giddens,

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    2012: 137). Em outras palavras: a exigncia de legitimidade universal da cincia torna-se cada vez mais discutvel na sociedade atual (Giddens, 2012: 275). Em substituio, o conhecimento progressivamente especializado passa a ser um dos sustentculos desse novo contexto, evidenciando um mundo de autoridades ml-tiplas, no qual a figura do superespecialista ou do especialista dos especialistas deixa de existir. No entanto, na realidade concreta, combinaes do tradicional e do moderno coexistem e, muitas vezes, relacionam-se a ponto de a cincia ser vis-ta ao mesmo tempo como fonte de autoridade monoltica conforme a tradio e saber mais descentralizado, atrelado a novas concepes que destacam suas incertezas e fragilidades. Esses novos ares sobre o conhecimento que sopram na Modernidade tambm no restringem a importncia de centros de autoridades socialmente reconhecidos. Seja como for, consideramos que, apesar da mudana de status, a cincia agora objeto de questionamento permanente acerca de suas bases de conhecimento continua sendo emblemtica da lgica que dirige a rela-o de confiana nos sistemas abstratos. a representao idealizada do saber e da percia e a compreenso disso se expande de maneira profunda e extensa sobre as relaes cotidianas. Assim, sobre o lastro de saber perito, ganham legitimidade e circulam diferenciados conhecimentos especializados, que se espraiam por to-dos os recantos da vida social. Alm disso, outras instituies como, por exemplo, a mdia, atravs da legitimidade que confere ao saber especializado (evidenciado cotidianamente em suas diversificadas fontes de expresso), acaba por contribuir fortemente para essa aura de confiana.

    A importncia da cincia esta considerada ainda como instituio fundamental na organizao social reafirmada pelo psiclogo social Serge Moscovici, que distingue duas classes de pensamento nas sociedades atuais: os universos reifica-dos e os universos consensuais (Moscovici, 2003). O autor desenvolve tais ideias no contexto da elaborao de sua perspectiva psicossociolgica de uma socieda-de pensante. Segundo ele, os universos consensuais e reificados so categorias prprias de nossa cultura. Os universos reificados so espaos onde se produziria um conhecimento formal, tcnico e cientfico regido por critrios rigorosos e ob-jetivos de verificao. Trata-se de um espao dotado de uma hierarquia de poder baseado no saber em que se estabelece quem est autorizado a falar e fazer. Como afirma Marilena Chau, em suas reflexes sobre o discurso competente, [...] no qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstncia (Chau, 2000: 7). Nos universos consensuais, por sua vez, circulariam os saberes do senso comum ou representaes sociais (de acordo com a concepo de Moscovici), pautados em critrios de verificao distintos, baseados no julgamento do que plausvel e no daquilo que objetivo. Consis-te em realidades de pensamento, ante as quais todos se sentem vontade e, de fato, esto aptos a falar em condies de igualdade. Para Moscovici, os universos

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    reificados aumentam com o desenvolvimento e com a proliferao da cincia, uma vez que esta a fonte, na sociedade atual, que fornece a matria-prima em que o conhecimento comum se debrua.

    A cincia era antes baseada no senso comum e fazia o senso co-mum menos comum; mas agora senso comum a cincia tornada comum (Moscovici, 2003: 60).

