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DANIELA DE FÁTIMA GARCIA A MÚSICA SOB A PERSPECTIVA CRÍTICA DE ROUSSEAU: UMA ANÁLISE DA CARTA SOBRE A MÚSICA FRANCESA Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação do Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marques. Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida e aprovada pela Comissão Julgadora em 21/08/2008 BANCA Prof. Dr. (orientador) José Oscar de Almeida Marques Profª. Drª. (membro) Jacira de Freitas Prof. Dr. (membro) Carlos Fiorini Prof. Dr. (suplente) Luiz Fernando Franklin de Matos Prof. Dr. (suplente) Roberto Romano Agosto/2008 CORE Metadata, citation and similar papers at core.ac.uk Provided by Repositorio da Producao Cientifica e Intelectual da Unicamp

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DANIELA DE FÁTIMA GARCIA

A MÚSICA SOB A PERSPECTIVA CRÍTICA DE ROUSSEAU: UMA ANÁLISE DA CARTA SOBRE A MÚSICA FRANCESA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação do Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marques.

Este exemplar corresponde à redação final

da Dissertação defendida e aprovada pela

Comissão Julgadora em 21/08/2008

BANCA

Prof. Dr. (orientador) José Oscar de Almeida Marques Profª. Drª. (membro) Jacira de Freitas Prof. Dr. (membro) Carlos Fiorini Prof. Dr. (suplente) Luiz Fernando Franklin de Matos Prof. Dr. (suplente) Roberto Romano

Agosto/2008

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Provided by Repositorio da Producao Cientifica e Intelectual da Unicamp

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Título em inglês: One analysis form letter about french music

Palavras chaves em inglês (keywords) :

Área de Concentração: Filosofia Titulação: Mestre em Filosofia Banca examinadora:

Data da defesa: 21-08-2008 Programa de Pós-Graduação: Filosofia

French philosophy Music theory

José Oscar de Almeida Marques, Carlos Fiorini, Jacira de Freitas

Garcia, Daniela de Fátima G165m A música sob a perspectiva crítica de Rousseau: uma análise

da carta sobre a música francesa / Daniela de Fátima Garcia. - - Campinas, SP : [s. n.], 2008.

Orientador: José Oscar de Almeida Marques. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Rousseau, Jean Jacques, 1712-1778. 2. Filosofia francesa. 3. Teoria musical. I. Marques, José Oscar de Almeida. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título. (cn\ifch)

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Daniela de Fátima Garcia

A música sob a perspectiva crítica de Rousseau:uma análise da Carta sobre a música francesa

. Este exemplar cOlTesponde à redaçãofinal da Dissertação apresentada eaprovada pela Comissão Julgadora_em21/08/2008.

BANCA

Texto apresentado como parte dos requisitospara a obtenção do título de Mestre emFilosofia junto ao Programa de Pós-Graduaçãoem Filosofia do IFCHlUnicamp, sob orientaçãodo Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marqrns

(0J~ J, C rn~fM::r~~

Prof. Dr. José Oscar de Almeida Matques (orientador)

Profa. Dra. Jacira de Freitas (membro)

Prof. Dr. Carlos Femando Fiorini (membro)

Prof. Dr. Roberto Romano da Silva (suplente)

()\O~

Prof. Dr. Luiz Femando Batista Franklin de Matos(suplente)

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AGOSTO/2008

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SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................................... 05

Capítulo I - Breve relato da história da ópera............................................................... 09

Capítulo II - A Querela dos Bufões e a Carta sobre a música francesa........................27

Capítulo III - Rameau e Rousseau.................................................................................41

Capítulo IV - A Carta sobre a música francesa e a transparência dos sentimentos na

construção de uma nova concepção musical ................................................................. 67

Capítulo V - A origem comum da música e língua: a ponte de extensão entre a Carta e

outros textos de Rousseau ...............................................................................................81

Apêndice Carta sobre a música francesa Tradução e Notas ............................................................................................................97

Bibliografia ..................................................................................................................145

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RESUMO Publicada em Paris no ano de 1753 durante a “Querela dos Bufões”, a Carta sobre a

Música Francesa de Jean-Jacques Rousseau, apesar de se referir à tradicional disputa

construída em torno do paralelo entre a música francesa e a italiana, difere-se da maioria

dos textos publicados na época referente ao assunto. A Carta de Rousseau traz um

estudo estético original que atribui às características próprias da língua a função

melódica da música, afirmando depender daí então a beleza da composição. Essa

perspectiva estética assumida por Rousseau se apóia em sua teoria da unidade da

melodia que instaura outra disputa musical, desta vez entre a preferência dada à melodia

ou à harmonia em uma composição. Se a teoria exposta por Rousseau na Carta acaba

por desqualificar a música e o gosto francês é, sobretudo, na figura de Jean-Philippe

Rameau que recai a crítica do autor causando uma ruptura estética com a tradição da

música francesa. O objetivo desta pesquisa é o de investigar conceitos e princípios

usados por Rousseau na Carta ressaltando sua importância não apenas sob o aspecto

histórico, mas principalmente pelo aspecto filosófico, já que o texto de Rousseau

encontra reflexos em outras obras do autor. A título de apêndice apresentamos uma

tradução da Carta sobre a Música Francesa, texto que se mostra indispensável para o

conhecimento da teoria musical de Rousseau e dos valores estéticos que implica.

Palavras-chave: 1. Filosofia Francesa

2. Estética

3. Teoria Musical

4. Imitação

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Introdução

A “Querela dos Bufões”, ocorrida em Paris entre os anos de 1752 e 1754,

foi uma das mais significativas batalhas teóricas em torno do gosto musical já ocorrida

na Europa. Apesar de não ter sido a única polêmica na história da ópera, essa querela

envolveu uma considerável quantidade de textos publicados a respeito do assunto e a

participação dos mais ilustres literatos da época, dentre eles Jean-Jacques Rousseau. Sua

Carta sobre a Música Francesa insere-se neste contexto, seguindo a tendência da

maioria dos textos apresentando um paralelo entre a música francesa e a italiana com a

finalidade de descobrir qual o melhor estilo de música. No entanto, a Carta de Rousseau

se transforma em um dos mais significativos textos da querela por apresentar pela

primeira vez sua teoria da unidade da melodia, teoria esta na qual Rousseau recorre para

apoiar seu ponto de vista estético na crítica à música e ao gosto francês. Neste momento

a tradicional tragédia lírica têm seu principal representante em Jean-Philippe Rameau, o

que nos leva a ver a Carta de Rousseau como uma resposta direta às composições e à

teoria do músico francês, supondo ainda que Rousseau a tenha redigido motivado

inicialmente por questões pessoais.

Sendo a música e o gosto francês expressões do regime político absolutista

vigente na França – adaptadas ao ambiente de corte, as tragédias líricas seguiam as

convenções de Versalhes e os compositores estavam submetidos ao gosto do rei para

comporem suas obras – a crítica estética do período surgia impulsionada pelo desejo de

mudanças não só no campo das belas artes, mas também no ambiente político que as

engendrava. Por esse motivo, a Carta de Rousseau pode ser lida tanto como uma

elaborada resposta filosófica a altura dos tratados teóricos publicados por Rameau,

quanto crítica ao gosto francês que reflete a corrupção moral e política da nação.

Devido a suas características a Carta acaba por transformar uma querela

panfletária a respeito do gosto nacional em debate filosófico, no qual questões sobre a

essência e os princípios musicais estão em jogo, tendo implicações diretas sobre os

valores estéticos musicais além de servir de meio indireto da crítica social e política,

somando-se às vozes de outros literatos do período.

No que se refere à teoria musical propriamente dita, a Carta de Rousseau

traz a originalidade de atribuir a certas características presentes na língua a

responsabilidade pela função melódica da música, justificando a desqualificação da

música francesa enquanto forma de expressão.

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Assim, a principal questão que direciona a argumentação da Carta em

direção à inevitável condenação da música francesa, segundo o ponto de vista adotado

pelo autor, é a dicotomia entre a importância dada à melodia e à harmonia em uma

composição. Essa dicotomia já é citada por Rameau, e Rousseau, tomando a via

contrária à proposta harmônica do músico francês, defende em sua Carta uma

concepção musical na qual a melodia representa a verdadeira expressão da música. O

objetivo das composições musicais para Rousseau é o de comunicar sentimentos e é

propriamente a melodia o elemento responsável por essa transmissão de sentimentos

porque, como demonstra o autor da Carta, relaciona-se a certas inflexões lingüísticas,

signos das paixões humanas, que são expressas pelo canto, responsável pela linha

melódica da composição. Toda essa concepção musical que perfaz a argumentação da

Carta culmina com a teoria da unidade da melodia que, segundo Rousseau, é uma regra

indispensável para qualquer composição que intente ser música verdadeira. A teoria da

unidade da melodia de Rousseau destina à harmonia um papel secundário de

acompanhamento ao canto este sim valorizado pela linha melódica, prende a atenção do

ouvinte despertando as paixões e sentimentos pretendidos.

Considerando os tópicos mostrados sucintamente acima, o objetivo

principal desta pesquisa é ressaltar a importância filosófica da Carta de Rousseau – cujo

valor histórico já é inquestionável – ao mostrar que ela pode ser considerada o início ao

que podemos chamar de pensamento estético em Rousseau. Seu significado filosófico

pode ser atestado tanto como texto isolado, visto sob a perspectiva do debate estético

instaurado entre a concepção musical de Rousseau e a de Rameau, quanto como uma

parte importante da filosofia de seu autor, encontrando reflexos em seus textos

posteriores que tratam de música, de política, ou até mesmo de pedagogia. Para alcançar

esse intento, nosso texto traz um capítulo central dedicado exclusivamente ao estudo

dos princípios e noções usados por Rousseau na Carta, explicitando os valores estéticos

envolvidos em sua teoria musical que aspira à ruptura com a tradicional cena francesa.

Como prólogo apresentaremos um breve relato histórico com o intuito de

oferecer algumas informações a respeito da história da ópera, elucidando os motivos

que fazem desse gênero objeto de polêmica desde seu nascimento, pois, sendo a Querela

dos Bufões um dos debates mais importantes, porém não o único, ocorrido na história

da música, parece-nos indispensável o conhecimento de seus antecedentes.

Comentar a Querela dos Bufões também implica suscitar algumas questões

de caráter pessoal e biográfico do conturbado relacionamento entre Rameau e Rousseau,

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dois dos mais notáveis participantes da referida querela, cada qual defendendo seu

partido musical tanto com peças apresentadas durante o período, quanto com textos que

refletem suas respectivas orientações filosóficas. Assim, o Capítulo II mostrará a

oposição entre os dois eminentes nomes do século XVIII – um devido a sua experiência

e maturidade, o outro devido as suas pretensões e originalidade – em suas diferentes

concepções estéticas, filosóficas, epistemológicas e políticas.

O capítulo final será destinado a algumas considerações sobre o reflexo da

Carta em outros textos de Rousseau, sendo o principal deles o Ensaio sobre a Origem

das Línguas. A origem comum da música e língua estabelecida pelo autor faz com que

a questão musical transcenda a questão estética ao encontrar ressonância no âmbito

moral e político da vida humana.

Mostrar o caminho percorrido pela Carta, de seu polêmico debate com a

estética tradicional francesa representada na figura de Rameau, passando pela análise de

seus conceitos como texto isolado, e depois expandindo seu conteúdo integrando-o no

conjunto da filosofia de seu autor, é a nossa tentativa de construir o pensamento estético

de Rousseau, de modo que faça sentido com sua época, sua vida e sua filosofia.

Com a finalidade de tornar mais conhecida a teoria musical de Rousseau,

apresentamos como apêndice ao presente texto nossa tradução da Carta sobre a Música

Francesa, revelando, apesar das afirmações do autor em contrário, que as questões

estéticas ocuparam uma parte considerável de sua filosofia.

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Capítulo I

Breve relato da história da ópera

Foi durante a famosa disputa entre os partidários da música francesa e os

da música italiana, conhecida como a Querela dos Bufões, ocorrida em Paris em meados

do século XVIII, que Jean-Jacques Rousseau trouxe a público sua Carta sobre a música

francesa. A Querela dos Bufões foi uma das mais populares e difundidas disputas

teóricas no campo da estética musical, envolvendo boa parte da sociedade parisiense e

suscitando muita polêmica com uma grande profusão de panfletos, muitos dos quais

com conteúdo satírico e ofensivo. Leigos, teóricos da música, a sociedade freqüentadora

dos espetáculos, artistas e letrados não deixaram de expressar sua opinião sobre os

espetáculos que ocupavam o palco da Ópera de Paris. Longe de ser um fato isolado na

história da música, a querela ocorrida em Paris conta com antecedentes que se iniciam

já desde o surgimento da ópera no século XVII na Itália. Desde então, muita tinta correu

da pena dos literatos com o intuito de descrever, discutir, definir, criticar ou defender a

ópera, criando uma literatura específica destinada exclusivamente aos problemas

relacionados a este estilo de espetáculo.

Devido ao fato de a história da ópera suscitar em seus episódios – desde o

seu nascimento até a querela que nos interessa mais especificamente – questões

importantes que expressam o pensamento filosófico predominante em cada época ou

lugar; e, estando a forma do espetáculo diretamente relacionada com seu respectivo

ambiente político, salientamos a necessidade desta breve incursão histórica com a

finalidade de contextualizar a Querela dos Bufões relembrando seus antecedentes.

Começando por situar data e local de nascimento da ópera, assim como as

circunstâncias de seu surgimento, a intenção é percorrer os fatos relevantes de seu

percurso chegando aos anos subseqüentes à Querela dos Bufões, o que nos leva a

questionar se a querela mencionada levanta uma problemática realmente de ordem

estética capaz de trazer alguma transformação, de fato, à ópera francesa ou, por outro

lado, a tragédie lyrique já estava fadada ao desaparecimento, ruindo juntamente com o

regime absolutista que a promovia, sem permitir que surgisse um “herdeiro” para a

tradição de Rameau? Neste contexto a Carta de Rousseau, como representante do

episódio, revoluciona, como pretende, a cena musical francesa?

Um ponto importante da crítica de Rousseau às artes em geral, presente já

no seu Discurso sobre as ciências e as artes, é justamente a sua “apropriação” pelos que

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são “muito pouco escrupulosos quanto aos meios de vencer”1, fazendo com que tanto as

artes quanto as ciências estejam envolvidas em relações de interesses que visam apenas

a distinção de homens moralmente corruptos; e devemos aqui nos servir do próprio

exemplo da tragédia lírica que, adequada ao ambiente da corte francesa setecentista,

funcionava como uma homenagem magnífica e grandiosa à figura do soberano, que

então reinava também de modo absoluto sob o gosto de toda a nação. Ironicamente, é

em uma corte, desta vez na Itália de início do século XVII, que iremos nos deparar com

um drama musicado, especialmente composto para uma festa da realeza, dando origem

ao que chamamos hoje de ópera.

A tendência musical por volta de 1600 era a de tentar superar as

composições polifônicas, e o canto solo acompanhado, já bastante freqüente, passa a ser

valorizado, sobretudo, pela parte vocal, surgindo a necessidade de limitar a

complexidade da polifonia juntamente com a desvalorização do contraponto2 com o

objetivo de não obscurecer a subjetividade e dramaticidade da voz: “À medida que se

afirmava a preponderância da voz superior, os artifícios contrapontísticos perdiam sua

validade. O interesse melódico do solo ou das partes concertantes não devia ser

eclipsado pelo acompanhamento de uma polifonia complexa. Percebeu-se em particular

a necessidade de um baixo-contínuo.”3

A monodia procurada pelos compositores do período, não surgiu apenas

como uma forma substituta, musicalmente diferente da polifonia, mas como uma

alternativa expressivamente mais forte, mais sujeita à adaptação dramática,

desenvolvendo, sobretudo, a melodia. Para enfatizar essa busca pela expressividade, a

relação entre voz e instrumentos torna-se mais elaborada. O baixo-contínuo, executado

por um conjunto de instrumentos que tem por objetivo sustentar a linha harmônica, não

segue uma composição livre, mas obedece “a simples sucessão dos sons mais graves,

fundamento harmônico do edifício.”4 Com clara função de acompanhamento,

constituindo-se apenas como complemento harmônico simples da composição, o baixo-

contínuo, então, escrito de acordo com essa concepção, dá liberdade à individualidade

1 ROUSSEAU, “Prefácio ao Narciso”, In Os Pensadores, p. 421. (Todas as referências bibliográficas são baseadas nas edições indicadas ao final do presente trabalho). 2 A música contrapontística é determinada “pela combinação de mais de uma linha melódica de caráter definido, o todo unido em coerência harmônica – como, por exemplo, nos prelúdios-corais para órgão de Bach. (...) em todos os gêneros de música contrapontística, a característica importante é o interesse independente das várias linhas melódicas, umas combinadas com as outras.” KÁROLYI, Otto. Introdução à música, p. 100. 3 CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 420. 4 Ibidem, p. 420.

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da parte vocal que, por sua vez, pôde evoluir em sua função dramática. A ópera,

portanto, evolui a partir dessa relação do canto solo com o baixo-contínuo

acrescentando-lhe a intenção representativa, o que traz ao gênero os elementos

propriamente teatrais como cenários e figurinos elaborados, as convenções próprias da

representação – que alcançam importância, sobretudo, nos espetáculos franceses do

século XVIII – além da ênfase no estilo recitativo.

A superação da polifonia marca, desse modo, uma nova concepção na

estética musical, onde o humanismo nas artes oriundo da Renascença italiana busca

novas formas para o cantar e o recitar, tentando tornar a música mais significativa pela

exploração de novos elementos. Com essa proposta, dentre as várias “academias” que

surgem na Itália nos séculos XVI e XVII, destaca-se a Camerata Florentina. Reunidos

no palácio do conde de Bardi, os membros da Camerata, em sua maioria artistas e

músicos, debatiam sob um “ângulo renascentista e neoplatônico de que maneira

restaurar o poder que ela [a música] possuía, nos tempos clássicos – assim se acreditava

– de suscitar, guiar ou dominar emoções específicas.”5 Apoiando-se no que se

acreditava ser o modo de representação musical e poética dos antigos, sob uma base

filosófica neoplatônica, os humanistas pretendiam uma nova forma de relação entre

música e poesia: “o estilo na música vocal deve ser a conjunção do sentimento poético e

do sentimento individual”6, levando à substituição das construções polifônicas pela livre

expressão dos sentimentos e da subjetividade.7

Tendo em vista este objetivo, a Camerata formula alguns princípios

básicos, sendo um deles a perfeita união entre texto e música: “Para que esta [a música]

permitisse àquele [o texto] ser perfeitamente compreensível, propunha-se a declamação

solista e monódica; a adoção de melodias simples executadas por poucos instrumentos;

e a exclusão do contraponto.”8 Outro princípio que deveria ser seguido é que o “cantar

declamado” deveria ser feito seguindo as inflexões naturais da fala, determinando assim

a linha melódica: “a melodia deveria portanto acomodar-se à frase, e não o contrário”9.

Além disso, no que se refere à expressividade da música: “não deveria limitar-se a

5 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p. 41. 6 CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 424. 7 É importante lembrar que o conceito de “subjetividade” na arte no século XVI e XVII, não envolve, como entendemos atualmente, modos de expressão individuais, criatividade ou originalidade, termos então, desvalorizados ou inexistentes no período. O valor “subjetivo” do artista consistia mais em um processo de emulação de formas expressivas tradicionais que deveriam se apresentar totalmente em conformidade com o decoro ou com o padrão de composição esperado pelo público. 8 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p. 43. 9 Ibidem.

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acompanhar graficamente o andamento do texto e, sim, tentar exprimir o estado de

espírito de cada trecho, imitando e acentuando as entonações típicas de uma pessoa que

esteja sob o efeito de determinada emoção.”10

Com base no que vimos acima tomando por referência o texto de Lauro M.

Coelho, podemos concluir, resumidamente, que o que marca a tendência para as

composições vocais de início do século XVII é a intenção de se recorrer menos à

erudição da escrita musical e mais ao poder de comoção da voz humana transmitido por

meio da invocação poética, sendo que esta tendência é formulada, sobretudo, em nome

da expressividade: todos os ornamentos musicais são cuidadosamente usados e

estudados no sentido de intensificar os sentimentos que se pretende transmitir através da

música.11 Com isso, podemos definir o dramma per musica como um gênero

propriamente musical, ou seja, a composição musical é elaborada de forma a estar

compatível com o texto poético para que o conjunto seja capaz de transmitir uma idéia

ou um sentimento; portanto, a música no espetáculo não se dá por acaso, ela não existe

de maneira independente, ela tem um sentido, cumpre uma função e transmite uma

proposta e, como sabemos, essas características que acompanham a composição musical

se alteram de acordo com as convenções e ideais estéticos de cada gênero, época, ou

lugar.

No início do século XVII, então, o aprimoramento e intensificação desta

tendência no que se refere ao drama musicado como vimos acima, culmina, na prática,

com a criação de um novo estilo de representação onde “as personagens se exprimem

musicalmente; a música não tem autonomia, ela é essencial à expressão dramática”12. A

união entre música vocal acompanhada pelo baixo-contínuo, a recitação de um texto

poético que narra uma ação e a dramaticidade da representação teatral, nos leva à

primeira “tragédia” musicada, que será, então, a precursora do estilo conhecido como

ópera: trata-se da peça Eurídice. Com texto de Ottavio Rinuccini e música de Iacopo

Peri, esta peça foi apresentada em 06 de outubro de 1600 no Palazzo Pitti em Florença

como parte integrante das comemorações do casamento de Maria de Médici. Apesar de

10 Ibidem. 11 Podemos perceber na Carta de Rousseau, e também no Dicionário de Música, que o autor se utilizará, em linhas gerais, destes mesmos princípios acrescentando-lhes suas próprias contribuições e tornando-os compatíveis com sua filosofia e sua época. Um estudo sobre a relação entre o pensamento estético de Rousseau e alguns aspectos do neo-platonismo vale uma análise mais detalhada que infelizmente, por falta de tempo e espaço, não cabem no presente trabalho. 12 CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 426.

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ter sido precedida por outras árias dramáticas e até tragédias musicadas13, a Eurídice se

mostra superior em expressividade e coerência às peças anteriores e por isso é

considerada como a obra que inaugura esse novo tipo de espetáculo que passa, assim, a

ser definido pela representação dramática realizada pelo canto solo14 do início ao fim da

peça acompanhada por um baixo-contínuo.

No momento em que surgem os primeiros dramas musicados a

preocupação dos compositores é conferir contornos mais definidos ao novo estilo.

Atendo-se à questões mais práticas que envolvem diretamente as formas

representativas, os compositores buscam, por exemplo, solucionar o problema que

existe em se querer imitar a palavra com o canto. De fato, o “recitar cantando”, meio

com o qual os atores/cantores representam seus personagens, não desfrutava de

consenso quanto à maneira de interpretação. Enquanto alguns compositores, como

Caccini, optavam pela subjetividade e liberdade em um canto mais comovente e

ornamentado, dando início ao estilo do belcanto; outros, como Cavalieri e Peri,

buscavam a aproximação com a declamação, preferindo um estilo mais dramático,

dando maior força às palavras do poema do que à melodia do canto. Estas e outras

questões envolvendo tanto a composição musical e poética da peça, quanto a produção

do espetáculo aparecem nos respectivos prefácios que acompanham as primeiras obras,

mas o texto que, de fato, dá início a produção literária específica da ópera é o anônimo

Il Corago.

O Il Corago surge supostamente nas primeiras décadas do século XVII e é

destinado aos “produtores” do dramma per musica, – de onde o nome corago –

funcionando como uma espécie de manual com o nítido objetivo de cumprir uma função

prática: “O Il Corago faz parte de um tipo de tratado que possui uma orientação prática,

ou seja, é um tratado no qual o drama é examinado segundo a concreta possibilidade de

realização cênica, sem ser, no entanto, um mero objeto de investigação especulativa”15,

afirmam os editores.

Diferentemente dos Prefácios que acompanhavam as publicações das

primeiras peças de dramas musicados que indicavam a tendência particular de

composição de seus respectivos autores, o texto do Il Corago traz, de fato, uma

13 Sabe-se, por exemplo, que a peça Dafne de Peri e Rinuccini foi apresentada no Palazzo Corsi, em Florença, no ano de 1597, disputando com a Eurídice o título de primeiro melodrama cantado. Mas da Dafne restaram apenas alguns poucos fragmentos, convencionando-se atribuir à Eurídice o referido título. 14 Apesar de existirem partes corais na ópera essas partes não constituem a ação propriamente dita. 15 FABBRI, Paolo e POMPILIO Angelo (ed). “Introdução” ao Il Corago, p. 10 (Traduções minhas).

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compilação de citações de autores antigos e contemporâneos sem a preocupação de os

comentar. Sua originalidade está em tratar conjuntamente dos dois aspectos do

espetáculo, ou seja, o Il Corago tanto fornece indicações para a composição de um texto

dramático funcional, como para a construção do palco e da cena, passando por várias

outras questões como o modo de recitar e o de representar. Bastante citado por

catálogos e autores dos séculos seguintes, esse texto fica entre a “exaltação da origem

florentina” do drama musicado afirmando sua novidade, e a “continuidade histórica que

vê no presente o renascer do teatro grego”16.

Este texto nos prova dois fatos, primeiro, sob o ponto de vista histórico, as

cidades italianas viviam, no início do século XVII, um ambiente propício para as

produções dos dramas musicados, tornando uma necessidade a elaboração de tratados

que funcionem como um guia que oriente a produção deste tipo de espetáculo. Segundo:

transparece a preocupação com a adequação, ou decoro, do gênero, ou seja, o referido

tratado enquadra o drama per musica dentro de certas convenções, observando os

limites do que deve ou não ser feito neste tipo de espetáculo: “O corago deve estar

sempre muito ciente da ocasião para a qual será preparado o espetáculo.”17 Concluindo:

o texto do Il Corago, não traz nada de novo – nem é essa a intenção de seu(s) autor(es)

– mas ele se revela um importante documento das regras seguidas na época para a

composição do espetáculo, baseando-se na suposição de que tenha sido redigido a partir

da observação do que estava sendo realizado nos palcos italianos de início do século

XVII. Na verdade, os historiadores da música são unânimes em afirmar que, já nos

primeiros anos do século XVII, antes, portanto, da publicação do referido texto, o estilo

se define, de fato, com Cláudio Monteverdi.

As obras de Monteverdi são consideradas uma evolução do estilo e

verdadeiras obras-primas que conquistam o público desde a primeira peça, La Favola

d’Orfeu, apresentada durante o carnaval de 1607 em Mântua. Acredita-se que com

Monteverdi o dramma per musica se estabeleceu como verdadeiro gênero musical

universal, evoluindo e ganhando em recursos estéticos em obras onde o sentimento

individual do canto e a expressividade dramática se fazem, verdadeiramente, através da

música: “Sua obra é o resultado de um sólido processo de aprendizado técnico que o

16 Ibidem, p. 13 17 Ibidem, p. 12.

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leva, do domínio das formas existentes em seu tempo, a um uso dessas mesmas formas

com uma individualidade sem paralelo na primeira metade do século XVII.”18

Pode nos parecer um tanto ambíguo que, partindo-se da proposta de

resgatar os mesmos efeitos emotivos produzidos pelo teatro grego, como queria a

Camerata Florentina, chegou-se a um espetáculo musical por definição, sobretudo

depois de Monteverdi. De fato, a coerência da ação na ópera depende do texto escrito

pelo poeta, o libreto, que na maioria dos casos durante esse período era inspirado nos

grandes temas mitológicos da antiguidade; a música, além da função expressiva, ajuda a

interligar as várias partes do texto no que se refere ao desenrolar da ação. Em sua

definição atual, concebemos a ópera como um gênero musical particular, cuja forma se

realiza através de um espetáculo completo: ação dramática e música coadunam numa

forma única. Mas essa peculiaridade do gênero nos leva a uma interessante questão que

inquietou os críticos do século XVII: em sua essência a ópera é considerada como teatro

ou como música, ou seja, qual dos dois elementos, a música ou o texto, é considerado o

de maior valor para o espetáculo? Para responder a esta pergunta precisamos antes

definir o local, a época e, sobretudo, quem teorizava a respeito dos espetáculos.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que os eruditos italianos foram os

responsáveis por definir os princípios teóricos através dos quais a ópera se realizou, no

entanto, as facções mais conservadoras tendem a ver a ópera como uma ambigüidade,

uma aberração, sobretudo, os intelectuais franceses que passaram a assistir a esses

espetáculos em suas viagens pelas cidades italianas.

Apoiados, sobretudo, na Poética aristotélica, esses eruditos vêem o

dramma per musica como um espetáculo confuso, sem uma definição objetiva que,

misturando elementos de música e teatro, se distanciaria de ambos quanto ao poder

imitativo, dificultando uma classificação bem delimitada. Sob a influência da tradição

do teatro clássico francês, que em medos do século XVII conhecia seu apogeu, surgem

textos que pretendem mostrar a incoerência do gênero, contestando-o como forma

inválida de espetáculo tanto pelo seu aspecto dramático quanto musical.

Um dos principais problemas encontrados pelos críticos do dramma per

musica é o fato do gênero ser caracterizado como uma representação que se dá através

do canto – tanto as árias quanto os recitativos contém elementos melodiosos mais

próximos da música do que da declamação propriamente dita. Com base na regra

18 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p. 56.

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aristotélica de verossimilhança, a representação por meio do canto era considerada uma

imitação imperfeita e incoerente da natureza, fazendo do espetáculo uma

monstruosidade19. O recurso aos personagens mitológicos, usado pelos poetas que

compunham o libreto, servia como argumento à objeção dos críticos que achavam uma

extravagância e um despropósito fazer cantar os personagens o tempo todo. O

argumento a favor da ópera era que apenas seres fantásticos e deuses podiam realizar

suas ações cantando, conferindo-lhes certa nobreza e dignidade.

Além dos problemas relacionados com a definição e a regra de

verossimilhança, a literatura crítica ainda apontava o problema da moral. Considerada

exagerada devido ao seu caráter extremamente passional e aos sentimentos “selvagens”

e desenfreados que são representados, sem se ater à decodificação e às convenções das

regras de representação, expressão e gesticulação do teatro, o dramma per musica não

contribui para a preservação da moral e do bom gosto. A despeito de causar uma forte

impressão aos sentidos, não oferece ao espírito material algum sobre o qual refletir: se

por um lado ela é tão maravilhosa e encanta os sentidos por surpreendê-los com coisas

novas e grandiosas, por outro não oferece nada ao espírito para que possa ser

interessante o suficiente ao ponto de manter alerta a atenção do espectador. A ópera, sob

esse ponto de vista é um espetáculo superficial e vazio de conteúdo, onde a nossa

capacidade de interação dá lugar à passividade do encantamento diante do maravilhoso

oferecido aos sentidos proporcionado não apenas pela audição da música, mas também

devido à composição da cena como cenários, figurinos e etc.20

Seguindo uma interpretação de tendência racionalista, os críticos viam o

drama musicado como um espetáculo que encerrava vários problemas mas, no entanto,

esses críticos se baseavam em preceitos teóricos bem diversos da proposta sob a qual as

mesmas peças eram compostas principalmente na Itália. Longe de influenciarem de fato

19 Cf., por exemplo, o texto de Saint-Evremond, Sur les Opéras, escrito em 1684, onde o autor aponta as cenas que se tornam ridículas por serem cantadas, como o patrão que dá uma tarefa a um empregado cantando, um amigo que faz uma confissão a outro cantando, decisões tomadas em conselhos cantando e homens que duelam cantando. A referência tomada por Saint-Evremond nesta crítica é a do teatro grego, citado pelo próprio autor “Os gregos faziam belas tragédias onde se cantavam algumas coisas, os italianos e franceses fazem perversões, onde eles cantam o tempo todo”. Segundo a Poética de Aristóteles existem momentos certos para serem inseridos os cantos que eram executados não pelos personagens, mas pelos coros. 20 Mas uma vez me apoio no referido texto de Saint-Evremond, pois o autor será imitado por outros literatos da época que usam os mesmos argumentos contra o drama musicado, influenciados igualmente pela Poética aristotélica e pelo teatro francês: “Saint-Evremond, (...) sintetiza eficazmente os motivos mais comuns da condenação do melodrama”. FUBINI, Enrico. La Estetica Musical del siglo XVIII a nuestros dias, p. 15.

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a produção e a composição dos dramas musicados, os textos críticos são escritos

seguindo critérios que não encontram muita coerência com a intenção buscada pelos

“produtores” do espetáculo. Distantes do mundo prático que envolve a produção do

drama musicado, os textos que se destinam a sua crítica se apóiam apenas em outros

textos e eram lidos quase que só por eruditos. Apesar de formarem uma verdadeira

literatura específica, esses textos críticos de conteúdo negativo se desenvolvem em um

sentido diferente das produções e pouco ou nenhum efeito causam na evolução do

gênero. Os textos eram escritos por literatos, que em sua grande maioria não eram

músicos, e lidos apenas por outros literatos preocupados em replicá-los. Existiam até, de

fato, durante o século XVII, principalmente em Paris, os espectadores “profissionais”,

literatos eruditos profundos conhecedores da teoria racionalista-cartesiana e

perfeitamente integrados com todas as regras de representação, decoro e

verossimilhança que deveriam estar presentes nos espetáculos. Ao contrário do grande

público que buscava nos espetáculos apenas uma forma de entretenimento, os

espectadores “profissionais” iam assistir aos espetáculos tendo em vista um objetivo

definido: verificar se a obra a ser representada estava tanto adequada às regras de

representação ditadas na Poética de Aristóteles, quanto de acordo com o decoro próprio

ao século XVII. Estes espectadores muitas vezes publicavam suas críticas, mas elas não

chegavam a abalar o sucesso de uma obra nem a opinião do público, que na maioria das

vezes nem tomava conhecimento da existência de tais críticas. Assim, as críticas

serviam apenas para causar polêmica entre outros literatos e não chegavam a causar

mudanças consideráveis nos espetáculos:

“(...) os repetidos triunfos dos gêneros que exploravam o veio do maravilhoso,“tragédias em máquinas” (as óperas), mais do que comprovam que o público da época está totalmente pronto para jogar o jogo da convenção e se deixar deliciosamente abusar pelos processos ilusionistas dos técnicos de palco. A incredulidade que os “doutos” lhe atribuem não é no fundo senão a projeção do senso crítico, da ironia de espectadores “profissionais” (os “eruditos”...).21

De fato, o drama musicado gozava de grande sucesso junto ao público

independentemente do que diziam seus críticos. Como conseqüência, esse sucesso logo

passou a conduzir as produções, e se a ópera surge devido a um ambiente intelectual que

ajuda a definir seus contornos conceituais, como o proporcionado pela Camerata

Florentina, por exemplo, logo, no entanto, músicos, poetas e compositores, passaram a

21 ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro, p. 41.

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se guiar na prática mais pelo gosto do público e por suas exigências do que por

princípios filosóficos.

Percorrendo o caminho que mais garantias davam ao sucesso,

compositores e libretistas propunham mudanças na composição de suas peças o que

proporcionou evolução e diversidade ao estilo, sobretudo após 1637, quando surgem os

teatros públicos de Veneza.

“Quanto à estética geral do drama musicado, os teatros públicos de Veneza muito contribuíram para a sua evolução, impondo a obrigação de satisfazer os gostos de um público cada vez maior. (...) A incrível quantidade de teatros para uma cidade com menos de cento e cinqüenta mil habitantes, cria uma severa concorrência. É preciso acompanhar o gosto do público pelo grande espetáculo.”22

A preocupação em agradar ao público gera a primeira grande mudança na

ópera que ocorre na temática seguida pelo libreto, que passa da mitologia aos assuntos

mais próximos do público com temas relacionados ao cotidiano e principalmente às

experiências amorosas: “A mitologia, demasiado rarefeita para o público popular, foi

sendo rapidamente abandonada (...) Enjoados da profusão de óperas com temática

mitológica, os venezianos pediam coisa diferente.”23 Mudança significativa, já que

desde sua criação a referência à mitologia é um lugar-comum na ópera, a busca por

temas mais livres e enredos menos complexos abre espaço para a introdução do

elemento cômico dentro do espetáculo. Por meio de personagens caricaturadas inseridas

na trama os autores descobrem novos elementos através dos quais seria possível

despertar interesse da platéia: gagueira, metáfora, piadas de duplo sentido geralmente de

conotação erótica, empregados maliciosos, personagens femininas cantadas por homens

etc. Estes elementos, velhos clichês emprestados da Commedia dell’arte24, seriam

igualmente utilizados nos gêneros cômicos da ópera das próximas décadas.

Tão importante quanto o libreto – quiçá até mais – a montagem cênica nos

teatros de Veneza cresce em ornamentação, maquinário e engenharia, na disputa pelo

gosto do público. Com o objetivo de conquistá-lo não apenas pelo ouvido, mas também

pelos olhos, a estrutura física do palco ganha em recursos, ampliando os elementos

ornamentais e causando uma revolução na montagem cênica. É nesta época, para dar

22 CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 451. 23 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p. 89. 24 A Commedia dell’arte é o teatro cômico italiano praticado por artistas especializados em dança, mímica e declamação em números circenses, cujos personagens arquétipos caracterizados por máscaras. Tornou-se muito popular desde finais do século XVI.

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apenas um exemplo, que surge pela primeira vez o palco italiano, mais profundo,

permitindo um melhor uso dos efeitos de perspectiva.

Se o libreto ganha em simplicidade, a montagem da cena ganha em

complexidade e a ópera continua sendo um espetáculo luxuoso e, apesar do gênero ter

migrado da corte para os palcos públicos, ele ainda era restrito à camada social de alto

poder aquisitivo: nobreza e alta burguesia, que fazia do espetáculo um acontecimento

social.25 Sem dúvida, durante o período dos teatros públicos a ópera, transformada em

um grande espetáculo, cumpre seu papel social de entretenimento. Entretenimento,

neste caso, significa diversão sem fins educativos ou edificantes do ponto de vista

intelectual. O objetivo da ópera pública é o de despertar o espanto e admiração e não o

de provocar reflexão moral; portanto, coerência, verossimilhança, regras de

representação passaram a ser cada vez mais relegadas a segundo plano, em favor do

luxo, das máquinas, das cenas cômicas, das intrigas amorosas que, na verdade vaziam

com que o público pagasse para ver o espetáculo. O espetáculo maravilhoso no qual se

transforma a ópera veneziana proporciona ao público dois tipos de entretenimento: o

que se desenrolava no palco e o que era eferecido pelas damas e cavalheiros da

sociedade flertando com suas melhores jóias e trajes, não raro o verdadeiro motivo para

o sucesso dos teatros públicos:

“Um espetáculo de ópera italiana na primeira metade do século XVII teria desnorteado um espectador moderno habituado ao clima quase “litúrgico” da representações contemporâneas. O público não tinha o hábito de assistir à ópera em silêncio e só parava de conversar quando alguma coisa – uma bela ária ou um impressionante efeito de maquinaria; este com mais freqüência do que aquela – acontecia no palco e lhe chamava a atenção. Os camarotes transformavam-se em animados salões de ceia ou, às vezes, de encontros galantes.”26

Muitas vezes o sucesso da peça era assegurado devido a inclusão de uma

ária famosa, na qual o cantor pudesse mostrar ao público todo o seu virtuosismo,

mesmo que essa ária não tivesse qualquer relação com o drama do qual passava a fazer

parte. Esta prática se torna comum levando ao que os historiadores chamam de “culto ao

cantor”, fazendo com que libretistas e compositores se submetessem à vontade dos

intérpretes. Em meados do século XVII a Igreja proíbe que mulheres apareçam em cena,

25 A classe média baixa só teria acesso à ópera em 1674, através de empreendimentos que ofereciam espetáculos a preços populares. 26 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p. 85.

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é a vez dos castrati roubarem o espetáculo arrancando aplausos do público em plena

execução de uma ária devido às suas proezas vocais.

Apesar do grande sucesso junto ao público, a ópera pública,

principalmente a veneziana, é apontada pelos críticos intelectuais como degeneradoras

dos ideais propostos pelos artistas da Camerata. Para evitar o que consideravam

exageros cometidos em nome do gosto do público que, segundo essa visão, acabaram

por gerar espetáculos bizarros e totalmente incoerentes, uma nova geração de libretistas

recorre novamente às fontes clássicas, desta vez, por via dos escritores franceses:

“buscando uma forma de renovar o libreto, os poetas do fim do século XVII voltam-se

para a tragédia clássica francesa, tal como tinha sido praticada por Corneille e Racine,

vendo nela um exemplo de teatro coerente e conciso, imitado dos exemplos greco-

romanos.”27 Esses defensores do modelo clássico, reunidos em torno da ex-rainha

Cristina da Suécia, são reconhecidos pelos historiadores como fundadores da Arcádia,

que tinha por objetivos resgatar – mais uma vez – a sobriedade e a ordem de acordo

com os modelos clássicos. Seguindo os princípios árcades que, de acordo com Lauro M.

Coelho, podem ser assim resumidos: “reação contra o que se considerava o mau gosto

do barroquismo, propondo em seu lugar o retorno ao equilíbrio e à simplicidade. Culto

dos modelos clássicos e, portanto, da teoria aristotélica da arte como imitação da

natureza. Predomínio da razão, da ordem, da disciplina; preocupação com a finalidade

moral da arte, que deve sempre espelhar a superioridade da virtude”28, esses acadêmicos

definem os contornos da opera seria, que tem em Apostolo Zeno (1669-1750) e

Metastásio (1698-1782) seus principais representantes.

Optando principalmente pelos temas históricos, essa reforma do libreto

pretendia unir às regras aristotélicas de unidade de tempo, ação e lugar, resgatando

assim a coerência do libreto, com novos recursos poéticos, os affetti, próprios a exaltar

os sentimentos, reafirmando-os por meio da música. A decodificação dos afetos

representados por estados psicológicos bem definidos faz com que os elementos

maravilhosos ou extra-naturais sejam eliminados para que a expressividade se concentre

nos estados emocionais sofridos pelos personagens.

Também como acontecia no teatro clássico francês, a mistura de gêneros

estava eliminada da opera seria e as inserções das personagens cômicas que apareciam

a qualquer momento na ópera de modelo veneziano, sem ter necessariamente relação

27 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p 168. 28 Ibidem, p 170.

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com a trama central, são abolidas definitivamente. Este fato nos interessa

particularmente por ter oferecido as condições para o surgimento dos intermezzi, gênero

de espetáculo cômico que quando chega à Paris é confrontado com a tragédie lyrique

ocasionando a já mencionada Querela dos Bufões. Mas antes de conhecer mais detalhes

deste debate, vamos caracterizar, resumidamente, o que foi o intermezzo e como ele

passou a ser considerado um gênero de ópera cômica defendido, como na Carta de

Russeau, como modelo de música italiana.

