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danilo arnaldo briskievicz

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DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ

1ª edição

EDIÇÃO DO AUTOR Belo Horizonte –MG – 2014

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“Aonde vim parar, meu Deus?

Estou cercado de vulgaridade por

todos os lados. Gente enfadonha,

vazia, potes de cerâmica com creme

azedo, jarras com leite, baratas,

mulheres tolas... Não há nada mais

medonho, mais ultrajante, mais

deprimente do que a vulgaridade.

Fugir daqui, fugir hoje mesmo,

senão vou ficar louco!”

Anton Tchekhov,

O professor de letras, 1894

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INTRODUÇÃO – O TEMPO DA ERA, ERRA

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Mera era

o tempo impera

de era em era, fera

o tempo tempera

o tempo persevera

de terra em terra, leva

o tempo mera era

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PARTE I – MERO DIZER SOBRE A ERA

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Chão

espalhei-me no chão

veio: memória de infância

no chão tem sempre tempo

outro: os dias se vão

vão, se vão, e chão

e abraço e amor e paixão

queria no chão: infância

posta feito doce bom

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Encontro

quando me visito

desinstalo o sigilo

guardo em mim tanto

pudera ser menos, pronto

quando me sacio

comigo em sinceridade

lavo a alma tanto

pudera ser outro, mesmice

encontro

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Jequitinhonha

pingo de rio

saído no frio

jequitinhonha nasce

onde a coruja pasce

serpenteia na cheia

lindo, jamais arqueia

vai de ponto a ponto

aonde olho vejo ponte

passa na minha alma agora

desde pequeno é tempo, hora

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Pelos lados

eu fui levado ao fundo

do poço, onde o mundo

tolo, possuía outro:

eu era mentira

eu fui jogado

para escanteio e o mundo

jogo, possuía tudo:

eu era descartável

agora sei: entre o fundo

e a lateralidade em ângulo

posso, ser para mim, pleno

o meu vazio só, é cheio de mim

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[Ente]ndo

o tempo marcou, hora

eu também, bobeira

e entre beira e eira

fiz apenas: certeza

a vida é o tempo

o ser é o sendo

o ente, entendo

sou apenas: leveza

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Cisma

quando vejo o céu

percebo, dentro

a distância longa

entre o mim e o eu

a vida é jogo

se dou voltas

vou longe, sei

um dia logo,

voltarei

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Volta

voltar ao tempo

do ido

bem feito, vivi!

doído

deixar o tempo

de lado

bem lindo, li!

lívido

o que custa

o tempo: a cura

custa e dura

um dia apenas...

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Ninho de coruja

a coruja na madrugada

acordou meu sentido

de noite alta: falta

seu corpo para esquentar

a passagem de lua

para outra lua, crescendo

ou diminuindo em luz:

acordo comigo de novo

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Corte de tempo

a melancolia me rodeia

e tira para dançar: lanço

o olho de dentro para lance

distante e vou eu embora

para o interior de outro mundo

paralelo mundo de transversais

não há elo forte: melancolia é

assim mesmo: corte de tempo

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Muito longo tempo

depois eu volto

antes, não posso

deixa depois

ser longo tempo

preciso de horas

para passar em mim

o seu fluxo contínuo

estático, interior

depois eu desloco

outra emoção, a mesma

pulsa em mim há tantos

anos: depois eu volto

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Ai

o fim da vida

parece início

sempre um ai

de saber nada

um frio na espinha

um temor de vazio

uma lagoa funda

uma estrada torta

o fim é ai

o início é ai

ai de mim:

ai de nós

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Resumida palavra

monossílabos

sim, eu amo os monossílabos

não, eu não amo os monossílabos

resumida palavra: eu

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Reencontro

nem bem rolava sobre

seu corpo de um lado para outro e era

hora de deixar seu calor para sempre

como se todo dia fosse pouco tempo

queria seu corpo em eras imortais

mas o tempo passa nas almas em corpos

substituídos de outras cenas e por isso

tenho apenas uma pista: seu calor eterno

busco em todas as vidas ao meu lado

o calor de sua alma aquecendo misteriosamente

todos os corpos por onde se aloja, eu sei:

um dia minha medida vai dar em sua temperatura

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Minha cidade

minha cidade: o que tenho contigo

além da sabedoria das horas do dia?

