10
COSTA, Matheus Oliva da. Divulgação do taoísmo no Brasil: apontamentos a partir da tradução do daodejing por Wu Jyh Cherng. In: Simpósio Regional Sudeste / Simpósio Internacional da ABHR, 2013, São Paulo. Anais do Simpósio Regional Sudeste / Simpósio Internacional da ABHR, 2013. p.2049-2059. Disponível em: http://www.sudesteabhr.net.br/anais/ DIVULGAÇÃO DO TAOÍSMO NO BRASIL: apontamentos a partir da tradução do Daodejing por Wu Jyh Cherng Matheus Oliva da Costa 1 1. Encontrando o caminho - Introdução O presente trabalho é o começo de uma pesquisa de amplitude maior sobre a transplantação de uma linhagem taoísta no Brasil, institucionalizada como Sociedade Taoísta do Brasil. Pesquisas sobre taoísmo no Brasil são escassas, e pesquisas que estudaram pessoas taoístas, que estudaram a tradição viva, são ainda mais raras. Destaco os trabalhos acadêmicos do brasileiro o caso de José Bizerril (2007), antropólogo pioneiro no estudo empírico sobre a tradição taoísta em nosso país, especificamente a linhagem do mestre Liu Pai Lin. Há também os trabalhos do cientista da religião canadense Daniel Murray (2010) que estudou um grupo da linhagem Zhengyi, a Sociedade Taoista do Brasil. Esse último grupo, a linhagem taoísta do sacerdote Wu Jyh Cherng (1958-2004) e fundador da Sociedade Taoísta do Brasil, também está sendo estudado aqui. Em nosso estado atual de pesquisa, observamos no site dessa instituição e em obras do mestre/sacerdote Cherng descobrimos que d a Sociedade Taoísta do Brasil (STB) havia dado uma importância significativa a traduções de textos sagrados taoístas e a materiais escritos em português sobre taoísmo. Assim, como um primeiro passo em nossa pesquisa sobre a STB, vamos analisar um dos primeiros textos publicados por Cherng: a tradução do Daodejing (Tao Te Ching). Faremos isso não como uma exegese, até por que essa função é uma demanda interna da tradição. Vamos ler os contornos dessa obra taoísta numa perspectiva interpretativa, objetivando encontrar pistas sobre os modos de divulgação do taoísmo em seu processo de transplantação ao Brasil nosso objeto de estudo e tecer alguns apontamentos sobre a temática. Trata-se de uma leitura sociocultural da divulgação da tradição taoísta no Brasil, e por isso, buscamos responder: quais foram os recursos usados por Cherng para divulgação do taoísmo? Quais meios ele utilizou? Qual o objetivo da sua retórica? Por que ele teria traduzido essa obra? 1 Graduado em Ciências da Religião (Unimontes). Mestrando em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisador bolsista do CNPq e membro do CERAL. Orientador: Frank Usarski. Email: [email protected]

Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto ABHR Versão FINAL Com Referencias - Matheus Costa

Citation preview

Page 1: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

COSTA, Matheus Oliva da. Divulgação do taoísmo no Brasil: apontamentos a partir da

tradução do daodejing por Wu Jyh Cherng. In: Simpósio Regional Sudeste / Simpósio

Internacional da ABHR, 2013, São Paulo. Anais do Simpósio Regional Sudeste / Simpósio

Internacional da ABHR, 2013. p.2049-2059. Disponível em:

http://www.sudesteabhr.net.br/anais/

DIVULGAÇÃO DO TAOÍSMO NO BRASIL:

apontamentos a partir da tradução do Daodejing por Wu Jyh Cherng

Matheus Oliva da Costa1

1. Encontrando o caminho - Introdução

O presente trabalho é o começo de uma pesquisa de amplitude maior sobre a transplantação

de uma linhagem taoísta no Brasil, institucionalizada como Sociedade Taoísta do Brasil.