Como vimos era costume no modelo de ópera veneziana inserir ao acaso

cenas cômicas na trama com o intuito de chamar a atenção do público. Logo,

convencionou-se apresentar essas cenas ao final de cada ato. Finalmente, com a reforma

do libreto e a separação dos gêneros as cenas cômicas passam a ser então apresentadas

nos intervalos dos atos da opera seria – de onde o nome intermezzo – no princípio sem

ligação umas com as outras, mas depois se configurando como um segundo espetáculo

completo e totalmente independente da ópera principal. Com um tempo reduzido de

apresentação, pois, como ocupavam os intervalos entre os atos da ópera principal,

convencionalmente apresentada em três atos, os intermezzi tinham por função entreter o

público apresentando assuntos que não concorressem com o tema da ópera principal,

por essa razão recorria aos temas leves e cômicos, retirados do cotidiano da vida

burguesa apresentado, geralmente por apenas dois ou três personagens, por meio de

diálogos bem humorados. Os intermezzi também não dispunham de toda a engenharia e

maquinaria da ópera principal, a produção das cenas deveria ser simples e montada sem

grandes recursos, apesar de serem apresentadas em teatros luxuosos: “Não mais

máquinas complicadas, nem encenações grandiosas, não mais personagens mitológicos

nem heróis antigos, não mais versos pomposos nem vocalises insensatos. (...) O cenário

representa as ruas, as praças, os vilarejos vizinhos; os personagens são aqueles que

podemos encontrar todos os dias; eles falam uma língua familiar; o enredo inspira-se

nos sentimentos e nas aventuras que todos podem viver.”29

Usando personagens “reais” que viviam uma intriga amorosa, os

intermezzi rompiam com as convenções impostas pela ópera séria, provocando o efeito

cômico intencional devido à inadequação com o decoro, conseqüência da zombaria feita

com alguns costumes sociais da época, herdando clichês próprios do gênero já

utilizados pela da Commedia dell’arte como “a paródia, a seqüência de metáforas

29 CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 463.

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absurdas, os efeitos musicais que visão a imitar risadas, gagueira, tremedeira e outras

reações de perturbação emocional”30. Outra convenção do gênero cômico herdada da

Commedia dell’arte é o uso de personagens arquétipos e populares como os pares

amorosos, os empregados astuciosos, o velho solteirão avarento mas, no entanto, o

intermezzo se utilizará destes elementos sem recorrer à vulgaridade e ao artificialismo

daquela.

Além da influência de elementos tradicionais ao gênero cômico, o

intermezzo também sofrerá a influência da reforma, que ocorria simultaneamente ao seu

surgimento, na opera seria. Esta influência dos princípios árcades faz com que o

intermezzo tenha algumas características peculiares que o diferencia das peças cômicas

de caráter estilizado, ao mesmo tempo em que o aproxima da opera seria. Intermezzo e

opera seria são os resultados da mesma reforma operada sobre os “exageros” do que

vinha sendo praticado na ópera pública, evoluindo cada uma em suas respectivas

características próprias ao gênero, mas partindo ambas dos mesmos princípios, como se

os dois gêneros se realizassem sob duas maneiras possíveis, contrastantes mas não

antagônicas, de uma mesma concepção estética:

“Os dois gêneros vão, todavia, historicamente enquadrar-se na complementaridade de caracteres diversos entre si mas não antitéticos, que não permita a coexistência interna no mesmo espetáculo, diante do mesmo público. O gosto pela oposição nítida, a drástica solução de continuidade, a admiração, a reviravolta de improviso marcava, como se diz, a ópera metastasiana. O tema nobre da opera seria se opondo ao tema do cotidiano, o mundo aristocrático de corte ao burguês, o pranto ao riso, a sinuosa complicação do enredo à extrema simplicidade de poucas situação bem concentradas, a expressão canora dos afetos àquela dos gestos realizados musicalmente. O jogo da tese-antítese investe também na forma musical que opõem a grande orquestra da opera seria ao conjunto instrumental bem mais restrito do intermezzo (a Serva Padrona possui apenas um quinteto de arcos) e, algo notável, a vocalização do belcanto a um tipo de canto radicalmente diverso, que não se dá a não ser pelo colorido da distribuição vocal: a dominação clara da voz aguda que caracteriza a opera seria deixa espaço, no intermezzo, à voz obscura do baixo que, substituindo os castrati como protagonistas, determinava a realística identificação do colorido vocal ao precioso papel dramático, orientando também em tal sentido a escrita musical da parte feminina. E também este fato diferenciava profundamente o estilo cômico da opera seria. A abstração lírica do belcanto, floreada ou achatada, se opõem no intermezzo a uma vocalização de tipo silábico, plena de acentos de destaque rítmico de uma elementar expressividade harmônica onde o efeito cômico era devido freqüentemente à mecanização da palavra através da marcante interação do ritmo persistente.”31

30 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p. 202. 31 GALLARATI, Paolo. Musica e Maschera, p. 106.

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Notamos que o intermezzo opta por um canto considerado mais natural

que privilegia a clara pronúncia das sílabas. O cuidado com a composição musical

também pode ser considerado como uma evolução no gênero cômico, cuja tendência até

então era se concentrar mais nas cenas de humor grotesco do que nas qualidades

musicais da composição. Como afirma Paolo Gallarati, no intermezzo o ritmo e a

melodia seguem as inflexões da fala ocasionando uma música que, adequada aos versos,

torna-se mais simples e de fácil assimilação, um meio pelo qual o texto pode ser

perfeitamente entendido sem que o canto perca em expressividade. Historiadores da

música são quase unânimes na defesa das qualidades do gênero e não escondem sua

admiração pela música do intermezzo.

Fazendo uso do italiano culto – diferentemente da comédia tradicional que

usava dialetos de acordo com as personagens apresentadas – mais adequado, portanto,

ao seu público, o texto do intermezzo, inspirado nos autores franceses, se torna mais

literário com o objetivo de despertar ideais de bom gosto e de boa conduta moral. A

nova comédia se pautava pelo interesse de despertar o chamado “riso honesto”,

desempenhando claro papel educativo e moralizante representando o “espelho real do

cotidiano” ao ridicularizar os vícios e satirizar alguns aspectos da vida social32, Lauro

M. Coelho cita David Kimbell: “Suas palavras de ordem eram Natureza e Razão, seu

objetivo, ajudar a sociedade italiana a amadurecer, proclamar os ideais de bom gosto,

integridade e sociabilidade; inversamente, satirizar a afetação, a hipocrisia e a

presunção, que viam como vícios.”33

Neste sentido o recurso ao fantástico também se torna descabido

sobressaindo-se, assim, os aspectos humanos extraídos de cenas do cotidiano da vida

burguesa, com as quais o público se identificava prontamente que continham até um

certo grau de improvisação. A dupla influência admitida pela ópera cômica de início do

século XVIII, permite a ela se tornar um espetáculo flexível e ambivalente, circulando

sem dificuldades simultaneamente entre dois mundos – o mundo dos grandes

espetáculos por um lado, e o recurso aos temas simples de fácil assimilação, por outro –

ao unir sua origem popular com a ação exercida pela tendência erudita de sua época.

32 Princípios estes claramente baseados em Aristóteles para o qual a arte imitativa, a poesia, “imita homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole.” Poética, p. 70. Vale lembrar que Aristóteles separa nitidamente a arte poética da arte musical quanto ao poder de imitação, sendo que a primeira é mais eficiente em cumprir seu papel moralizante e a música quase nada significa sem a palavra, possuindo sobre o ser humano um efeito mais físico do que moral. Cf. TWINING, Thomas. Aristotle’s Treatise on Poetry, Translation and Dissertations. 33 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p 198.

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Talvez este tenha sido o motivo de seu grande sucesso, fazendo com que surgissem

companhias especializadas nas apresentações dos intermezzi, que a esta altura já eram

apresentados independentemente da ópera principal.

Apesar de Paolo Gallarati afirmar em seu Musica e Maschera ser muito

difícil estabelecer um padrão para a ópera cômica italiana, que apresentava várias

formas e estilos diferentes para cada cidade34, podemos admitir que, de um modo geral,

os intermezzi seguem com um pouco de liberdade as características que listamos acima,

as quais, por sua vez, foram oferecidas por uma obra que podemos considerar como

precursora do gênero. A importância desta peça se justifica pelo papel que desempenha

na história da ópera, na Querela dos Bufões em particular e na crítica de Rousseau,

sendo usada pelo autor como modelo da música italiana. Trata-se da Serva Padrona de

Giovanni Battista Draghi (1710-1736), conhecido como Pergolesi, que ironicamente

não viveu o suficiente para acompanhar a repercussão que sua obra mais famosa

acabaria por desencadear.

A Serva Padrona estreou no dia 28 de agosto de 1733, no Teatro San

Bartolomeo de Nápoles, nos intervalos da ópera Il Prigionier Superbo, também de

autoria de Pergolesi. Apesar de terem existido outros intermezzi que a antecederam, seu

sucesso foi tanto que convencionou-se considerá-la “o marco inaugural da ópera cômica

setecentista.”35 Apresentando a história extremamente simples de uma criada que

devido à astúcia acaba se casando com o patrão que, por acaso, estava a procura de uma

noiva, a Serva Padrona é considerada uma obra de perfeito equilíbrio entre a influência

culta da reforma ocorrida na opera seria e a origem popular da comédia:

“Escrito inteiramente em italiano, sem partes em dialeto, o texto da Serva Padrona oferece a Pergolesi a ocasião para uma obra-prima de equilíbrio entre vivacidade dialógica e proporção formal, realismo e estilização, grotesco caricatural e fino sombreado psicológico.”36

“Tudo apresenta o que a música de Pergolesi recolhe e realiza, potencializado (...) pela riqueza da solução rítmica, pelo porte do fraseado, pela dinâmica e, naturalmente, pelo perfil do tema e dos parênteses temáticos. A partitura contém, por assim dizer, já em si mesma a regra do espetáculo, realizando a compenetração de texto, música e teatro que faz do intermezzo veneziano e napolitano um exemplo único no melodrama de seu tempo.”37

34 GALLARATI, Paolo. Musica e Maschera, p. 97. 35 COELHO, Lauro Machado. A Ópera Barroca Italiana, p. 204. 36 GALLARATI, Paolo. Musica e Maschera, p. 100. 37 Ibidem, p. 105.

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Críticos e historiadores da música são unânimes em afirmar as qualidades

musicais da obra de Pergolesi que determinam a forma do espetáculo e exprimem os

aspectos psicológicos das personagens e efeitos cômicos caricaturais. Sua estrutura

econômica baseada em uma trama simples, personagens arquétipos, o uso do recitativo

seco, a moderação nos ornamentos, o andamento rápido proporcionando um tom alegre

e ágil à ação, o recurso ao uso dos acentos naturais da fala e a utilização de melodias

populares são algumas das características presentes na Serva Padrona que definem o

gênero cômico no início do século XVIII, servindo de influência para a produção dos

intermezzi nas décadas seguintes.

De acordo com o que vimos acima a respeito da Serva Padrona podemos

concluir que na Carta sobre a música francesa, redigida pouco mais de um ano após a

apresentação da peça em Paris, Rousseau não diverge da opinião corrente ao valorizar

esteticamente certos aspectos apresentados pela obra de Pergolesi. Rousseau, de fato,

parece estabelecer um padrão na música italiana ao relacioná-la, de modo geral, às

referidas características que notamos no gênero do intermezzo, e sobretudo na Serva

Padrona, apesar de citar na Carta tanto o gênero trágico quanto o cômico.

Constituindo um universo vastíssimo e rico em detalhes, que não se

esgotam de maneira nenhuma nesta breve incursão aos seus principais episódios, a

história da ópera italiana nos mostra que ela está longe de ser simples, espontânea e

homogênea, como Rousseau parece atestar em sua Carta. Como vimos, não é possível

afirmar que existe uma única música italiana como nos faz parecer a Carta de

Rousseau, já que o autor faz sua referência no singular. O dramma per musica, altera

sua forma e seus princípios ao longo das décadas, apresentando características que

variam conforme a época ou lugar – de teatro para teatro, ou de cidade para cidade – e

até de autor para autor. Nem mesmo o idioma será o mesmo para todos os gêneros, ou

para todos os personagens dentro de um mesmo gênero.

Considerada como um gênero musical que, no entanto, foi vista durante

muito tempo sob a perspectiva do teatro – inclusive do teatro clássico francês – a ópera

italiana nem sempre considerou a música como seu elemento mais importante. A

música, durante alguns períodos foi relegada a segundo plano, dando espaço para os

efeitos especiais e à maquinaria, ou até mesmo às habilidades vocais de um cantor

famoso. Os princípios estéticos sob os quais havia nascido, na prática, acabavam

submetidos ao gosto do público, e precisavam ser retomados por meio de reformas.

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De fato, o sucesso que a ópera sempre obteve do público, o que contribuiu

para sua evolução, prova a importância do papel social desempenhado pelos

espetáculos, e a arte em geral, ao longo do século XVII e início do XVIII. A adequação

ao público compõe um quadro específico de convenções que guia o formato dos

espetáculos conforme o ambiente da apresentação, seja nas ocasiões especiais de grande

solenidade nas cortes italianas, seja nos numerosos e luxuosos teatros públicos de

Veneza e Nápoles. Isso significa que a situação política de caráter descentralizado das

cidades italianas e a economia mercantil proporcionaram um ambiente favorável ao

surgimento e evolução da ópera italiana, através de patrocínios e necessidade de

entretenimento, configurando o modo como o espetáculo se apresentava particularmente

naquele país.

Mas a relação entre política e meios de expressão artística pode ser notada

ainda com mais intensidade na França, em meados do século XVII. Estando o aparato

de produção dos espetáculos totalmente submetido ao poder absoluto de Luis XIV, a

ópera na França, assim como as demais expressões artísticas oficiais, é patrocinada de

maneira a se tornar mais um meio de propaganda para a imagem do rei Luís XIV. No

capítulo seguinte veremos, de maneira sucinta, como a ópera se apresentará na França,

desde as primeiras produções nacionais até o embate com a ópera italiana que acabou

por ocasionar a Querela dos Bufões.

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Capítulo II

A Querela dos Bufões e a Carta sobre a música francesa

Entre os anos de 1641 e 1661 as primeiras óperas italianas, até então

conhecidas em território francês apenas por meio de relatos de viagens, passam a ser

apresentadas em Paris por iniciativa do primeiro-ministro Giulio Mazarino. Em 1659

Robert Cambert representa em Issy a peça Ariane, uma pastoral cantada inteiramente

em francês considerada a primeira comédia francesa em música, reapresentada logo

depois diante do rei em Vincennes. Pierre Perrin, poeta e libretista, escreve uma carta

em 1659, endereçada ao arcebispo de Turin, logo após a apresentação da Ariane, que é

considerada um documento atestando o nascimento da ópera francesa. Essa carta traz a

estrutura geral seguida pelos textos críticos posteriores: enumera os problemas gerais de

incoerência da ópera como gênero, ao mesmo tempo em que esboça um paralelo entre o

estilo italiano e o francês com a finalidade de descobrir qual dos dois é o melhor.

As composições de ópera na França, inicialmente, sofrem a influência

tanto da ópera italiana, já conhecida por uma parte do público, como dos balés de corte

e do teatro trágico franceses. Os primeiros espetáculos neste gênero são uma mistura de

comédia, dança e música, sempre tendo como elemento principal o poema trágico que,

até então, representava o poder expressivo do espetáculo. Devido a isso, os literatos

mais conservadores tendo como referência as regras de representação específicas do

teatro e a importância dada ao poema como o modo expressivo do espetáculo, não

pouparam esforços na crítica tanto à “monstruosa” cena italiana, quanto aos espetáculos

mistos franceses.

Os espetáculos musicados franceses só se tornaram de fato óperas, com

Jean-Batiste Lully (1632-1687). Italiano naturalizado francês, Lully inicia sua carreira

como Compositeur de la Musique Instrumentale de la Chambre, logo após ter dançado

ao lado do próprio Luís XIV. Passa, então, a escrever seus primeiros balés, os quais

consegue inserir nas peças de outros compositores, como aconteceu com os dramas de

Cavalli, por exemplo. Durante dez anos Lully colabora com Molière para a produção de

uma série de peças musicadas – comédias ou óperas-balés – mas se separa deste quando

obtém o privilégio do rei, privilège royal, em 1672 dando-lhe exclusividade sobre a

produção das peças musicadas no país – se algum outro compositor quisesse apresentar

uma peça teria que obter a autorização por escrito de Lully. As circunstâncias que

envolveram a ascensão da carreira de Lully, fizeram com que seu nome obscurecesse

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outros compositores da época, sendo até considerado oportunista por alguns

historiadores.

O compositor estréia sua primeira ópera, Cadmus et Hermione, em 27 de

abril de 1673 no Jeu de Paume du Bel-Air, dando início à produção das óperas

nacionais francesas, as chamadas tragédie lyrique. Com função e proposta diversa da

ópera em estilo italiano, apesar de ter sido influenciado pela Camerata Florentina, por

Monteverdi e Cavalli38, Lully define o estilo de composição tipicamente francesa

dando-lhe identidade e características próprias:

“Enraizada na rica tradição do teatro falado francês do período clássico, a tragédie lyrique, tal como fixada por Lully, vai distinguir-se da ópera italiana por dar ao texto uma importância tão grande quanto à música. “Meu recitativo é escrito para ser falado”, dizia ele, sem rodeios. Como o teatro de Racine e Corneille, ela se caracteriza pela imitação dos modelos clássicos greco-romanos; pela lei da separação dos gêneros, que proscreve a inserção, comum no início do Barroco, de interlúdios cômicos dentro de intrigas sérias; usa o alexandrino e tem uma estrutura fixa em cinco atos; respeita a regra das “três unidades”, de tempo, lugar e ação, pretensamente atribuída à Arte Poética de Aristóteles; e segue a convenção da bienséance, isto é, daquilo que “cai bem”, que é de bom tom, proibindo a exibição do que é considerado violento e de mau-gosto (como nas peças de teatro falado, todas essa situações eram narradas por uma das personagens, em vez de serem mostradas no palco).”39

A influência do teatro clássico, no caso de Lully, não significa perda das

qualidades musicais. Ao contrário, os historiadores não deixam de apontar que pela

primeira vez na cena parisiense a música assume importância representativa no

espetáculo, crescendo em complexidade na composição dos instrumentos, criando as

situações e dando vida aos personagens.40

Lully não só foi o criador como também o responsável direto pelas

produções das tragédie lyrique no país até sua morte em 1687. Portanto, diferentemente

do que ocorreu na Itália, a tragédie lyrique segue um padrão definido pela busca pelos

princípios clássicos de equilíbrio e pelo espírito cartesiano do uso de conceitos aceitos

universalmente, através da ação objetiva e racional. Perfeitamente adaptada ao seu

século e ambiente político, para os quais o conceito de originalidade tinha pouco ou

nenhum valor, a ópera de Lully tem um caráter convencional e os esforços do

compositor para construir os contornos da tragédie lyrique têm um objetivo bem

especifico que a diferencia essencialmente dos dramma per musica italianos. Se já na

38 COELHO, Lauro Machado. A Ópera na França, p. 27-8. 39 Ibidem, p. 24-5. 40 Cf., por exemplo, CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 472 ss.

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Itália a ópera segue seu respectivo quadro de convenções, a preocupação com o decoro

atingirá o grau máximo na França, não apenas devido à influência do teatro francês, mas

principalmente devido ao culto ao poder soberano do rei.

A tragédie lyrique, sendo uma das formas de espetáculo oficiais

patrocinados pelo rei, fazia parte do programa da “venda da imagem de Luís XIV”.41

Considerada o mais puro produto da época de Luís XIV, a tragédie lyrique com seu

requinte, suas entradas, seus balés, sua instrumentação elaborada, fazia parte do ritual

voltado para glória do rei. Utilizava-se, portanto, conscientemente, de meios de

persuasão com o intuito de enaltecer a figura pública do rei. Mais que um objeto de

propaganda – o termo, assim como nós o conhecemos, era estranho para a época – a

tragédie lyrique pode ser considerada como um meio de expressão do poder do rei e da

devoção de seus súditos.42 Por exemplo, Philippe Quinault, principal colaborador de

Lully, recorria aos temas heróicos ou mitológicos, pois, deuses e heróis em cena

conferiam ao espetáculo certa nobreza e dignidade, honrando a figura do rei em alusão

direta à sua figura. O próprio rei, já havia dançado nos ballets de cour no papel de

Apolo e Sol Nascente.

No entanto, o ambiente restrito e a falta de concorrência não desvalorizam

o papel que Lully desempenhou no teatro de ópera parisiense: em termos musicais as

composições francesas crescem em recursos instrumentais empregados na ênfase do

caráter dramático do espetáculo e conferindo um grau altamente intelectualizado às suas

obras. O respeito ao decoro fez com que o músico elaborasse um sistema estreito de

composição, bem definido, com formas ritmadas apropriadas às coreografias de balé.

Apesar de considerada por muitos críticos como uma música onde o sentimento figura

em segundo plano, transmitindo pouca liberdade ou inspiração,43 a música de Lully não

deixa de ser expressiva para a época, proporcionando o esperado lirismo refinado às

representações.

A importância de Lully para a história da ópera francesa é inegável, assim

como o sucesso que obteve na época, no auge de sua carreira chega a estrear uma ópera

41 A expressão é do historiador Peter Burke em seu livro A fabricação do rei, a construção da imagem pública de Luís XIV. 42 BURKE, Peter. A fabricação do rei, a construção da imagem pública de Luís XIV, p. 16. Apesar de não referir especificamente à tragédia lírica o autor realiza um estudo da utilização das artes por Luís XIV como meio de propaganda na qual ela está incluída e perfeitamente adaptada. 43 Vale lembrar que “inspiração” e “liberdade” não eram, aliás, os princípios estéticos mais valorizados na França do século XVII, e a “expressividade dos sentimentos” seguia regras estritas de codificação. Para o contexto de Lully, de Racine, Molière ou Poussin a preocupação com o decoro e adequação era o que realmente significava para as produções artísticas.

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por ano – as quais eram reapresentadas à exaustão, mesmo após a morte do músico.

Lully deixa alguns seguidores que tentaram preservar as características da tragédie

lyrique criada por ele. Entre eles estão Destouches, Colasse, Marais Charpentier,

Campra. Mas o estilo tradicional praticado por esses compositores começa a dar sinais

de exaustão, principalmente após a morte de Luís XIV em 1715, acontecimento que

pode ser visto sob uma perspectiva de significativa importância, influenciando na

mudança do gosto do público e na proposta do espetáculo. Por exemplo, podemos

pensar que a principal diferença entre Lully e Rameau, apesar deste último ter dado

continuidade à tradição iniciada pelo primeiro, é que Rameu tentará dar autonomia à

música fundamentando-a sob preceitos científico-filosóficos, como veremos com mais

detalhes no próximo capítulo. Por hora, nos interessa esclarecer que com a morte de

Luís XIV tornam-se desnecessários e absurdos os recursos usados para manter em alta

sua imagem pública, o que já havia acontecendo nos últimos anos de seu reinado devido

à mudanças ocorridas no pensamento da época. O modelo clássico de representação foi

colocado em questão e episódios míticos ou heróicos usados em poemas, foi sendo

substituído por acontecimentos mais reais pautados por uma mentalidade mais

“científica”, assim como as metáforas foram substituídas por exemplos mais objetivos.

A chamada querela entre antigos e modernos, que atinge o apogeu no final da década de

1680, se não contribuiu definitivamente para a mudança do tema do libreto, ao menos

levanta questionamentos quanto ao uso dos personagens mitológicos e heróicos.44

Em segundo lugar, após a morte de Luís XIV, o espaço para obras não

oficiais torna-se menos limitado, colocando compositores franceses em contato, por

exemplo, com grupos de atores do teatro cômico italiano. Influenciados pelo teatro em

forma de sátira social, em tom despretensioso e ágil dos subúrbios, músicos franceses

passam a investir no estilo que será o embrião da opéra-comique concorrendo com os

músicos que continuavam a compor tragédies lyriques e comédies ballet. Portanto,

quando a companhia de bufões dirigida por Eustachio Bambini chega a Paris em agosto

de 1752 para uma turnê apresentando os mais famosos intermezzi italianos como Serva

Padrona, Il Giocatore, Il Maestro di Musica, La Sclavra Governatrice, entre outras45, já

encontra um ambiente de rivalidade, iniciado algumas décadas antes, entre dois estilos

de ópera, um simples e ágil outro, pomposo e complexo. A rivalidade torna-se ainda

44 Cf. BURKE, Peter. A fabricação do rei, a construção da imagem pública de Luís XIV, Cap. IX “A Crise da Representação”, p. 137. 45 Rousseau faz referência na Carta à algumas dessas peças.

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mais acirrada com a remontagem de Omphale de André-Cardinal Destouches em

janeiro de 1752, alguns meses antes da chegada dos bufões em Paris. Enquanto uma

parte do público mostrava descontentamento com remontagens de peças que seguiam a

tradição da ópera francesa, vendo nos intermezzi uma alternativa para o despotismo dos

espetáculos na França, os músicos tradicionais e a nobreza defendiam a tragédie lyrique

– que na ocasião tinha em Rameau seu maior representante – talvez como uma tentativa

de manter o esplendor e a glória do que foi a tragédie lyrique no século anterior.

Estavam, então, lançadas as circunstâncias que ocasionaram a famosa Querela dos

Bufões, acontecimento que passaremos a comentar a seguir.

O texto que oficialmente inicia a querela é a Lettre sur Omphale de

Grimm46 de fevereiro de 1752, publicada após a já referida reprise em Paris da ópera

Omphale. A carta de Grimm, vista com perigo pelos defensores da tradicional música

francesa, recebe destes várias respostas que são prontamente respondidas pelos

partidários da música italiana. Logo, o ímpeto em demonstrar cada um o seu ponto de

vista a respeito dos estilos de ópera em questão, dividiu a sociedade parisiense em dois

partidos: os defensores da música italiana, conhecidos como o “coine de la Reine”,

alegando ser a ópera italiana mais espontânea, mais intensa e mais realista que a

francesa, tinham por representantes os philosophes, dentre os quais estavam Diderot,

D’Alembert e Rousseau. Enquanto que, do outro lado, defendendo a tradicional música

francesa de Lully e Rameau estão as manifestações conservadoras dos intelectuais, dos

músicos tradicionais, da realeza e dos nobres no “parti du Roi”, que incluía o rei Luis

XV e Mme Pompadour. Dentre a ilustre classe de literatos, apenas Voltaire, amigo de

Rameau, se abstém de participar do debate declarando prudentemente: “Sois pela

França ou pela Itália? Sou pelo meu prazer, senhores.”47

Longe de apenas se aterem a seus respectivos gostos musicais, essa disputa

assumiu ares nacionalistas, devido às respectivas posições políticas e sociais que cada

partido assumia, o que não significava que em particular cada um não apreciasse a

música defendida pelo partido oposto48. Os defensores da música italiana, em sua

maioria, estavam ligados aos ideais de liberdade, eram a favor da democracia e se

opunham ao modo de vida aristocrático. Acreditavam que a ópera italiana representava

um tipo de espetáculo mais popular e mais subjetivo, permitindo maior liberdade de

46 Apesar de Grimm ser um admirador e defensor do estilo italiano, não deixa de admitir a genialidade de Rameau. Além da Lettre sur Omphale, Grimm escreveu também durante a querela Le petit prophèt. 47 Citado por CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 583. 48 Cf. M. Cranston, The early life & work of J.-J. Rousseau, p. 279.

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composição, demandando de maiores recursos melódicos, uma interpretação mais

intensa do cantor e temas mais próximos à vida burguesa, características que, segundo

seus defensores, tornaria a música mais agradável e prazerosa à audição.

Do outro lado, os músicos e compositores franceses defendiam a

tradicional música nacional no mais puro estilo criado por Lully e herdado por Jean-

Philippe Rameau, um dos principais músicos europeus do século XVIII, que dominava

a ópera francesa no período em que ocorreu a querela. Ligados ao mundo das artes, os

representantes desse partido alegavam que os defensores da música italiana eram

homens de ciência e não entendiam nada sobre gosto ou arte49. No entanto, a contra-

argumentação sustentava que a abrangente cultura dos philosophes e o espírito

universalista que defendiam eram usados como justificativa para que nomes ilustres na

ciência, como é o caso de D’Alembert50, tivessem exatamente por esse motivo o

discernimento necessário para discutirem, não como eruditos compositores restritos ao

seu universo, mas como apreciadores e críticos de arte.

Podemos afirmar que a Querela dos Bufões se diferencia das discussões

anteriores que envolveram o nome da ópera sob dois principais aspectos. Em relação à

história da ópera o que nos chama a atenção nesta querela, primeiramente, é o número

de envolvidos e o volume de panfletos publicados. Músicos, nobreza, filósofos, leigos,

toda a sociedade parisiense parecia querer expressar seu “gosto musical” sem, no

entanto, se aterem apenas às questões estéticas envolvidas no espetáculo. A maior parte

dos textos possui caráter panfletário e satírico e parecem mais preocupados em ofender

os representantes do partido oposto, do que em expressar as razões pelo gosto musical

defendido. Grande parte dos textos foi escrita por leigos da área musical ou, no máximo,

apreciadores da ópera, motivo pelo qual se mostram superficiais e apenas repetem

argumentos já usados por outros textos. Existem ainda os textos imparciais que, escritos

por apreciadores de música, tentavam colocar um ponto final ao debate alegando que

ambos os estilos eram bons, cada um com as características que lhe eram próprias.

Enfim, grande parte dos textos envolvidos nesta querela nos mostra que, de fato, muita

tinta foi gasta para decidir sobre uma questão que foi bastante simplificada: determinar

qual o melhor estilo de ópera se a italiana ou a francesa. O que pretendemos mostrar

49 Ibidem. 50 Quando a disputa entre Rameau e Rousseau se intensifica após a publicação da Carta e das réplicas redigidas por Rameau, D’Alembert decide ficar do lado de Rousseau, apesar de ter sido amigo pessoal e grande admirador da música Rameau.

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com nosso breve relato da história da ópera narrado acima é que a questão não se mostra

tão simples assim.

Isso nos leva a afirmar uma segunda peculiaridade referente a Querela, que

é a ausência de uma proposta de reforma para a ópera francesa. Se, por ventura, um

texto ou outro apresenta o desejo de reforma, isto aparece de modo esparso e vago, não

havendo, de fato, durante a querela, um conjunto de princípios renovadores,

formalizados e sistematizados seguido por qualquer um dos lados que realmente

surgisse como proposta com a finalidade de renovar, ou reafirmar, esteticamente os

espetáculos. Deixando em segundo plano a questão em torno de princípios

verdadeiramente estéticos, a disputa centrava-se mais especificamente em suscitar uma

rivalidade entre os dois gêneros, e aqui me refiro não à ópera francesa ou italiana de

forma hegemônica, mas à tragédia e à comédia especificamente, que, no que se refere à

ópera, essa rivalidade só acontecia dentro do território francês. A confusão é evidente

frente a obvia diferença entre os gêneros, tornando-os incomparáveis entre si:

“A incompreensão e os mal-entendidos vieram muitas vezes da crença numa verdade monolítica, num modelo único de teatro lírico. Ora, a ópera versalhesa pertence a uma dramaturgia totalmente distinta daquela da ópera italiana e dos outros tipos de dramas ou comédias musicadas: seu objetivo, seu público, seus meios diferem. Sua fraqueza está em seus vínculos demasiados estreitos com Versalhes; ela é pouco exportável e sucumbe com o regime que a fez nascer.”51

Distinguindo-se mais como acontecimento social do que como iniciativa

de reforma estética, a Querela, como fato isolado, não trouxe nenhuma mudança

significativa para o mundo dos espetáculos, acreditamos que essa não era realmente sua

intenção. Optamos por entender o evento da Querela mais como conseqüência do que

causa de transformações que já estavam ocorrendo no modo do homem olhar para seu

mundo. Nas palavras de Catherine Kintzler: “Em alguns anos, a partir de 1752, as

paixões tornam-se arrebatadas. Mas, além das paixões e ao mesmo tempo devido à elas,

traça-se um movimento irreversível que, abolindo por sua vez a mediação da

inteligência e a do corpo no juízo estético, vai introduzir uma nova entidade: a alma

sensível e fustigará o prazer em prol do êxtase.”52

A Querela, assim, pode ser caracterizada, como a expressão da

desvalorização de conceitos e convenções que já se mostravam ultrapassados; era o

51 CANDÉ, Roland de. História Universal da Música, p. 579. 52 KINTZLER, C. Jean-Philippe Rameau, Splendeur e Naufrage de l’Esthétique du Plaisir à l’âge Classique, p. 138.

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mundo sob a perspectiva absolutista como um todo que desmoronava e a ópera francesa

como produto desse mundo sofreu a inevitável reprovação. Prova disso é que

notadamente o texto de Grimm, que inicia a querela, foi escrito como protesto à

reapresentação de uma peça francesa meses antes da chegada da companhia de Bambini

em Paris.

Seguindo esse modo de entender a Querela podemos traçar um paralelo

entre ela e a publicação da Enciclopédia, ressoando, ambas, como manifestações de um

novo modo de pensar característico do Iluminismo. Segundo esse ponto de vista

expresso pelos verbetes da Encyclopedie, o mundo se mostraria como um “todo

consistente” no qual o conhecimento deveria caber em uma estrutura baseada na

“sensação e reflexão”, criando assim conexões sistemáticas entre as artes e as ciências.53

Mais perfeitamente adequado ao modo de vida burguês, o pensamento iluminista

expresso por Diderot e d’Alembert na Encyclopedie, “não procuraram a mão de Deus no

mundo mas, em vez disto, analisaram o trabalho dos homens, que forjaram sua própria

felicidade.”54 As regras do mundo não eram mais, portanto, ditadas por um soberano

absoluto de “origem divina”, caberia ao filósofo, de agora em diante, observar a

natureza e retirar dela seus princípios subjacentes, reconstruindo-os sistematicamente. O

poder, mudando de mãos, é alcançado por meio da posse do conhecimento e mais ainda,

por meio da transmissão deste conhecimento com o qual se constrói a civilização:

“d’Alembert apresentava a história como o triunfo da civilização e a civilização como o

trabalho dos homens de letras”55 comenta Darnton a respeito do Discours préliminaire,

citando o próprio d’Alembert desta vez no “Avertissement” para o terceiro volume da

Encyclopédie:

“Neste trabalho não se encontrarão... os conquistadores que devastaram a terra mas, em vez disso, os gênios imortais que a iluminara. Tampouco (se encontrará) uma multidão de soberanos que deveriam ter sido proscritos da história. Mesmo os nomes de príncipes e grandes personagens não têm direito algum a um lugar na Encyclopédie, exceto em virtude do bem que tenham feito à ciência, porque a Encyclopédie deve tudo ao talento e nada aos títulos. É a história do espírito humano, não da vaidade da humanidade.”56

53 DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros Episódios da História Cultural Francesa, p. 260. 54 Ibidem, p. 256. 55 Ibidem, p. 265. 56 Ibidem, p. 356.

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Comparemos com uma passagem da Carta sobre a música francesa de

Rousseau na qual o autor comenta a acuidade do compositor quanto à escolha da relação

dos sons que devem ser usados ou suprimidos, conforme o tipo de impressão que se

quer transmitir: “É estudando e folheando sem cessar as obras-primas da Itália que

aprenderá a fazer essa delicada escolha, se a natureza lhe tiver dado suficiente gênio e

gosto para sentir essa necessidade; pois as dificuldades da arte não se deixam perceber

senão pelos que são talhados para vencê-las (...)”57. Com estas palavras Rousseau quer

dizer que a erudição do “grande personagem” que foi Rameau não implica

necessariamente em talento. Este, por sua vez, não surge de uma escolha arbitrária

baseada em convenções sociais, é antes uma sensibilidade nata muito específica que

depende da vontade e do esforço individual para se aprimorar. Trazendo a querela para

liames mais estreitos, Rousseau vê na música de Rameau a representação de um mundo

em decadência já ultrapassado pela expressividade que julga estar presente na música

italiana. Com sua Carta, juntamente com sua filosofia, Rousseau não só demonstra

intimidade com o pensamento iluminista, compartilhando ideais com Diderot e

D’Alembert, como acaba acrescentando a esses ideais suas próprias contribuições.

No próximo capítulo veremos a oposição teórica entre Rousseau e Rameau

– uma querela dentro da querela – evidenciando a essência e as fontes filosóficas de

seus respectivos pontos de vista. Mas antes faremos uma breve apresentação à Carta

sobre a música francesa, mostrando suas características gerais e sua estrutura geral,

com a finalidade de introduzir o exame a respeito da crítica estética de Rousseau, assim

como sua relação com o corpo total de sua filosofia.

Subentende-se, pela conclusão a que chega Rousseau no último parágrafo

da Carta: “os franceses não têm música e não podem tê-la, ou, se alguma vez a tiveram,

será tanto pior para eles”58 que a intenção do autor ao publicar seu texto era a de colocar

um ponto final à Querela mas, o que ocorreu na verdade foi bem o contrário. De fato, a

publicação da Carta ocasionou mais uma avalanche de panfletos, iniciando um segundo

período da Querela59. Devido à Carta – e também às respostas de Rameau – o debate

nesta fase torna-se teoricamente mais denso com o uso de argumentos com base

filosófica concernentes ao gosto e à composição musical, explicitando duas concepções

estéticas distintas e em oposição: a primazia da harmonia como conseqüência da visão

57 ROUSSEAU, OC V, Lettre sur la Musique Française, p. 314. 58 OC V, Lettre sur la Musique Française, p. 328. 59 LAUNAY, Denise citada por KINTZLER, Catherine. In: “Introduction à Lettre sur la musique française”, Flammarion, 1993, p. 129

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cientificista da música; e a primazia da melodia como elemento autenticamente

imitativo das paixões humanas: “Mas a verdade nesta questão é que, transformando a

disputa sobre música em um debate filosófico, Rousseau a redireciona até o nível no

qual ele prova a si mesmo ser, no mínimo, equivalente a Rameau.”60. Então, se a Carta

possui um interlocutor direto, certamente foi remetida a Jean-Philippe Rameau, com o

qual Rousseau adquiriu divergências tanto pessoais quanto teóricas, que veremos no

capítulo seguinte. Voltando à Querela, a primeira conseqüência da publicação da Carta,

foi uma nova divisão entre os homens de letras interessados na disputa, que passam a se

dividir, então, entre os ramistas e os russeauista, respectivamente os defensores da teoria

da harmonia de Rameau e os defensores da primazia da melodia segundo a visão

expressa na Carta de Rousseau.

Rousseau afirma na Carta nunca antes ter participado da Querela, mas na

verdade havia escrito dois textos anônimos: Lettre à M. Grimm, em março de 1752,

respondendo à carta de Grimm, Lettre sur Omphale; e Lettre d’un symphoniste em

setembro de 1753. A Carta de Rousseau não foge ao formato já utilizado por outros

literatos para expor suas opiniões sobre a música: segue uma espécie de paralelo,

expondo uma a uma as vantagens e desvantagens da ópera francesa e da italiana,

analisando cada um dos seus componentes como duetos, monólogos, árias e recitativos,

composição instrumental, desempenho dos músicos, etc. Seguindo uma tendência já

iniciada no início do século, Rousseau considera a ópera sob o ponto de vista musical e

não dramático, conferindo autonomia à música, desvinculando-a de sua subordinação ao

texto e analisando-a como elemento verdadeiramente expressivo do espetáculo de

ópera, responsável por sua beleza e evolução. Compare-se, por exemplo, a Carta de

Rousseau com o Paralelo entre italianos e franceses no que concerne à música e às

óperas de François Raguenet de 1702, reeditado durante a Querela dos Bufões, em

março de 1753, com alguns acréscimos e tendo seu título mudado para La paix de

l’òpera. Sendo um dos mais influentes textos entre os eruditos da época, o texto de

Raguenet é um dos primeiros a propor um paralelo feito a partir do exame particular dos

elementos que compõem a ópera através da perspectiva da música: “Provavelmente pela

primeira vez, a música é reconhecida como elemento completamente autônomo,

independente da poesia e, sobre tudo, livre de debates morais, educativos e intelectuais.

60 CRANSTON, Maurice. The early life and work of J.-J. Rousseau, p. 280.

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Raguenet ama a música italiana porque é mais expressiva, mais brilhante, mais original,

mais melódica, em outras palavras, mais agradável.”61

Além de apresentarem formato semelhante e de expressarem a mesma

preferência pela música italiana, fazendo isto sob uma perspectiva de autonomia da

música, nos interessa, particularmente, o fato de Raguenet sugerir que a língua é um dos

elementos que podem influenciar a beleza da música: “A língua italiana tem uma grande

vantagem sobre a francesa para ser cantada, pois todas as suas vogais soam bem,

enquanto a metade das da língua francesa são vogais mudas, que quase não têm som”;

no entanto, Raguenet completa: “mas isso não é propriamente o material da música”62.

O fato de algumas características presentes nas línguas serem mais

apropriadas a certas funções específicas a serem desempenhas não é de todo estranho no

início do século XVIII. Vários literatos, entre eles Dus Bos, Grimm, Voltaire, Diderot,

escreveram a respeito, por exemplo, da predominância das vogais, da flexibilidade e

possibilidade de inversão em línguas como o latim serem mais apropriadas para a poesia

que a monotonia da língua francesa. Escreve Grimm “Nada é mais oposto ao gênio,

mais contrário à embriaguez a ao entusiasmo (duas qualidades sem as quais um poeta

não merece ser respeitado) que a marcha uniforme desta língua, sua exatidão tímida,

didática e empolada”63 se referindo à música francesa.

Rousseau, de fato, fará eco a um lugar-comum da época, no entanto, vai

mais longe ao atribuir a esse “defeito” nato da língua francesa para funções que exigem

fluidez e espontaneidade, a responsabilidade pela desqualificação da música francesa.

Se a música francesa é considerada desagradável devido ao excesso de ornamentação, à

pompa e à complexidade harmônica, isto se deve ao fato da língua francesa não possuir

características apropriadas ao canto, ou seja, não apresentar elementos que contribuam

para a beleza e fluidez da música.

Para chegar a tal conclusão, Rousseau analisa na Carta cada um dos

elementos que compõem a música, a saber, melodia, harmonia e ritmo, com o objetivo

de encontrar uma regra ou princípio que, se seguido, seria capaz de exaltar a força

expressiva da música. Desse modo, o autor chega à teoria da unidade da melodia,

princípio que segundo ele deve ser seguido para que a música seja agradável. A unidade

da melodia decorre, em última análise, como uma conseqüência das características

61 FUBINI, Enrico. La Estetica Musical del Siglo XVIII a Nuestros Dias, p. 20. 62 RAGUENET, François. Paralelo entre Italianos e Franceses no que concerne à Música e às Óperas, tradução inédita do Profº Paulo M. Kühl (versão in mimeo) p.06. 63 Citado por Oliver Pot em nota à Carta, OC V, p. 1454.

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apropriadas à música que, estando presente na língua, compõe um canto pleno de força

e energia que guia a linha melódica musical tornando a música mais expressiva.

Conclui-se daí, ser impossível segundo o ponto de vista adotado por Rousseau, compor

boa música em língua francesa.

