Daniel Souza - Museus de Ciência e Divulgação Científica: a informação sob o crivo da ideologia

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    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA DA INFORMAOMESTRADO EM CINCIA DA INFORMAO

    CONVNIO

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - INSTITUTO DE ARTE ECOMUNICAO SOCIAL

    INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAO EM CINCIA E TECNOLOGIA

    DANIEL MAURCIO VIANA DE SOUZA

    Museus de Cincia e Divulgao Cientfica:a informao sob o crivo da ideologia

    NiteriRio de Janeiro

    2007

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    DANIEL MAURCIO VIANA DE SOUZA

    Museus de Cincia e Divulgao Cientfica:a informao sob o crivo da ideologia

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao IBICT-UFF, Linha de Pesquisa: Teoria,Epistemologia, Interdisciplinaridade e Cinciada Informao, como requisito parcial paraobteno do ttulo de Mestre em Cincia daInformao

    ORIENTADORES:

    PROF. Dr. GERALDO MOREIRA PRADO, Ph, D.

    PROF. Dr. JOS MAURO MATHEUS LOUREIRO

    NiteriRio de Janeiro

    2007

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    Para Alessandra,

    amor da minha vida

    e motivo de tudo.

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    Algumas pessoas foram fundamentais para que a execuo desta dissertao se

    tornasse vivel. Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos...

    ...ao Professor Geraldo Moreira Prado, orientador, pela amizade, interesse, debate e

    exemplo profissional;

    ...ao Professor Jos Mauro Loureiro, no s pela co-orientao e amizade, mas por

    acreditar e investir incondicionalmente na minha carreira e, principalmente, na minha

    vida;

    ... Professora Maria Nlida Gonzlez de Gmez, pela aplicao e alento intelectual;

    ... Professora Thereza Baumann, pela ateno e sugestes de valor inestimvel;

    ...a todos os professores e funcionrios do PPGCI, pela competncia e lio

    profissional;

    ...aos colegas ps-graduandos, pelo companheirismo em todos os momentos;

    ... Maria Lcia Loureiro, pela amizade, ternura e confiana;

    ... todos os amigos muselogos, profissionais de outras reas e demais pessoas que

    estiveram e estaro sempre ao meu lado, me apoiando, criticando, e tornando mais fcil

    a superao dos obstculos dirios...

    A todos, muito obrigado!

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    Como Hegel j havia analisado na dialtica da essnciae da aparncia, aquilo que no mera iluso (Schein),

    mas a manifestao (Erscheinung) da essncia. Aaparncia revela e oculta sua essncia ao mesmo

    tempo. Se no ocultasse a essncia, ela seria merailuso, e, se no a revelasse, no seria aparncia.

    (Seyla Benhabib)

    A ideologia j no , agora, apenas uma distoro ou uma reflexo falsa, uma tela que intervm entre ns e a

    realidade, ou um efeito automtico da produo de

    mercadorias. um meio indispensvel para a produode sujeitos humanos.

    (Terry Eagleton)

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    RESUMO

    Este estudo aborda as aes relativas divulgao cientfica nos espaos expositivosdos museus de cincia. Analisa as perspectivas ideolgicas que permeariam as

    representaes da cincia privilegiando as singularidades do fenmeno informacional

    nos espaos museolgicos.

    ABSTRACT

    This dissertation analyzes public science museum as informational field considering the

    scientific divulgation by means of museum exhibitions. It focuses the ideological

    perspectives which characterize the representation of science, emphasizing the

    "information" phenomenon in museum institutions.

    Palavras-chave

    Museu de Cincia; Divulgao Cientfica; Informao; Ideologia

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    SUMRIO

    1 INTRODUO...............................................................................................................8

    2 IMAGENS DA RAZO MODERNA: os museus de cincia.......................................13

    2.1 Origens e desenvolvimento............................................................................13

    2.2 Um item de f desdivinizada: a cincia.......................................................22

    3 (QUE) CINCIA PARA TODOS (?): a divulgao cientfica........................................33

    3.1 Um espetculo de resultados.........................................................................33

    3.2 O museu enquanto espao informacional......................................................39

    3.3 (Re)produzindo sentidos: a exposio museolgica......................................45

    4 DE CINCIA FALSA CONSCINCIA: a ideologia....................................................49

    4.1 Conceitos e noes.........................................................................................49

    4.2 Uma questo de formulao simblica: a ideologia segundo Thompsom......58

    5 NOVOS COMPROMISSOS, VELHAS PRTICAS: o Museu da Vida.........................65

    5.1 Instituio e concepo de um espao de divulgao cientfica.....................65

    5.2 Exemplo de um cenrio ideolgico..................................................................71

    6 CONSIDERAES GERAIS.......................................................................................85

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................89

    ANEXO A Textos dosbanners da exposio Fiocruz: patrimnio cientfico e cultural

    da sade........................................................................................................................99

    ANEXO B Quadro esquemtico: incidncia de aspectos ideolgicos na exposio

    Fiocruz: patrimnio cientfico e cultural da sade.......................................................107

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    1 INTRODUO

    Contemporaneamente, os museus de cincia vm se tornando gradualmente

    objeto de discusses cada vez mais recorrentes nos mais variados canais de debatesprofissionais, cientficos e acadmicos. Novos aparatos info-comunicacionais, produtosda tecnologia atual, congregados s mais diversas tcnicas de implementao deexposio vm sendo considerados temas relevantes no que tange ao potencial deimplicao dessas instituies museolgicas especficas em sua interrelao com oespao social. O foco central do interesse que se volta a tais museus fundamenta-se nadivulgao cientfica que, com o incremento de novas estratgias expositivas que

    privilegiam a interatividade hands-on (interatividade manual), minds-on(interatividade mental) e heart-on (interatividade cultural) (WAGENSBERG, 2005, p.310) possibilitaria, segundo seus entusiastas, maior participao do pblico, epermitindo conseqentemente uma percepo satisfatria do no-cientista dos fatos,fenmenos e significados da atividade cientfica.

    Consolidando-se progressivamente como espao propcio prtica dadivulgao cientfica, os museus de cincia objetivam, em tese, apresentar aspectosdirecionados importncia da relao entre cincia e tecnologia alm de suasconseqncias no dia-a-dia da vida social. A divulgao cientfica, por vezes tambmdenominada popularizao da cincia ou vulgarizao da cincia, constitui-se em umconjunto de iniciativas e procedimentos voltados comunicao da cincia para opblico em geral. Enquanto vias de divulgao cientfica, as narrativas expositivasmuseolgicas, encontrar-se-iam, todavia, permeadas por perspectivas que apontariampara uma apresentao acrtica da cincia.

    A ausncia de maiores consideraes acerca dos aspectos ideolgicos

    presentes na construo do conhecimento cientfico e suas relaes com o meio socialno qual se desenvolve aponta para uma divulgao operando um acesso apenasparcial cincia, ocultando o processo de produo em todas as suas etapas. A devidaateno ao carter processual da cincia permitiria maior preciso e clareza na criaode universos de significao, balizando uma memria cientfica na qual seria possvel oacesso no s s maravilhas proporcionadas pelo desenvolvimento cientfico, mas

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    tambm aos mais variados tipos de disputas e contradies que atravessam,direcionam e modelam tais atividades.

    Assim considerando, o estudo ora apresentado intenta refletir em torno dos

    aspectos da ideologia presentes nos processos de divulgao cientfica efetuados por meio das exposies no interior dos museus de cincia. Esta opo de pesquisadecorre do carter fundamental das prticas de operacionalizao da informao decunho cientfico construda, gerida e transferida a partir dos ambientes expositivosmuseolgicos, em sua essencial implicao nos quadros de constituio da memriacoletiva.

    A ideologia considerada, tal como Thompson (1995), um conjunto de

    significaes que influenciam nas perspectivas simblicas presentes na criao,legitimao e manuteno de relaes desiguais de interesses, permite supormos a suainterrelao com a cincia. Freqentemente revestida pela legalidade do discursoverdadeiro, apoiado na razo, a cincia estaria sempre cercada pela ideologia eseus aspectos de intencionalidade no interior de relaes econmicas, polticas eculturais especficas.

    De acordo com Lumbreras Salcedo (1988), no existe museu sem contedos, e(...) a memria est sujeita a diversos nveis de operao, que mantm espaosdiferenciados de presena de informao, que podem ser manifestos ou encobertos,segundo s circunstncias das aes e seus condicionantes histricos e sociais. Naqualidade de instncias de representao da memria coletiva, os museus de cinciapor meio de suas exposies se constituem espaos para produo de significadosbasilares da memria cientfica.

    Tais perspectivas apontariam, assim, para a existncia de uma vinculaointrnseca entre os aspectos ideolgicos de estabelecimento e sustentao de relaes

    especficas de interesses e os processos informacionais em curso nos museus decincia representados e (re)significados atravs dos objetos musealizados, legitimadosenquanto patrimnio cientfico. A divulgao cientfica implementada nas exposiesmuseolgicas de cunho cientfico, da mesma maneira, contribuiria para a construo deuma imagem social da cincia recortada de modo a periferizar diversos aspectoscaractersticos da sua heterognea configurao social.

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    A opo por um dentre os mltiplos exemplos que poderiam elucidar o quadroterico proposto por este estudo, no pretende abarcar todo universo empricoabrangente de possibilidades de representao, tampouco ignora a existncia do

    horizonte de particularidades das diversas instituies museolgicas e suas propostasexpositivas. Acreditamos, desta maneira, que a delimitao operada permitir analisar alguns traos subjacentes s prticas de divulgao cientfica que so partilhados pelosmais diversos museus de cincia, apresentando-se de maneira peculiar de acordo como perfil de cada instituio. O recorte foi estabelecido seguindo, fundamentalmente, ocritrio da disponibilidade de aes expositivas de cunho cientfico em curso nomomento de execuo da pesquisa.

    Como espao emprico, nesta perspectiva, foi observada a exposio de curtadurao Fiocruz: Patrimnio Cientfico e Cultural da Sade, implementada pelo Museuda Vida, que por sua vez pertence a Fundao Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) com sede nacidade do Rio de Janeiro. Tal exposio foi contemplada com bases nos seguintesfatores:

    estar vinculada a um museu de cincia e tcnica reconhecido como um dosmais ativos em todo pas;

    abarcar questes referentes cincia, seu patrimnio e sua divulgao aopblico;

    receber um contingente de visitao numeroso e heterogneo e; vincular-se uma instituio publicamente comprometida com a funo social

    potencialmente desempenhada por museus e, ao mesmo tempo, empenhadaem apresentar a cincia em sua interrelao com a vida cotidiana.