Pesquisas sobre taoísmo no Brasil são escassas, e pesquisas que estudaram pessoas taoístas,

que estudaram a tradição viva, são ainda mais raras. Destaco os trabalhos acadêmicos do

brasileiro o caso de José Bizerril (2007), antropólogo pioneiro no estudo empírico sobre a

tradição taoísta em nosso país, especificamente a linhagem do mestre Liu Pai Lin. Há também

os trabalhos do cientista da religião canadense Daniel Murray (2010) que estudou um grupo

da linhagem Zhengyi, a Sociedade Taoista do Brasil.

Esse último grupo, a linhagem taoísta do sacerdote Wu Jyh Cherng (1958-2004) e fundador

da Sociedade Taoísta do Brasil, também está sendo estudado aqui. Em nosso estado atual de

pesquisa, observamos no site dessa instituição e em obras do mestre/sacerdote Cherng

descobrimos que da Sociedade Taoísta do Brasil (STB) havia dado uma importância

significativa a traduções de textos sagrados taoístas e a materiais escritos em português sobre

taoísmo.

Assim, como um primeiro passo em nossa pesquisa sobre a STB, vamos analisar um dos

primeiros textos publicados por Cherng: a tradução do Daodejing (Tao Te Ching). Faremos

isso não como uma exegese, até por que essa função é uma demanda interna da tradição.

Vamos ler os contornos dessa obra taoísta numa perspectiva interpretativa, objetivando

encontrar pistas sobre os modos de divulgação do taoísmo em seu processo de transplantação

ao Brasil – nosso objeto de estudo – e tecer alguns apontamentos sobre a temática. Trata-se de

uma leitura sociocultural da divulgação da tradição taoísta no Brasil, e por isso, buscamos

responder: quais foram os recursos usados por Cherng para divulgação do taoísmo? Quais

meios ele utilizou? Qual o objetivo da sua retórica? Por que ele teria traduzido essa obra?

1 Graduado em Ciências da Religião (Unimontes). Mestrando em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisador

bolsista do CNPq e membro do CERAL. Orientador: Frank Usarski. Email: [email protected]

Page 2: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

2. Observando o caminho – contextualizando a pesquisa e a tradição

Isabelle Robinet (1997) em Taoism: Growth a religion estudou a tradição taoísta por fontes

empíricas e documentais. Sob esta perspectiva, ela buscou a história e a definição do taoísmo,

e em sua proposta ela nos atinou para uma importante pista que inspirou essa comunicação:

“Um caminho para definir os seus limites é por meio do Canon Taoísta (Daozang)”2

(ROBINET, 1997, p.2). A autora alerta que os textos sagrados taoístas são somente uma parte

dessa tradição. Entretanto, ela mostra em seu livro como o canon taoísta expressa de forma

significativa, ao mesmo tempo, a rica complexidade cultural dessa tradição e também como o

taoísmo é um todo coerente, um sistema.

Na esteira de Robinet (1997), escolhemos trilhar nossa pesquisa inicialmente pela

interpretação sociocultural do Canon Taoísta em português presente no Brasil. O motivo

dessa escolha é pautado também por uma observação empírica do grupo com quem fazemos

nossa pesquisa: a linhagem trazida de Taiwan pelo mestre Wu Jyh Cherng ao Brasil, ligada a

tradição Zheng Yi (Ordem Ortodoxa Unitária) e institucionalizada como Sociedade Taoísta do

Brasil em 1990, foi o primeiro grupo a investir na publicação de diversos textos taoístas.

Dessa forma, assim como Robinet (1997), temos o Canon Taoísta como um primeiro critério

para delimitar nosso objeto de pesquisa. Mas neste paper a análise interpretativa desse Canon

também será uma ferramenta para nos ajudar a compreender o processo de acomodação do

universo taoísta da Sociedade Taoísta do Brasil.

