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Damiao Oliveira e Waldir Abreu UFPA

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FILOSOFIA, CONHECIMENTO E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

Damião Bezerra Oliveira* Damiã[email protected]

Waldir Ferreira de Abreu** [email protected]

1 Considerações iniciais

A história da Filosofia fornece uma imagem canônica e bem

instituída desse campo de saber ou dessa forma de existência, que é

a filosofia, que a coloca numa relação tensa com a sociedade1,

mormente com a que se organiza em moldes democráticos. Essa

tensão é bem representada na clássica contraposição do pensamento

filosófico socrático-platônico e também do aristotélico com a sofística

ou na distinção derivada que dicotomiza episteme e doxa.

O núcleo desse confronto só pode ser enxergado a partir de

uma discussão do que seja a racionalidade, o conhecimento e os tipos

de finalidades a que devem estar ou não subordinados. Pressupõe,

também, a existência de uma sociedade ampla como topos da doxa,

por um lado, e de uma comunidade de “sábios” destacada dessa

enquanto espaço da episteme, por outro. O ponto de diferenciação

seria o saber ou mesmo o desejo específico de conhecer que

caracterizaria essa comunidade, identificando-a a um modo de vida

específico.

A expressão canônica dessa questão pode ser perspectivada,

ainda, na clássica divisão aristotélica, pela qual se hierarquizada a

atividade humana e cognoscente em prática, poética e teorética, com

* Professor de Filosofia da Educação/ UFPA. ** Professor de Didática/UFPA e aluno do curso de graduação em Filosofia nessa mesma universidade. 1 Hannah Arendt (1988) afirma que a compreensão de sociedade (“boa sociedade”) como um domínio que incluía apenas as pessoas com tempo para o lazer e desfrute cultural , ampliou-se com o advento da sociedade de massas em que o elemento de compartilhamento e inclusão de todos é o entretenimento. Essa seria a via pela qual se constituiria uma sociedade inclusiva.

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as suas respectivas justificativas em termos de interesse intrínseco

ou extrínseco do conhecimento.

Quando a Filosofia assume-se como busca autotélica do

conhecimento que teria compromisso, fundamentalmente, com a

verdade enquanto adequação do ente com o pensamento, ela se

afasta da sociedade enquanto um coletivo no qual, inegavelmente,

espera-se “resultados” práticos e produtivos do conhecimento em

consonância a uma diversidade de situações e relações, como tão

bem percebeu a sofística.

Pensamos, pois, que essa questão é fundante em qualquer

reflexão que relacione Filosofia e sociedade, não apenas como um

dado histórico cujo sentido se circunscreve, em grande parte ao

pensamento grego, mas especialmente enquanto uma inscrição que,

de modos diversos, mantém o seu vigor contemporaneamente.

Acrescente-se que a problemática supramencionada constituiu-

se em íntima relação com o importante questionamento do que é ou

não possível de ensinar para o exercício da cidadania democrática, o

que inclui a atividade filosófica como forma de conhecimento e modo

de vida.

Com base nesse quadro teórico apresentado, procurar-se-á

entender de que modo a racionalidade e o existir filosófico

precisariam ser pensados para atender as expectativas de uma

sociedade democrática2.

2 O conflito entre filosofia e sociedade

Jean-Pierre Vernant (1989) sustentou a tese de que na Grécia

Antiga estabeleceu-se uma tradição de relação extremamente

ambígua da Filosofia e do filósofo com a polis democrática3. Ao

2O que se pretende defender é que a estreita conexão que a Filosofia estabelece entre virtude/ética e saber/racionalidade, ocorre igualmente com relação à sociedade e à política. 3Para Vernant, A Filosofia jamais teria resolvido satisfatoriamente essa dificuldade.

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mesmo tempo em que nesse tipo de organização social, o debate

público, o questionamento e a argumentação constituíam-se nas

regras do jogo intelectual e político - favorecendo a racionalidade

filosófica -, essa tenderia a se isolar e desqualificar a experiência

comum da sociedade4.

Desse modo, uma Filosofia emblemática como a platônica, por

exemplo, ao exaltar o conhecimento universal e necessário de uma

realidade estável em detrimento da opinião acerca do aparente,

acaba, inevitavelmente, por apresentar argumentos que fortalecem

visões não democráticas das relações sociais. Sabe-se que a

democracia funda-se nesse saber flutuante, mutável e feito de uma

diversidade de opiniões sem os quais não haveria abertura da vida

política ao futuro como tempo ao qual se refere às deliberações.

