Dalai Lama - Etica e Sociedade

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Capítulo Ética e Sociedade

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  • IIITICA E SOCIEDADE

    Captulo 11

    RESPONSABILIADE UNIVERSAL

    Acredito que cada um de nossos atos tem uma menso universal. Por causa disso, a disciplina tica, a conduta ntegra e um discernimento cuidadoso so elementos decisivos para uma vida feliz e significativa. Vamos agora examinar essa proposio no que refere comunidade em geral.

    No passado, as famlias e as pequenas comunidades podiam existir de forma mais ou menos independente umas das outras. Se levassem em conta o bem-estar dos vizinhos, tanto melhor, mas eram capazes de sobreviver bastante bem isoladas. No mais assim. A realidade atual to complexa e, ao menos no plano material, to claramente interligada, que preciso ver as coisas sob novo ngulo. A economia moderna ilustra isso de modo significativo. Uma quebra na bolsa de valores de um dos lado do globo pode ter conseqncias diretas sobre as economias de pases situados do lado oposto. De maneira semelhante, nossas conquistas tecnolgicas so agora de tal ordem, que nossas atividades tm um efeito indiscutvel no meio ambiente. E o prprio tamanho da populao mundial remete para o fato de no podermos mais nos permitir ignorar os interesses dos outros. Esses interesses esto na realidade to entrelaados, que, ao #177 atender aos nossos interesses, estamos beneficiando os dos outros, mesmoque no tenha sido essa a nossa inteno. Quando duas famlias utilizam a mesma fonte de gua, cuidar para no fique poluda uma atitude que beneficia ambas.

    Em vista disso, estou convencido de que imprescindvel cultivarmos o que chamo de responsabilidade universal. Talvez no seja esta a traduo exata do termo tibetano que tenho em mente, chi sem, que significa, literalmente, "conscincia" (sem) universal (chi). Embora em tibetano a idia de responsabilidade esteja mais implcita do que expressa

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  • formalmente, no h dvida de que est presente. Quando digo que, atravs da considerao pelo bem-estar dos outros, podemos - e devemos -desenvolver uma noo de responsabilidade universal, no estou firmando que cada um seja diretamente responsvel pela ocorrncia de - para citar um exemplo - guerras e fome em diferentes partes do mundo. verdade que faz parte da prtica do budismo lembrarmos constantemente nosso dever de servir a todos os seres sensveis de todos os universos. De modo semelhante, os destas reconhecem que a devoo a Deus implica devotar--se tambm ao bem-estar de todas as Suas criaturas. Mas evidente que certas coisas, como a pobreza de uma nica aldeia a dez mil quilmetros de distncia, esto completamente fora do alcance de um s indivduo. A questo no , portanto, admitir culpa, mas, outra vez, reorientar nossos coraes e mentes para os outros. Desenvolver uma noo de responsabilidade universal - da dimenso universal de cada um de nossos atos e do igual direito de todos os outros felicidade - desenvolver uma disposio de esprito na qual preferimos aproveitar qualquer oportunidade de beneficiar os outros do que apenas cuidar de nossos restritos interesses pessoais. E apesar de sermos apenas capazes de nos preocuparmos com o que est fora de nosso alcance, aceitamos isso como parte das limitaes da vida e nos concentramos em fazer o que podemos.

    Uma das grandes vantagens de desenvolver essa noo de responsabilidade universal nos tornarmos sensveis a todos os seres - e no s aos que esto mais perto de ns. Passamos a ver melhor a necessidade de cuidar antes de tudo daqueles membros da famlia humana que sofrem mais. Reconhecemos a necessidade de procurar no causar divergncias entre nossos semelhantes. E nos tornamos mais conscientes da importncia imensa de promover um estado de satisfao.

    Quando negligenciamos o bem-estar dos outros e ignoramos a dimenso universal de nossos atos, fazemos uma distino entre nossos interesses e os interesses dos outros. No nos damos conta da uniformidade da famlia humana. Sem dvida, fcil apontar numerosos fatores que se opem a essa noo de unidade: diferenas de crena religiosa, de lngua, de costumes, de culturas, etc. Se, porm, damos demasiada nfase a diferenas superficiais e por causa delas fazemos

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  • rgidas discriminaes, no h como evitar um acrscimo de sofrimento e desgaste para ns e para os outros. O que no faz sentido. J temos #179 problemas demais neste mundo. Todos, sem exceo, temos de enfrentar a morte, a velhice e as doenas, sem falar nas perdas e decepes. Estas no temos mesmo como evitar. No o bastante? Para que criar problemas desnecessrios por causa de maneiras diferentes de pensar ou peles de cores diferentes?

    Avaliando essas realidades, vemos que a tica e a necessidade pedem uma mesma reao. Para superar nossa tendncia de ignorar as necessidades e direitos dos outros, precisamos continuamente lembrar a ns mesmos o que bvio: que basicamente todos somos iguais. Eu venho do Tibet, e a maioria dos leitores deste livro no ser de tibetanos. Se eu encontrasse cada leitor em pessoa e olhasse para ele com cuidado, verificaria que quase todos tm de fato caractersticas superficialmente diferentes das minhas. Se me concentrasse nessas diferenas, iria com certeza ampli-las e transform-las em algo importante. Mas o resultado seria ficarmos mais distantes do que prximos. Se, ao contrrio, eu olhasse para cada um como algum de minha prpria espcie - um ser humano como eu, com um nariz, dois olhos, etc. -, ignorando diferenas de for-ma e cor, a noo de distncia automaticamente se dissiparia. Eu veria que somos feitos da mesma carne humana e que, alm disso, assim como eu quero ser feliz e no sofrer, todos eles tambm querem. Ao reconhecer isso, eu me sentiria naturalmente inclinado para eles. E a considerao por seu bem-estar viria quase que espontaneamente. #180

    Entretanto, embora a maioria das pessoas esteja disposta a aceitar a necessidade de unidade dentro de seu prprio grupo e, junto com isso, a necessidade de levar em considerao o bem-estar dos outros, a tendncia descuidar-se do resto da humanidade. Ao faz-lo, deixamos de lado no s a natureza interdependente da realidade mas a prpria realidade de nossa situao. Se fosse possvel um grupo, ou uma raa, ou uma nao, adquirir satisfao e realizao completas mantendo-se totalmente independente dentro dos limites de sua prpria sociedade, ento talvez se pudesse argumentar que a discriminao dos forasteiros justificvel. Mas

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  • no o caso. Na realidade, neste nosso mundo moderno, no se considera mais que os interesses de uma comunidade em particular estejam confinados a suas prprias fronteiras.

    Cultivar a noo de satisfao , portanto, crucial para que se mantenha uma coexistncia pacfica. A insatisfao traz a cobia, que nunca pode ser saciada. Se o que o indivduo procura por natureza infinito, como a qualidade da tolerncia, a satisfao passa a ser irrelevante: quanto mais estimulamos nossa capacidade para a tolerncia, mais tolerantes nos tornamos. No que se refere a qualidades espirituais, a satisfao no necessria, pois desejvel que estejamos sempre em busca de crescimento. Mas se o que buscamos finito, o perigo que, ao conquistlo-, no fiquemos satisfeitos. No caso do desejo da riqueza, ainda que a pessoa conseguisse tomar conta da economia de todo um pas, muito provvel que em seguida comeasse a pensar em conquistar a de #181 outros pases. O desejo pelo que finito nunca de fato satisfeito. Por outro lado, quando desenvolvemos a satisfao, nunca nos decepcionamos nem nos desiludimos.

    A falta de satisfao - que vem a ser a ganncia - planta a semente da inveja e da competitividade agressiva e leva a uma cultura de excessivo materialismo. A atmosfera negativa que estabelece cria um contexto propcio a todos os tipos de doenas sociais que trazem sofrimento aos membros da comunidade. Se a ganncia e a inveja no tivessem efeitos colaterais, talvez fossem um problema a ser resolvido por apenas aquela comunidade. Porm, mais uma vez, este no o caso. Em particular, a falta de satisfao uma das origens da destruio de nosso meio ambiente e, conseqentemente, dos males causados a outros. Que outros? Principalmente os pobres e os fracos. Em uma mesma comunidade, os ricos podem mudar de endereo, digamos, para evitar os efeitos dos altos nveis de poluio, mas os pobres no tm escolha.

    Tambm os povos de naes mais pobres, que no tm recursos para lidar com este tipo de problema, sofrem por causa dos excessos das naes ricas, alm de terem de enfrentar os problemas resultantes da poluio gerada por sua tecnologia atrasada. As prximas geraes certamente vo sofrer. E ns tambm. Como? Temos de viver em um mundo que estamos

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  • ajudando a criar. Se a nossa opo no modificar nosso comportamento com relao igualdade de direitos dos outros, muito em breve comearemos a sofrer as conseqncias negativas dessa atitude. Imaginem a poluio produzida por mais dois bilhes de carros, por exemplo. #182

    Afetaria todos. Sendo assim, a satisfao no meramente uma questo tica. Se desejamos evitar o aumento do sofrimento, isto uma questo de necessidade. Esta uma das razes por que acredito que a cultura de incessante crescimento econmico precisa ser questionada. Do meu ponto de vista, ela promove insatisfao e acarreta um grande nmero de problemas, tanto sociais quanto ambientais. A devoo irrestrita ao desenvolvimento material costuma vir acompanhada pelo descaso por suas implicaes para a comunidade mais ampla. Mais uma vez, a questo no haver uma defasagem entre o Primeiro e o Terceiro Mundos, Norte e Sul, desenvolvidos e subdesenvolvidos, ricos e pobres, se imoral e errada. So as duas coisas. De certa forma, o mais significativo o fato de essa desigualdade ser uma fonte de dificuldades para todos. Se a Europa, por exemplo, constitusse o mundo inteiro e no um lugar onde vivem dez por cento da populao mundial, a ideologia predominante de crescimento sem fim talvez fosse justificvel. Porm, o mundo no s a Europa, e em outros lugares h gente passando fome. E onde existem desequilbrios to profundos as conseqncias so negativas para todos, mesmo que no sejam diretas, j que os ricos tambm sentem os sintomas da pobreza em suas vidas dirias: as cmeras de vigilncia e as grades protetoras nas janelas denunciam a perda de tranqilidade.#183

    A responsabilidade universal tambm nos leva a um compromisso com o princpio da honestidade. O que quero dizer com isso? Podemos pensar em honestidade e desonestidade nos, mesmos termos da relao entre aparncia e realidade. As vezes eles so concomitantes, mas muitas vezes no. Porm, quando so, isso honestidade como a entendo. Somos honestos quando nossas aes so o que parecem ser. Quando aparentamos ser o que na realidade no somos, despertamos suspeitas que se transformam em medo. E o medo algo que todos queremos evitar. Inversamente, quando nossa interao com os que nos esto prximos

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  • aberta e sincera em tudo o que dizemos, pensamos e fazemos, ningum precisa ter medo de ns. Isso vale tanto para as pessoas quanto para as comunidades. Quando compreendemos a importncia da honestidade em tudo o que fazemos, constatamos que, em ltima anlise, no h diferena entre as necessidades individuais e as necessidades de toda a comunidade. Os nmeros diferem, mas o desejo e o direito de ningum ser enganado so os mesmos. Portanto, quando assumimos o nosso compromisso pessoal com a verdade, ajudamos a diminuir o nvel de desentendimentos, dvidas e temores da sociedade. De uma forma modesta mas significativa,criamos condies para um mundo mais feliz.