    A dissertao encontra-se dividida em seis captulos. No primeiro captulo apresentado, inicialmente, um estudo acerca do Museu de Cincia, seu surgimento,desenvolvimento e funes ao longo da Modernidade. Em seguida abordada a cinciamoderna, suas caractersticas e implicaes desde sua gnese at os dias de hoje. Nocaptulo 2 a divulgao cientfica enfocada com nfase nas suas especificidades emmuseus enquanto espao informacional. O terceiro captulo trata da ideologia, aludindo

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    suas mltiplas noes e conceitos e atendo-se perspectiva de J. B. Thompson acercada referida categoria.

    O captulo seguinte apresenta a exposio temporria Fiocruz: Patrimnio

    Cientfico e Cultural da Sade do Museu da Vida, de modo a ilustrar a disposio geralquanto s aes expositivas operadas em museus de cincia no que tange aos traosde representao ideolgica. No ltimo captulo so tecidas consideraes gerais, combase no quadro terico anteriormente construdo, em torno da questo da ideologianorteando os processos referentes informao no escopo museolgico e suadivulgao para o pblico em geral.

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    2 IMAGENS DA RAZO MODERNA: os museus de cincia

    Pluralidade que no se reduz

    unidade confuso; unidade que nodepende de pluralidade tirania.

    (Blaise Pascal)

    As abordagens acerca dos museus de cincia implicam no delineamento dosseus contornos e caractersticas essenciais, bem como no enfoque de sua temticafundamental, a cincia. Inicialmente, apresenta-se a gnese do espao museolgico,seu desenvolvimento enquanto instituio de carter pblico, assim como suasdiferentes funes no cenrio da sociedade ocidental moderna. Finalizando, busca-seestudar o fenmeno da cincia moderna, suas caractersticas, transformaes eimplicaes no decorrer da modernidade.

    2.1 ORIGENS E DESENVOLVIMENTO

    As origens dos museus de cincia encontram-se vinculadas ao colecionismo1 e

    aos processos de transformao histricos, sociais e culturais que marcaram osprimrdios da Modernidade Ocidental. Nesse perodo, uma nova cosmologia constitui-se progressivamente sob uma perspectiva de racionalizao do real, na qual buscava-se a partir do que Max Weber chama de desencantamento (Entzauberung ), ou seja,um abandono ao fundamento transcendental um controle cognitivo e instrumental domundo objetivo. A objetivao do real, possibilitada pelo emprego da razoinstrumental, configura-se uma das principais caractersticas da Modernidade peloestabelecimento de um paradigma ontolgico no qual tudo passa a ser compreendido apartir da percepo do homem enquanto medida de todas as coisas 2.

    Um dos fenmenos que retratam o iderio moderno de ruptura com umapercepo mtica do mundo, passando o sujeito a mediar sua relao com a natureza a1 As prticas de coleta e seleo de materiais diversos, comuns a vrias civilizaes desde as maisremotas pocas, constituem segundo Lvi-Strauss (2002), um dos prprios fundamentos da cinciamoderna, na qualidade de tentativas de explicao e compreenso do mundo.2 Este pensamento, que ilustra bem o iderio Moderno, foi cunhado ainda durante a Antiguidade gregapor Protgoras de Abdera (480 a.C. - 410 a.C.).

    http://pt.wikipedia.org/wiki/480_a.C.http://pt.wikipedia.org/wiki/410_a.C.http://pt.wikipedia.org/wiki/480_a.C.http://pt.wikipedia.org/wiki/410_a.C.
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    partir da razo, encontra-se nos gabinete de curiosidades, referido freqentementecomo uma das instituies basilares do museu de cincia. Organizados sob aperspectiva humanista, tais ambientes destinavam-se reunio de uma diversidade de

    objetos com vistas construo de saberes e a compreenso, tanto quanto possvel,do mundo.

    Presentes em diversas cidades e cortes da Europa renascentista, essesgabinetes tambm por vezes denominados cmaras das artes e das maravilhas constituam espaos freqentados por monarcas, intelectuais, homens interessados emcincia e mesmo leigos, com propsitos de estudo ou mesmo de simplescontemplao. Caracterizavam-se por manter e apresentar uma variedade de

    fenmenos da realidade sensvel (BITTENCOURT, 1997, p. 5), supostamentesuficientes para explicitar e ao mesmo tempo estimular a capacidade criativa, artstica ecientfica do homem. Os gabinetes de curiosidades podem, dessa maneira, ser tambm relacionados aos primrdios da atividade cientfica moderna:

    (...) em seu impulso por reunir colees nas quais conviviam o estranho,o peculiar e o miraculoso, podem ser vistos como tentativas de umaracionalizao cientfica e tcnica, ou como primitivas formas dessaracionalidade j em operao. (GRASSKAMP, 1994, p. 68).

    O impulso por colecionar objetos com o intuito de construir um microcosmorepresentativo do mundo (LEOPOLD, 1995) originou outras formas de percepo doreal que contribuiram para o estabelecimento das novas perspectivas cientficas dossculos que se seguem. Trata-se de uma leitura operada no pela via logocntrica, maspor meio da materialidade das colees presentes nos gabinetes de curiosidades quese difundiram durante a Renascena. A primeira instituio de carter moderno3

    definida sob o termo museu, todavia, foi o Ashmolean Museum da Universidade de

    Oxford, fundado em 1683 a partir da doao de Elias Ashmole de suas colees deinstrumentos cientficos e elementos da histria natural. A fundao desse museurefletiria o grmen de um iderio institucional de guarda e exposio de colees, com

    3 Tal carter moderno definido no apenas pelas premissas gerais da cosmologia da modernidade(razo instrumental, humanismo, valorizao cientfica, dentre outras), mas tambm pela exposio decolees, ainda que de maneira mais ou menos interdita a um pblico mais geral (LOURENO, 2000, p.4).

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    vistas a subsidiar a construo de discursos sobre um postulado progresso cientficoda humanidade (BITTENCOURT, 1997, p. 18).

    Durante o sculo XVIII o Iluminismo, como forma racional e sistemtica de olhar

    a realidade (ibid., p. 21) e as novas perspectivas trazidas pela Revoluo Francesa,enquanto expresso da ascenso da burguesia e de suas perspectivas cosmolgicas,daro uma nova configurao aos museus europeus no que diz respeito,principalmente, ao aspecto da publicizao de tais instituies:

    (...) bem possvel que aristocratas formados j sob o iderio liberalpretendessem estender a todo o povo as luzes da cincia, at entoiluminando exclusivamente aos eruditos. (...) quase como se aabertura dos gabinetes privados, tendncia do sculo, refletisse opensamento burgus de possibilitar oportunidades iguais a todos (ibid.,p. 31).

    Esses ambientes caracterizavam-se fundamentalmente pela guarda,conservao, e exposio de objetos para fins de estudo e base para construo deconhecimento. Instituies museolgicas como o British Museum (1753) alm deconseqncia do crescente interesse pela cultura e pelas cincias e da necessidadede organizao do conhecimento existente (GASPAR, 1993, p. 8), desempenham

    importante papel na formao da esfera pblica burguesa. Antigas colees de cunhocientfico colocadas agora em exposio para o pblico so inseridas em umadiscursividade. (...) onde novos valores de liberdade, igualdade e fraternidade entrecidados do Estado puderam ser produzidos e reproduzidos (HOOPER-GREENHILL,1990, p. 82).

    A idade de ouro dos museus, contudo, ocorre durante o sculo XIX (SCHAER,1993, p. 75). Nas primeiras dcadas daquele sculo houve uma expanso, em parte docontinente europeu, de inmeros espaos museais de diversas especialidades. Ascolees de cunho cientfico passam a refletir a preocupao em demonstrar odesenvolvimento de uma sociedade civilizada e ilustrada. Os museus vo se tornandocada vez mais, espaos propcios de representao e exaltao dos assimconsiderados avanos sociais, polticos e cientficos da nova ordem estabelecida.Importantes instituies museolgicas de carter pblico, como o exemplo do Museudo Louvre que embora inaugurado ainda no sculo anterior, alcana seu perodo

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    ureo durante o sculo em questo procuraram propagar as maravilhas do progressoe a superioridade da civilizao ocidental.

    Ainda no sculo XIX, as novas vises de mundo aliadas ao Romantismo,

    desempenharam tambm determinante influncia nas prticas empreendidas nosespaos museolgicos, refletindo as modificaes ocorridas no ambiente europeu.Como movimento coletivo abrangente de resistncia ativa s mudanas trazidas pelaRevoluo Francesa e seus corolrios s sociedades europias (DUARTE, 2004, p. 7-8), o Romantismo pode ser resumidamente caracterizado como reao ordemintelectual iluminista. Ao enfatizar a categoria Kulthur, dentre outras, os temasabordados pelos romnticos contriburam de, alguma maneira, para a criao de

    museus voltados ao tema da histria e da etnografia.A questo do Imperialismo europeu representou mais uma influncia naconfigurao dos museus de cincia no decorrer da modernidade ocidental no sculoXIX. Como conseqncia da expanso imperialista, o conhecimento e o domnio deculturas outras4 determinaram o surgimento de diversas instituies museolgicasespalhadas pelo mundo, alm de moldar de forma indelvel, o perfil de tais espaosat os dias atuais (SUANO, 1986, p. 22). Frente expanso nacionalista na Europa,inserida no contexto do Imperialismo, os museus contribuiram, dessa forma, tambmpara a construo de uma idia de identidade nacional fortalecida, por conta de suaspossibilidades de institucionalizao da memria coletiva5.