    Esta concepo confere pertinncia suposio de que nas sociedades modernas h uma forte subordinao dos universos consensuais aos universos reificados, por-quanto estes ltimos produzem o conhecimento que serve de referncia e orienta-o reflexo das pessoas comuns. A confiana no saber cientfico e tcnico real-ada quase como imperativo social e pode ser considerada uma forte representao social no mundo atual. Para Moscovici, a representao social evidencia uma reali-dade quase tangvel que acaba por regular muitos dos discursos e comportamentos cotidianos. Tal como a representao social da psicanlise nos induz a compreender lapsos lingusticos como atos falhos ou a interpretar aes bem sucedidas ou fra-cassadas como possveis resolues do complexo edpico infantil, a representao social do saber penetra a realidade social de tal maneira que poderamos, de forma especulativa, considerar como reverberao dessa ideia, por exemplo, cenas pro-saicas do cotidiano brasileiro nas quais escutamos nas falas dos informais guarda-dores de carros nas ruas, uma mudana na forma de tratamento dirigida aos seus proprietrios: doutor (ou doutora) em substituio ao tradicional e familiar tio (tia). Pertinente seria uma pesquisa futura que explorasse adequadamente essa questo. No entanto, o fato que, para Moscovici, a ordem de conhecimento que construda no espao consensual e que compe as teorias do senso comum ou, simplesmente, representaes sociais, assume uma dimenso prescritiva para o su-jeito, tornando-se nele uma fora to penetrante que muitas vezes antecede o seu prprio pensamento. Neste caso, elas no so pensadas; elas so repensadas e rea-presentadas (Moscovici, 2003: 36-37).

    Mas a autoridade com que o saber se impe e se mantm sobre o cidado comum revela vrios mecanismos sutis de submisso que apelam para sentimentos de na-tureza complexa e obscura, como o caso da vergonha. Em sua obra Autoridade, o socilogo Richard Sennett (2001) busca entender como as pessoas estabelecem vn-culos afetivos na sociedade moderna, quais so as formas sociais que esses compro-missos adotam e quais so suas consequncias polticas. No referido livro, o vnculo afetivo em relevo a autoridade, compreendida por Sennett como vnculo entre desiguais a partir de imagens de fora e fraqueza, embora assegure que esta fora possa manifestar-se simbolicamente e no apenas em termos materiais. Segundo ele, o padro de subjugao e dominao sofreu modificaes significativas no de-

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    curso da histria ocidental. Com o declnio da violncia, considerada como forma rotineira de disciplinamento nas sociedades ocidentais ao longo do sculo XIX, a vergonha passou gradativamente a assumir seu lugar. Sennett destaca o socilo-go Norbert Elias como o primeiro a assinalar a crescente importncia da vergonha na sociedade moderna. Em seu magistral trabalho sobre o avano da civilizao no mundo ocidental, compreendido do sculo XIII at os dias atuais, Elias (1993) descreve uma histria dos costumes, a partir da anlise do limiar da vergonha e da repugnncia. A partir das mudanas no modo de se comportar mesa, percorrendo alteraes nos hbitos de higiene, na sexualidade e na manifestao da agressivida-de, em tudo Elias observa um progressivo refinamento na expresso das emoes como resultado do que ele denomina de processo civilizador. Um de seus objetivos era o de demonstrar que no possvel identificar um comportamento natural no homem ou caracterizar um comportamento tpico do homem ocidental. Ao contr-rio, o autor procura demonstrar que o grau de civilizao das diferentes sociedades no o mesmo ao longo da histria.

    Numa perspectiva interdisciplinar e dinmica, Elias explica, de forma articulada, como ocorrem mudanas na estrutura da sociedade e mudanas na estrutura do comportamento e na constituio psquica. De acordo com o autor, o avano da vergonha coincide com a diminuio do medo fsico direto a outras pessoas e com o controle das pulses sobre os comportamentos, apontando um processo de discipli-namento social e autodisciplinamento individual. O sentimento de vergonha uma espcie de degradao social, uma impotncia diante da reconhecida superioridade dos outros. Para Sennett, embora se trate de um controle que exercido implicita-mente e implique um nvel de punio to restrito, em nenhuma medida a vergonha representa uma diminuio da coero, mas, antes, um novo e igualmente eficaz modelo de subjugao. A vergonha invocada como tipo de controle silencioso que coteja implicitamente a percia do superior, realizada com indiferena a uma tcita desvalorizao pessoal do subalterno. Em vez de declarar explicitamente, por exem-plo, a condio de inferioridade do empregado, a postura impessoal e confiante do empregador atua como mecanismo de controle. Em muitas situaes, bastam o silncio, a indiferena e a impessoalidade para se manter uma relao de subjuga-o. Estas regras de conduta so semelhantes s que impelem, na sociedade mo-derna, as pessoas leigas a considerarem superiores os profissionais especializados e cientistas. Quanto mais indiferente, impessoal e frio for o profissional e o cientista diante do seu ofcio, tanto maior ser a confiana que inspirar.