    A questo da justia est intimamente ligada tanto responsabilidade universal quanto questo da honestidade. A justia implica a obrigao de agir quando se tem conscincia da injustia. No o fazer um erro, se bem que no seja um erro que nos torne #184 intrinsecamente maus. Se a hesitao provm do egocentrismo, porm, temos a um problema. Se nossa reao injustia perguntar: "O que vai acontecer comigo se eu me manifestar? Talvez isso indisponha as pessoas contra mim", nossa atitude antitica porque no estamos levando em conta as implicaes mais amplas de nosso silncio. tambm inadequado e pouco salutar no que se refere ao direito dos outros de evitar o sofrimento e serem felizes. 0 mesmo se aplica - talvez com mais propriedade - quando governos ou instituies afirmam que "isso cabe a ns" ou "essa uma questo interna". Nessas circunstncias, manifestar-se no s um dever pessoal como sobretudo um servio que se presta aos outros.

    Pode-se alegar que nem sempre possvel agir assim, que precisamos ser "realistas". Nossa situao talvez no nos permita agir em todas as ocasies de acordo com nossas responsabilidades. Nossas famlias podem ser prejudicadas se, por exemplo, protestarmos contra alguma injustia. Contudo, mesmo tendo de considerar a realidade diria de nossas vidas, imprescindvel manter uma perspectiva mais abrangente. Temos de avaliar nossas necessidades individuais com relao s necessidades dos outros e examinar como nossas aes e omisses vo afet-las a longo prazo. difcil criticar aqueles que temem por seus entes queridos. Mas de

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  • vez em quando ser necessrio correr riscos para beneficiar a comunidade em geral.

    A noo de responsabilidade pelos outros tambm significa que, #185 como indivduos e como uma sociedade de indivduos, temos o dever de zelar por cada membro de nossa sociedade. Indistintamente, seja qual for a sua capacidade fsica ou mental. Como ns, eles tm direito felicidade e a no sofrer. preciso evitar a todo custo que aqueles que padecem cruelmente sejam isolados como se fossem um estorvo. O mesmo se aplica aos doentes e marginalizados. Afast-los seria acrescentar-lhes mais sofrimento. Se estivssemos na mesma situao, gostaramos de contar com a ajuda dos outros. Precisamos, portanto, criar garantias para que os enfermos e incapacitados jamais se sintam desamparados, rejeitados ou desprotegidos. Creio, na verdade, que a afeio que demonstramos a tais pessoas a medida de nossa sade espiritual no s no plano individual como no da sociedade como um todo.

    Posso parecer irremediavelmente idealista com toda essa conversa sobre responsabilidade universal. Seja como for, uma idia que venho expondo publicamente desde minha primeira visita ao Ocidente, em 1973. Naquela poca havia muito ceticismo a respeito. Nem sempre era fcil despertar o interesse das pessoas para o conceito de paz mundial. Fico satisfeito ao observar que, hoje em dia, uma quantidade cada vez maior de pessoas comea a reagir de modo favorvel a essas idias.

    Sinto que os muitos acontecimentos extraordinrios que a humanidade vivenciou no decorrer do sculo XX deram-lhe mais maturidade. Nas dcadas de 50 e 60, e em alguns lugares mais recentemente, muita gente achava que os conflitos deveriam ser resolvidos #186 com guerras. Hoje, apenas uma minoria ainda pensa assim. Enquanto no incio do sculo muitos acreditavam que o progresso e o desenvolvimento dentro da sociedade deveriam ser obtidos custa de estrita e opressiva arregimentao poltica, o colapso do fascismo, seguido mais tarde pelo desaparecimento da chamada Cortina de Ferro, revelou que o projeto era invivel. Foi mais uma lio da Histria provando que a ordem imposta pela fora tem vida curta. Alm disso, o consenso (tambm entre alguns

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  • budistas) de que cincia e espiritualidade so incompatveis j no se mantm com tanta firmeza. Atualmente, medida que se aprofundam os conhecimentos cientficos sobre a natureza da realidade, essa percepo vai mudando. Por causa disso, as pessoas esto comeando a demonstrar mais interesse por aquilo que chamei de nosso mundo interior, ou seja, a dinmica e as funes da conscincia, ou esprito: nossos coraes e mentes. Houve tambm em todo o mundo um aumento da conscientizao ambiental e um reconhecimento cada vez maior de que nem os indivduosnem as naes podem resolver seus problemas sozinhos, de que precisamos uns dos outros. Para mim, tudo isso so avanos encorajadores que decerto tero conseqncias de grande projeo. Um outro fato que muito me estimula que, seja qual for o mtodo de implementao, ao menos j se admite claramente a necessidade de buscar solues no- -violentas para os conflitos dentro de umesprito reconciliador. H #187 tambm, como j observamos, uma aceitao crescente da universalidade dos direitos humanos e da necessidade de admitir a diversidade em reas de importncia comum, como a das questes religiosas, por exemplo. Acredito que isso reflete a percepo de que imprescindvel ampliar a perspectiva devido diversidade da prpria famlia humana. Como resultado de todas essas coisas, e apesar do sofrimento que continua sendo imposto a pessoas e povos em nome de ideologias, de religies, do progresso, do desenvolvimento ou da economia, uma nova esperana est surgindo para os oprimidos. No h dvida de que ser difcil produzir paze harmonia genunas, mas percebe-se nitidamente que isso pode ser feito. O potencial est a. E seu fundamento a noo da responsabilidade de cada indivduo por todos os outros.

    #188Captulo 12

    NVEIS DE COMPROMISSO

    desenvolvendo uma atitude de responsabilidade pelos outros que comeamos a criar o mundo mais bondoso e compassivo com que todos

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  • sonhamos. O leitor pode ou no concordar com minha defesa da responsabilidade universal. Entretanto, se correto que, por causa da natureza interdependente da realidade, a distino que costumamos fazer entre o eu e o outro de certa forma exagerada, e por isso nossa meta deveser estender a nossa compaixo a todos, a concluso inevitvel que a compaixo - que leva conduta tica - est no centro de todas as nossas aes, pessoais e sociais. Alm do mais, apesar de evidentemente podermos discutir os detalhes, estou convencido de que responsabilidade universal significa ainda que a compaixo pertence tambm arena poltica. A responsabilidade universal uma inspirao para a nossa maneira de conduzir a vida diria se quisermos ser felizes, no sentido que defini felicidade. Espero que tenha ficado claro que no estou pedindo a ningum para abandonar sua maneira de viver atual e adotar alguma nova regra ou modo de pensar. Minha inteno dar a entender que as pessoas, mantendo sua vida costumeira de todos os dias, podem mudar, tornando-se #189 melhores, mais compassivas e mais felizes. E assim comearmos a implementar nossa revoluo espiritual.

    O trabalho de uma pessoa em qualquer ocupao modesta to relevante para o bem-estar da sociedade quanto ode um mdico, um professor, um monge ou uma freira. Toda atividade humana potencialmente valiosa e nobre. Qualquer trabalho motivado pelo desejo de contribuir para o bem-estar dos outros ser sempre um benefcio para toda a comunidade. Quando falta considerao pelos sentimentos e bem-estar dos outros, nossas atividades acabam se corrompendo. Quando faltam sentimentos humanos bsicos, a religio, a poltica, a economia e tudo o mais podem se transformar em algo srdido. Em vez de servirem humanidade, tornam-se agentes de sua destruio.

    Por isso, no basta desenvolver uma noo de responsabilidade universal, precisamos na verdade ser pessoas responsveis. Enquanto no pusermos nossos princpios em. prtica, eles continuaro sendo apenas princpios. Assim, por exemplo, o poltico que de fato uma pessoa responsvel age com honestidade e integridade. O homem ou mulher de negcios que uma pessoa responsvel leva em conta as necessidades dos

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  • outros em cada negcio que realiza. O advogado responsvel usa seus conhecimentos e talento para lutar pela justia.

    claro que difcil estabelecer com preciso como o nosso comportamento deve moldar-se para corresponder ao compromisso com o princpio da responsabilidade universal. No tenho nenhum padro em especial a sugerir.#190Minha esperana que, se voc leitor se sensibilizar com o que est escrito aqui, vai procurar ser compassivo em seu dia-a-dia e, movido pela noo de responsabilidade pelos outros, far o possvel para ajud-los. Mesmo com pequenos gestos. Quando passar por uma torneira aberta, voc a fechar. Se vir uma luz acesa inutilmente, voc a apagar. Se encontrar algum que pratica uma f diferente da sua, vai demonstrar-lhe o mesmo respeito que espera que lhe demonstrem. Ou se for um cientista e descobrir que a pesquisa em que est trabalhando pode de alguma forma causar mal aos outros, vai abandon-la levado por sua noo de responsabilidade. De acordo com seus prprios recursos e reconhecendo as limitaes de suas circunstncias, voc far o que puder. Afora isso, no estou pedindo que ningum assuma qualquer outro compromisso. E se em alguns dias suas aes forem mais compassivas do que em outros, aceite este fato como normal. Alm disso, se o que eu digo no lhe parece til, no importa. O importante que qualquer coisa que faamos pelos outros, qualquer sacrifcio, seja voluntrio e motivado pela compreenso do benefcio que sua ao vai proporcionar.

    Em uma recente visita a Nova York, um amigo contou-me que o nmero de bilionrios na Amrica do Norte aumentou em poucos anos de dezessete pessoas para vrias centenas delas. Simultaneamente, os pobres continuam pobres e em alguns casos esto ficando ainda mais pobres. Considero tal coisa completamente imoral. E tambm uma fonte de problemas. Enquanto milhes de pessoas no dispem do mnimo #191 necessrio para viver - alimentao adequada, moradia, educao e tratamento mdico -, a desigualdade da distribuio de riqueza um escndalo. Se todos tivessem o suficiente para suprir as suas necessidades e um pouco mais, ento talvez um estilo de vida luxuoso fosse admissvel.