trazer tua poeira na alma, de chão

pisado para me erguer como pessoa

estar vivo em suas estações, em anos

passados entre interior meu e mundo

viver sobre teu teto natural, em céu

de alegria constante no azul que cura

tenho tanto contigo: minha cidade

além de mim tuas horas me deram:

além de mim

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Pobre eu mesmo

a escadaria da santa rita

me devolve quem sou, de fato:

pobre homem no tempo e no espaço

passando pela realidade das coisas

da forma possível de ser, sendo

pobremente o que estou agora, farto

de tentar me dar a riqueza das horas

e das eras: mero engano – o tempo

apenas tira de mim o que era

agora ficam apenas os fatos, raros

momentos de ser nas eras o que era:

eterno começo, pobre início se sempre

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Sol e lua

nenhum sol é à toa:

por causa dele há dia

a borboleta surge

e voa

nenhuma lua à toa:

causa seu giro noturno

a maré para os peixes

tão boa

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Entediado

podia vir a hora tardia

para dormir em paz a noite

mas: não há pausa interior

os sons de dentro estão altos

e gritam entre as paredes da alma

passado, passado, passado e então

fico entre o tempo do descanso e

o tempo do tédio, entediado

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Intervalo de eras

a noite estaciona o tempo na ladeira

o peso de séculos arqueia o horizonte

(talvez a volta ao mundo seja possível

por causa do peso imenso das eras)

o homem e a mulher em anonimato se amam

a geração nova ainda não existe mas virá

(talvez a fecundação da mulher seja provável

por causa do amor em suas entranhas)

o bicho de asas e o bicho de pelos noturnos

imploram como eu o ciclo da vida recente

(talvez o alimento para manter a vida exista

por causa da natureza das coisas vivas)

a vida é um intervalo de eras

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A cor do dia

a cor do dia

se associa

fundo azul

alegria

a cor do dia

se fantasia

carnaval

sacia

a cor do dia

se envolvia

mistura fina

nascia

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Pulação

enquanto eu vejo há horas

quando adormeço

desapareço

enquanto eu pulo há cordas

quando imobilizo

tranquilizo

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Alma do mundo

a noite atravessou a alma do mundo

a minha, no mundo, então: travessia

todo dia é uma transição insistente

a lua iluminou a face do mundo

a minha, na terra, então: luzia

todo dia é uma iluminação constante

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Cama e maca

deixo-me inerte na cama

oito horas inteiras

quando retorno:

ainda sou

deito-me inerte na maca

um minuto inteiro

quando levanto:

ainda sou

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Enquanto

enquanto houver palavra

defino-me

enquanto houver lavra

cultivo-me

enquanto houver ala

perfilo-me

enquanto houver pá

aprofundo-me

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Esfera de tempo

o mundo é a esfera das horas

giro em torno delas e vou

em estações, revirado

revirando-me

o mundo tem alma de passado

o futuro não lhe comove

é distração, passageiro

passando

eu no mundo sou apenas

estar no mundo e basta

não me incomodo em ser

sendo, sou com o mundo

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Por hora

por hora

sou apenas moda

passa, depois

fora

por tudo

sou apenas nada

faço, depois

mudo

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Hoje o dia acordou belo

hoje o dia acordou belo: repleto de silêncio

pois o silêncio sempre abraça o interior meu

dia de beleza desde cedo quando vi a luz da paz

espraiar-se sobre o passado que insistia em pulsar

hoje o dia acordou belo: repleto de mim mesmo

como um primeiro oxigênio invadindo o nascimento

dia de leveza desde a primeira hora matinal

deixar-se ser apenas flutuante no mundo

em calma navegação

alma navegação

negação

ação

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Nascimento

o nascimento, primeiro, não foi nascimento

de fato: foi apenas parto, hoje farto

renasço, renascendo, faço

renascimentos

não, não nasci no parto, surgi em ato

no mundo tanto de tanta gente farta

eu sei que o mais importante

foi depois: reparto

nascer de novo, outra vez, rolar dados

sem medo, assumir o erro, do erro, dado

não se importar com o orgânico, organizar-se

de novo, em tantos fatos, dados: nasço

e me traço

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Poesia em piano

o piano sem voz

os dedos tem força

de garganta aberta

certo: ouvi sua alma

em piano de calda

metálica tecla

saudade eterna:

