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DAS PROFESSORAS DE GUARULHOS · vem ilustrar isso de forma muito clara, ... Entre as palavras ditas por Carlota Pereira de Queirós primeira ... por ser mulher de origem estrangeira

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...DAS PROFESSORAS DE GUARULHOS

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Ao promover um resgate da educação de um passado não mui-to distante, ouvindo educadoras que atuaram e atuam em nossa cidade, neste excelente trabalho de pesquisa, a autora oferece à população de Guarulhos muito mais que um simples registro histórico de memórias.

Acompanhando o desenvolvimento da educação que por natu-reza é muito dinâmica, o livro ganha ritmo e fica muito gostoso, com atmosfera e características de uma bela viagem.

Em educação nada é definitivo ou está cristalizado. E esta obra vem ilustrar isso de forma muito clara, a partir das experiências aqui relatadas e retratadas que mostram a evolução da cidade, seus bairros e das próprias professoras no convívio diário e di-reto com seus alunos.

Milhares de pessoas cruzaram a vida dessas educadoras duran-te o tempo em que estiveram na sala de aula. Aí tornaram-se arquitetos, mecânicos, vereadores, professores, jornalistas, en-fermeiras...

APRESENTACAO~

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Se tem alguém que se dedica diariamente a um mundo melhor é o professor. Precisamos lembrar sempre disso. Os direitos de hoje são resultado de um trabalho desenvolvido durante déca-das pelos brasileiros que têm acumulado um histórico de mui-tas lutas.

O livro revela algo há muito já sabido por todos: que os profis-sionais que atuam na área da educação sempre tiveram papel de protagonistas nessas conquistas que sinalizam o mundo me-lhor que vivemos hoje e que apontam para dias melhores.

Gostaria de agradecer à autora e às professoras que, a partir de seus depoimentos tão sinceros, permitiram esse belíssimo e comovente registro. Saibam que gestos como esses também contribuem para melhorar a qualidade social da educação em nossa cidade.

Um forte abraço,

Prof. Moacir de Souza Secretário de Educação

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Ao professor Moacir de Souza, Secretário Municipal de Educação, apoiador e incentivador entusiasta desse projeto.

A José Augusto Lisboa e à Divisão Técnica de Publicações Educacionais que o concretizaram.

Às professoras Rosa Maria Mendroni e Maria Inês Irineu que atuaram no momento certo para que acontecesse.

À Coordenadoria de Assuntos Aeroportuários, nas pessoas de seus coordenadores, por ordem cronológica, que desde 2009 me acolheu e me proporcionou espaço: Ulisses Correia, Miguel Nélson Choueri e Paulo Carvalho.

À Coordenadoria da Igualdade Racial nas pessoas da coordenadora Edna Roland e Mabel de Assis pelas sugestões de leituras.

À professora Adriana Fávaro Perez por nos disponibilizar documentos importantes de Ercília e por garantir a participação de sua mãe Célia.

À professora Fernanda Mayumi Garcia, diretora da EPG

Agradecimentos

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Glorinha Pimentel, por nos indicar Nilza que ainda atua em sala de aula.

A Andréa Valente Tarsitano e Celi Pereira, responsáveis pelo Parque Fracalanza, por nos disponibilizarem o espaço para filmagem.

A Heloísa Angelini pela edição cuidadosa de vídeo.

Agradecimentos efusivos às minhas queridas professoras narradoras que com amor e carinho me abriram seus corações e suas residências, co-autoras dessas memórias, destacando-se que Célia, Katsue, Maria Elizabet, Nehy e Neuza são autoras exclusivas de suas narrações em que somente dei algum arremate e Josephina elaborou sua introdução:

Constância Gabriel (in memoriam) e Therezinha Gabriel (em respeito à sua vida que agora se encontra em estado de esquecimento); Sonia Maria Gabriel, sobrinha e tutora, que posteriormente autorizou a publicação do relato de Constância.

Célia Franzin Fávaro Perez.

Ercília Corrêa Duarte.

Isaíra Testae Freitas.

Izabel Gonçalves Arpa Gimeno.

Josephina Alves Pereira.

Katsue Endo Kishi.

Maria Elizabet Chaib.

Nehy da Silva Martini.

Neuza Dalaqua.

Nilza Gomes de Oliveira.

Rosa Chimoni

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Sobre a autora ........................................................................

Prefácio ...................................................................................

Professoras Constância Gabriel e Therezinha Gabriel: as irmãs Gabriel .........................................................................

Despedida de Tancha ...........................................................

Transgredimos. Transversamos. Criamos nossas versões. Nós professoras de Guarulhos. ..........................................

Professora Célia Franzin Fávaro Perez ...............................

Professora Ercília Corrêa Duarte .........................................

Professora Isaíra Testae Freitas ...........................................

Professora Izabel Gonçalves Arpa Gimeno .......................

Professora Josephina Alves Pereira ....................................

Professora Katsue Endo Kishi .............................................

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INDICE´

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Professora Maria Elizabet Chaib .........................................

Professora Nehy da Silva Martini .......................................

Professora Neuza Dalaqua ..................................................

Professora Nilza Gomes de Oliveira ...................................

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Rosa Chimoni nasceu no interior de São Paulo. Ibirá. Alta ara-raquarense. Veio para Guarulhos nos finais da década de 60 do século passado. Aqui tem atuado como educadora e escritora. São de sua autoria:

Yasmin, São Paulo, Ed. Olho D’Água, 1997.

Guarulhos: Cidadania de Contrastes, Blumenau, Ed. Hemisfério Sul, 1998.

Yasmin Outra Vez..., Blumenau, Ed. Nova Letra, 2012.