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  • Se a pessoa realmente desejasse viver assim, seria difcil alegar que deveria conter-se, pois ela teria o direito de viver como acha melhor. Mas no assim que as coisas se passam. Neste mundo em que vivemos h lugares em que se joga comida fora e h gente por perto - nossos semelhantes, com crianas inocentes em seu meio - que obrigada a revolver o lixo em busca de alimento, e muitos passam fome. Portanto, embora no possa dizer que a vida de luxo dos ricos esteja errada, desde que eles gastem seu prprio dinheiro e o ganhem honestamente, insisto em afirmar que ela no tem valor, que um tipo de vida que estraga as pessoas.

    Outra coisa que me chama a ateno o estilo de vida dos ricos ser muitas vezes absurdamente complicado. Um amigo meu que ficou hospedado na casa de uma famlia muito rica contou-me que, sempre que iam tomar banho de piscina, recebiam um roupo que era trocado por umlimpo cada vez que usavam a piscina, mesmo que o fizessem diversas vezes por dia. Extraordinrio! Ridculo, at. No vejo em que isso torna a vida de algum mais confortvel. Ns humanos temos apenas um estmago. H um limite para a quantidade do que podemos ingerir. Temos tambm apenas dez dedos, de modo que no podemos usar cem #192 anis. Qualquer que seja o argumento a favor da escolha, os que temos em excesso no tm nenhum propsito no momento em que estamos de fato usando um nico anel. O resto fica guardado nas caixas sem utilidade nenhuma. Como expliquei certa vez para o membros de uma famlia indiana imensamente rica, o uso correto da riqueza est nas contribuies para atividades filantrpicas. Naquele caso em particular, sugeri - j que eles perguntaram - que talvez gastar seu dinheiro em educao fosse o melhor que poderiam fazer. O futuro do mundo est nas mos de nossas crianas. Se quisermos Ter uma sociedade mais compassiva - e portanto mais justa -, essencial educarmos nossas crianas para serem adultos responsveis e zelosos. Quando algum nasce rico ou adquire riqueza por qualquer outro meio, tem uma formidvel oportunidade para beneficiar os outros. Que desperdcio quando tal oportunidade esbanjada com extravagncias para satisfazer os prprios desejos!

    Estou fortemente inclinado a achar que a vida luxuosa despropositada, tanto que me sinto muito perturbado sempre que estou

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  • hospedado em um hotel confortvel e vejo as pessoas comendo e bebendo coisas caras enquanto, do lado de fora, sei que h outras que no tm nemmesmo onde passar a noite. Refora meu sentimento de que no sou diferente nem dos ricos nem dos pobres. Somos iguais, querendo ser felizes e no sofrer. E temos todos o mesmo direito a essa felicidade. Como resultado dessa convico, tenho a impresso de que se visse passar #193 uma passeata de trabalhadores reivindicando seus direitos, eu certamente os acompanharia. E, no entanto, a pessoa que lhes diz essas coisas est desfrutando do conforto de um hotel. Na verdade, preciso ir ainda mais longe nessa questo. verdade que possuo muitos relgios de pulso valiosos. E mesmo sabendo que se os vendesse talvez pudesse construir algumas casas simples para os pobres, at agora no o fiz. Da mesma maneira, estou certo de que, se seguisse uma dieta rigorosamente vegetariana, no s estaria dando um bom exemplo como ajudaria a salvar a vida de animais inocentes. At agora no o fiz e, portanto, tenho de admitir que existe uma discrepncia entre meus princpios e a minha prtica em ;algumas reas. Ao mesmo tempo, no acredito que todos possam ou devam ser como o Mahatma Gandhi e passem a viver como camponeses pobres. Uma dedicao assim maravilhosa e deve ser grandemente admirada. Mas o lema : "Tanto quanto pudermos" - sem chegar a extremos.

    #194Captulo 13

    TICA NA SOCIEDADEEDUCAO E MEIOS DE COMUNICAO

    Viver uma vida verdadeiramente tica, em que colocamos em primeiro lugar as necessidades dos outros e cuidamos de sua felicidade, algo que tem extraordinrias implicaes para a nossa sociedade. Se mudarmos internamente, desarmando-nos ao lidar de maneira construtiva com nossos pensamentos e emoes negativos, poderemos literalmente transformar o mundo inteiro. J temos prontas muitas ferramentas

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  • poderosas para criar nossa sociedade tica e pacfica. Entretanto, o potencial de algumas delas no est sendo totalmente aproveitado. A partir deste ponto, gostaria de partilhar algumas de minhas opinies sobre a maneira como podemos fazer e os setores onde podemos comear a revoluo espiritual de bondade, compaixo, pacincia, tolerncia, capacidade de perdo e humildade.

    Quando estamos comprometidos com o ideal da considerao pelos outros, este fato deve permear nossas medidas sociais e polticas. No digo isso por achar que deste modo seremos capazes de solucionar todos os problemas da sociedade de um dia para outro. Mas estou convencido de #195 que, a menos que essa noo mais ampla de compaixo na qual venho insistindo inspire nossa poltica de ao, elas provavelmente causaro danos em vez de servir humanidade como um todo. Acredito que precisamos tomar medidas prticas para assumir nossa responsabilidade para com todos os nossos semelhantes, no s agora como no futuro. Isso inegvel mesmo que haja pequenas diferenas de ordem prtica entre os planos de ao motivados por esse tipo de compaixo e os que so motivados pelo, digamos, interesse nacional.

    Se todas essas sugestes referentes compaixo, disciplina interior, sbio discernimento e cultivo da virtude fossem largamente implementadas, com certeza o mundo passaria a ser um lugar mais benigno e pacfico. Ainda assim, acredito que a realidade nos obriga a atacar nossos problemas tanto no plano individual quanto no da sociedade. O mundo mudar sempre que um indivduo tentar refrear seus pensamentos e emoes negativos e quando praticar a compaixo por seus semelhantes, mesmo que no tenha um relacionamento direto com eles.

    Em vista disso, penso que existem diversas reas a que devemos dar uma ateno especial luz da responsabilidade universal. Incluem a educao, os meios de comunicao, nosso meio ambiente, poltica e economia, paz e desarmamento e harmonia inter-religiosa. Cada uma delastem um papel vital a desempenhar no processo de moldar o mundo em que vivemos, e disponho-me a examinar cada uma sucintamente.#196

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  • Antes de faz-lo, devo acentuar que os pontos de vista que expresso aqui so pessoais. So os pontos de vista de algum que faz questo de afirmar que no perito em nenhum dos aspectos tcnicos dessas questes. Mesmo que o que eu disser seja passvel de objees, espero que ao menos d ao leitor a oportunidade de fazer uma pausa para reflexo. Pois bem possvel que surjam divergncias de opinio quanto ao modo como podem ser traduzidas em polticas reais a necessidade de compaixo, de valores espirituais bsicos, de disciplina interior e a importncia de uma conduta tica. Mas, na minha opinio, so valores incontestveis.

    A mente humana (lo) simultaneamente a fonte e, se orientada de forma apropriada, a soluo de todos os nossos problemas. Os que adquirem grande erudio mas no tm bom corao correm o risco de serem atormentados por ansiedades e inquietaes que resultam de desejos que no podem ser realizados. Inversamente, a compreenso genuna dos valores espirituais tem o efeito oposto. Quando educamos nossas crianas para adquirirem conhecimentos sem compaixo, muito provvel que suaatitude para com os outros venha a ser uma combinao de inveja daqueles que ocupam posies superiores s suas, competitividade agressiva para com seus pares e desdm pelos menos afortunados, o que leva a uma propenso para a ganncia, para a presuno, para os excessos e, muito rapidamente, perda da felicidade. Conhecimento importante. Muito mais, porm, o uso que lhe damos. #197Isso depende do corao e da mente de quem o usa.

    Educao muito mais do que transmitir conhecimentos e habilidades por meio dos quais se atingem objetivos limitados. E tambm abrir os olhos das crianas para as necessidades e direitos dos outros. Precisamos mostrar s crianas que suas aes tm uma dimenso universal. E precisamos encontrar uma forma de estimular seus sentimentos naturais de empatia para que venham a ter uma noo de responsabilidade em relao aos outros. Pois isso o que nos motiva a agir. Se tivssemos de escolher entre conhecimento e virtude, a ltima seria sem dvida a melhor escolha, pois mais valiosa. O bom corao

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  • que fruto da virtude por si s um grande benefcio para a humanidade. O mero conhecimento, no.

    Como, porm, ensinar princpios morais s nossas crianas? Tenho a impresso de que, em geral, os sistemas educacionais modernos negligenciam a discusso de questes ticas. Isso provavelmente no intencional, mas um subproduto da realidade histrica. Os sistemas educacionais seculares foram desenvolvidos numa poca em que as instituies religiosas ainda exerciam grande influencia em toda a sociedade. Como os valores ticos e humanos eram ento e ainda so vistos como pertencentes esfera da religio, presumiu-se que esse aspecto da educao infantil seria atendido durante a sua formao religiosa. E isso funcionou bastante bem at a influncia da religio comear a declinar. Embora ainda exista, a necessidade no est sendo atendida. Portanto, temos de encontrar outra forma de mostrar s crianas #198 que os vares humanos fundamentais so importantes. E tambm ajud-las a desenvolver esses valores.

    claro que, em ltima anlise, no se aprende a importncia da considerao pelos outros atravs de palavra mas atravs de aes: do exemplo que se d. Por essa razo, o ambiente familiar um componente fundamental na educao de uma criana. Quando no h uma atmosfera afetuosa em casa, quando os filhos sofrem com descaso dos pais, fcil reconhecer os prejuzos. As crianas sentem-se indefesas e inseguras e apresentam sintomas de mente agitada. Ao contrrio, quando recebem afeio e proteo constantes, mostram-se muito mais felizes e confiantes em suas aptides. Sua sade fsica tambm costuma ser melhor. E nota-se que se preocupam no apenas consigo mesmas mas tambm com os outros. O ambiente familiar tambm importante porque as crianas aprendem com os pais a incorporar um comportamento negativo. Se, por exemplo, o pai est sempre brigando com as pessoas com quem trabalha, se pai e me esto sempre discutindo de maneira agressiva, a princpio a criana pode at no gostar, mas acaba considerando aquilo normal. Este aprendizado em seguida levado de casa para o mundo externo.Tambm no preciso dizer que aquilo que as crianas aprendem sobre conduta tica na escola deve antes de tudo ser praticado. Quanto a isso, os

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  • professores tm um responsabilidade especial. Seu prprio comportamento pode fazer as crianas lembrarem-se deles pelo resto da vida. Se esse #199 comportamento ntegro, disciplinado e bondoso, seus valores ficaro gravados na mente das crianas, com repercusses em seu comportamento. Porque as lies ensinadas por um professor com uma motivao positiva (kun long), cujas palavras correspondem ao seu modo de agir, penetram mais fundo na mente do aluno. Sei disso por experincia prpria. Quando menino, era muito preguioso. Mas se percebia afeio e dedicao em meus mestres, suas lies geralmente calavam mais fundo e com muito mais sucesso do que nos dias em que algum deles demonstrava aspereza ou insensibilidade.