seus dedos

deixaram digitais

no tempo, meu tempo

de lembrar-me ao seu

lado em noite de lua

cheia... sons nossos

nossos suores são

outros sons na noite

eternamente

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Inútil jamais

depois eu me perguntarei

se valeu a pena tanta espera

de mim – chegar até mim

caminho difícil

inútil, jamais

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Tudo, tudo

nem a noite fria

nem a lua cheia

nem a voz leve

nada, nada, nada

me fez encontrar

o que procurava

fora de mim: dentro

tudo, tudo, tudo

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Signo

não escrevo versos em alemão

me espalho em versos, chão

e rolo por sobre palavras

em português misturado

em eras e eras do tempo

meu verso sai misturado

com o mundo: palavra

é signo temporal

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Míssil

incrível

acreditar

no míssil

ele não mata

ele explode

apenas

a morte é outra

outra coisa

apenas

incrível

acreditar

no fim

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Vida e ser

ao invés de mim

havia outro, ali

era a superfície

do que chamamos

vida

ao invés de mim mesmo

havia outro menos

era apenas rapidez

do que chamamos

ser

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Highway

estrada nunca acaba

passa, sim, a hora

de achar-se no rumo

enfim: caminho

há longa rota traçada

o mundo tem mar, céu, terra

achar-se nem sempre é fácil

assim: dentro

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Cheio

vazio no dia, nem frio, nem calor

estado interior de alma no tempo

o cheio foi ontem, passado, dado

agora, em frente, respostas vagas

fui o mesmo até agora, cheio, sim

cheio de mim mesmo, agora quero

outro, vazio para ser de novo

essencialmente, mutante em mutação

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Biológica

a rosa na janela vive vida intensa

ser apenas sendo a si mesma: biológica

eu não sou rosa, nem tenho essência lógica

meu interior tem rumos estranhos, entenda!

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Sustentação

o chão da floresta

não é o que resta

antes, renasce

faz festa

o chão da casa

não é o que cansa

antes, sustenta

pra dança

o chão do querer

não é o que é

antes, mudando

faz ser

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Repulsa

o coração pulsa

mas a alma, antes

pulsa, toda

tola

a alma sente muito

como eu sinto tanto

quando expulso de mim

sentimento todo

o coração expulsa

se a alma repulsa

realiza: há ser

fundo no corpo

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Não compreendo sua alma

não vou brincar com seus sentimentos, belos, inclusive,

não tenho pretensão de ser outra pedra de tropeço no

seu insuportável desespero

não vou atrapalhar sua ida ao fundo de seu desejo,

abjeto, quarto de despejo, de lixo inteiro, não quero

ser descartável ensejo

fique como quem fica extasiado

diante de alguém já amado

não compreendo sua alma

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Rua

Intrigante cena. Quando saio de casa

volto com a casa cheia de ideias, cores,

palavras e gentes, queria: apenas

casa vazia.

Perpétua cena. Quando entro em casa

trago memória do vento em pele, poros,

assuntos de clima, queria: fosse

casa vazia.

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Velha ossatura

o músculo sobre a ossatura

era apenas moldura do tempo

hoje os ossos de dentro

revelam: hora de ir embora

a cada osso evidente, cotovelos

joelhos, dentes em amarelo intenso

tudo isso que vem de dentro

eu sei bem, tempo: estou velho

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A volta dos ponteiros do relógio

a volta dos ponteiros do relógio

de qualquer relógio do mundo

nunca volta quem sou eu

eu me perco no tempo

não convém tentar conter as horas

nem antecipar o que virá, o ponteiro

não é metafísico, antes, natural

me contém num ciclo linear

o tempo não é bobagem

é imagem do ser no tempo

o signo de mim mesmo

dentro: é o que resta,

sempre

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Esquecimento

talvez depois do almoço eu volte

a sentir o que ontem eu sentia

(e sabia que sentia e hoje

por força das circunstâncias

acabei me esquecendo do que

eu deveria saber que sentia)

perdão: eu prometo que a memória

um dia voltará a nos encontrar

amáveis e amando outra vez

(por enquanto preciso ficar só

esquecido de que fomos dois

esquecido de que fomos nós)

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Certo do verso

a largura do verso

vai da profundeza

da alma do sujeito

lendo o reverso

(o certo nem sempre

aparece no verso)