Foto

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Burim

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“(...) cabe-me a honra, com a minha simples presença aqui, de deixar escrito um capítulo novo para a história do Brasil – o da colaboração feminina para

a história do país”. 1

(Carlota Pereira de Queirós, 1934)

“Divido esta emoção com mais da metade dos seres humanos deste Planeta, que, como eu, nasceram mulher, e que, com tenacidade,

estão ocupando o lugar que merecem no mundo. Tenho certeza, senhoras e senhores, de que este será o século das mulheres”. 2

(Presidenta Dilma Roussef, primeira mulher a proferir discurso de abertura na Assembleia Geral da ONU, 2011)

Entre as palavras ditas por Carlota Pereira de Queirós primeira deputada federal eleita no Brasil e na América Latina e o pronunciamento de nossa primeira presidenta na abertura da Assembleia Geral da ONU em 2011 como primeira mulher

1 - Palavra de mulher: oito décadas do direito de voto, organização e textos de Débora Bithlah de Azevedo e Márcio Nuno Rabat, Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011, p.52.2 - Idem, ibidem, p.23.

PREFACIO´

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a inaugurá-la mais de sete décadas se passaram. A luta das mulheres continua. Uma luta inclusive por maior visibilidade. Porque elas sempre lutaram muitas vezes no escuro. Escondidas. Coagidamente dissimuladas. Contudo tenazes e determinadas numa conjuntura adversa, patriarcal, escravocrata e oligárquica.3

Antes da eleição da primeira mulher deputada e do nosso direito ao voto muitas outras também se destacaram na busca por espaços e direitos reconhecidos. Nísia Floresta, Chiquinha Gonzaga, Rita Lobo Velho, Leolinda de Figueiredo Daltro, Bertha Lutz, Maria Lacerda de Moura. E muitas outras.

Queremos evidenciar Aracy de Carvalho Guimarães Rosa nascida no Paraná que aos 36 anos separada do primeiro marido foi residir na Alemanha em 1934. Como dominava alemão francês e inglês conseguiu emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. No exercício de seu trabalho salvou centenas de judeus ao omitir a informação de suas origens ignorando as determinações do Itamaraty que impediam o visto de entrada deles no Brasil e assim puderam fugir para o nosso país. Muitas vezes, ela transportou judeus no porta-malas do carro do consulado. Eu me lembro que era um Opel Olympia alemão. Chegou a levar uma pessoa até a Dinamarca diz o filho de seu primeiro casamento. Ela tinha personalidade forte e não se intimidava quando era parada pela Gestapo. Pelo menos uma vez, enfrentou os policiais de dedo em riste, desconcertando-os com seu alemão impecável. Minha mãe exibia muita segurança e autoridade, os alemães respeitavam a autoridade. Ela tem o nome escrito no Jardim dos Justos entre as Nações no Museu do Holocausto (Yad Vashem) em Israel e também é

3 - Idem, ibidem, Prefácio de Janete Pietá , p.19.

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homenageada no Museu do Holocausto de Washington (EUA)4. No consulado conheceu João Guimarães Rosa que apoiou seu ato humanitário. Casaram-se em 1940 e voltaram ao Brasil em 1942. Guimarães Rosa escreveu nos anos 50 uma das obras-primas da literatura nacional: Grande sertão: veredas. Escreveu dias e noites de uma só vez. Aracy o acompanhou enquanto o escritor digitava na máquina e suava muito. Ela utilizou toalhas e toalhas para enxugá-lo. Guimarães lhe dedicou este grande sertão. A Aracy, minha mulher, Ara pertence esse livro.

Devemos acrescentar no campo literário as mulheres que o trilharam. Ressaltamos as emblemáticas: Clarice Lispector e Marilene Felinto. Clarice judia nascida na Ucrânia cujos pais fugiam da perseguição aos judeus na Guerra Civil Russa de 1918-1921 chegou ao Brasil em 1920 com dois meses de idade. Ela foi naturalizada brasileira e sempre afirmou não ter conhecido a Ucrânia. Lá nunca pisara porque naquele território esteve carregada nos braços dos pais. Sua terra é o Brasil onde publicou livros e morou em Recife e no Rio de Janeiro até morrer em 1977. A escrita sensível dessa escritora confundiu os críticos literários em seus primórdios. Foi menosprezada por ser mulher de origem estrangeira e ter a língua presa nos jornais em que trabalhou. Certamente ganhava menos que os homens. Deixou um conjunto de obras que nos orgulha e uma linguagem vibrante que nos representa. E de que instrumentos mais precisava eu para escavar? de picaretas, de cento e cinquenta pás, de molinetes mesmo que eu não soubesse o que era um molinete, de vagões pesados com eixos de aço, de uma forja portátil, além de pregos

4 - Aracy Guimarães Rosa. Uma Heroína. Homenagem ao dia da mulher em 08/03/2011. De artigo tirado da Revista Istoé, Edição 1994, por Sílvio da Costa Bringël Batista, in O outro lado da moeda.

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e barbantes. Quanto à minha fome, para a minha fome eu contaria com as tâmaras de dez milhões de palmeiras, além de amendoim e azeitona. E tinha de saber, de antemão, que, à hora de rezar do meu minarete, eu só poderia rezar para as areias. Mas para as areias eu provavelmente estivera pronta desde que nascera: eu saberia como rezá-las, para isso eu não precisaria me adestrar de antemão, como as macumbeiras que não rezam para as coisas mas rezam as coisas. Preparada eu sempre estivera, tão adestrada que eu fora pelo medo.5

Marilene Felinto de família pobre e negra nasceu em Recife em 1957 e se mudou para o estado de São Paulo onde cursou Letras na USP. Foi colunista da Folha de São Paulo e de lá saiu no início desse milênio de maneira não muito bem explicada. Seus artigos costumavam levantar reações díspares: elogios rasgados ou ataques enraivecidos. Lembro-me especialmente de um em que analisava o efeito deformador da televisão sobre as pessoas – e, o mais grave, sobre a cabeça de futuros jornalistas, fascinados com os ícones globais. Começava em Cabul e chegava a “uma espécie de congresso” a que fora convidada no Recife. O artigo provocou manifestações indignadas de estudantes de Jornalismo nordestinos, que a acusavam de agir como porta-voz do preconceito sulista contra o Nordeste... Em entrevista à Caros Amigos, disse claramente não gostar de jornalistas. Talvez por isso tenha sido sempre a estranha no ninho, o avesso, o outro lado, a doida esfarrapada a gritar impropérios aos passantes na rua6. A escritora durou tempo escrevendo no jornal paulista que tentava passar a ideia de que seu pensamento era plural... Na literatura apresenta fala forte. Minha avó nem sequer açoitava o bicho; vinha pachorrenta, os cabelos entronchados em cocó nas costas. Minha vó era tão negra que se arrastava. Ela levava minha mãe, a que

5 - Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., Rio de Janeiro, Rocco, 2009, p. 110,111.6 - Isabel Rebello Roque, Indignação Necessária, Observatório da Imprensa, 29/01/03.