    Tendo os museus alcanado at ento um considervel nvel deinstitucionalizao e publicizao, ocupando-se cada vez mais com as questes daeducao pblica, grande nmero de Estados nacionais europeus investiamintensamente nessas instituies, acreditando, poder atravs delas, (...) dar aos seusfilhos acesso cincia e histria (BITTENCOURT, 1997, p. 37). No contexto do

    acelerado processo de industrializao ocorrido no final do sculo XIX, os museus4 Termo que atribui um corte bem delimitado em relao a toda e qualquer manifestao que nopertena cultura a partir de onde est sendo estabelecido o discurso neste caso, a partir das naeseuropias.5 Alguns museus de carter antropolgico, por exemplo, balizavam-se em pressupostos cientficosadvindos de teorias raciolgicas para a construo de narrativas expositivas onde a imagem de outrospovos era veiculada no sentido de edificar o sentimento nacional e a superioridade imperial. Tais espaosmuseolgicos, conforme afirma Bennett (1995, p. 180-188), enquadravam-se assim, numa espcie deestratgia hegemnica especfica das diferentes naes burguesas onde o respaldo cientfico de seusdiscursos acerca do Outro os oferecia em sacrifcio para o processo de colonizao e modernizao.

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    passam definitivamente, a divulgadores do progresso, ensinando a seus visitantes osbenefcios dos novos padres de civilizao (NEVES, 1988, p. 32).

    Os Museus de Cincia e Tcnica, especificamente, desenvolvem-se como

    instituies voltadas ao trabalho de investigao cientfica ao mesmo tempo em quemantm preocupaes para com o domnio histrico do desenvolvimento cientfico etecnolgico. Diversos autores, dentre eles Marandino (2001, p. 66), concordam emidentificar na criao do Conservatoire des Arts et Mtiers, ainda no final sculoanterior, o esboo do museu de cincia e tcnica que durante o sculo XIX funcionarcomo uma espcie de vitrine para a indstria, alm de realizar a difuso e o ensino deprincpios cientficos.

    Segundo Bragana Gil (1994), os Museus de Cincia e Tcnica por eledenominados de primeira gerao6, seriam responsveis por apresentar, para umpblico amplo, o avano da cincia, suas descobertas e contribuies para odesenvolvimento da humanidade, chamando a ateno do visitante para a histria dacincia atravs de objetos que documentariam essa trajetria cientfica. Tais espaosmuseolgicos para o autor deveriam,

    (...) no s promover, atravs do seu pessoal cientfico, trabalhos de

    investigao como devero constituir-se em centros de documentaono domnio da histria do desenvolvimento cientfico e tecnolgico, aoservio de todos os especialistas e interessados, que podero estudar,nas suas colees (BRAGANA GIL, 1988, p. 74).

    Embora o conceito de Museu de Cincia e Tcnica venha muitas vezes acrescidoda preocupao com a questo educacional, outras perspectivas sugerem relacionar tais motivaes a uma certa inclinao ao utilitarismo. Tal ressalva pode ser respaldadapelo fato de as colees desse tipo de instituio museolgica no se constiturem de

    objetos curiosos advindos das colees principescas ou como esplio da exploraoimperialista, mas sim por objetos do prprio cotidiano industrial e tecnolgico. BraganaGil (1988, p. 77), refere-se a essas colees como verdadeiros depsitos pblicos de

    6 O autor prope uma diviso em dois grupos de museus de cincia. Os de primeira gerao seriam osdestinados a tratar os aspectos histricos da cincia. Os de segunda gerao Centros de Cincia, quesero aqui analisados oportunamente seriam responsveis pela apresentao dos conceitos eprincpios fundamentais da cincia, sem a obrigao da preocupao com o carter histrico nasexposies.

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    mquinas, ferramentas modelos, dentre outros objetos destinados a propiciar um tipoespecfico de instruo profissional. O autor ressalta que alm da face utilitria einstrutiva dos Museus de Cincia e Tcnica, tambm as possibilidades de implicaes

    da cincia e da tecnologia na esfera social perspectiva impulsionada pelo avanoindustrial vo marcar de maneira indelvel o territrio das prticas museolgicascientficas a partir de ento.

    A passagem do sculo XIX para o XX foi marcada pelo surgimento de novasrelaes de trabalho e concepes polticas e filosficas acerca da construo de umasociedade moderna e civilizada, resultado direto da realidade industrial entoinstaurada e em contnuo avano. No perodo, o otimismo quanto aos progressos da

    cincia e das tcnicas vai alcanar nveis elevados, a ponto de ser estabelecido o mitocientificista da sociedade perfeita alcanada somente por meio da aplicao doconhecimento cientfico em todas as esferas da vida social. A proliferao deinstituies museolgicas de cincia que ocorre desde a primeira metade do sculo XX,em diversas partes do mundo ocidental com vistas preservao do patrimniocientfico e com a preocupao de levar a um nmero cada vez maior de pessoas taisconcepes, constituem o desenho da denominada idade da tecnologia (Valente;Cazelli; Alves 2005, p. 194), perodo que implicaria diretamente na relao entre osmuseus de cincia e as questes sociais. Essas instituies passaram a ter, em tese,como principal misso, comunicar e socializar o conhecimento:

    Seus propsitos iam alm da preservao de artefatos marcantes para ahistria da cincia e da investigao sobre eles; concentravam-se emtorno da difuso de princpios cientficos e tecnolgicos, a fim de induzir os jovens s carreiras pertinentes a essas reas (ibid., p. 189).

    Tais perspectivas resultam de um intenso processo de discusses, deabrangncia internacional, travado a partir da dcada de 1960, acerca da funo socialdo museu. Estes debates determinariam a partir de ento, o desenvolvimento decontornos mais dinmicos para as instituies museolgicas de cincia, buscandoassim maior projeo como estabelecimentos de educao, transferncia dainformao cientfica e propagao dos valores da cincia voltadas para um pblicoamplo e heterogneo.

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    As diferentes abordagens disciplinares acerca do museu de cincia apresentamcontornos pouco delimitados no que diz respeito s suas variaes conceituais eprticas, no permitindo assim privilegiar uma noo nica do espao em questo. O

    International Council of Museums (ICOM) propem a classificao dos espaosmuseolgicos dedicados cincia em duas perspectivas: Museus de Histria Naturale Museus de Cincia e Tcnica. Em funo das diferentes transformaes dessesdois tipos de museus cientficos considera-se como Museu de Cincia e Tcnica toda equalquer instituio dedicada divulgao da informao de cunho cientfico atravs dasensibilizao para a cincia. (LOURENO, 2000; MOSCOVICH, 1963; CIALDEA,1994; KOSTER, 1998).

    Alm dos Museus de Cincia e Tcnica ditos tradicionais, surgem a partir dasegunda metade do sculo XX novas concepes institucionais de difuso dos produtosda cincia e da tecnologia que alcanam desenvolvimento sem precedentes nahistria, tanto em termos de quantidade quanto em diversidade: so os denominadosCentros de Cincia e os Science Centrum. Os primeiros, aparecem nos EstadosUnidos, e so considerados por Bragana Gil (1988), dentre outros autores, como umanova concepo de museus, podendo ser instituies ligadas ou no ao Estado, com ointuito de divulgar amplamente os produtos e tcnicas advindos do universo cientfico.Os meios expositivos e info-comunicacionais utilizados por essas instituies procuramprivilegiar a participao do pblico, levando-o ao contato direto com tcnicas eexperincias executadas frequentemente no interior dos laboratrios e instituies depesquisa em geral.

    As construes discursivas empreendidas nos Centros de Cincia pretendemapresentar um perfil voltado preciso na explicao dos preceitos e realizaescientficas. Objetiva-se dessa forma, que tais narrativas adquiram uma capacidade de

    desmistificao da cincia permitindo uma quebra da barreira existente entre o discursoespecializado e o conhecimento comum (BARROS, 1998, p. 2).

    A noo de Science Centrum, por seu turno, foi desenvolvida maisrecentemente em referncia s instituies cientficas norte-americanas caracterizadaspela apresentao e operacionalizao, em um nico espao, de aspectos especficostanto dos museus de cincia como dos Centros de Cincias. Bragana Gil (1988)

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    prope que, em um futuro prximo, a tendncia que os conceitos e prticas demuseus de cincia e centros de cincia deixem de existir separadamente em suasespecificidades, havendo uma espcie de interpenetrao entre tais ambientes sob a

    denominao genrica de science centrum. O autor refere-se a esses espaos comoa 3 gerao de museus de cincia e tcnica caracterizando-os pela integrao deelementos da cincia e dos contextos scio-polticos e histricos nos quais foramproduzidos. Loureno (2000, p. 14), define alguns traos especficos de tais espaosmuseolgicos: integrao em exposies de objetos cientficos e tcnicos de valor documental e objetos participativos, complementados por uma srie de atividades comoas workshops, as demonstraes e as dramatizaes.

    Procurando apresentar argumentos que delimitem contornos mais claros sinstituies museolgicas, Barros (1998, p. 2-3) entende que os centros de cincia, por dispensarem a presena de objetos representativos da histria da cincia e no sededicarem guarda e conservao de colees, diferenciam-se das instituiesmuseolgicas ditas tradicionais, uma vez que estas se caracterizariamfundamentalmente, por serem responsveis pela guarda de um acervo de relevnciahistrica, tendo assim o museu de cincia um outro papel, referente possibilidade depreservao da memria cientfica.

    Procurando reforar a importncia que a perspectiva histrica representaria paraas instituies museolgicas de cincia, o referido autor aponta sem mencionar, noentanto, suas dificuldades prticas para a possibilidade de nestes museus trabalhar-se com objetos que

    refletem vises de mundo caractersticas de pocas especficas (...)conhecer questes cientficas que esto ou estavam por trs daidealizao de tal instrumento e que esto, direta ou indiretamente,

    associadas viso de mundo da poca. E, finalmente, descortinar o querepresenta hoje, as questes e as preocupaes formuladas no passado(ibid., p. 3).

    As reflexes empreendidas acerca das instituies museolgicas de cincia considerando tambm os centros de cincia e science centrum em sua grandemaioria procuram ressaltar o aspecto educativo que prevaleceria em suas prticasexpositivas. Fruto das novas perspectivas de insero da cincia e da tecnologia no

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    cotidiano do homem comum, tais espaos caracterizam-se por lanar mo de variadosmeios de comunicao e de exposio de carter interativo com vistas motivao,aproximao e educao atravs da prpria experincia. Em conseqncia da

    exposio de fenmenos e idias cientficas de uma maneira pela qual pretender-se-iaoferecer mltiplas oportunidades ao pblico de aproximao e compreenso daimportante presena da cincia no dia-a-dia da vida em todos os nveis sociais,Museus e Centros de Cincia so frequentemente considerados ncleos permanentesde formao e informao cientficas (CRESTANA, CASTRO, PEREIRA, 1998, p. 10).