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Em-si

não sinto o peso do teto

da estrutura em cimento

com veias de aço

sinto apenas pena dele

um peso se saber-se

pesado

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Cheiro de fumo

o cheiro da rua se impõe

como se obrigam os olhos

a olharem o chão

o fumo em rolo da venda

espalha pelo ar

o pito

fumaça espalhando

cheiro de mato

no mato

até que se vê quem de fato

consome: puramente no dia

aquela fumaça em cheiro

homem da roça

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Cheiro de açougue

as partes dependuradas

da dor dos bichos

presos

sempre

uma rapadura no canto

denuncia o ciclo

nascer

morrer

a rala em branco forte

substrato do queijo

tem sal

tem biscoito premeditado

no açougue da esquina

o cheiro de morte

e de vida

são fortes

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Cheiro de couro

na selaria o cheiro de couro

relembra a fazenda que não tive

apenas em torno dela

vivi a infância

minha cidade tem fazenda na alma

o leite, o queijo, a carne, os costumes

a voz das almas da maioria se ouve

em tom de nostálgica ruralidade

nunca montei em cavalos com sela de couro

mas sei bem o que significa para todos

o barulho das ferraduras no calçamento

anunciando as trocas entre campo e cidade

o cheiro do couro tem passado e presente

e me envolveu na tarde de rodoviária lotada

de homens e mulheres e crianças tantos:

difícil não voltar à infância...

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Cheiro de sorvete

este não senti, só me lembrei e era domingo

quando meu pai me pegava pela mão

e íamos até noquinha da churrascaria

comer pastel folhado e na taça de metal

anos cinquenta, sorver o sorvete de creme

(por essa época não havia a mania de menino

comer chocolate e morango, nada disso)

em delírio de tempo parado

os domingos se foram, tantos, fiquei eu

sentindo até hoje, em domingo, cheiro

de sorvete de creme em taça de metal

de noquinha da churrascaria...

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Noite de férias

Noite de férias não tem gato no muro

eles estão, como, eu, amparados

pelo calor de algo, de alguém

na casa, na cama

ou para além de si mesmos

perdidos no calor do pensar-se

ah, pensar! tão indispensável

como calor nas férias de julho

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Prisão

a prisão da noite é o sono

vou para dentro dele

e me guio por mim

preso em mim

tão preso, tão solto

tão perto, tão longe

pesado, leve

bom, ruim

grilhão tão forte

arrasta-me até outro dia

e me solta nele, outro

preso à realidade

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Lua fria

olho a lua na noite fria

sempre distante, linda

mesmo, bela, feita luz

para a escuridão

feitio de inverno, chão

erigido, rosto do sistema

solar, não, lunar sou

quero lua todo dia

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Amor e canção

sozinho me resolver

para poder estar bem

dentro e sorriso nascer

em ramas para fora

o mundo não quer

problema, quer solução

eu também: quero música

quero amor e canção

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59

Sonho

o sonho me leva para onde quiser

eu vou, obedecendo a imagem

e ao som eu penso: verdade

mas não: o sonhos apenas

uma entidade passando por mim

deixando o rastro perene da ação

tola ação, sujeita ao esquecimento

dela e também de mim: sonho é tolice?

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Barco

o movimento dos barcos na noite

como eu em balanço: criou ondas

mas ondas não são da alma

são do mar e o mar

não sou eu agora, sou mais

agitação completa de estar

no mundo, em alma cheia

de ventos de tempestade

prenúncio: mudança

nova dança das horas

outro movimento

outros barcos

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Escada

estou no meio da escadaria

que vai da praça joão pinheiro

ao alto da santa rita - linha do tempo

meio da vida

antes, passando, o passado

agora, meio, estando

depois, fim, finalizando

tudo evoluiu

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62

Hora e tempo

em volta, hora e tempo

em torno, hora e tempo

em tudo, hora e tempo

em vida, hora e tempo

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63

Futuro

eu me sujo de passado

no dia pleno de novidade

e assim a vida segue: lama

por lados de mim

eu me inundo em lembranças

de ontem, anteontem, jamais

fico por dentro em redemoinho

por dentro de mim

queria a noite me desse apenas

futuro, futuro, futuro

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Visão de dentro

vejo-me dentro

centro, visada

periferia, ousada

sei o que sou

em sendo, nada

em tendo, pouco

em cheio, vazio

em mim, fora

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A noite é apenas uma contravenção