Portanto, a contribuição filosófica de maior importância da Carta é o fato

de Rousseau considerar um elemento até então externo à música, como o fator de

caráter determinante para a beleza da música. A língua, considerada por Rousseau como

a essência da composição, exerce influência direta através do canto em cada um dos

seus elementos, deixando transparecer suas características na forma acabada e completa

assumida pela música. Desse modo, Rousseau encontra um princípio universal, a saber,

as características lingüísticas, presentes nas músicas de todas as nações, que influencia o

canto, determinando sua melodia. Assim “é apenas da melodia que se deve extrair o

caráter particular de uma música nacional, ainda mais que, sendo esse caráter dado

principalmente pela língua, é o canto propriamente dito que deve sofrer mais sua

influência.”64

Disso decorre que a análise efetuada por Rousseau tanto sobre a música

francesa quanto sobre a música italiana, se inicia a partir das características presentes

nas respectivas línguas, o que nos permite afirmar a originalidade de sua crítica frente a

outros textos da época, assim como seu caráter fundamentalmente filosófico que, como

veremos posteriormente, coadunam perfeitamente com a totalidade de seu pensamento,

provando que as considerações estéticas de Rousseau também podem ser interpretadas

como reflexos dos aspectos políticos e morais de sua filosofia.

Esquematicamente, a Carta de Rousseau pode ser dividida em duas partes

que ocupam respectivamente quase que a metade exata do texto, se diferenciando tanto

no tom da argumentação, quanto no assunto central. A primeira parte da Carta começa

com a hipótese sobre uma língua completamente inadequada à música, indo até as

origens históricas da melodia na Grécia anterior aos filósofos, para depois entrar nos

problemas práticos de composição, interpretação e audição, comprovando a

inadequação dessa língua hipotética com exemplos. Notamos a proximidade desta

primeira parte da Carta com outros textos do autor, como o Segundo Discurso e o

Ensaio sobre a origem das línguas, no que se refere aos recursos argumentativos como

a regressão em busca do fundamento teórico num passado histórico hipotético ou real.

64 OC V, Lettre sur la Musique Française, p. 292.

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No caso da Carta, a Grécia antiga se configura como o passado ideal onde

encontraríamos uma língua perfeita para o canto.

A segunda parte é mais direta, tem um tom teórico menos rígido e começa

apontando, com um ataque direto, a contradição que julga existir entre as obras teóricas

de Rameau e suas composições criticando-o, claramente, como teórico. Neste ponto, já

estabelecida a língua italiana como a melhor possível para as composições musicais, a

língua francesa torna-se, então, a mais inadequada para a música. Estendendo sua crítica

Rousseau condena a cultura francesa em geral: os compositores não sabem compor, os

músicos não sabem executar, o público não sabe apreciar a boa música e os críticos não

entendem nem da música italiana, nem da francesa.

Fica-nos a impressão de que fazem parte da Carta dois momentos

diferentes. A primeira parte não parece estar endereçada à ninguém em particular,

excetuando-se o pronome de tratamento que inicia o primeiro parágrafo não há mais

nenhuma referência a um destinatário. Esta parte da Carta parece ter sido escrita para

qualquer um que se interesse um pouco por música e queira saber mais sobre seus

princípios teóricos, talvez num intuito de intensificar certas posições estéticas já

mencionadas nos verbetes de música que escreveu para a Enciclopédia. Além do mais,

esta parte está nitidamente relacionada ao Ensaio sobre a Origem das Línguas, que

podemos entender, em certos tópicos, como uma extensão da Carta.

Já a segunda parte é fortemente carregada por um tom pessoal, Rousseau

cita diretamente alguns compositores, dentre os quais o nome de Rameau aparece com

freqüência. Atacando diretamente os franceses em seu gosto e em sua cultura, Rousseau

acaba por concluir sua Carta com a afirmação de que a música francesa não existe e

nem poderia existir, como afirma ter demonstrado.

Se, por um lado, a veemente e definitiva condenação da música francesa

como gênero deixa transparecer uma provável intenção de Rousseau em colocar um

ponto final na querela em questão, por outro lado, a força argumentativa com a qual

Rousseau combate a teoria da harmonia de Rameau enseja uma outra querela, mais

específica, mais culta e esclarecida que, apesar de imbuída pelo mesmo espírito

iluminista compartilhado pelos philosophes, traz em seu cerne elementos próprios do

pensamento de Rousseau, como veremos nos capítulos seguintes.

De fato, Rameau como maior representante do estilo francês entre os anos

de 1733, quando estréia sua primeira tragédia lírica, até 1764, o ano de sua morte,

assume verdadeiramente a responsabilidade pela continuidade da tradição do gosto

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tipicamente francês, no entanto, a querela entre Rameau e Rousseau não se fixa

meramente na expressão do gosto nacional, mas procura as próprias fontes

epistemológicas, físicas ou psicológicas, da forma de representação desse gosto e da

valorização estética que dele deriva.

Tendo em mente o contexto histórico e biográfico que envolve a redação

da Carta, podemos sugerir algumas questões pertinentes que servirão de via de acesso

ao texto de Rousseau. Primeiramente, se o debate teórico envolvendo os dois

personagens foi motivado por questões pessoais, quais os acontecimentos biográficos

que levaram à indisposição mútua entre Rameau e Rousseau e porque esses

acontecimentos assumem uma influência tão significativa, levando Rousseau a

desenvolver sua própria teoria sobre música? Em segundo lugar, se uma querela teórica

de caráter mais culto e com mais discernimento foi iniciada devido à Carta de

Rousseau, quais os princípios filosóficos, subentendidos ou explícitos, que justificam os

respectivos valores estéticos defendidos pelos dois teóricos? E por último, como a Carta

se relaciona com outros textos de Rousseau, qual o alcance político e moral de sua

crítica à música francesa? Essas questões serão discutidas mais detalhadamente nos

capítulos que se seguem.

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Capítulo III

Rameau e Rousseau

Algumas passagens da Carta sobre a música francesa realmente nos

convencem de que Rousseau tinha um destinatário bem específico ao redigir seu texto.

Não por acaso, toda a crítica de Rousseau à música francesa, tomada sob um ponto de

vista muito geral, recai sobre Rameau, representante do gênero durante o período e

responsável pela continuidade da tradição da tragédia lírica. Em frases freqüentemente

usadas por Rousseau na Carta como “nossa música”, “nossos músicos”, ao citar a

música francesa, podemos identificar a referência ao compositor. Ou, de maneira mais

específica, Rousseau cita o próprio Rameau, por exemplo, quando discute o efeito dos

acordes, “recordei-me então de ter lido em alguma obra do Senhor Rameau que cada

consonância tem seu caráter particular, isto é, uma maneira de afetar a alma que lhe é

própria.”65 Mas a maior evidência da crítica direta a Rameau é também o principal

argumento usado por Rousseau na defesa da música italiana em detrimento da música

francesa. Trata-se da superioridade da melodia sobre a harmonia no que se refere ao

poder expressivo da música. Desse modo, as características melódicas da música são

tomadas por Rousseau como o guia condutor, tanto para depreciar a música francesa,

enaltecer a italiana, ou desenvolver sua própria teoria: “ao menos, no que diz respeito à

melodia, a qual sozinha, se reduz quase toda a disputa.”66 Sendo a melodia tão

importante para Rousseau, torna-se inevitável o conflito com a teoria de Rameau, para o

qual a harmonia representa verdadeiramente o valor imitativo da música, sendo “ela

que, na realidade, torna possíveis todas as produções musicais.”67

A despeito da objetividade da Carta em sua crítica a Rameau, ela não é um

fato isolado na desavença entre os dois. Já em 1742, Rameau levanta objeções contra o

Projet concernant de nouveaux signes pour la musique apresentado à Académie por

Rousseau. Mas, pode-se dizer que a querela entre os dois agrava-se, tomando ares

pessoais, depois da apresentação da ópera de Rousseau, Les Muses Galantes, na casa de

La Pouplinière no ano de 1745. Seguem-se, após 1753 com a publicação da Carta,

textos publicados de ambos os lados que provam o empenho dos dois teóricos

envolvidos em tentar provar da parte de um que, mesmo sendo filósofo é capaz de

65 OC V, Lettre sur la Musique Française, p. 312. 66 OC V, Lettre sur la Musique Française, p. 300. 67 KINTZLER, Catherine. Jean-Philippe Rameau, Splendeur et Naufrage de l’Esthétique du Plaisir à l’âge Classique, p. 29.

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discutir e até mesmo formular sua própria teoria sobre música e, da parte do outro,

mesmo sendo músico é capaz de usar princípios verdadeiramente filosóficos para

fundamentar seu ponto de vista estético e justificar seu estilo de composição.

Apesar das diferenças presentes entre as teorias de Rameau e Rousseau,

tornando-os opositores em suas concepções estéticas, os dois teóricos não poderiam

deixar de atuar sobre um terreno comum, o que torna viável e compatível a crítica de

Rousseau com as réplicas de Rameau.

Primeiramente notamos que ambos os teóricos consideram as propriedades

da música em si mesma. Vendo a música sob um ponto de vista de autonomia, que se

apresentará diferentemente em cada um dos autores, como veremos mais adiante, no

debate entre Rameau e Rousseau a música é analisada em seus elementos essenciais. A

música na ópera era vista tradicionalmente segundo sua função dramática e considerada

um ornamento ao poema, estando então submetida a ele sob o ponto de vista artístico.

Tornando o debate sobre ópera e gosto nacional mais específico e deixando explícito

um conhecimento mais aprofundado da teoria musical, os dois teóricos trazem as

propriedades dos elementos musicais para o centro de suas respectivas análises, assim

como seus princípios validados segundo as respectivas bases filosóficas que adotam.

Assim, termos como “natureza” e “imitação”, já tradicionalmente associados à crítica e

à produção artística, se apresentam como conceitos chaves usados por ambos os teóricos

como um ponto de partida para o desenvolvimento de suas respectivas teorias e noções

estéticas.

Desde a Poética aristotélica o termo “imitação” está associado às formas

de manifestação artística, pois, segundo Aristóteles “o imitar é congênito no homem (...)

e os homens se comprazem no imitado”68. Ainda de acordo com a Poética, o imitar não

é apenas uma aptidão natural do homem, mas uma tendência que o leva ao aprendizado

e ao prazer pela apreciação dos objetos imitados em comparação com o modelo natural.

Essa capacidade de imitação estando mais presente no homem do que em qualquer

outro animal, faz com que surja a poesia, dividida em gêneros de acordo com os meios e

os modos de imitação e o objeto imitado.69 Desse modo, “é pois a tragédia imitação de

uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada

(...)”70. Na tragédia, assim como na comédia, o objeto de imitação são as ações dos

68 ARISTÓTELES. Poética, 4, 1448b 5. 69 Ibidem, Cap. I . 70 Ibidem, 7, 1449b 24.

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homens, porém, a tragédia se distingue da comédia por imitar os homens melhores do

que são, sendo seu objeto específico de imitação a virtude de caráter. Neste sentido o

mito é considerado mais que uma alternativa válida de imitação para a tragédia, ele é “o

princípio e como que a alma da tragédia”.71 Dentre os elementos que constituem a

tragédia, o mito é tido como um dos mais importantes juntamente com a elocução,

definida como “o enunciado dos pensamentos por meio das palavras”72, e quanto a

melopéia, a música que acompanha a tragédia, ela é “o principal ornamento”73. Na

tragédia antiga, assim como Aristóteles formula na Poética, a música é tida como um

elemento ornamental, sem valor persuasivo porque não traz em si mesma nenhum

elemento tão diretamente relacionado à inteligibilidade como é o caso das palavras, da

oratória, na poesia.

A conseqüência dos preceitos determinados por Aristóteles é que a música

instrumental, desprovida da palavra, não possui em si força imitativa porque não é

considerada linguagem. A música assume um papel secundário de acompanhamento

que apenas reforça o que diz a elocução. Vejamos o comentário à uma tradução de

Aristóteles do final do século XVIII:

“As expressões da música, considerada nela mesma e sem palavras, são (dentro de certos limites) vagas, gerais e ambíguas. O que é chamado esse poder da música sobre as paixões é, de fato, não mais que um poder de aumento de uma emoção geral, moderada, ou disposição comum para várias paixões diferentes, ainda que relacionadas como piedade, amor-raiva, coragem etc. O efeito das palavras, é para fortalecer a expressão da música, para limitá-la dando-lhe a direção precisa, abastecendo-a com idéias, circunstâncias e um propósito, e, do mesmo modo acrescentando-lhe uma calma e uma disposição, ou emoção geral, dentro de alguma aproximação, ao menos para fortalecer os sentimentos de uma determinada e particular paixão. Ora, entre os antigos música, como nós a conhecemos, era sempre rara aos ouvidos sem esta assistência. Poesia e música estavam então longe de terem alcançado um estado de mútua independência (...). Quando um autor antigo fala de música, ele é, quase sempre, para ser entendido como querendo dizer música vocal – música e poesia unidas.”74

Durante o século XVII a desvalorização da música instrumental e

conseqüente valorização da poesia segundo os preceitos aristotélicos ainda persiste e

serve muito bem à concepção de arte elitista relacionada e patrocinada pelo poder

absolutista, como vimos no capítulo anterior: “Tal princípio [o conceito de imitação da

natureza], que os filósofos do século XVII herdaram de Aristóteles através da mediação

71 Ibidem, 7, 1450a 38. 72 Ibidem, 7, 1450b 13. 73 Ibidem, 7, 1450b 15. 74 TWINING, Thomas. Aristotle’s Treatise on Poetry, Translation and Dissertations, p. 48.

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dos teóricos do renascimento, é usado primeiramente para justificar o gosto nobre e

classicista da poesia da época, francesa em particular.”75 A tendência em valorizar

certos gêneros de espetáculo em detrimento de outros durante o século XVII – por

exemplo, o teatro clássico francês e a tragédia lírica, considerados espetáculos oficiais

que contavam com a audiência da corte, enquanto que a comédia popular de influência

italiana chega até a ser proibida em Paris durante algum tempo – é reforçada pelo

próprio ambiente intelectual da época: “No século XVII, o termo natureza é usado como

sinônimo da razão e verdade e o termo imitação para indicar o procedimento destinado a

embelezar e tornar mais agradável e amena a verdade da razão.”76 E a acepção dos

termos “imitação” e “natureza” durante esse período é profundamente influenciada pela

visão cientificista e racionalista da filosofia cartesiana.

Apesar de, tanto a filosofia aristotélica como a cartesiana concordarem que

a música instrumental não possui em si mesma força imitativa, ou persuasiva, de não

possuir um motivo de existência além de o de agradar aos ouvidos, privando-a,

conseqüentemente, de autonomia, a base da filosofia cartesiana difere sensivelmente da

aristotélica quando à sua concepção do mundo físico.

Descartes acreditava que implicitamente a física aristotélica admitia que o

movimento dos corpos se devia a uma “inteligência” intrínseca aos corpos e rejeitava

essa idéia pois acreditava que a “inteligência” é um aspecto mental. Assim, Descartes

substitui a física aristotélica por um sistema baseado nas qualidades intrínsecas à

matéria, ou seja, um sistema mecânico baseado principalmente no peso e extensão da

substância material. Descartes conclui que a essência da substância corporal é a

extensão e para ele conhecemos indiretamente essa substância a partir de seus acidentes

como cor, sabor etc. Desse modo Descartes institui dois tipos de substâncias: a

substância corporal – material, física – ou seja, a natureza, ou os objetos que

observamos fora de nós, cuja essência é a extensão, chamada res extensa; e a substância

mental, exclusiva no homem cuja essência é o pensamento, chamada de res cogitans.77

Portanto, a natureza é referente ao mundo físico, aos objetos materiais que

podem ser observados e medidos e que compartilham todos da mesma substância. Esses

objetos são capazes de se locomover como ele escreve nos Princípios “Eu admiti

abertamente que desconheço qualquer outra matéria nas coisas corporais exceto a

75 FUBINI, Enrico. La Estetica Musical del Siglo XVIII a Nuestros Dias, p. 18.. 76 Ibidem, p. 17. 77 GARBER, Daniel. “Descartes’ physics”, In: The Cambridge Companion to Descartes, p. 288-289.

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capacidade de divisão, forma e movimento em qualquer um que seja.”78 O que nos

interessa da teoria cartesiana é sua implicação para a música e neste caso o som,

elemento a partir do qual se faz a música. Segundo a concepção cartesiana o som é

“comumente entendido como uma pancada no ar”79, portanto, trata-se de matéria em

movimento.

A esse respeito podemos concluir que o processo de apreensão da música

para Descartes funciona em três níveis: o primeiro é o som, que pode ser entendido

como o deslocamento do ar, é um processo físico, portanto, ocorre no nível material e

diz respeito à mecânica da substância externa. O segundo nível é a percepção do som

por meio dos ouvidos, que são os órgãos sensoriais, sendo, portanto, um processo

fisiológico referente à mecânica da natureza interna do homem. O terceiro nível, o

entendimento do significado do som, é um processo de cálculo racional, pois as

qualidades que percebemos nos sons não estão nele e sim na mente do ouvinte que

opera o processo de relações devido ao hábito. Em um artigo de Zeljko Loparic

comentando o Tratado do Homem, encontramos:

“a alma só tem sensações enquanto está no cérebro e os nervos sensoriais são semelhantes entre si a ponto de, em todos eles, os movimentos serem os únicos veículos possíveis da ação causal da substância material sobre a alma; de onde se segue que somente os movimentos poderão causar as sensações, meros resultados da decifração, feita pelo engenho humano, da ação transmitida.”80

Muito importante para a época é a teoria dos afetos baseada na fisiologia

cartesiana, segundo a qual os determinados movimentos dos objetos despertam paixões

relacionadas no corpo do homem. A teoria cartesiana era tida como regra para os

compositores do século XVII, pois, trata-se da relação entre o funcionamento

fisiológico do homem com os sons. Estes, organizados segundo o engenho humano, são

capazes de despertar os afetos que se pretende. Apesar da significativa contribuição da

teoria dos afetos para a música do século XVII, não entraremos aqui em seus

pormenores devido à restrição de espaço e tempo. Para entender o fundamento da teoria

de Rameau basta que tenhamos em mente, por hora, as noções descritas acima

referentes à substância material e substância pensante oriundas da filosofia cartesiana.

78 Citado por GARBER, Daniel. “Descartes’ physics”, In: The Cambridge Companion to Descartes, p. 301. 79 HATFIELD, Gary. “Descartes’ physiology and its relation to his psychology”, In In The Cambridge Companion to Descartes, p. 351. 80 LOPARIC, Zeljko. Descartes Heurístico, p. 104.

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Rameau é, sem dúvida, um dos mais importantes nomes da música erudita

européia e o mais significativo do início do século XVIII da música francesa, tanto que

conseguiu condenar ao obscurecimento músicos contemporâneos. À posteridade deixou

suas composições e o legado teórico dos estudos que realizou a respeito da harmonia,

entre eles os mais importantes são Traité de l’harmonie (1722), Traité de la Génération

harmonique (1737), Démonstration du principe de l’harmonie (1750), Observations sur

notre instinct pour la musique (1754), Erreurs sur la musique dans l’Encyclopédie

(1755). Ao lado de Lully, Rameau se consagrou como um dos compositores mais

importantes da história da música francesa. Herdou do primeiro a tragédia lírica,

enriquecendo-a ainda mais na composição musical utilizando-se de harmonias

audaciosas, novas melodias, impondo força expressiva ao recitativo, à orquestra e ao

coro. Inicialmente recebido pelo público lullysta com uma certa reserva, logo alcança

sucesso e prestígio com suas peças. Nascido em 1683, oriundo de uma família de

músicos, sua primeira apresentação na Ópera de Paris foi com Hippolyte et Arice em

1733, considerada uma obra-prima. O total de sua produção conta com trinta e duas

obras de teatro entre tragédias líricas, óperas balés e óperas cômicas.

Rameau contava quase setenta anos quando teve início a Querela dos

Bufões, ocasião na qual suas peças não pararam de ser apresentadas, inclui-se aí a

reapresentação de sua obra Platée, em fevereiro de 1754, um balé-bufo considerada por

alguns críticos como uma tentativa de aproximação do estilo italiano, o que, talvez, seja

uma falsidade, já que os princípios seguidos por Rameau em suas composições são

diversos dos princípios e proposta da música italiana em qualquer gênero que seja,

sobretudo na comédia.

Os princípios estéticos seguidos por Rameau em suas composições têm por

suporte os princípios físicos descritos em suas obras teóricas. Além do mais,

diretamente influenciado pelo cientificismo do pensamento cartesiano, o objetivo de

Rameau é o de elevar a música ao estatuto de “mãe das artes e das ciências”81.

Admitindo um fundamento físico além do sentido imediato, Rameau busca no

funcionamento mecânico e constante dos movimentos dos objetos, a verdade suscetível

de ser transposta em música.

Com sua teoria Rameau não só tentará mostrar que a música deve ser

considerada sob os mesmo aspectos que as ciências naturais por estar submetida às leis

81 Rameau citado por CRANSTON, Maurice. The early life and work of J.-J. Rousseau, p. 285.

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da física, regularidade e ao cálculo matemático, como também é capaz de superá-las,

pois, tem a capacidade de tornar a natureza inteligível ao mesmo tempo em que

proporciona prazer estético. Assim, música para Rameau é um processo que se inicia no

mundo físico, torna-se inteligível pela capacidade humana de estabelecer relações e

acaba por se realizar em puro deleite pelo reconhecimento dos afetos comunicados.

Segundo Rameau: “Um barulho permanece isolado, anedoticamente, ele não se liga a

nenhum sistema de referência real ou subentendida. Um som, mesmo se é emitido

sozinho, não permanece jamais teoricamente isolado. É preciso partir de um sistema que

o ouvido musical restabelece implicitamente, que o compositor escreve explicitamente,

que o artista ao executar goza realmente.”82

A música se define para o compositor como um ramo possível do

conhecimento racional, processo que se inicia nos fenômenos da natureza, sofre a

intervenção da análise e interpretação matemática feita pela capacidade de raciocínio do

homem, resultando em um conjunto de relações entre os sons. Neste processo indireto

de apreensão dos sons, a razão humana é indispensável como mediadora estabelecendo

a perfeita compreensão entre o que acontece no mundo físico o produto final em forma

de composição artística ou música.

Em sua concepção de música, Rameau se vale de um lugar-comum

oriundo da interpretação da filosofia cartesiana, presente em finais do século XVII e

início do XVIII: “o conhecimento e a análise racional, longe de empobrecerem o

espírito, são os próprios geradores de prazer. Os sentidos jamais gozam melhor do que

quando a razão a eles se junta”83. A razão como mediadora, e responsável, pela plena

apreciação estética afasta a concepção de apreciação estética ingênua, aquela que,

submetida apenas à ação dos sentidos, não é capaz de estabelecer de forma completa as

relações existentes entre os fenômenos físicos, objetos da natureza, e nossos afetos,

relação que deve ser reconhecida pelo ouvinte no momento da audição. Os sentidos,

segundo a concepção cartesiana, pode se enganar na apreensão da verdade, o papel da

interferência da razão é de transformar esses fenômenos em verdade acessível por meio

da música. Podemos inferir que essa concepção de apreciação estética está destinada

para poucos. Leigos e ouvintes ocasionais, não dispondo dos recursos teóricos

necessários para entender o processo de composição, teriam uma aproximação apenas

82 KINTZLER, Catherine. Jean-Philippe Rameau, Splendeur et Naufrage de l’esthétique du plaisir à l’âge classique, p. 32. 83 Ibidem, p. 22.

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parcial com a música, valendo-se de modo deficiente dos prazeres estéticos por ela

proporcionados.

Assim, o papel desempenhado pela razão no processo de composição e

apreciação musical é o mesmo que em qualquer outra ciência: mostra-se como o único

meio válido pelo qual é possível encontrar o princípio objetivo que torna explicável os

efeitos emocionais que um fenômeno dado produz na alma.84 Guiando-se pela rejeição à

autoridade do empirismo própria ao método cartesiano, Rameau percorre um caminho

inédito dentro da teoria musical ao rejeitar “sistematicamente o recurso à observação

ingênua”, ou seja, a apreensão do objeto como ele se apresenta na natureza, ou como

nossos sentidos o entende, como sugere Catherine Kintzler. Afastando-se da observação

empírica simples, o primeiro passo é dado por Rameau para fundamentar sua teoria

musical: a música não é feita apenas com o ouvido. Podemos entender então que,

estando a mecânica do processo de composição desvelada pela intervenção da razão,

segundo o processo que descrevemos acima, os princípios e conceitos que envolvem a

música passam a um nível universal – os sons se comportam da mesma maneira em

qualquer nação do mundo. Além disso, baseando-se em leis físicas, regida e mensurada

por cálculos matemáticos, a música ganha regras definidas que podem controlar, limitar,

ou até mesmo suprimir, a “instabilidade”, relativa à sua relação com as paixões

humanas, concepção comum na época, e com isso almejar, de fato, à autonomia devido

à aproximação com as ciências.

A outra face desse processo racional de acesso às relações sonoras segundo

a concepção de Rameau, se relaciona com a própria apreensão da verdade de acordo

com o modelo cartesiano. Os sons, como objetos da natureza, não são diretamente

apreendidos pelos sentidos em sua verdade plena. Para que possamos apreender a

verdade do som é necessário a intervenção da razão e, com isso, chegamos até o

funcionamento da ressonância dos corpos sonoros, fonte física do som e da música.

Catherine Kintzler afirma que essa concepção racional-cientificista da música ocorre em

três domínios. O primeiro domínio é o físico, representado pelas vibrações dos corpos

sonoros e apreendido pela experiência, do qual se abstrai as leis universais. O segundo

domínio é o matemático, que consiste no cálculo das relações quantitativas entre os

sons, acrescentando-se às leis físicas os valores mensuráveis dos fatos observados. O

terceiro é o domínio estético, trata-se de aplicar nas composições musicais os princípios

84 Ibidem, p. 23.

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e conceitos oriundos dos dois primeiros domínios, com o conhecimento dos efeitos que

essas relações sonoras produzirá no ouvinte.85

Como não poderia deixar de ser, Rameau parte de um fenômeno natural

para fundamentar a construção de toda a sua teoria científica da música, trata-se do

princípio da ressonância dos corpos sonoros. Segundo esse princípio, um corpo em

movimento faz vibrar o ar soando uma nota fundamental simultaneamente com seus

harmônicos, oitava, quinta, a oitava seguinte etc, que se dispõe verticalmente sobre a

fundamental produzindo assim o que se chama harmonia. Segundo essa teoria, os

corpos sonoros: “não ressoam sem antes engendrar ao mesmo tempo todas as

proporções contínuas, de onde nascem a harmonia, a melodia, os modos, os gêneros e

até as menores regras necessárias à prática.”86 A teoria dos corpos sonoros, segundo a

visão de Rameau, prova que a harmonia, estando presente implicitamente na natureza,

pode se transformar explicitamente em música, explica Kintzler: “A ordem que

desdobra as leis das relações dos sons chama-se harmonia. A harmonia não é então um

valor antropomórfico projetado sobre o fenômeno sonoro, ela é o conjunto de leis que

restringe as relações mútuas dos sons musicais entre eles.”87

A diferença na estruturação do som, o que faz com que se diferencie de

barulho, está na regularidade e nas relações que podem ser estabelecidas entre eles a

partir dos harmônicos que se observa com a ressonância dos corpos. Assim, na

concepção de Rameau, a harmonia é considerada o primeiro elemento musical,

cientificamente observada e ordenada com base em um fenômeno físico, sustentando e

estabelecendo a ordem na constituição musical, inclusive na melodia, que seria assim,

uma derivação da harmonia: “Cada som da melodia é sustentado por uma infraestrutura

harmônica que o engendra, o liga ao som precedente e ao som seguinte. Mesmo se esta

harmonia não é realmente ouvida, no canto solo, por exemplo, isto não a impede de

estar lá, inaudível mas logicamente presente porque ela é necessária à existência e à

explicação da linha melódica da qual ela é ao mesmo tempo a “ratio essendi” e a “ratio

cognoscendi”.88

De acordo com a teoria de Rameau, sem a harmonia a melodia não pode

existir. A melodia, sendo primeira cronologicamente, é na realidade logicamente

85 Ibidem, p. 25. 86 Ibidem. 87 KINTZLER, Catherine. “Introduction à l’Essai sur l’Origine des Langues”. In: ROUSSEAU. Essai sur l’Origine des Langues où il parlé de la Melodie et de l’Imitation Musicale, 1993, p 21. 88 Ibidem, p. 30.

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derivada porque ela é sempre o efeito de uma harmonia fundamental acessível através

de processos racionais. E Rameau argumenta, para sustentar na sua teoria a

subordinação e o papel secundário da melodia na música, que a harmonia, sendo a

essência e a base da melodia, é capaz de alterar qualquer outro elemento da música: se a

harmonia é alterada, altera-se também a melodia, ou seja, se a causa é alterada, seu

efeito também se altera.89

Assim, para Rameau, a música se apóia sobre uma realidade física objetiva

que é independente da instabilidade dos sentimentos humanos, pois, está perfeitamente

sujeita às relações matemáticas. A verdadeira natureza da música, portanto, é

representada pela harmonia, vista sob esse ponto de vista como o mais puro produto da

capacidade de raciocínio do homem, o que lhe proporciona um refinado prazer estético.

A teoria de Rameau se pretende como uma prova de que a música em si mesma também

pode ser considerada autenticamente imitação da natureza, ou seja, a música, segundo

Rameau, é uma forma muito peculiar de se chegar à verdade física da ressonância dos

corpos sonoros. Em outras palavras, por meio da música chegamos à verdade do

funcionamento da produção do som pela natureza e de como cada relação particular

entre os sons, em forma de música, nos afetam.

O que decorre da teoria de Rameau é que os efeitos emocionais que uma

dada composição musical produz na alma humana não encerra em si nenhuma

mensagem secreta ou nenhum mistério, eles são explicáveis a partir de um princípio

objetivo encontrado no mundo físico e, funcionando como um mecanismo produzido

sistematicamente pela razão humana, estes efeitos produzidos na alma pela música,

podem ser manipulados de uma maneira regular e premeditada de acordo com as

afecções que o compositor pretende despertar. Citamos Rousseau:

“Recordei-me, então, ter lido em alguma obra do Senhor Rameau que cada consonância tem seu caráter particular, isto é, uma maneira de afetar a alma que lhe é própria; que o efeito da terça não é absolutamente o mesmo que o da quinta, nem o da quarta o mesmo da sexta. Do mesmo modo, as terças e sextas menores devem produzir afecções diferentes das produzidas pelas terças e sextas maiores, e uma vez admitidos esses fatos, segue-se com muita evidência que o mesmo ocorre no caso das dissonâncias e de todos os intervalos possíveis. Uma experiência que a razão confirma, pois todas as vezes que as relações são diferentes, a impressão não poderia ser a mesma.”90

89 Ibidem. 90 O.C. V, Lettre sur la Musique Française, p. 312.

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Com Rameau o sentido dramático da tragédia lírica e a emoção do

espetáculo são transmitidos quase que exclusivamente pelos acordes, os quais

preenchem completamente a composição. Os sentimentos de amor, ódio, medo etc, são

antes percebidos através dos acordes sistematicamente escolhidos do que propriamente

pelas expressões dos atores, o que confere uma importância significativa à música

instrumental, equivalente à própria representação dos atores. Podemos afirmar até que a

proposital complexidade da música instrumental nas óperas de Rameau, ou seja,

recursos ornamentais e a riqueza harmônica que são por ele utilizados, pretende superar

a importância da dramaticidade da peça, sendo o texto subjugado pela emoção

transmitida pela música. O prazer do espetáculo é proporcionado pela expressão dos

sentimentos que se quer colocar em cena – sejam trágicos ou cômicos – o qual só é

alcançado pela perfeição da composição musical, numa tentativa bem sucedida de

desvinculação com o teatro clássico francês. Se o exagero ornamental é algo pelo qual

espera o público da época, Rameau mostra que a beleza das construções harmônicas não

são apenas “ornamentos”, mas o elemento necessário para a composição musical, além

de conferir autonomia à música instrumental como veículo imitativo.

A partir do que vimos acima a respeito da teoria musical de Rameau,

podemos afirmar que suas composições – que seguem na prática os estudos realizados

pelo compositor na teoria – estão longe de ser inexpressivas, pois, seus efeitos emotivos

são perseguidos com primoroso conhecimento das técnicas de composição e os estudos

que realizou na área da ressonância dos corpos e os tratados que publicou certamente

foram um grande passo para a história da teoria musical. Suas composições, sem

dúvida, são um esforço bem sucedido para empregar força e sofisticação ao gênero

criado por Lully, transformando-o em referência para toda a Europa, tanto que a morte

do compositor, em 1764, pode ser considerada como o fim de uma era no teatro lírico

francês. Segundo Catherine Kintzler, a ópera de Rameau não é mera diversão, ela

remete a um sistema filosófico completo, pode-se dizer que ela é “a necessidade de uma

teoria”, ela é o produto finalizado de todo o pensamento clássico: “A morte da tragédia

lírica foi também a da estética clássica.”91

Mostrei acima uma breve dissertação sobre a concepção musical de

Rameau e como ela dialoga com o pensamento cartesiano vigente a época. Meu objetivo

foi o de apresentar alguns elementos que demonstrem a intenção bem sucedida de

91 KINTZLER, Catherine. Op. cit., p. 138.

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Rameau, pela teoria e pela prática, em superar a condição da música instrumental como

subordinada à poesia, concepção corrente em seu tempo e que remete a Aristóteles,

permitindo aos teóricos se aterem aos aspectos especificamente musicais da ópera,

seguindo, por exemplo, a tendência iniciada por Raguenet, já citado acima. Assumindo

essa interpretação da teoria de Rameau e considerando que com ela a música

instrumental, de fato, conquista autonomia devido à sua força expressiva relacionada à

imitação da natureza, então, neste sentido, a oposição assumida por Rousseau e sua

crítica à música francesa, recoloca a música se não em subordinação, ao menos em

íntima relação com a poesia, como veremos mais adiante e nos próximos capítulos.

Rousseau deriva sua argumentação e sua crítica contra a música francesa a

partir da perspectiva da superioridade da melodia sobre a harmonia, como já

mencionamos, que se mostra como uma oposição direta à concepção de música de

Rameau tal como acabamos de ver. A preferência dada por Rameau à harmonia,

preferência posta em prática em suas composições e fundamentada cientificamente em

seus tratados, define sua tendência estética. Traduzindo a natureza objetiva do som em

elemento artisticamente expressivo, a harmonia, sendo a essência da música, é seu

material mais verdadeiramente imitativo, a partir do qual a natureza é modificada

passando a ser apreendida esteticamente. Portanto, a verdade revelada pelas

composições de Rameau não diz respeito ao aspecto da experiência sentimental

humana, ela não rememora a experiência vivida individualmente, os acordes

representam, antes, um sistema codificado que se refere, por convenção, a sentimentos

previamente determinados pelo hábito ou tradição. Neste sistema a importância dos

elementos da composição recai sobre a harmonia e à melodia cabe um papel secundário

e dependente da primeira. A hierarquia instaurada por Rameau entre harmonia e

melodia é, de fato, a problemática central em torno da qual se desenvolve toda a crítica

de Rousseau contra a tradição da cena lírica na França em sua Carta sobre a música

francesa.

Mas o antagonismo entre Rameau e Rousseau não surge subitamente com

a publicação da Carta. Se optarmos por seguir uma linha psicológica de interpretação

fos trabalhos de Rousseau sobre música, relacionando-os com acontecimentos de sua

vida fazendo com que estados emocionais do autor influenciem de modo significativo

no desenvolvimento de sua filosofia, podemos nos apoiar em Starobinski,

principalmente na obra A Transparência e o Obstáculo, para apontar nas Confissões de

Rousseau algumas experiências pessoais envolvendo Rameau que poderiam significar

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um “estímulo psicológico” para a crítica que Rousseau acabará por realizar à música

francesa. Vejamos, por exemplo, as palavras de Rousseau quando descreve a reação de

Rameau à audição de sua Les Muses Galantes, em setembro de 1745: “Rameau

começou, desde a overture, a dar a entender, por elogios exagerados, que não podia ser

obra minha. (...) Rameau pretendeu ver em mim apenas um aventureiro sem talento e

sem gosto.”92 Ou quando acusa Rameau de ter excluído seu nome da composição de

uma ópera que ajudou a refazer, as Fêtes de Ramire, em novembro do mesmo ano:

“Porém este, [Rameau] de combinação com Madame de la Poplinière, tomou medidas

para que nem mesmo se soubesse que eu nela havia trabalhado. Nos libretos que se

distribuem aos espectadores e onde os autores são sempre lembrados, só surgiu o nome

de Voltaire porque Rameau preferiu que o dele fosse suprimido a vê-lo associado ao

meu.”93

Seguindo as palavras de Rousseau, construímos uma imagem que mostra

um Rameau nada humilde, que mente e é dissimulado, preocupado, sobretudo, em

manter seu estatus de grande compositor. O motivo que leva Rameau a adotar esse tipo

de atitude, o próprio Rousseau aponta: “a inveja com que Rameau honrava meus

dotes”94. Assim, considerando-se a si mesmo um renovador da música francesa – quiçá

um nome para se igualar ao de Rameau – Rousseau nos leva a deduzir, a partir do que

afirma nas Confissões, que sua carreira como compositor teria acabado antes mesmo

dele ter uma oportunidade, devido às intrigas de Rameau. A ênfase e a importância dada

por Rousseau à figura de Rameau, nas Confissões, nos leva a relembrar as afirmações de

Starobinski:

“Que ser e parecer sejam diversos, que um “véu” dissimule os verdadeiros sentimentos, esse é o escândalo inicial com que Rousseau se choca, esse é o dado inaceitável de que buscará a explicação e a causa, essa é a infelicidade de que deseja ser libertado. Esse tema é fecundo. Abre a possibilidade de um desenvolvimento inesgotável. No próprio testemunho de Rousseau, o escândalo da mentira deu impulso a toda a sua reflexão teórica.”95

A partir do que diz Rousseau vemos um Rameau que dissimula a

realidade, que manipula a opinião alheia e mente sobre o que vê e ouve, colocando um

“véu” sobre a aptidão musical de Rousseau e obscurecendo seus talentos. O próprio

Rousseau afirma que Rameau merece uma resposta, mas uma resposta que, embora

92 O.C. I, Les Confessions, p. 334. 93 O.C. I, Les Confessions, p. 338. 94 O.C. I, Les Confessions, p. 335. 95 STAROBISNKI, Jean. A Transparência e o Obstáculo, p. 17.

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movida por sentimentos pessoais, deve alcançar um nível mais profundo, capaz de

revelar a mentira nos princípios da própria obra e teoria musical do compositor: “é

necessário responder a Rameau, sem responder a sua pessoa, de tal modo que uma

filosofia foi construída e não somente uma polêmica pessoal foi seguida”96, escreve

Rousseau a Malesherbes.

Transpondo os limites de uma querela pessoal, Rameau passa a ser visto

como a projeção e a reprodução de um sistema teórico completo sobre música,

fundamentado em princípios filosóficos: “A figura de Rameau é um concentrado

artístico e intelectual das posições que Rousseau combate. A ele somente se resume um

conjunto de teses sobre a natureza e os efeitos da música; ele representa também a

herança da estética clássica. Refutar Rameau, é recusar tanto uma quanto a outra, é

também construir um pensamento estético importante e com ele toda uma filosofia.”97

Leitor dos tratados de Rameau e inicialmente admirador da música francesa, Rousseau

confessa ter mudado de opinião devido à sua estadia em Veneza, entre 1743 e 1744,

onde passa a ser assíduo freqüentador dos vários teatros de música da cidade: “Trouxe

de Paris o preconceito que se tem naquele país contra a música italiana, no entanto,

tendo recebido também da natureza esta sensibilidade contra a qual os preconceitos não

se sustentam. Em breve sentia pela música italiana a paixão que ela inspira àqueles que

são feitos para julgá-la.”98

Primeiro a música francesa, depois a música italiana, de fato, Rousseau

sempre deixou claro, nas páginas das Confissões, o apreço que sentiu durante toda a sua

vida pela música. Quando fala da sua relação com a música usa sempre palavras de

sentimento intenso, de prazer, de felicidade, de doçura e de espontaneidade. Seja em seu

primeiro contato com a música, quando tomava aulas com sua tia Suzane, ocasião na

qual a música lhe proporcionava serenidade e suavidade. Seja quando compunha sua

ópera em companhia do amigo Mussard, sentido toda a felicidade de amizades honestas

e influenciado pelo clima bucólico: “Uma noite conversamos muito antes de nos

deitarmos, principalmente sobre as óperas bufas que tínhamos visto na Itália e que nos

transportaram a ambos. (...) De manhã, passeando e tomando as águas, compus uns

96 KINTZLER, Catherine. In: “Introduction à l’Essai sur l’Origine des Langues”, In: ROUSSEAU. Essai sur l’Origine des Langues où il parlé de la Melodie et de l’Imitation Musicale, 1993, p 11. 97 Ibidem, p.13-14. 98 O.C. I, Les Confessions, p. 314.

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versos às pressas e a eles adaptei cantos que me vinham à cabeça ao fazê-los. Garatujei

aquilo tudo numa espécie de salão abobadado que ficava no alto do jardim (...)”99

Ou quando assistiu à primeira representação do Devin du Village, não

conseguindo conter as lágrimas de satisfação ao ver que conseguia emocionar pessoas

amáveis: “O prazer de proporcionar emoção a tantas pessoas amáveis comoveu-me até

às lágrimas e desde o primeiro duo, não mais pude contê-las, observando, no entanto,

que eu não era o único a chorar.”100

Mesmo a intenção de viver reproduzindo cópias de música lhe parecia uma

opção mais digna do que usufruir do sucesso de seu Discurso sobre as ciências e as

artes:

“Na independência em que eu queria viver, era preciso, no entanto, prover minha subsistência. Imaginei um meio muito simples, que foi o de copiar música a tanto a página. Se qualquer ocupação mais sólida tivesse preenchido o mesmo fim, eu a teria tomado; mas sendo aquela do meu gosto e a única que, sem sujeição pessoal, podia dar-me o pão de cada dia, satisfiz-me com ela. Crendo não mais ter necessidade de providência e fazendo calar a vaidade, de caixa de financista me fiz copista de música. Julguei ter ganho muito com a troca; e arrependi-me tão pouco que só deixei tal serviço quando fui obrigado a isso, para retomá-lo assim que pudesse.”101

Os acontecimentos narrados nas Confissões, nos mostram que Rousseau

parece sempre escolher as palavras mais amáveis e afetuosas para se referir à sua

relação com a música, construindo uma atmosfera idílica ligada às suas lembranças

musicais que contrastam com a turbulência de sua carreira como filósofo.

Com uma carreira musical bem modesta em termos de produção – mais

modesta do que pretendia, ou do que julgava merecer com o talento musical que atribuía

a si mesmo – seus conhecimentos musicais acabaram por lhe render uma quantidade

considerável de textos que tratam dos conceitos e princípios musicais. Seus textos sobre

música demonstram que Rousseau não possuía somente conhecimento da teoria e da

prática musical, mas tinha acesso também aos textos críticos e às principais teorias que

influenciavam as tendências estéticas musicais, o que pode ser notado nas obras

diretamente relacionadas com o tema. Segue-se, apenas para efeito de citação, uma

sinopse das obras de Rousseau dedicadas especificamente à música.