Assim, o existir sócio-político não se subordinaria a uma lógica

universal na qual, presente, passado e futuro fossem indiscerníveis,

embora deva transcender o que é absolutamente inapreensível.

Colocar-se-ia entre a universalidade identitária e fixa e o fluxo

incessante, a igual distância de uma verdade fundada no definitivo e

do desespero de uma completa ausência de quaisquer consensos

provisórios.

Tal valorização da contingência do mundo, afirma-se contra a

“onto-gnosiologia” da identidade que remonta a Parmênides e se

solidifica em imagem privilegiada da filosofia na qualidade de saber

que transcenderia a cosmovisão comum. A fundamentação

gnosiológica do exercício de discussão e decisão dos problemas

sociais numa sociedade democrática não poderá ser, também,

qualquer saber ou racionalidade especializada que concedam uma

competência própria a grupos particulares.

4Tal sentimento mostra-se estranho às representações comuns a respeito da Filosofia e do seu ensino no Brasil, vistos como ameaças históricas aos regimes ditatoriais e, portanto, enquanto uma poderosa arma da democracia, especialmente no que concerne aos debates públicos e às decisões políticas.

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Tanto a racionalidade filosófica na sua busca do universal e

necessário quanto os saberes especializados na sua particularidade

técnica, quando reivindicam o privilégio de serem fundamento das

relações sociais ou das decisões políticas, trazem como conseqüência

o ofuscamento do vigor democrático.

Daí porque se constata que apesar do questionamento da

cultura mito-poética comum, ela continuou fornecendo inspiração à

vida social da democracia inaugural5, mesmo no auge do processo de

racionalização político-social, como uma espécie linguagem pela qual

se torna possível a comunicação, o debate e, conseqüentemente,

alguns consensos provisórios sem os quais não haveria sociedade

democrática.

Pode-se dizer, portanto, que o senso comum enquanto um

pressuposto da democracia, não resultaria de um exercício reflexivo

sobre o conhecimento popular que o traduziria numa linguagem

filosófica, técnica ou científica. Consistiria, antes, no saber imediato e

vivido, compartilhado espontaneamente, nas relações sociais. Se

alguma tradução tiver importância aqui, ela deverá fazer-se da

linguagem onto-gnosiológica para a expressão mito-poética, como

recurso próprio da filosofia, cujo exemplo paradigmático pode ser

encontrado em Platão ao conceder um lugar especial às expressões

alegóricas6.

O conflito histórico da filosofia com a sociedade democrática,

explica-se, também, pela dicotomização ontológica da realidade em

essência e aparência, interessando ao pensamento filosófico o supra-

sensível, enquanto o jogo sócio-político constitui-se neste último

5Um exemplo privilegiado do que se afirma é o “Protágoras” de Platão (1980). 6Em Platão, tal tradução possui um sentido eminentemente político-pedagógico, pois, no fundo a verdade enquanto tal só poderá ser realmente experimentada no plano da intuição noética, apreensão própria do exercício filosófico e condição de possibilidade para que o discurso não seja um mero jogo com as palavras, vício atribuído em tom de recriminação à sofística. Com relação à linguagem técnica e científica, pode-se defender igualmente, ainda hoje, a necessidade de tradução ou mesmo transposição didático-pedagógica como exigência para que se cumpram certos objetivos de uma educação geral.

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plano, na imanência do qual se deseja encontrar as suas próprias

razões sem o auxílio de qualquer fundamentação transcendente que

se concretize numa “dialética descendente”.

Wolff (1983) apresenta uma leitura de obras de Platão e

Aristóteles que ajuda a sustentar a tese dessa incompatibilidade entre

a clássica compreensão de filosofia e o ideal de sociedade

democrática7. Mostra que tanto a filosofia platônica quanto a

aristotélica ocupou-se da política, mas não da sua especificidade

enquanto prática democrática. Contudo, seria possível apreender a

contrario que tais autores tendem a negar o jogo democrático, na

medida em que para participação nele, não se poderia exigir qualquer

competência especial para além da experiência de um viver em

comum. Com isso se exclui, evidentemente, a filosofia da condição

gnosiológica de exercício esclarecido da cidadania.