a noite não me dá nada

nem sentido, nem motivo

tira, como quem tira fácil

o sorriso tolo do dia

a noite não sabe de mim

nada, nada me coube assim

dentro do tempo de ser eu

a beleza é a nostalgia das horas

a noite não me quer pronto

sempre acabando de ser outro

deixando de ser o que fui

estou certo da incerteza

a noite não me cospe na cara

me deixa ao próprio desamor

fluindo saudade de tempo outro

em que a luz era tão certa que me guiava

a noite não rejeita, tolo eu

ela apenas me despe levemente

para sentir o frio do corpo fútil

passando como as luas em fases postas

a noite é apenas uma contravenção

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Total imobilidade

passei os olhos na fotografia

a primeira que me aparecia

revelação, nenhuma: eu era

eu mesmo em outro tempo

memória do cheiro, não tenho

da fase da lua, não sei mais

se era verão ou inverno, não capto

sei apenas de mim em outro tempo

em total imobilidade

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Calma

talvez, resolva, amanhã

por agora, não quero

mexer no tempo bom

de ser calmo

a alma quer

calma

alma

calma

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Terra vermelha

a terra vermelha me faz bem até hoje

seja no beco em calçamento descascado

em inverno de noite de tremer os ossos

e se embrulhar na barriga da noite mãe

o tom de vermelho varia se é noite

e intensifica se é dia mas não me assusto

a poeira do tempo passa dentro da memória

e me sinto em casa, como em aldeia

o móvel limpo não fica e resta apenas

limpeza mas eu menino nunca tive problema

a rua me sujava de mundo e imundo para casa

encontrava as mãos de minha mãe para limpar-me

a terra vermelha tem redemoinho de vento

e se o diabo ali passa, dá azar a quem escreve

o nome no muro: o muro cheio de nomes eram escritos

em pedras vermelhas... sujar as mãos de letras

memória afetiva de deus e do diabo

na terra dos fazendeiros de mãos ásperas

eu nuca fui como eles: sempre cultivei

na alma letras de vermelho intenso

escrever é chamar dissabores

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Coaxo

nunca vi sapo na rua

sapo dá no brejo

ou no rio e lagoa

e minha casa era longe

demais de tudo isso...

pudera: quando dava o coaxo

em noite de frio intenso

no exato momento de acasalamento

e da festa dos bichos da noite

eu dormia e sonhava e fortalecia

a imaginação de sonho e voo

por cima de casas coloniais

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Conveniência

sincero eu fui até a infância

depois aprendi que o certo

é ter medo do que penso

e passei a falar o que

convinha: as visitas são seres

merecedores de atenção vária

não podem receber a verdade

de criança desaforada

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Mentira

eu me esforço

para ser eu mesmo

mas ninguém merece

saber se erro, outro

ser é aqui eu mesmo

não me sou certo, fujo

em catação de sentido

eu os tenho, saiba

mas não os digo, antes

calo em mim o que sou

para antes de dizer

te amo saiba:

minto sempre

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Platão

eu me acostumei a ser eu mesmo

fora de mim, sei o limite, claro

até onde ir, como ficar, o que fazer

mas dentro sou livre, tão eu mesmo

mesmo perdido na circunstância

interpreto o outro e sei: dentro

sou o pensante, falante, submisso

apenas ao diálogo de mim

comigo mesmo: vivo em Platão

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Ausência

então me cai você

de algum lugar

do passado interior

e fica bailando

por eternos minutos

em boca, em olhos

em tempo imortal

como lhe encontro

quando menos espero

e se espero não sinto

é o improviso: me dá

a exata dimensão sua

absoluta ausência

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Olhar perdido

olhos

nos meus olhos

seus olhos

pronto: eternidade

olhos

nos seus olhos

meus olhos

pronto: ansiedade

nos olhos nos vemos

ou nos perdemos

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Mesmo em ouro preto

focar os olhos

dentro da neblina

para ser olhos

fechados no mundo

neblinei-me ontem

e dentro ficou tanta luz

tanta clareza

tanta certeza

o melhor está por detrás

do tempo de frente é futuro

o melhor é junto, presente

pressinto alegria mesmo

em ouro preto

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Interna

oculto aos olhos

nada fica, sei mesmo

por tanta nuvem

há sol

se há sol

haverá lua

mesmo no meio

do temporal

nada me é estranho

agora, então, nada mesmo

depois da sombra dos dias

reluz algo: interna luz

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Primeiro verso

último verso se dando

desde o primeiro, tanto

vou sem saber quanto

se deu em lua ou dia santo

último verso e pronto

se é último, sem pranto

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Tarde sepultada

a tarde sepultada, vai

para onde vão os sonhos

da manhã quando acordando

queria tanto do que se vai

a tarde não fica, sai

como partiu de mim o som

da voz deixada em ouvidos

tantos, que me traem

a tarde se acaba

fria como a rua

deserta do dia

expulso do tempo

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Tessitura do silêncio

o silêncio tecendo a vida

acontece o interregno entre

uma coisa e outra coisa, basta:

ausência é também realidade

o frio na barriga trazendo medo

o fato, mesmo não existido, talvez

seja, mesmo breve, tenha

consistência (como realidade)

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Xamã

ficar

sem medo

sem receio

sem fome

sem sede

sem êxtase

sem tempo

sem vontade

sem futuro

ficar

apenas ficar

ficar

.............

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Big bang: palavra

quando em poesia

entro em universo

paralelo

quando em poesia

entro em parafuso

difuso

quando em poesia

entro em decadente

elegância

quando em poesia

entro em risada

metafísica

quando em poesia

entro em miragem

sonambúlica

e de mim nada resta

fico à deriva da palavra

que me cata e forja

em mim, algo de mim

entrou e depois: universo

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Eu não fui o que queria, mas fui eu mesmo

atrevesse ser mais

seria eu mesmo?

ou travesso sendo

seria o avesso?

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Enquanto estiver frio

enquanto estiver frio

para além da janela do quarto

eu fico: entre livros e páginas

mortas de anos e tempos tantos

o frio me chama para dentro

onde nada há senão eu mesmo

e se outros querem me falar

palavras tantas são bem-vindas

enquanto estiver frio

para além da pele do corpo

eu resto: entre frases prontas

tantas, me aquecendo a imaginação

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Fora

decidi: por fora

ser aqui dentro

fiquei com medo

sei: frio intenso

duvidei: acho pouco

ser de fora

aqui dentro

sei: o mundo muda

não mudei: estou

como estava ontem

eu mesmo

sei: sou permanência

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Entediado

o tempo fechado, nublado

é nuvem única no céu

imensa nuvem encharcada

borrando de água o telhado

o tempo nublado, arqueado

lança ao dia outro estado

ficar em si, dentro enfim

deitado, ou simplesmente

entediado

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Sem

o último verso venha

para saber completo

o sentido da história

o que fui, acabado

mas antes, se der...

venha a luz do dia

em sol de montanha

entre andorinha e outra

não quero escrever

o último verso assim

entre a chuva da noite

sem lua e o dia em chuva

sem esperança

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Livro

o que há entre mim

e você, de páginas

abertas esvoaçando

palavras sem fim?

o que fica depois

saudade, e nada

ou, saudade de tudo

dito entre parágrafos?

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Ilusão

vejo tão perto

mesmo desperto

o que em mim é

certo

nada mais é

que calor

em inverno

ao meio dia

é falso frio

na madrugada

de verão

do deserto

vejo tão perto

mesmo desperto

nada em mim é

concreto

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Dia do vazio

separado de mim, em noite, dia

noite sem fim, dia longo demais

fico, agora, estático, diante

do espelho: não sou esta imagem

receio ser outra coisa, pulsante

dentro em outra imagem embaçada

e forte e viva e radicalmente

eu mesmo: não mudo, antes

fico, no tempo, perdido, tentando

encontrar em meio à noite de mim

um fio de luz... me conduza talvez

para outro início de mim mesmo

por certo: hoje é o dia do vazio

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Rosto

no rosto, em tempo: vejo além

não que eu tenha poderes antinaturais

nada disso, compartilho, apenas:

seu rosto me diz muito mais de você

o contorno do tempo em torno dos olhos

o tremer delicado dos lábios em dúvida

(falar ou não é em você uma pressuposição

de tempo e espaço preenchido não preenchido)

a sobrancelha esquerda diferente da direita

em tamanho e em cor (minúcia do sol da cidade)

enquanto a voz se repte em torno de si mesma

buscando ouvir a certeza da dúvida antiquada

rosto é assim: apresenta a nós o si dos outros

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Como Oscar Wilde

abria o dia

como um livro de Oscar Wilde

um retrato era a paisagem urbana

cobria meu ser de negação

de fato, a cidade, não se abre

emoldura, apenas, em ação, eu mesmo

negando a visão interior, bela ou não

a cidade: em torno da vulgaridade

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PARTE II – AO ESTILO DA ERA

[QUANDO O POEMA DE AGORA SE MODELA

EM JORGE LUIZ BORGES]

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Informação

A porta se abriu para o trabalho. Não hesitei.