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seria dada. Minha mãe veio num caçuá. Minha mãe foi dada numa noite de luar. Minha vó não podia. Era seu décimo e tanto filho. Não podia matar mais um daquela fome que era toda de farinha charque e falta d’água. Minha mãe seria dada. Minha mãe era novinha como um filhote. Eu chorava como nunca7.

Em Guarulhos vive e atua a deputada federal Janete Rocha Pietá. Ela que é a primeira deputada negra do Estado de São Paulo. No final de 2011 como coordenadora da bancada feminina da Câmara dos Deputados encaminhou publicação de livro colossal de 325 páginas amplamente ilustrado que nos expõe a trajetória das mulheres brasileiras em busca de espaço político. O objetivo desse primeiro livro é sintetizar oitenta anos de história política e dar fio condutor às nossas precursoras, escrevendo direitos para a maioria do povo brasileiro. Hoje, as mulheres representam 52% da população!8.

Neste contexto de mulheres guerreiras e representativas saltemos em paralelo para nos fixarmos em Guarulhos. Cidade de mais de quatrocentos e cinquenta anos e mais de um milhão de habitantes. Aqui se distinguem milhares de mulheres que abandonam o aconchego do lar segundo os antigos para buscarem evidência pública e autonomia financeira através de uma profissão. Aqui há advogadas, arquitetas, cabeleireiras, empresárias, engenheiras, jornalistas, manicures, médicas, políticas, professoras, psicólogas e muitas mais. Entre tantas profissões algumas até recentes se destaca o exercício do magistério em que as mulheres puderam se inserir com

7 - Marilene Felinto, As mulheres de Tijucopapo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p.20. 8 - Obra citada, p. 19 e 20.

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mais facilidade e deram o primeiro passo de emancipação. Principalmente como professoras do antigo primário.

Será necessário contextualizar estas mulheres e professoras no ambiente sociocultural do Brasil. “Segundo Maria Lúcia Rodrigues Müller (1999), o ingresso da mulher no mundo público, sua afirmação profissional e política pressupunham o princípio de uma promoção que passava de certa competência doméstica: a mulher sendo competente no seio da família, capaz de racionalizar as atividades domésticas, zelar pela saúde de sua prole e de seu cônjuge, de acordo com os preceitos da ciência, era capaz também de bem desempenhar-se, no domínio público. Sobre o ponto de vista de intelectuais da época a autora enfatiza: Higienistas e positivistas, partindo desse ponto de vista, defendiam o papel positivo que a mulher poderia desempenhar no seio da família e, que, através dos filhos, poderia influenciar nos destinos da sociedade (Müller, p.98). A autora revela que a primeira lei do ensino primário promulgada no Brasil aconteceu em 1827 e previa a existência de professoras mas era vedado a elas o ingresso às escolas de ensino superior. Só podiam exercer o magistério primário. A autora ainda coloca que muitos intelectuais da época como Almeida de Oliveira, Manoel Francisco Correia e Félix Oliveira defendiam a presença das mulheres no magistério. E Rui Barbosa externou sua opinião num parecer do ano de 1882 defendendo claramente a presença feminina no ensino primário”9.

Ainda “Jerry Dávila (2006) apresenta uma discussão sobre a

9 - Citações retiradas de A educação escolar no Território Federal do Vale do Guaporé, Paschoal de Aguiar Gomes, Dissertação de Mestrado em História da Educação, 2006, UFMT, Cuiabá.

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formação das políticas educacionais higiênicas, a feminização do magistério e as tentativas de branqueamento da população brasileira, no entanto reforça que os líderes dos reformadores educacionais que construíram ou expandiram os sistemas de escolas públicas pelo Brasil no período entreguerras não eram só pedagogos. Na verdade, poucos tinham treinamento pedagógico. Eles eram médicos e cientistas sociais atraídos pela perspectiva de utilizar a educação pública como arena para a ação social. Esses reformadores estabeleceram uma visão de valor social que privilegia a aparência, comportamento, hábitos e valores brancos, de classe média (Dávila, 2006, p.32). A feminização do magistério no século XX mostra a construção de um outro panorama para a participação das mulheres nos espaços antes ocupados por homens. E as professoras negras experienciaram situações divergentes das vivenciadas pelas ditas brancas de origem européia”10.

Diz Jerry Dávila que sua pesquisa contribui para evidenciar “as formas nas quais a escola pública brasileira foi ‘racializada’ pelas ideias higienistas de seus dirigentes, com sequelas negativas para as pessoas fora da cor branca que lá atuavam. Para a população indígena, a racialização começou com a chegada dos portugueses. O tráfico escravo aumentou-a. Hoje a questão é outra: análises fundadas na distinção de negros, indígenas e grupos ditos majoritários mostram gritantes desigualdades. Será que reconhecer essa racialização já existente não pode remediar essa desigualdade? A primeira pesquisa examinou a maneira com que educadores e intelectuais se esforçavam para

10 - Idem, ibidem.

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imaginar o aluno da escola pública como branco num futuro próximo. Agora, examino aquele ‘futuro próximo’, onde o que acontece é o contrário: para buscar autonomia na guerra fria e espaço para o desenvolvimento econômico, intelectuais políticos e diplomatas imaginam-se negros ao lado de novos países irmãos. O que fascina no estudo da raça é a forma pela qual o pensamento se reinventa”11.