    O carter interativo das exposies em museus e, principalmente, centros decincia seria, segundo Saad (1998, p.22), o trao principal que delineia o perfil de tais

    instituies na contemporaneidade. Chegando a ser, dessa forma, considerado oprincipal recurso utilizado pelo museu/centro de cincias moderno no desenvolvimentode suas prticas educativas (ibid., p. 22). Diversos exemplos podem ser encontradosfazendo referncia nfase no carter interativo dos museus e centros de cincia comvistas aprendizagem a partir da atividade expositiva. O Exploratorim fundado em1969 em So Francisco, EUA procura focar suas prticas em experimentosparticipativos. O Centro de Cincias de Ontrio inaugurado no mesmo ano emToronto, Canad alm de possuir objetos representativos das mais recentesdescobertas tecnolgicas, objetiva dar suporte educao formal em cincia(MARANDINO, 2001, p. 68). Muitos outros exemplos poderiam aqui ser citados deespaos museolgicos de cincia que balizam suas exposies no pressuposto dainteratividade como forma de torn-las atrativas, pretendendo apresentar um quadromais completo do contexto scio-cultural na qual se insere a atividade cientfica.

    Por mais que sejam exaltadas as possibilidades ldicas, participativas eeducacionais da interatividade, Falco (1999, p. 33) por outro lado, faz algumas

    ressalvas no que se refere a provveis perigos e at mesmo constrangimentos quepodem advir desse otimismo exagerado quanto linguagem interativa aplicada nosmuseus e centros de cincia. Tal advertncia refora as perspectivas que procuramalertar para o cuidado que deve ser tomado em relao aos princpios e resultadosdessas abordagens expositivas ditas interativas implementadas em museus e centrosde cincia. Um aspecto considerado fundamental pelo autor seria a

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    (...) ausncia da preocupao com os processos da cincia, sua histriae suas implicaes no contexto social, j que a nfase muitas vezes,nesses museus, a exposio dos produtos da cincia, desconectados de

    quem a faz e da cultura onde se insere (Id.).

    Os aspectos acima referidos so, na viso de Bragana Gil (1988, p. 87),decorrncia da falta de perspectiva histrica, caracterstica marcante do perfil doscentros de cincia, especificamente no deixando de ser possvel tal premissaplasmar as abordagens tericas e prticas de museus de cincia e tcnicaconsiderados tradicionais. A postulada misso educativa dessas instituiesmuseolgicas estaria, assim, prejudicada, incorrendo em uma (in)formao incompleta

    sobre assuntos do mbito cientfico e tecnolgico.

    2.2 UM ITEM DE F DESDIVINIZADA: a cincia

    A multiplicidade de aspectos que caracterizam as relaes entre o Museu e aCincia & Tecnologia podem ser mais bem avaliadas a partir de uma sntese dasconstituies e desenvolvimento da cincia moderna. Produto do embrionamento dassociedades ocidentais modernas, a cincia (do latim SCIRE: compreender; apreender;conhecer) mostrar-se- fundamental na produo e desenvolvimento material esimblico da modernidade.

    A Revoluo Galileana ocorrida no sculo XVII inserida em um contextohistrico de embrionamento do capitalismo, avano das tcnicas empregadas nasdiversas atividades humanas, expedies martimas, Reforma e Contra-Reforma,dentre outros aspectos contribuiu na construo de novas perspectivas acerca darelao homem/natureza que vo se delineando com o surgimento da cincia moderna(JAPIASSU 1988). Neste horizonte, vai se estabelecendo uma quebra entre asdimenses do fsico e do metafsico, no sentido de uma objetivao dos fenmenos danatureza que existiriam independentemente do sujeito, podendo ento ser observados,compreendidos e explicados objetivamente, ou seja, sem sofrer o risco de incursesvalorativas e imprecises causadas pela subjetividade da observao.

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    O universo passa a ser compreendido, desde ento, como uma espcie deconstruo a partir de fatos objetivos, justificando a percepo mecanicista da cinciamoderna na qual a natureza como um todo considerada um complexo de

    mecanismos regidos por leis ordenadoras. O mecanicismo, segundo Rossi (2001, p.184), mais do que um mtodo configurou-se uma verdadeira e prpria filosofia quepropunha uma imagem da cincia ao designar o que ela era e o que devia ser. Osfatores que caracterizariam a filosofia mecnica so:

    1) a natureza no a manifestao de um princpio vivo, mas umsistema de matria em movimento governado por leis; 2) tais leis podemser determinadas com exatido matemtica; 3) um nmero muitoreduzido dessas leis suficiente para explicar o universo; 4) aexplicao dos comportamentos da natureza exclui em princpioqualquer referncia s foras vitais ou s causas finais (ibid., p. 244)

    A idia de uma natureza que no quebra suas leis, funcionando na dimensomecnica de causa e efeito, j encontrada em Leonardo da Vinci no sculo XVI, vaiexplicar a necessidade de um saber capaz de pesquisar e decifrar os cdigos objetivosque constituiriam tais leis naturais. A partir do momento em que se deixa de olhar anatureza como algo deificado, dirigido por princpios e foras imanentes e se admite,

    tal como Galileu (1890-1909 apud ROSSI, 2001, p. 167), sua ordem e estruturaharmoniosa, de tipo geomtrica, a metfora da mquina passa a ser convenientementeutilizada na descrio dos fenmenos da vida.

    Impulsionada pelo mercantilismo europeu, quando eram buscados meios paraestimular o comrcio e a agricultura, a cincia a partir da segunda metade do sculoXVII, inserindo-se neste horizonte de interesses, encontra um ambiente bastantefavorvel para o seu desenvolvimento e expanso. Outras questes, referentes sgrandes navegaes e descobertas, apresentavam-se como campos de insero parauma atividade cientfica de cunho instrumental, pautada em princpios de racionalidadecapazes de encontrar solues adequadas e objetivas para as demandas especficasde determinados contextos. O prprio advento das Sociedades Cientficas surgidasnum primeiro momento na Inglaterra e em seguida em vrias outras regies da Europa

    alm de representar a institucionalizao da cincia moderna, significa tambm, aoficializao do saber cientfico enquanto instncia de representao propcia ao

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    exerccio da prtica poltica e econmica da burguesia segmento social em ascensoao poder (JAPIASSU, 1988).

    Alguns aspectos referentes relao entre a cincia e o universo da burguesia

    permitem pressupor certos pontos de interconexo de tal binmio. Francis Bacon eRen Descartes j haviam anteriormente concebido a cincia como instrumento capazde oferecer ao homem a possibilidade de conhecimento e, consequentemente,dominao deste sistema fundado na razo que seria a natureza. Considerando quea cincia floresceu conjuntamente com o desenvolvimento do capitalismo (ibid., p.111), seu avano durante o sculo XVIII e a concomitante construo de uma novatechn voltada preciso na experimentao da qual vai surgir a tecnologia

    moderna desempenharam papel fundamental para a expanso quantitativa daproduo industrial, alm de demonstrar o forte vinculo existente entre saber e poder.A necessidade de resolver objetivamente determinados problemas tcnicos

    advindos das prticas industriais/produtivas revela a essncia de uma racionalidadeherdeira do Iluminismo em que o desejo de dominao inerente cincia moderna seobjetifica quando da prpria objetificao do real como elemento racionalmenteestruturado nas palavras de Descartes (1980): o real o racional. Tais premissascultivaro o solo para um cientificismo que se sustentaria na misso postulada deorganizao cientfica da humanidade. O saber positivo7, construdo a partir dainterpretao racional da natureza representaria, assim, o alicerce do poder de inseroda cincia:

    No final do sculo XVIII, todos j estavam possudos por um incrvelotimismo na eficcia da cincia. A confiana nela depositada praticamente ilimitada. A cincia, em seu conjunto, passa a funcionar segundo normas ontolgicas e metodolgicas diretamente ditadas por uma viso de mundo obcecada por um racionalismo quantificador ecalculador e, ao mesmo tempo, fundada num mecanicismo triunfante(ibid., p. 132).

    7 O positivismo comteano remonta a Bacon em sua busca de organizao racional da humanidade,baseando-se em uma perspectiva weberiana na qual a cincia seria capaz nos prover a possibilidade depreviso de determinados acontecimentos e fenmenos atravs do conhecimento prvio de seuselementos causadores (JAPIASSU, 2001, p. 41). Esta lgica do prever-para-agir, aplicada tambm aocontexto social e humano, atualmente criticado como uma modalidade de cientificismo redutor, sob umaabordagem pragmtica e tcnica da questo social.

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    Na medida em que vai se estabelecendo o direito de apreenso e reformulaoda sociedade sob a gide da razo, a cincia cada vez mais embrenha-se noimaginrio coletivo como nico modo vlido de representao e saber (CHRTIEN,

    1994, p. 18). No plano do conhecimento de inspirao cientificista, as atividadesrevestem-se de uma imagem de neutralidade e autonomia baseando-se emmetodologias e princpios construdos a partir de critrios objetivos propiciados pelaexperincia emprica da pesquisa pautada na lgica racional. O poder gerado pelosaber cientfico pode ter, desta maneira, uma lgica dupla pois, ao mesmo tempo queproporciona um controle sobre a natureza, tambm gera um controle sobre o homem,uma vez que, desvendando-se as leis que regeriam o meio natural tornar-se-ia possvel

    ditar sociedade modos e costumes de vida que fossem de acordo com tais normasnaturais (Ibid., p. 30).As perspectivas apresentadas acima relacionam o saber e a produo de

    conhecimento cientfico intrinsecamente produo de representaes teis aodomnio material do mundo e de um discurso simblico legitimador (FOUREZ, 1995, p.103). Dessa maneira, vo se construindo discursos acerca das potencialidades dacincia balizados em sua pretensa neutralidade objetiva, garantindo-lhe o poder legtimo de apresentar todas as respostas sobre as mais diversas questes eproblemticas sociais. O sculo XIX uma poca em que se consolidam no s asinovaes trazidas pela Revoluo Industrial, como tambm novas relaes entrecincia e poder poltico. A idia de progresso do conhecimento, torna-se cada vez maisintimamente vinculada idia de progresso da produo industrial que deve se pautar nos critrios de racionalidade, voltando-se ao bem estar social atravs das luzes que acincia difunde.