    No que se refere aos aspectos especficos da educao, deixo a questo para os especialistas. Vou limitar-me, portanto, a algumas poucas sugestes. A primeira que, se quisermos despertar a conscincia dos jovens para a importncia dos valores humanos fundamentais, melhor no apresentar os problemas da sociedade atual como uma questo meramente tica ou religiosa. importante destacar que o que est em jogo a manuteno de nossa sobrevivncia. Dessa forma, passaro a sentir que o futuro est em suas mos. Em segundo lugar, acredito que o dilogo pode e deve ser ensinado em sala de aula. Apresentar aos alunos um assunto controvertido e estimular o debate entre eles uma excelente maneira de introduzi-los ao conceito de resoluo no-violenta de conflitos. Na realidade, seria muito bom se as escolas fizessem desse tipo de dilogo uma prioridade, pois isso traria benefcios para a prpria vida #200 familiar. Ao ver os pais brigando, uma criana que compreendesse o valor do dilogo diria instintivamente: "No, no assim que se faz, vocs tm que conversar, discutir as coisas da maneira certa,"

    Finalmente, imprescindvel eliminar dos nossos currculos escolares qualquer tendncia para apresentar os outros sob uma tica negativa, Existem alguns lugares do mundo em que o ensino de Histria, por exemplo, promove o fanatismo e o racismo contra outras comunidades. O que est errado, No contribui em nada para o bem da humanidade, Hoje, mais do que nunca, precisamos mostrar s nossas

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  • crianas que as distines entre "meu pas" e "seu pas", "minha religio" e "sua religio" so secundrias. Antes de tudo, precisamos af1rInar com insistncia que meu direito felicidade no tem mais peso do que o direito do outro. O que no significa que as crianas devam abandonar ou ignorar a cultura e a tradio histrica do lugar em que nasceram. Pelo contrrio, muito importante que sejam instrudas nesses fundamentos para que aprendam a amar seu pas, sua religio e sua cultura. O perigo quando isso evolui para um nacionalismo estreito, para o etnocentrismo e para a intolerncia religiosa. O exemplo do Mahatma Gandhi pertinente aqui. Mesmo tendo recebido uma educao ocidental de alto nvel, nunca esqueceu ou se afastou da rica herana de sua cultura indiana.

    Se a educao uma de nossas armas mais poderosas na campanha para um mundo melhor e mais pacfico, os meios de comunicao de massa - a mdia - so outra. #201Todos os personagens polticos sabem que hoje no so mais os nicos com autoridade na sociedade. Alm da influncia dos jornais e livros, o rdio, o cinema e a televiso juntos exercem sobre as pessoas uma influncia que seria inimaginvel h cem anos. Este enorme poder confere grande responsabilidade a todos os que trabalham no setor. Mas tambm confere grande responsabilidade a cada um de ns que, como indivduos, escutamos, lemos e assistimos. Ns tambm temos um papel a desempenhar. No somos impotentes diante da mdia. Afinal de contas, os botes de controle ficam em nossas mos.

    No estou defendendo aqui noticirios contidos ou distraes inspidas. Ao contrrio, no que se refere ao jornalismo investigativo, respeito e aprecio a interveno da mdia. Nem todos os funcionrios dos governos so honestos ao cumprir os seus deveres. muito conveniente, portanto, que existam jornalistas com narizes to compridos quanto trombas de elefante bisbilhotando tudo e revelando as transgresses que encontrarem. Precisamos saber quando e como essa ou aquela pessoa famosa esconde um aspecto desconhecido por trs de uma aparncia agradvel. No deve haver discrepncia entre a aparncia externa e a vida interior de uma pessoa. a mesma pessoa, afinal. As discrepncias insinuam que no so confiveis. Ao mesmo tempo, crucial que os

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  • motivos de quem investiga sejam dignos. O mximo possvel de imparcialidade e o respeito pelos direitos do outro so indispensveis para no desvirtuar a investigao.#202

    Com relao ao destaque dado pelos meios de comunicao ao sexo e violncia, h muitos fatores a considerar. Em primeiro lugar, evidente que grande parte do pblico gosta das sensaes provocadas por esse tipo de tema. Em segundo, duvido muito que os que produzem todoesse material contendo muito sexo explcito e violncia tenham a inteno de prejudicar. Seus motivos so com certeza apenas comerciais. Se isso positivo ou negativo importa menos na minha opinio do que se tem ou no conseqncias ticas saudveis. Se assistir a um filme violento desperta o sentimento de compaixo em quem o assiste, talvez aquela representao da violncia se justifique. Se o acmulo de imagens violentas acaba levando indiferena ante o sofrimento, porm, acho que no recomendvel. Endurecer o corao assim potencialmente perigoso. Leva facilmente falta de empatia.

    Quando os meios de comunicao se concentram demasiado nos aspectos negativos da natureza humana, h o perigo de nos persuadirem que a violncia e a agressividade so as principais caractersticas do homem. Creio que essa concluso um equvoco. O fato de a violncia ter tanto valor como notcia sugere exatamente o oposto. As notcias positivas no chamam tanto a ateno porque h um excesso de notcias positivas. Num determinado momento deve haver seguramente milhes de atos de bondade acontecendo no mundo inteiro. H sem dvida muitos atos de violncia sendo cometidos ao mesmo tempo, mas em nmero muito menor. Em conseqncia, se a mdia quiser ser eticamente responsvel, #203 deve refletir sobre este simples fato claramente necessrio que os meios de comunicao sejam regulamentados. O fato de impedirmos nossas crianas de assistirem a certas coisas indica que j fazemos distino entre o que e o que no apropriado de acordo com diferentes circunstncias. Entretanto, difcil saber se a legislao o melhor caminho para resolver este problema. Em todas as questes de tica, a disciplina s realmente eficaz quando vem de dentro. Talvez a melhor maneira de nos

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  • assegurarmos de que aquilo que os meio de comunicao produzem saudvel esteja na maneira como educamos nossas crianas. Se forem educadas para serem conscientes de suas responsabilidades, sero mais disciplinadas em seu contato com a mdia.

    Talvez seja esperar demais que os meios de comunicao promovam os ideais e princpios da compaixo, mas ao menos podemos desejar que os profissionais desta rea tenham cuidado quando houver potencial para impacto negativos. Que no haja lugar para o estmulo a atos negativos como os de violncia racial. Alm disso no sei dizer. Talvez pudssemos encontrar uma forma de ligar mais diretamente os que criam histrias para o setor de entretenimento e notcias com o espectador, o leitor ou o ouvinte.

    #204

    O MUNDO NATURAL

    Se existe uma rea em que tanto a educao quanto a mdia tm especial responsabilidade, esta , secreio, nosso meio ambiente. Outra vez essa responsabilidade tem menos a ver com certo e errado do que questo da sobrevivncia. O mundo natural nosso lar. No necessariamente sagrado ou santo, simplesmente o lugar onde vivemos. Sendo assim, do nosso interesse cuidar dele. Trata-se apenas de bom senso. S muito recentemente o tamanho da populao mundial e o poder da cincia e da tecnologia cresceram de tal modo, que passaram a ter um impacto direto sobre a natureza . Em outras palavras, at agora, a Me Natureza conseguiu tolerar nosso desmazelo domstico, mas chegou a um ponto em que no pode mais aceitar nosso comportamento em silncio. Os problemas causados pela degradao ambiental podem ser vistos como a reao da natureza nossa irresponsabilidade. Est avisando que at a sua tolerncia tem limites.

    Em nenhum outro lugar as conseqncias de nossa falta de disciplina na maneira como nos relacionamos com a natureza so mais aparentes do que no Tibet atual. No exagero afirmar que o Tibet em que cresci era um paraso de vida selvagem. Todos os viajantes que o visitavam antes de

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  • meados do sculo XX observavam isso. Raramente se caavam animais, exceto nas reas mais remotas onde no era possvel plantar, porque nada crescia ali. Os funcionrios do governo costumavam lanar proclamaes anuais protegendo os animais selvagens cujo texto era: "Ningum, seja nobre ou plebeu, far mal ou praticar violncia contra as criaturas das #205 guas ou das matas." S se fazia exceo aos ratos e aos lobos.

    Quando rapaz, lembro-me de ter visto grandes quantidades de animais de diferentes espcies sempre que viajava para fora de Lhasa. A lembrana mais vvida que tenho da viagem de trs meses atravs do Tibet, de Takster, a leste, onde nasci, para Lhasa, onde fui formalmente proclamado Dalai Lama aos quatro anos de idade, a dos animais selvagens que encontrvamos no caminho. Imensos rebanhos de kiang (burros selvagens) e drong (iaques) vagavam livremente pelas grandes plancies. De vez em quando avistvamos as lustrosas gowa, as tmidas gazelas tibetanas, ou os wa, os veados de beios brancos, ou os tso, nossos imponentes antlopes. Lembro ainda minha fascinao pelos pequenos chibi, ou lagmios, que se reuniam nos relvados e que eram to amigveis. Adorava observar as aves, a majestosa gho (guia barbuda) pairando nas alturas acima dos mosteiros encarapitados nas montanhas, os bandos de gansos (nagbar) e s vezes, noite, ouvir o chamado da wookpa, a coruja de orelhas compridas.

    Mesmo em Lhasa, no nos sentamos de modo algum isolados do mundo natural. Em meus aposentos no alto do Potala, o palcio de inverno dos dalai lamas, passei horas quando criana estudando o comportamento dos khyungkar de bico vermelho, que faziam ninhos nas fendas das muralhas. E atrs do Norbulingka, o palcio de vero, via sempre casais de trung trung (garas japonesas de pescoo negro), aves que para mim so um modelo de elegncia e de graciosidade, que viviam nos pntanos dali. #206 tudo isso sem mencionar a glria mxima da fauna tibetana: os ursos e raposas das montanhas, os chanku (lobos), os sazik (belssimos leopardos brancos), os sik (linces), que aterrorizavam os fazendeiros nmades, e os pardas gigantes com seu meigo semblante, que so nativos da regio da fronteira entre o Tibet e a China.