Ora, na medida em que a filosofia é vista enquanto emersão da

aparência em busca da essência de todos os entes, inclusive da

sociedade e da política, passa a se confrontar seriamente com o viver

democrático e o saber comum compartilhado no cotidiano.

Consequentemente, ela tende a não se adequar às instituições

democráticas.

Isso ocorre em razão não apenas de se caracterizar, por um

lado, como uma atividade instituinte8 e demolidora das aparências,

mas especialmente em função de a lógica identitária que a sustenta

pretender instituir o conhecimento do ser definitivo, inclusive o da

sociedade política9.

7Essa tese encontra-se desenvolvida, também, em Hannah Arendt (1995) e em menor grau no pensamento de Vernant (1989) e no de Jaeger (1989). 8As noções de instituinte e instituído foram tomadas de Castoriadis (1982,1987). 9 Em se admitindo a possibilidade de a Filosofia e o filósofo atingir a essência da política, a discussão e o debate públicos, características da democracia, consistiriam em um ritual sem sentido, pois de um lado ter-se-ia alguém sabedor da verdade a priori, e do outro um coletivo que precisaria ser esclarecido.

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Diante disso, o relativismo ambivalente10 e humanístico da

sofística11 , assim como o seu “pragmatismo”, com os quais

procurava refutar a “ontologia” da identidade - e o conceito

transcendental de verdade-, parecem adequados a justificar o “caos”

potencial e a abertura crítica sem os quais a sociedade democrática

seria impossível ou desnecessária.

Essa visão sofística que procura refutar a lógica e a ontologia da

identidade, talvez seja o primeiro ensaio de um pensamento

democrático da democracia, na medida em que aceita a contingência

social, a finitude humana e a positividade de uma validade provisória

do conhecimento que, a rigor, não ultrapassaria o horizonte

hipotético e nem os limites da doxa. Esse pensamento sofístico

encontra na tradição mito-poética a sua inspiração para atingir os

objetivos de sua racionalidade prática a serviço da democracia,

deixando em segundo plano a filosofia da natureza (Jaeger, 1989).

Daí porque a concepção sofística é eminentemente

antropológica e nela se encontram sociedade, política e

conhecimento, irmanados nos mesmos princípios ontológicos e

gnosiológicos que escandalizaram filósofos como Platão e Aristóteles

e talvez, em menor grau, Sócrates também.

Esse conflito com a sociedade mais ampla pelas razões acima

apresentadas, constitui-se numa característica profundamente

incorporada à compreensão da filosofia e ao fazer filosófico que, por

ter adquirido o estatuto de tradição, não deixa de manter o seu vigor

como aquilo que precisa ser levado em conta na discussão do tema.

3 Tentativas de superação do conflito

10Romeyer-Dherbey (1986) mostra a extensão de tal ambigüidade, fosse ela desejada ou não, na indefinição de termos como pragma, chrema e métron, na “antropologia” de Protágoras, por exemplo. 11Jaeger (1989) fala de humanismo sofístico cuja melhor tradução é a tese do “homem-medida” que se contrapõe à ontologia que remonta à Parmênides.

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Marx e Engels (1986) reconhecem que a filosofia é pródiga em

prescrições do que deveriam ser as formações sócio-políticas, mas

estéril na interferência nesses domínios com vistas a transformá-los.

A racionalidade interpretativa ou contemplativa que marcaria o fazer

filosófico, seria, por ela mesma, incapaz de servir aos interesses de

uma parte da sociedade que deveria se constituir em sujeitos

históricos com potencialidade para instalar efetivamente os ideais de

justiça e liberdade, de modo a realizar, na prática, o humanismo

apenas pensado pela filosofia.

Esse modo de resolver o conflito entre filosofia e sociedade faz-

se pela crítica a ontologia e a gnosiologia clássicas e está mais

próximo, teoricamente, dos ensinamentos sofísticos por reconhecer a

realidade na sua dinamicidade, mas principalmente por valorizar a

dimensão pragmática da razão. Certamente esse pragmatismo

marxista possui uma motivação revolucionária e pretende engajar a

filosofia, não em prol da sociedade existente, mas da do porvir;

orienta-se pela praxis, reunido pensamento e ação e produção, de

modo a efetivar uma intervenção visando instituir, efetivamente, o

que é somente pensado como dever-ser12.