O pioneiro na pesquisa do taoísmo como tradição viva no Brasil, José Bizerril (2007, p.187),

chama a atenção também para a forma como essa tradição é transmitida ao público brasileiro:

“para compreender como práticas baseadas em conceitos tão estranhos [...] às formas

hegemônicas de cultura brasileira, é preciso prestar atenção à maneira como é feito o

aprendizado”. Ou seja, dentro do processo de transplantação ou transnacionalização, como as

pessoas que difundiram a tradição o fizeram? Antes de responder a indagação, esclarecemos

aqui o que entendemos com o termo transplantação: em poucas palavras, trata-se de um

processo de difusão e divulgação de uma tradição a um local geograficamente distinto.

O mestre Cherng tem uma lista relativamente extensa de publicações sobre teorias e artes

taoizantes. Ainda vivo publicou três livros de sua autoria, Tai Chi Chuan – Alquimia do

2 Na versão traduzida para o inglês: “One way to define its boundaries is by means of the Taoist Canon

(Daozang)” (ROBINET, 1997, p.2).

Page 3: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

movimento (1989), I Ching – A Alquimia dos Números (1993. Ambos pela editora Objetiva) e

Iniciação ao Taoismo (2000, pela editora Mauad, que posteriormente editou também os dois

primeiros). Também traduziu diretamente do mandarim (chinês) uma das mais importantes e

mais conhecidas obras do taoísmo: o Daodejing (grafado como Tao Te Ching, em 1998 pela

editora Mauad), além de outras publicações escritas (jornal Tao do Taoismo ou entrevistas,

por exemplo). Houveram também cinco livros publicados após seu falecimento em 2004,

compilados e editados por discípulos e discípulas3. No momento, é interessante trazer à tona

especialmente a versão comentada pelo mestre Cherng do Daodejing, publicada em 2011

também pela Mauad. Na apresentação dessa versão, sua discípula Marcia Coelho de Souza

(SOUZA, 2011, p.15) comenta:

Na juventude, quando abraçou o Caminho Espiritual Taoista, Wu Jyh Cherng fez um Voto

de difundir o Taoismo no Brasil. Para iniciar sua trajetória de vida devocional aplicada à

doação do conhecimento que se preparava para fazer ao mundo, escolheu, por orientação dos seus mestres chineses que viviam em Taiwan, o Dáo Dè Jing, o Livro do Caminho e da

Virtude, como o texto base de divulgação daqueles ensinamentos.

Podemos perguntar: a citação acima já não deixa explicito que havia um projeto de

divulgação do taoísmo no Brasil? Há pouco tempo tentamos mostrar4 como a situação

econômica internacional é propícia a esse intercâmbio cultural entre o Brasil, a República

Popular da China (China comunista) e a República da China (Taiwan), devido a aproximações

econômicas e políticas entre estes países nas ultimas décadas. Mas pensar sobre como se dá

esse projeto de divulgação dentro de todo este quadro sociocultural cria ainda mais

indagações. Como um exemplo empírico de uma ferramenta usada para a divulgação da

tradição, vamos agora interpretar a tradução do Daodejing feita por Cherng (1998).

3. Trilhando o caminho – processos culturais da divulgação taoísta

3.1 Tradução como divulgação da memória da tradição

O Daodejing, ou Tao Te Ching como é normalmente grafado no Brasil, já é conhecido pelos

leitores brasileiros a um bom tempo. Um dos seus primeiros tradutores, Humberto Rohden

3 Estes títulos podem ser vistos em uma pagina no site da STB: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-

taoista/livros-e-publicacoes/. 4 Ao dia 7/06/2013 apresentamos uma comunicação intitulada Taoísmo no Brasil: presença e modalidades de

sua transplantação no século XX no II Encontro de Pesquisa em História da UFMG - EPHIS, realizado entre os

dias 04 e 07 de junho de 2013 UFMG (Belo Horizonte-MG). Os anais do evento ainda não estão disponíveis.