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  • Lamentavelmente, essa profuso de animais selvagem no pode mais ser encontrada. Em parte devido caa, em parte devido perda do habitat, o que resta meio sculo depois da ocupao do Tibet apenas uma parcela do que existia antes. Sem exceo, todos os tibetanos com quem falei e que voltaram para visitar o Tibet depois de trinta ou quarenta anos de ausncia mencionaram a surpreendente ausncia de animais selvagens. Antes esse animais costumavam aproximar-se das casas e hoje em dia quase no so vistos em lugar algum.

    Igualmente inquietante a devastao das florestas tibetanas. As colinas, que eram cobertas de bosques densos esto lisas como cabeas raspadas de monges. O governo de Beijing admitiu que as terrveis enchentes no oeste da China e arredores devem-se em parte a isso. E, no entanto, ouo constantemente relatos sobre comboios de caminhes que seguem na direo leste transportando madeira dia e noite para fora do Tibet. O que trgico, por causa do terreno montanhoso e do clima spero do pas. Significa que o reflorestamento exigiria cuidados e atenes sistemticos. Infelizmente h poucos indcios disso.#207

    Nada disso significa que ns, tibetanos, tenhamos sido histrica e deliberadamente conservacionistas. No fomos. A idia de algo chamado "poluio" simplesmente nunca nos ocorreu. No se pode negar que fomos bastante mimados a esse respeito. Imaginem uma populao reduzida habitando uma grande regio com ar puro e seco e abundncia de gua cristalina das montanhas. Essa atitude inocente com relao limpeza revelou-se quando fomos exilados e descobrimos, com surpresa, para citar um exemplo, a existncia de rios cuja gua no era potvel! Como no caso de um filho nico, a Me Natureza tolerava nosso comportamento, no importa o que fizssemos. O resultado que no tnhamos uma compreenso adequada das noes de higiene e limpeza. As pessoas cuspiam ou assoavam o nariz na rua sem pensar. O que me faz lembrar um idoso Khamp:i, um antigo membro da escolta que costumava ir todos os dias andar em torno de minha residncia em Dharamsala (uma devoo popular). Lamentavelmente, ele sofria de uma forte bronquite, que era agravada pelo incenso que carregava. A cada esquina, parava para tossir e

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  • expectorar to furiosamente, que eu s vezes me perguntava se ele teria vindo mesmo para rezar ou s para cuspir!

    No decorrer dos anos que seguiram nossa vinda para o exlio, interessei-me bastante por questes ambientais. O governo tibetano no exlio dedicou ateno especial a ensinar s nossas crianas as suas responsabilidades como residentes deste frgil planeta. E nunca hesito em manifestar-me sobre o assunto todas as vezes que tenho oportunidade de #208 faz-lo. Sempre assinalo particularmente a necessidade de pensar como nossas aes podem afetar os outros quando afetam o meio ambiente. Admito que isso Costuma ser difcil de avaliar. Se no podemos prever com certeza absoluta, por exemplo, quais os efeitos finais que o desmatamento ter sobre o solo e as chuvas de um determinado local, que dir sobre Suas implicaes para os sistemas climticos do planeta. A nica certeza que ns humanos somos a nica espcie conhecida com poder para destruir a terra. As aves no tm esse poder, nem os insetos, nem qualquer mamfero. Contudo, se temos capacidade para destruir a terra, temos tambm para proteg-la.

    fundamental encontrar mtodos de fabricao que no destruam a natureza. Temos de descobrir formas de reduzir o uso da nossa madeira e de outros recursos naturais limitados. No sou especialista nesse campo e no posso sugerir como isso deve ser feito. Sei apenas que possvel se houver determinao. Lembro-me de ter ouvido, em uma visita a Estocolmo h alguns anos, que pela primeira vez em muito tempo os peixes estavam voltando ao rio que passa pela cidade. At pouco antes no havia nenhum peixe por causa da poluio industrial. E esse melhoramento no ocorreu porque todas as fbricas locais tivessem fechado. De modo semelhante, numa visita Alemanha, mostraram-me um novo projeto industrial para evitar poluio. Portanto, decerto existem solues para limitar os prejuzos natureza sem interromper as atividades industriais.

    No digo isso por acreditar que Podemos confiar na tecnologia para superar todos Os nossos problemas. Mas tambm no creio que possamos permitir que as prticas destrutivas Continuem enquanto esperamos que algum invente algum jeito de evit-las. Alis, no o meio ambiente que

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  • precisa de jeito. O nosso comportamento com relao a ele que precisa mudar. Tenho minhas dvidas se, diante da ameaa iminente de um desastre ambiental de grandes propores, como o causado pelo efeito estufa, seria possvel "dar um jeito", mesmo em teoria. E, supondo-se que sim, teramos de perguntar se seria vivel aplic-lo na escala exigida. E as despesas? E o custo, no que refere aos recursos naturais? Imagino que seriam proibitivos. H tambm o fato de j no existirem fundos suficientes para o trabalho que Poderia ser realizado em muitos outros setores como os de ajuda humanitria s vtimas da fome. Ainda que se argumentasse que os fundos necessrios para a proteo ambiental poderiam ser levantados, seria quase impossvel justificar tal coisa, moralmente falando. Seria errado dispor de enormes quantias para simplesmente deixar as naes industrializadas continuarem com suas prticas nocivas enquanto tantas pessoas em outros lugares no tm nem mesmo com que se alimentar.

    Tudo isso nos faz voltar necessidade de reconhecer a dimenso universal de nossas aes e, Com base nisso, praticar a conteno. Essa #210 necessidade forosamente comprovada quando consideramos a propagao de nossa espcie. Embora o ponto de vista de todas as principais religies se o de que quanto mais seres humanos tivermos, melhor, e apesar de algunas pesquisas indicarem uma provvel imploso populacional daqui a cem anos, ainda assim acho que no podemos deixar a questo de lado. Sendo um monge, talvez no seja adequado comentar esses assuntos. Mas acredito que o planejamento familiar importante. claro que no estou insinuando que no se deva ter filhos. A vida humana um recurso precioso e os casais devem te filhos, a no ser que existam fortes razes que os impeam. A idia de no ter filhos s porque se quer desfrutar uma vida plena sem responsabilidades , a meu ver, bastante equivocada. Ao mesmo tempo, no entanto, os casais tm o dever de considerar o impacto de uma populao numerosa sobre o meio ambiente em nosso mundo moderno.

    Felizmente, mais e mais pessoas reconhecem a importncia da disciplina tica para assegurar a existncia de um lugar saudvel onde

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  • viver. Por essa razo, estou otimista quanto possibilidade de se poder evitar um desastre. At relativamente pouco tempo no havia muita gentedando ateno aos efeitos da atividade humana em nosso planeta. Atualmente existem at partidos polticos cuja maior preocupao essa. O fato de o ar que respiramos, a gua que bebemos, as florestas e os oceanos que abrigam milhes de diferentes formas de vida e os padres climticos que governam nossos sistemas de tempo transcenderem #211 fronteiras nacionais j motivo para se ter esperana. Significa que nenhum pas, no importa quo rico e poderoso ou quo pobre e fraco seja, pode dar-se o luxo de no assumir uma posio quanto ao assunto.

    No que se refere responsabilidade individual, os problemas que resultam de nosso descuido do meio ambiente so uma severa advertncia para lembrarmos que todos temos uma contribuio a fazer. Os atos de uma nica pessoa podem no ter um impacto significativo na natureza, mas o efeito combinado dos atos de milhes de pessoas certamente exerce. O que significa que est na hora de todos aqueles que vivem em pases desenvolvidos industrialmente pensarem seriamente em modificar seu estilo de vida. No apenas uma questo de tica. O fato de a populao do resto do mundo tambm ter direito de melhorar seu padro de vida de certa forma mais importante do que os ricos poderem continuar mantendo seu estilo de vida. Para que isso seja feito sem causar danos irreparveis natureza - com todas as conseqncias negativas para a felicidade de todos -, os pases ricos precisam dar o exemplo. O custo para o planeta, e portanto para a humanidade, do aumento constante dos padres de vida simplesmente excessivo.

    #212POLTICA E ECONOMIA

    Todos sonhamos com um mundo mais agradvel e feliz. Se quisermos que o sonho se tome realidade, preciso que a compaixo inspire todos os nossos atos. Isso aplica de modo especial s nossas medidas polticas econmicas. Considerando-se que provavelmente metade da populao do mundo carece de recursos para suprir suas

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  • necessidades bsicas de alimento, abrigo, cuidados mdicos e educao, acho que precisamos questionar se realmente estamos seguindo o rumo mais acertado a esse respeito. No creio. Se houvesse qualquer indcio de que nos prximos cinqenta anos, continuando com os memmos mtodos, consegussemos erradicar definitivamente a pobreza, talvez a atual desigualdade da distribuio da riqueza se justificasse. Se, ao contrrio, persistirem as tendncias de hoje, certo que os pobres ficaro ainda maispobres. Basta um pouco do nosso senso fundamental de equidade e justia para saber que no ficaramos satisfeitos se deixssemos isso acontecer.

    claro que no conheo muita coisa de economia. Mas acho difcil evitar concluir que a fartura dos ricos mantm-se com o descaso pelos pobres, especialmente atravs das dvidas internacionais. O que no quer dizer que os pases subdesenvolvidos no tenham uma parcela de responsabilidade por seus problemas. Nem que se deva atribuir aos polticos e funcionrios dos governos a culpa por todos os males sociais e polticos. No nego que at mesmo nas democracias mais estveis do mundo seja comum ouvir promessas pouco realistas de polticos que alardeiam o que vo fazer quando forem eleitos. Mas essas pessoas no caem do cu por acaso. Portanto, se verdade que os polticos de #213 determinado pas so corruptos, costumamos achar que tambm a sociedade daquele pas imoral e os indivduos que formam a populao no levam a vida de maneira tica. Neste caso, no justo que o eleitoradocritique seus polticos. Por' outro lado, quando as pessoas tm valores sadios e praticam a disciplina tica em sua vida pessoal porque tm considerao pelos outros, os funcionrios do governo que essa sociedade produz respeitaro naturalmente os mesmos valores. Cada um de ns, portanto, tem um papel a desempenhar na criao de uma sociedade em que o respeito e o cuidado pelos outros, baseados na empatia, so a prioridade maior.