    Na medida em que a cincia e a tcnica vo se estabelecendo como instncias

    legtimas de apreenso e interpretao do mundo natural, cada vez mais seus mtodose aplicaes tornam-se justificados no empreendimento de investigao das leis queregeriam o mecanismo social. A segunda metade do sculo XIX, mais especificamente,vai ser marcada por um otimismo exacerbado acerca das potencialidades cientficas etecnolgicas em guiar a humanidade em sua constante evoluo histrica, a umaideal de civilizao no qual se encontraria realizada a utopia baconiana da sociedade

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    ilustrada. Uma espcie de nova f laicizada na marcha do progresso caracteriza oiderio de uma modernidade plasmada pela crena da organizao cientfica dahumanidade8. A substituio da certeza na providncia divina que configurava a

    cosmologia medieval por uma doutrina do progresso encerra, segundo Neves (2001,p. 2), uma perspectiva na qual o ideal de civilizao consistiria num processo dedesenvolvimento sempre no sentido de uma melhoria e um aperfeioamento da vidahumana9.

    As percepes acerca das mltiplas definies de cincia e as diversas formaspelas quais ela se relaciona e com os processos sociais, como argumentaSchwartzman (1980, p. 27), podem ser freqentemente perturbadas pela nuvem de

    mitos que sempre cercaram a atividade cientfica. A crena no progresso geral dohomem alcanada por meio do progresso cientfico e tecnolgico, justificativa-sesegundo o autor, com respaldo nos mitos 10 atravs dos quais a sociedade percebe acincia.

    O esprito iluminista fundado na crena de que as luzes da razo e a cinciapodem conduzir o homem, em seu projeto de sociedade esclarecida, a nveiscrescentes de liberdade e perfeio, encontra-se sobremodo cristalizado na segundametade do sculo XIX, justificando a idia de mito do progresso permeando um novomodelo ideal de sociedade. A idia de progresso denotando um sentido de avano,relacionada a um ideal de novo modelo social, remete ao prprio significado daModernidade enquanto algo pautado na convico de que a novidade traz sempre umamelhoria. Dessa maneira, qualquer tipo de oposio a esta lgica moderna-racional-tecno-cientfica, representaria, mais que um atraso, um retrocesso, um impedimento damarcha contnua para a verdade11.

    8 Segundo Berthelot (apud JAPIASSU, 2001) um dos mais ardorosos cientificistas do sculo XIX amais audaciosa e legitima pretenso da cincia moderna.9 O que segundo Condorcet, Spencer, dentre outros, representaria, nada mais que, a realizao de umalei geral da natureza (id.).10 Schwartzman (1980), chama ateno para o sentido nem sempre ilusrio ou errneo dos mitos, sendoeles presentes e ativos por sua capacidade de capturar determinados aspectos da realidade social,transformando-os muitas vezes em verdades absolutas. Neste sentido, o autor percebe o horizontemitolgico do progresso cincia, como uma verso, um recorte da potencialidade de insero social daatividade cientfica, tal como ele pode se dar.11 Projeto postulado pela filosofia das luzes desde os seus primeiros representes: Bacon, Descartes,Montaigne, Montesquieu, Voltaire, e muitos outros.

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    A noo de progresso, compreendido a partir de ento, como movimento parafrente de nossa civilizao encontrar-se-ia, nestas circunstncias, intrinsecamentevinculada s oportunidades proporcionadas pelo avano e as conquistas da cincia e

    da tcnica. (JAPIASSU, 2001, p. 176).

    (...) a crena no progresso passa a assumir a forma de um mito, mesmoque apoiando-se numa filosofia da histria, quer dizer, numa conceposegundo a qual a histria formaria um todo e evoluiria em direo a umponto final conferindo-lhe sentido (ibid., p. 177).

    Embora desde o seu surgimento no alvorecer da modernidade a cincia secaracterize como um projeto prtico pautado na razo para tornar a verdade um

    instrumento til ao, somente no sculo XIX ela pode ser reconhecida como umaprtica imprescindvel, necessria para a efetivao do curso do progresso. Nestemomento solidifica-se o iderio do progresso como garantia, cientificamenterespaldada, de um avano inexorvel da sociedade humana.

    A filosofia positiva de Augusto Comte vai contribuir sobremaneira para aconstituio de uma idia de evoluo social12 que ir sustentar o princpio dedesenvolvimento progressista. Tal perspectiva funda-se nas possibilidades geradaspelo progresso cientfico de desvendar estruturas naturais previamente dadas gerindoo mundo social e humano, e suas conseqentes implicaes para o progresso social.Esta conjuno entre progresso cientfico e progresso social, somente validado sobos critrios do saber racional representa a instaurao de um cientificismo de acordocom o qual somente a cincia capaz de, objetivamente, produzir conhecimentosvlidos e verdadeiros. Segunda tal orientao, a cincia se apresentaria independente,existindo acima de todo e qualquer interesse externo, seguindo assim suas idias eprticas, uma trajetria evolutiva autnoma em relao ao seu contexto scio-histrico13.12 Tal postulado encontra-se balizado, por sua vez, na idia de uma lei de evoluo ordenada,sustentada por Spencer que considera a sociedade como um organismo biolgico que evolui desdeformas mais simples s mais complexas a partir de uma apropriao e transposio para o meio socialdas teorias evolucionistas de Darwin (JAPIASSU, 2001).13 Sob este prisma de anlise, enquadram-se correntes da Histria e da Sociologia da Cinciadenominadas internalistas, das quais apresentam uma leitura idealista da cincia que lhe conferem apossibilidade de se desenvolver segundo uma lgica imanente, a parte de qualquer influncia devalores e interesses externos. Japiassu (1988, p. 115), ao analisar a concepo de cincia descrita sob atica internalista constata seu estatuto puramente cognitivo, neutro, objetivo (...) transcendente

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    A defesa feita por Condorcet de que a cincia tem como objetivo proporcionar aohomem a felicidade e que para tal fim necessrio o aperfeioamento dos processossociais como conseqncia do progresso da cincia e da tcnica, selaria uma relao

    de troca mtua entre cincia, tcnica e indstria. Neste contexto, as atividadesindustriais passam a desempenhar um papel de extrema relevncia, no sentido depermitirem o incremento de saberes e tcnicas suscetveis de dar ao homemconhecimentos e ferramentas prticas para realizarem no dia-a-dia seu ideal defelicidade e bem-estar. Tal perspectiva reflete, ao mesmo tempo, a consolidao doiderio de sociedade industrial no qual todos os anseios do sujeito social seriamalcanados atravs do desenvolvimento da indstria e sua produo (ibid., p. 190).

    Ainda durante a passagem do sculo XIX para o XX, contudo, o projeto de umacincia progressista, salvadora e reveladora comea a demonstrar sinais de suainsustentabilidade prtica. Inmeras anlises e estudos questionam a euforiacientificista em face dos poucos resultados quanto a uma melhoria efetiva da condiohumana seja em termos morais e ticos, como em termos materiais, polticos esociais de maneira geral. Com o advento da Primeira Guerra Mundial, sobretudo, oscompromissos e as implicaes da cincia com determinados aspectos da trama socialcomeam a deixar claro que o saber objetivo e neutro no parecem indicar umaperspectiva to pura quanto a que pretendia o discurso cientfico. O resultado maisdireto uma sistemtica refutao emprica dos atributos progressistas que abalaramo triunfalismo do sculo passado e obrigaram os pesquisadores a se questionaremsobre os fundamentos e limites de suas disciplinas (CHRTIEN, 1994, p. 31).

    Os postulados de racionalidade, objetividade e neutralidade que definem oscontornos cientificistas no sculo XIX cada vez mais passam a ser consideradosinsatisfatrios e pouco verificveis em termos prticos, uma vez que a cincia e sua

    produo de saberes no ocupa lugar externo em relao sociedade que a produz eque goza de seus resultados. Ela constitui-se uma entre outras atividades sociais,integrada ao funcionamento e ao equilbrio da vida coletiva (ibid., p. 78), de maneiraque o saber cientfico se encontraria assim, permeado de valores e representaes quese referem ao contexto scio-histrico na qual se insere. Em ltima instncia, a

    sociedade, como se no tivesse razes histricas.

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    sociedade determina as formas e contedos do saber cientfico (ibid., p. 81). Talperspectiva seria determinante para a compreenso de toda e qualquer atividade decunho cientfico:

    (...) trata-se de compreend-la enquanto prtica social de conhecimento,uma tarefa que se vai cumprindo em dilogo com o mundo e que afinalfundada nas vicissitudes, nas opresses e nas lutas que a compem e ans, acomodados ou revoltados (Santos, 1989, p. 13).

    Ao mesmo tempo em que existem considerveis exemplos que no retiram dacincia e da tecnologia os seus mritos, tambm so inmeros e significativos osindcios que levam dvida a respeito do valor do progresso cientfico e tecnolgico. O

    ideal tecnocrtico que outorgava ao saber cientfico uma fora onipotente encontra-se apartir de ento confrontado com as denncias do mito do progresso. A idia de umdesenvolvimento contnuo tendo como fim a sociedade perfeita passa a ser considerada uma dentre as diversas possibilidades de leitura da realidade histrica. Arelativizao da idia de progresso advm da prpria conscincia da impossibilidadede uma Histria nica, contnua. Dessa maneira, no se pode mais falar de progresso ano ser em determinado contexto scio-histrico especfico e delimitado

    (...) a histria no se realiza sozinha nem tampouco sem sujeitossociais. Ela sofre impactos das crenas, das representaes mentais,dos mitos culturais (...). Por detrs da tecnocincia h homens concretosvivendo em seu tempo, h agentes sociais com representaes, suasatitudes, suas convices prticas, suas simbolizaes, seu modo deviver, seu imaginrio e seus mitos scio-culturais. Precisamos levar emconta esse conjunto de representaes, de ideologias e de motivaesque se consolidam na prtica dos atores sociais para compreendermosa atividade tecnocientfica (JAPIASSU, 1982, p. 186).