    Esta uma imagem que se aproxima da situao experimental conduzida por Mil-gram. Nesta, o experimentador reagia, de modo frio e distante, aos apelos deses-perados do aluno para interromper o experimento, devido suposta dor que os choques lhe causavam e hesitao dos sujeitos experimentais em aplic-los. O

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    experimentador declarava que, apesar de dolorosos, os choques no lhe causariam leso permanente nos tecidos e que, portanto, era preciso seguir com o experimen-to (Milgram, 1974). De acordo com o autor, o contexto experimental estruturado de forma tal que, para os sujeitos do experimento, desobedecer s ordens do ex-perimentador implicaria macular sua imagem de competncia e adotar uma cons-trangedora postura de arrogncia, inapropriada ao leigo. Numa viso mais articula-da com o pensamento de Giddens, tal desobedincia significaria, possivelmente, a ruptura com o tipo de confiana que os sistemas sociais exigem na Modernidade e com a opo por todo um estilo de vida fundado na escolha e reconhecimento do conhecimento tcnico e especializado como regulador da vida social. Ainda que objetos de sutis mecanismos de controle social como o sentimento de vergonha, os sujeitos experimentais revelam mais do que simples submisso autoridade. De um ponto de vista mais amplo, revelam o compromisso com um modelo de vida social e, de uma perspectiva mais especfica e imediata, referente ao contexto experimen-tal, revelam uma deciso sobre a quem obedecer.

    Obedincia, consentimento e responsabilidade pessoal

    Hannah Arendt rene, em seus escritos finais sobre responsabilidade e julgamento (Arendt, 2004), vrios textos em que desenvolve reflexes que nos permitem iden-tificar e compreender, com maior clareza, algumas questes morais implicadas no experimento de Stanley Milgram. Particularmente em seu texto, Responsabilidade pessoal sob a ditadura, escrito em 1964, Arendt tenta desfazer algumas falcias que so produzidas, de forma intencional ou no, para provocar graves confuses morais. A primeira delas nos serve ao propsito de realar a responsabilidade pes-soal dos sujeitos experimentais na aplicao dos choques e se refere elaborao do conceito de culpa coletiva.

    A emergncia de tal conceito d-se no contexto do final da Segunda Guerra Mundial com a derrota da Alemanha nazista, quando o fenmeno do holocausto passa ao conhecimento pblico e surge a necessidade de realizao do julgamento de seus criminosos. O conceito passa a ser, ento, aplicado ao povo alemo e ao seu passa-do coletivo. De acordo com Arendt, h um indubitvel e consequente engano nessa posio, uma vez que, quando todos so apontados como culpados, ningum de fato o . Na verdade, a afirmao de que todos so culpados apenas serve para isen-tar de culpa os reais culpados. Arendt (2004: 83 e 90) emprega o termo caiao para descrever a manobra intelectual de ocultar, com o conceito de culpa coletiva, a responsabilidade moral dos verdadeiros criminosos. Segundo a autora, to ina-dequado sentir culpa por algo que no se fez quanto o contrrio, ou seja, se eximir de responsabilidade por algo que se fez. Aqui vlida a distino estabelecida entre

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    responsabilidade poltica e responsabilidade moral. De acordo com Arendt, a culpa algo pessoal e se refere a um ato, no a intenes. Desse modo, somente em sen-tido metafrico possvel sentir culpa pelos erros dos outros. A responsabilidade poltica, por sua vez, pode ser requerida por atos que no se cometeram, atribuin-do-se a razo dessa responsabilidade ao fato de se pertencer a um grupo que o ato voluntrio no capaz de abolir. Trata-se de uma responsabilidade poltica a que s se pode furtar abandonando-se a comunidade. Como a ningum possvel viver sem comunidade, isso implicaria troc-la por outra, o que significaria, em ltima instncia, a substituio de um tipo de responsabilidade por outro. Obviamente, existem categorias de pessoas como os refugiados e sem ptria que, de fato, no poderiam ser consideradas como politicamente responsveis por alguma coisa, mas o preo que pagam por essa condio seria visivelmente menor do que o custo de dividirem uma responsabilidade coletiva.