99 O.C. I, Les Confessions, p. 374-5. 100 O.C. I, Les Confessions, p. 379. 101 O.C. I, Les Confessions, p. 363.

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Apresentando um espírito inovador, já em 1742 Rousseau apresenta à

Academie seu Projet concernant de nouveaux signes pour la musique, trata-se de um

novo sistema de notação musical desenvolvido pelo autor cujo objetivo seria o de

prover os estudantes de música de uma notação musical simplificada em comparação

com o sistema antigo, o que facilitaria a aprendizagem de música. Demonstrando um

caráter universalizante, Rousseau usa algarismos em seu sistema para torná-lo mais

natural. No ano seguinte, Rousseau publica seu Projet com o nome de Dissertation sur

la musique moderne, tornando-o acessível ao público.

Provavelmente em 1744 Rousseau teria escrito uma carta, talvez

endereçada a Grimm, publicada postumamente, intitulada Lettre sur l’Ópera Italien et

Français. Neste texto Rousseau opõem pela primeira vez os dois estilos, comenta a

união entre a música e a poesia, define a comédia e a tragédia e expõem as leis que

deveriam reger a ópera. Curiosamente, Rousseau assume neste texto sua admiração pela

música francesa, mudando de opinião pouco tempo depois.

Durante os primeiros meses de 1749 Rousseau redige a pedido de Diderot

e d’Alembert os verbetes sobre música da Enciclopédia que, revisados mais tarde pelo

autor irão compor o Dictionnaire de Musique, entregue para a primeira publicação em

1763. Tomando por modelo a música grega, o Dictionnaire atesta as transformações

estéticas de sua época: ao mesmo tempo em que Rousseau comenta as mais importantes

noções e conceitos musicais conforme foram usadas ao logo da história da teoria

musical, expõem sua própria visão estética, na qual a música italiana é preferida em

detrimento da “pomposa” tragédia lírica.102

Em 1752, já tomando partido na Querela dos Bufões, Rousseau redige a

Lettre à M. Grimm, au sujet des remarques ajoutées à sa Lettre sur Omphale, na qual,

comparando a música francesa à italiana, critica, sobretudo, a lentidão do recitativo

francês, condenando a música de Rameau por ser ele um sábio e não um gênio. No ano

seguinte Rousseau teria escrito Lettre d’un symphoniste de l’Académie Royale de

Musique, outra crítica ao estilo francês e à música de Rameau.

A Carta sobre a música francesa, publicada em novembro de 1753, a qual

Rousseau diz ter escrito um ano antes, faz parte de um período particularmente

102 O caráter político e subversivo da Enciclopédia transparece na escolha de Diderot em convidar Rousseau para escrever a grande maioria dos verbetes sobre música que constam nesta obra. A despeito da admiração de d’Alembert para com Rameau – que poderia ser considerado a maior autoridade em assuntos musicais da primeira metade do século XVIII francês – dá a preferência a Rousseau com o qual compartilha o gosto pela música italiana.

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produtivo na vida de Rousseau, no qual ele passa e ser reconhecido como escritor. Após

a famosa “Iluminação de Vincennes”, ocorrida em outubro de 1749, seus textos ganham

densidade e passam a configurar como obras de um sistema filosófico completo.

Sofrendo a influência desse período, a Carta foi escrita entre a publicação do Primeiro

Discurso e os trabalhos de redação do Segundo Discursos e demonstra maturidade por

parte do autor tanto em seus conhecimentos da teoria musical, quanto à sua posição

frente a estética clássica. Entre os anos de 1755 e 1756, Rousseau prepara L’Origine de

la Melodie, Examen de deux principes avancés par M. Rameau e o Ensaio sobre a

origem das Línguas103, completando e expondo em maiores detalhes as idéias estéticas

já expressas na Carta.

Em L’Origine de la Melodie, o autor descreve uma época pastoral anterior

à era heróica grega que seria a época de ouro da música, na qual a melodia estaria

relacionada com a língua. Nestes primeiros tempos, afirma Rousseau, as leis e as

canções estariam em uníssono e ambas refletiriam a inocência e a virtude, conseqüência

da bondade dos homens. Sendo a língua dessa época melodiosa e cantante, Rousseau

opõe a naturalidade do canto ao artificialismo da harmonia que a música acabou

adquirindo com a evolução das sociedades.

Já no Examen, Rousseau analisa os dois princípios propostos por Rameau

em seu Erreurs sur la musique. O primeiro princípio se remete à concepção cientificista

que Rameau tem da música e pode ser resumido nos seguintes termos: “estando toda

música compreendida na harmonia, conclui-se daí que é somente à harmonia que deve-

se comparar qualquer ciência que seja”. O segundo princípio diz que “a harmonia

representa os corpos sonoros”. O principal argumento usado por Rousseau para refutar

os princípios de Rameau é que, embora concordando que, de fato, os princípios de

Rameau ocorram na física, eles nada significam em termos de expressão musical, a qual

seria representada pela melodia e pelos acentos da voz humana.

Certamente um exame mais minucioso dos textos brevemente descritos

acima se faz necessário para se traçar uma linha precisa de evolução no pensamento

estético de Rousseau, estabelecendo assim a relação entre os conceitos musicais e

noções estéticas presentes nos diferentes textos acima citados. Só assim seria possível

apresentar um estudo mais completo da oposição existente entre as posições estéticas

conflitantes que assumem Rousseau e Rameau. Tal estudo, no entanto, excede a

103 Segundo KINTZLER, Catherine. “Introduction à l’Essai sur l’origine des langues”. In: ROUSSEAU. Essai sur l’Origine des Langues où il parlé de la Melodie et de l’Imitation Musicale, 1993, p.09.

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proposta inicial do presente trabalho, motivo que nos leva a limitar nosso estudo a um

breve comentário de algumas questões que podem ser suscitadas a respeito dos escritos

de Rousseau relacionados à estética.

Em um primeiro momento pode nos parecer paradoxal que o autor do

Discurso sobre as ciências e as artes que, optando pela negativa à questão proposta pela

Academia de Dijon, “se o progresso das ciências e das artes havia contribuído para

aprimorar os costumes”, tenha gasto tanta disposição e tempo escrevendo a respeito de

música; que estando, de fato, envolvido com a apresentação dos espetáculos, o qual era

assíduo freqüentador, tenha escrito e apresentado, alguns anos antes da publicação de

seu Discurso, uma ópera de sua própria autoria, Les Muses Galantes; que tenha escrito

apresentado uma segunda ópera inteiramente cantada em francês, para menos de um ano

depois afirmar na Carta não ser absolutamente possível escrever músicas em tal língua.

A aparente contrariedade entre suas ações e suas palavras não passa

despercebido e, juntamente com o premio dado pela Academia de Dijon e o sucesso

junto ao público conquistados com seu Discurso, vieram as críticas:

“Pretendem que eu não acredite uma palavra das verdades que sustentei e que, ao demonstrar uma proposição, não deixo de crer o contrário, isto é, que provei coisas tão extravagantes que só à guisa de diversão se podem sustentar.”(...) “Dirão, pois, que, compondo eu música e versos, será deselegante deprimir as belas-artes e que nas belas-artes, que afeto desprezar, existem inúmeras ocupações mais louváveis do que escrever comédias.”104

Em 1752 a peça Narciso de Rousseau foi apresentada no Théâtre-Français,

para a qual o autor se sentiu forçado a escrever um “Prefácio” explicando o verdadeiro

sentido de sua opinião a respeito das ciências e das artes. Neste “Prefácio” Rousseau

esclarece que não está contra as ciências nem as artes, ele não defende, como algumas

críticas pretendem, que a humanidade recue, recusando os avanços conseguidos pela

ciência ou toda a produção artística até agora adquirida, mesmo porque isso não seria

mais possível. A crítica de Rousseau não é dirigida às ciências e as artes em si mesmas,

o que o autor condena é a apropriação indevida das mesmas por pessoas que, não

pensando no benefício comum das ciências e das artes, pensam apenas em sua própria

glória e ganância:

104 ROUSSEAU, “Prefácio ao Narciso”, Trad. de Lourdes Santos Machado, In Os Pensadores, p. 418.

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“A ciência [assim como as artes], tomada de modo abstrato, merece nossa inteira admiração” (...) “o gosto pelas letras, nascido do desejo de distinguir-se, produz, necessariamente, males de perigo infinitamente maior do que a utilidade do bem que causa.” (...) “O gosto pelas letras, pela filosofia e pelas belas-artes enfraquece o amor pelos nossos primeiros deveres e pela verdadeira glória. Quando os talentos conseguem usurpar as honras devidas à virtude, cada qual quer ser um homem agradável e ninguém se preocupa com ser um homem de bem.”105

A corrupção dos costumes à qual Rousseau se refere em seu Discurso, diz

respeito à esta má apropriação das ciências e das artes que ocasiona o problema moral

da ganância pela fama que torna os homens egoístas, voltados apenas para a seu próprio

interesse, insensíveis às questões maiores de moral, aos deveres de cidadão e ao bem

comum106. A mesma opinião também é expressa por Rousseau na Carta: “pois confesso

que teria uma forte má opinião de um povo que desse às canções uma importância

ridícula; que fizesse mais caso de seus músicos que de seus filósofos, e com o qual fosse

necessário falar sobre música com mais circunspecção do que sobre os mais sérios

assuntos de moral.”107

Tais afirmações não significam que Rousseau pretenda estabelecer uma

hierarquia de importância entre estética e moral, mas sim que há uma estreita relação

entre ambas, sobre a qual falaremos com um pouco mais de detalhe no Capítulo IV. No

decorrer da história tanto os valores morais quanto os estéticos sofreram degeneração

devido ao nível cada vez maior de dependência imposto entre os homens em sociedade.

Como produtos dessa sociedade as ações morais dos homens e seu modo de apreciação

estética, são considerados os costumes dos homens enquanto membros dessa sociedade.

Conseqüentemente, se os homens em uma dada sociedade são desonestos, corruptos e

egoístas as artes oriundas dessa sociedade, feitas para agradar esses homens em tal

estado de corrupção, também serão corruptas e desonestas. No entanto, Rousseau afirma

que em tal situação a ociosidade dos homens só aumentaria sua maldade e, neste caso, é

preferível que se distraia com as letras, as artes e outras “bagatelas”, pois não se trata

mais de levá-los a agirem bem, mas simplesmente de impedir que façam o mal.

Essa função utilitarista, de divertimento fútil e vazio, com a qual Rousseau

identifica o valor das artes em certas sociedades é fortemente criticada pelo autor,

105 Ibidem, p 421 ss. 106 Entre Rousseau e Diderot parece haver uma concordância quanto ao valor de cada homem para a sociedade. Compare com as afirmações de Diderot em O Sobrinho de Rameau, a crítica ao músico desta vez recai sobre sua conduta moral: o que tem maior valor para a sociedade, um gênio da música ou homem de bem que desempenha perfeitamente seu papel de marido, pai e cidadão? 107 O.C. V, Lettre sur la Musique Française, p. 289.

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porém sua crítica não é ingênua nem arbitrária e encontra sua mais perfeita

representante na sociedade parisiense do século XVIII. Conhecendo perfeitamente os

princípios da filosofia cartesiana a partir dos quais foi construída a estética clássica e

com ela a forma da tragédia lírica juntamente com a música e a teoria de Rameau,

Rousseau constrói sua estética a medida que desconstrói cada um dos princípios sobre

os quais foram erigidos os conceitos estéticos influenciados pela filosofia de Descartes.

Com a Carta sobre a música francesa, Rousseau passa a desenvolver uma estética

própria consistente e comprometida com os textos filosóficos, seus próprios e de outros

iluministas, que surgiam simultaneamente. Com o objetivo de construir um pensamento

estético tão forte quanto o sistema que pretendia superar, esses textos de Rousseau

também se caracterizam por ser uma resposta direta à teoria musical de Rameau,

invertendo a hierarquia de valores estéticos com a qual o compositor concebe sua

música.

O ponto de partida tanto para a estética clássica em sua concepção mais

cientificista como a construída por Rameau, quanto para o pensamento de Rousseau é o

conceito de natureza. Para Rameau a verdade da natureza, oculta para nossos sentidos,

consiste em relações matemáticas construídas a partir de um modelo mecânico

alcançadas pelo conhecimento e reflexão, neste sentido o conceito de verdade é,

necessariamente, objetivo. Então, a ilusão e o artifício, que na tragédia lírica passa a ser

mais que um recurso estilístico é o próprio meio através do qual se alcança a verdade,

uma vez conhecidas as regras de funcionamento da representação e da composição

musical. A música, segundo esta concepção, se constitui como verdadeira arte de

imitação através da complexidade harmônica, conferindo à ópera francesa aspectos

essencialmente materialistas baseados em dois princípios fundamentais: a concepção

cientificista da música e a primazia da harmonia, que esta baseada no princípio físico

da ressonância dos corpos sonoros.

Conhecendo perfeitamente os princípios através dos quais se constrói a

estética clássica, a intenção de Rousseau é a de inverter a ordem de valorização dos

conceitos estéticos, construindo uma estética sob um aspecto psicológico-moral e não

físico-material, ressaltando como essencialmente importante para a beleza da música

seus aspectos mais “humanos”. Desse modo, à verdade objetiva da música de Rameau

alcançada por meio da ilusão e do artifício próprios da tragédia lírica, Rousseau opõem

sua verdade subjetiva, baseada num sentido mais sutil do conceito de natureza, para

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Rousseau a verdade da natureza é a ordem da transparência, como Jean Starobinski a

denominou.108

Natureza, então, passa a ser considerada como a verdade simples e

imediata das fontes originais que se revela de modo intuitivo sem o auxílio da razão e,

neste caso, a reflexão e o artifício só servem para aumentar a distância entre o homem e

a verdade da natureza. “O natural se define, então, pela sua oposição com o artificial, e é

assim que Rousseau, depois de outros, entendeu o conceito. O ‘artificial’ se entende

ordinariamente como o resultado de uma intervenção da vontade e da inteligência

humana modificando os dados naturais.”109 Natureza, assim, se identifica mais com um

marco temporal110, ou um ponto na história hipotética da evolução da humanidade, que

funciona como um recurso possível para que o homem recupere sua moralidade perdida

pelo advento da reflexão, fruto do artificialismo. Vejamos o que diz Rousseau no

Discurso sobre a Desigualdade: “ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um

estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado.”111

Portanto, nada mais distante da natureza e de sua fonte original do que uma música

composta por meio de regras físico-matemáticas obtidas por meio do exercício da razão:

“O que Rameau toma por uma estruturação, por uma ‘ordem’ natural, é aos olhos de

Rousseau o resultado de um artifício, de uma desarticulação.”112

Entretanto, não podemos considerar a estética de Rousseau como uma

tentativa de “retorno às origens” num sentido literal do termo, mesmo porque essa

natureza está irremediavelmente perdida. A estética de Rousseau surge mais

apropriadamente como uma reconstrução, por meio da qual parte dessa natureza perdida

pode ser resgatada, assim, em oposição à ilusão e ao artifício, Rousseau coloca a

sinceridade e a pureza dos sentimentos. A harmonia neste caso, fruto do artifício e nada

significando em termos de imitação, passa a ser um recurso ornamental que deve ser

usado com parcimônia para que não se torne um obstáculo para a percepção do canto,

da voz e da melodia.

108 KINTZLER, Catherine. Jean-Philippe Rameau, Splendeur et Naufrage de l’esthétique du plaisir à l’âge classique, p. 142. 109 BÉNICHOU, Paul. “Réflexions sur l’idée de nature chez Rousseau”. In: Pensée de Rousseau, p. 125. 110 Uso aqui a expressão “temporal” para me referir a uma situação bem especifica e demarcada no tempo, que diz respeito ao estado do homem antes do recurso à reflexão, esta última, portanto, representando o inicio da corrupção do homem. 111 ROUSSEAU. Ensaio sobre a Origem das Línguas, p183. Uso a tradução de Lourdes Gomes Machado na edição Os Pensadores, 1978. 112 KINTZLER, Catherine. Jean-Philippe Rameau, Splendeur et Naufrage de l’esthétique du plaisir à l’âge classique, p. 162.

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Se a estética de Rousseau tivesse que ser definida em duas palavras essas

palavras seriam simplicidade e naturalidade; e é em defesa dessa naturalidade que

Rousseau privilegia o canto, ressaltando a comunicação imediata dos sentimentos

através da voz humana, o que, de fato, segundo sua visão, seria o único meio de tornar a

música significativa. Os acentos e as inflexões da voz e da língua, material

verdadeiramente imitativo, é o que confere à música seu poder de identificação entre as

paixões que estão sendo transmitidas e os sentimentos do ouvinte. Neste processo a

melodia se torna o elemento musical mais importante porque é ela que promove as

mudanças psicológicas conforme os sentimentos que se quer exprimir, dependendo daí

toda a beleza da música.

Se, através do canto se constrói a melodia e pela voz humana se dá a

comunicação entre os sentimentos, esse canto se dá, necessariamente, em uma

determinada língua. Ao longo da história da ópera a relação entre música e texto

tiveram diferentes concepções. De acordo com o modelo lullista “a música deve estar a

serviço do texto poético”, já para Rameau a música esta emancipada e autônoma, mas o

texto continua tendo sua importância. No caso de Rameau ocorre um paralelismo113

entre música e língua devido ao fato de cada uma ter suas próprias leis. Em sua

concepção, música e língua estão bem distintas por sua origem e natureza, apesar de

compartilharem o mesmo material fundamental que é o som, no entanto elas se

distinguem em sua forma pois o som não aparece isolado e cada uma delas tem suas

próprias leis de relações sonoras. Servindo ambas para comunicar, exprimir e significar,

entretanto seguem caminhos paralelos e não relacionados de evolução e os esforços de

Rameau se fazem no sentido de desvincular a música de seu papel de subordinação em

relação ao texto, por isso não estabelece nenhum tipo de relação necessária entre língua

e música.

Por sua vez, Rousseau inverte o modelo lullista ao mesmo tempo em que

critica a música puramente física de Rameau, que aos seu olhos não diz nada. Ainda

mantendo a referência lingüística na música, Rousseau, no entanto, a desvincula da

subordinação: “ele a emancipa somente da subordinação ao significante da língua, mas

é para a ligar estreitamente ao trabalho de expressão e comunicação das paixões fora da

qual ela não tem sentido.”114 Assim, a música torna-se a expressão privilegiada dos

sentimentos e das emoções, dissociando o papel do poeta e do músico e criando uma

113 Ibidem, p. 126. 114 Ibidem, p. 125.

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outra espécie de relação entre música e língua, associando suas origens e natureza,

negando a vertente adotada por Rameau.

A ópera de Rameau não é um simples entretenimento, não é uma diversão

vazia e fútil, ela se remete a um sistema filosófico completo, podendo-se afirmar que ela

é “a necessidade de uma teoria”, o produto finalizado de todo o pensamento clássico, “a

morte da tragédia lírica foi também a da estética clássica”115, e neste sentido a Querela

dos Bufões foi um episódio irreversível, no qual a ópera francesa foi acusada de ser

excessivamente requintada e elitista. Um novo pensamento estava se formando e

oferecendo uma estética mais sensível, de êxtase espiritual, a qual Rousseau é em

grande parte o responsável.

Se a Carta de Rousseau possui uma inegável importância na história da

teoria musical, sendo uma das principais contribuições para a reviravolta estética de

meados do século XVIII, é natural que tenha causado polêmica e graves conseqüências

para a vida de seu autor, não só pelo conteúdo filosófico que traz, mas também pelas

violentas afirmações que sustenta.

Criticando os princípios da música de Rameau, por definição sujeita às

regras físico-matemáticas e às convenções de sua época, Rousseau, ao tomar parte da

querela com sua Carta, está em busca não só de uma música mais espontânea,

desinteressada e sincera, como acredita ser a música italiana, mas também livre por não

estar subordinada a nenhum regime político, sistema científico ou estilo elitista. Além

do mais, a música procurada por Rousseau, não seria de acesso apenas aos que possuem

os conhecimentos para melhor apreciá-la, sendo comovente e apaixonada essa música

falaria uma linguagem universal, a linguagem do afeto e da sensibilidade reconhecida

por qualquer ser humano, até pelos mais ignorantes e simples.

Mas ao defender seu partido na querela, Rousseau faz fortes críticas não só

à música francesa, mas também ao gosto e à sociedade francesa. Estando a tragédia

lírica condenada devido à inadequação do francês para a música, como afirma o autor

da Carta, toda uma nação está igualmente condenada e o mesmo grau de corrupção que

atinge sua língua nacional atinge também sua cultura, sociedade, política e moral.

Atingida em sua identidade a nação francesa se revoltada contra as

violentas críticas contidas na Carta. A sociedade parisiense condena, então, seu autor

com insultos e perseguições, ocasião na qual, segundo Rousseau afirma nas páginas das

115 Ibidem, p. 138.

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Confissões, sua própria vida e liberdade correram perigo, chegando a afirmar que um

complô estava sendo armado pelos músicos da orquestra da Ópera de Paris para

assassiná-lo.116 De fato, após a publicação da Carta, Rousseau perde as entradas

permanentes para a Ópera que havia obtido em troca dos direitos autorais do Devin du

Village.

Como demonstrado na Carta, aos olhos de Rousseau a música francesa é

uma arte morta, sem alma devido à distância que se encontra de sua fonte e de sua

natureza. Para Rousseau sua condenação só atesta um fato já comprovado, basta

observar o sucesso das obras italianas em solo francês enquanto os eruditos

tradicionalistas, demasiadamente racionais e apegados às regras ultrapassadas,

sacrificam o gosto, mas não sacrificam a devoção ao passado e não são sensíveis o

suficiente para transgredirem a tradição em nome de um efeito mais belo para a música.

Se a causa da deformidade da música francesa está principalmente na língua, esta

deformidade reflete o gosto de um povo que cria sua arte seguindo as convenções e não

o próprio coração. O resultado para Rousseau só poderia ser uma monstruosidade, um

ser disforme cujos membros não concordam em seus movimentos que, além da falta de

graça, não possui coração. Devido a essa falta de sensibilidade da qual Rousseau acusa

os franceses, seus compositores não sabem compor, seus músicos não sabem executar e

o público não sabe ouvir, eles nem ao menos conseguem desenvolver o senso crítico

para identificar os problemas em sua própria música. Com todas essas afirmações

Rousseau critica não só o caráter mecanicista da música francesa, mas também a

erudição e o virtuosismo de músicos e compositores que não reconhecem a verdadeira

essência estética de sua arte, só se preocupando em obterem sucesso e a admiração do

público que, encantados com a pompa e a ornamentação da música, aplaudem seus

artistas em arroubos de bajulação sem ao menos entenderem o que se passa em cena.

Na querela instaurada Rousseau se considera um juiz imparcial, segundo

os critérios que ele mesmo estabelece como necessários para se bem julgar a música:

versado nos dois estilos em questão e sendo estrangeiro, é perfeitamente capaz de julgar

os dois estilos sem se deixar levar por sentimentos nacionalistas. Sendo músico e

filósofo, possui todos os requisitos para teorizar adequadamente a respeito da música e

dar uma solução definitiva à disputa: “Cabe a ele [compositor] ser dotado do gênio e do

116 O.C. I, Les Confessions, p. 385.

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gosto para descobrir o que faz efeito; cabe ao teórico buscar as causas e dizer por que

essas são as coisas que fazem efeito”117.

Como o próprio Rousseau afirma em suas Confissões, sua Carta foi um

dos poucos escritos que sobreviveram à querela118. Acreditando ter encontrado a

essência do problema da música francesa, ou seja, a inadequação da língua para a

música, Rousseau aproveita a oportunidade dada pela querela para refutar a teoria da

harmonia de Rameau com sua teoria da unidade da melodia, apresentada pela primeira

vez na Carta. Para sua filosofia a Carta enseja um problema de fundo moral ao fazer

caminhar juntas, música e língua, em uma mesma via evolutiva, infelizmente negativa,

cujo ponto máximo de corrupção pode ser atestado pela tragédia lírica.

Sendo certa e irrevogável a morte da tragédia lírica com toda a sua

complexidade harmônica, a necessidade de um novo parâmetro teórico se faz presente

para direcionar as composições e a nova tendência estética nascente. A teoria da

unidade da melodia de Rousseau vem de encontro à busca por composições menos

pretensiosas, onde a simplicidade pode contribuir para a comunicação da sensibilidade e

a exaltação dos sentimentos. Para a história da estética a Carta de Rousseau assume

importância decisiva para a consolidação de uma nova via para a apreciação estética: o

prazer sensível e espiritual, onde a natureza é a referência e a subjetividade, unida à

intuição, o meio de alcançá-la, princípios e valores estes que serão defendidos pela

futura geração dos românticos.

117 O.C. V, Lettre sur la Musique Française, p. 314. 118 O.C. I, Les Confessions, p. 384.

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Capítulo IV

A Carta sobre a música francesa e a transparência dos sentimentos na

construção de uma nova concepção musical

Inicialmente motivado pela intriga pessoal com Rameau, Rousseau não

compromete com isso a qualidade de sua crítica à teoria, à música e aos princípios

estéticos do compositor e sua Carta sobre a música francesa é a pretensão de Rousseau

em atestar a falsidade da música francesa como obra de imitação, para não cair no

mesmo erro dos sábios alemães citados no texto, discursando sobre algo que não

poderia existir. Por esse motivo, embora siga o modelo de paralelo, comparando os dois

estilos entre si adotado pela maioria dos textos que discutiam sobre o assunto, Rousseau

assume serem a música francesa e a italiana incomparáveis entre si, não apenas pelo

fato de se tratar de dois estilos com propostas e princípios distintos, mas também pela

vantagem natural que a música italiana possui de ser cantada em uma língua apropriada

à música.

Construindo hipoteticamente uma língua totalmente inapropriada para a

música, que será identificada com o francês, o autor fará o mesmo com a língua

apropriada à música, identificada com o italiano, desse modo, ao longo da Carta, a

língua italiana e a língua francesa funcionam como paradigmas respectivamente da

melhor língua possível e da pior possível para a música. Nota-se que o objetivo de

Rousseau em construir o paralelo entre a música italiana e a francesa não é o de tentar

decidir pela melhor entre elas porque ele sabe previamente que a música italiana é a

melhor e seu empenho, então, está todo voltado em demonstrar sua refutação ao estilo

francês, não apenas quanto à sua aparência, mas principalmente quanto à sua essência e

neste sentido a Carta, como uma resposta direta à teoria de Rameau, eleva o nível da

querela de um simples debate panfletário à uma disputa verdadeiramente filosófica onde

princípios e valores estéticos são colocados acima do gosto do público.

A análise paralela entre a música francesa e a italiana segue a tripartição da

música, já conhecida e utilizada na época, em ritmo, harmonia e melodia. O ritmo

Rousseau identifica ao andamento, a harmonia ao acompanhamento e a melodia ao

canto119 e a partir desses três elementos básicos ele discorre a respeito de todas as

119 O.C. V, Lettre sur la Musique Française, p. 292. Tal tripartição da música pode ser encontrada já em J.-B. Du Bos, Réflexions critiques sur la poésie et sur la peiture; e em Plutarco, De la musique. Pot observa que, em última instância por se tratar da análise dos sons, hoje em dia se falaria antes em altura

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qualidades da música das quais intenciona falar. No entanto, mesmo existindo a

necessidade da decomposição da música com a finalidade de demonstrar todos os seus

efeitos sonoros, Rousseau se refere à ela sempre como um todo coerente, cujos

elementos possuem cada um uma função específica e natural, clara e bem definida e a

integração e interdependência entre eles deve fluir com naturalidade, fortalecendo o

tema e concorrendo para o mesmo objetivo, que deve ser precisamente o de despertar

determinadas paixões escolhidas intencionalmente pelo compositor. A originalidade da

Carta, a característica que a faz se destacar inclusive como texto filosófico, é o fato de

Rousseau fazer depender da língua todas as características que irão qualificar cada um

dos três elementos da música, fazendo com que a relação entre eles seja natural, mais

estreita e também hierárquica: “Como a harmonia tem seu princípio na natureza, ela é a

mesma para todas as nações, ou, se houver algumas diferenças, estas são introduzidas

pelas diferenças da melodia. Assim, é da melodia somente que se deve extrair o caráter

particular de uma música nacional, ainda mais que, sendo esse caráter dado

principalmente pela língua, é o canto propriamente dito que deve sofrer sua maior

influência.”120

A hierarquia estabelecida por Rousseau logo no início da Carta entre

melodia e harmonia é a noção estética principal em torno da qual vão surgindo os

argumentos de Rousseau contra a música francesa. Nota-se que Rousseau não refuta a

teoria de Rameau quanto ao seu aspecto físico, pois confirma que a harmonia tem sua

origem na natureza – e aqui, especificamente, Rousseau se refere à natureza física dos

objetos – o que confere propriamente o caráter universal da harmonia: “é a mesma para

todas as nações”. É exatamente por ser baseada em um princípio físico que Rousseau

condena seu excesso na música, pois ela não possui uma ponte de identificação com os

sentimentos humanos. A harmonia representando a parte física da música, o que

realmente confere seu caráter imitativo e eleva a música ao estatuto de ciência segundo

a concepção de Rameau, cabe à melodia, então, representar o aspecto psíquico, moral,

ou humano da música, principalmente porque seu caráter é determinado pelo canto,

logo, pela língua, e é das características peculiares à cada língua que se estabelecem as

diferenças entre as músicas nacionais. Nota-se que Rousseau além de estabelecer uma

(harmônicas), duração, timbre (reduzível às alturas) e intensidade. Na Segunda edição da Carta de 1753 há o acréscimo de uma nota à esta sentença: “Ainda que se entenda por “compasso” (mesure no original) a determinação do número e da relação dos tempos, e por “movimento” o grau de velocidade, eu acredito poder aqui confrontar essas coisas sob a idéia geral de modificação da duração ou do tempo.” 120 O.C. V, Lettre sur la Musique Française, p. 292.

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relação necessária entre música e língua, determina que é dessa relação que surge o

valor estético da música e com isso cria um critério original e universal pelo qual é

possível julgar a música com imparcialidade e discernimento – e não com o exercício

reflexivo da razão – em qualquer época ou lugar: “Os menos precavidos entre nós

contentam-se em dizer que a música italiana e a francesa são ambas boas, cada uma em

seu gênero, cada uma para a língua que lhe é própria, mas além do fato de que as outras

nações não concordarem com essa equivalência, sempre restaria a questão sobre qual

das duas línguas pode comportar o melhor gênero de música em si mesma, (...)”121

Não é desconhecido para Rousseau o fato de outros críticos já terem

notado a importância da língua para a formação das características musicais próprias de

cada país; também não passa despercebido ao autor o fato de se tratar de dois gêneros

completamente distintos entre si, porém há dois pontos a serem ressaltados na visão de

Rousseau. Primeiro: a língua é o único elemento a partir do qual pode-se produzir o

canto em ambos os estilos, sendo que este dispõe, essencialmente, apenas dos recursos

disponíveis em sua respectiva língua. Segundo: a partir desse princípio se estabelece o

critério universal e inequívoco do qual é possível concluir sem dúvidas qual o melhor

gênero de música em si mesmo, sem precisar efetuar uma comparação. Resta, então,

estudar as características lingüísticas para poder julgar na música o que resulta de seus

efeitos na prática.

Existindo línguas “mais apropriadas à música que outras” e “algumas que

não o seriam de modo algum”122, Rousseau vai enumerando, com base nessa diferença,

as características apropriadas para a música e as que não são. Em relação ao italiano,

Rousseau afirma: “Ora, se há na Europa uma língua apropriada à música, é certamente a

italiana, pois esta língua é mais doce, sonora, harmoniosa e acentuada que qualquer

outra, e essas quatro qualidades são precisamente as mais convenientes ao canto”123, o

que lhe confere a vantagem natural sobre o francês.

A doçura está relacionada com o grau de suavidade que a língua pode

expressar, para isso a abundância de vogais e os poucos encontros consonantais são

propícios. A sonoridade está relacionada à nitidez na articulação das sílabas e a clara

pronuncia das vogais contribui para tal. O termo harmonia é empregado para descrever

uma língua que tenha peso igual entre suas partes, ou seja, sílabas que soam docemente

121 Ibidem, p. 299. 122 Ibidem, p. 292. 123 Ibidem, p. 297.

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e sílabas que indicam rudeza possuem a mesma força. Uma língua harmoniosa, então, é

aquela que, tendo uma distância nítida entre suavidade e força e possuindo suas sílabas

bem distintas, possui uma relação entre as sílabas e os sons imprimindo força expressiva

ao mesmo tempo em que soa agradavelmente. A harmonia, neste caso, depende tanto

dos sons quanto do número das sílabas, que deve contar com um equilíbrio entre vogais

e consoantes. A compreensão do funcionamento prático dessas noções expostas por

Rousseau, se torna imediata quando recorremos ao exemplo usado pelo autor para

ilustrar as características enumeradas. As estrofes de Tasso transcritas na Carta nos

mostram o contraste entre a suavidade da primeira e a força da segunda segundo o uso

apropriado de características presentes na língua que tornam os versos mais fluídos e

expressivos. Compare-se, por exemplo, um verso da primeira estrofe com um da

segunda, para se compreender a colocação de Rousseau:

Sorrisi, parolette, e dolci stille Il raucosuon de la tartarea tromba

Sem precisar compreender o sentido das palavras, intuímos os sentimentos

que o autor das estrofes pretende expressar com o uso dos ‘l’ e ‘r’, como observa

Rousseau, na primeira “uma doce harmonia” e na segunda “rouca dureza”. Isso significa

que a fluidez, a nitidez, a sonoridade são características presentes na língua italiana que

manifestam toda sua expressividade, fazendo com que, de fato, o ouvinte sinta, se

emocione, se comova como pretendia o poeta. O exercício de “sentir” as estrofes de

Tasso demonstra perfeitamente a intenção de Rousseau: as características da língua

concorre para que haja uma comunicação direta entre sentimentos antes que a razão

possa interferir nublando a transparência natural que existe na comunicação das paixões.

Do mesmo modo que nas estrofes de Tasso, a expressividade da música deve ser de

apreensão imediata, de identificação de sentimentos, na qual as características

lingüísticas favoráveis à comoção despertam imediatamente os efeitos que se quer

produzir e os sentimentos que se quer despertar antes da ação mediadora da razão.

A valorização dos sentimentos por meio da comunicação direta das

paixões é o que torna a música expressiva, imitativa e verdadeiramente autentica como

obra de arte, não uma arte que recorre a artifícios e ornamentos para parecer bela, mas

uma arte que é verdadeiramente bela porque nasce diretamente do coração num ato

espontâneo e sincero, cujo único interesse é o de atingir outro coração com a mesma

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pureza e energia, e é desse modo que Rousseau estabelece o princípio de valorização

que orienta sua proposta estética na Carta.

Invertendo a valorização racional-cientificista de apreensão da música da

teoria de Rameau, os princípios expostos por Rousseau ainda estabelecem um segundo

ponto de divergência fundamental com a teoria do famoso compositor. Sendo o canto

influenciado pela língua e sendo a melodia produzida pelo canto, logo, é a feição dessa

melodia que indica o caráter próprio de uma música nacional, o que torna a melodia o

elemento mais significativo da música. Seguindo a argumentação de Rousseau, para se

chegar à uma conclusão definitiva na querela instaurada, basta analisar a melodia

própria de cada um dos gêneros para se decidir qual a melhor música: “(...) no que diz

respeito à melodia, à qual sozinha, se reduz quase toda a disputa.”124

Estando a beleza da música italiana na própria música, ou seja, ela não

depende de ornamentos artificiais ou da interpretação do cantor para parecer algo que

não é, concorrem para essa beleza a perfeição da melodia italiana que depende das

características da língua citadas acima:

“Três coisas parecem concorrer para a perfeição da melodia italiana: a primeira é a doçura da língua que, ao tornar fáceis todas as inflexões, deixa ao gosto do músico a liberdade para fazer delas uma escolha mais refinada, de variar mais as combinações e de dar a cada ator uma forma de canto particular, (...)

“A segunda é a audácia das modulações que, embora menos servilmente preparadas que as nossas, tornam-se mais agradáveis ao se fazerem mais perceptíveis e, sem comunicar dureza ao canto, juntam uma viva energia à expressão. (...)

“A terceira vantagem – e aquela que dá à melodia seu maior efeito – é a extrema precisão do ritmo (...) precisão que torna o canto animado e interessante (...) que traz ao coração todos os sentimentos, e ao espírito todos os quadros, (...)”125

Liberdade e subjetivismo, energia e expressividade, vivacidade dos

movimentos, são características que, segundo Rousseau, transparecem na música

italiana mostrando realmente como ela é, isto é, perfeitamente capaz de comunicar todos

os sentimentos que se queira porque ela existe verdadeiramente, seu ser e sua essência

estão presentes quando uma composição na língua italiana evoca suas beleza naturais, o

que não acontece com a música francesa que, carecendo desses encantos

proporcionados pela língua precisa recorrer a ornamentos artificiais: “A impossibilidade

de inventar melodias agradáveis obrigaria os compositores a dirigir todos seus cuidados

124 Ibidem, p. 300. 125 Ibidem, p. 303.

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à harmonia e, na falta de belezas reais, introduziriam ali belezas de convenção (...)”126.

Mascarando-se para encobrir sua falta natural, a música francesa só tem a aparência de

bela, sem o ser na verdade. A deficiência de sua beleza essencial faz, segundo

Rousseau, com que se recorra à belezas convencionais, que só podem ser usadas pelo

exercício da razão, que podem ser manipuladas de modo a tornar a música sujeita à

regras que lhe são estranhas por não fazerem parte de seu ser. Neste sentido, conforme a

Carta, a harmonia funciona como uma maquiagem usada na música para encobrir seus

defeitos, mas que na verdade a torna fria e inexpressiva. Por traz dessa aparência de

beleza não há um ser verdadeiro, há uma monstruosidade cujos membros, melodia,

canto, ritmo, não concordam entre si por não terem um sentido, uma direção, uma

orientação, pois nada podem representar em uma música vazia. Desse modo Rousseau

demonstra porque considera a música francesa uma falsidade: ela é apenas um

amontoado de notas que nada significam porque a harmonia não tem uma verdadeira

relação com os sentimentos humanos, ela não possui em referencial de imitação.

Sendo a melodia tão estreitamente relacionada à parte vocal, recebendo

diretamente a influência da língua, ela pode ser considerada a parte mais “imitativa” da

música, ou seja, é sobre a melodia que recai toda a expressividade musical, porque

sobre ela se reproduzem os efeitos caracteristicamente sensíveis da língua, ou seja,

aqueles próprios a comover. Nota-se, então, que é devido à língua que se estabelece a

relação de identificação entre a expressão representada pela música e os sentimentos

próprios do ouvinte; e, se uma melodia é clara e expressiva, a harmonia que a

acompanha é suave, o ritmo da música é bem marcado e o todo flui com naturalidade,

soando agradavelmente aos ouvidos.

Nota-se que, se em Rameau a música é uma forma de imitação direta

relacionando-se com a natureza física dos objetos, em Rousseau, como demonstrado na

Carta, ela é uma forma de imitação indireta. A música para o autor não representa os

objetos em si mesmos, mas certas afecções da alma que esses objetos, ou as cenas

“pintadas”, isto é, apresentadas pela música, produzem ou fazem despertar no ouvinte.

Comparando-se com a pintura, uma forma de imitação direta para Rousseau, cujos

objetos são utilizados em si mesmos, operando como um retrato fiel do que pode ser

apreendido com um golpe de vista, a música opera por meio de signos identificados

com certas afecções da alma. A música verdadeira, por meio dos seus signos, faz com

126 Ibidem, p. 293.

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que o ouvinte se recorde se certos sentimentos que a representação do objeto, ou das

cenas, desperta. No conceito de imitação no qual se apóia Rousseau na Carta, a

natureza funciona como o único ponto de referência seguro e certo, a partir do qual

provém além das normas de composição, a inspiração e o modelo a ser seguido, por ser

a fonte dos sentimentos a serem comunicados pela música. A “natureza”, então, para

Rousseau, invertendo a referência física-objetiva usada por Rameau, é a referência

psíquica e moral dos sentimentos primordiais.

Se a comunicação dos sentimentos usada como objetivo da música e

principal referência estética é desvalorizada, segundo a noção racionalista-cartesiana,

por ser incerta e insegura, pouco propensa à regras e leis, para Rousseau é exatamente

essa mobilidade e fluidez dos sentimentos que confere à música liberdade e

naturalidade. Longe de ser confusa ou instável, a inspiração para a perfeita comunicação

dos sentimentos se encontra em sua própria natureza, que aparece na Carta de Rousseau

como uma tentativa de reestruturar a valorização estética da música, tentando

reencontrar em suas fontes a essência perdida, pois “o que está fora da natureza não nos

toca”127. Em última instância, a dicotomia entre melodia e harmonia instaurada por

Rameau e invertida por Rousseau, representa para este último oposições muito mais

complexas que se remetem a duas formas conflitantes de concepção do mundo e do

homem: a oposição que se inicia com a disputa entre a música italiana e a francesa,

caminha para a oposição existente entre a primazia da melodia e da harmonia, e aponta

para oposições filosóficas como ser e aparência, natureza psíquica e natureza física,

liberdade e convenções, verdade e falsidade, ou se quisermos, verdade e ilusão, a ilusão

própria da tragédia lírica.

Apesar da composição e da apreensão estética funcionar para Rousseau

num plano muito mais intuitivo, negando o excessivo uso da racionalidade, o

compositor não está isento de estudar as diversas impressões que as consonâncias,

dissonâncias e acordes produzem em nossa sensibilidade para saber dispor dos sons

com discernimento e bom censo. Rousseau cita o próprio Rameau na Carta: “Recordei-

me então de ter lido em alguma obra do Senhor Rameau que cada consonância tem seu

caráter particular, isto é, uma maneira de afetar a alma que lhe é própria.”128 Portanto a

arte do compositor consiste em saber escolher bem os sons que se vai empregar de

acordo com os efeitos que se quer produzir. Mas a genialidade do compositor não

127 Ibidem, p. 310. 128 Ibidem, p. 312.

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consiste apenas em usar o som, consiste também em saber suprimi-lo para se conseguir

ênfase no efeito que se deseja: “a grande arte do compositor consiste em saber

distinguir, em cada caso, tanto os sons que se deve suprimir quanto os que se deve

usar.”129 Segundo Rousseau a economia de sons longe de empobrecer a música,

dependendo da ocasião, ajuda a reforçar o tema que se quer expressar. Logo, uma

profusão de notas e acordes não significa necessariamente beleza na música: “É,

portanto, um princípio certo e fundado na natureza que toda a música em que a

harmonia é escrupulosamente preenchida, todo o acompanhamento em que todos os

acordes estão completos, devem fazer muito ruído, mas ter muito pouca expressão.”130

Uma harmonia composta por muitas notas onde os acordes estão todos preenchidos,

apenas enchem os vazios da música de sons sem sentido que, confundindo-se uns com

outros e não são capazes de expressar nenhum efeito.

Um efeito contrário, como exemplificado na Carta, se obtém com a

música italiana que, recorrendo às características apropriadas a expressar os

sentimentos, flui naturalmente em uníssono, empregando força e energia através da

representação das paixões dada pelo canto. Sendo a melodia precisa, à harmonia cabe o

papel de simples acompanhamento o qual não encobre o tema expresso pela melodia.