As professoras de Guarulhos com mais de 70 anos se apresentam neste universo em que as mulheres brasileiras lutam por ocuparem os lugares que lhes são devidos entre fracassos e alguns êxitos. Elas que ficaram em pontos de ônibus sob chuva ou sol viram a cidade crescer. Assistiram a alunos e alunas se tornarem autoridades. Observaram ruas e praças bairros inteiros se modificarem e virarem outros. Ou desaparecerem para que outros surgissem. Permanecem em suas memórias as cidades invisíveis que como esta que neste momento efêmero podemos contemplar também se chamam Guarulhos. Só poderão ser conhecidas em uma reaparição através de narrações memorialísticas dos mais velhos. As cidades outras e invisíveis ressurgirão nesta cidade das palavras que ora expomos. Não abarcaremos tudo. Há milhões de histórias. Na cidade nua12. Só algumas podemos contar. A cidade é uma escrita, quem se desloca nela (o seu usuário) é uma espécie de leitor, que, conforme as suas obrigações e os seus deslocamentos faz um levantamento antecipado de fragmentos de enunciado para atualizá-los em segredo13. É este segredo que as professoras nos compartilham. Só a inteligência

11 - Entrevista de Jerry Dávila a Sandra Escovedo Selles, na Sociedade Brasileira de Biologia, em 2006, a respeito das pesquisas realizadas para seu livro: Raça e Política Social no Brasil, 1917-1945, tradução de Cláudia Sant’Ana Martins, 2005, UNESP.12 - Renato Cordeiro Gomes, Todas as cidades, a cidade, Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p.162 e 154, respectivamente.13 - Roland Barthes, Semiologia e urbanismo, in A aventura semiológica, 1967, p.187.

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e o trabalho de um grupo (uma sociedade de amigos de bairro por exemplo) podem reconquistar as coisas preciosas que se perderam, enquanto estas são reconquistáveis. Quando não há essa resistência coletiva os indivíduos se dispersam e são lançados longe, as raízes partidas. À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo14.

Uma cidade que se transformou tão rapidamente necessita reavivar sua memória com seu potencial de rebeldia recolocando fatos e coisas em seu lugar antes que os percamos de vez. Mesmo que sejam evidenciadas contradições intrínsecas nos corpos das narrativas por motivos expostos acima. É um registro de memórias de mulheres representadas pelas professoras como parte compensatória da desumanização do progresso e lição de vida para nos tornarmos mais humanos.

Rosa Chimoni

14 - Ecléa Bosi, Memória e Sociedade, São Paulo, Cia das Letras, 1994, p.452.

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Professoras Constância Gabriel e Therezinha Gabriel: as irmãs Gabriel

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Estou lúcido, como se estivesse para morrer.Fernando Pessoa

Na sala de visitas e de espera há dois ambientes. No primei-ro à entrada na parede à esquerda são vistas fotos em preto e branco de rostos de mulheres negras. No móvel à frente há fo-tos de Constância em vestes típicas africanas com panos enro-lados na cabeça. De corpo inteiro e só de rosto... Entramos e nos sentamos no segundo ambiente. Logo Constância chegou com alguma dificuldade no andar e quando soube que estávamos ali para colhermos suas memórias de mulher negra disse: Esta crioula sofreu! E nos revelou que as roupas com que aparece nas fotografias foram feitas por ela. Muito fácil! É só costurar do lado! Acrescentou. São as kaftans das mulheres árabes e das africanas.

Lá no fundo em um quarto Therezinha descansa. Ela se encon-tra sobre uma cama e permanece debaixo de cobertas. Só se vê a cabecinha branca como uma mulher de cem anos. Maria Inês lhe falou ao ouvido e a beijou. Ela deu uma gargalhada. Creio que foi reflexo nervoso. Errei quando disse que ela se encon-tra. Não se encontra. Therezinha Gabriel não está mais aqui. Só existe aquela mulher de cem anos grisalha e definhada em cima de uma cama esquecida do mundo.

Na sala contudo estávamos eu, Constância e Maria Inês. Sofre-mos muito. Continuou Constância. Eu e Tera (assim é chamada Therezinha entre os mais íntimos) fomos iniciar nossa carreira de professoras no litoral sul de São Paulo. Pariquera-Açu cuja Delegacia de Ensino ficava em Registro. Juntaram nossos pon-

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tos e dividiram por dois. Nos mandaram para Pariquera-Açu onde havia muitos italianos, polacos e outros descendentes de europeus...

Voltemos à infância. Nascemos em Analândia. Na época distri-to de Rio Claro. Morávamos na zona rural. De família negra lá só havia a nossa e a de um compadre de meu pai. Nós. Três ir-mãos íamos a pé para escola até a 4ª série. Eu, Therezinha e Gu-mercindo. Andávamos cerca de seis km até uma fazenda onde havia classe multisseriada.

Eu tinha coceiras pelo corpo e caminhávamos descalços pela areia quente. Dávamos pulos para nos aliviar e respirávamos na trégua quando encontrávamos alguma grama. No riacho perto da escola lavávamos os pés e calçávamos os sapatos que havía-mos trazido no embornal.

Os irmãos mais velhos trabalhavam na roça. Tocavam planta-ção de café junto com o pai. De arroz, milho e feijão também. Tudo de à meia. Maria Benedita costurava. Fazia chapéus de pano com armadura de arame para segurar as abas. Para prote-ger os braços costurava mangotes (mangas compridas). Adélia foi a primeira que saiu de casa e veio para Santos trabalhar em casa de família. Depois foi Maria Benedita que tinha bronquite asmática e amarelão. Ela guardava nos grandes bolsos do vesti-do arroz cru que comia o dia inteiro. Maria Luísa veio também. As três irmãs mais velhas...

No largo do Arouche... Ali eram exibidas as moças pobres que vinham do interior a serem escolhidas pelos patrões para tra-balharem em casas de família. A maioria delas era negra. Eram examinadas e apalpadas principalmente pelas mulheres futuras

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patroas. Minhas irmãs passaram por isso. Procedimento herda-do dos tempos escravistas nesta São Paulo dos anos 30 e 40 do século passado. Minhas irmãs andavam com grandes cestas de frutas na cabeça. Eram compradas nas feiras e mercados para alimentarem as famílias a quem trabalhavam...

À escola nos dirigíamos a pé e descalços com os filhos de ori-gem italiana do fiscal da fazenda que eram três: duas meninas e um menino. Quando chegávamos próximo a casa deles come-çavam os xingamentos: Negrinhas fedidas! Negrinhas fedidas! Macacas! Macacas! Minha mãe era mulher instruída que tinha 4ª série. Ela nos orientava a não revidar. Não valia a pena! Meu pai era um negro tosco sem instrução e não participava dessa conversa...