    A prtica de deslocar a atribuio de responsabilidade dos indivduos humanos con-cretos para realidades intangveis e abstratas como forma de isent-los de suas pr-prias escolhas morais tem sido adotada de modo frequente em nossa histria. Nos primrdios, essa responsabilidade era transferida a entidades divinas que afetavam os humanos, conforme a oscilao de seus instveis humores. Com o desenvolvi-mento da cincia e com sua penetrao social, outros fatores de natureza abstrata passaram a ocupar o papel de protagonistas dessa histria, dividindo a cena entre fatores de recorte sociolgico como sistemas, cultura, tendncias histricas e fatores de natureza biolgica ou psicolgica, como instintos, pulses etc. A despei-to do peso das mltiplas e complexas foras atuantes sobre os eventos humanos, no podemos simplesmente abstrair o homem da capacidade de pensar e julgar seus prprios atos. Nesse sentido, torna-se cabvel, no contexto experimental de Milgram, o reconhecimento da importncia da responsabilidade moral implicada na deciso de aplicar choques.

    Milgram parece minimizar a responsabilidade moral de seus sujeitos experimentais ao sugerir que, no experimento, a responsabilidade moral muda de foco. A percep-o de responsabilidade volta-se para a execuo adequada e eficiente das aes ordenadas pelo experimentador e no para o contedo de sua ordem. Assim, de acordo com ele, muitos dos sujeitos experimentais no percebem sua ao como resultado de sua prpria motivao pessoal, mas apenas como elo intermedirio numa sucesso de aes. Eles passam a considerar-se pequenos dentes na engre-nagem, a quem no caberia a responsabilidade da deciso. Mesmo considerando a pertinncia do argumento para mitigar a culpa dos sujeitos, este argumento insuficiente para ser dado como justificao moral, considerando-se que a deciso de integrar ou permanecer na engrenagem produto, em ltima instncia, de uma escolha, tendo em vista que h um claro reconhecimento dos sujeitos em relao

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    impropriedade de suas aes. Como enfatiza Arendt, ser tentado no , em nenhu-ma medida, a mesma coisa que ser forado.

    A teoria do dente da engrenagem foi amplamente utilizada nos julgamentos que se seguiram ao Holocausto, certamente porque a ideia de fragmentao da ao humana total serve ao propsito de mascarar a distino entre comportamento res-ponsvel e irresponsvel. indiscutvel a existncia de diferenas entre a situao artificial do experimento produzido por Milgram e a terrvel realidade da ocorrncia de fenmenos, como Holocausto e outros similares, ocorridos em situaes extre-mas. Uma delas se refere, por exemplo, ao nvel de poder envolvido. Assim, em relao ao poder presente a situaes reais de comando, o poder do experimenta-dor parecia bastante reduzido em virtude de sua limitada expresso de retaliao e punio. Milgram identifica a autoridade como a causa do comportamento dos sujeitos experimentais. Nesse sentido, talvez no nos convena de como to frgil autoridade do experimentador tenha conseguido, em suas prprias palavras, obter um desalentador grau de obedincia (1963).

    Mesmo que se considere, na Modernidade, a eficcia de sutis mecanismos de con-trole como a vergonha para a manuteno da autoridade estabelecida pelo sa-ber cientfico, a ao de aplicar choques parece no se enquadrar integralmente na definio de submisso autoridade, mas expressar uma confiana e uma adeso a um estilo de vida que seleciona o conhecimento perito e especializado como indis-cutvel diretriz de conduta social, ainda que no se tenha qualquer domnio sobre seus mecanismos de funcionamento. Essas formulaes remetem-nos necessida-de de reinscrever os resultados experimentais sob uma nova categoria de anlise. nesse sentido que propomos o consentimento como a categoria-chave para a com-preenso do fenmeno em vez da ideia de mera obedincia autoridade.