    O chamado mito do progresso, conforme denuncia Schwartzman (1980, p. 32),encobriria uma srie de interesses e pressupostos referentes a relao especfica entrecincia e sociedade. Pode-se encontrar nas correntes crticas ao cientificismoperspectivas que relacionam diretamente a questo do progresso tecnolgico aoaumento das possibilidades de dominao e opresso atravs da cincia. o exemplo

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    dos pensadores frankfurtianos14, que sob uma forte influncia das teorias marxianas,elaboram uma teoria crtica que procura denunciar as iluses ocultas pela razomoderna. O avano cientfico possibilitando um controle cada vez maior sobre a

    natureza teria instrumentalizado uma dominao tambm do homem e seu meio social.Segundo a perspectiva de Silva (1997, p. 7), na medida em que a natureza, e

    tudo que ela contm, passa de fora a coisa, configura-se um processo de reificao que seria o prprio mago da racionalidade instrumental. E da mesma maneiraquando este conhecimento instrumental volta-se para a dimenso do humano, s podetrat-lo em termos de objeto manipulvel, devendo a cientificidade regida pela razoinstrumental necessariamente abandonar a considerao do sujeito e construir uma

    homologia fundamental entre o homem e qualquer outro objeto (id.). devido a tais consideraes, que as denncias ao aspecto mitolgico doracionalismo, desde Nietzsche (1996), no mbito filosfico, chegando s correntes depensamento sociolgicas crticas do sculo XX, procuram combater a idia deneutralidade e objetivismo do fazer cientfico, que prestariam conveniente justificativaao carter prtico da razo instrumental. Considerado um dos maiores combatedoresdos mitos da razo, Nietzsche questiona:

    De que adianta haver proclamado a morte de Deus e demolir as velhasesttuas se for para conservar e erguer em seu lugar os novos dolosque so o Estado, o Partido, o Dinheiro, o Progresso...ou a Cincia!Porque, mesmo que a batizem racionalista e que ela se pretenda mpia,sacrlega, leiga, a f na cincia ainda uma f, acesa no fogo milenar daverdade, que no seno o fogo da luz divina (id.)

    Portanto, o modelo objetivista triunfou na teoria da cincia como o nico possvelno porque seja o nico racional , mas porque o nico em que a razo se mostra

    produtiva, isto manipuladora: conhecer saber fazer (SILVA, 1997, p. 7). Procura-seacima de tudo, situar a cincia como entidade dependente do contexto scio-histricoconsiderando suas relaes e interconexes com os demais elementos que compemtal conjuntura. A confiana ilimitada na razo e no progresso teria impedido de se

    14 Dentre o grupo de filsofos e cientistas sociais da chama Escola de Frankfut destacam-se nestestermos Horkheimer, Adorno e Marcuse.

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    perceber os fenmenos da cincia e da tecnologia inseparavelmente das demaisatividades humanas.

    Com o reconhecimento, desde meados do sculo XIX, das potencialidades

    instrumentais da racionalidade cientfica, vem se constituindo uma demanda social exacerbada mais tarde, principalmente aps a Segunda Guerra Mundial onde ainfluncia da cincia e da tecnologia na vida cotidiana se apresenta de maneira muitointensa, tornando cada vez mais amplo o enfoque sobre questes referentes presena e ao impacto da cincia na sociedade como um todo. At mesmo comoestratgia de legitimao e afirmao, o tecnicismo cientfico necessitou construir umquadro de divulgao e reproduo dos smbolos do progresso15. Entre os espaos

    fundamentais para a realizao de tal empreitada destacam-se as ExposiesInternacionais da Indstria.Tais exposies so consideradas um dos mais claros exemplos do que

    representou o ideal de civilizao e modernidade do sculo XIX: a unio entoincontestavelmente promissora entre cincia e indstria. Segundo Arajo (1998, p. 3),o progresso irresistvel das foras da civilizao foi o argumento central dasexposies, que forneceram material simblico para a construo da imagem universaldas virtudes e maravilhas da sociedade industrial burguesa.

    (...) grande espetculo que o capitalismo oferece ao mundo, essavitrine gigantesca que celebra as maravilhas da Indstria e dasFbricas, catedrais da nova humanidade, desempenharam um papeldecisivo na formao de uma mentalidade tcnica e na difuso de umaideologia da Cincia e do Progresso. (PERROT 1988, p. 91).

    Embora as referidas exposies no estivessem naquela ocasionecessariamente vinculadas a nenhuma instituio museolgica, os museus e centros

    de cincia contemporneos procuram, da mesma maneira, apresentar aspectosrelacionados importncia da relao cincia e tecnologia e suas implicaes no dia-a-dia da vida social. O crescente interesse nas relaes entre cincia e sociedade tem

    15 Segundo Balandier (1982), determinado poder, idia ou cosmoviso no se estabelece unicamentesobre o artifcio da fora ou da coero, sendo necessria a construo de uma imagem de credibilidadeatravs da manipulao de smbolos referenciais que possam balizar a sua aceitao e legitimidade.

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    ocasionado aumento significativo de aes expositivas museolgicas pretendendodestinar-se a promover acesso abrangente s perspectivas e produtos da cincia.

    3 (QUE) CINCIA PARA TODOS (?): a divulgao cientfica

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    Se algum diz a uma pessoa que ouniverso se expande e contrai

    pulsaes de oito bilhes de anos,

    ela tem todo o direito de perguntar:O que eu ganho com isso?

    (Peter de Vries)

    A crescente influncia da cincia e da tecnologia na vida cotidiana principalmente aps a Segunda Guerra Mundial tornando as discusses acerca desuas implicaes na sociedade cada vez mais presentes, contribui para a configuraode um quadro mais abrangente de difuso das perspectivas do conhecimento cientfico.

    Na atualidade, os museus de cincia procuram apresentar aspectos referentes importncia da relao cincia-tecnologia-cotidiano, buscando consolidar-seprogressivamente como um dos espaos de divulgao da informao de cunhocientfico. Neste captulo refletiremos sobre as caractersticas e particularidades dadivulgao cientfica, alm de suas interrelaes com o fenmeno da informao noambiente especfico das exposies museolgicas.

    3.1 UM ESPETCULO DE RESULTADOS

    A divulgao cientfica como processo de veiculao da informao cientfica etecnolgica ao pblico em geral vincula-se esfera da Comunicao Cientfica umadas mais relevantes reas de interesse da Cincia da Informao e alvo de inmerosestudos (LOUREIRO, 2003). Cunhado por J. Bernal ainda durante a primeira metade dosculo XX, o termo Comunicao Cientfica fazia referncia a procedimentosabrangentes de produo e difuso da informao de cunho cientfico (CHRISTVO;BRAGA, 1997, p. 7). Por outro lado, tal como compreendida atualmente, estaatividade tem como interlocutores os prprios pares cientistas seja este processooperado via canais formais (livros, peridicos, monografias, dentre outros) ou por meiosinformais (informao apresentada intrapares sem obedecer regras e procedimentosformais).

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    Segundo Bueno (1985, p. 1420), as prticas operadas no horizonte daComunicao Cientfica podem ser subdivididas em difuso, compreendendo umuniverso abrangente de veiculao da informao cientfica; disseminao, voltada

    apenas a especialistas; e divulgao cientfica, que por seu turno, especificamentevoltada circulao da informao em cincia e tecnologia para o pblico em geral eno somente entre especialistas/cientistas.

    A divulgao cientfica, por vezes tambm denominada vulgarizao oupopularizao cientfica, considerada nos dias atuais como prtica que objetivapromover a aproximao do leigo ou no-iniciado em cincia a alguns princpios,produtos e implicaes da atividade cientfica. Para tanto, so empregadas tcnicas e

    mtodos de recodificao da informao cientfica e tecnolgica visando alcanar umalinguagem amplamente compreensvel, atravs da utilizao de meios variados decomunicao (GONZALEZ, 1992, p. 19).

    As atividades de divulgao cientfica se projetam em variadas direes que voalm dos meios massivos de comunicao. A divulgao da informao cientfica podetambm perpassar, na concepo de Martnez (1997, p. 2) instncias formais deeducao, centros interativos de cincia e tecnologia chegando at criao deespaos informais de participao e aprendizagem. Tais espaos, segundo o autor,pretendem proporcionar ao grande pblico formas de vinculao ativa nodescobrimento, compreenso e apropriao dos conhecimentos cientficos etecnolgicos.

    Os primeiros esforos em direo s prticas de divulgao cientfica, como comum considerar, teriam sido empreendidos concomitantemente ao surgimento edesenvolvimento da cincia moderna. A revoluo cientfica em princpios do sculoXVII, ressalta Meadows (1997, p. 1), vai gerar as primeiras tentativas de compreenso

    e interpretao do fenmeno da cincia, o que pode ser exemplificado um pouco maistarde durante o sculo subseqente principalmente na Frana com a presena deuma necessidade contnua de popularizao dos avanos tericos em temas tais comoa astronomia (id.). A tendncia de ampliao das iniciativas de divulgao da cincia,ainda segundo Meadows, se efetiva fundamentalmente por conta do crescimento dasespecializaes e da profissionalizao cientfica. No somente surgiram em forma

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    crescente os livros popularizando idias cientficas, como tambm autores quededicavam a maior parte do seu tempo a esta popularizao (ibid., p. 2).

    Na perspectiva de Reis (2005, p. 1), considerar o surgimento das primeiras

    iniciativas de divulgao da informao cientfica concomitantemente ao advento dacincia moderna, explicaria em certo sentido o papel determinante que tais prticas decomunicao da cincia desempenharam para que o conhecimento cientfico passassea fazer parte da formao educacional das pessoas. Afirmar esta interrelao entredivulgao cientfica e cincia moderna em seus contextos de desenvolvimento, seria,todavia, como ressalva Reis, contradizer os seus prprios fundamentos, sobretudo sefor levado em conta que naquela poca o acesso aos conhecimentos produzidos pela

    cincia era privilgio exclusivo de uma elite e o que se postula hoje justamente ocontrrio, massificar ao mximo tais conhecimentos.

    Poderamos ento considerar Fontenelle como popularizador da cinciase ele escrevia apenas para a aristocracia, que era a classe interessadanesse tipo de conhecimento, e manifestava at a convico de que oconhecimento cientfico devia constituir privilgio da elite? (...) Seuobjetivo era, pois aristocratizar a cincia, em vez de massific-la, comopretendem fazer os atuais divulgadores (id.).