Dessa forma, sem o saber, os italianos praticam o que Rousseau considera como a

principal teoria musical, mas que até a publicação da Carta ainda não havia sido

sistematizada, trata-se da teoria da unidade da melodia: “regra da qual nenhum teórico,

que eu saiba, falou até hoje, que só os compositores italianos sentiram e praticaram, sem

suspeitar, talvez, se sua existência.”131

A teoria da unidade da melodia é estabelecida por Rousseau como o

critério mais importante através do qual é possível bem julgar qualquer música nacional.

Comparada pelo próprio Rousseau à unidade de ação na tragédia pois, de acordo com

sua justificativa, se funda no mesmo princípio e dirigi-se ao mesmo objetivo132, o autor

da Carta também pretende que sua teoria se iguale àquela de Aristóteles em termos de

importância, já que toda força representativa da música passa a depender dela. Para

Rousseau, os elementos que compõe a música, como o canto, o ritmo, a harmonia,

possuem uns com os outros uma relação natural intrínseca e interdependente, a qual

deve ser respeitada por compositor e músico para que a música soe una e completa, cuja

129 Ibidem, p. 314. 130 Ibidem, p. 313. 131 Ibidem, p. 311. 132 Ibidem, p. 305.

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fluidez no decorrer do tempo, juntamente com a relação entre as notas, possa ter um

sentido para o ouvinte. Ou seja, se há unidade da melodia em uma música, existe

coerência na relação entre os elementos que perfazem a musica, e a conseqüência é a

apreensão imediata dos sentimentos que se quer expressar e a música alcança seu

objetivo estético. Para que a música alcance esse objetivo é preciso que a atenção do

ouvinte esteja presa ao tema representado pela melodia do canto, o qual deve dominar a

composição, fazendo com que o ritmo seja preciso e a harmonia suave e simples, neste

caso o excesso de ornamentos apenas dificulta a atenção e enfraquece a expressão do

tema. Rousseau é claro neste ponto: tudo que não for absolutamente necessário para

enfatizar a melodia deve ser excluído da música, pois “é preciso que o conjunto [a

música] não leve ao mesmo tempo mais que uma melodia ao ouvido e mais que uma

idéia ao espírito.”133 A música, transcendendo o meio sensitivo através do qual se faz a

apropriação de seus sons, viaja pelas nossas impressões psicológicas para afetar os

sentimentos determinados e despertando as paixões adormecidas.

Se as composições italianas seguem a unidade da melodia intuitivamente,

sem que seus músicos disso tomem ciência, com a música francesa, segundo Rousseau,

exatamente por se fazer uso de artifícios e da reflexão não é possível que seus músicos

tenham a percepção da falta de expressividade da qual sua música é vítima e, mesmo no

caso de disporem de um bom poema, não chegam a fazer uma música que com ele

concorde, construindo em uníssono os tema que se quer expressar e as paixões que se

quer pintar. Para enfatizar as implicações teóricas tanto da inaptidão do francês para a

música, quanto da falta de percepção de seus músicos, Rousseau, ousadamente, usa

como exemplo o famoso e já discutido monólogo da personagem Armide na peça de

mesmo nome134. Nas páginas finais da Carta, a título de desfecho conclusivo para seu

texto, Rousseau segue os versos iniciais desse monólogo, palavra por palavra,

mostrando como, funcionando de modo independente, música e canto não conseguem

expressar os sentimentos que deveriam despertar com as palavras empregadas pelo

poeta. De fato esse monólogo tem por tema uma grande convulsão da alma causada pela

confusão de sentimentos quando a protagonista, disposta a matar seu inimigo, descobre-

se apaixonada por ele. Inicialmente dominada pelo sentimento de vingança, sente

inesperadamente piedade e afeto por aquele que ia matar. Trata-se, verdadeiramente, de

133 Ibidem, p. 305. 134 Armide é uma célebre peça de Lully, com texto de Quinault. Vale lembrar que o próprio Rameau já havia feito a análise deste monólogo, na qual ressaltava as qualidades do estilo francês. Mais detalhes em nota da tradução da Carta em anexo.

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um momento de grande embate psicológico onde a personagem, pendendo entre dois

sentimentos de forças equivalentes, mas conflitantes, hesita diante de sua determinação.

Rousseau concorda que o poema expressa a confusão de sentimentos da personagem

alternando versos que significam ora a decisão pela vingança, ora a indignação pela

hesitação. Força e determinação, dúvida e piedade, raiva e ternura se alteram em poucos

versos sugerindo a densidade psicológica do momento. A música que os acompanha

sugere o suspense da ação paralisada, mas segundo Rousseau, não possui

expressividade, nem força suficiente para acompanhar o conflito vivido pela

personagem.

Rousseau afirma que a despeito das características dos versos não há

alteração na música, ou seja, para o autor da Carta a música deveria seguir a mudança

da disposição da alma da personagem que está clara e bem expressa pelos versos. Para

Rousseau o ritmo e a melodia desses versos deveriam se alterar seguindo a confusão da

alma da personagem. O autor nota a monotonia da tonalidade que é a mesma do início

ao fim dos versos analisados. A maior prova, segundo a visão de Rousseau de que a

música parece imprópria aos versos é que sozinha não expressaria todo o drama e a

densidade psicológica do momento. O emprego da harmonia também é criticado por

Rousseau, o excesso de notas curtas e rápidas não imprimem os sentimentos adequados

na alma do ouvinte, poluindo com sons desnecessários o que deveria ser expresso

apenas pela melodia da voz, o que não ocorre neste caso, segundo Rousseau, já que a

melodia e o ritmo permanecem inalterados e monótonos. Enfim, Rousseau conclui que

pela constância da tonalidade, do ritmo e da melodia a personagem parece expressar

sempre a mesma disposição de ânimo e não as mudanças de tema expostas pelo verso,

enfim, as afirmações de Rousseau sugerem que o músico, discordando do poeta, fez

com que a música caminhasse em outra direção que não a expressa pelos versos: “Quem

acreditaria que o músico deixou toda essa hesitação no mesmo tom, sem a menor

transição intelectual, sem o menor desvio harmônico, de uma maneira tão insípida, com

uma melodia tão pouco caracterizada, e com uma inabilidade tão inconcebível que, em

lugar do último verso que diz o poeta: Concluamos; eu tremo. Vinguemo-nos; eu

suspiro, o músico diz exatamente este: Concluamos; concluamos. Vinguemo-nos;

vinguemo-nos”.135

135 O.C. V, Lettre sur la Musique Française, p. 326.

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Sendo Armide considerada uma obra-prima de Lully, Rousseau não deixa

de causar polêmica com o exemplo que escolheu, sendo a obra escolhida um dos

representantes máximos da tragédia lírica e o monólogo em questão famoso por sua

beleza. Rousseau discorda dessas afirmações e usa justamente esse monólogo para

ilustrar o ocorre na música quando a língua na qual o canto é composto não possui força

expressiva para produzir uma melodia clara e enérgica que conduza o acompanhamento

de modo cadenciado. Nestas condições, segundo Rousseau, é difícil uma composição e

execução em uníssono, característica que considera indispensável para a expressividade

musical.

Para Rousseau, devido à influência da língua no canto e na música, música

vocal e música instrumental devem estar associadas. Funcionando como uma música

una, voz e acompanhamento devem caminhar na mesma direção e ter o mesmo sentido

para que os sons não sejam apenas um amontoado de notas que nada representam. Para

que a música seja verdadeira e bela, os sons devem soar de modo agradável aos

ouvidos, e estarem dispostos em relação uns com os outros de modo que o todo, no

decorrer do tempo, tenha um sentido completo. Esse sentido depende da sensibilidade e

inteligência, ou gênio, do compositor, ou seja, para Rousseau a música é uma arte que

depende do conhecimento das técnicas, mas para ser realmente bela e expressiva é

necessário o domínio dos efeitos, se o conhecimento mostra as alternativas sonoras, a

sensibilidade define seu uso interferindo no acaso para que os sons se tornem de fato

música. Tendo seu fim em si mesma, Rousseau isenta a música de qualquer obrigação,

interesse, ou pretensão, a música é simplesmente a comunicação transparente entre

sentimentos.

Devido a isso, para manter a unidade da música, melodia e harmonia têm

seus papéis bem definidos na Carta de Rousseau.

De acordo com a definição de Rousseau: “a harmonia, tendo seu princípio

na natureza, é a mesma para todas as nações”136, representa o caráter mais material e

mecânico da música e por essa razão está mais sujeita a regularidade, consequentemente

uma música que apresenta harmonia em demasia torna-se mais metódica e regular o que

segundo Rousseau não é sinônimo de boa música, mas apenas de erudição. Em uma

composição musical a harmonia é produzida pelas notas que soam imediatamente após a

fundamental formando os acordes, isto é, várias notas tocadas simultaneamente.

136 Ibidem, p. 292.

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Geometricamente, a harmonia pode ser executada seguindo várias linhas sonoras

diferentes, tocadas ao mesmo tempo, o que resultaria em uma composição altamente

elaborada e complexa que, no entanto, na concepção de estética musical defendida por

Rousseau na Carta, não resulta em beleza, apenas em barulho. Para Rousseau, a música,

sendo complexa demais abusando das linhas harmônicas, apenas abafaria a linha

melódica resultando em uma confusão auditiva. Devido à essas características da

harmonia, sendo o que a torna tão importante para Rameau, é justamente o que faz com

que Rousseau lhe atribua uma importância secundária na composição musical: “que a

harmonia não sirva senão para torná-la [a música] mais enérgica; que o

acompanhamento a embeleze sem a encobrir nem desfigurar; que o baixo, por uma

marcha uniforme e simples, guie de certa forma aquele que canta e aquele que ouve,

sem que nem um nem outro disso se apercebam.”137

A afirmação de Rousseau inverte a regra de composição seguida por

Rameau: não é da harmonia que nascem o ritmo e a melodia da música, mas o inverso.

A linha melódica, sendo o elemento principal em uma composição, deve fazer derivar

dela tanto o ritmo quando a harmonia que deve ser quase imperceptível e até mesmo

dispensável e isso Rousseau afirma poder ser atestado até cronologicamente: “Como a

música vocal precedeu em muito a instrumental, esta última sempre recebeu da primeira

sua maneira de entoar e seu ritmo”138, entende-se daí que a relação entre língua e música

é tão necessária e essencial que se remete às suas origens.

A Carta de Rousseau, e sua teoria da unidade da melodia que ela apresenta

pela primeira vez entre os escritos do autor, é uma resposta direta à chamada “ciência

harmônica” de Rameau e à sua “música metódica” que, de acordo com Rousseau,

estaria mais próxima da música de igreja e da música medieval devido ao seus excessos

de ornamentos que na verdade não dizem nada. Rousseau, respondendo a Rameau

através da sua unidade da melodia, sistematiza e fundamenta pela primeira vez uma

tendência já observada em sua época, mas que aparece assistemática e velada. A busca

pela unidade na música é uma aspiração comum entre os “novos” críticos como uma

forma de encerrar decisivamente a concepção polifônica. Soma-se a isso o desejo por

novos valores estéticos como substituição ao modelo cartesiano. A teoria da unidade da

melodia de Rousseau vem de encontro com as transformações culturais do seu século e

deixa seu legado para as futuras gerações de músicos. A expressividade musical é

137 Ibidem, p. 305. 138 Ibidem, p. 294.

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conduzida pela teoria de Rousseau da erudição à sensibilidade, contribuindo para a

extinção definitiva de certos padrões musicais já considerados decadentes. Extraindo o

máximo de sua própria teoria, Rousseau quis demonstrar que a música francesa, longe

de ser dourada, não pode ao menos existir como forma expressiva.

É assim que Rousseau “submete a música francesa à prova da razão”139,

não com o intuito de verificar se as composições procedem de acordo com regras

científicas que a tornariam rígida e fria. Para o autor da Carta, a música não é um objeto

físico ou matemático, e a razão à qual ele se refere diz respeito à uma luz interior, a um

bom senso que segue as tendências naturais do coração; a razão com a qual Rousseau

julga a música francesa, e sob a qual ela fracassa irrevogavelmente, é um processo de

reconhecimento do comportamento sensível intuitivo e original presente na constituição

moral do homem nos primórdios de seu estado de sociedade; comportamento este

comunicado diretamente pelos sinais presentes na língua, sinais que funcionam como

identificadores dos sentimentos, das paixões, das emoções e que são indicados

principalmente pelos acentos, tópico importante e que devido à essa importância

Rousseau se isenta de comentá-lo na Carta.

De fato, a Carta de Rousseau não é a oportunidade para que o autor

aprofunde o exame dos princípios que expôs neste mesmo texto, “essa não é a função de

uma carta”140, mas reconhece sua função – talvez dever – como filósofo, de esclarecer a

origem comum da música e língua, de onde deriva a relação necessária entre ambas,

assim como o aspecto psíquico-moral de sua teoria estética. Neste sentido o Ensaio

sobre a Origem das Línguas funciona como um prolongamento da resposta filosófica

que Rousseau inicia à teoria de Rameau com a Carta.

139 Ibidem, p. 291. 140 Ibidem, p. 291.

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Capítulo V

A origem comum da música e língua: a ponte de extensão entre a Carta e

outros textos de Rousseau

O contexto no qual a Carta se insere é referente à ópera, para ser mais

preciso à dois estilos de ópera diferentes: o italiano e o francês. Rousseau não

desconhece a distinção existente entre os dois estilos e até a impossibilidade de

compará-los visto serem tão diferentes. O autor também reconhece que a ópera é um

tipo de espetáculo que usa a música como um de seus vários elementos. Assim, para

Rousseau ópera seria um “espetáculo dramático e lírico no qual há o esforço em reunir

todos os encantos das belas artes na representação de uma ação passional, para excitar,

com a ajuda das sensações agradáveis, o interesse e a ilusão. As partes constitutivas de

uma ópera são o poema, a música e a decoração.”141 Enquanto que a música é “a arte de

combinar os sons de uma maneira agradável ao ouvido. Esta arte torna-se uma ciência,

muito profunda até, quando se quer encontrar os princípios de suas combinações e o

motivo das afecções que elas nos causam.”142 Dispondo de princípios mais profundos

que os outros elementos da ópera, a música se torna material com densidade suficiente

para que recaia a crítica filosófica. Rousseau afirma: “como parte essencial da cena

lírica, na qual o objeto principal é a imitação, a música torna-se uma das belas artes

capazes de tomar todos os quadros, de excitar todos os sentimentos, de rivalizar com a

poesia, de lhe dar uma nova força, de embelezá-la com novos encantos, e de triunfar na

coroação.”143 Sendo o objetivo da arte em geral o de imitar, a música é elemento

constituinte da ópera capaz de realizar esse objetivo.

Antes de tudo, a música é a escolhida de Rousseau para representar seu

pensamento estético porque é a forma de expressão por excelência.144 A Carta se insere

em um contexto específico de uma querela musical com seus próprios antecedentes

históricos e literatura específica. O papel da Carta é o de encontrar uma solução para o

debate em questão: qual a melhor música, a francesa ou italiana? A justificação da

solução encontrada por Rousseau se faz por meio de uma resposta a Rameau. Para

responder à altura do grande compositor e teórico da música, Rousseau dá início ao

141 O.C. V, Dictionnaire de Musique, p. 948. 142 Ibidem, p.915. 143 Ibidem, p. 948. 144 SALINAS FORTES, Luiz Roberto, citado por Jacira de Freitas, “Considerações sobre o ‘gosto’ em Rousseau” In: Reflexos de Rousseau, p. 115.

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desenvolvimento de seu próprio pensamento estético. Se, limitada pelo seu contexto, a

Carta trata de um debate específico e não se preocupa em explicar detalhadamente

origens e causas das teses defendidas pelo autor, por exemplo, sua teoria da imitação ou

a origem comum da música e das línguas. Seus princípios estéticos encontram respaldo

em outros textos de Rousseau de caráter mais filosófico e geral, deste modo então, a

crítica de Rousseau transita em um nível mais profundo fazendo eco com a totalidade de

sua filosofia e fundamentando um novo ponto de vista estético.

Através da música Rousseau estabelece princípios estéticos que podem ser

estendidos à todas as outras formas de arte, isso porque a música, para Rousseau, reflete

todo o sistema de valores de sua época, sendo o melhor modo através do qual se pode

resgatar a autenticidade estética. Segundo Catherine Kintzler:

“Além da violenta polêmica que a transpassa e que ela suscita (Rousseau foi queimado em público), a Carta sobre a música francesa enuncia o núcleo teórico do pensamento musical e estético de Rousseau: opondo a característica melodiosa da música italiana à complexidade harmônica da música francesa, ela caracteriza a oposição entre o modelo vocal, simples e natural, próprio a exprimir diretamente as emoções, e o modelo articulado, intelectual e material, segundo o qual as línguas e a música são pouco a pouco complicadas e degradadas. Esta oposição é a primeira ocorrência de uma longa série que ele examinará um pouco mais tarde no Ensaio sobre a origem das línguas em torno desta vez de um núcleo filosófico opondo o mundo físico-racional característico do pensamento clássico ao mundo “moral” do psiquismo humano.”145

O Ensaio se estabelece como texto que completa e explica a Carta

inserindo-a num contexto maior que encontra respaldo no todo de sua filosofia. Ao

relacionar a Carta com o Ensaio, Kintzler afirma “por ser uma resposta “indireta” a

Rameau, o Ensaio sobre a origem das línguas é uma resposta direta e filosófica ao

século de Luís XIV que esclarece os outros escritos de Rousseau sobre a música dando-

lhe uma dimensão teórica geral. A música não é somente o objeto sintomático desta

resposta: ela é a condição metódica de virulência.”146

A característica de maior relevância para uma análise filosófica da Carta

sobre a música francesa é a relação intrínseca e essencial que Rousseau afirma existir

entre a música e a língua. Essa relação se deve ao fato de que para Rousseau ambas

tiveram a mesma origem, a mesma finalidade e as mesmas causas, chegando até a se

confundirem uma com a outra na ocasião de seu surgimento. Na Carta Rousseau não

145 KINTZLER, Catherine. “Introduction à Lettre sur la musique française”, In: ROUSSEAU. Essai sur l’Origine des Langues où il parlé de la Melodie et de l’Imitation Musicale, 1993, p. 131. 146 KINTZLER, Catherine. “Introduction à l’Essai sur l’Origine des Langues”. In: ROUSSEAU. Essai sur l’Origine des Langues où il parlé de la Melodie et de l’Imitation Musicale, 1993, p. 12.

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explica detalhadamente a “origem” comum da língua e da música, mas deixa clara a

conseqüente dependência dessa origem à beleza da música.

A relação existente entre música e a língua, e suas conseqüências para a

beleza da música, já havia sido notada por outros teóricos, mas é com Rousseau que ela

se torna necessária, essencial e filosoficamente justificável como critério de valorização

estética para a música. Neste sentido, a Carta de Rousseau além de apontar, em um

primeiro momento, para as conseqüências práticas de uma execução e audição musical,

sua problemática central extrapola seu contexto e encontra ressonância em outros textos

do autor, juntamente com os quais constrói uma teoria filosófica sobre a origem da

música e da língua, na qual as causas morais desempenham papel fundamental na

evolução do homem como ser sensível e social. Segundo Oliver Pot, a Carta tem uma

grande importância no desenvolvimento da filosofia do autor, pois:

“Reúne, pela primeira vez, por ocasião do problema secundário colocado pela polêmica, duas grandes orientações do pensamento de Rousseau, ou seja, de um lado, a análise lingüística que fundamenta a prioridade melódica, reflexão mais recente e até então inédita que faz sua aparição por meio da comparação entre a língua italiana e a língua francesa; e, por outro lado, um corpo de digressões [sobre música] já conhecidas pelos artigos publicados, ou a publicar, da Enciclopédia (...)”147

Sendo assim, o primeiro texto ao qual é necessário recorrer para entender a

profundidade e os fundamentos da teoria musical que Rousseau expressa na Carta é o

Ensaio sobre a Origem das Línguas.

De fato, as afirmações que a Carta traz sobre as características presente em

cada língua, para o bem ou para o mal da música, encontram sua explicação no Ensaio.

Pode-se até afirmar que a Carta sobre a música francesa funciona como um

antecedente lógico do Ensaio sobre a Origem das Língua148, embora tanto a data de

redação quanto a finalidade deste último não tenham respostas unanimes entre os

estudiosos. Objetivamente, a teoria mais plausível sobre o Ensaio, e que nos remete

necessariamente à Carta, é a de Catherine Kintzler, que afirma que Rousseau teria

elaborado um texto sobre a linguagem com o intuito de transformá-lo em parte

integrante do 2º Discurso, mas que este texto teria sido suprimido, ampliado e revisado

se tornando um texto independente que faria parte de uma edição com outros textos de

Rousseau sobre música e língua na intenção de responder a Rameau. Optando por essa

via, o Ensaio nos leva à uma problemática específica cujo centro é a música, sendo essa 147 POT, Olivier. “Introduction à Lettre sur la Musique Françoise”, In O.C. V, p. CVI. 148 STAROBINSKI, Jean. “Introduction à l’Essai sur l’Origine des Langues”, In O.C. V, p. CLXV.

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problemática indissoluvelmente relacionada à língua149 e à origem comum das duas,

cujas causas são as necessidades morais do homem.

Lembremos os termos nos quais Rousseau se refere ao nascimento das

línguas meridionais no Ensaio sobre a Origem das Línguas:

“Nessa época feliz, na qual nada assinalava as horas, nada obrigava a contá-las, e o tempo não possuía outra medida além da distração e do tédio. Sob velhos carvalhos, vencedores dos anos, uma juventude ardente aos poucos esqueceu a ferocidade. Acostumaram-se gradativamente uns aos outros e, forçando-se por fazer entender-se, aprenderam a explicar-se. Aí se deram as primeiras festas – os pés saltavam de alegria, o gesto ardoroso não bastava e a voz o acompanhava com acentuações apaixonadas; o prazer e o desejo confundidos faziam-se sentir ao mesmo tempo. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos – do puro cristal das fontes saíram as primeiras chamas do amor.”150

Nas palavras de Starobinski, em sua introdução ao Ensaio:

“Os poços em torno dos quais os jovens encontram outros jovens são o cenário idílico de uma ópera fabulosa onde Rousseau faz representar o despertar do amor – condição, enfim, suficiente para o surgimento da língua primitiva (...). A fábula assim narrada em uma linguagem ela mesma rítmica e acentuada faz da linguagem melodiosa original a expressão da unidade do prazer e do desejo, a verdade manifesta do sentimento interior.”151

Apesar da atmosfera mítica e idílica, Rousseau pretende, ao contrário do 2º

Discurso, escrever uma história real152, a história sobre a origem das línguas – e sua

conseqüente evolução, não necessariamente positiva sob o ponto de vista estético. Nessa

origem a necessidade de sobrevivência que faz com que os homens se reúnam, não é

senão a condição necessária para o surgimento das línguas, sendo que a condição

suficiente aparece com as necessidades morais, mais propriamente a necessidade unida

ao desejo intrínseco no homem de transmitir aos seus semelhantes suas paixões e

sentimentos.

Necessidades físicas e necessidades morais são dois termos freqüentes no

Ensaio e nos remetem a dois tipos de relações estabelecidas pelo homem em seus

149 Sobre os detalhes dessa teoria ver: KINTZLER, Catherine. “Introduction à l’Essai sur l’Origine des Langues”, Flammarion, 1993. Como lembra Kintzler, não podemos desconsiderar o título completo do Ensaio: Essai sur l’Origine des Langues où il est parlé de la melodie et de l’imitation musicale [grifos nossos]. 150 ROUSSEAU, Ensaio sobre a Origem das Línguas, p183. Uso a tradução de Lourdes Gomes Machado na edição Os Pensadores, 1978. 151 STAROBINSKI, Jean. “Introduction à l’Essai sur l’Origine des Langues”, In O.C. V, p. CLXXXVII. 152 Cf. GUETTI, Barbara. “The Double Voice of Nature: Rousseau’s Essai sur l’Origine des Langues”, In: MLN, Vol. 84, n. 6, p.854.

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primórdios153: a relação estabelecida entre o homem e a natureza e a relação que os

homens estabelecem uns com os outros.

As necessidades físicas se remetem ao homem enquanto ser isolado,

gozando de liberdade natural, independente dos outros homens quanto aos meios para

conseguir seu alimento e se reproduzir, únicas fontes de preocupação: “Os frutos não

fogem de nossas mãos, é possível nutrir-se com eles sem falar; acossa-se em silêncio a

presa que se quer comer; (...)”154 neste estágio da evolução do homem, ou melhor,

durante essa “pré-evolução”, a ação do homem não é responsável por nenhuma

mudança. Se dependesse apenas de sua vontade ele continuaria indefinidamente

desfrutando de seu natural estado de indolência. Sem precisar pedir pelo alimento, nem

se reunir para obtê-lo, não há necessidade de comunicação, mesmo porque ele não

reconhece outro homem como seu semelhante. O comportamento instintivo não

depende da fala, apenas o comportamento social a faz surgir155.

É necessário que o homem sofra as intempéries da natureza, é preciso que

a natureza aja sobre o homem para que o homem aja sobre ela. Perante o frio e a

escassez de água, os homens vêem-se obrigados a se reunirem ao redor do fogo ou ao

redor das fontes, dando início às formações sociais e à origem das línguas: “sendo a

palavra a primeira instituição social, só a causas naturais deve a sua forma.”156 A

natureza aqui, ou seja, as condições topográficas ou climáticas, funciona como um

estímulo para que os homens se reúnam a fim de suprir suas necessidades físicas e essa

reunião para compartilhar do fogo ou da água causa uma série de eventos que decorrem

uns dos outros e a evolução das sociedades se torna inevitável.

Se antes os homens desconheciam outros homens, o contato faz com que

se dêem conta da presença de um ser semelhante. Os homens passam a reconhecerem-se

uns nos outros como portadores das mesmas necessidades e sofredores das mesmas

paixões. Com a proximidade com o semelhante e o seu reconhecimento como tal

surgem, as necessidades morais: “(...) mas, para emocionar um jovem coração, para

repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes. Eis as mais

153 Primórdios esses sob os quais Rousseau não estabelece uma data, apenas o indica como tempo de dispersão dos homens seja qual for a época. Ensaio, p. 174, nota 36 do autor. 154 Ensaio sobre a Origem das Línguas, p. 164. 155 Cf. GUETTI, Barbara. “The Double Voice of Nature: Rousseau’s Essai sur l’Origine des Langues”, In: MLN, Vol. 84, n. 6, p.854. 156 Ensaio sobre a Origem das Línguas, p. 159.

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antigas palavras inventadas, eis porque as primeiras línguas foram cantadas e

apaixonadas antes de serem simplesmente metódicas.”157

Assim Rousseau estabelece a simultaneidade do nascimento da língua e da

música, quase como se fossem uma única forma de expressão:

“À volta das fontes de que falei, os primeiros discursos constituíram as primeiras canções; as repetições periódicas e medidas do ritmo e as inflexões melodiosas dos acentos deram nascimento, com a língua, à poesia e à música, ou melhor, tudo isso não passava da própria língua naqueles felizes climas e encantadores tempos em que as únicas necessidades urgentes que exigiam o concurso de outrem eram as que o coração despertava.”158

Assim, quando Rousseau na Carta afirma que uma música para ser

agradável e bela deve estar próxima dos nossos sentimentos naturais ele obviamente se

refere não ao estado primitivo do homem isolado, mas a esse “mítico” surgimento das

línguas o qual marca o início da sociedade, uma sociedade primária, de fato, mas já uma

sociedade que empreende seus primeiros rudimentos culturais. O homem natural não

tem paixões e sentimentos emotivos, ou se os têm essas paixões ainda se encontram em

estado dormente e o homem depende de uma ocasião de contato para que possa

estabelecer relações e apenas o costume com a presença constante do outro faz com que

o reconheça como seu semelhante. A voz da natureza que Rousseau reclama para a

música é, então, oriunda de um estado de sociedade primitivo, porém, já estabelecido; e,

por sua vez, as paixões originais, assim o são, na medida em que correspondem às

primeiras reações, fruto da imaginação e do contato com o semelhante, ou seja, as

paixões presentes nesta primeira tentativa de comunicação. Elas significam o primeiro

movimento dentro do estado de sociedade nascente em direção à evolução irreversível

do homem, seja para o bem ou para o mal.

Longe de atribuir uma essência materialista para o surgimento da língua e

da música, Rousseau nega que a comunicação seja produto dependente de órgãos

específicos da fala e atribui à fatores sociais o que até então se considerava uma

decorrência de fatores biológicos, demonstrando a crítica de Rousseau a qualquer meio

natural, ou seja, fisiológico, atribuído à origem e desenvolvimento da linguagem. O

ponto de vista assumido por Rousseau também representa a essência da distinção entre

o homem e os animais, já que, para o autor, alguns animais também seriam capazes de

comunicação. No entanto, antes mesmo de raciocinar, o homem já possui a faculdade de

157 Ibidem, p. 164. 158 Ibidem, p. 186.

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se aperfeiçoar, o que faz com que ele supere o estado natural, superação impossível ao

animal.

Tendo por objetivo unir os corações de seres sensíveis que se reconhecem

como tal, essa língua “original” – “contaria muitas irregularidades e anomalias;

descuidaria da analogia gramatical para se prender à eufonia, ao número, à harmonia e à

beleza dos sons (...) persuadiria sem convencer e descreveria sem raciocinar.”159 Nota-

se no Ensaio que Rousseau atribui duas funções à língua: a de transmitir idéias e a de

transmitir sentimentos; a primeira função cabe à língua escrita e a segunda à língua

falada. Tendo a primeira língua apenas a forma falada, ela se apresentava menos

preocupada em ser clara, dando maior importância à força.160 Se ela ainda existisse,

poderia ser facilmente distinguida das demais, pois seria simples e inarticulada,

possuiria apenas algumas consoantes para tornar a pronúncia mais fácil, teria sons

variados, diversos acentos, faria novas combinações de ritmo, “de modo que as vozes,

os sons, o acento, o número, que são da natureza, deixando às articulações, que são

convenções, bem pouco a fazer, cantar-se-ia em lugar de falar”161. De tão sonora,

acentuada e ritmada a fala se transforma em canto e o canto empresta dela suas

características essenciais. Transmitindo sentimentos e não idéias, fala e canto servindo-

se da linguagem figurativa, nascem de causas morais com a finalidade de produzir

efeitos morais: “As sensações não nos afetam somente como tal, mas também como

signos ou imagens, e seus efeitos morais têm também causas morais.”162 Por meio de

imagens a linguagem se comporta conforme os movimentos dos sentimentos e as

incertezas das paixões; se adaptando às ocasiões, lançando mão dos recursos próprios à

uma comunicação imediata, tornando os corações transparentes uns aos outros, tal como

a fonte que representa o cenário de seu nascimento. Usando os sentidos os quais

“constituem os únicos instrumentos pelos quais um homem pode agir sobre outro”163, a

linguagem, provoca um efeito imediato, quase que instintivo, que vai além da simples

apreensão sonora: “Os sons, na melodia, não agem em nós apenas como sons, mas

como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. Desse modo desperta em nós os

movimentos que exprimem e cuja imagem neles reconhecemos.”164 Mais que um meio

159 Ibidem, p. 166. 160 Ibidem, p. 170. 161 Ibidem, p. 166. 162 GUETTI, Barbara. “The Double Voice of Nature: Rousseau’s Essai sur l’Origine des Langues”, In: MLN, Vol. 84, n. 6, p. 868. 163 Ensaio sobre a Origem das Línguas, p.159. 164 Ibidem, p. 191.

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de comunicação a língua é considerada também como um modo de expressão, e a

música que segue o canto que se forma dos acentos dessa língua também produz o

efeito moral que nasce juntamente com o despertar do amor e do desejo no coração dos

homens. “A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de

dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das

paixões.”165

No entanto, se num primeiro momento quase não há distinção entre língua

e música, dadas as circunstâncias e finalidade de seus surgimentos simultâneos, no

decorrer do Ensaio essa perspectiva muda e as línguas e a música se transformam em

duas possibilidades distintas de expressão, coexistindo em uma relação de

reciprocidade166 na qual o canto tira sua origem da fala. Rousseau aponta o

aperfeiçoamento da língua, ou seja, sua precisão e rigor gramatical, como o principal

fator responsável pela separação entre língua e música e a música, por sua vez, começa

a perder seus encantos quando sofre a introdução da harmonia. Conforme o homem

evolui em suas instituições sociais “a língua fica mais exata, mais clara, porém mais

morosa, mais surda e mais fria.”167 Esse é um progresso perfeitamente natural que

adapta a língua a um modo de vida mais racional, porém, limitando-a em suas belezas

naturais. Para Rousseau, a música que se servir de tal língua, não possui significado,

não tem razão de existir, pois não passaria de um complexo emaranhado desconexo de

representações.

Podemos, de forma resumida, entender o processo de nascimento e

evolução da língua e da música da seguinte forma: A natureza age sobre o homem, que

se reúne e aprende a usar os meios de agir sobre a natureza a fim de garantir a

subsistência, mas não apenas isso, desde que o homem reunido reconhece o outro como

seu semelhante, surge a necessidade moral de transmitir seus sentimentos, colocando-o

na linha evolutiva de sua própria espécie irreversivelmente, para o bem ou para o mal.

Sempre há um primeiro fator externo, caso contrário o homem continuaria a ser

sozinho, indiferente e preguiçoso. Surge a língua, e a música, que pouco se distinguem

entre si em suas origens, ambas como igualmente um meio de comunicação sensível.

Assim, música e poesia surgem como primeiras formas artísticas com clara proposta de

comunicar sentimentos com o objetivo de aproximar os semelhantes, tendo por

165 Ibidem, p. 190. 166 GUETTI, Barbara. “The Double Voice of Nature: Rousseau’s Essai sur l’Origine des Langues”, In: MLN, Vol. 84, n. 6, p. 867. 167 Ensaio sobre a Origem das Línguas, p.167.

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princípio estético a imitação das paixões primeiras através da linguagem figurativa que

não representa os objetos em si, mas nossas reflexões decorrentes do processo

imaginativo.

Essa é propriamente a origem da linguagem, – pois consideramos aqui a

música como uma forma de linguagem juntamente com a língua – e suas características

específicas de nascimento nos lugares de clima quente, os quais Rousseau denomina

como propícios para a evolução moral do homem segundo os termos que acabamos de

ver.

Por outro lado, a distinção entre necessidades morais e físicas implica

diretamente na característica e evolução das diferentes línguas nacionais. Nos lugares

frios o fogo representa o papel da fonte, simbolizando o início da união entre os

homens:

“O fogo, além de ser útil para cozinhá-las [as carnes], ainda apraz à vista e seu calor é agradável ao corpo. A visão das chamas, que faz os animais fugirem atrai o homem. Reúnem-se em torno da fogueira comum, aí se fazem festins, aí se dança. Os agradáveis laços do hábito aí aproximam, insensivelmente, o homem de seus semelhantes e, nessa fogueira rústica, queima o fogo sagrado que leva ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade.”168

Enquanto nos lugares quentes as necessidades físicas foram vencidas

dando ensejo ao nascimento dos prazeres e encontros amorosos, nos climas frios o

homem está em constante luta com a natureza e suas necessidades se resumem em

sobreviver ao frio e conseguir alimento. Apesar do homem também seguir sua evolução

nos climas inóspitos, a linguagem aí desenvolvida, apesar de também ser agente das

relações humanas, nunca perdeu as características próprias às necessidades a partir das

quais foi originada.

As línguas do Norte europeu, por exemplo, são mais ríspidas e guturais por

se originarem de uma necessidade física mais pungente devido ao clima extremo que

decorre em perigo de vida. O comportamento agressivo, necessário à sobrevivência, é

mais próprio para a proliferação de consoantes, fazendo com que a fala seja mais

fragmentada e áspera. A necessidade, neste caso, está em transmitir o pensamento que

encerra em si um pedido de ajuda: “Sempre presente, o perigo de perecer não permitia

que se limitasse à língua do gesto, e entre eles a primeira palavra não foi amai-me, mas

ajudai-me.”169

168 Ibidem, p. 181. 169 Ibidem, p. 185.

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A diferença mais marcante entre consoantes e vogais se relaciona com a

diferença entre necessidades físicas e necessidades morais, uma é destinada à fala e

outra ao canto, respectivamente.170 Na Nova Heloísa, por exemplo, Rousseau afirma:

“Não percebia nos acentos da melodia aplicados aos da língua o vínculo poderoso e

secreto das paixões com os sons; não percebia que a imitação dos sons diversos com os

sentimentos animam a voz que fala dá por sua vez à voz que canta o poder de agitar os

corações e que a enérgica representação dos movimentos da alma daquele que se faz

ouvir é o que faz o verdadeiro encanto dos que ouvem.”171

As línguas do Sul, portanto, possuem poucas ou nenhuma articulação e se

caracterizam pelo predomínio das vogais e dos acentos, recurso próprio a expressar as

paixões; já as línguas do Norte, possuem excesso de consoantes e as vogais são surdas e

sem sonoridade, marcando a diferença de entonação entre a fala e o canto.172 Sendo

assim, no processo de degeneração que todas as línguas sofreram, as do Sul, no entanto,

preservaram algo de suas origens. Tidas, então, como mais “naturais”, servem melhor à

proposta estética de comover e emocionar. As línguas do Norte, rígidas em sua origem,

servem mais ao comércio e à escrita, que ajudou ainda mais a fixar as articulações e

convenções gramaticais. Para reafirmar essa função específica de cada língua nacional,

na segunda edição da Carta, Rousseau faz uma tentativa de restabelecer, de alguma

forma, a dignidade da língua francesa, alegando que seus defeitos só existem ao que diz

respeito à poesia e à música, pois para a filosofia ela é a que se mostra mais apropriada:

“(...) a língua francesa me parece aquela dos filósofos e dos sábios: ela parece feita para

ser o órgão da verdade e da razão” 173.

Mas, a língua italiana, segundo Rousseau afirma no Ensaio, também já

sofreu sua parcela de degeneração, mostrando-se como língua decadente, sem

musicalidade e adaptada às convenções. Essa afirmação, que parece contradizer toda a

argumentação da Carta, é explicável se levarmos em consideração o contexto específico

de cada texto. Sendo o Ensaio o texto teórico, podendo até ser considerado um extrato

do Segundo Discurso, sua função é a de investigar historicamente a origem e evolução

das línguas, dentro de um contexto amplo levando em consideração todas as causas

170 Ver nota 5 referente à p. 292 da Carta estabelecida por Oliver Pot, O. C. V, p. 1453. 171 A Nova Heloísa, p. 127. 172 Para esta distinção, segundo Pot, Rousseau se inspirou nos Elementos harmônicos de Aristóxene de Tarente. 173 Em nota a este acréscimo, Rousseau atribui tal qualidade da língua francesa ao pensamento e aos escritos de Diderot.

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envolvidas, o que completa e explica filosoficamente os fundamentos da teoria da

unidade da melodia contida na Carta. Inserida em um contexto mais limitado e

específico, a argumentação da Carta, apesar de alcançar conseqüências mais amplas, se

atém à uma problemática estética bem definida, na qual é preciso “tomar um partido”,

encontrando uma solução plausível. Dentre as soluções possíveis, entre as duas que se

apresentam, o italiano parece ser a melhor opção, pois representa uma reconciliação,

uma união entre os aspectos artificiais e alguns elementos naturais que ainda

sobrevivem intrínsecos à essa língua. O italiano, então, seria o correspondente atual para

o que foi a língua grega no passado.

De fato, neste ponto a Carta e o Ensaio concordam. É na Grécia anterior

ao surgimento dos filósofos e dos sofistas que Rousseau afirma estar a verdadeira

música, porque era feita a partir de uma língua natural e espontânea, rica em recursos

estéticos. Na Carta, ao aprofundar sua análise buscando os princípios primeiros de cada

elemento da música, Rousseau inevitavelmente recorre à música grega:

“Já afirmei que toda música nacional extrai seu principal caráter da língua que lhe é própria, e devo acrescentar que é principalmente a prosódia da língua que constitui esse caráter. Como a música vocal precedeu em muito a instrumental, esta última sempre recebeu da primeira sua maneira de entoar e seu ritmo, e os diversos ritmos da música vocal só puderam nascer das diversas maneiras pelas quais é possível escandir o discurso e dispor as sílabas breves e as longas umas em relação às outras; o que é muito evidente na música grega, cujos ritmos não eram mais que fórmulas de outros tantos ritmos fornecidos por todos os arranjos das sílabas longas ou breves e dos pés aos quais a língua e a poesia eram suscetíveis. De modo que, embora se possa muito bem distinguir, no ritmo musical, o ritmo da prosódia, o ritmo do verso e o ritmo do canto, não se deve duvidar de que a música mais agradável – ou, ao menos, a mais bem cadenciada – é aquela em que estes três ritmos confluem conjuntamente da melhor maneira possível.”174

Além do mais, do recurso utilizado por Rousseau, ainda decorre uma outra

conseqüência importante, a anterioridade cronológica da música vocal sobre a

instrumental, o que reforça ainda mais a relação essencial existente entre música e fala,

já que toda música decorre necessariamente desta última. A antecedência cronológica

empresta à melodia uma espécie de autorização natural para ser o elemento chave de

uma composição. Para Rousseau a música instrumental não é mais que um

“prolongamento da voz humana” que deve ser o único modelo para a música.

Não passa despercebido a Rousseau em sua Carta que, na disputa entre a

música italiana e francesa, há o embate entre dois estilos musicais que, a principio, 174 O.C. V, Lettre sur la Musique Française, p. 294.

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poderiam ser incompatíveis e incomparáveis entre si, visto suas diferenças de

concepção, de proposta e de conceitos, mas o autor os equipara valendo-se do elemento

comum à todas as músicas nacionais: todas as músicas derivam da língua na qual é

composta, dela dependendo sua expressividade. Sendo assim a língua transforma-se no

elemento universal que permite o nivelamento dos dois gêneros, tornando-os

comparáveis entre si, pois, para Rousseau, a música tem uma linguagem universal:

todas as músicas em todos os países e em qualquer época podem ser julgadas pelos

mesmos critérios, pois sua função é a mesma, isto é, a de agradar aos ouvidos e causar

prazer estético através das emoções que desperta tocando nossos corações.

O recurso às “origens” em Rousseau funciona como um aparato teórico

que fundamenta sua teoria da linguagem, da comunicação, e do que o autor considera

como a forma da expressividade por excelência, ou seja, a música175. Considerada como

uma história hipotética, as origens buscadas por Rousseau, funcionam muito mais como

um recurso alternativo à própria realidade que vivia, do que como uma explicação de

um passado que se pretende real. Considerando a música francesa morta devido à sua

falta de expressividade, é em suas próprias origens que Rousseau encontra o germe de

sua inevitável decadência, e quando o autor substitui a imponência de sua ornamentação

pela simplicidade da melodia, sua crítica alcança uma proporção que ultrapassa os

limites da querela instaurada: a dicotomia opondo harmonia e melodia, a qual direciona

toda a argumentação da Carta, não apenas viabiliza a crítica de Rousseau à música

francesa, mas a própria validez de sua crítica aponta para um novo modelo estético que

se baseia na comunicação transparente entre os sentimentos, e a riqueza ornamental se

transforma em simplicidade que, no entanto, está repleta de sensibilidade. As “origens”

em Rousseau, têm um sentido de resgate, o resgate da pureza da infância da

humanidade, mesmo que essa pureza seja idealizada como uma tentativa de recriar uma

nova essência para a música, em substituição da que considera decadente e corrupta,

tornando-a mais próxima da natureza.