Page 4: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

(2003, p.12), afirma que “essa obra imortal recebeu várias traduções” no Brasil, tendo início

já nos anos 1970. Seus primeiros tradutores foram: um monge budista (!), tradutores

anônimos de grupos macrobióticos, e o próprio Rohden, que traduziu acrescentando

comentários filosóficos e ilustrações. Existiram outras traduções, algumas bilíngues na década

de 1980, e várias que traduziam somente trechos. Rohden ainda afirma que “todas estas

edições [...] se encontram à disposição dos leitores nas livrarias brasileiras” (ROHDEN, 2003,

p.13), fato que pode ser facilmente comprovado em uma busca na internet.

Interessante perceber que foi exatamente nos anos de 1970 que dois mestres taoístas chineses

chegaram ao Brasil: Liu Pai Lin, que veio visitar uma filha em 1975 e acabou morando em

São Paulo (BIZERRIL, 2007); e Wu Jyh Cherng, que nasceu em Taiwan em 1958 e em 1973

mudou-se com seus pais para o Brasil, onde foi viver no Rio de Janeiro. É filho do também

mestre de taijiquan Wu Chao Hsiang, este último vindo da China continental mudou-se para

Taiwan na metade do século XX. Posteriormente, em 1987 Cherng tornou-se sacerdote

Taoísta em Taiwan, voltando ao Brasil logo em seguida, onde fundou a organização

denominada Sociedade Taoísta do Brasil ligada à tradição Zheng Yi (Ordem Ortodoxa

Unitária). Assim, se já existiam traduções do Daodejing no Brasil antes mesmo da chegada de

Cherng, porque ele desejou realizar esta tradução? Vamos ao próprio Cherng para descobrir.

Na sua versão do Daodejing, Cherng (1998) já na contracapa afirma que se trata de uma

tradução “diretamente do chinês para o português”. Esta qualidade parece ser um motivo

especial para que este autor não só a use como recuso de marketing, mas também como

autopromoção da própria tradição, pois acredita que assim “resgata a tradição taoísta e oferece

a decifração necessária de conceitos fundamentais,

respeitando a estrutura original do texto em chinês clássico

em detrimento de frases mais convencionais em língua

portuguesa”. Notem que a expressão resgata a tradição

parece, justamente, querer contrapor a outras traduções que,

talvez, não fizeram jus à tradição tal como deveria ter sido.

No que concerne à capa (imagem à esquerda5

) temos

considerações que valem para todo o texto: 1) o “chinês

clássico”, como disse Cherng, usa de ideogramas, e não

letras. Dessa forma, o tradutor escolheu o sistema chamado

de Wade-Giles para transcrição fonética. Acreditamos que possivelmente isso ocorreu por

5 Imagem retirada no site: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-taoista/livros-e-publicacoes/.

Page 5: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

Cherng e sua família serem de Taiwan. Neste país o sistema pinyin de transliteração criado da

China continental ainda não era muito usado, pelo menos até a época desta tradução. O

próprio nome “Cherng” é uma forma de grafia “livre”, em pinyin seria Chéng;

Além disso, 2) tanto o uso do sistema Wade-Giles, que fez o título 道德经 (chinês

simplificado) ser transliterado como “Tao Te Ching”, como a tradução “O Livro do Caminho

e da Virtude” não se difere de outras tentativas de tradução presentes no Brasil, com exceção

de traduções um tanto distantes do sentido original. Por outro lado, como veremos, existem

características singulares a esta edição do Daodejing. Ainda sobre a capa, acreditamos que o

uso de ideogramas já na capa é também uma forma de legitimação, no sentido de mostrar um

elemento tradicional chinês para o(a) leitor(a).

Na dedicatória do livro observamos um agradecimento ao seu mestre “Maa Ho Yang”.