    Este ponto de vista se apoia na discusso de Arendt sobre outra relevante falcia destacada em seu texto, que diz respeito exatamente confuso entre os conceitos de obedincia e consentimento. Para Arendt, no existe obedincia em questes morais. Ela s se torna possvel em uma relao assimtrica como, por exemplo, a estabelecida entre adultos e crianas, ou outras similares, que tenha por base a ideia de submisso total. O consentimento, diferentemente, implicaria apoio, ade-so a uma ideia o que exige deciso. O simples ato de aceitar participar do expe-rimento e nele permanecer, a despeito do que poderiam causar, requer um consen-timento tcito em um modelo de vida que elege e celebra a confiana nos sistemas peritos como um eixo estruturante da vida moderna.

    A nosso ver, a reside uma clara escolha moral que traduz no ato humano a culpa ou inocncia de um indivduo. No direito penal que obviamente no se aplica

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    ao caso , o homicdio doloso descrito como ato em que se assume o risco de matar. Os sujeitos experimentais, embora estivessem avisados e esclarecidos dos riscos implicados no experimento, parecem no estar suficientemente sensibili-zados para reconhecer sua responsabilidade pessoal especfica no processo. Para eles, apenas aos peritos caberia a deciso final e o julgamento sobre os mtodos para atingirem seus fins, por isso o questionamento da percia tcnica na execuo do experimento se afigurava como algo inadequado que, definitivamente, no lhes dizia mais respeito, uma vez que, antecipadamente, j haviam selado seu compro-misso pessoal com todo o processo cientfico. A prpria conscincia, adquirida no curso do experimento, de que o sofrimento produzido seria um mal necessrio para o desenvolvimento do conhecimento, numa avaliao inadequada da relao custo-benefcio da pesquisa, parece ter-se constitudo mais um elemento intrnse-co experincia que acabou por toldar a prpria noo de moralidade dos sujeitos experimentais.

    Essa dinmica indica a apropriao de valores no processo reflexivo, porquanto, de acordo com Giddens (1991: 50), [...] as mudanas na perspectiva derivadas de inputs de conhecimento tm uma relao mvel com as mudanas nas orientaes de valores. Em um contexto complexo, em que muitos outros fatores influenciam, a reflexividade sobre a prtica cientfica com suas implicaes ticas altera a pr-pria prtica cientfica e sua percepo social, uma vez que a compreenso do obje-to sobre o qual a reflexo se volta reestruturada. Isso significa que tal reflexivida-de acaba por afetar noes sobre o certo e o errado nesse mbito, considerando que o conhecimento tcnico passa a ser percebido como autojustificado, o que leva a minimizao da importncia tica de determinados procedimentos prelimi-nares para a construo do conhecimento. Uma nova relao entre tica e cincia autorizada a partir do prprio exerccio cientfico, cristalizando uma orientao axiolgica sobre a prtica cientfica como a nica capaz de efetuar uma dissociao entre meios e fins na conduta humana e reduzindo todo o processo a uma dimen-so apenas cognitiva. Nesse sentido, a reflexo sobre a tica do exerccio cientfico altera a compreenso sobre os valores que orientam esta prpria prtica para o cientista e para o leigo.