    No que se refere aplicao de polticas econmicas, as consideraes so as mesmas que valem para qualquer atividade humana. Uma noo de responsabilidade universal imprescindvel. Devo admitir, todavia, que acho um tanto difcil fazer sugestes prticas sobre a aplicao de valores espirituais em uma rea como a do comrcio. O

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  • motivo a concorrncia ter a uma funo to relevante, o que torna a relao entre empatia e lucro necessariamente frgil. Ainda assim, no vejo por que no seja possvel existir concorrncia construtiva. O principal fator a motivao dos envolvidos. Quando a inteno explorar ou destruir os outros, evidentemente o resultado no pode ser positivo. Porm, se a concorrncia for efetuada dentro de um esprito de generosidade e boas intenes, mesmo sendo desagradvel para aqueles que perdem, ao menos no causar danos desnecessrios.#214

    Outra vez pode-se objetar que no mundo dos negcio no seria realista as pessoas terem prioridade sobre os lucros. Mas precisamos lembrar que aqueles que dirigem as indstrias e negcios do mundo tambm so pessoas. At o mais empedernido empresrio no poderia deixar de admitir que no est certo correr atrs dos lucros sem se importar com as conseqncias. Se fosse, no haveria problema em negociar com drogas. Portanto, o que se quer que cada um de ns desenvolva o lado compassivo de seu carter. Quanto mais o fizermos, mais as empresas refletiro os valores humanos fundamentais.

    Se, ao contrrio, esses valores forem negligenciados, inevitavelmente o mundo dos negcios ir negligenci-los tambm. No se trata apenas de idealismo. A Histria mostra que muitos dos avanos positivos da sociedade humana ocorreram, pelo menos em parte, como resultado da compaixo. Como a abolio do comrcio de escravos. Se examinarmos a evoluo da sociedade humana, constataremos a necessidade de se ser visionrio para produzir mudanas positivas. Os nossos ideais so o mais poderoso motor do progresso. Ignorar este fato e meramente dizer que precisamos ter polticas "realistas" um erro grave.

    Nossos problemas de disparidade econmica so um srio desafio para toda a famlia humana. Ainda assim, ao entrarmos em um novo milnio, acredito que temos boas razes para ser otimistas. Durante o incio e em meados do sculo :xx havia um sentimento generalizado de que o poder econmico estava acima da verdade. Mas creio que isso est #215 mudando. Mesmo as naes mais ricas e poderosas compreendem que no vale a pena deixar de lado os valores humanos bsicos. A noo de tica

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  • nas relaes internacionais tambm est ganhando terreno. Sejam ou no traduzidas em aes significativas, ao menos palavras como "reconciliao", "no-violncia" e "compaixo" esto se incorporando ao vocabulrio dos polticos, o que j um bom avano. Percebo que, quando viajo para o exterior, pedem-me freqentemente que fale sobre paz e compaixo para grandes platias - muitas vezes, mais de mil pessoas. Duvido que esses tpicos atrassem tanta gente h quarenta ou cinqenta anos. Transformaes assim indicam que, coletivamente, estamos atribuindo mais peso a valores fundamentais como justia e verdade.

    Reconforta-me tambm ver que a economia mundial torna-se visivelmente mais interdependente medida que evolui. Toda nao depende at certo ponto de todas as outras. A economia moderna, como o meio ambiente, no tem fronteiras. At os pases declaradamente hostis entre si precisam praticar a cooperao para utilizar recursos. Muitas vezes, por exemplo, dependero dos mesmos rios. E quanto mais interdependentes forem nossas relaes econmicas, mais interdependente se torna nosso relacionamento poltico. Presenciamos, por exemplo, o crescimento da Unio Europia iniciada com um pequeno grupo de parceiros comerciais e que se torna algo prximo de uma confederao de #216 Estados com um nmero membros que j atinge dois dgitos. Constatamos a mao de grupos semelhantes, se bem que at o momento no to desenvolvidos, por todo o mundo: a Associao das Naes do Sudeste da sia (ASEAN), a Organizao da Unidade Africana (OAU), a Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo (OPEP), para citar apenas trs. Cada uma delas um testemunho do impulso humano para unir-se em prol do bem comum e reflete a contnua evoluo da sociedade humana. O que comeou com relativamente pequenas unidades tribais progrediu atravs da fundao das cidades-estados para as naes, evoluindo agora para alianas, entre elas, abrangendo centenas de milhares de pessoas, transcendendo cada vez mais divises geogrficas, culturais e tnicas. Acredito que essa uma tendncia que vai e deve persistir.

    No entanto, no podemos esquecer que, paralelamente proliferao dessas alianas polticas e econmicas, percebe uma nsia de maior fortalecimento no que se fere a etnias, lnguas, religies e cultura

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  • freqentemente em um contexto de violncia posterior ao afrouxamento dos vnculos que caracterizam a condio de nao. Como compreender esse paradoxo: de um lado, a tendncia para a formao de grupos de cooperao transnacional e, de outro, o impulso para a descentralizao? Na verdade no preciso haver necessariamente uma contradio entre as duas coisas. Ainda assim possvel imaginar comunidades regionais unidas pelo comrcio, pelas polticas sociais e de segurana e formadas de #217 uma multiplicidade de grupos tnicos, culturais e religiosos autnomos. Poderia existir um sistema legal para proteger os direitos humanos bsicos comuns a todos e que desse liberdade a cada grupo para manter o modo de vida desejado. Ao mesmo tempo, importante que o estabelecimento das unies entre pases seja voluntrio e baseado no reconhecimento de que os interesses dos envolvidos sero mais bem atendidos atravs da colaborao mtua. Essas unies no podem ser impostas. Seguramente, o desafio do novo milnio encontrar meios de obter uma cooperao internacional - ou melhor, intercomunitria - na qual a diversidade humana seja reconhecida e os direitos de todos sejam respeitados.

    #218Captulo 14

    PAZ E DESARMAMENTO

    O presidente Mao disse certa vez que o poder poltico provm do cano de uma arma. verdade que a violncia pode ser um meio para se atingir alguns objetivos de curto prazo, mas no para alcanar metas duradouras. Se examinamos a Histria, vemos que, com o tempo, o amor da humanidade pela paz, pela justia e pela liberdade sempre acaba triunfando sobre a crueldade e a opresso. por isso que acredito fervorosamente na no-violncia. Violncia gera violncia. E significa apenas uma coisa: sofrimento. Em teoria, possvel conceber uma situao em que a nica maneira de evitar um conflito em larga escala seja atravs da interveno armada no estgio inicial. O problema que muito difcil, se no impossvel, prever os efeitos da violncia. E tambm

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  • nunca podemos estar seguros de que sua causa justa. Isso apenas fica claro quando se pode avaliar mais tarde a situao. A nica certeza que, quando h violncia, sempre e inevitavelmente h sofrimento.

    Algumas pessoas diro que a devoo do Dalai Lama no-violncia louvvel mas no prtica. Mas, na realidade, muito mais ingnuo supor que os problemas criados pelo homem e que levam violncia #219 possam jamais ser resolvidos atravs do conflito. Observem, por exemplo, que a no-violncia foi a principal caracterstica das revolues polticas que se alastraram por tantas partes do mundo durante a dcada de 80.

    Estou convencido de que a principal razo para as pessoas acharem que o caminho da no-violncia pouco prtico deve-se ao fato de que parece no adiantar nada enveredar por ele, pois a sensao de desnimo. Apesar disso, vale a pena pensar que antigamente bastava desejar a paz para sua prpria terra, ou para a de seu vizinho, e hoje se fala de paz mundial. compreensvel. A interdependncia humana hoje to flagrante que s faz mesmo sentido falar de paz mundial.

    Um dos aspectos mais promissores da era moderna o surgimento de um movimento internacional pela paz. Se temos a impresso de que se fala menos deste assunto do que se falou a respeito do fim da Guerra Fria talvez seja porque seus ideais foram incorporados como tendncias predominantes da conscincia coletiva. Porm, a que me refiro quando falo de paz? No seria a guerra uma atividade humana natural, se bem que deplorvel? Antes de responder, precisamos fazer distino entre duas formas de compreender a paz. Ela pode ser vista como uma simples ausncia de guerra ou como um estado de tranqilidade baseado em uma profunda sensao de segurana, oriunda da compreenso mtua, da tolerncia pelos pontos de vista dos outros e do respeito por seus direitos. No foi este o tipo de paz que vimos na Europa durante as quatro dcadas #220 e meia da Guerra Fria, por exemplo. A premissa em que se baseava era o medo, a desconfiar e a estranha psicologia da destruio mutuamente assegurada (em ingls, a expresso mutually assured destructi foi convenientemente abreviada para MAD, que quer dizer "louco", "insensato"). Na realidade, a paz que caracterizava a Guerra Fria era to

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  • precria, to frgil, que que qualquer mal-entendido mais srio em um dos lados pode ter tido conseqncias desastrosas. Olhando para trs, principalmente com o conhecimento que temos hoje como pode ser catica a administrao dos setores de armamentos, acho que quase um milagre termos escapado da destruio!

    A paz no algo que existe de modo independente de ns, a guerra tambm no. certo que alguns indivduos em especial - lderes polticos, responsveis por polticas, generais - tm srias responsabilidades no que se refere paz. Contudo, essas pessoas no saram do nada. No nasceram nem foram criadas no espao sideral. Como ns, foram alimentadas com o leite e o afeto de suas mes. So membros de nossa famlia humana e cresceram dentro da sociedade que ns ajudamos a criar. A paz do mundo depende portanto da paz do corao das pessoas. O que, por sua vez, depende de todos ns praticarmos a tica, disciplinando nossas reaes aos pensamentos e emoes negativos e desenvolvendo qualidades espirituais fundamentais.

    Se a verdadeira paz algo mais profundo do que frgil equilbrio baseado em mtua hostilidade, se em ltima anlise depende da resoluo de conflitos internos; o que dizer da guerra? Apesar de, paradoxalmente, o objetivo da maioria das campanhas militares ser a paz, na verdade a guerra como um incndio na comunidade humana, um incndio cujo combustvel so pessoas vivas. Parece-se tambm com um incndio na maneira como se propaga. Se observarmos a evoluo do recente conflito na antiga Iugoslvia, veremos que o que comeou como uma disputa localizada cresceu rapidamente e engolfou toda a regio. De modo semelhante, se examinarmos uma batalha isoladamente, veremos que os comandantes enviam reforos quando percebem que h pontos enfraquecidos na defesa ou no ataque. O que exatamente igual a jogar gente viva em uma fogueira. O hbito nos faz ignorar isso. Deixamos de reconhecer que a verdadeira natureza da guerra a fria crueldade e o sofrimento.