Novamente, aparece um elemento legitimador: a menção a um mestre espiritual. Sem duvidar

da sua sinceridade, acrescentamos também que uma possível motivação para a existência

desse agradecimento ao mestre é deixar claro ao leitor ou leitora que essa tradução (assim

como outros títulos publicados por Cherng) faz parte de uma linhagem espiritual, de uma

tradição. Nesse momento nos vem imediatamente à mente a noção de religião alicerçada pela

socióloga Danièle Hervieu-Léger (2008). Essa autora diz que a religião busca sua

“legitimidade na invocação à autoridade de uma tradição. [...]” e assim, “a crença se designa

como ‘religiosa’ quando o crente coloca diante de si a lógica de desenvolvimento que hoje o

leva a crer naquilo que crê” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.26).

Seguindo essa lógica Hervieu-Léger (2008, p.27) afirma que “a linhagem dos que creem

funciona como referência legitimadora de crença. Ela é, igualmente, um princípio de

identificação social”. A religião é uma forma de pertencimento a um grupo, e é uma forma de

tradição, e a tradição, por sua vez é uma memória autorizada. Conectando esta perspectiva

teórica com a tradução que estamos estudando, após a dedicatória ao mestre aparece nos

agradecimentos a brasileiros que revisaram o texto. Se a tradição segue uma linhagem, além

de raízes, existem também seus ramos, a continuação da linhagem. Então já na dedicatória e

agradecimentos encontramos o registro da linhagem transplantada ao Brasil por Wu Jyh

Cherng com suas transformações e inovações do taoísmo longe da sua terra natal.

Observamos após os agradecimentos a imagem6 de Laozi (ver figura abaixo), o personagem

que historicamente é atribuída a autoria do Daodejing. Repetindo a lógica presente na capa,

6 Imagem presente nas primeiras páginas da tradução do Daodejing de Wu Jyh Cherng (LAO TSE, 1998, p.7).

Page 6: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

há ideogramas chineses, um desenho tradicional que

lembra a lenda de Laozi saindo do Reino do Meio (China)

montado em um búfalo, e a transliteração está em Wade-

Giles: Lao Tse. Temos novamente a expressão

iconográfica da tradição, sendo também um atrativo ao

leitor tanto como elemento étnico como elemento

artístico.

Interessante notar que os ideogramas da imagem (老君)

não são os ideogramas exatos de Laozi (老子). Nesse

caso, tratar-se-ia da denominação Tai Shang Lao Jun (太

上 老 君 ), título mítico/religioso relacionado ao

personagem Laozi:

Outra transfiguração dominante de Laozi é uma personificação antropomórfica do Tao

inefável e misterioso. Nessa versão divinizada, Laozi aparece como uma divindade

poderosa, conhecida como o Altíssimo Senhor Lao (Taishang Laojun), membro da trindade

dos maiores deuses do panteão taoista. (POCESKI, 2013, p.99)

Essa transfiguração de Laozi pode ser vista nos altares taoistas de muitas linhagens, mas não

necessariamente como a imagem acima. O cientista da religião da Universidade da Flórida

Mario Poceski (2013, p.99) chega a dizer que “o Laozi divinizado continua a ser adorado até

hoje”. Inclusive na própria STB do Rio de Janeiro e de São Paulo podemos encontrar imagens

dessa figura tão cara a tradição taoísta (MURRAY, 2010). Nesse sentido, Poceski (2013,

p.100) explica que essa divinização do Laozi tem uma relação direta com a “transformação do

Tao te Ching num texto sagrado”. O que talvez explique a presença dessa imagem e desse

ideograma (老君) nesta tradução.

3.2. Acomodação do taoísmo: uma leitura das trocas culturais

A partir de agora, pontuamos algumas questões relevantes à divulgação e construção da

identidade taoísta presentes na Introdução. Para tanto invocamos Peter Burke (2003), com seu

debate sobre as múltiplas possibilidades presentes nas trocas culturais numa perspectiva da

historia cultural. Em sua obra intitulada Hibridismo cultural este historiador da cultura

apresenta diversas formas de objetos, terminologias, situações, reações e resultados das trocas

Page 7: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

culturais. Servimo-nos aqui de alguns dos seus conceitos e reflexões para lançar luz a nossa

leitura da tradução do Daodejing do mestre Cherng.