    Sob o ponto de vista de um padro de estilo de vida coletivo, a reao da maioria dos sujeitos experimentais que foram a termo no experimento pode ser enquadra-da entre as possveis respostas previstas por Giddens (1991: 136-137) como rea-es adaptativas, para enfrentar os riscos da Modernidade. Trata-se do otimismo sustentado, uma posio comprometida com a defesa do projeto iluminista, o qual confere razo a possibilidade de resposta futura para todos os males. Neste tipo de postura, o sujeito no s individualmente separado do controle do complexo universo do conhecimento especializado, mas tambm liberado do compromisso

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    com suas imprevisveis e perturbadoras consequncias. A confiana , assim, ofe-recida como moeda de troca para a responsabilidade pessoal. Mas, consentir no o mesmo que obedecer. Mesmo que se tente deslocar mais uma vez a moralidade para razes abstratas ou dilu-la numa ordem coletiva, a ideia de passividade que uma posio fechada dessas perspectivas poderia pressupor no pode ser susten-tada. Isso implicaria a supresso da capacidade de reflexo e julgamento humano, a qual, em outros termos, Arendt assinala como a capacidade de

    [...] estar envolvida naquele dilogo silencioso entre mim e mim mesma que, desde Scrates e Plato, chamamos de pensar (Arendt: 2004: 107).

    O critrio diferenciador entre os que pensam e os que no pensam no prerroga-tiva de nenhum grupo social, cultural ou educacional particular, ou ainda, de uma inteligncia especialmente desenvolvida, mas a certeza de se estar condenado a viver consigo mesmo, independentemente do que ocorra (Arendt, 2004: 108). No h, enfim, um padro ou uma regra geral que direcione os nossos julgamentos de modo infalvel. Esta parece ser a grande concluso da autora em torno da problem-tica do pensamento com a ao, pois a histria tem mostrado que aqueles que, em certos momentos, se recusaram a assumir e avaliar criticamente suas aes foram incapazes de compreender as possibilidades nefastas de suas consequncias.

    Concluso

    O nosso percurso consistiu em assumir as peculiaridades da sociedade moderna e suas instituies como elementos imprescindveis para analisarmos, mais minucio-samente, os controversos e surpreendentes achados experimentais de Milgram. De fato, a modalidade de confiana em sistemas peritos que a Modernidade inaugura revela uma clara subjugao do homem comum e leigo, ante o saber progressiva-mente especializado em todas as reas de sua vida cotidiana. Esta posio requer, no entanto, consentimento, pois integra uma escolha de um estilo de vida a priori talvez resultante de falta de alternativas mais atraentes , que coloca em evidn-cia o saber perito como a nica possibilidade legtima de lidar com as inseguranas da existncia. A nova ordem instaura tambm um tipo de racionalidade que no mais se funda em certezas, mas na autoconfrontao constante do conhecimento. Mesmo assim, no h garantias em fornecer ao mundo o controle racional de suas prprias questes porque essa via acaba por gerar, ela mesma, novas incertezas e inseguranas. Apesar disso, ainda aquela selecionada como capaz de oferecer as informaes mais confiveis sobre o mundo.

    Trata-se de um paradoxo produzido pela Modernidade: um alto grau de confiana no conhecimento aliado a uma conscincia extrema sobre seus riscos e suas in-

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    certezas. Assumir essa posio pode significar um alto custo para a humanidade. As consequncias valorativas disso ainda no podem ser avaliadas. No sabemos aonde isso vai nos levar, no entanto, certo que vai nos levar a algum lugar. O expe-rimento de Milgram, na sua limitada expresso, pode, infelizmente, ter vaticinado um deles.

    Abstract: The aim of this essay is to provide a reading on the results of the classic experiment of Stanley Milgrams obedience to authority starting from categories extracted from theoretical stud-ies of sociologist Anthony Giddens and philosopher Hannah Arendt. The text is structured around two central aspects. The first aspect focuses on reaffirming the context of cultural trends and char-acteristics of modern institutions as deciding factors for the understanding of experimental results. Therefore, it emphasizes the trust model that social systems, such as the expert system, establish in life today, which are capable of producing a peculiar subordination to scientific and technical knowledge, while simultaneously providing no information about their operating principles. The second aspect of the article aims to highlight the importance of the moral responsibility of the experimental subjects, proposing, on the basis of Hanna Arendts reflections, a shift of the central axis of the experimental analysis from the obedience category to the consent category.

    Keywords: expert system, trust, obedience, moral responsibility, consent.

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