Mas, se a voz é o meio responsável pela expressão na música por meio da

qual se dá a identificação entre os sentimentos cantados e sentidos como

verdadeiramente humanos; e, devido à influência do canto na melodia ela se torna mais

imitativa que a harmonia, conferindo força, vitalidade e espontaneidade à música, esse

processo de identificação entre sentimentos, tão necessário para a teoria de imitação de

175 SALINAS FORTES, Luiz Roberto, citado por Jacira de Freitas em “Considerações sobre o ‘Gosto’ em Rousseau”, In: Reflexos de Rousseau, p. 115.

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Rousseau, só é possível devido à piedade. Para o autor da Carta, nem a apreciação

estética, nem o processo de imitação pelo qual se dá a composição e execução musical

seriam possíveis se não fosse essa faculdade anterior à razão, universal e natural no

homem: “As afeições sociais só se desenvolvem em nós com nossas luzes. A piedade,

ainda que natural ao coração do homem, permaneceria eternamente inativa sem a

imaginação que a põe em ação. Como nos deixamos emocionar pela piedade? –

Transportando-nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o sofredor. Só

sofremos enquanto pensamos que ele sofre; não é em nós, mas nele, que sofremos.”176

A piedade, além de ser a base afetiva de uma comunidade de indivíduos

que se reconhecem como semelhantes porque padecem das mesmas paixões, também

desempenha um papel na importância dos sentimentos para a apreciação estética. Sendo

necessária a comunicação do amor e do desejo que a presença de seres semelhantes

desperta, é devido à piedade que essa comunicação encontra ressonância.177

Nota-se que o retorno à natureza como fundamento teórico para a tentativa

de resgate da transparência e da autenticidade na comunicação das paixões necessita do

relacionamento entre os homens, ou seja, do estado de sociedade. O homem não é um

ser isolado, ele só evolui e só goza de suas faculdades se houver o estímulo da presença

de um ser semelhante para que ele reconheça que não está só. As artes, a música e a

ciência são frutos da sociedade e dependem dela tanto quanto as faculdades humanas

que as geram, como a piedade e a imaginação. A intenção de Rousseau, portanto, é a de

apontar para um momento na evolução da história do homem no qual, tendo a sociedade

já aparecido como condição para o desenvolvimento das artes, no entanto, ainda se

encontra em estado tão primitivo que a corrupção nela ainda não tomou lugar. A

proposta estética iniciada por Rousseau na Carta, e desenvolvida em textos posteriores

do autor, “evoca”, como afirma Catherine Kintzler, “através do mito do nascimento das

línguas sonoras, a liberdade perdida”178 retornando à pureza da infância da humanidade

e, neste sentido, o recurso às origens mostra que música e língua, como instituições

sociais estão muito mais próximas das questões morais e políticas e sua forma de

expressão é o reflexo da sociedade e da cultura às quais serve, vista sob esse aspecto, a

“Natureza constitui, no pensamento do filósofo, uma idéia reguladora a partir da qual se

176 Ensaio sobre a Origem das Línguas, p. 175. 177 Cf. SCOTT, John T. “The Harmony Between Rousseau’s Musical Theory and his Philosophy”. In: The Journal of the History of Ideas, 52.2 (1998), p. 810. 178 KINTZLER, Catherine. “Introduction à l’Essai sur l’Origine des Langues”. In: ROUSSEAU. Essai sur l’Origine des Langues où il parlé de la Melodie et de l’Imitation Musicale, 1993, p. 38.

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poderá medir os graus de afastamento e aproximação de cada linguagem em relação à

ela e, conseqüentemente, o grau de deterioração que encerra”179.

Devido a isso, na crítica que Rousseau constrói na Carta, a música opera

como o elemento capaz de concentrar todos os sintomas de uma sociedade corrupta e de

um padrão artístico que apenas reproduz as amenidades e a polidez. É uma arte que

aparenta ser bela sem o ser na verdade. É uma arte cujo recurso à ilusão encobre sua

falsidade como tentativa de imitação e de identificação com a sensibilidade humana.

Logo, a tragédia lírica quando alcança sua forma mais complexa e plena na música de

Rameau, mostra-se para Rousseau apenas como o produto da falta de liberdade e

sensibilidade de uma época: “com toda a evidência, a língua e a música italiana

desempenham em Rousseau o papel de operadores de um mito onde a função é a de

opor a natureza ao artifício, a melodia à harmonia”180.

A resposta de Rousseau ao sistema estético utilizado pela tragédia lírica

aperfeiçoado e elevado ao nível de ciência pela teoria da harmonia de Rameau, se torna

uma das mais importantes problemáticas sobre a natureza da expressão musical da

história da teoria musical que, em última instância, responde direta e filosoficamente ao

século de Luís XIV. A música como produto e reflexo da cultura, tendo suas origens

entrelaçadas com a própria origem do estado social, torna-se a condição através da qual

é possível a dupla crítica de Rousseau em meados de um século que assiste tanto a

decadência de valores tradicionais, quanto a aspiração e o surgimento por novos valores

e idéias. Segundo Catherine Kintzler a oposição entre melodia e harmonia “é a primeira

ocorrência de uma longa série que ele examinará um pouco mais tarde no Ensaio sobre

a origem das línguas em torno desta vez de um núcleo filosófico opondo o mundo

físico-racional característico do pensamento clássico ao mundo “moral” do psiquismo

humano.”181

As oposições formadas por Rousseau entre melodia e harmonia; música

italiana, música francesa; necessidades físicas e necessidades morais; natureza física,

natureza psíquica; ser, aparência; verdade, falsidade; delimitam as fronteiras de duas

concepções de mundo conflitantes: o físico-racional, baseado no pensamento cartesiano,

com uma visão restrita, auto controlada e materialista da natureza; e o psíquico

179 FREITAS, Jacira de. “Considerações sobre o ‘Gosto’ em Rousseau”, In: Reflexos de Rousseau, p. 115. 180 POT, Oliver. “Introduction à Lettre sur la Musique Française”, O.C. V, p. CX. 181 KINTZLER, Catherine. “Introduction à Lettre sur la musique française”, In: ROUSSEAU. Essai sur l’Origine des Langues où il parlé de la Melodie et de l’Imitation Musicale, 1993, p. 131.

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sentimental, alternativa verdadeira, inconstante e livre com a qual Rousseau tenta

superar o modelo clássico. Para finalizar lembramos as palavras de John Scott que, por

sua vez, tem por referência Babbitt, Cranston e Kintzler: “Com a Carta e a disputa entre

Rousseau e Rameau que ela inicia, a batalha entre os dois pontos de vista marca o fim

da estética clássica e o início da era romântica.”182

182 SCOTT, John T. “Rousseau and Melodious Language of Freedom”. In: The Journal of Politics, Vol. 59, nº 3 (Aug., 1997), p. 813.

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Apêndice Carta sobre a música francesa Tradução e Notas

Nota Introdutória

Sem levar em consideração as intenções pessoais de Rousseau em querer

causar polêmica com sua Carta sobre a música francesa, o fato é que seu texto foi o

centro das atenções nos últimos meses da Querela dos Bufões, não só pela crítica à

música francesa em si mesma, mas pela divergência estética expressa contra a música

de Rameau. Se antes da Carta de Rousseau a querela se construía em torno da disputa

entre os estilos italiano e francês de ópera, após a publicação de seu texto a querela se

divide entre rousseauistas e ramistas: os partidários de uma música mais sensível, onde

o canto é o verdadeiro representante dos sentimentos humanos, dotando a música de

seus encantos melódicos; ou, os partidários do tradicional modo de composição francesa

aperfeiçoada pelos estudos harmônicos de Rameau, pautados pelo método e pela

concepção estética racionalista-cartesiana.

Influenciando cada vez mais opiniões, ajudada talvez pelo temperamento

arrogante do qual Rameau era acusado, as idéias musicais de Rousseau contidas na

Carta, refletem não apenas o desejo por mudanças na área estética, mas se insere em um

debate que mostra como pano de fundo o descontentamento por um regime político

autoritário que dita, inclusive, o gosto da nação.

Demonstrando conhecimento da literatura crítica destinada à ópera e das

teorias musicais mais significativas em sua época, a Carta de Rousseau traz ainda um

adicional que a valoriza como texto filosófico: pretendendo responder à altura a teoria

da harmonia de Rameau, com sua Carta Rousseau inicia a sistematização de seu

pensamento estético através de todas as implicações contidas em sua teoria da unidade

da melodia, que por sua vez se mostra coerente com as idéias expostas em seu Discurso

sobre as Ciências e as Artes, publicado pouco antes da Carta.

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Rousseau não depõem contra as artes. O aparente paradoxo entre suas idéias sobre a

moral e seu interesse pela música, é explicado no Prefácio ao Narciso: “A ciência

[assim como as artes], tomada de modo abstrato, merece nossa inteira admiração.”

Corrompidos pelo desejo de fama e riqueza, os homens usam as artes, no caso em

questão a música, em prol de seus interesses, tornando-a um produto das convenções.

Em sua Carta Rousseau faz um elogio ao verdadeiro sentido da música: o de servir de

meio de comunicação entre os sentimentos mais puros e intensos do coração do homem,

numa tentativa de resgatar suas paixões originais, como uma alternativa válida de fuga

da corrupção imposta pela vida em sociedade.

A idéia desta tradução surgiu por sugestão do Prof. José Oscar como

complemento à minha pesquisa referente à filosofia estética de Rousseau. Realizamos

em parceria uma tradução experimental que foi utilizada na disciplina de Estética,

oferecida pelo Prof. José Oscar no segundo semestre letivo de 2005, no Curso de

Graduação em Filosofia do IFCH- UNICAMP. Esta primeira versão da tradução da

Carta constou também como parte integrante do meu trabalho de Monografia II, a qual

foi submetida à banca em dezembro de 2005, mesma data em que foi publicada pela

Editora do IFCH/UNICAMP na Coleção Textos Didáticos nº 58.

Levando em conta as observações feitas pelos Profs. Dr. Roberto Romano

e Dr. Carlos Fiorini que fizeram parte da banca examinadora, aos quais devemos nossos

sinceros agradecimentos, preparei esta nova versão revisada como parte das minhas

atividades de pesquisa em nível de mestrado.

Esta tradução foi elaborada a partir do texto estabelecido por Olivier Pot,

em ROUSSEAU, J.-J. Écrits sur la musique, la langue et le thêatre. Oeuvres complètes,

v. 5, p. 289 – 328, Paris: Gallimard, 1995 (Bibliothéque de la Pléiade). As citações ao

texto original e às notas explicativas tomarão por base a referida edição e os

comentários de Catherine Kintzler da edição de 1993 da edição da GF Flammarion.

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As notas de tradução estão referidas por algarismos romanos e reunidas ao

final do texto. As notas originais de Rousseau são referidas por meio de asterisco e se

encontram no rodapé da página respectiva.

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CARTA SOBRE A MÚSICA FRANCESA

Sunt verba et voces, praetereaque, nihili.

PREFÁCIOii

Como a querela suscitada no ano passado na Ópera não levou senão a

injúrias, ditas de um lado com muito espírito e do outro com muita animosidadeiii ,

preferi não tomar partido algum, pois essa espécie de guerra não me convinha em

nenhum sentidoiv e eu bem sentia que o momento não era de dizer senão razõesv. Agora,

que os Bufõesvi foram despedidos, ou estão em vias de serem, e que não há mais assunto

para conspirações, eu acredito poder expor meu sentimento e o direi com minha habitual

franqueza, sem ofender com isso quem quer que seja. Me parece mesmo que sobre

semelhante assunto qualquer precaução seria ofensiva aos leitores, pois confesso que

teria uma forte má opinião de um povoviique viesse a dar às canções uma importância

ridícula, que faria mais caso de seus músicos que de seus filósofosviii e com o qual seria

necessário falar de música com mais circunspecção que os mais sérios assuntos de

moralix.

Esta Carta, com exceção de umas poucas linhas, está escrita há mais de

um ano e eu a libero para afastar do meu arquivo e dos meus olhos tudo o que diz

respeito ao assunto do qual ela trata, e que eu confesso ter amado com excessiva paixão.

Árbitros da música e da ópera, homens e mulheres da moda, despeço-me

de vós para sempre e me felicitarei todos os dias da minha vida por ter dominado a

tentação de vos importunar uma segunda vez com meus entretenimentosx. É tempo de

renunciar seriamente aos versos e à música e empregar o tempo disponível que pouco

me resta em ocupações mais úteis e mais satisfatórias, senão para o público, ao menos

por mim mesmoxi.

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CARTA SOBRE A MÚSICA FRANCESA

Lembrai-vos, Senhor, da história daquela criança da Silésia, da qual fala o

Sr. de Fontenellexii, que havia nascido com um dente de ouro? Todos os sábios da

Alemanha se esgotaram inicialmente em eruditas dissertações para explicar como

alguém poderia nascer com um dente de ouro: a última coisa que se percebeu foi

verificar o fato, e descobriu-se que o dente não era de ouro. Para evitar um

inconveniente semelhante, antes de falar da excelência de nossa música, seria, talvez,

adequado, certificar-se de sua existência e examinar, primeiramente, não se ela é de

ouro, mas se nós temos uma.xiii

Os alemães, os espanhóis e os ingleses pretenderam, durante muito tempo,

possuir uma música apropriada à sua língua: de fato, eles tiveram as óperas nacionais, as

quais admiravam com muita fidelidade, e estavam fortemente persuadidos que isso

ostentava a sua glória ao invés de abolir essas obras-primas insuportáveis a todos os

ouvidos, menos aos deles. Enfim, o prazer prevaleceu sobre a vaidade, ou ao menos,

eles fizeram melhor em querer sacrificar ao gosto e à razão os preconceitos que,

freqüentemente, tornam as nações ridículas pela própria honra que elas aí associam.xiv

Nós ainda temos na França esses sentimentos que eles tinham então. Mas

quem nos garantirá que por ter sido mais obstinados, nossa teimosia seja mais

fundamentada?xv Não seria mostrar, à propósito, para se bem julgar, colocar uma vez a

música francesa sob à verificação da razão e ver se ela sustenta a prova?xvi

Eu não tenho a intenção de aprofundar aqui este exame, essa não é a

função de uma carta, nem talvez a minha. Eu gostaria somente de tentar estabelecer

alguns princípios sobre os quais, aguardando que se encontre melhores, os mestres de

arte, ou antes, os filósofos, possam direcionar suas investigações: pois, dizia outrora um

sábio, cabe ao poeta fazer poesia e ao músico fazer música, mas não cabe senão ao

filósofo falar com proveito de um e de outro.xvii

Toda música não pode ser composta senão por essas três coisas: melodia

ou canto, harmonia ou acompanhamento, movimento ou ritmo.xviii

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Ainda que o canto tire sua principal característica do ritmo, pois como ele

nasce imediatamente da harmonia e sempre submete o acompanhamento ao seu

movimento, unirei esses dois elementos em um mesmo tema, em seguida falarei do

ritmo separadamente.xix

A harmonia, tendo seu princípio na natureza, é a mesma para todas as

nações, ou, se houver algumas diferenças, estas são introduzidas pelas da melodia.

Assim, é da melodia somente que se deve obter o caráter particular de uma música

nacional. Ainda mais que, sendo esse caráter dado principalmente pela língua, é o canto

propriamente dito que deve sofrer sua maior influência.xx

Pode-se conceber algumas línguas mais apropriadas à música que outras; e

pode-se conceber as que não o seriam de modo algum. Tal língua poderia ser composta

apenas de sons mistos, de sílabas mudas, surdas ou nasais, poucas vogais sonoras,

muitas consoantes e articulações, lhe faltando ainda outras considerações essenciais, das

quais eu tratarei no tópico sobre o compasso. Investiguemos, por curiosidade, o que

resultaria da música aplicada à tal língua.

Primeiramente, a ausência de brilho no som das vogais obrigaria a dá-lo

bem mais ao das notas e por ser a língua surda, a música seria esganiçada. Em segundo

lugar, a duração e a freqüência das consoantes forçaria a excluir muitas palavras e a não

tratar as restantes senão por entonações elementares, e a música seria insípida e

monótona. Pela mesma razão ainda, seu andamento seria lento e enfadonho e quando se

desejasse apressar um pouco o movimento, sua velocidade assemelhar-se-ia a desses

corpos rígidos e angulosos que rolam sobre o calçamento.xxi

Como tal música seria desprovida de qualquer melodia agradável, esforçar-

se ia para supri-la com belezas fictícias e pouco naturais; sobrecarregando-a de

modulações freqüentes e regulares, porém frias, sem elegância e sem expressão.

Inventar-se-ia os trêmulos, as cadênciasxxii, os portamentos e outros adornos postiços

que se esbanjariam no canto, tornando-o mais ridículo sem deixá-lo menos maçante. A

música, com toda essa desagradável ornamentação, ficaria lânguida e sem expressão, e

suas imagens, desprovidas de força e de energia, pintariam poucos objetos em muitas

notas, como estes escritos góticos com suas linhas repletas de traços e de letras

figuradas, não contém mais que duas ou três palavras, e que concentram muito pouco

sentido em um grande espaço.

A impossibilidade de inventar melodias agradáveis obrigaria os

compositores a dirigir toda sua atenção para a harmonia e, na falta de belezas reais,

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introduziriam ali belezas de convenção, que não teriam quase nenhum outro mérito que

a dificuldade vencida. Em vez de uma boa música, criariam uma música erudita. Para

suprir o canto, multiplicariam os acompanhamentos, custar-lhes ia menos colocar várias

partes ruins umas sobre as outras do que compor uma única que fosse boa. Para

diminuir a insipidez, aumentariam a confusão e acreditando fazer música, eles não

fariam senão barulho.

Um outro efeito que resultaria da falta da melodia, seria que os músicos

não teriam dela mais que uma falsa idéia, encontrariam antes uma melodia à sua

maneira: não teriam canto verdadeiro, não lhes custaria nada multiplicar as partes do

canto porque ousadamente nomeariam assim o que não poderia ser. Mesmo o baixo-

contínuo, ao uníssono do qual fariam à vontade recitar os baixos, exceto para cobrir

todo tipo de acompanhamento, do qual a pretensa melodia não teriam nenhuma relação

com a parte vocal. Sobretudo, onde eles veriam notas encontrariam canto, visto que, de

fato, seu canto não seria senão notas. Voces, praetereàque nihilxxiii .

Passemos agora ao ritmoxxiv, cuja percepção produz em grande parte a

beleza e a expressão do canto. O ritmo está para a melodia aproximadamente como a

sintaxe está para o discurso: a sintaxe é necessária para o encadeamento das palavras, é

ela que distingue as frases ao dar-lhes sentido e a ligação entre o todo. Qualquer música

da qual não se percebe o ritmo, assemelha-se, se o erro vem daquele que a executa, à

uma escrita cifrada, cuja chave é necessário encontrar para esclarecer seu sentido. Mas,

se, de fato, essa música não possui um ritmo perceptível, ela não é, então, mais que uma

coleção confusa de palavras tomadas ao acaso e escritas sem encadeamento, que o leitor

não encontra sentido algum, porque o autor ali não o colocou.

Já afirmei que toda música nacional extrai seu principal caráter da língua

que lhe é própria, e devo acrescentar que é principalmente a prosódia da línguaxxv que

constitui este caráter. Como a música vocal precedeu em muito a instrumental, esta

última sempre recebeu da outra sua maneira de entoar e seu ritmo, e os diversos ritmos

da música vocal só puderam nascer das diversas maneiras pelas quais é possível

escandir o discurso e dispor as sílabas breves e longas umas em relação às outras; o que

é muito evidente na música grega, cujos ritmos não eram mais que fórmulas de outros

tantos ritmos fornecidos por todos os arranjos das sílabas longas ou breves e dos pésxxvi

aos quais a língua e a poesia eram suscetíveis. De modo que, embora se possa muito

bem distinguir, no ritmo musical, o ritmo da prosódia, o ritmo do verso e o ritmo do

cantoxxvii, não se deve duvidar de que a música mais agradável ou, ao menos, a que

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possui melhor cadência, seja aquela onde os três ritmos confluem conjuntamente da

melhor maneira possível.

Após esses esclarecimentos, retorno à minha hipótese e suponho que essa

mesma língua da qual acabo de falar, tivesse uma prosódia ruim, pouco marcada,

inexata e imprecisa, que as sílabas longas e breves não apresentassem entre si relações

simples em duração e em número próprias para tornar o ritmo agradável, exato, regular;

que suas sílabas longas fossem mais ou menos longas umas que outras; as breves, mais

ou menos breves; que tivesse também sílabas nem breves nem longas, e que as

diferenças entre umas e outras fossem indeterminadas e incomensuráveis; é claro que a

música nacional sendo forçada a adotar em seu ritmo as irregularidades da prosódia, não

teria senão um ritmo muito vago, desigual e muito pouco perceptível, que o

recitativoxxviii , sobretudo, se ressentiria dessa irregularidade, que quase não se saberia

como fazer concordar nele os valores das notas e os das sílabas, que se seria obrigado a

mudar o compassoxxix a todo instante, e que não se poderia jamais pronunciar os versos

em um ritmo exato e cadenciado; que mesmo nas árias mensuradas todos os

movimentos seriam pouco naturais e sem precisão; que o mínimo de lentidão que se

juntasse a esse defeito, poria a perder inteiramente a idéia de igualdade de tempo no

espírito do cantor e do ouvinte; e que, enfim, o compasso não sendo mais perceptível,

nem seus retornos iguais, não estaria submetido senão ao capricho do músico, que

poderia a todo instante apressá-lo ou retardá-lo segundo sua vontade; de modo que não

seria mais possível em um concerto, dispensar alguém que o marcasse a todos, segundo

a fantasia ou a comodidade de uma única pessoa.

É assim que os atores contrairiam a tal ponto o hábito de dominar o

compasso, que os ouviríamos até mesmo alterá-lo de propósito nos trechos onde o

compositor tivesse tido sucesso em torná-lo perceptível. Marcar o compasso seria uma

falta contra a composição, e segui-lo, uma falta contra o gosto do canto; os defeitos

passariam por belezas, e as belezas por defeitos; vícios seriam estabelecidos como

regras e para fazer música ao gosto da nação, não precisaria senão ater-se com cuidado

àquilo que desagrada a todos os outros gostos.

Por isso, seja qual for a arte com que se procure dissipar os defeitos de tal

música, seria impossível que ela jamais agradasse a outros ouvidos que não os dos

naturais do país em que estiver em uso. À força de suportar as censuras sobre seu mau

gosto, à força de ouvir em uma língua mais favorável a verdadeira música, eles

procurariam aproximar dela a sua, e não fariam mais que retirar-lhe seu caráter e a

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concordância que ela teria com a língua pela qual tinha sido feita. Se desejassem

desnaturar seu canto, o deixariam rígido, barrocoxxx e quase impossível de se cantar. Se

se contentassem em orná-lo com outros acompanhamentos que não os que lhe são

próprios, não fariam mais que salientar sua trivialidade por um contraste inevitável.

Excluiriam de sua música a única beleza da qual ela seria suscetível, tirando de todas as

suas partes a uniformidade de caráter que lhe conferia unidade, e acostumando os

ouvidos a menosprezar o canto para ouvir apenas as partes instrumentaisxxxi chegariam,

por fim, a fazer das vozes apenas um acompanhamento da sinfonia.

Eis como a música de tal nação de dividiria em música vocal e música

instrumental, eis como, dando características diferentes à essas duas espécies de música,

faz-se delas um todo monstruoso. Os instrumentos desejariam seguir o compasso, e

como o canto não pode sofrer nenhum constrangimento, ouvir-se-ia freqüentemente nas

mesmas passagens os atores e a orquestra contrariando-se e estorvando-se mutuamente.

Essa incerteza e a mistura das duas características introduziriam, na maneira de

acompanhar, uma certa indiferença e uma negligência que se tornariam tão habituais

que os instrumentistas não poderiam, mesmo executando uma boa música, imprimir-lhe

força e energia. Executando-a à maneira da sua, eles a embotariam completamente,

tocando forte o que deveria ser docexxxii, e doce o que deveria ser forte, e não

conheceriam uma única nuance desses dois termos. Estas outras palavras, rinforzando,

dolce,* risoluto, con gusto, spiritoso, sostenuto, con brioxxxiii, não teriam nem mesmo

sinônimos em sua linguagem, e a palavra expressão não teria nenhum sentido.

Substituiriam, ao vigor do golpe de arco, não sei quantos ornamentozinhos frios e

monótonos. A orquestra, por mais numerosa que fosse, não faria efeito algum, ou

apenas um muito desagradável. Como a execução seria sempre fraca, e como os

instrumentistas preferirão tocar segundo a tradiçãoxxxiv a ir de acordo com o compasso,

não estariam jamais juntos; eles não conseguiriam extrair um som puro e afinado, nem

executar nada segundo seu caráter próprio, e os estrangeiros ficariam totalmente

surpresos que uma orquestra glorificada como a primeira do mundo estivesse à altura

apenas dos tablados de um botequim de subúrbioxxxv. É natural que esses músicos se

encolerizem com a música que teria colocado em evidência seu embaraço, e logo,

somando ao mau gosto a má vontade, juntariam a intenção premeditada à sua ridícula

execução, para o que bem poderiam ter confiado em sua falta de habilidade.

* Não há talvez quatro músicos da orquestra francesa que saibam a diferença entre piano e dolce, e seria muito inútil se a soubessem, pois quem dentre eles saberia expressá-la?

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Segundo uma outra suposição contrária à que acabo de fazer, eu poderia

deduzir facilmente todas as qualidades de uma verdadeira música, feita para emocionar,

para imitarxxxvi, para agradar, e para trazer ao coração as mais doces impressões da

harmonia e do canto, mas com isso nos afastaria demasiadamente de nosso assunto e

das idéias que nos são conhecidas, prefiro me restringir a algumas observações sobre a

música italiana, que possam nos ajudar a melhor julgar a nossa.xxxvii

Se se perguntar qual de todas as línguas deve ter uma melhor gramática, eu

responderia que é a do povo que raciocina melhor; e se perguntarem qual de todos os

povos deve ter uma melhor música, eu diria que é aquele cuja língua é mais apropriada

a isso.xxxviii É o que já estabeleci acima, e que terei oportunidade de confirmar na

continuação desta Carta. Ora, se há na Europa uma língua apropriada à música, é

certamente a italiana; pois essa língua é mais doce, sonora, harmoniosa e acentuada que

qualquer outra, e essas quatro qualidades são precisamente as mais convenientes ao

canto.

Ela é doce porque suas articulações são pouco complexas, porque o

encontro de consoantes nela é raro e sem aspereza, e porque, dado que um grande

número de sílabas é formado apenas por vogais, as freqüentes elisões tornam sua

pronúncia mais fluente; ela é sonora porque a maior parte das vogais é brilhante, porque

não possui ditongos compostos, tem poucas ou quase nenhuma vogal nasal, e porque as

articulações raras e fáceis distinguem melhor o som das sílabas, que se torna mais nítido

e mais cheio. Em relação à harmonia, que depende do número e da prosódia tanto

quanto dos sons, a vantagem da língua italiana é evidente neste ponto, pois é preciso

observar que o que torna uma língua harmoniosa e verdadeiramente pitorescaxxxix

depende menos da força real de seus termos do que da distância que existe entre o doce

e o forte nos sons que ela emprega, e da escolha que se pode fazer para os quadros que

se tem a pintar. Isto posto, que aqueles que pensam que o italiano é apenas a linguagem

da suavidade e do afeto, dêem-se ao trabalho de comparar entre si estas duas estrofes de

Tassoxl:

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Teneri sdegni e placide e tranquille

Repulse e cari viezzi e liete paci,

Sorrisi, parolette, e dolci stille

Di piano e sospir, tronchi e molli bacci:

Fuse tai cose tutte, e poscia unille,

Et al foco temprô de lente faci;

E ne formô quel si mirabil cinto

Di ch’ella aveva il bel fianco succinto

Chiama gl’abitator de l’ombre eterne

Il rauco suon de la tartarea tromba;

Treman le spaziose atre caverne,

E l’aer cieco a quel romor rimbomba;

Ne sì stridendo mai da le superne

Regioni del Cielo il folgor piomba,

Ne sì scossa giammai trema la terra

Quando i vapori in sen gravida serraxli.

E os que se desesperam de expressar em francês a doce harmonia da

primeira estrofe, que tentem exprimir a rouca dureza da segunda. Não é preciso, para

perceber isso, entender a língua, basta ter ouvidos e honestidade. De resto, observais

que essa dureza da última estrofe não é de modo algum surda, mas muito sonora, e que

ela só existe para o ouvido, não para a pronúncia, pois a língua não articula menos

facilmente os “r” multiplicados que fazem a aspereza desta estrofe do que os “l” que

deixam a primeira tão fluida. Ao contrário, toda vez que queremos dar dureza à

harmonia da nossa língua, somos forçados a amontoar consoantes de toda espécie que

formam articulações difíceis e rudes, o que atravanca o progresso do canto e constrange

freqüentemente a música a avançar com mais lentidão, justamente no momento em que

o sentido das palavras exigiria mais velocidade.xlii

Se quisesse me estender sobre este tópico, eu poderia, talvez, fazer-vos ver

ainda que as inversões da língua italiana são muito mais favoráveis à boa melodia que a

ordem didática da nossa, e que uma frase musical se desenvolve de uma maneira mais

agradável e mais interessante quando o sentido do discurso, longamente suspenso, se

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resolve com a cadência sobre o verbo, do que quando se desenvolve segundo o

compasso e com isso enfraquece ou satisfaz gradualmente o desejo do espírito, ao passo

que o do ouvido aumenta na proporção contrária até o final da frase. Eu vos provaria

ainda que a arte das suspensões e das palavras entrecortadas, que a feliz constituição da

língua torna tão familiar à música italiana, é inteiramente desconhecida na nossa, e que

não temos outros meios para suplementá-la exceto os silêncios que nunca são canto, e

que, nessas ocasiões, mostram antes a pobreza da música que os recursos do

compositor.

Restar-me-ia falar da acentuação, mas esse importante tópico exige uma

discussão tão profunda que é melhor deixá-la para uma mão mais hábil. Passo então às

coisas mais essenciais para o meu objetivo, tratando de examinar nossa música em si

mesma.

Os italianos afirmam que nossa melodia é monótona e não apropriada ao

canto, e todas as nações* imparciais confirmam unanimemente seu julgamento sobre

este ponto; de nossa parte, acusamos a música deles de ser excêntrica e barrocaxliii .

Prefiro acreditar que tanto uns quanto outros se enganam, a ser forçado a dizer que nos

países em que as ciências e todas as artes chegaram a um grau tão alto, somente a

música ainda está por nascer.

Os menos precavidos entre nós∗ contentam-se em dizer que a música

italiana e a francesa são ambas boas, cada uma em seu gênero, cada uma para a língua

que lhe é própriaxliv; mas, além do fato de que as outras nações não concordarem com

essa equivalência, permaneceria sempre a questão sobre qual das duas línguas pode

comportar o melhor gênero de música em si mesma; questão fortemente discutida na

França, mas que não o seria jamais em qualquer outro lugar; questão que não pode ser

decidida a não ser por um ouvido perfeitamente neutro, e que, por conseqüência, torna-

se cada dia mais difícil de resolver no único país em que ela é problemática. Eis aqui,

sobre este assunto, algumas experiências que cada um tem o poder de comprovar, e que

* Houve um tempo, disse Milorde Shaftesbury, em que o costume de falar francês colocou em moda entre nós a música francesa; bem cedo, porém, a música italiana, ao mostrar-nos a Natureza mais de perto, levou-nos a desgostar da outra e, fazendo-nos senti-la tão pesada, tão sem brilho e tão maçante quanto de fato ela é. ∗ Muitas pessoas condenam a total exclusão que os amantes da música dão sem hesitar à música francesa; esses conciliadores moderados não quereriam gostos exclusivos, como se o amor às boas coisas devesse fazer gostar das más.

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me parecem poder contribuir para essa solução, ao menos no que diz respeito à melodia,

à qual, sozinha, se reduz quase toda a disputa.

Tomei, nas duas músicas, árias igualmente estimadas, cada uma em seu

gênero, e, despojando as primeiras de seus portamentos e de suas eternas cadências, e as

outras das notas subentendidas que o compositor não se dá ao trabalho de escrever,

confiando na inteligência do cantor** , solfejei-as exatamente conforme a notação, sem

qualquer ornamento, e sem nada fornecer de mim mesmo nem ao sentido nem à ligação

da frase. Não vos direi qual foi em meu espírito o resultado dessa comparação, porque

tenho o direito de propor-vos minhas razões e não minha autoridade; dou-vos conta

somente dos meios que empreguei para me decidir, a fim de que, se os achardes bons,

possais empregá-los por vossa vez. Devo apenas advertir-vos que esta experiência exige

muito mais precauções do que pode parecer. A primeira, e a mais difícil de todas, é ser

honesto e imparcial na escolha e no julgamento. A segunda é que, para tentar este

exame é preciso ser igualmente versado nos dois estilos; de outro modo, aquele que for

o mais familiar se apresentaria a todo instante ao espírito, em prejuízo do outro; e esta

segunda condição não é de modo algum mais fácil que a primeira, pois, de todos os que

conhecem bem tanto uma quanto a outra música, nenhuma hesitação há sobre a escolha,

e pode-se ver, pela cômica algaravia desses que se metem a atacar a música italiana,

qual o conhecimento que tinham dela ou da arte em geral.

Devo acrescentar que é essencial seguir exatamente o ritmo; mas prevejo

que esta advertência, que seria supérflua em todos os outros países, será bem inútil neste

aqui, e basta esta única omissão para acarretar necessariamente a inaptidão do

julgamento.

Com todas estas precauções, o caráter de cada gênero não tarda a se

revelar, e é então bem difícil não revestir as frases com idéias que lhes convenham, e

não acrescentar, ao menos pelo espírito, os volteios e ornamentos que se consegue

recusar-lhes pelo canto. E tampouco devemos nos restringir a uma única experiência,

pois uma ária pode agradar mais que uma outra sem que isso determine a preferência

pelo gênero; e é só após um grande número de testes que se pode estabelecer um

** Fazer isso é dar toda a vantagem à música francesa, pois estas notas subentendidas na música italiana são tão essenciais à melodia quanto as que estão sobre o papel. Trata-se menos do que está escrito do que daquilo que se deve cantar, e esta maneira de notar deve passar apenas como uma espécie de abreviação, ao passo que as cadências e os portamentos do canto francês são, se se quiser, exigidos pelo gosto, mas não integram a melodia nem fazem parte de sua essência; são, para ela, uma espécie de maquiagem que cobre sua feiúra sem a destruir, e que só a torna mais ridícula aos ouvidos sensíveis.

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julgamento razoável. De resto, subtraindo-se o conhecimento das palavras, subtrai-se o

da parte mais importante da melodia, que é a expressão; e tudo o que se pode decidir por

esse caminho é se a modulação é boa e se o canto tem naturalidade e beleza. Tudo isso

nos mostra como é difícil tomar precauções suficientes contra os preconceitos, e como o

raciocínio nos é necessário para nos colocar em condição de julgar corretamente as

coisas do gosto.

Fiz outra experiência que exige menos precaução, e que vos parecerá,

talvez, mais decisiva. Dei a cantar aos italianos as mais belas árias de Lullyxlv e, aos

músicos franceses, as árias de Leoxlvi e de Pergolesixlvii , e observei que, embora estes

últimos estivessem muito distantes de apreender o verdadeiro gosto desses fragmentos,

sentiam, no entanto, a melodia, e dela tiravam, à sua maneira, frases musicais cantantes,

agradáveis e bem cadenciadas. Mas os italianos, solfejando com muita exatidão nossas

árias mais comoventes, não puderam jamais identificar nelas nem as frases nem o canto;

essa não era para eles uma música com sentido, mas apenas seqüências de notas

dispostas sem critério e como que por acaso; eles as cantavam precisamente como vós

leríeis palavras árabes escritas em caracteres franceses*.

Terceira experiênciaxlviii . Vi em Veneza um armênio, homem de espírito,

que jamais havia ouvido música, e diante do qual se executou, em um mesmo concerto,

um monólogo francês que começa com este verso:

Temple sacré, séjour tranquillexlix

E uma ária de Galuppi que começa com este aqui:

Voi che languite senza speranzal

Tanto uma quanto a outra foram cantadas – mediocremente quanto ao

francês, e mal quanto ao italiano –, por um homem acostumado somente com a música

francesa, e na época, grande entusiasta da música do Sr. Rameauli. Eu observava no

armênio, durante todo o canto francês, mais surpresa que prazer; mas todo mundo

constatou, desde os primeiros compassos da ária italiana, que seu rosto e seus olhos se

suavizaram: ele estava encantado, ele entregava sua alma às impressões da música, e

embora entendesse pouco a língua, os simples sons lhe causavam um visível

* Nossos músicos pretendem extrair uma grande vantagem desta diferença: “Nós executamos a música italiana”, dizem eles com sua costumeira altivez, “e os italianos não são capazes de executar a nossa; portanto nossa música vale mais que a deles”. Eles não vêem que deveriam tirar uma conseqüência completamente contrária e dizer “portanto os italianos possuem uma melodia e nós não.”

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arrebatamento. Desde aquele momento não se pôde mais fazê-lo ouvir nenhuma ária

francesa.

Mas sem procurar exemplos em outros lugares, não temos mesmo entre

nós, várias pessoas que, não conhecendo senão nossa ópera, julgavam de boa fé não ter

qualquer gosto pelo canto, é só perceberam seu erro graças aos italianos? É

precisamente porque só amam a verdadeira música que acreditam não amar música

alguma.

Confesso que tantos fatos tornaram-me duvidosa a existência de nossa

melodia, e me fizeram suspeitar que ela bem poderia não passar de uma espécie de

cantochão modulado, que nada tem de agradável em si mesmo, que não agrada senão

com o auxilio de alguns ornamentos arbitrários, e somente a aqueles que estão

convencidos de que os acham belos. Assim, nossa música é quase insuportável aos

nossos próprios ouvidos, quando é executada por vozes medíocres desprovidas de arte

necessária para valorizá-la. São precisos os Fel e os Jeliottelii para cantar a música

francesa, mas toda voz é boa para a italiana, porque as belezas do canto italiano estão na

própria música, ao passo que as do canto francês, se é que ele as possui, estão apenas na

arte do cantor*.

Três coisas parecem-me concorrer para a perfeição da melodia italiana: a

primeira é a doçura da língua, que, ao tornar fáceis todas as inflexões, deixa ao gosto do

músico a liberdade para fazer delas uma escolha mais refinada, de variar mais as

combinações e de dar a cada ator uma forma de canto particular, da mesma maneira que

cada homem tem o gesto e o tom que lhe são próprios e que o distinguem de um outro

homem.

A segunda é a audácia das modulações, que, embora menos servilmente

preparadas que as nossas, tornam-se mais agradáveis ao se fazerem mais perceptíveis, e,

sem comunicar dureza ao canto, juntam uma viva energia à expressão. É por meio dela

que o compositor, passando bruscamente de um tom ou de um modo a outro, e

* De resto, é um erro acreditar que em geral os cantores italianos possuam menos voz que os franceses. É preciso, ao contrário, que eles tenham o timbre mais forte e mais harmonioso para poder se fazer ouvir nos imensos teatros da Itália, sem deixar de controlar os sons, como exige a música italiana. O canto francês exige todo o esforço dos pulmões, toda a extensão da voz: “Mais forte – nos dizem nossos mestres – avolumai os sons, abri a boca, dai tudo de vossa voz.” “Mais suavidade – dizem os mestres italianos – não forceis a voz, cantai sem esforço, tornai vossos sons doces, flexíveis e fluentes, reservai o brilho para esses momentos raros e passageiros em que é necessário surpreender e dilacerar. Ora, parece-me que, dada a necessidade de se fazer ouvir, aquele que não precisa gritar é o que deve ter mais voz..

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suprimindo quando é preciso as transições intermediárias e escolásticas, exprime as

reticências, as interrupções, os discursos entrecortados que são a linguagem das paixões

impetuosas, que o efervescente Metastásio empregou tão freqüentemente, que os

Porpora, os Galuppi, os Cocchi, os Perez, os Terradegliasliii souberam empregar com

sucesso, e que nossos poetas líricos conhecem tão pouco quanto nossos compositores.

A terceira vantagem – e aquela que dá à melodia seu maior efeito – é a

extrema precisão do ritmo que se faz sentir tanto nos movimentos mais lentos como nos

mais vivos; precisão que torna o canto animado e interessante, os acompanhamentos

vivos e cadenciados, que multiplica realmente os cantos fazendo de uma mesma

combinação de sons tantas melodias diferentes quantas são as maneiras de escandi-las;

que traz ao coração todos os sentimentos, e ao espírito todos os quadros; que dá ao

compositor o meio de pôr em música todas os tipos imagináveis de falas, de várias das

quais não temos sequer idéia*liv , e que torna todos os andamentos adequados a exprimir

todos os caracteres**lv , ou um único andamento apto a contrastar e mudar de caráter à

vontade do compositor.

Eis, parece-me, as fontes de onde o canto italiano tira seus encantos e sua

energia; ao que se pode ajuntar uma nova e mais forte prova da vantagem de sua

melodia, que é o fato de não exigir tanto como a nossa essas freqüentes inversões de

harmonia, que dão ao baixo-contínuo a verdadeira linha melódica de uma voz superior.

Aqueles que encontram tão grandes belezas na melodia francesa, bem deveriam nos

dizer a qual destas coisas ela é devedora, ou mostrar-nos as vantagens que ela possui

para supri-las.

Quando se começa a conhecer a melodia italiana, não se encontra nela

inicialmente nada que não seja a graça, e acredita-se que ela é apropriada apenas à

expressão de sentimentos agradáveis; mas basta estudar um pouco seu caráter

comovente e trágico para logo se surpreender com a força que lhe empresta a habilidade

dos compositores nas grandes peças de música. É com o auxílio dessas sábias

* Para não sair do gênero cômico, o único conhecido em Paris, vejam as árias, Quando sciolto avrò il contratto, etc. Io ò um vespajo, etc. O questo o quello t’ai a risolvere, etc. A un gusto da stordire, etc. Stizzoso mio, stizzoso, etc. Io sono una Donzella, etc. Quanti maestri, quanti dottori, etc. I Sbirri già lo aspettano, etc. Ma dunque il testamento, etc. Senti me, se brami stare, etc. todos caracteres de árias dos quais a música francesa não abrange nem sequer os primeiros elementos, e dos quais ela não é capaz de exprimir uma única palavra. ** Limito-me a citar um único exemplo, porém surpreendente: é a ária Se pur d’un infelice, etc. de Fausse Suivante; ária muito comovente sobre um movimento muito vivo, à qual basta uma voz para cantá-la, uma orquestra para acompanhá-la, ouvidos para a ouvir, e a segunda parte que não se deveria suprimir.