Fui para um outro dia em rol de dias dados.

Nada se faz tão forte quanto a obrigação.

Então, trabalhar pode ser realmente necessário.

Não sei se minha alma sabe o que é ócio produtivo.

Talvez eu queira em meio à poesia das horas, ócio.

Quem sabe estar assim como estou me fazendo, melhor.

Não posso ultrapassar senão o limite do que é real.

Vou voltar à vida cotidiana. Sem ponto final.

Agora é momento de iniciar um dia: sem filosofia.

Aquieto-me questões. Faço pragmatismo. Faço rotina.

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A era da vulgaridade

Antes, era apenas falar. Pensar, depois.

Agora, hoje talvez, fosse assim outra coisa.

Eu não fiquei silenciado por minha vontade.

É a vida em mim, sobressaltada antes, aprendiz de fato.

Não. Não me convém mais dizer sem aquele lapso.

O lapso entre o falante e minha retórica: tempo.

Não. Não falo rapidamente. Ouço e aproveito o ouvir.

Quanta bobagem se diz hoje em dia.

Dos velhos, pouca sabedoria.

Dos novos, nenhuma originalidade.

O mundo em volta me cala. Retorno: o vento.

A ventania me é mais saudável: me dá ar novo.

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Não sei

Não sei. Não sei quanto. Nem o quê.

Nem poderia. Sou apenas cria da era.

A era é depois dela, verdade.

Em si, sendo, é realidade vesga e dúbia.

Não há certeza no que escrevo. Mérito aos poetas!

A era de agora, vivendo-a, sinto medo, torpe medo.

Não sei. Não sei nada. Nem quando.

Nem poderia. A verdade é um peixe no aquário.

O peixe está zonzo, encurralado, no tempo.

Pronto: eis o sinal definitivo do que sou: já era.

E se não sou mais uma nova era começou: pacto novo.

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Talvez

Talvez minha sombra sobre o Viaduto Santa Tereza faça

algum sentido na tarde para um jornalista, para um

gari, para um estudante imbecil descendo para o centro

da cidade grande em tamanho de projeto arquitetônico.

Ou talvez nada faça sentido, pois. Sentido é

significado em palavra ou imagem. Semiótica vaga a

necessidade de ser útil para-o-outro. Sartre talvez

esteja errado e o certo seja o outro depois do nada.

Sai de casa para encontrar meu corpo vago. E vagueia na

horizontalidade do viaduto de concreto e veias de aço

em ferrugem carcomido. Não pretendo mais sentido: seja

este vazio apenas algumas letras jogadas no papel.

Talvez.

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Morra, minha cidade!

A alma de minha cidade infantil (a lembrança do Serro

esculpiu em mim a nostalgia culpada de sempre estar

fora do lugar certo) é velha demais e nunca se

reencarnou.

Viva, sacrifica horas em eras tantas (mais anos de

existência que as contas de Nossa Senhora do Rosário) e

não faz festa pois não sabe o que é ser reencarnada:

precisa morrer.

Minha cidade precisa morrer para reencarnar-se. Sem

saber que foi. Que era. Que teve passado. Que foi

santa, pudica. Que foi velha. Precisa morrer para fazer

alma renovada.

Eu? Eu tenho que matar minha cidade todo dia em mim

para ser mais maduro (o que não sei se é bom ou ruim).

Em mim sobrevivem os erros da infância machucada de

dores idiotas. Nada mais: temos e devemos morrer um

dia. Eu e minha cidade.

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Metafísica: Verdade ou Fado

A fissura da alma mostrou o avesso da vida.

Isso mesmo: a vida não tem nada de alma. É corpo.

Corpo não tem metafísica. Somente a alma. Sofro.

Se sofro, corpo? Não, se sofro, alma.

Corpo apenas repete o mesmo, senão morre.

Alma reescreve, ou tenta, por isso dolorida fica.

Na alma cabem todas as Verdades. Por isso, vazia dói.