    A triste verdade que fomos condicionados a encarar os procedimentos de guerra como algo excitante e at glamouroso: os soldados marchando com uniformes vistosos (to atraentes para as crianas), com suas bandas militares tocando ao lado. Apesar de vermos o

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  • assassinato como algo terrvel, no associamos a guerra com a criminalidade. Pelo contrrio, a guerra vista como uma oportunidade para as pessoas provarem a sua competncia e a sua coragem. Falamos sobre os heris que a guerra produz quase como se o herosmo do indivduo fosse medido pelo nmero de inimigos mortos. E falamos sobre essa ou aquela arma como uma inveno tecnolgica maravilhosa, esquecendo que ser usada para mutilar e matar pessoas vivas. Seu amigo, #222 meu amigo, nossas mes, nossos pais, nossas irms e nossos irmos, voc e eu.

    O que ainda pior o fato de, nas operaes militares modernas, o papel daqueles que as promovem ser desempenhado bem longe do local do conflito. Ao mesmo tempo, o impacto dessas operaes militares nos no-combatentes cresce sempre. Os que mais sofrem nos conflitos armados de hoje em dia so os inocentes: no s as famlias dos que esto lutando, como, em nmeros cada vez maiores, civis que freqentemente nem mesmo tm um papel ativo. Mesmo depois do final da guerra, o sofri-mento continua com os estragos causados pelas minas terrestres e o envenenamento causado pelas armas qumicas, sem falar nas adversidades econmicas que traz. O que significa que, mais e mais, mulheres, crianas e idosos esto entre as principais vtimas das guerras.

    A realidade das guerras modernas que o empreendimento inteiro tornou-se quase como um jogo de computador. A sofisticao crescente do armamento ultrapassou a capacidade imaginativa da mdia das pessoas leigas. Seu poder de destruio to espantoso, que os argumentos a favor das guerras, quaisquer que sejam eles, tm de ser consideravelmente inferiores aos argumentos contra. Chega a ser perdovel sentir nostalgia pela maneira como as batalhas eram realizadas antigamente. Ao menos as-pessoas lutavam cara a cara com as outras. No havia como esconder o sofrimento que as guerras causavam. E, naquele tempo, os dirigentes 223 costumavam liderar suas tropas nas batalhas. Se o comandante fosse morto, geralmente a questo estava decidida. Entretanto, medida que a tecnologia progrediu, os generais comearam a ficar mais distantes, l atrs. Hoje, eles podem ficar a quilmetros de distncia em suas casamatas

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  • subterrneas. Em vista disso, chego a imaginar a inveno de uma bala "inteligente" que pudesse ir atrs daqueles que tomam as decises de fazer guerras. Parece-me que seria mais justo assim e talvez fosse bem-vinda uma arma que os eliminasse e deixasse ilesos os inocentes.

    Por causa das caractersticas desses instrumentos de destruio, quer tenham sido projetados com propsitos ofensivos ou defensivos, precisamos admitir que as armas existem unicamente para aniquilar seres humanos. Mas para que no se imagine que a paz depende apenas de desarmamento, cabe ainda lembrar que as armas no agem sozinhas. Apesar de serem inventadas para matar, no causam nenhum dano fsico enquanto esto guardadas nos depsitos. Algum tem que apertar um boto para lanar um mssil, ou puxar um gatilho para dar um tiro. No nenhum "poder maligno" que faz isso. So os homens. Portanto, a conquista de uma genuna paz mundial tambm requer que comecemos a desativar as foras militares que formamos. No podemos ter esperanas de desfrutar a paz em seu sentido pleno enquanto existir a possibilidade de alguns poucos indivduos ainda exercerem poder militar e imporem sua vontade aos outros. Ou enquanto houver regimes autoritrios sustentados #224 por foras armadas que no hesitem em praticar a injustia sob suas ordens. A injustia solapa a verdade, e sem verdade no pode haver paz duradoura. Por que no? Porque quando temos a verdade ao nosso lado temos tambm franqueza, a honestidade e a confiana que vm junto com ela. Inversamente, quando falta a verdade, a nica maneira de atingir nossas metas limitadas atravs da fora. E quando as decises so tomadas dessa maneira, ser levar em conta a verdade, as pessoas no se sentem bem - tanto os vencedores quanto os vencidos. Esse sentimento negativo mina a paz que imposta pela fora.

    evidente que no se pode esperar que essa desativao do aparato militar se faa da noite para o dia. Por mais que seja desejvel, seria extremamente difcil conseguir um desarmamento unilateral. Se desejamos uma sociedade em que o conflito armado se torne uma coisa do passado, nosso objetivo final deve ser abolir todo o aparato militar. Mas querer demais que todas as armas sejam eliminadas, pois, afinal, at nossos punhos podem ser usados como armas. E haver sempre grupos de

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  • desordeiros e fanticos para perturbar os outros. Temos de admitir que, enquanto existirem seres humanos, ser necessrio encontrar maneiras de lidar com os canalhas.

    Cada um de ns tem uma funo a cumprir nessa questo. Quando nos desarmamos internamente refreando pensamentos e emoes negativos e cultivando qualidades positivas -, criamos condies para o desarmamento externo. A paz mundial genuna e duradoura s ser possvel como resultado do esforo interno de cada um de ns. A emoo #225 aflitiva o oxignio do conflito. essencial nos mantermos sensveis aos outros e, reconhecendo seu direito felicidade, no fazermos nada que contribua para seu sofrimento. Para ajudar-nos nessa tarefa, vale a pena refletir na maneira como a guerra realmente vivida por suas vtimas. Para mim, basta lembrar minha visita a Hiroxima para reavivar todo o seu horror. Em um dos seus museus, vi um relgio que parou no exato momento que a bomba explodiu. Tambm vi um pequeno pacote de agulhas de costura que se haviam fundido com o seu calor.

    O que se exige, portanto, o estabelecimento de objetivos definidos para o desarmamento gradual. E promover - a vontade poltica para execut-lo. Quanto s medidas prticas para desativar o aparato militar, temos que admitir que isto s pode ocorrer dentro do contexto de um amplo compromisso com o desarmamento. No basta pensar somente em eliminar as armas de destruio macia. preciso criar condies favorveis a nosso objetivo. A forma mais simples de faz-lo aproveitar e desenvolver as iniciativas j existentes, o que me faz pensar no esforo de muitos anos para controlar a proliferao de algumas classes de armas e, em alguns casos, para elimin-las. Durante as dcadas de 70 e 80 presenciamos os debates dos Tratados para Limitao de Armas Estratgicas (SALT) entre os blocos ocidental e oriental. Temos h muitos anos um vantajoso tratado para a no-proliferao de armas nucleares que #226 conta com a adeso de muitos pases. E, a despeito da disseminao das armas nucleares, a idia de uma interdio mundial ainda est presente. Houve tambm progressos animadores no que se refere condenao formal das minas terrestres. Na ocasio em que este livro est sendo

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  • escrito, a maioria dos governos j assinou declaraes renunciando sua utilizao. Assim, mesmo sendo verdade que nenhuma dessas iniciativas alcanou todas as suas metas com sucesso, sua prpria existncia indica que tais mtodos de destruio so indesejveis. Todas elas comprovam o desejo fundamental do ser humano de viver em paz, alm de proporcionarem um comeo muito til com possibilidades de desenvolvimento.

    Outra forma de nos aproximarmos do objetivo de desativar o aparato militar global acabar gradualmente com a indstria de armas. Para muitos, essa sugesto vai parecer absurda e invivel. Diro que, a menos que todos concordassem em faz-lo ao mesmo tempo, isso seria uma loucura. E tambm que nunca vai acontecer. E que, ainda por cima, h a questo econmica a ser considerada. Entretanto, se olharmos o assunto do ponto de vista daqueles que sofrem as conseqncias da violncia armada, impossvel querer se esquivar da responsabilidade de procurar superar essas objees de uma ou outra maneira. Sempre que penso na indstria de armas e nos sofrimentos que gera, lembro minha visita ao campo de extermnio nazista de Auschwitz. Enquanto olhava os fornos onde foram queimados milhares de seres humanos como eu - muitos deles ainda vivos, #227 gente que sofreria at com a queimadura de um mero palito de fsforo aceso -, o que mais me impressionou foi o fato de esses fornos terem sido construdos com o cuidado e a ateno de artfices talentosos. Quase podia ver os engenheiros (todos pessoas inteligentes) em suas pranchetas, planejando meticulosamente o formato das cmaras de combusto e calculando o tamanho das chamins, sua altura e capacidade de exausto. Pensei nos operrios que realizaram a obra de acordo com o projeto. Sem dvida orgulharam-se de seu trabalho, como fazem os bons profissionais. E ocorreu-me que precisamente isso o que os projetistas e fabricantes de armas modernos esto fazendo. Eles, tambm, esto criando os meios de destruir milhares, milhes de semelhantes. No uma idia perturbadora? Tendo isso em mente, todas as pessoas que realizam esse tipo de trabalho fariam bem em refletir sobre seu envolvimento. Sem dvida, elas sofreriam se sua renncia fosse unilateral. Sem dvida, tambm, as economias dos pases fabricantes de armas sofreriam se essas indstrias

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  • fossem fechadas. Mas ser que no valeria a pena pagar o preo? Alm disso, aparentemente existem muitos casos no mundo de companhias que deixaram de fabricar armas para produzir outros tipos de produtos. Temos tambm o exemplo de um pas desmilitarizado, que interessante analisar comparando-o com seus vizinhos: a Costa Rica, que se desarmou em 1949, com enormes benefcios em termos de padro de vida, sade e educao.#228

    Quanto ao argumento de que talvez fosse mais realista restringir a exportao de armas a pases considerados confiveis e seguros, devo dizer que isso reflete uma viso pouco perspicaz do assunto. J ficou repetidamente provado que isso no d certo. Todos conhecemos a histria recente do Golfo Prsico. Durante a dcada de 70, os aliados ocidentais armaram o X do Ir para neutralizar a ameaa russa. Quando o clima poltico mudou, o prprio Ir foi considerado uma ameaa aos interesses ocidentais. Ento, os aliados comearam a armar o Iraque contra o Ir. E quando os tempos mudaram outra vez, essas armas foram usadas contra os outros aliados do Ocidente no Golfo (Kuwait). Como resultado, os pases fabricantes de armas viram-se em guerra contra seus prprios clientes. Em outras palavras, no existe cliente "seguro" para o comrcio de armas.