Na primeira página da introdução, Cherng (1998, p.9, grifo nosso) usa um termo no mínimo

curioso para descrever a profundidade do Daodejing: “a profundidade é o próprio caminho do

mistério, a experiência do sagrado que corresponde à vivencia espiritual”. Acreditamos que

qualquer cientista da religião que acompanha os últimos debates dessa área deve-se perguntar

o porquê do uso dos termos experiência e sagrado. Como esclarecimento para o leitor e

leitora: em uma das principais palestras do XII Simpósio Nacional da ABHR em Juiz de Fora

- MG, com o cientista da religião canadense Steven Engler, este teórico fez duras criticas ao

conceito de experiência nos estudos das religiões, inclusive convidando os ouvintes a não usa-

lo. Interessante é que experiência religiosa era justamente o tema desde evento; Sobre o

termo sagrado, Frank Usarski (2006, p.32) em seu livro Constituintes da Ciência da Religião

também tece criticas ao que ele afirmou ser “o uso inflacionário ou mesmo aleatório da

palavra sagrado” para designar algo que “tem (mais ou menos) a ver com religião”.

Essas são críticas acadêmicas, mas, de certa forma, também são registros históricos do uso

desses termos para se falar em religião no Brasil. Curiosamente, o “uso inflacionário” do

termo sagrado foi confirmado no trecho mostrado acima. Mas aplicado ao nosso objeto de

estudo, o mestre Cherng usou de termos próprios dos meios cristãos (e, por que não, dos

meios esotéricos) para se referir à religiosidade taoísta. Para quem vive no Brasil ou em outro

país de maioria cristã, certamente os termos santo, santíssimo, sacro ou sagrado já foi ouvido

alguma vez, todos em um mesmo parentesco semântico. Sendo assim, podemos dizer que

Cherng realizou um processo de acomodação religiosa, ou seja, há uma utilização de termos

nativos para abordar uma mensagem estrangeira (BURKE, 2003, p.46). Nesse processo tanto

o emissor como o receptor da mensagem são influenciados, de forma que a mudança cultural

acontece “por acréscimo e não por substituição” (BURKE, 2003, p.47).

O processo de acomodação que com certeza está acontecendo em outros locais de expansão

taoísta é, talvez, inédito para essa tradição. Segundo Robinet (1997) a tradição taoísta se

desenvolveu tomando de empréstimo elementos de outras tradições, como o budismo,

adaptando-os aos próprios eixos e conectando-os em seu sistema de sentido. Mas o que

estamos observando aqui é exatamente o movimento contrário: não se trata de adaptar

elementos estrangeiros ao próprio sistema dentro da cultura de origem, trata-se sim da

mudança de discurso para que o outro possa compreender em seus próprios termos o meu

sistema cultural religioso.

Page 8: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

O próximo ponto a ser destacado usa de uma retórica relativamente famosa do taoísmo.

Cherng (1998, p.9, grifado no original) escreveu que “a leitura do Tao Te Ching implica um

desafio: esvaziar-se e ser natural como a água que flui no vale”. Logo após usar termos

próprios do ambiente brasileiro e cristão (experiência do sagrado), Cherng retorna aos

recursos retóricos taoistas e convida o leitor a vivenciar uma leitura sem julgamentos prévios.

Isso, obviamente, também está fazendo menção à carga cultural que o leitor traz consigo e que

poderia talvez bloquear a leitura dessa obra. Poderíamos arriscar aqui que se trata de esforço

por proselitismo taoísta? Talvez sim.