Aprendemos a revidar os xingamentos à nossa maneira bas-tante criativa. Falávamos de trás para frente. Os filhos do fiscal ficavam loucos por não entenderem nada: Nanetequen! Nane-tequen! Assucava! Assucava! Locava! Locava!

Tínhamos outros dois irmãos mais velhos. Antônio e Gerciano. Todos já morreram. Só estamos nós. Os mais novos que íamos juntos à escola. Eu, Tera e Gumercindo. As únicas que se forma-ram fomos eu e Tera.

Nosso pai recebeu o nome de Desidério Gabriel. Nome de um rei africano. Teve dois irmãos. Antônio Salvador e Benedito dos Santos. Toda a sexta-feira ele bebia muito. Ia a cavalo para vila beber. Trazia um amigo que tocava pandeiro e meu pai arra-nhava o violão. Ele batia os dedos nas cordas de uma só vez. Era o que sabia. Os dois faziam barulho o resto da noite...

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Quando o pai chegava da roça sempre uma filha lavava seus pés na bacia enorme de estanho. Ali também nos lavávamos. Braços, pés etc. Banho inteiro só no sábado. Éramos em muitos e não havia água puxada do poço que bastasse.

À mesa só o pai comia. Principalmente no dia de Natal. Os fi-lhos e a mãe ficávamos à beira do fogão de lenha. Comíamos no rabo de fogão que nos enchia de cinzas. Resquícios dos tempos do senhor de engenho! Os negros aprenderam com ele. Não era ruim não. Era gostoso! Havia a atenção. O amor da mãe!

O pai bêbado era violento. Batia com chicote (rabo de tatu) no Gumercindo sem ele merecer. Punha os dois filhos na parede em sua frente e dava tiros entre eles! Gumercindo me disse há pouco tempo que perdoou nosso pai. Entendi e perdoei. Me disse. Assim é melhor para ele.

Aos nove anos tive dores violentas na perna esquerda. Na ver-dade no quadril esquerdo. Não sabiam o que era. Era medicada com cataplasma de polenta quente ou angu quente. Remédios da época na zona rural. Acabei sendo internada na Santa Casa de Rio Claro onde meu pai também se internara para tratar das doenças oriundas dos anos de bebida. As dores eram muito for-tes. E meu pai me dizia: Fia. Você vai ter que cortar a perna! Eu morria de medo.

Em 1946 a família toda se mudou para Guarulhos. Pai, mãe e filhos. Fomos morar na Padre Celestino. Quem arrumou tudo. Casa etc. foi Adélia. A generala. A mais atirada de todos na épo-ca. Maria Benedita ainda sofria de bronquite asmática e tomou uma injeção forte composta de penicilina e outros antibióticos

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ou anti-inflamatórios que ou curava de vez ou matava. Ela teve reações violentas e sobreviveu. Ficou curada.

Depois mudamos para uma vila que ficava no começo da Mon-teiro Lobato. Atrás do ponto de ônibus. Lá havia várias casinhas e moramos em uma delas. Sempre comandados por Adélia. A generala. A vila ainda existe até hoje bastante deteriorada. De lá eu e Tera íamos estudar o ginasial no Capistrano. Os meus problemas na perna ou quadril continuavam. Engessei várias vezes e o pai da Valdira Nagem nos levava de carro para escola. No carro minha posição era meio deitada. Por fim se descobriu o que eu tinha. De criança caíra em uma pedra e ofendera o osso do quadril onde havia uma mancha. Fiquei manca para sempre. Acredito que houve uma deformação no osso do quadril.

Quando fomos lecionar em Pariquera-Açu tiramos lugares das descendentes de europeus protegidas do prefeito. Inventavam que havíamos agredido crianças e tentavam nos demitir. Não conseguiam. Por fim as crianças rodeavam as salas em que está-vamos dando aula e gritavam: Negras fedidas! Negras fedidas! Negra fedida e aleijada! Negra fedida e aleijada! Era assim que era tocada nossa profissão. Debaixo dessa trilha sonora. Não importava se as rádios tocassem Bésame mucho...

Antônio teve três filhos: Sandra Regina, Carlos Eduardo e Rita de Cássia. Gerciano teve cinco: Luís Rubens (já falecido), Sonia Maria, Sérgio, Ronaldo e Rogério. Gumercindo só um: Cleber. Maria Luísa teve seis: Laerte (já falecido), Vera Lúcia, Lucília, Carmen Lúcia, Antônio Carlos e Ana Luísa. Maria Benedita se casou e não teve filhos. Eu, Tera e Adélia não nos casamos. Mo-ramos sempre juntas e construímos esta nossa casa...

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Lembrei de meu pai quando eu também comecei a beber. Bebi de tudo. Pinga, conhaque, vinho, cerveja. Por fim também bebia uísque. Nos bares eu disfarçava. Punha uma garrafa de guaraná do lado e enchia o copo de uísque. Procurei ajuda. Psicólogos e psiquiatras. Aqui em casa era difícil. Me recebiam com recri-minações. Eu alcoólatra e bêbada ficava enjoada e de conversa comprida como meu pai... Quando estacionava o carro na ga-ragem a Tera já estava na janela com olhar de reprovação. Tive por muito tempo depressões. Hoje já não bebo. Estou velha e doente. Adélia já morreu. Tera está na cama. Não gostava de psiquiatras e hoje é tratada por um deles. Ela era a mais ativa. A que comandava a casa depois de Adélia. Visitamos 35 países. Viajamos pela África. Tera foi pesquisar nossa ancestralidade. Ficou chocada com alguma coisa e acho que isso ajudou a levar sua memória... Os negros da África são elegantes. Bonitos. Têm dentes lindos. Brancos. Impecáveis. Mastigam umas ervas que conservam os dentes. São instruídos. A África. Nossa origem. É outra realidade. Contudo quem mais pesquisou e entendeu a África foi a Tera...

Guarulhos, 17 de dezembro de 2011.

Em 15 de janeiro de 2012 Constância Gabriel faleceu. Realmente estava lúcida como se estivesse para morrer. Estava para mor-rer...