Outro exemplo significativo da tentativa de superação do

conflito entre filosofia e sociedade democrática é o pensamento de

Dewey (1979). Procurou desenvolver uma filosofia adequada a esse

tipo de sociedade na sua feição moderna, partindo de uma crítica ao

essencialismo do pensamento clássico e á chamada racionalidade

contemplativa que o acompanha.

Sem negar o princípio “estético” do conhecer por amor ao

conhecimento e nem a necessidade de criticar o pensamento

instituído e estabilizado como hábito, defende o caráter social e

12Pode-se observar a tendência não democrática de valorização da vanguarda nas tomadas de decisão, com base na idéia de que essa - ao contrário da maioria dos sujeitos que só estarão esclarecidos no final do processo revolucionário – conhece os pressupostos da ciência da história.

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político da filosofia e a importância de se reconhecer que o homem é

essencialmente um ente social voltado à prática.

Esse “pragmatismo” moderno presente em Marx e Dewey, mas

que remonta a Francis Bacon (1999), esforça-se por redefinir o

sentido do conhecimento e da própria racionalidade que o sustenta,

introduzindo como valor a ser observado o compromisso do

filósofo/cientista com as necessidades de desenvolvimento mais

prementes da sociedade, na defesa da célebre conjugação entre

saber e poder.

Contudo, a versão degenerada dessa conexão pode colocar-se

contra a democracia como um tipo de exercício baseado num

conhecimento “comungado” provisoriamente pela maioria e fortalecer

as tecnocracias que procuram justificar as restrições ao debate

público e as decisões pelos cidadãos de questões fundamentais do

existir comum com base numa pretensa competência especializada

de cientistas sociais e economistas para antecipar o horizonte do

possível.

4 Considerações finais

O conhecimento técnico-científico, assim como o filosófico, vem

contemporaneamente se restringindo a serem domínios de

especialistas que se congregam em “comunidades” nas quais se

partilham formas de vida próprias, valores ontológicos e

gnosiológicos específicos, comunicáveis em linguagens altamente

elaboradas que, como tais, necessitam de tradução para que sejam

compreendidas fora do seu “território”.

Apesar disso, a imagem recorrente da filosofia como um tipo de

vida especial e do conhecimento filosófico enquanto fonte e

fundamento do edifício do saber tende a perder o seu vigor com o

advento da crise do ideal de conhecimento universal e necessário

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atestado na epistemologia, tornando pensável a aproximação entre

filosofia e democracia.

A crise do ideal de episteme e a reabilitação da doxa nos

discursos epistemológicos mais recentes favorecem o novo olhar

sobre a incerteza, fluidez, diversidade e pluralidade. O “relativismo”

próprio aos tempos modernos e historicamente inerentes à sociedade

democrática, faz a filosofia pender para a tradição sofística, pois a

ontologia identitária e a idéia de fundamento têm grandes

dificuldades para encontrar argumentos que as sustentem.

Juntamente com essa fluidez e redefinição do tipo de

racionalidade filosófica, verifica-se cada dia mais, as solicitações da

sociedade no sentido de enquadrar a filosofia à sua lógica, de

atualizá-la de acordo com os seus objetivos, de fazer circular o

pensamento pelos canais de usuais de comunicação e informação.

Entretanto, não se pretende instituir uma sociedade de

filósofos, assim como seria impensável uma organização social

composta de cientistas, artistas ou que assumisse universalmente

qualquer uma das atividades de grupos específicos.

Seguindo à orientação da filosofia clássica para a qual, como

queria Platão, ou o rei se tornaria filósofo ou esse rei - para que se

tivesse um governo justo e ético-, numa sociedade democrática, se

teria que chegar a conclusão por essa linha de raciocínio, que a

totalidade da população teria que se transformar em filósofos.

Deve-se dizer, talvez, que isso não é mesmo possível. Assim

como o conhecimento científico não se transformou em “senso

comum” fora da comunidade científica, também a atividade filosófica

tem sido circunscrita, a rigor, às práticas educativas formais.

Desenvolve-se muito fortemente no interior de instituições

especialmente destinadas ao ensino e à investigação, portanto não é

uma experiência comum e generalizada partilhada pela maioria no

exercício da democracia.

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A apropriação da cultura científico-tecnológica pela maioria da

população ocorre no âmbito da educação geral, por um tipo de

apreensão intelectual elementar, e a grande justificativa do valor

dessa cultura é de cunho “pragmático” e se traduz pelos seus

possíveis usos.