    Seja como for, preciso reconhecer que o carter atual das propostas dedivulgao cientfica comea a se delinear com o advento da cooperao entre cinciae tcnica resultante da Revoluo Industrial: (...) alguns homens de larga visoentenderam conveniente dar aos mecnicos e outros profissionais de mesmo nvelconhecimentos bsicos de cincia, para melhorar-lhes o desempenho (id.). O avanoda atividade industrial provocar uma tomada de conscincia quanto s potencialidadesinstrumentais contidas no conhecimento cientfico-tecnolgico, fazendo com que seafirmassem as prticas deste tipo especfico de divulgao. Desde ento, medida emque a cincia e tecnologia vo se tornando cada vez mais estratgicas para asestruturas econmicas, polticas e culturais, cresce ao mesmo tempo o interesse por

    assuntos referentes aos, assim considerados, avanos cientficos e suas possibilidadesde melhorar a vida cotidiana dos diversos extratos sociais.

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    Aps a Segunda Guerra Mundial, em especial, as transformaes operadas nasociedade e em suas relaes com a cincia e tecnologia sobretudo no que tange ssuas aplicaes e influncias nos mais diversos setores como economia, finanas,

    indstria e cultura atrai de vez o foco da ateno para o impacto dos resultados daatividade cientfica. Durante este perodo eclodiram esforos sistemticos de divulgaoda cincia, dada a necessidade de explicar o que obviamente ia se converter emimportantes e contnuos pontos de interesse (MEADOWS, 1997, p. 5), acarretandotambm, a necessidade de contar com pessoal cada vez mais especializado para ocumprimento da tarefa de aumentar a cobertura popular da cincia.

    Apesar do discurso que postula a comunicao entre cincia e sociedade

    atravs da familiarizao do pblico por meio da alfabetizao cientfica16

    , Gonzalez(1992, p. 19) ressalta que, na prtica, trata-se apenas de uma relativa democratizaodo conhecimento produzido pela cincia. Isto porque o que se divulgaria, na realidade,nada mais seria do que o produto final, pronto e acabado, encobrindo assim todo oprocesso de construo deste saber que se encontraria permeado por conflitos,idiossincrasias, alm de interesses ideolgicos. Alm dos diversos desafios culturais,polticos, econmicos e outros que se impem em divulgar cincia no mundocontemporneo, Marandino (2005, p. 163) chama a ateno para

    (...) a tendncia, muitas vezes presente, de apresentar uma imagemespetculo e acrtica da cincia, em detrimento de uma viso histricae mais humanizada, que revele os embates na sua construo e asrelaes entre cincia, tecnologia e sociedade.

    No mbito da divulgao cientfica determinadas vertentes ou linguagenscomunicacionais acabam por contribuir para a construo de um tipo de representaodo conhecimento cientfico que refora a imagem de um discurso dogmtico da cinciaenquanto nico saber possvel e verdadeiro. Referindo-se inscrio do discurso dadivulgao cientfica no horizonte da verdade com V maisculo, Roqueplo (1983, p.16 O termo em espanhol alfabetismo cientfico, constitui-se em conhecimento geral no detalhado nemespecializado acerca de cincia, necessrio para compreenso de assuntos referentes pesquisa e aodesenvolvimento cientfico divulgados nas mais variadasmdias. Na perspectiva de Prewitt (1997, p. 5), anoo de alfabetismo cientfico em vez de pretender compreender os objetivos cientficos da cincia como se ela pudesse produzir-se a parte de qualquer interesse e direcionamento que no fosseobjetivamente de construo de conhecimento deveria atentar aos aspectos relativos interao entrecincia e a sociedade (...) compreender como a cincia e a tecnologia incidem na vida pblica.

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    126) aponta para a proposta de apresentao de uma narrativa definitiva acerca dosaber cientfico a partir de um discurso/espetculo sobre a cincia reivindicando umainteno de veracidade.

    Tal naturalizao da verdade operada pela cincia constituda com bases naautoridade da divulgao cientfica alcana, segundo Roqueplo, um universo deinsero capaz de expandir para os mais diversificados espaos scio-culturais suacredibilidade, subsidiada pelo discurso/espetculo na qualidade de celebrao domito da cientificidade (ibid., p. 130-131). O referido autor adverte que embora no sejaa nica responsvel pela construo e propagao do mito da cientificidade adivulgao cientfica contribui veementemente para erigir uma imagem mtica da cincia

    ao recorrer ao discurso/espetculo como garantia de veracidade de seu prpriodiscurso (ibid., p. 132).A questo da recodificao da linguagem cientfica em um tipo de elocuo mais

    acessvel aos no especialistas, com vistas construo narrativa da divulgao dacincia, nos levaria a refletir, desta maneira, sob a possibilidade efetiva de sepopularizar amplamente aspectos da atividade e da produo cientfica, maisproximamente possvel da realidade tal como ela . Mostafa (1981, p. 843) nestesentido, questiona: at que ponto a simbologia humana consegue exprimir o real,considerando no haver formas de traduo objetivas, nem tampouco desinteressadas,uma vez que o contedo cientfico ao ser traduzido em linguagem comumforosamente distorce a mensagem.

    Considerada sob tais circunstncias, a divulgao cientfica, alm de contribuir em parte na legitimao de perspectivas cientificistas, pode gerar tambm, imagens erepresentaes da cincia que, de certa maneira, encobririam seus aspectos deprovisoriedade inerentes a toda e qualquer atividade de cunho processual.

    Ancorando-se na eficcia e na autoridade da cincia, a divulgao cientfica depara-secom um dos problemas de mais vastas implicaes: a mitologia dos resultados(CASCAIS 2003, p. 66). Avaliada sob o aspecto de efeito discursivo a mitologia dosresultados refere-se s representaes que se fazem da cincia por meio dadivulgao, no sentido de que no se trata da popularizao da cincia tal como ela se

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    Museologia, que de alguma maneira, observam e demonstram como se do osfenmenos informacionais no universo museolgico em seu escopo e abrangncia.

    Em termos etimolgicos, a palavra informao que vem do latiminformare

    significa dar forma, colocar em forma, o que remete aos sentidos de criao,apresentao e representao. Capurro (1985), respalda-se em Toms de Aquino parabuscar as origens do conceito de informao: informatio, denotando aspectosontolgico, epistemolgico, pedaggico e lingstico. Informao, nestes termos,apontaria para os aspectos de mediao entre mente e objetos, uma vez que sopercebidos pelos nossos sentidos.

    Considerando assim, o seu sentido formal/ordenador, Zeman (1970, 156-157),

    ressalta o carter qualitativo e no s quantitativo e organizador da informao,sempre voltada questo da forma e no estritamente da materialidade do objeto.Nesta perspectiva, o autor sublinha o carter monstico18 tangenciado pelas suascaractersticas de organizao capazes de dar forma, fugindo ao domnio estrito damaterialidade do objeto.

    A anlise do objeto no interior do ambiente museolgico luz de umaprofundamento terico que no se prende apenas aos aspectos formais condiosine-qua non para a compreenso do museu enquanto espao informacional. Segundoesta mesma lgica, Buckley (1983, p. 603), considera a informao no como ente ouobjeto, mas inerentemente relacional entre dois ou mais conjuntos de eventos, sendoseu significado, assim, estabelecido no conjunto de interaes sociais. No que tange questo do significado, o autor alerta para as limitaes de toda e qualquer

    representao quanto possibilidade de abarcar o universo de conotaes e domniossemnticos de um determinado evento ou objeto.

    18 Mnada, segundo Giiordano Bruno (sc. XVI) e tambm, Leibniz (sc. XVIII), significa os elementosdas coisas, isto , representaria a menor partcula a partir de onde se constituiriam a complexidade dasformas. Seriam, assim tomos da natureza. Esta noo monstica pode apontar para uma problemticabastante pertinente na atualidade sob as questes que envolvem o papel da informao no processo deconstruo do conhecimento. Lopes (1998, p. 2), alerta que o fracionamento do todo em mnadasfunciona sob o mesmo modelo que o fracionamento atual do conhecimento em informao (as mnadasdo sculo XX), o que poderia motivar a crtica de que a informao no indivisvel como as mnadas,no se trataria de tomos rigorosamente hermticos do conhecimento, que por si mesmo, vasto eirregular.

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    A noo de reflexo tal como trabalhada por Zeman (1970, p. 159), emblemtica no que tange ao entendimento do carter relacional da informao.Segundo o autor, todo registro de um objeto ou toda informao comporta um mximo

    de condensao possvel para que haja possibilidade de torn-lo inteligvel ainda quede maneira parcial. O ser humano no pode refletir a variedade de um objeto em suatotalidade, mas apenas escolhendo alguma coisa. Assim, a coisa como tal, quepercebemos sob forma de sua aparncia, torna-se algo para ns se somos capazes dedomin-la e transform-la. A proximidade fenomnica que nos traz a esfera damaterialidade, estaria presa s redues semnticas da nossa percepo por meio dosreflexos, e a informao tambm seria um fenmeno reflexivo no mbito das relaes

    sociais. Em sntese, Zeman (ibid., p. 165) adverte que embora a informao sejainerente e inseparvel da matria, seu significado no se esgota na suas caractersticasfsicas, o objeto mais rico que seu reflexo.

    Admitindo que o homem no reflete a heterogeneidade do objeto mas apenasaspectos eleitos da realidade total, o elo relacional tecido atravs da informao quesempre se desdobra e transcendido por outra ordem de fenmenos, aes oucoisas (GONZLEZ DE GMEZ, 1990, p. 122), diria respeito a convenes a partir dedeterminadas formulaes redutoras subjetivamente selecionada em seus aspectospretensamente mais importantes, sob o signo da organicidade pois caso contrrio,ela seria catica.

    Considerando a problemtica nos termos tericos e conceituais descritos acima,desenha-se o quadro de possveis relaes e implicaes do fenmeno da informaono espao museolgico sobretudo no que tange aos aspectos relativos ao objeto esua passagem pelas aes de musealizao incluindo as questes de processamentooperacional e terico das linguagens expositivas. Separado de sua realidade inicial e

    transferido para uma coleo, o objeto durante este processo, alm de ser submetido auma re-contextualizao espao-temporal que implica na reduo de seus aspectosrelacionais e mesmo uma percepo parcial das suas prprias caractersticas fsicas,sofre ainda agregao de novos referenciais e significados de maneira a torn-losprprios para cumprir, no espao museal, funo representativa no contexto de

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    determinada narrativa, como autnticas testemunhas, documentos e evidncias defatos naturais e sociais (STRNSK, 1981, p. 70).