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Despedida de Tancha

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Hoje não ouço mais as vozes daquele tempoMinha avó

Meu avô[...]

Onde estão todos eles?- Estão todos dormindo

Estão todos deitadosDormindo

Profundamente.

Manuel Bandeira

Tancha. Dormi sábado. Dia 14 de janeiro de 2012. Ouvindo ain-da o trinado de seus relatos. Suas gargalhadas gostosas. Você como Rosa das memórias de Pedro Nava também era rapso-da e cantora de gestas. Desfiando sua língua ao contrário com que xingava as meninas brancas de sua aldeia que inconscien-tes discriminavam você e seus irmãos através de xingos ditos claramente. E vocês revidavam de maneira sutil com as sílabas invertidas.

Nanetequen! Nanetequen!

Assucava! Assucava!

Locava! Locava!

Você repetia alegremente como uma menestrel! E gargalhava! Como gargalhava!

Nanetequen! Nanetequen!

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Assucava! Assucava!

Locava! Locava!

Não cansava de repetir.

Quando li em sua sala de visitas na presença de muitos amigos a memória que já havia colhido... Você se exultou e não cansava de afirmar: Como é linda minha história! Como é linda minha história! E divulgou aos demais que não estavam presentes...

Tancha. Dormi com estas vozes ao ouvido. Sábado à noite. No domingo e já eram mais de dez horas da manhã quando o tele-fone de minha casa soou. Era Maria Inês que chorava muito do outro lado da linha: Rosa. Você não sabe o que aconteceu. Você não sabe! E soluçava. Fala. Mulher. Fala! Com muito custo me revelou: Rosa. Rosa. A Tancha. A Constância! Morreu. Morreu? Como? Morreu...

Minha casa tão silenciosa ficou mais silenciosa ainda. Onde está Tancha dos trinados de véspera? Dos versos e das palavras da língua ao contrário? Que mais parecia um dialeto africano aprendido de seus ancestrais? Tancha. A rapsoda. A cantora de gestas. Onde está? Me respondia o silêncio dos móveis e das cor-tinas... Ela dorme. Dorme profundamente. Mais do que Tera que ainda permanece em casa semi-acordada. Tera já está ausente há tempos e você velava incansável o sono agitado de sua irmã...

Tancha está deitada e dorme. Profundamente. Só nos resta re-avivar suas memórias. Completando-as. Enriquecendo-as com as nossas. Ou melhor enriquecendo as nossas com as suas. As memórias dos negros do Brasil é uma das faces importantes

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de nossa formação. A violência com que foram tratados e têm sido discriminados é parte de nossas raízes e qualquer um de nós está sujeito à violência e à discriminação. Tudo isso aprendi com Tancha na primeira tarde e quase única em que tive o pri-vilégio de ouvi-la.

Tancha. Durma em paz.

Guarulhos, 16 de janeiro de 2012.

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Transgredimos. Transversamos.Criamos nossas versões.

Nós professoras de Guarulhos.

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Professora Célia Franzin Fávaro Perez

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Lembranças...

A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda

para contá-la.

Gabriel Garcia Marquez

Memória. Viver o já vivido. Viver e contar. Viver para contar.

Há um filtro. Era sempre melhor o que passou.

A memória falha mas só para o recente. O raso. O passado mais longínquo. Este está cristalizado. É inteiro e íntegro. Insuportavelmente vivo.

Dos primeiro anos. Anos da guerra. Nasci em 40. As lembranças formam um claro-escuro.

O pós-guerra e suas carências: pão, trigo, combustíveis. Ônibus. Ou melhor jardineiras movidas a gasogênio. Tudo escasso. Cidade de cavalos e carroças. Quase nenhum carro. Só os de praça.

As lembranças aos poucos se tornam mais nítidas.

Sou neta de imigrantes italianos pelos dois ramos. Oriundos do Vêneto para o interior de São Paulo. O ano é o de 1898.

O grupo é constituído por meu avô paterno e minha avó Edwiges. A mãe dele viúva e seus quatro filhos. Destino: lavoura de café

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no alto da serra de São Pedro.

Vou fazer uma parada obrigatória. O ponto é a minha avó paterna. Sem dúvida a figura mais marcante em minha vida.

Italiana e camponesa da região do Vêneto. De uma aldeia próxima a Pádua. Terra de Santo Antônio.

Mulher forte que aos 21 anos se casou e veio para o Brasil com a família do marido. Nunca mais viu a mãe e os irmãos nem a terra natal!

Teve oito filhos dos quais meu pai era o quinto. Criou os filhos. Mais seis sobrinhos cuja mãe morreu de parto. E quatro netos: eu e meus irmãos.

Sou filha de Alceste David Fávaro e Maria Luiza Franzin Fávaro. Quarta filha de um grupo de cinco. Nasci em 10 de agosto de 1940. Aniversário de Jorge Amado e Gonçalves Dias. Que bela companhia!

Meu pai era contador. Na época se dizia guarda-livros e trabalhava como tal no Grande Hotel de Águas de São Pedro. Propriedade do estado. O jogo era permitido e ali funcionava um cassino como em tantas estâncias turísticas.

Hoje o hotel pertence ao SENAC. É um hotel-escola. Faculdade de Hotelaria e Gastronomia.

Minha mãe era modista. O que hoje se chama de estilista. Miúda e de imensos olhos azuis. Perigosamente sensível. Perdeu o seu segundo filho com nove meses. Morreu em seu colo de mal súbito. Nunca mais se recuperou do golpe sofrido.

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Quando nasci minha mãe já estava doente. Não pude ficar com ela. Fui para a casa da minha tia e madrinha. Me arranjaram uma ama-de-leite negra de nome Isméria.

Aqui o claro-escuro da vida se manifesta mais intensamente. Deve haver uma viola que chora ao fundo... Meu pai adoece dos pulmões e morre aos 38 anos em plena mocidade.

Os dias de tragédia se sucedem. Minha mãe piora muito e não consegue cuidar de nós. Vamos morar com avó Edwiges. Quatro crianças com idades que vão dos dois aos 12 anos.