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modulações, dessa harmonia simples e pura, desses acompanhamentos vivos e

brilhantes, que esses cantos divinos dilaceram ou encantam a alma, põem o espectador

fora de si, e lhe arrancam, em seus transportes, os gritos com os quais jamais nossas

tranqüilas óperas foram honradas.

Como consegue o músico produzir esses grandes efeitos? Seria à força de

contrastar os movimentos, de multiplicar os acordes, as notas, as partes? À força de

empilhar planos sobre planos, instrumentos sobre instrumentos? Todo esse tumulto, que

não passa de um mau suplemento ao qual falta o gênio, sufocaria o canto, longe de

animá-lo, e destruiria seu interesse ao dividir a atenção. Seja qual for a harmonia que

pudessem produzir conjuntamente várias partes, todas bem melódicas, o efeito desses

belos cantos desapareceria tão logo se fizessem ouvir simultaneamente, restando apenas

o efeito de uma seqüência de acordes, que, o que quer que se diga, é sempre frio quando

a melodia não os anima, de tal modo que, quanto mais se amontoam

despropositadamente os cantos, menos agradável e melodiosa será a música, porque é

impossível ao ouvido entregar-se ao mesmo tempo a várias melodias, e, visto que uma

apaga a impressão da outra, todo o conjunto só resulta em confusão e barulho. Para que

uma música se torne interessante, para que ela leve à alma os sentimentos que nela se

quer excitar, é preciso que todas as partes concorram para fortalecer a expressão do

tema; que a harmonia não sirva senão para torná-la mais enérgica; que o

acompanhamento a embeleze sem a encobrir nem desfigurar; que o baixo, por uma

marcha uniforme e simples, guie de certa forma aquele que canta e aquele que ouve,

sem que nem um nem outro disso se apercebam. Em duas palavras: é preciso que o

conjunto não leve ao mesmo tempo mais que uma melodia ao ouvido e mais que uma

idéia ao espírito.

Essa unidade da melodia parece-me uma regra indispensável e não menos

importante em música que a unidade de ação em uma tragédia; pois ela está fundada

sobre o mesmo princípio e dirigida ao mesmo objetivo. Assim, todos os bons

compositores italianos conformam-se a ela com um cuidado que degenera, algumas

vezes, em afetação; e por pouco que se reflita, sente-se logo que é dela que sua música

tira seu principal efeito. É nessa grande regra que se deve buscar a causa dos freqüentes

acompanhamentos ao uníssono observados na música italiana, que, fortalecendo a idéia

do canto, deixam ao mesmo tempo seus sons mais suaves, mais doces e menos

fatigantes para a voz. Tais uníssonos não são praticáveis em nossa música, a não ser em

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algumas árias características escolhidas e voltadas expressamente para isso; jamais uma

ária sentimental francesa seria suportável acompanhada dessa maneira, porque como a

música vocal e a instrumental possuem entre nós características diferentes, não se

poderia, sem pecar contra a melodia e o gosto, aplicar a uma os mesmos contornos que

convêm à outra, sem contar que, como o ritmo é sempre vago e indeterminado,

sobretudo nas árias lentas, os instrumentos e a voz não poderiam jamais pôr-se de

acordo, e não caminhariam suficientemente coesos para produzir em conjunto um efeito

agradável. Uma beleza adicional que resulta desses uníssonos é que se dá uma

expressão mais sensível à melodia, ora reforçando subitamente todos os instrumentos

em uma passagem, ora os amenizando, ora dando-lhes um traço enérgico e destacado

que a voz não teria podido fazer, e que o ouvinte, habilidosamente enganado, não deixa

de lhe atribuir quando a orquestra sabe realizar isso de forma adequada. Disso nasce,

ainda, aquela perfeita correspondência da orquestra e do canto que faz com que todos os

traços que se admiram em uma não sejam mais que desenvolvimentos da outra, de sorte

que é sempre na parte vocal que se deve buscar a fonte de todas as belezas do

acompanhamento. Esse acompanhamento está tão bem unido ao canto, e tão exatamente

relacionado às palavras, que parece freqüentemente determinar a atuação corporal e

ditar ao ator o gesto que deve fazer*lvi , e aquele que não conseguiria desempenhar o

papel apenas com as palavras, o desempenhará perfeitamente com a música, porque esta

realiza bem sua função de intérprete.

De resto, os acompanhamentos italianos estão muito longe de seguirem

sempre em uníssono com a voz. Há dois casos bastante freqüentes em que o compositor

os separa: um, quando a voz deslizando com leveza sobre os acordes instrumentais atrai

a atenção o suficiente para evitar que o acompanhamento possa dividi-la, e mesmo

assim, dá-se tanta simplicidade a esse acompanhamento que o ouvido, afetado somente

por acordes agradáveis, não percebe nenhuma melodia que pudesse distraí-lo. O caso

seguinte pede um pouco mais de cuidado para ser compreendido.

“Quando os compositores conhecem sua arte”, diz o autor da Carta sobre

os surdos e os mudoslvii , “as partes do acompanhamento contribuem ou para fortalecer a

expressão da parte do canto, ou para acrescentar novas idéias exigidas pelo assunto, e

* Exemplos freqüentes disso são encontrados nos Intermezzi que nos foram oferecidos este ano, entre outros na ária A un gusto da stordire, de O Maestro de Música; na ária Son Padrone, de La Femme Orgueilleuse, nas árias vi sto ben, de Tracollo, e Tu non pensi no signora, de la Bohemienne, e em quase todas as que exigem atuação corporal.

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que a parte do canto não seria capaz de prover”. Esta passagem me parece encerrar um

preceito muito útil, e eis como penso que se deve entendê-la.

Se o canto é tal que exige algum acréscimo, ou como diziam nossos

antigos compositores, algumas diminuições* que se juntam à expressão ou ao agrado

sem destruir a unidade de melodia, de tal modo que os ouvidos que talvez censurassem

esses acréscimos se fossem feitos pela voz, os aprovam no acompanhamento e são

docemente afetados por eles, sem deixarem com isso de estar atentos ao canto; então, o

compositor habilidoso, manejando-os adequadamente e empregando-os com gosto,

embelezará seu tema e o tornará mais expressivo sem prejudicar-lhe a unidade; e ainda

que o acompanhamento não seja exatamente semelhante à parte cantada, um e outro

constituirão, no entanto, um único canto e uma única melodia. Além disso, se o sentido

das palavras comporta uma idéia secundárialviii que o canto não pode transmitir, o

compositor a encaixará nos momentos em que a voz silencia ou sustenta uma nota, de

modo a poder apresentá-la ao ouvinte, sem desviá-lo da do canto. A vantagem seria

ainda maior se essa idéia secundária pudesse ser apresentada por um acompanhamento

contido e ininterrupto, que fosse mais um leve murmúrio que um verdadeiro canto,

como seria o rumor de um rio ou um gorjeio dos pássaros; pois então o compositor

poderia separar completamente o canto do acompanhamento, e, deixando a cargo

apenas deste último a apresentação da idéia secundária, disporia seu canto de maneira a

deixar freqüentemente claros à orquestra, tomando cuidado para que a orquestra seja

sempre dominada pela parte cantada, o que depende ainda mais da arte do compositor

que da execução dos instrumentos; mas isto exige uma experiência consumada para

evitar a duplicidade da melodia.

Eis tudo o que a regra da unidade pode conceder ao gosto do músico, para

enfeitar o canto ou torná-lo mais expressivo, seja embelezando o tema principal, seja

acrescentando-lhe um outro que lhe fique submetido. Mas fazer cantar à parte os

violinos de um lado, de outro as flautas, de outro os fagotes, cada um com uma linha

particular e quase sem relação entre elas, e chamar todo este caos de música, é insultar

igualmente o ouvido e o julgamento dos ouvintes.

Uma outra coisa, não menos contrária que a multiplicação das partes à

regra que acabo de estabelecer, é o abuso, ou antes, o uso de fugas, imitações, linhas

melódicas duplas, e outras belezas arbitrárias e de pura convenção que não têm quase * O verbete ‘Diminuição’ poderá ser encontrado no quarto volume da Enciclopédia.

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outro mérito além de vencer uma dada dificuldade, e que foram todas inventadas no

nascimento da arte para fazer brilhar a erudição, na expectativa de que se tratasse de

gênio. Não digo que seja completamente impossível conservar a unidade da melodia em

uma fuga, conduzindo habilmente a atenção do ouvinte de uma parte à outra à medida

que o sujeito as percorre; mas este é um trabalho tão penoso que quase ninguém tem

êxito, e tão ingrato que o sucesso dificilmente poderá compensar fadiga de tal labuta.

Tudo isso, ao resultar apenas em barulho, tal como a maior parte de nossos coros tão

admirados*lix , é igualmente indigno de ocupar a pena de um homem de gênio e a

atenção de um homem de gosto. Quanto às contrafugas, fugas duplas, fugas invertidas,

baixos obrigados, e outras áridas tolices que o ouvido não suporta nem a razão justifica,

são evidentemente resquícios de barbárie e de mau gosto que, como os portais de nossas

igrejas góticas, só subsistem para a vergonha dos que tiveram a paciência de construí-

loslx.

Houve um tempo em que a Itália era bárbara, e mesmo após o

renascimento de todas as outras artes que a Europa lhe deve, a música, mais tardia, não

atingiu facilmente aquela pureza de gosto que se vê lá brilhar atualmente, e não se pode

dar uma idéia menos favorável do que ela era antes do que observando que, durante

muito tempo, só houve uma mesma música na França e na Itália**lxi , e que os

compositores dos dois países comunicavam-se familiarmente entre si, mas não sem que

já se pudesse observar entre os nossos o gérmen daquela inveja que é inseparável da

inferioridade. O próprio Lully, alarmado com a chegada de Corelli, apressou-se a

expulsá-lo da França; o que não lhe foi difícil por ser Corelli um homem de maior

grandeza e, por conseguinte, menos cortesão. Nesses tempos em que a música estava

ainda nascendo, ela apresentava na Itália essa ênfase ridícula na ciência harmônica,

essas pretensões teóricas pedantes que ela ciosamente conservou entre nós e pelas quais

* Os próprios italianos não estão completamente recobrados desse preconceito bárbaro. Eles ainda se vangloriam de ter em suas igrejas música ruidosa; executam freqüentemente missas e motetos a quatro coros, cada um com um plano diferente; mas os grandes mestres apenas riem de toda essa confusão. Lembro-me que Terradeglias, ao falar-me de vários motetos de sua autoria, nos quais empregou coros elaborados com um grande cuidado, estava envergonhado de ter composto tantos, e punha a culpa disso em sua juventude: antigamente, dizia ele, eu gostava de fazer barulho; agora trato de fazer música. ** O Abbé Du Bos dá-se um grande trabalho para atribuir aos Países Baixos a honra pela renovação da música, e poderíamos concordar se déssemos o nome de música a um preenchimento contínuo de acordes; mas se a harmonia não é mais que a base comum, e se apenas a melodia constitui o caráter, a música moderna não somente nasceu na Itália mas há algumas indicações de que, em todas as nossas línguas vivas, a música italiana é a única que pode realmente existir. Nos tempos de Orlando e de Goudimel produzia-se harmonia e sons, e Lully juntou a isso um pouco de cadência; Corelli, Buononcini, Vinci e Pergolesi são os primeiros que teriam feito música.

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se distingue hoje essa música metódica, compassada, mas sem gênio, sem invenção e

sem gosto, que chamam, em Paris, música escrita por excelência, e que, no máximo, é

boa, com efeito, apenas para escrever, jamais para executarlxii .

Mesmo depois de os italianos terem tornado a harmonia mais pura, mais

simples, e dedicado todos os seus cuidados ao aperfeiçoamento da melodia, não nego

que não tenham ainda restado entre eles alguns leves traços de fugas e de sobreposições

góticas de planos, e, algumas vezes, de melodias duplas ou triplas. Eu poderia apontar

vários exemplos disso nos intermezzi que conhecemos; entre outros, o mau quarteto ao

final de Femme orgueilleuselxiii . Mas, além do fato de que essas coisas provêm do

caráter estabelecido, de que nada de semelhante se encontra nas tragédias, e de que não

é mais justo julgar a ópera italiana por essas farsas que julgar nosso teatro francês pelo

Impromptu de Campagne, ou Baron de la Crasselxiv, é preciso também fazer justiça à

arte com a qual os compositores freqüentemente evitaram, nesses intermezzi, as

armadilhas que lhes foram preparadas pelos poetas, e tornaram em proveito da regra as

situações que pareciam forçá-los a infringi-la.

De todas as partes da música, a mais difícil de tratar sem abandonar a

unidade de melodia é o dueto, e esse tópico merece que nos detenhamos um pouco

sobre ele. O autor da Carta sobre Omphale já observou que os duetos não fazem parte

da natureza, pois nada é menos natural que ver duas pessoas falarem-se

simultaneamente durante um certo tempo, seja para dizer a mesma coisa, seja para se

contradizer, sem jamais se ouvirem ou se responder. E ainda que se possa admitir essa

suposição em certos casos, é certo que isso jamais ocorreria na tragédia, onde essa

indecência não convém nem à dignidade das personagens que lá se faz falar, nem à

educação que se supõe que tenham. Ora, o melhor meio de evitar esse absurdo é tratar o

mais possível o dueto como se fosse um diálogo; e esse primeiro cuidado cabe ao poeta.

O que cabe ao compositor é encontrar uma melodia adequada ao assunto, e distribuí-la

de tal modo que, falando cada um dos interlocutores alternadamente, toda a seqüência

do diálogo não forme senão uma única melodia, que, sem mudar de assunto, ou ao

menos sem alterar o movimento, passe de uma parte a outra em seu progresso, sem

deixar de ser uma e sem se sobrepor. Quando as duas partes são cantadas juntas, o que

se deve fazer raramente e por pouco tempo, é preciso encontrar uma melodia suscetível

de uma marcha por terças ou sextas, na qual a segunda parte produza seu efeito sem

perturbar a audição da primeira. É preciso poupar a dureza das dissonâncias, os sons

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penetrantes e reforçados, o fortíssimo da orquestra para os momentos de desordem e de

transporte, em que os atores, parecendo esquecer-se de si mesmos, levam seu

desregramento para dentro da alma de todo espectador sensível, e o fazem experimentar

o poder da harmonia sobriamente manejada. Mas esses instantes devem ser raros e

conduzidos com arte. É preciso já ter disposto, por uma música doce e afetuosa, o

ouvido e o coração à emoção, para que um e outro se prestem a essas comoções

violentas, e é preciso que passem com a rapidez que convém a nossa fraqueza, pois

quando a agitação é muito forte, ela não poderia durar, e o que está fora da Natureza não

nos toca.

Ao dizer o que devem ser os duetos, digo precisamente o que eles são nas

óperas italianas. Se alguém foi capaz de ouvir em um teatro da Itália um dueto trágico

cantado por dois bons atores, e acompanhado por uma verdadeira orquestra, sem se

enternecer; se foi capaz de assistir com olhos secos ao adeus de Mandane e Arbacelxv,

eu o considero digno de chorar diante do de Lybie e Epaphuslxvi.

Mas, sem insistir sobre os duetos trágicos, gênero de música do qual nem

sequer se tem idéia em Paris, posso vos citar um dueto cômico conhecido de todo

mundo, e eu o citarei ousadamente como um modelo de canto, de unidade de melodia,

de diálogo e de gosto, ao qual, segundo vejo, nada faltará, se for bem executado, além

de ouvintes que saibam ouvi-lo: é o dueto do primeiro ato da Serva padronalxvii, “Lo

conosco a quegl’occhieti...” Reconheço que poucos músicos franceses estão em

condições de sentir suas belezas; e direi de bom grado de Pergolese o que Cícero dizia

de Homero, que ter prazer em sua leitura já é ter feito muito progresso na arte.

Espero, Senhor, que perdoareis a extensão que dedico a este tópico em

favor de sua novidade e da importância de seu assunto. Julguei necessário estender-me

um pouco sobre essa regra tão essencial da unidade da melodia; regra da qual nenhum

teórico, que eu saiba, falou até hoje; que só os compositores italianos sentiram e

praticaram, sem suspeitar, talvez, de sua existência; e da qual dependem a doçura do

canto, a força da expressão, e quase todo o encanto da boa música. Antes de abandonar

este assunto, resta-me mostrar-vos que dele resultam novas vantagens para a própria

harmonia, às custas da qual eu parecia atribuir todas as vantagens à melodia; e que a

expressão do canto dá lugar à dos acordes, ao forçar o compositor a manejá-los.

Recordareis, Senhor, ter ouvido algumas vezes, nos intermezzi que nos

foram apresentados este ano, o filho do empresário italiano, uma criança de no máximo

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dez anos, acompanhar algumas vezes na Óperalxviii . Ficamos impressionados, desde o

primeiro dia, com o efeito de seus pequenos dedos acompanhando ao cravo, e todo o

público percebeu, por seu toque preciso e brilhante, que não se tratava de um

acompanhamento ordinário. Logo procurei as razões dessa diferença, pois não duvidava

que o Senhor Nobletlxix fosse um bom instrumentista e que acompanhasse de forma

exata; mas, ao observar as mãos daquele jovem, qual não foi minha surpresa ao ver que

ele quase nunca preenchia os acordes, que suprimia muitos sons, freqüentemente não

empregava mais de dois dedos, dos quais um tocava quase sempre a oitava do baixo!

Quê! dizia a mim mesmo, a harmonia completa faz menos efeito que a harmonia

mutilada; e nossos acompanhamentos, ao tornarem todos os acordes completos, não

produzem senão um ruído confuso, ao passo que este, com menos sons, produz mais

harmonia, ou, pelo menos, torna seu acompanhamento mais sensível e mais agradável.

Este foi, para mim, um problema inquietante, e compreendi melhor toda sua

importância quando, após outras observações, vi que os italianos acompanhavam todos

da mesma maneira que o pequeno Bambin, e que, por conseguinte, a parcimônia de seu

acompanhamento devia provir do mesmo princípio que a de suas partituras.

Eu compreendia bem que, como o baixo é o fundamento de toda a

harmonia, ele deve sempre dominar o restante; e que, quando as outras partes o sufocam

ou o encobrem, resulta uma confusão que pode tornar a harmonia pouco definida; e eu

explicava desse modo por que os italianos, tão econômicos em sua mão direita no

acompanhamento, dobram ordinariamente com a esquerda a oitava do baixo; por que

colocam tantos contrabaixos em suas orquestras, e por que fazem tão freqüentemente

marchar as quintas com o baixo*, em vez de lhes dar uma outra parte, como os franceses

sempre fazem. Mas isto, que podia explicar a nitidez dos acordes, não explicava sua

energia, e logo percebi que devia haver algum princípio mais oculto e mais sutil da

expressão que eu encontrava na simplicidade da harmonia italiana, enquanto julgava a

nossa tão afetada, tão fria e tão inerte.

Recordei-me então de ter lido em alguma obra do Senhor Rameau que

cada consonância tem seu caráter particularlxx; isto é, uma maneira de afetar a alma que

lhe é própria; que o efeito da terça não é absolutamente o mesmo que o da quinta, nem o

* Pode-se observar na orquestra de nossa Ópera que, na música italiana, as violas não tocam jamais sua parte quando ela está à oitava do baixo; talvez nem se tenham dado ao trabalho de copiá-las em tais casos. Será que os condutores da orquestra ignoram que essa falta de ligação entre o baixo e a voz superior torna a harmonia demasiado seca?

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da quarta o mesmo da sexta. Do mesmo modo, as terças e sextas menores devem

produzir afecções diferentes das produzidas pelas terças e sextas maiores; e uma vez

admitidos esses fatos, segue-se com muita evidência que o mesmo ocorre no caso das

dissonâncias e de todos os intervalos possíveis. Uma experiência que a razão confirma,

pois todas as vezes que as relações são diferentes, a impressão não poderia ser a mesma.

Ora, dizia a mim mesmo, raciocinando com base nessa suposição, vejo

claramente que duas consonâncias acrescentadas uma à outra de maneira indevida,

ainda que segundo as regras dos acordes, poderiam, embora aumentando a harmonia,

debilitar mutuamente seus efeitos, combatê-lo ou dividi-lo. Se tudo que me é necessário

para a expressão de que preciso é o efeito de uma quinta, arrisco-me a enfraquecer essa

expressão pelo acréscimo de um terceiro som que, dividindo essa quinta em dois outros

intervalos, modificará necessariamente seu efeito pelo das duas terças nas quais eu o

resolvi; e essas próprias terças, embora o todo produza uma boa harmonia, sendo de

espécies diferentes, podem ainda prejudicar mutuamente a expressão uma da outra. Do

mesmo modo, se a impressão simultânea da quinta e das duas terças me fosse

necessária, eu enfraqueceria e alteraria indevidamente essa impressão ao retirar um dos

três sons que formam o acorde. Esse raciocínio se torna ainda mais sensato quando

aplicado à dissonância. Suponhamos que eu tenha necessidade de toda a dureza do

trítono, ou de toda a insipidez da falsa quinta – oposição, para dizer en passant, que

prova como as diversas inversões de um acorde podem mudar seu efeito – se, em tal

circunstância, em vez de levar ao ouvido apenas os dois sons individuais que formam a

dissonância, eu decido preencher o acorde com todos aqueles que lhe convêm, e junte

então ao trítono a segunda e a sexta, e à falsa quinta a sexta e a terçalxxi, isto é, ao

introduzir em cada um desses acordes uma nova dissonância, eu introduzo ao mesmo

tempo três consonânciaslxxii que devem necessariamente temperar e enfraquecer seu

efeito, tornando um desses acordes menos insípido e o outro menos duro. É, portanto,

um princípio certo e fundado na natureza que toda a música em que a harmonia é

escrupulosamente preenchida, todo acompanhamento em que todos os acordes estão

completos, devem fazer muito ruído, mas ter muito pouca expressão; o que é

precisamente o caráter da música francesa. É verdade que, ao manejar os acordes e as

partes, a escolha se torna difícil, e é necessário muita experiência e gosto para fazê-lo

sempre de forma apropriada; mas se há uma regra para ajudar o compositor a conduzir-

se bem em tal ocasião, é certamente a da unidade da melodia que procurei estabelecer, o

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que se relaciona ao caráter da música italiana e explica a doçura do canto e a força de

expressão que nela reinam.

Disto tudo segue-se que, após haver bem estudado as regras elementares da

harmonia, o compositor não deve se apressar a prodigalizá-las irrefletidamente, nem

acreditar-se em condições de compor só porque sabe preencher os acordes, mas deve,

antes de pôr mãos à obra, aplicar-se ao estudo bem mais longo e mais difícil das

diversas impressões que as consonâncias, as dissonâncias e todos os acordes produzem

nos ouvidos sensíveis; e dizer freqüentemente a si mesmo que a grande arte do

compositor consiste em saber distinguir, em cada caso, não menos os sons que se deve

suprimir do que os que se deve usar. É estudando e folheando sem cessar as obras-

primas da Itália que aprenderá a fazer essa delicada escolha, se a natureza lhe tiver dado

suficiente gênio e gosto para sentir essa necessidade; pois as dificuldades da arte não se

deixam perceber senão pelos que são talhados para vencê-las, e estes não se apressarão

a considerar com desprezo as pautas vazias de uma partitura, mas, vendo a facilidade

com que um estudante poderia tê-las preenchido, suspeitarão e procurarão a razão dessa

simplicidade enganosa, tanto mais admirável porque oculta prodígios sob uma fingida

negligência, e porque l’arte che tutto fà, nulla si scuoprelxxiii .

Eis, parece-me, a causa dos surpreendentes efeitos produzidos pela

harmonia da música italiana, embora esta seja muito menos carregada que a nossa, que

produz tão poucos. O que não significa que a harmonia não deva jamais ser preenchida,

mas que é preciso preenchê-la com discernimento e escolha; tampouco quer dizer que,

para essa escolha, o compositor seja obrigado a fazer todos esses raciocínios, mas que

deve sentir seus resultados. Cabe a ele ser dotado do gênio e do gosto para descobrir o

que faz efeito; cabe ao teórico buscar as causas e dizer por que essas são as coisas que

fazem efeito.

Se lançardes os olhos sobre nossas modernas composições, sobretudo se as

escutardes, bem cedo reconhecereis que nossos músicos compreenderam tudo isto tão

mal que, ao esforçar-se para alcançar o mesmo objetivo, seguiram diretamente o

caminho oposto, e se me for permitido expressar-vos com naturalidade minha opinião,

descubro que quanto mais nossa música se aperfeiçoa em aparência, mais ela se

desgasta em efeito. Talvez tenha sido necessário que ela chegasse ao ponto que chegou

para acostumar insensivelmente nossos ouvidos a rejeitar os preconceitos do hábito e a

apreciar outras árias que não aquelas com que nossas amas nos faziam adormecer; mas

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prevejo que, para conduzi-la ao grau bem medíocre de qualidade do qual é capaz, será

preciso cedo ou tarde começar por baixar de novo, ou retornar, ao ponto em que Lully a

havia colocado. Convenhamos que a harmonia desse célebre compositor é mais pura e

contém menos inversões, que seus baixos são mais naturais e movimentam-se mais

diretamente; que seu canto é mais coeso, que seus acompanhamentos menos carregados

brotam melhor do assunto e afastam-se menos dele, que seu recitativo é muito menos

amaneirado e, em conseqüência, muito melhor que o nosso; o que se confirma pelo

gosto da execução, pois o recitativo antigo era entoado pelos atores da época de um

modo completamente diferente do que se faz hoje, ele era mais vivo e menos arrastado,

era menos cantado e mais declamado*. As cadências, os portamentos de voz

multiplicaram-se no nosso recitativo; ele se tornou ainda mais langoroso, e nele não se

encontra mais quase nada que o distinga do que nos apraz denominar ária.

Como estamos falando de árias e recitativos, permiti, Senhor, que eu

conclua esta carta com algumas observações sobre umas e outros, que fornecerão,

talvez, alguns esclarecimentos úteis para a solução do problema de que estamos

tratando.

Pode-se avaliar a idéia de nossos compositores quanto à constituição de

uma ópera pela singularidade de sua nomenclatura. As grandes peças de música italiana

que nos arrebatam, as obras-primas de gênio que arrancam lágrimas, que oferecem os

quadros mais tocantes, que pintam as situações mais vivas e levam à alma todas as

paixões que exprimem, os franceses as denominam arietas; e dão o nome de árias

àquelas insípidas cançonetas com as quais entremeiam as cenas de suas óperas, e

reservam o de monólogos por excelência a essas arrastadas e tediosas lamentações, às

quais bastaria, para fazer adormecer todo mundo, que fossem cantadas afinadamente e

sem gritar.

Nas óperas italianas, todas as árias estão contextualizadas na ação e fazem

parte das cenas. Ora é um pai desesperado que acredita ver a sombra de um filho, que

ele fez morrer injustamente, lançar-lhe ao rosto sua crueldade; ora é um príncipe

indulgente que, forçado a dar um exemplo de severidade, pede aos deuses que lhe

retirem o poder ou lhe dêem um coração menos sensível. Aqui, é uma terna mãe que

* Isso se prova pela duração das óperas de Lully, muito maior hoje que em sua época, segundo o relato unânime de todos os que as viram no passado. Assim, todas as vezes em que essas óperas são reapresentadas é-se obrigado a fazer cortes consideráveis.

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derrama lágrimas ao reencontrar o filho que acreditava morto; lá, é a linguagem do

amor, mas não cheia dessas insossas e pueris verborragias de chamas e cadeias, mas

trágico, vivo, fervente, entrecortado, tal como convém às paixões impetuosas. É sobre

tais palavras que convém desdobrar todas as riquezas de uma música cheia de força e de

expressão, e intensificar a energia da poesia pela da harmonia e do canto. Ao contrário,

as palavras de nossas arietas, sempre afastadas do assunto, não passam de um miserável

jargão meloso que somos felizes por não compreender; é uma coleção feita ao acaso do

reduzidíssimo número de palavras sonoras que nossa língua pode fornecer, viradas e

reviradas de todas as formas possíveis, exceto aquela que lhes poderia dar sentido.

Sobre essa impertinente algaravia nossos músicos esgotam seu gosto e sua erudição, e

nossos atores seus gestos e seus pulmões; por essas peças extravagantes nossas

mulheres pasmam de admiração, e a prova mais marcante de que a música francesa não

sabe nem pintar nem falar é que não pode desenvolver o pouco de belezas de que é

capaz a não ser sobre palavras que não significam nada. No entanto, ao ouvir os

franceses falarem de música, crer-se-ia que é em suas óperas que ela pinta grandes

quadros e grandes paixões, e que há apenas arietas na ópera italiana, na qual são

desconhecidos o próprio nome de arieta, e o ridículo que ele exprime. Não é necessário

nos surpreendermos com a grosseria desses preconceitos, a música italiana não tem

inimigos, mesmo entre nós, exceto aqueles que nada conhecem dela; e todos os

franceses que tentaram estudá-la, com o único propósito de criticá-la com conhecimento

de causa, bem cedo se converteram em seus mais zelosos admiradores*.

Após as arietas, que fazem em Paris o triunfo do gosto moderno, vêm os

famosos monólogos admirados em nossas antigas óperas. Sobre isso deve-se observar

que nossas mais belas árias estão sempre nos monólogos, e nunca nas cenas, pois como

nossos atores não têm nenhuma atuação muda, e a música não indica nenhum gesto nem

pinta nenhuma situação, aquele que está em silêncio não sabe o que fazer de sua pessoa

enquanto o outro canta.

O caráter arrastado da língua, a pouca flexibilidade de nossas vozes, e o

tom lamentável que reina perpetuamente em nossas óperas colocam quase todos os

monólogos franceses em um andamento lento, e como o compasso não se faz sentir nem

no canto, nem no baixo, nem no acompanhamento, nada é tão arrastado, tão frouxo, tão

* É um juízo pouco favorável à música francesa que os que mais a desprezam sejam precisamente os que a conhecem melhor; pois ela é tão ridícula ao ser examinada quanto insuportável ao ser ouvida.

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langoroso como esses belos monólogos que todo mundo admira bocejando; quereriam

ser tristes, mas são apenas tediosos; quereriam tocar o coração, e só conseguem afligir

os ouvidos.

Os italianos são mais hábeis em seus adágios, pois quando o canto é tão

lento a ponto de se temer que ele deixasse enfraquecer a percepção do compasso, eles

fazem o baixo progredir por notas iguais que marcam o andamento, e o

acompanhamento também o marca pelas subdivisões das notas que mantêm a voz e os

ouvidos no compasso, tornando o canto mais agradável e, sobretudo, mais enérgico por

meio dessa precisão. Mas a natureza do canto francês proíbe esse recurso a nossos

compositores; pois, na medida em que o ator fosse forçado a manter o compasso, não

poderia mais desenvolver sua voz nem seu jogo de cena, não poderia arrastar seu canto,

inflar e prolongar seus sons, nem gritar a plenos pulmões, e, conseqüentemente, não

seria mais aplaudido.

Mas o que impede ainda mais eficazmente a monotonia e o tédio nas

tragédias italianas é a vantagem de poder exprimir todos os sentimentos e pintar todos

os caracteres com o ritmo e o andamento escolhidos pelo compositor. Nossa melodia,

que nada diz por si mesma, tira toda sua expressão do andamento que lhe é dado; ela é

forçosamente triste em um ritmo lento, furiosa ou alegre em um andamento vivo, grave

em um andamento moderado: o canto não produz quase nada; é o ritmo sozinho – ou

antes, para falar mais corretamente, o grau de velocidade sozinho – que determina o

caráter. Mas a melodia italiana encontra em cada andamento expressões para todos os

caracteres, quadros para todos os objetos. Ela é, quando apraz ao compositor, triste em

um andamento vivo, alegre em um movimento lento e, como eu já disse, muda de

caráter num mesmo andamento à escolha do compositor; o que lhe dá a facilidade de

contrastes sem depender para isso do poeta, e sem se expor a contra-sensos.

Eis a fonte dessa prodigiosa variedade que os grandes mestres da Itália

sabem verter em suas óperas, sem jamais abandonar a natureza; variedade que evita a

monotonia, a languidez e o tédio, e que os músicos da França não podem imitar, porque

seus andamentos são dados pelos sentidos das palavras, forçando-os a ater-se a eles, se

não quiserem cair em ridículos contra-sensos.

Com relação ao recitativo, do qual me resta falar, parece que, para bem

julgá-lo, seria preciso saber precisamente o que ele é, pois até agora não sei de ninguém,

dentre todos os que discutiram o assunto, que se tenha preocupado em defini-lo. Não

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sei, Senhor, que idéia podeis ter dessa palavra; quanto a mim, denomino recitativo uma

declamação harmoniosa, isto é, uma declamação na qual todas as inflexões se fazem por

intervalos harmônicoslxxiv. Donde se segue que, como cada língua tem uma declamação

que lhe é própria, cada língua deve também ter seu recitativo particular; o que não

impede que se possa muito bem comparar um recitativo a outro para saber qual dos dois

é o melhor, ou se relaciona melhor com seu objeto.

O recitativo é necessário nos dramas líricos 1) para ligar a ação e unificar o

espetáculo; 2) para valorizar as árias, cuja continuidade se tornaria insuportável; 3) para

exprimir uma multidão de coisas que não podem ou não devem ser exprimidas pela

música cantante e cadenciada. A simples declamação não poderia convir a tudo isso em

uma obra lírica, pois a transição da fala ao canto, e, sobretudo, do canto à fala, tem uma

dureza à qual o ouvido se presta com dificuldade, e produz um contraste ridículo que

destrói toda a ilusão e, portanto, todo o interesse; pois há uma espécie de

verossimilhança que se deve conservar mesmo na ópera, tornando o discurso tão

uniforme que o todo possa ser tomado ao menos por uma língua hipotética. Juntai a isso

que o auxílio dos acordes aumenta a energia da declamação harmoniosa e compensa

com vantagem o que existe de menos natural na entoação.

É evidente, com base nestas idéias, que o melhor recitativo, em qualquer

língua que seja, se ela, de resto, tem as condições necessárias, é o que mais se aproxima

à fala. Se houvesse um que se aproximasse dela de tal forma, conservando a harmonia

que lhe convém, que o ouvido ou o espírito pudessem se enganar; deveríamos declarar

ousadamente que este teria atingido a toda perfeição de que um recitativo é capaz.

Examinemos agora, com base nessa regra, aquilo que se chama recitativo

na França, e dizei-me, por favor, que relação encontrais entre esse recitativo e nossa

declamação? Como poderíeis conceber que a língua francesa, cujo acento é tão

homogêneo, tão simples, tão modesto, tão pouco melodioso, pudesse ser bem exprimida

pelas entonações barulhentas e gritadas desse recitativo, e que haja qualquer relação

entre as doces inflexões da fala e esses sons prolongados e inflados, ou antes, esses

eternos gritos que perfazem o tecido dessa parte de nossa música, mais ainda do que as

árias? Fazei, por exemplo, que qualquer um que saiba ler recite os quatro primeiros

versos do famoso reconhecimento de Ifigênialxxv. Dificilmente reconhecereis algumas

pequenas irregularidades, algumas débeis inflexões de voz em uma recitação tranqüila,

que não tem nada de vivo ou de apaixonado, nada que estimule o recitante a elevar ou

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baixar sua voz. Fazei a seguir que esse mesmos versos sejam recitados por uma de

nossas atrizes, sobre as notas de um compositor, e tratai de suportar, se possível, essa

extravagante gritaria que passa a todo momento do alto para baixo e de baixo para o

alto, percorrendo sem nenhum objetivo toda a extensão da voz, e suspendendo a récita

fora de propósito para tecer belos sons sobre sílabas que nada significam e que não

marcam nenhum repouso no sentido!

Juntem-se a isso os trêmulos, as cadências, as apojaturas que ocorrem a

todo instante, e digam-me que analogia pode haver entre a fala e toda essa enfadonha

ornamentação; entre a declamação e esse pretenso recitativo? Mostrem-me ao menos

um aspecto que permita razoavelmente enaltecer o maravilhoso recitativo francês cuja

invenção faz a glória de Lully?

É cômico ouvir os partidários da música francesa refugiarem-se no caráter

da língua e lançarem sobre ela os defeitos de que não ousam acusar seu ídolo, ao passo

que é absolutamente evidente que o melhor recitativo que pode convir à língua francesa

deve opor-se em quase tudo ao que é usado; que ele deve fluir por intervalos muito

pequenos, não elevar nem abaixar muito a voz, poucos sons sustentados, nada de

estrépito, menos ainda gritos, nada, sobretudo, que se assemelhe ao canto, pouca

desigualdade na duração ou valor das notas, bem como em seus graus. Em duas

palavras: o verdadeiro recitativo francês, se é que pode haver um, só será encontrado em

uma direção completamente oposta à de Lully e seus sucessores, em algum novo

caminho que certamente os compositores franceses, tão orgulhosos de sua falsa

sabedoria, e, conseqüentemente, tão distantes de sentir e de amar a verdadeira, não se

proporão a procurar tão cedo, e que, provavelmente, não encontrarão jamais.

Aqui seria o lugar de mostrar-vos, com o exemplo do recitativo italiano,

que todas as condições que supus em um bom recitativo podem de fato ser encontradas

ali; que ele pode ter ao mesmo tempo toda a vivacidade da declamação e toda a energia

da harmonia, que ele é capaz de progredir tão rapidamente quanto a fala, e de ser tão

melodioso quanto um verdadeiro canto; que ele permite marcar todas as inflexões com

as quais as paixões mais veementes animam o discurso, sem forçar a voz do cantor nem

aturdir os ouvidos dos que o escutam. Poderia mostrar-vos como, com auxílio de um

movimento particular das notas fundamentais, pode-se multiplicar as modulações do

recitativo de uma maneira apropriada, que contribui para distingui-lo das árias, nas

quais, para preservar a graça das melodias, é preciso mudar de tonalidade com menos

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freqüência; como, sobretudo, quando se quer dar à paixão o tempo de desdobrar todos

os seus movimentos, pode-se, com o auxílio de um acompanhamento instrumental

habilmente manejado, fazer que a orquestra exprima, por melodias comoventes e

variadas, aquilo que o ator deve apenas recitar; obra-prima da arte do músico, pela qual

ele reúne, em um recitativo obbligato*, a mais tocante melodia a toda a veemência da

declamação sem jamais confundir uma e outra. Eu poderia vos mostrar as inumeráveis

belezas desse admirável recitativo, do qual se contam na França tantas histórias tão

absurdas quanto os julgamentos que as pessoas se põem a fazer sobre ele, como se

qualquer um pudesse se pronunciar sobre um recitativo sem conhecer a fundo a língua à

qual ele é apropriado. Mas para entrar nesses detalhes seria preciso, por assim dizer,

criar um novo Dicionário, inventar a cada instante termos para oferecer aos leitores

franceses idéias desconhecidas entre eles, e fazer-lhes discursos que lhes pareceriam

ininteligíveis. Em suma, para ser compreendido por eles, seria preciso falar-lhes em

uma linguagem que entendessem, e, por conseguinte, de ciência e de toda espécie de

artes, excetuando apenas a música. Não entrarei, portanto, nesse assunto, em detalhes

rebuscados que de nada serviriam à instrução dos leitores, e sobre o qual poderiam

presumir que a força aparente de minhas provas não se deve senão à sua ignorância

nesse assunto.

Pela mesma razão, tampouco tentarei o paralelo que foi proposto neste

inverno em um escrito dirigido ao Pequeno Profetalxxvi e a seus adversários, entre duas

peças musicais, uma francesa, outra italiana, que lá são indicadaslxxvii . Como a cena

italiana, confundida na Itália com mil outra obras primas iguais e superiores, é pouco

conhecida em Paris, poucas pessoas poderiam seguir a comparação, com o resultado de

que eu teria falado apenas ao pequeno número daqueles que já sabem o que tenho a lhes

dizer. Mas quanto à cena francesa, esboçarei de bom grado a análise, ainda com mais

prazer pelo fato de que, tratando-se de uma peça unanimemente estimada em nosso país,

não precisarei temer que me acusem de parcialidade na escolha, nem de querer

esquivar-me com meu julgamento ao dos leitores, mediante uma obra pouco conhecida.

Além disso, como não posso examinar essa peça sem, ao menos por

hipótese, reconhecer-lhe o gênero, já estarei com isso dando à música francesa toda a

* Eu esperava que o Senhor Caffarelli nos daria, no Concert Spirituel, algum número de grande recitativo e canto patético, para que os supostos conhecedores pudessem ouvir pelo menos uma vez aquilo que julgam há tanto tempo; mas quanto a suas razões para não fazê-lo, descobri que ele conhecia melhor que eu o entendimento de seus ouvintes.

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vantagem de que a razão me forçou a privá-la no curso desta carta; estarei julgando-a

por suas próprias regras, de modo que, ainda que essa cena fosse tão perfeita quanto se

pretende, disso só se poderia concluir que se trata de música francesa bem feita; o que

não impediria, se se demonstrar que o gênero é mau, que ela seja má música em sentido

absoluto. Trata-se aqui, portanto, apenas de ver se ela pode ser admitida como boa ao

menos em seu gênero.

Para isso vou tentar analisar em poucas palavras esse célebre monólogo da

Armide, “Enfin, il est en ma puissance” lxxviii , que passa por uma obra prima de

declamação, e que os próprios mestres dão como o modelo mais perfeito do verdadeiro

recitativo francês.

Observo inicialmente que o Senhor Rameau o citou com razão como

exemplo de uma modulação exata e muito bem ligada; mas esse elogio torna-se uma

verdadeira sátira ao ser aplicado à peça em questão, e o próprio Senhor Rameau faria

bem em precaver-se contra semelhante louvor neste caso, pois o que se poderia

imaginar de mais mal concebido que essa regularidade escolástica em uma cena em que

o arrebatamento, a ternura e o contraste das paixões opostas põem a atriz e os

espectadores na mais viva agitação? Armide, furiosa, vem apunhalar seu inimigo. À sua

visão, ela hesita, deixa-se enternecer, o punhal lhe tomba das mãos; ela esquece todos os

seus planos de vingança, e não esquece por um único instante sua modulação. As

reticências, as interrupções, as transições intelectuais que o poeta ofereceu ao músico

não foram uma única vez aproveitadas por este. A heroína termina por adorar aquele

que queria inicialmente assassinar, e o músico termina em mi menor, como havia

começado, sem ter deixado por um só momento os acordes mais próximos ao tom

principal, sem ter posto uma única vez na declamação da atriz a menor inflexão

extraordinária que testemunhasse a agitação de sua alma, sem ter dado a menor

expressão à harmonia; e eu desafio quem quer que seja a identificar, apenas a partir da

música, quer na tonalidade, quer na melodia, quer na declamação, quer no

acompanhamento, alguma diferença perceptível entre o início e o fim dessa cena, pela

qual o espectador pudesse julgar a prodigiosa mudança que ocorreu no coração de

Armide.

Observai este baixo-contínuo: essas colcheiaslxxix, essas curtas notas de

passagem que correm atrás da seqüência harmônica! É assim que progride o baixo de

um bom recitativo, no qual não se deve ouvir senão notas longas, de longe em longe, o

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mais raramente possível, apenas para impedir que a voz do recitante e o ouvido do

espectador se percam?