Mas voltemos à questão do “esvaziar-se”. Na passagem de página Cherng (1998, p.9 e 10)

chega a afirmar que se o texto não parecer claro por quem o lê, deve ser pelo fato de que a

sociedade atual excessivamente pensante dificulta a “ampliação da consciência”. Na mesma

página escreve: “Nesse contexto, a contemplação já é em si um ato transgressor”. Seria isso

um convite a cultura taoizante? Afinal, transgredir uma sociedade dominada pelo excesso de

racionalidade parece ter uma conotação positiva, e como ele mesmo disse, o taoísmo possui

ferramentas para isso (a contemplação, por exemplo).

Novamente Cherng afirma as vantagens de uma tradução direta do chinês, com um texto

idêntico ao da contracapa. E continua afirmando que o Daodejing é uma “escritura sagrada”

que revela mistérios, expressando “uma tradição que íntegra filosofia, ciência e religião à

experiência” (CHERNG, 1998, P.10 e 11). Essa última sentença reafirma o que Robinet (1997)

havia dito sobre o Canon Taoísta enquanto expressão da riqueza e integralidade da tradição

taoísta. Cherng (1998, p.11, grifo no original) segue explicando a etimologia do termo

taoismo (daojiao ou tao diao): literalmente significa ensinamento (jiao) sobre a origem (dao),

e “por isso, o Caminho da Imortalidade, objetivo dos taoístas, é denominado Via do Retorno”.

Em continuação, este mestre alega que a escola taoísta segue três obras, sendo o Daodejing

uma delas e a estrutura central dessa tradição. A seguir aborda uma pouco da historia de Laozi

segundo a tradição taoizante. Deste trecho, que pouco se difere da lenda de Laozi encontrada

em outras fontes, a não ser por datas mais antigas e riqueza de detalhes, chamamos a atenção

para um termo usado por Cherng (1998, p.12) durante a história, que chegou a merecer uma

nota explicativa: “transparência sublime”. A nota dois (2) afirma que este termo (em chinês:

Tai Chin) é um “conceito teológico de Absoluto taoísta” junto com Yü Chin e Sao Chin

(grafia Wade-Giles). Até onde sabemos a ideia de uma teologia taoísta ainda não é algo

conhecido por brasileiros(as). Vemos aqui outra forma de proselitismo: através de termos

Page 9: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

esotéricos que eventualmente chamam a atenção do leitor curioso – mesmo que ele seja um

pesquisador. Mas, também, ao mesmo tempo, evocam-se termos da tradição autorizada

(HERVIEU-LÉGER, 2008), sendo um elemento singular dessa tradução.

Na tradução dos versos do Daodejing propriamente dito pode ser vista essa estruturação de

notas explicativas de termos herméticos, variando entre explicações teológicas, intertextuais

(com o Yi jing) e ainda explicações etimológicas. São no total 44 notas explicativas, sendo

que 27 dos 81 poemas dessa tradução do Daodejing contêm notas. Nessa tradução, ao invés

de explicações filosóficas presente em outras traduções brasileiras optou-se apenas por notas

explicativas. Sendo um empreendimento inicial da transplantação da tradição taoista dessa

linhagem ao Brasil, percebemos novamente o uso da acomodação (BURKE, 2003) como

modelo retórico, menos pelos termos, e mais pela forma sutil de proselitismo. Essa forma sutil,

acreditamos, será a forma predominante de divulgação dessa tradição, a menos que mude a

linha de raciocínio do daojiao.

Ao final do livro pode-se encontrar um convite: “Se você estiver interessado em conhecer

mais sobre taoísmo ou conhecimentos afins, entre em contato com a Sociedade Taoísta do

Brasil” seguido de endereço no Rio de Janeiro e telefone (LAO TSE, 1998, p.141)7. Se por

um lado, o convite explícito para visitar a STB parece ser mais direto, os termos

“conhecimentos afins” e “se você estiver interessado” reafirmam o caráter sutil do

proselitismo taoísta frente o público brasileiro. Também observamos mais uma vez a

autoqualificação de tradição autorizada, já que a STB se apresenta como fonte de

ensinamentos taoístas ao leitor(a). Depois, ainda temos a indicação de obras do mesmo autor

publicadas pela editora, novamente fazendo propaganda aos livros do mestre Cherng.