Então com sete anos o carro da vida me empurra. Alegrias e dores são enfrentadas com certa galhardia...

Começo de vida na escola.

Gostei de estudar desde sempre. No curso primário só deixava a desejar no item comportamento. Então parte integrante da avaliação. Era levada da breca como se dizia na época.

Cursei o primário no Grupo Escolar Gustavo Teixeira. O poeta parnasiano da cidade. O ginásio e o colégio – curso científico – fiz no Colégio Estadual José Abílio de Paula.

Tudo que diz respeito à escola foi muito bom para mim. Para viver. E hoje para recordar.

Abro parênteses e lembro um pouco a sequência narrativa. É o vai-e-volta da história. Quero falar da casa de minha avó Edwiges onde vivi dos sete aos 19 anos.

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Casa velha e muito grande com armazém na frente. Se vendia de tudo. Desde o básico da alimentação até instrumentos agrícolas: botinas, enxadas, enxadões, rastelos etc...

Entra e sai de gente especialmente os sitiantes do alto-da-serra.

Sábado era o dia mais agitado: casamentos e batizados. A festa era no armazém. Cardápio: sanduíche de mortadela, cerveja sem gelo e tubaína. Para nós crianças um delírio.

Todos queriam estar na casa da avó Edwiges para conversar. Tomar café quentinho dia e noite. Jogar tômbola. Contar umas mentiras como dizia meu tio Alexandre.

Desciam as boiadas que vinham do alto-da-serra e seguiam para embarcar no trem de carga rumo a Piracicaba. Algumas reses desgarradas entravam pela porta da sala sempre aberta e saíam pela cozinha. A velha casa era um autêntico cenário de realismo mágico.

Hoje temos ali um supermercado com toda modernidade.

No vai-e-vem desta narrativa fecho parênteses e salto para a adolescência e suas incongruências. O momento em que a cabeça e o coração se movem em escolhas. Facilidades e vocação.

Vejo aos poucos que escrever e ensinar me atraem. Gosto e tenho facilidade. Ajudo meus colegas quando diante de um tema a ser desenvolvido em uma dissertação se sentem ante a esfinge: Decifra-me ou devoro-te!

Ah! Os livros! Desde muito cedo uma grande atração. Apego. Amor. Serão sem dúvida a melhor companhia de toda uma

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vida. Refúgio e balde despejado de sonhos, frustrações, incompreensões...

Gosto por línguas estrangeiras. Acho fácil e atraente. Vejo ali um caminho para mim.

E a profissão pautada na vocação e na necessidade se mostra: vou ser professora. De línguas e de literatura. É tudo de que gosto.

Estamos em plenos anos 50. Anos dourados. Música e lágrimas. E o cinema perpassando tudo: E o Vento Levou. Luzes da Cidade. Casablanca. James Dean. Ava Gardner. Fellini. Marcelo Mastroianni.

Aos 19 anos tenho a minha primeira experiência como professora. Eu e uma amiga montamos um curso de admissão ao ginásio. Obrigatório na época. Tínhamos 60 alunos um portento se levando em conta o tamanho da cidade. Eu dava aulas de Português e História. Minha amiga Titi de Matemática e Geografia. A sala de aula era o salão paroquial cedido pelo padre Floriano.

Necessidade de me expandir. Estudar mais...

Rumo a São Paulo. Deslumbramento com a cidade imensa. Amor à primeira vista.

Logo me sinto paulistana. Moro no bairro Jardim São Paulo próximo a Santana.

Estou na PUC. O ano é 1962. Sou bolsista no meio de muita gente privilegiada. E muito amiga também.

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Anos simplesmente inesquecíveis: música e política. Vida universitária. Alegria indescritível de ter 20 anos nos anos 60. Hoje me sinto privilegiada por isso. E um tanto melancólica.

Moro perto de Santana e atravesso boa parte do centro de São Paulo para ir à faculdade na Consolação. Ando de bonde.

Na volta parada obrigatória e diária na Biblioteca Mário de Andrade. Olha aí os livros me puxando novamente. Fico até as 10 da noite quando fecha... Só mudarei esse hábito quando começo a lecionar.

Bem. Então começa verdadeiramente minha vida de professora.

Estamos em 1964. Ano fatídico em nossa história e emblemático ao contrário. Meu destino: Ginásio Estadual de Vila Augusta.

Começo dando aulas de Francês. O que farei ainda por 10 anos. Tenho quase a idade dos meus alunos. Alguns até mais velhos do que eu. Insegurança mas também a certeza de que aquele era o meu lugar. Guarulhos era uma cidade ainda pequena. Cidade dormitório. Havia muitas chácaras e terrenos imensos no caminho da escola.

Escola pequena. Acolhedora. Amigos e colegas eternos. Não direi nomes. São tantos e tão queridos.

Ano de 1967. É quando me caso e mudo para Guarulhos. Não me estenderei sobre isto. Neste momento em que escrevo e me debruço sobre o passado acabo de perder meu marido. Companheiro de 46 anos. Saudades. Vazio.

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Mas voltemos à roda da história. 1968. Quem não tem algo a dizer sobre 1968? Para quem viveu é impossível. Ano tão marcante na história brasileira. E lá no canto em minha vida profissional...

É quando começo a trabalhar na Escola Estadual Conselheiro Crispiniano onde permanecerei por 23 anos. Então é um rio que corre... Me alimenta. Me sustenta.

Os anos 70 são uma verdadeira maratona. Uma autêntica corrida de obstáculos. É nesta década que nascem meus quatro filhos. Amor insuperável. Cansaço sem igual!

Na escola muito trabalho e alegria. Quantos amigos e professores exemplares. Alunos inesquecíveis. Uma família de verdade. Ambiente propício à amizade ao aprendizado e à formação de cidadãos. Até hoje meus melhores amigos vêm desse grupo dos anos 70.

A escola mais disputada da cidade. É também muito visada. São os anos 70. Anos de chumbo. Havia olhares atentos e ameaçadores sobre nós.

Claro que não poderia faltar neste relato a lembrança profunda e gloriosa de nossas lutas. Passeatas. Assembleias. Greves. E a repressão. Lutas intensas. A eterna busca de um reconhecimento que chega nunca.