A Verdade ou o Fado (como diria Pessoa): eis o de alma.

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O lago das eras

Narciso teve lago para se olhar. Morreu triste.

Pulmões sepultados em água de dúvidas. Era feliz?

Devera ser. Pudera ser. Se fosse além de si mesmo.

Mas como ser além de si mesmo: tão belo moço?

A Beleza é Fado. A Beleza é Verdade. Há beleza?

Ou apenas há um sujeito pensando em Beleza e Verdade?

Narciso teve um lago inteiro para olhar.

Viu apenas a si mesmo e não as eras.

As eras na água retratadas. A água nunca é a mesma.

Por que seria a Beleza a de sempre?

Olhar a si mesmo. Sem visão periférica.

Narciso morreu por causa da miopia.

Chamem o oculista para o lago. Ou para Narciso.

Ou para as eras.

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Andorinha

O dia na montanha começa com andorinha. Ninguém vê.

Mas quem veria andorinhas para nascer o dia? Eu.

E era inverno. E era de rara beleza ver andorinhas.

Andorinhas são azuis de matizes vários. São brancas.

Quando voam aos olhos são azuis e brancas. E cantam.

E eram tantas. Meu dia nasceu pleno de variedade.

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O retorno do recalcado: gambá

Minha cidade natal (não se trata de dezembro) faz

madrugada com gambá na árvore. Ou galinheiro. Ou dos

dois se faz barulho de alta noite. Não importa: há um

bicho entre a madrugada e o acordar dos homens sérios.

Quem vê? A lua. Não sempre. A lua é de fases. Nem todas

as fases da lua interessa gambá. Tem fase de ocultar

qualquer desejo. Tem fase de clarear pé de jabuticaba.

Tem fase de eclipsar-se furiosa para alertar, carente,

os astrônomos.

Eu via também. Não como a lua em fases. Via corpos

mortos na manhã seguinte da madrugada fria. Os gambás

são seres da noite. Anoitecer no homem dá medo: o ódio

aos gambás é espelho do homem da montanha. Minha cidade

natal tem gambá morto por homem recalcado.

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102

Folha seca: era

A era cai feito folha seca. Ou talvez não tão seca

assim. Mas digo: é tempo de ser outra coisa. Folha

caída é outra coisa; Não é árvore mais. Como o tempo:

ainda em era, válido. Depois: categoria histórica. Não

me compadeço por folhas nem eras. Tudo modifica mesmo.

Até minhas mãos, tão leves, eram. Hoje, pesadas,

quietas, mais quietas do que o de sempre, estacionam.

Hoje, o corpo não se mexe tanto. Mas a mente vai tão

longe. Vento bom é ideia com ideia atritando. Atrito de

ideia é vida interior.

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103

COM OCLUSÕES – O FIM É O COMEÇO DE OUTRA COISA

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104

Soma metafísica

quem

fui

não

sou

mais

resultado:

um menos um

zero

tudo

multiplicado

por zero

é nada

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105

Existenz

projeto

existo

vai viver, rapaz!?

desisto

resisto

vai reclamar, rapaz!?

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Sabedoria

Deixar de ser, aos poucos

O que fui, ontem. Sempre.

Mudar é resto de sabedoria.

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Última

Nenhuma batida do sino da Igreja de Santa Rita é à toa.

Nenhuma batida do meu coração foi à toa.

Nenhuma batida das teclas, também.

Nada foi à toa.

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DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em Serro, no ano de 1972. Graduado,

pós-graduado e mestre em filosofia. É professor

do ensino médio e universitário (graduação e

pós-graduação). Mora em Belo Horizonte.

Autor de livros e textos de história, de

fotografia, de filosofia e de poesia. Conserva, na

poesia, ligação umbilical com a cidade natal.

Para se ter com a grande aventura de ser

brasileiro, mineiro e serrano, evoca no seu eu

poético um regionalismo próprio. Todos os

livros estão disponíveis para download gratuito

no site oficial.

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Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz, 2014

Todos os direitos reservados. Permitida a cópia/citação, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas desde que lhe sejam

atribuídos os devidos créditos do autor por escrito.

Imagens

Capa: Igreja de Santa Rita, 2013, do autor. Rosto: Serro, 2013, do autor.

Autor: Cabo Frio, 2014, autorretrato. Copyright: Igreja de Santa Rita, 2013, do autor.

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