Dessa perspectiva, seria possível justificar a racionalidade

filosófica na atualidade de acordo com quais valores? De acordo com

uma razão técnica ou tecnológica? Por sua importância prática? Como

reflexão ou construção teórica? Ou se deveria pensá-la enquanto uma

filosofia da práxis?

Qualquer que sejam as respostas a essas interrogações, é

preciso levar em conta qual seria o alcance de tal racionalidade

filosófica para os interesses reconhecidos pela sociedade ampla, e

legitimada pela sua própria racionalidade e conhecimento

comungados no exercício da atividade democrática.

Diante dessa sociedade da forma como ela existe na sua

aparência, qual seria o papel da educação filosófica no exercício da

cidadania democrática? De acordo com a lógica do jogo democrático,

o professor de filosofia não poderia apresentar-se como alguém que

se encontra além do mundo da aparência, desqualificando o chamado

“senso comum”.

Assim, uma das grandes dificuldades da atividade filosófica

seria abandonar a sua representação de conhecimento de uma

essência, de portadora de uma verdade incomum, acessível a um

pequeno número daqueles que se dispõem a um grande e heróico

esforço de iniciação como uma espécie de prova.

Por essa imagem, a educação filosófica afasta-se da sociedade

democrática na qual só possui valor o que pode ser amplamente

compartilhado. Sabe-se que como qualquer atividade cognoscente

altamente especializada, as dificuldades da investigação filosófica são

iguais ou superiores às exigidas na ciência. Sendo assim, uma

educação filosófica como contribuição à cultura geral, teria que

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circunscrever-se, como no caso das ciências, ao que é elementar, não

saindo de certo plano de superficialidade/aparência.

Mas como pensar, legitimamente, a educação filosófica

enquanto uma limitada contribuição à sociedade, sem a radicalidade

inerente ao questionamento filosófico? Certamente uma educação

geral não pode objetivar alcançar a profundidade de acordo com a

qual, habitualmente, os filósofos constroem as suas reflexões. Uma

questão a ser pensada na relação entre Filosofia e sociedade

democrática com a mediação do ensino diz respeito a como pensar a

atividade filosófica enquanto uma construção de conceitos ou uma

reflexão crítica sem limites e, simultaneamente, ter que atender aos

objetivos de uma educação geral, comum. A tendência desse ensino,

por conta das suas condições dadas, é fazer o pensamento parar na

superfície elementar, o que pode trair esse impulso irresistível da

crítica inerente ao pensamento filosófico.

Ao mesmo tempo em que há a recusa de dogmatizar o ensino

num esforço contra essa tendência institucional, é preciso reconhecer

que o ideal de crítica sem limites não encontra condições propícias

nas práticas cotidianas dos grupos sociais, de modo que dificilmente

essa forma de enxergar a filosofia iria se transformar em uma forma

de vida, numa atitude generalizada dos sujeitos sociais.

Assim, a cultura do ensino não coincide com o jogo de

linguagem que marca o fazer filosófico no seu rigor, com a sua forma

de vida sui generis e limitada; difere, também, da forma de vida em

que se inscrevem os cidadãos no seu cotidiano, no qual ocorrem as

suas decisões com maior ou menor urgência.

A barreira lingüística é um obstáculo insuperável que separa a

prática filosófica stricto sensu das práticas sociais democráticas mais

amplas. Desse modo, a tensão entre sociedade e comunidade de

filósofos é semelhante àquela existente entre comunidade científica

de determinada especialidade e a coletividade mais ampla, a menos

que a seja verdadeira a solução postulada de que para além da

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filosofia stricto sensu, haveria uma atitude filosófica inscrita na

natureza humana, independente da educação formal ou do ensino

sistematizado.

De qualquer modo, parece inegável que a filosofia instituiu-se,

hoje, como campo de saber altamente especializado, ao ponto de se

ter especialista em subárea, tema, num autor ou fase do seu

pensamento ou até em uma única obra. Os “filósofos” são formados,

via de regra, em cursos de pós-graduação, especialmente em nível de

doutorado.

Diante disso tudo fica a interrogação: em que sentido se

poderia falar ainda em uma filosofia como atitude que se

desenvolveria fora da universidade ou de alguma instituição formal

de ensino, com rigor e alcance suficientes para se transformar em

cultura comum nas práticas sócio-políticas de orientação

democrática?

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