4. Revisitando o caminho - Conclusão

Buscamos tecer alguns apontamentos sobre os modos de divulgação do taoísmo dentro do

contexto de sua transplantação ao Brasil pelo mestre Wu Jyh Cherng. De maneira geral

pontuamos duas questões, uma como revisão, outra como meta para próximos trabalhos sobre

este tema no Brasil. Primeiramente, pudemos perceber que mesmo nos contornos de um texto

sagrado traduzido – capa, contracapa, dedicatória, agradecimentos, iconografia, introdução,

7 Apesar de termos utilizado a referência de Lao Tse (1998), na verdade trata-se de um “anexo” do livro, mais

especificamente um espaço extra da obra onde não se determina o autor exato. Por muito provavelmente foi

alguém da STB que solicitou este convite no final do livro, talvez o próprio Cherng.

Page 10: Daode Jing como fonte de divulgação do Daoismo no Brasil

convite – uma religião pode encontrar meios de divulgação da tradição. No caso estudado,

observamos uma primeira experiência de proselitismo taoísta pela linhagem do mestre

Cherng, mas sempre de forma sutil, evitando confrontos e convidando constantemente a

entrar na lógica taoizante. Assim afirma-se como tradição autorizada (HERVIEU-LÉGER,

2008) através de um processo de acomodação (BURKE, 2003).

Em segundo lugar, gostaríamos de expor nossa consciência dos limites deste ensaio, e já

apontar para outros horizontes: “Textos sagrados são mais importantes para sacerdotes do que

para leigos, mas nem estes, nem aqueles contentam-se com eles. Sua vida religiosa é mais

abrangente do que apenas a doutrina e sua interpretação” (GRESCHAT, 2005, p.63). Ou seja,

resta-nos agora saber: como o proselitismo sutil contido numa tradução e apresentado neste

ensaio é recebido por adeptos da Sociedade Taoista do Brasil? Quais são os elementos da vida

religiosa taoísta que não são encontrados em suas escrituras?

Referências

BIZERRIL, José. Retorno à raiz: tradição e experiência de uma linhagem taoísta no Brasil.

São Paulo: Attar, 2007.

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução Leila Mendes. São Leopoldo, RS: Editora

Unisinos, 2003.

CHERNG, Wu Jyh. Iniciação ao Taoísmo: volume 1. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.

CHERNG, Wu Jyh. Introdução. Em LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho e da

virtude. Tradução Wu Jyh Cherng. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é a ciência da religião?. Tradução Frank Usarski. São

Paulo: Paulinas, 2005.

HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido – a religião em movimento.

Tradução João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2008.

LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude. Tradução Wu Jyh Cherng. Rio de

Janeiro: Mauad, 1998.

MURRAY, Daniel. Daoism in Brazil: the globalization of the Orthodox Unity (Zhengyi)

tradition. An essay submitted to the Department of Religious Studies in conformity with the

requirements for the degree of Master of Arts. Queen’s University: Kingston, Ontario, Canada,

(June) 2010.

POCESKI, Mario. Introdução às religiões chinesas. Tradução Márcia Epstein. São Paulo:

Editora Unesp, 2013.

ROBINET, Isabelle. Taoism: growth of a religion. Tradução Phyllis Brooks. Stanford:

Stanford University Press, 1997.

ROHDEN, Huberto. Introdução, tradução e comentários. LAO-TSÉ. Tao Te Ching. São Paulo:

Martin Claret. 2003.

SOUZA, Marcia Coelho de. Apresentação. Em LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho

e da virtude. Tradução e comentários Wu Jyh Cherng; coautoria e transcrição, edição e

adaptação dos textos Marcia Coelho de Souza. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.

USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião: cinco ensaios em prol de uma

disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.