Mas vejamos como são tratados os belos versos desse monólogo, que pode

ser justamente considerado uma obra prima de poesialxxx.

Enfin il est en ma puissance

Eis um trilo*, e, o que é pior, uma pausa absoluta já no primeiro verso,

embora o sentido não se complete até o segundo. Reconheço que o poeta teria talvez

feito melhor se omitisse o segundo verso e deixasse aos espectadores o prazer de ler seu

sentido na alma da atriz; mas já que ele o empregou, cabe ao músico utilizá-lo.

Ce fatal ennemi, ce superbe vainqueur

Talvez eu perdoasse a um músico ter posto este segundo verso em um tom

diferente do primeiro, se ele se permitisse um pouco mais dessas mudanças de tom nas

ocasiões necessárias.

Le charme du sommeil le livre à ma vengeance

As palavras feitiço e sono criaram, para o músico, uma armadilha

inevitável; ele esqueceu o furor de Armida para tirar ali uma pequena soneca, da qual

acordará na palavra trespassar. Se credes que é por acaso que ele emprega sons doces

no primeiro hemistíquio, basta apenas escutar o baixo; Lully não era homem de

empregar futilmente esses sustenidos.

Je vais percer son invincible coeur

Como é ridícula essa cadência final em um movimento tão impetuoso!

Como esse trilo é frio e sem graça! Como está mal colocado em uma sílaba breve, em

um recitativo que deveria voar, e em meio a um arroubo violento.

Par lui tous mes Captifs sont sortis d’esclavage:

Qu’il éprouve toute ma rage

Vê-se aqui que há uma hábil reticência do poeta. Armida, após dizer que

vai trespassar o coração invencível de Renaut, sente no seu os primeiros movimentos da

compaixão, ou, antes, do amor; ela busca razões para se fortalecer, e essa transição

* Sou obrigado a afrancesar esta palavra [un trille] para exprimir a pulsação de garganta que os italianos assim chamam, porque me encontrando a cada instante na necessidade de me servir da palavra cadência em uma outra acepção, não me era possível evitar de outro modo os contínuos equívocos.

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intelectual prepara muito bem esses dois versos, que, sem ela, se ligariam mal aos

precedentes, e se tornariam uma repetição completamente supérflua do que nem a atriz

nem os espectadores ignoram.

Vejamos agora como o músico exprimiu esse movimento secreto do

coração de Armida. Ele viu claramente que era preciso interpor um intervalo entre esses

dois versos e os precedentes, e ele produziu um silêncio, que não preencheu com nada,

em um momento em que Armida tinha tantas coisas a sentir, e, por conseguinte, a

orquestra a exprimir. Após essa pausa, ele recomeça exatamente no mesmo tom, no

mesmo acorde, na mesma nota com que concluíra, passa sucessivamente por todas as

notas do acorde durante um compasso inteiro, e abandona por fim, com dificuldade, o

tom em torno do qual girava tão despropositadamente.

Quel trouble me saisit? Qui me fait hésiter?

Outro silêncio, e depois, mais nada. Esse verso está no mesmo tom, quase

no mesmo acorde que o precedente. Nenhuma alteração que possa indicar a mudança

prodigiosa que se realizou na alma e no discurso de Armida. A tônica, é verdade, se

torna dominante por um movimento do baixo. Oh deuses, será mesmo uma questão de

tônica e dominante em um momento em que toda ligação harmônica deveria se

interromper, em que tudo deveria pintar a desordem e a agitação? De resto, uma

pequena alteração limitada ao baixo pode dar mais energia às inflexões da voz, mas

jamais as suprir. Nesses versos, o coração, os olhos, o rosto, o gesto de Armida; tudo se

modificou, exceto sua voz; ela fala mais baixo, mas mantém o mesmo tom.

Qu’est-ce qu’en sa faveur la pitié me veut dire?

Frappons

Como esse verso pode ser tomado em dois sentidos diferentes, não vou

contestar Lully por não ter preferido o que eu escolheria. No entanto, este é

incomparavelmente mais vivo, mais animado, e faz valer melhor o que segue. Do modo

como Lully a faz falar, Armide continua a enternecer-se e interrogar-se sobre a razão

disso: Que é que, em seu favor, a piedade tenta dizer-me? Depois, de repente, retorna à

sua cólera com esta única palavra: Golpeemos.

Tal como eu concebo, Armide, indignada com sua hesitação, rejeita com

rapidez sua vã piedade, e pronuncia vivamente e de um só fôlego, levantando o punhal:

Que é que, em seu favor, a piedade tenta dizer-me? Golpeemos.

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Talvez o próprio Lully tenha entendido assim esse verso, embora o tenha

tratado de outro modo. Pois sua notação determina tão pouco a declamação que se lhe

pode dar sem risco o sentido que se preferir.

... Ciel qui peut m’arrêter?

Achevons...je frémis! Vengeons-nous... je soupire.

Eis com certeza o momento mais violento de toda a cena. É aqui que se

trava o maior embate no coração de Armide. Quem acreditaria que o músico deixou

toda essa hesitação no mesmo tom, sem a menor transição intelectual, sem o menor

desvio harmônico, de uma maneira tão insípida, com uma melodia tão pouco

caracterizada, e com uma inabilidade tão inconcebível, que, em lugar do último verso

que diz o poeta:

Concluamos; eu tremo. Vinguemo-nos; eu suspiro.

o músico diz exatamente este:

Concluamos; concluamos. Vinguemo-nos; vinguemo-nos.

Os trilos, sobretudo, fazem um belo efeito sobre tais palavras, e é um belo achado a

cadência perfeita sobre a palavra suspiro!

Est-ce ainsi que je dois me venger aujourd’hui?

Ma colère s’éteint quand j’approche de lui

Esses dois versos estariam bem declamados se houvesse um maior

intervalo entre eles, e o segundo não concluísse em uma cadência perfeita. Essas

cadências perfeitas sempre são a morte da expressão, sobretudo no recitativo francês,

onde elas tombam tão pesadamente.

Plus je le vois, plus ma vengeance est vaine

Toda pessoa que tiver sentido a declamação deste verso julgará que o

segundo hemistíquio tem seu sentido invertido; a voz deve erguer-se em minha

vingança, e baixar docemente em vã.

Mon bras tremblant se refuse à ma haine.

Má cadência perfeita, tanto mais por estar acompanhada de um trilo.

Ah! quelle cruauté de lui ravir le jour!

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Fazei a Senhorita Dumesnil declamar este verso e descobrireis que a

palavra crueldade será a mais elevada, e que a voz irá baixando até o final do verso;

mas, quanto meio de não fazer ressaltar a luz!, reconheço aí o músico.

Suprimo, para encurtar, o restante desta cena, que não tem mais nada de

interessante nem de notável além das más interpretações ordinárias e trilos contínuos, e

concluo com o verso que a encerra.

Que, s’il se peut, je le haïsse...

Este parêntese, se for possível, parece-me uma prova suficiente do talento

do compositor. Quando o encontramos no mesmo tom, sobre as mesmas notas que eu o

odeie, é bem difícil não sentir quão pouco capaz foi Lully de pôr em música as palavras

do grande homem que tinha a seu serviço.

Quanto à pequena ária de taverna que conclui esse monólogo, prefiro nada

dizer; e se há alguns amantes da música francesa que conhecem a cena italiana cujo

paralelo com esta foi proposto, e, sobretudo, a ária impetuosa, patética e trágica que a

encerra, eles sem dúvida me serão gratos por este silêncio.

Para resumir em poucas palavras minha opinião sobre o célebre monólogo,

digo que, se o considerarmos como um canto, não encontraremos nele nem compasso,

nem caráter, nem melodia; se quisermos que seja um recitativo, não encontraremos nem

naturalidade, nem expressão; e, qualquer que seja o nome que lhe quisermos dar, vemo-

lo cheio de sons prolongados, de trilos e outros ornamentos vocais ainda mais ridículos

nessa situação do que o são normalmente na música francesa. A modulação é regular,

mas por isso mesmo pueril, escolástica, sem energia, sem afecção sensível. O

acompanhamento se limita ao baixo-contínuo, em uma situação em que todo o poder da

música deveria ser mobilizado, e esse baixo é mais próximo ao que se proporia a um

estudante em sua lição de música que ao acompanhamento de uma cena viva de ópera,

cuja harmonia deve ser escolhida e aplicada com um sutil discernimento para tornar a

declamação mais sensível e a expressão mais viva. Em duas palavras, se nos déssemos

ao trabalho de executar a música dessa cena sem juntar-lhe as palavras, sem gritar nem

gesticular, não seria possível distinguir nela nada de semelhante à situação que ela

deseja representar e aos sentimentos que pretende exprimir, e tudo não parecerá senão

uma tediosa seqüência de sons modulada ao acaso e apenas para fazê-la durar.

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No entanto, esse monólogo sempre fez, e não duvido que ainda viesse a

fazer um grande efeito no teatro, porque os versos são admiráveis e a situação, viva e

interessante. Mas sem os braços e os gestos da atriz, estou persuadido de que ninguém

poderia suportar o recitativo, e que esse tipo de música tem grande necessidade do

auxílio dos olhos para poder ser tolerável aos ouvidos.

Creio ter mostrado que não há nem ritmo nem melodia na música francesa,

por que a língua não o permite; que o canto francês não passa de um contínuo clamor,

insuportável a todo ouvido desprevenido, que sua harmonia é tosca, sem expressão,

soando apenas como exercício de colegial; que as árias francesas não são árias; que o

recitativo francês não é recitativo. Do que concluo que os franceses não têm música e

não podem tê-la*lxxxi , ou, se alguma vez a tiverem, será tanto pior para eles.

Sou, etc.

* Não considero que ter uma música seja tomar emprestada a de uma outra língua para tentar aplicá-la à sua, e preferiria que mantivéssemos nosso canto enfadonho e ridículo a associar ainda mais ridiculamente a melodia italiana à língua francesa. Essa desagradável mistura, que talvez se torne daqui em diante o estudo de nossos músicos, é demasiado monstruosa para ser admitida, e o caráter de nossa língua a isso jamais se prestará. No máximo algumas peças cômicas poderão subsistir em virtude das partes instrumentais, mas prevejo ousadamente que o gênero trágico não será nem mesmo tentado. Neste verão aplaudiu-se na Ópera cômica a obra de um homem de talento que parece ter escutado boa música com bons ouvidos e que traduziu o gênero em francês tão próximo quanto possível; seus acompanhamentos são bem imitados sem serem copiados, e se ele não produziu um canto, é porque não é possível produzi-lo. Jovens músicos que se sentem com talento, continuai a desprezar em público a música italiana; bem sei que vosso presente interesse assim o exige, mas apressai-vos a estudar em privado essa língua e essa música, se quereis poder voltar um dia contra vossos camaradas o desdém que hoje fingis contra vossos mestres.

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Notas de Tradução

i “São palavras e vozes, nada além disso”, citação atribuída a Horácio (Épodes). Rousseau usa tal provérbio como epígrafe da Carta porque seu objetivo é mostrar o verdadeiro valor estético da música que está na relação entre as palavras e as paixões naturais do homem. A autenticidade da música deve ser resgatada por meio do uso de uma língua que ainda preserve algumas de suas características originais cuja função era a de transmitir os sentimentos entre os homens. Há, então, nas palavras e nos sons, originalmente, um significado além do aspecto puramente físico. Portanto, as palavras e os sons usados na música devem ser signos diretos que representam os mais profundos sentimentos do coração dos homens. ii A edição da GF Flammarion de 1993 da Carta sobre a música francesa traz dois Prefácios referentes respectivamente às duas edições da Carta do ano de 1753. O Prefácio aqui traduzido é estabelecido por Catherine Kintzler como sendo o da primeira edição e que consta da edição da Bibliothèque de la Plêiade que utilizamos aqui como texto base, apesar desta edição também trazer na íntegra, em nota de Pot, o prefácio da segunda edição. No que diz respeito à extensão, Rousseau exclui do prefácio da segunda edição os dois últimos parágrafos e lhe acrescenta três, além de uma nota. Quanto ao conteúdo destes parágrafos adicionados, Rousseau se preocupa em deixar claro que não mudou nenhuma palavra do texto da Carta, a despeito das acusações que sofreu de faltar com o respeito à música francesa. O compromisso com a verdade e o respeito pela capacidade de julgar do público faz com que Rousseau não busque a bajulação como outros escritores: “Este respeito, sendo verdadeiro, não consiste de vãs circunspeções que marcam a opinião que se tem da fraqueza de seus leitores, mas em prestar homenagem a seus julgamentos”. Além disso, Rousseau tenta restabelecer de alguma forma a dignidade da língua francesa alegando que seus defeitos só existem ao que diz respeito à poesia e à música, pois para a filosofia ela é a que se mostra mais apropriada: “(...) a língua francesa me parece aquela dos filósofos e dos sábios: ela parece feita para ser o órgão da verdade e da razão”. Em nota, Rousseau atribui tal qualidade da língua francesa ao pensamento e aos escritos de Diderot. iii Obviamente Rousseau se refere às “injúrias ditas com espírito” como proferida pelos partidários da música italiana que contava com a maior parte dos philosophes. Os dois partidos que tomaram parte na “Querela dos Bufões”, a querela ocorrida na Ópera a qual Rousseau se refere, divididos entre o “coine de roy” e o “coine de la reine” se preocupavam mais em manter uma certa aparência condizente com os ideais que defendiam, o que não significava que em particular eles não apreciassem a música defendida pelo partido oposto (Ver Cranston p. 279). Para mais detalhes sobre a Querela dos Bufões ver texto da Qualificação, item I “Breve relato da história da ópera, a Carta sobre a música francesa e a Querela dos Bufões”. iv Como já vimos no texto da Qualificação, a afirmação de Rousseau aqui é inverídica, o autor já havia escrito dois textos anônimos durante a Querela: Lettre à M. Grimm, em março de 1752, como resposta à carta de Grimm, Lettre sur Omphale, de fevereiro de 1752 que oficialmente iniciou a querela; e Lettre d’un symphoniste, em setembro de 1753. Ironicamente a Carta sobre a música francesa iniciou uma segunda onda de panfletos, reativando a disputa e despertando uma profunda indisposição e até agressividade, segundo Rousseau, por parte dos músicos tradicionais. Se “essa espécie de guerra não convinha” a Rousseau é curioso o fato de, por conseqüência da Carta, ter se tornado pública a rivalidade entre ele e Rameau. Mas, de fato, a aparente contradição no comportamento de Rousseau nos aponta para a coerência interna em seu pensamento, o que o levou a transformar uma disputa jornalística em um debate estético (Ver Cranston p. 279). v Segundo nota de Pot, p. 1449, do v. 5 da Edição da Bibliothèque de la Plêiade (todas as referências às notas de Oliver Pot são baseadas na referida edição, sendo indicadas, de agora em diante, apenas pelo número da página), o termo “razão” usado por Rousseau tem o sentido de

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“raciocinar”, ou seja, mostrar de modo racional e ordenado, e se refere ao modo de organização e demonstração dos argumentos que, na Carta seguem um esquema ternário de exposição para maiores detalhes ver texto da Qualificação, Capítulo III “A Carta sobre a música francesa e a transparência dos sentimentos na construção de uma nova concepção musical”. vi Rousseau se refere à companhia italiana de ópera de Eustachio Bambini, especializada no gênero intermezzo, que durante sua turnê em Paris entre 1752 e 1754 trouxe enorme repercussão, excitando ainda mais as opiniões dos participantes da Querela dos Bufões, ao mesmo tempo em que conquistava grande sucesso entre o público. De acordo com Catherine Kintzler em sua “Introduction” à Carta sobre a música francesa na edição Flammarion de 1993, entre as peças apresentadas pela companhia durante esta turnê estão: Il maestro di musica, Il Giocatore e Tracollo de Pergolese, além da Serva Padrona que iniciou a turnê; La Finta cameriera e Gli Artigiani arrichiti de Latilla; La donna superba e La Zingara de Rinaldo di Capua; La Scaltra governatrice de Cocchi; Il Cinese rimpatriato de Selletti; Il Paratojo de Jomelli; I Viaggiatori de Leo. vii Aqui Rousseau acrescenta uma nota (segundo Kintzler em 1782 e segundo Pot em 1764) confirmando o fato destas últimas linhas deste parágrafo já constarem do texto da Carta desde a primeira edição. viii Rousseau pode estar se referindo de modo pejorativo e ironicamente ao sistema musical desenvolvido por Rameau em seus textos teóricos, que por não ser filósofo não tem o conhecimento sobre a essência das coisas. Rousseau, por sua vez, como filósofo e músico possui os requisitos para responder à altura o sistema musical de Rameau, criando seu próprio sistema de composição a partir de princípios estéticos estabelecidos por ele mesmo. ix Pot aponta para a relação entre esta declaração de Rousseau e seu Primeiro Discurso. De fato, O Discurso sobre as Ciências e Artes, escrito entre 1749 e 1750, fazem parte de um período de intensa produção filosófica de Rousseau guiada por sua experiência conhecida como a “iluminação de Vincennes”. Para não entrar em contradição com seu texto anterior, que se tornou bastante famoso, Rousseau trata de reafirmar a subordinação que as ciências e as artes têm em relação aos assuntos de moral, segundo uma hierarquia de valores de importância. x Aqui Rousseau se refere modestamente à sua ópera Le Devin du Village, apresentada em Paris em outubro de 1752 e março de 1753 com enorme sucesso entre “os homens e mulheres da moda”. xi Pot, p. 1452. Diante da repercussão da Carta, Rousseau é obrigado a suprimir esses dois últimos parágrafos do prefácio na Segunda Edição. É impossível a Rousseau cumprir a promessa feita aqui pois, o autor redige uma série de textos cujo tema esclarece, completa, ou justifica a Carta como: L’origine de la melodie; Ensaio sobre a origem das línguas; Examen de deux principes; além do Dicionário de Música. Quanto às “ocupações mais satisfatórias” podemos entender como uma referência à redação do Segundo Discurso. xii Bernard Le Bouyer de Fontenelle (1657–1757), matemático, filósofo e escritor francês. Nomeado membro da Academia Francesa em 1691 e Secretário da Academia de Ciências em 1699. xiii Fontenelle, Histoire des oracles, 1686, Iº Dissertação, cap. IV. xiv Rousseau se apóia no grande sucesso que a ópera italiana conquistou em toda a Europa. Mesmo tendo suas óperas nacionais não é incomum os relatos dos viajantes descreverem com grande entusiasmo a ópera italiana.

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xv Segundo Catherine Kintzler, na edição de 1782 Rousseau acrescenta um trecho depois dessa frase: “Nós ignoramos quanto o hábito das coisas mais defeituosas pode fascinar nossos sentidos em seu favor, e quanto a razão e a reflexão são necessárias para retificar em tudo as belas artes, a aproximação mal entendida que o povo pode dar freqüentemente às produções de péssimo gosto e destruir o falso prazer que aí se toma? Não seria, então, à propósito, para bem julgar a música francesa, independentemente do que se pensa a população de todos os estados, que se tentaria uma vez a submeter à investigação da razão e de ver se ela suporta a prova?”, acrescida de uma citação a Platão em latim: “Eu vou até fazer eu mesmo essa concessão à multidão, que a música deve se julgar segundo o prazer, mas não, entretanto, segundo qualquer um que seja: esta arte, nós dizemos, será mais bela quanto mais agradar aos melhores, depois de uma formação suficiente e sobretudo aquela que agrada a um homem distinto entre todos pela virtude e educação.” (Platão, Leis, II, 658e.) Como Platão, Rousseau também opta por um critério aristocrático para julgar a música: só os melhores podem fazê-lo, concordando com o escreve no prefácio da Carta (Ver nota 8). A longa citação em latim, também acrescida a esse trecho na edição de 1782, encontra-se traduzida no verbete “Plain-chant” do Dicionário de Música. xvi O ponto de interrogação não existe na edição da Plêiade, apenas na edição Flammarion de 1993. Optei em colocar o ponto de interrogação na tradução a fim de esclarecer o sentido da frase. xvii Platão, Leis, II. xviii Pot, p. 1452. Tal tripartição da música pode ser encontrada já em J.-B. Du Bos, Réflexions critiques sur la poésie et sur la peiture; e em Plutarco, De la musique. Pot observa que, em última instância por se tratar da análise dos sons, hoje em dia se falaria antes em altura (harmônicas), duração, timbre (reduzível às alturas) e intensidade. Na Segunda edição de 1753 há neste parágrafo o acréscimo de uma nota: “Ainda que se entenda por “compasso” (mesure no original) a determinação do número e da relação dos tempos, e por “movimento” o grau de velocidade, eu acredito poder aqui confrontar essas coisas sob a idéia geral de modificação da duração ou do tempo.” Ritmo, melodia e harmonia são considerados os elementos básicos da música, como mostra sua evolução histórica. xix Parágrafo sucinto no qual Rousseau faz uso de alguns termos, os quais serão analisados em seguida, mas que podem causar uma certa confusão inicial: segundo a visão que Rousseau tem da música, o canto tem sua principal característica no “ritmo” (mesure, no original) porque depende da prosódia da música, como será explicado mais adiante. Já o termo harmonia, aqui especificamente, parece ser usado no sentido de ter sua origem na natureza física dos objetos, quando se produz um som a partir do ar se movimentando quando há uma vibração de algum corpo, baseado nos princípios físicos da ressonância. Nos demais usos do termo “harmonia” Rousseau se refere ao acompanhamento instrumental, composto pelo baixo-contínuo. xx Lembra Pot, p. 1452, que a oposição entre a universalidade da harmonia e o particularismo da melodia já se encontra, entre outros autores, em Pierre Estève, L’Esprit des beaux-arts e Du Bos, Reflexions critiques. xxi De acordo com Pot, p. 1454, a crítica à monotonia na música já existe em Raguenet e Lecerf de La Viéville, entre outros. xxii Modulação: passagem de uma tonalidade à outra. Cadência: terminação de uma progressão de acordes. xxiii Ver nota 1.

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xxiv Ritmo: movimento que reaparece regularmente no tempo (perfeitamente observável na natureza), Ótto Károlyi, Introdução à Música, Martins Fontes, 2002. No Dicionário de Música Rousseau afirma no verbete “Ritmo”: “Divisão da duração ou do tempo em várias partes iguais, suficientemente longas para que o ouvido possa perceber e subdividir a quantidade, e suficientemente curtas para que a idéia de uma não se afaste diante da repetição da outra, podendo-se sentir a igualdade.” Entenda-se sobre o ritmo musical que seja a disposição das partes entre si. Significa o quanto a música é harmoniosa comparando-se suas partes entre si, é a razão entre as partes, é a justa medida que mantêm um equilíbrio harmonioso e agradável. xxv Pot, p. 1456. Há inúmeros autores que associam a prosódia ao ritmo nas línguas grega e latina como Plutarco, Aristoxene, Denis de Halicarnasso e vários outros na modernidade. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, em Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 671. “Esta sucessão de sílabas fortes e fracas, com intervalos regulares, ou não muito espaçados (para que a reiteração possa ser esperada e sentida pelo nosso ouvido), é uma fonte do prazer a que chamamos RITMO.” xxvi “Unidade rítmica continuada por um agrupamento de sílabas de um único valor determinado” (Le Robert). Metro, termo técnico de poesia. xxvii Como observa Olover Pot, p. 1457, essa classificação do compasso corresponde aos três tipos de vozes que Rousseau cita no Emílio: “O homem tem três tipos de voz, quais sejam, a voz falante ou articulada, a voz cantante ou melodiosa, e a voz patética ou acentuada, que serve de linguagem para as paixões e anima o canto e a fala (...) Uma música perfeita é aquela que reúne da melhor forma essas três vozes.” Trad. de Roberto Leal Ferreira, 3º ed. 2004, Martins Fontes, p. 187. xxviii Na música dramática, canto que se aproxima das inflexões da voz falada. xxix Compasso: unidade métrica de um tempo acentuado na música até o próximo. As barras de compasso assinalam na música escrita essa unidade através de linhas verticais traçadas na pauta. Ótto Károlyi, Introdução à Música. xxx Comparando com o Dicionário de Música, verbete “Baroque”: “Uma música barroca é aquela na qual a harmonia é confusa, carregada de modulações e de dissonâncias, o canto rígido e pouco natural, a entonação difícil e o movimento constrangido.” xxxi Symphonie no original. Rousseau esclarece no Dicionário de Música a concepção na época para essa palavra: “Hoje em dia a palavra sinfonia se aplica à toda música instrumental, tanto as peças que são destinadas apenas para instrumentos, como as sonatas e os concertos, onde os instrumentos se encontram mesclados com as vozes, como nas óperas e em vários outros tipos de música. Se distingue a música vocal em música sem sinfonia, aquela que não tem outro acompanhamento a não ser o baixo-contínuo; e música com sinfonia aquela que tem ao menos uma parte de instrumentos agudos, violinos, flautas ou oboés.” xxxii No Dicionário de Música, Rousseau distingue três nuances para termo “Doux”: “Doce tem três nuances que é necessário distinguir com perfeição, a saber, a meia-interpretação, o doce, e o muito doce. Qualquer proximidade aparente entre essas três nuances, uma orquestra hábil os torna muito sensíveis e muito distintos.” xxxiii Rousseau faz uso de termos usados na época pelos músicos italianos que, de fato, não possuem tradução. Esses termos se referem às nuances de intensidade no momento da execução. xxxiv No original proprement, explicado no Dicionário de Música: “Cantar ou tocar apropriadamente [conforme a tradição], é executar a melodia francesa com os ornamentos que

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lhe convém. Esta melodia não sendo nada somente pela força dos sons, e não tendo por ela mesma nenhuma característica, não se toma por uma, senão pelo estilo afetado que lhe dão ao executá-la.” xxxv Na segunda edição da Carta, de 1753, Rousseau acrescenta aqui uma nota: “Como me asseguraram que há entre os instrumentistas da Ópera, não somente excelentes violinistas, (o que confesso que são quase todos, considerados isoladamente) mas verdadeiros homens honestos, que não querem apontar para as habilidades de seus colegas para servir o público, eu me apresso em acrescentar aqui esta distinção, para reparar, também em mim, o erro que eu depois cometer diante daqueles que o merecem.” xxxvi Fundamental para se entender a estética de Rousseau, o conceito de imitação segundo a visão do autor, é a chave para encontrar a essência da crítica da Carta à música francesa, em especial a de Rameau. Comparando-se com o que diz o Dicionário de Música no verbete “ Imitation”: “A música dramática ou teatral faz uso da imitação assim como a poesia e a pintura: é a este princípio comum que se relacionam todas as Belas-Artes, como o mostra o Senhor Batteux. Mas a imitação não tem para todas elas a mesma pretensão. Tudo o que a imaginação pode representar é da competência da poesia. A pintura, que não oferece seus quadros à imaginação, mas aos sentidos e a um sentido apenas, não pinta senão os objetos sujeitos á vista. A música pareceria ter os mesmos limites em relação à audição; entretanto, ela pinta tudo, até mesmo os objetos que não são apenas visíveis: por um pretígio quase inconcebível, ela parece colocar os olhos no ouvido, e a maior maravilha de uma arte que não trata senão dos movimentos, é de poder formar até a imagem do repouso.” A imitação, termo comum à todas as belas-artes, tem na música, ao contrário da poesia e da pintura, um campo de atuação mais amplo. Não se atendo apenas a imitar a natureza física dos objetos, a imitação musical transpõe a percepção sensorial para expressar de maneira simbólica objetos abstratos, ou seja, as paixões e sentimentos. Em nota à edição da Plêiade da Carta, Pot acrescenta a seguinte passagem de Du Bos sobre o conceito de imitação: “A música imita os tons, os acentos, os suspiros, as inflexões da voz, [o canto deve ser] conveniente ao sentido das palavras às quais ele está adaptado.” Ainda contra Rameau, relacionando a música com as palavras, Pot cita Ménestrier, Lecerf de La Viéville, Battteux, Mably. xxxvii De fato, para Rousseau nem o italiano está isento de sua parcela de degeneração e corrupção aos quais todas as línguas estão sujeitas ao longo de sua evolução. No Ensaio sobre a Origem das Línguas, Rousseau, ao buscar os motivos morais do surgimento da linguagem, descreve como seria a língua que verdadeiramente serviria à música. Repleta de acentos e inflexões essa língua se confundiria com a música, ambas com a intenção de comover, mas, no entanto, tal língua não existe mais, o que resta são línguas que guardam resquícios das características dessa língua original, sendo o italiano uma delas, o que lhe vale a vantagem sobre o francês na disputa em questão. xxxviii A distinção das línguas de acordo com a função que melhor lhe convém não é exclusivo em Rousseau, o exemplo citado por Pot em nota à Carta, p. 1460, é o de Voltaire no verbete “Française” da Enciclopédia e o de d’Alembert, De l’harmonie des langues: “a língua francesa não fornece senão ‘idéias’ e não ‘signos’, de onde sua ausência de ‘tom’ e sua monotonia musical”. xxxix Ver no Ensaio a analogia entre pintura e música, a “melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho representa na pintura”, ou seja, a melodia, assim como o desenho, é a responsável pelo caráter emotivo da respectiva obra de arte à qual fazem parte: “Tal como os sentimentos despertados em nós pela pintura não vêm das cores, o império que a música possui sobre nossa alma não é obra dos sons”. Tais afirmações fazem parte da dicotomia que marca a estética de Rousseau: a melodia se refere representativamente ao mundo psíquico/moral humano

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de forma indireta e o desenho de forma direta, enquanto que as cores, assim como a harmonia – ou os sons – se refere ao mundo físico apreendido racionalmente. xl Torquato Tasso, conhecido na França como Le Tasse, poeta italiano nascido em 1595. É contante nas obras de Rousseau a admiração que sente pelo poeta, o qual foi tema do primeiro ato de sua ópera Muses galantes. O nome de Tasso, mesmo em Rousseau, está relacionado à música, sendo um dos primeiros autores de pastorais musicadas. xli Torquato Tasso, Jerusalém libertada (1575), XVI, xxv e IV, iii. “Ternos desdéns, delicadas e calmas recusas, amáveis carícias e uma paz jovial, sorrisos, meias palavras e doces lágrimas, beijos molhados pelo pranto e queixumes, todas essas coisas ela própria fundiu e depois temperou em fogo lento; e formou delas o maravilhoso cinto que dispôs em torno a seus flancos”; “O rouco som da trombeta infernal chama os habitantes das sombras eternas; tremem suas cavernas vastas e obscuras; e o ar tenebroso ribomba àquele rumor. Com menos estrondo tomba o raio das alturas, e jamais com tanto frêmito treme a terra quando se agitam os vapores em seu seio grávido.” xlii Estas afirmações de Rousseau são confirmadas por outros teóricos que escreveram sobre a influência da sonoridade e pronúncia das palavras no canto. Pot cita, p. 1462, por exemplo, Jean-Antoine Bérard, L’Art du Chant e Boyé, L’Expression musicale mise aurang des chimères. xliii Pot (p. 1463) afirma existir aqui uma nota acrescida à segunda edição de 1753: “Me parece que não se ousa mais censurar a melodia italiana depois que ela se tornou conhecida entre nós: é assim que esta música admirável não tem senão se mostrado tal como é, para se justificar de todas as faltas das quais é acusada.” xliv Pot, p. 1464, cita entre outros os conciliadores na época da querela: Voisenon, Cazotte, Laugier, Duclos, Raguenet. Diderot se mostra “imparcial”, enquanto que Rousseau é um extremista. xlv Jean Baptiste Lully, nascido Giovanni Battista Lulli no ano de 1632 em Florença, morre em Paris em 1687. Lully dominou a cena musical francesa durante o período do Rei-Sol (Luis XIV). Ele deu origem à várias formas musicais como a tragédie lyrique, o grande moteto e a abertura à francesa. Chega na França em 1643 e rapidamente alcança destaque entre os músicos do rei. Naturalizou-se em 1661. Criou o gênero da comédia-balé juntamente com Molière. Compondo aproximadamente uma tragédia por ano, ele eclipsa o nome de outros compositores de seu tempo. Seu libretista favorito é Philippe Quinault. A tradição do balé influencia em sua obra nas formas nitidamente ritmadas da dança que se encontram nas árias. Sua música descritiva é considerada como obra de um artista altamente intelectualizado. xlvi Leonardo Leo (1694-1744). xlvii Jean-Baptiste Pergolese (Giovanni Battista Pergolesi) (1710-1736). Autor célebre de músicas religiosas e profanas. Escreveu várias óperas e intermezzi ao gosto napolitano. Citado no Dicionário de Música, pode ser considerado o compositor preferido de Rousseau. xlviii Rousseau lança mão de uma idéia corrente no século XVIII, que é o teste de universalidade da música. xlix “Templo sagrado, estadia tranqüila”, Rameau, Hipolyte et Aricie, ária de Aricie. Esta peça é considerada a obra prima de Rameau e também sua primeira experiência no teatro, estreou em 1733. l “Vós que sofreis sem esperança”. Esta ária de Galuppi não pôde ser identificada.

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li Pot, p. 1465, sugere que esse cantor tenha sido o próprio Rousseau, que não nega a admiração que sentia por Rameau antes de sua estadia em Veneza. lii (p. 1465) “Marie Fel (1713-1794) representou Colette no Devin du Village, em 1752 Rousseau lhe dedica uma Salve Regine interpretada por ela mesma. Pierre Jeliotte (1711-1782) representou nas Muses Galantes e no Devin du Village. Sobre a admiração dos enciclopedistas por esses dois cantores, ver Grimm, Le Petit Prophète, 1754. No Dicionário de Música as referências aos dois cantores estão, por exemplo, nos verbetes “Floreio”, “Dueto”, “ liii (p. 1467) “Nicola Popora (1686-1768) foi o rival de Haendel em Londres. Gioacchino Cocchi (1715-1804) precedeu J. C. Bach em Londres. Davide Pérez (1711-1751) foi sucesso em Lisboa. Domenico Terradeglias (1713-1751).” liv As árias citadas por Rousseau são dos mais conhecidos compositores em Paris na época como Cocchi, Pergolesi, Selleti, apresentadas durante a querela. O Mercure de France acompanhava o sucesso das árias e as reapresentações das peças. lv La Fause Suivante, Giovanni, Barlocci, música de Gaetano Latilla, Roma 1738, Paris 1752. Rousseau pode ter visto este intermezzo em Veneza, no Teatro San Mose, durante o carnaval de 1744. lvi Por algum motivo Rousseau traduz para o francês todos os títulos dessas obras italianas: Maître de Musique, Il Maestro di musica de Pergolesi e Pietro Auletta, 19 de setembro de 1752. La Femme Orgueilleuse, La Donna superba de G. Barlocci e música de Rinaldo de Cápua, 29 de dezembro de 1752. Tracollo, medico ignorante de Mariani e Pergolesi, 1º de Maio de 1753. La Bohemienne, La Zingara de Rinaldo de Capua, 19 de junho de 1753. lvii Denis Diderot, Lettre sur les sourds et muets, publicada em 1751 como resposta à obra Les Beaux-Arts réduits à um même principe, de 1746, escrita pelo Abade Batteux. lviii (p. 1472) A noção de complemento dada pela instrumentação oferecendo uma “idéia secundária” que não pode ser dada pelo canto é praticada por Gluck. Johann Mattheson admite pequenas descrições no acompanhamento “uma espécie de pequenos jogo de sons” ( lusus sonorum) “mas que deva ser discreto, não é conveniente que tome o papel principal”. Segundo o Dicionário de Música essa teoria associativa toma as emoções musicais como um fenômeno de reminiscência. lix De acordo com as fontes apontadas por Pot (p. 1473), o encontro ao qual Rousseau se refere se deu em Pari em 1747 por ocasião do retorno de Terradeglias de Londres. Mas segundo Rameau (Observations sur notre instinct...) o encontro aconteceu durante a estadia de Rousseau em Veneza, quando assistiu à Artaserse, de Metastassio e Terradeglias, no Teatro San Giovanni Grisostomo, em 1744. Apesar de ter composto uma grande quantidade de obras religiosas, o que nos resta de Terradeglias são seis missas, dois Te Deum e quinze motetos. O compositor também é citado por Rousseau no Dicionário de Música. lx Aqui, como quando cita as iluminuras góticas, Rousseau não deixa de expressar sua crítica à arte medieval, como faz grande parte dos representantes do período clássico. lxi (p. 1474) Du Bos, Réflexions critiques..., 1719. Rousseau recusa a teoria progressista de evolução da música que inclui a música francesa em uma história geral da música, enquanto que só atribui a perfeição da música italiana à uma data recente. Orlando, Roland de Lassus (1532-1594); Claude Goudimel (1520-1572), Giovanni Buononcini (1670-1755), Arcângelo Coreli (1653-1713), Leonardo Vinci (1690-1730). Todos citados por Rousseau no Dicionário de Música.

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lxii Não é incomum entre teóricos da música a idéia de que a grafia musical funciona de um modo e a execução de outra, principalmente na música francesa, o que não ocorreria com tanta freqüência na música italiana. Em Rousseau a distância entre a escrita, fixa e suscetível às regras de convenção, e a fala, ou canto, espontânea e flexível à fluidez dos sentimentos, aparece no Emílio, no Ensaio e na Dissertation sur la musique moderne. lxiii La Donna superba, ver nota 57. lxiv Comédia de Philippe Poisson e Raymond Poisson, que Rousseau teria assistido na Comédia Francesa em 13 de julho de 1752. lxv Da ópera Artaserse, de Terradeglias. Esta cena também é citada por Grimm no verbete “Poema Lírico” da Enciclopédia. lxvi Phaéton, de Lully e Quinault (1683). Os duetos “Que mon sort serait doux” e “Hélas! une chaine si belle” são exemplos em que as duas vozes cantam simultaneamente todo o tempo. lxvii Serva Padrona foi apresentada durante os intervalos da ópera Il Prigionier superbo, também de Pergolese, em 1733. Devido ao seu enorme sucesso se tornou uma ópera independente. Foi apresentada em Paris em 1746 sem problemas. Sua reprise em 1752 causou escândalo por ter sido apresentada na Académie Royale de Musique onde as comédias eram restritas. lxviii Rousseau se refere a Felice Bambini, ao filho do diretor da companhia dos Bufões. lxix Charles Noblet (1715-1769) cravista da Ópera e organista de várias igrejas de Paris. lxx Por exemplo, de acordo com o Traité de l’harmonie..., a terça maior é “naturalmente viva e alegre”, enquanto que a terça menor “é naturalmente afetuosa e triste”. lxxi Isto é, o trítono fá-si se torna, com esses acréscimos, fá-sol-si-ré, e a falsa quinta si-fá se torna si-ré-fá-sol. lxxii Acorde: duas ou mais notas soando simultaneamente. lxxiii “A arte que tudo faz em parte alguma se revela”, Tasso, Jerusalém Libertada. lxxiv Recitativo: “Embora não seja em si uma forma musical, o recitativo tem especial importância para o estilo vocal operístico. Indica um estilo vocal predominantemente falado, baseado num texto de natureza narrativa ou declamatória. No recitativo, melodia, ritmo e frase estão subordinados à inflexão da fala enfática. Ao contrário da ária, o recitativo não tem forma definida, sendo sua verdadeira função ligar e dar seguimento ao desenvolvimento da história (...) assegurando, pois, a continuidade da ação.” Otto Károlui, Introdução à Música. Cf. Dicionário de Música, verbete “Recitativo”: “Discurso recitado de um tom musical e harmonioso. É uma maneira de canto que se aprexima muito da palavra, uma declamação em música na qual o músico deve imitar, tanto quanto possíel, as inflexões da voz do declamante. Este canto é nomeado recitativo porque ele se aplica à narração, ao relato, servindo-se do diálogo dramático. (...) A perfeição do recitativo depende muito das características da língua, quanto mais a língua é acentuada e melodiosa, mais o recitativo é natural e próximo do verdadeiro discurso.” Segundo Pot, entre os franceses “Rameau rejeita freqüentemente a regra do silabismo em vigor no recitativo e sublinha a vogal ou ditongo principal da palavra por uma vocalise ou ornamento para as palavras consideradas ‘líricas’, como glória, vitória, trovejar, voar.” Lully seria mais discreto quanto ao uso de ornamentos no recitativo, intentando aproximá-lo mais da fala, deixando-o mais uniforme. Em Raguenet, “eles [os italianos] não fazem mais que falar em seu recitativo (...). As partes do acompanhamento são excelentes, pois

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seu gênio para a composição é tão maravilhoso, que sabem encontrar os acordes encantadores, mesmo ao som da voz de alguém que simplesmente fala, sem cantar.” Conclui-se que o recitativo italiano é mais natural e fluido, as notas do acompanhamento o complementam com simplicidade, por isso é considerado mais expressivo e comovente. Já o recitativo francês, à maneira de Rameau, despropositadamente ornamentado, não seria capaz de revelar os sentimentos implícitos nas palavras. lxxv Da obra Ifigênia en Tauride, de Desmarets et Campra (1704). lxxvi Friedrich Grimm publicara em 1753 o panfleto O Pequeno Profeta de Boemischbroda, um dos mais influentes documentos da Querela dos Bufões. lxxvii Em um panfleto, Au petit prophète de 21 de fevereiro de 1753, em que aparentemente posava como árbitro imparcial na disputa, Diderot propusera a comparação do monólogo de Armide com a cena “Solitudini amene”, do Nicotris de Terradeglias. lxxviii Da peça Armide, a última tragédia lírica composta por Lully, com libreto de Philippe Quinault, é considerada sua obra prima. Estreou no Théâtre du Palais Royal em 15 de fevereiro de 1686, tornando-se objeto de analise para muitos comentadores e literatos da época. Ganhou uma segunda versão em 1777 com música de Gluck. lxxix Colcheia: nota que tem duração de 1/8 da semibreve (a unidade básica de duração da nota em 4 tempos). lxxx Nesta análise Rousseau tenta mostrar como o rigor e a excessiva racionalidade musical podem anular a força expressiva natural das palavras. Segue-se a tradução dos versos de Philippe Quinault transcritos por Rousseau: “Ele está finalmente em meu poder O fatal inimigo, o soberbo vencedor! O feitiço do sono o entrega à minha vingança Vou trespassar seu coração invencível. Graças a ele meus cativos escaparam da escravidão; Que experimente agora toda minha cólera. Que agitação me toma? Que me faz hesitar? Que é que, em seu favor, a piedade tenta dizer-me? Golpeemos. ... Céus! quem pode me deter? Concluamos... eu tremo! vinguemo-nos... eu suspiro. É assim que devo vingar-me hoje? Minha cólera se extingue quando dele me aproximo. Quanto mais o vejo, mais minha vingança é vã. Meu braço trêmulo se recusa a minha ira. Ah, que crueldade arrebatar-lhe a luz! Que, se for possível, eu o odeie.” lxxxi (p. 1494) A “obra de um homem de talento” que Rousseau menciona na nota é Les Troqueurs, de Antoine Dauvergne, com libreto de Jean Joseph Vadé, representada em Paris em 30 de julho de 1753, noticiada pelo Mercure de France, de setembro de 1753, como “O primeiro intermezzo que se tem na França de acordo com o gosto puramente italiano (...) uma coisa tão singular atraiu toda Paris (...)”.

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