    Na busca de elementos tericos acerca da questo informacional que iro

    balizar a construo de uma noo de informao no mbito dos museus, sublinhamosa pertinncia da perspectiva de Buckland (1991) e sua categoria de informao-como-coisa. Tal noo identificada pelo autor no bojo de uma caracterizao sobre asdiversas definies de informao que podem ser encontradas na literatura, as quaisele subdivide em trs grandes grupos:

    1) Informao-como-processo: referente-se s mudanas ocorridas atravs do atode informar;

    2) Informao-como-conhecimento: relaciona-se ao aspecto intangvel dainformao, associando-a diretamente ao conhecimento;3) Informao-como-coisa: diz respeito a um grupo de definies que, embora

    considerem a necessidade da representao fsica da informao para fins decompreenso e manipulao, da mesma forma, reconhecem que essas representaestangveis diriam respeito tanto informao de natureza concreta/material comointangvel/simblica (ibid., p. 351).

    Buckland (ibid., p. 354) chega mesmo a questionar a validade e totalidade dequalquer viso de informao, cincia da informao ou sistemas de informao queno sejam estendidos aos objetos, uma vez que a coleta, armazenamento erecuperao da informao passam necessariamente pelos seus processos. Dessamaneira, ao argumentar sobre a pertinncia de tal noo, refere-se ao museu e suacaracterstica de tratar essencialmente com objetos. Para o autor, por mais que ainteno de uma exposio museolgica seja a de informar o pblico como parte doprocesso de construo do conhecimento, estas perspectivas se balizam na

    operacionalizao da informao a partir da fisicalidade do objeto (ibid., p. 352).Delineia-se, dessa maneira, um prisma relacional da informao em que as

    possibilidades de inteligibilidade e significao no se esgotam nos aspectos fsicos,sendo preciso um processo de aprofundamento do olhar sobre o objeto para alm deseu reflexo. Para que seja possvel uma leitura do objeto no interior do espaomuseolgico enquanto testemunha potencial de uma dada realidade necessrio que

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    se reconheam as suas dimenses tanto materiais quanto biogrfico/contextuais.Ocupando status central na museologia como portador possvel de informao, o objetona perspectiva de Mensch, Pow & Schouten (1990, p. 59-60) considerado um

    elemento essencialmente marcado por possuir caractersticas prprias. Para osautores, no mbito das prticas museolgicas a informao contida no objeto pode ser observada sob trs categorias de anlise: informao do objeto, documentao einformao contextual.

    A proposta categoria informao do objeto, est a princpio relacionada acaractersticas fsicas tais como: composio, material, tcnica, morfologia, dentreoutras. Entretanto fundamental levar em conta alm dos contornos sintticos,

    tambm a dimenso semntica do objeto musealizado. Este enfoque de anlise dainformao do objeto remete ao processo interpretativo que pode considerar dois tiposde significados: o primeiro que diz respeito funcionalidade e uso e o segundoreferente agregao de valores simblicos. Segundo Alberti (2005, p. 561), os valorese significados atribudos s coisas que so manipulveis, dinmicos e transitrios que podero tornar os objetos mediadores das relaes sociais humanas.

    De acordo com tais perspectivas, possvel considerar que para fins de anlisedo fenmeno informacional no interior do espao museolgico, a noo deinformao/objeto musealizado19 (LOUREIRO, 1996), constitui-se expressiva diante deseus contornos voltados s questes de representao e construo de significadosinformacionais a partir do meio fsico. Toda formao discursiva operada a partir doespao expositivo museolgico se encontraria essencialmente alicerada nainformao/objeto musealizado, "(...) representao do mundo sensvel, atravs debens concretos e simblicos, produzidos e/ou coletados pelos agentes sociais (ibid, p,94).

    Submetido a um processo de descontextualizao no espao e no tempoimplicando na perda de suas funes e significaes primeiras atravs damusealizao, o objeto torna-se expresso museolgica por excelncia, representaesexemplares de sustentao da verdade museolgica. Todavia, como adverte Castro

    19 Na dissertao de Loureiro (1996) o termo utilizado informao/objeto museolgico. Comoconseqncia de reflexes posteriores, o autor passa a trabalhar com a noo de informao/objetomusealizado.

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    (1995, p. 89), nem sempre esta verdade acrescida refere-se origem do objeto, aocontrrio distancia-se dela. Assim como o que se pode perceber na leitura extrnsecade um objeto redutor e condensador de uma gama inestimvel de significados

    possveis de acordo com a noo de reflexo de Zeman toda representao, por sis, j significaria uma reduo e uma parcialidade subjetiva na percepo. Destamaneira, as representaes instrumentalizadas a partir da informao/objetomuseolgico corresponderiam a recortes imprecisos, dando origem a prticas designificao sempre direcionadas a perspectivas parciais.

    A informao/objeto musealizado implicaria, assim, de maneira determinante,na construo intencional de representaes capazes de criar imagens que reflitam em

    uma totalidade simblica identificadora, obscurecendo os limites e a superficialidade doreflexo-representativo, sob o discurso do carter evidente-documental de taisobjetos:

    Ao objeto social, museificado, acrescida a instncia de documento,categoria de signo na extenso da temporalidade histrica e narecuperao da memria coletiva. (...) Os revestimentos simblicosfeitos ao objeto implicam que um exemplar signifique o todo, seja arepresentao absoluta. Enquanto representao, a presena do objetotraduz-se como espelho social, reifica o conceito histrico e garante a

    perenidade. (CASTRO, 1995, p. 116).

    Nas instituies museolgicas de cincia especificamente, a instrumentalizaooperada na informao/objeto musealizado referente recodificao da linguagemsemntica presente em instrumentos e saberes cientficos e tecnolgicos tornadospatrimnio cientfico com vistas ao estabelecimento de abordagens e canais detransferncia da informao20, encontra-se diretamente vinculada aos aspectos info-comunicacionais norteadores da exposio museolgica. O que torna esta prtica

    realizada no mbito dos museus abordada na seo a seguir um dos maisdiferenciados e peculiares aparatos de divulgao cientfica.

    20 importante aqui se fazer uma ressalva a respeito do termo transferncia de informao, to grato Cincia da Informao, mas que pode no ser bem encarado no mbito das demais Cincias Sociais eHumanas, por conta da possibilidade pejorativa de interpretao do conceito de transferncia que nombito da nossa abordagem deve ser entendido em sentido lato, onde haja, tal como prope Freire(1997), participao e negociao de significados.

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    3.3 (RE)PRODUZINDO SENTIDOS: a exposio museolgica

    A exposio o meio pelo qual o museu estabelece sua interrelao com a

    sociedade, atravs da operacionalizao do objeto musealizado e do emprego deaparatos info-comunicacionais, tericos e tcnicos. Mais do que uma dentre as muitasfaces da atividade museal, a prtica de expor a que determina a prpria essncia detoda e qualquer instituio museolgica como tal.

    Sem as exposies, os museus poderiam ser colees de estudo,centros de documentao, arquivos; poderiam ser tambm eficientesreservas tcnicas, centros de pesquisa ou laboratrios de conservao;ou ainda centros educativos cheios de recursos mas no museus(SCHEINER, 1991, p. 1).

    Toda construo expositiva segue perspectivas operacionais que variam deacordo com as diversas tipologias de museus, mas que de maneira geral visam torn-las (...) composies cujos elementos encontram-se dispostos num espao pr-determinado, harmonicamente conjugados para transmitir a um grupo de pessoas umadeterminada mensagem, com fins culturais (id.). Na qualidade de espaos discursivosde (re)produo de sentidos por meio dos objetos, a exposio museolgica na

    concepo de Monteiro (1998, p. 52-53), em seu aspecto comunicacional, pode ser compreendida a partir de duas categorias: representao e simulao. Em ambas asformas de trabalhar a prtica expositiva, h, segundo o autor, uma inclinao a sedeixar de lado todo o potencial informacional dos objetos expostos, podendo ainda,obscurecer a multiplicidade de possibilidades comunicacionais para o estabelecimentode uma linguagem comum entre pblico e museu.

    Ainda do ponto vista das tcnicas info-comunicacionais possveis nas

    exposies em museus, Cury (2003) destaca duas abordagens: a condutivista e ainteracionista. A primeira entende o processo de comunicao como um movimento detransmisso de informao a partir do emissor para o receptor, que se apresenta nesteprocesso como elemento passivo. J sob a tica interacionista, h uma reviso nospapis do emissor e do receptor no processo de comunicao. O emissor emite amensagem ao receptor que a interpreta a partir de sua sntese subjetiva e singular, de

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    maneira que ambos possam negociar e construir o significado da mensagem atravs daparticipao ativa. Comunicao a partir da operacionalizao da informao/objetomusealizado neste sentido refletiria aquilo que a autora chama de encontro dos

    horizontes do emissor e do receptor (id.).Sob este mesmo prisma, a exposio no entender de Maroevic (2000), uma vez

    que se depara com a heterogeneidade de possibilidades de pblico-alvo, deveria ser concebida segundo uma lgica que respeitasse esta multiplicidade. A adoo deestratgias diferentes para necessidades diferentes, de acordo com as demandas dopblico, possibilitaria que a informao/objeto musealizado respaldasse construesdiscursivas capazes de agir diretamente na dimenso estrutural/cognitiva do receptor,

    de maneira a provocar ainda um processo de interpretao e plena negociao desentidos a partir da exposio. Colocamo-nos diante de um ideal de exposiomuseolgica no qual garante-se ao visitante uma experincia durvel, que se tornaparte da vida daquele indivduo (SPIELBAUER, 1991, p. 4).

    De maneira geral, o ato de expor objetos implica conectar intrinsecamente omuseu a uma realidade que se prende ao social, territrio onde alm da difusocultural e outras aes, promove a produo e circulao de significados (LOUREIRO, 2000, p. 27. grifos nossos). Na rbita especfica dos museus de cinciaos quadros tericos e operacionais que ocorrerem nas exposies configuram-se demaneira a articular o discurso museolgico e as estratgias de divulgao voltadas circulao da informao cientfica e tecnolgica para o pblico em geral. A exposio,neste sentido, seria