    No posso negar que minha aspirao pelo desarmamento mundial e pela desativao do aparato militar uma aspirao idealista. Mas constato que existem claras razes para o otimismo. Uma delas, ironicamente, ser muito difcil imaginar uma situao em que as armas nucleares e outras de destruio em massa sejam teis. Ningum quer cor-rer o risco de uma guerra nuclear total. Essas armas so obviamente um desperdcio de dinheiro. A produo cara, impossvel us-las e s o que se pode fazer estoc-las, o que tambm custa muito dinheiro. So portanto inteiramente inteis e servem apenas para consumir recursos.

    Outro motivo de otimismo o firme entrelaamento das economias nacionais, criando um clima em que as noes de vantagens e interesses #229 puramente nacionais tornam-se cada vez menos significativas. Conseqentemente, a idia da guerra como meio de resolver conflitos est comeando a parecer decididamente antiquada. verdade que onde h

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  • pessoas sempre haver conflitos. inevitvel que surjam desacordos de tempos em tempos. Mas, devido progressiva disseminao das armas nucleares nos dias de hoje, temos de encontrar uma alternativa violncia para resolver os conflitos - o que significa a busca de dilogo dentro de um esprito de reconciliao e compromisso. Isso no um desejo fantasioso de minha parte. A tendncia global para a unio poltica internacional, de que a Unio Europia talvez seja o exemplo mais bvio, sintoma de que possvel visualizar um tempo em que manter um exrcito permanente apenas nacional parecer desnecessrio e antieconmico. Em vez de pensar somente em proteger as prprias fronteiras, ser mais lgico raciocinar em termos de segurana regional. E isso j est comeando a acontecer. J existem planos, se bem que experimentais, de integrar mais as defesas europias, e uma brigada de exrcito franco-alem j existe h mais de dez anos. Parece ento possvel, pelo menos no que se refere Comunidade Europia, que aquilo que comeou sendo apenas uma aliana comercial acabe assumindo a responsabilidade pela segurana regional. E, se isso possvel dentro da Europa, h razes para se esperar que outrosgrupos internacionais de comrcio - que so muitos - possam um dia fazer o mesmo. Porque no?#230

    O surgimento de tais agrupamentos para segurana regional contribuiria muito para que a atual preocupao com as naes-estados evolusse para a aceitao gradual de comunidades menos rigorosamente definidas. Eles poderiam tambm preparar o caminho para um mundo em que no haveria exrcitos permanentes. Esse cenrio teria naturalmente de evoluir em estgios. As foras armadas nacionais dariam lugar a grupos regionais de segurana. Estes, em seguida, poderiam ser pouco a pouco dispersados, deixando apenas uma fora policial administrada globalmente. O principal encargo dessa fora seria proteger a justia, a segurana comum e os direitos humanos em todo o mundo. Seus deveres especficos seriam porm variados. Um deles seria a defesa contra a apropriao do poder por meios violentos no que diz respeito ao aspecto operacional, admitindo-se que houvesse questes legais a serem resolvidas antes. Mas imagino que essa fora policial seria convocada preferencialmente por comunidades que estivessem sob algum tipo de

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  • ameaa - de vizinhos ou de alguns de seus prprios membros, como os pertencentes a faces polticas extremamente violentas - ou pela prpria comunidade internacional quando houvesse grande probabilidade de violncia decorrente de conflitos de origem religiosa ou ideolgica, por exemplo.

    Estamos longe dessa situao ideal, porm ela no to fantasiosa quanto parece primeira vista. Talvez esta gerao no viva para assisti-la. Mas j nos acostumamos a ver as tropas das Naes Unidas trabalhando para manter a paz. Tambm j estamos comeando a #231 presenciar um consenso de que, sob certas circunstncias, pode ser justificvel utiliz-las de uma forma mais intervencionista.

    Como um recurso para promover essa marcha dos acontecimentos poderamos considerar a formao daquilo a que chamo de Zonas de Paz. Estas seriam uma ou mais partes desmilitarizadas de um ou mais pases para criar osis de estabilidade, de preferncia em reas de importncia estratgica. Serviriam como faris de esperana para o resto do mundo. Confesso que a idia muito ambiciosa, mas tem precedentes. J existe na Antrtida uma zona desmilitarizada internacionalmente reconhecida. No sou o nico a sugerir que deveria haver outras. O antigo presidente russo Mikhail Gorbachev props que a regio situada na fronteira sino-russa fosse elevada a essa categoria. E eu prprio levantei a idia de que se fizesse o mesmo com o Tibet.

    Existem muitas outras regies no mundo alm do Tibet onde as comunidades vizinhas se beneficiariam enormemente do estabelecimento de uma zona desmilitarizada. Assim como a ndia e a China dois pases ainda relativamente pobres - poupariam uma parcela considervel de sua renda anual se o Tibet se tornasse uma Zona de Paz internacionalmente reconhecida, h muitos outros pases em todos os continentes que seriam aliviados da tremenda e intil carga de despesas com a manuteno de tropas em suas fronteiras. Sempre achei que a Alemanha seria um lugar bastante adequado para se estabelecer uma Zona de Paz, por estar situada no centro da Europa e levando-se em conta a experincia das duas guerras #232 mundiais do sculo XX.

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  • Em tudo isso, creio que a Organizao das Naes Unidas tem um papel crucial a desempenhar. E no o nico organismo dedicado a questes globais. H tambm muito a admirar nas idias que inspiram a Corte Internacional de Haia, o Fundo Monetrio Internacional, o Banco Mundial e outros, como os que se dedicam a apoiar a conveno de Genebra. Mas, no momento e para o futuro imaginado, a Organizao das Naes Unidas a nica instituio global capaz de ao mesmo tempo formular e influenciar polticas em nome da comunidade internacional. E claro que muitos a criticam alegando que ineficiente, e verdade que muitas vezes suas resolues foram ignoradas, abandonadas e esquecidas. Ainda assim, apesar dessas falhas, sou um dos que continuam a ter o maior respeito no s pelos princpios segundo os quais foi fundada, como por tudo que essa instituio realizou desde o seu incio em 1945. Basta nos perguntarmos se ou no verdade que a ONU salvou muitas vidas ao desativar situaes potencialmente perigosas para termos certeza de que ela muito mais do que a burocracia desdentada que algumas pessoas a acusam de ser. Devemos tambm levar em considerao o grande trabalho de suas organizaes subsidirias, tais como UNICEF, o Alto Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados (UNHCR), a UNESCO e a Organizao Mundial de Sade. No podemos negar o seu valor, ainda que alguns de seus programas e polticas e os de outras #233 organizaes mundiais similares tenham falhado ou sido mal orientados.

    Considero que a Organizao das Naes Unidas, se desenvolvida ao mximo de seu potencial, deva ser o veculo mais apropriado para promover os desejos da humanidade em geral. No momento, esta instituio no est preparada para faz-lo com muita eficcia. Porm, estamos apenas comeando a ver o surgimento de uma conscincia global (que a revoluo nas comunicaes tornou possvel). E, apesar de tremendas dificuldades, vimos a sua ao em diversas partes do mundo, mesmo se no momento talvez existam apenas uma ou duas naes servindo como ponta de lana dessas iniciativas. O fato de estarem buscando a legitimidade conferida por uma injuno das Naes Unidas indica uma perceptvel necessidade de se justificarem atravs da aprovao coletiva. O que, por sua vez, acredito ser revelador do

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  • sentimento crescente de que somos uma nica e mutuamente dependente comunidade humana.

    Uma das fraquezas das Naes Unidas, na forma como est atualmente constituda, o fato de as pessoas no poderem ser ouvidas individualmente ali, apesar de proporcionar um foro para governos individuais. A ONU no possui qualquer mecanismo por meio do qual aqueles que queiram se manifestar contra seu prprio governo possam falar. Para piorar as coisas, o funcionamento do sistema de veto atualmente em vigor vulnervel manipulao pelas naes mais poderosas. So imperfeies muito srias.#234

    Quanto ao problema de indivduos no terem direito palavra, talvez tenhamos que pensar em algo mais radical. Assim como a democracia assegurada por trs pilares independentes, o poder judicirio, o executivo e o legislativo, tambm precisamos ter um organismo genuinamente independente no plano internacional. Talvez a ONU no seja totalmente adequada para esse papel. Em reunies internacionais, como na Conferncia de Cpula sobre Meio Ambiente (ECO 92) no Brasil, observei que os indivduos que representam seus pases inevitavelmente pem os interesses de Sua nao em primeiro lugar, apesar de o assunto em questo transcender fronteiras nacionais. Ao contrrio, quando as pessoas comparecem individualmente a reunies internacionais - e estou pensando neste momento em grupos Como o dos Mdicos Internacionais para a Preveno das Guerras Nucleares, ou o do movimento conntra o comrcio de armas promovido pelos agraciados com o Prmio Nobel da Paz, do qual fao parte - h uma preocupao muito maior com a humanidade em si. O esprito fica muito mais aberto e assume dimenses verdadeiramente internacionais. O que me leva a refletir que valeria a pena fundar um organismo cuja Principal tarefa seria monitorar as questes do mundo de acordo com a perspectiva da tica, uma organizao que poderia ser chamada de Conselho Mundial do Povo (embora, sem dvida, talvez se pudesse encontrar um nome melhor). Seria formada por um grupo de pessoas de procedncias das mais variadas. Haveria artistas, banqueiros, #235 ambientalistas, advogados, poetas, acadmicos, pensadores religiosos e

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  • escritores, bem como homens e mulheres comuns com notria reputao de integridade e dedicao a valores ticos e humanos fundamentais. Por no ser uma organizao investida de poder poltico, seus pronunciamentos no teriam validade legal. Mas, em virtude de sua independncia e por no estar ligada a nenhum pas ou grupo de pases e a nenhuma ideologia, essas deliberaes representariam a conscincia do mundo. E consequentemente teriam autoridade moral.

    Sei que muita gente vai criticar esta proposta, como tambm o que eu disse antes sobre desativao militar, desarmamento e reforma das Naes Unidas, alegando que nada disso realista ou que simplista demais. Ou que no vivel no "mundo real". Contudo, embora muitas vezes as pessoas se contentem apenas em criticar e culpar os outros pelo que no d certo, devemos ao menos tentar apresentar idias construtivas. Uma coisa garantida. Graas ao amor do ser humano pela verdade, pela justia, pela paz e pela liberdade, criar um mundo melhor e mais compassivo uma possibilidade legtima. O potencial est a. Se com a ajuda da educao e o uso correto dos meios de comunicao pudermos combinar algumas das iniciativas sugeridas aqui com a implementao de princpios ticos, estabeleceremos um clima em que o desarmamento e a desativao mi