Posto tudo isso reflito. Como é bom ter lembranças assim! É bom também colocar no papel! Passa uma ideia de inteireza. Missão cumprida. Vida vivida e revivida.

No momento os achaques e limitações da velhice dominam

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nosso cotidiano. Esse tempo e essa vida são farol e bálsamo.

Uma coisa é certa: ao longo de quase três décadas pode se dizer que nós professores passamos por tudo. Desde as dificuldades iniciais da profissão às intensas lutas pelo reconhecimento do nosso valor. Até hoje no campo das utopias. Árduas tarefas do dia-a-dia e enormes pilhas de provas e redações por corrigir...

Sim! Mas e as alegrias!

O despertar da curiosidade e interesse dos alunos. Amizade com os familiares. E sobretudo o prazer ímpar de descobrir no meio de coisas corriqueiras e repetitivas um texto que se destaca. Um texto lindo... E que você gostaria de ter escrito. Mas que tem também um pouco de suas marcas.

É claro que a educação no Brasil passou e passa por grandes desafios. A expansão quantitativa não se faz acompanhar da qualidade. É lamentável. Mas não é a marca do professor a desesperança. E sim tenacidade, persistência e amor...

Tomo para mim ao encerrar essa viagem emocional os versos de Fernando Pessoa:

Para ser grande

Sê inteiro.

Nada teu exagera ou exclui

Sê todo em cada coisa.

Põe quanto és

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No mínimo que fazes.

Assim, em cada lago,

A lua toda brilha

Porque alta vive.

Guarulhos, 28 de Julho de 2013.

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Professora Ercília Corrêa Duarte

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O que marca minha vida é a presença de minha avó materna. Francisca Esperança do Espírito Santo. O meu avô era Nhô Libânio. Libânio José Antônio. Hoje nome de rua. Ele trabalhava com dragas para extração de areia no Rio Tietê e morava com outra família em Mogi das Cruzes. Não sei se chegou a frequentar escola. Apenas sei que avó Francisca era analfabeta e teve com ele sete filhos: cinco mulheres e dois homens. Entre eles minha mãe. Arcolina Esperança. Devo a ela minha avó Nhá Chica a persistência nos estudos.

A avó paterna que não tinha sobrenome e só se chamava Maria Virgínia também era analfabeta. Era chamada de Nhá Maria. Seus antepassados que vêm da escravidão do século XIX se perdem no tempo assim como os do avô negro retinto que conheci só pelo apelido. Nhô Chirim. No registro de meu pai não consta o nome dele e recentemente soube que se chamava João Corrêa. Minha tia mais nova é que apresentava o nome completo. Domingas Corrêa de Ávila. Ela poderia ter herdado terras nos lados da Penha ricas em grafite. Herança de um tio que se casara com uma italiana e não teve filhos. Como não detinha recursos financeiros para correr atrás dos documentos perdeu a oportunidade.

Nhá Maria mais clara que os outros era do cabelo pixaim. Tinha grandes ancas como as africanas onde se podia sentar uma criança ou carregar uma bandeja e sempre brincam que puxei por ela. Ela gostava mais dos netos filhos da filha com quem morou. Afirmava que os filhos da filha era certeza serem mesmo seus netos e os do filho quem sabe... E me discriminava por eu ser canhota. Dizia que era contra Deus. Nunca me forçaram a escrever com a direita porque minha mãe achava bonito e na

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escola as professoras também aceitaram com tranquilidade. Só em casa de alguns amigos me forçavam a comer com a direita mas não adiantou. Sou canhota mesmo. Tive mais sorte que uma professora colega minha em um curso cuja avó mandou fazer um buraco na mesa no lugar onde ela comia. Lá era obrigada a colocar a mãozinha esquerda e comer com a direita. Ai dela se não seguisse esse ritual. Ficou destra e me revelou que sentia dificuldades na aprendizagem de outras habilidades como canto em que toda a família se destacava... Eu nunca tive dificuldade alguma.

A minha avó materna tinha uma casa enorme na Rua João Gonçalves. Desde que me conheço por gente a João Gonçalves tem este nome. Era de terra e por lá passavam as boiadas que iam para o matadouro onde meu pai trabalhava. O antigo Matadouro Guarulhos que ficava perto de onde hoje se encontram o Estádio Fioravante Iervolino e o Tiro de Guerra... Naquele casarão da João Gonçalves chegamos a morar por um tempo. Eu que era filha única meu pai e minha mãe. Os quintais eram fechados com cerca de arame farpado e bem depois chegaram os muros. Esta minha avó Nhá Chica sendo analfabeta valorizava muito o estudo. Fazia questão que estudássemos. Principalmente eu e um neto. Filho natural de uma tia com um poderoso da cidade. O poderoso lhe deu o nome e não o sustento. Quem o sustentava era minha avó que tinha terrenos e casas de aluguel.

Quando fui reprovada na 4ª série (hoje 8ª) ginasial minha mãe disse que eu não estudaria mais. Iria trabalhar com ela na tecelagem. Minha avó ordenou: Não... Me deu o dinheiro para pagar o grêmio e minha tia assinou a rematrícula. Fui ao ginásio que funcionava no Grupo Escolar Capistrano de Abreu para

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efetivá-la. Eu estava na fila e minha mãe ficou sabendo. Correu lá e me trouxe de volta para casa. Quando vi apareceu minha avó armada de um porrete que batia no chão. E gritava: Quero saber quem é o filho... (soltou um palavrão) que vai impedir minha neta de estudar! Minha mãe baixou a bola. Ninguém enfrentava Nhá Chica. Benzedeira respeitada. Todas as crianças daquela vila que era Guarulhos se formando passavam por suas mãos. Assim continuei estudando...

Estudei e cheguei a ser diretora de escola efetiva aqui em Guarulhos. Cidade onde nasci em 28 de novembro de 1940 na Rua Cerqueira César. Hoje ponto comercial que naquela época era de casinhas de janelas e portas que davam para rua. Nasci em casa alugada de poucos cômodos. Atrás de onde é hoje o Shopping Poli. A parteira foi dona Durvalina que faleceu quando atendia outro parto... O meu nome foi escolhido pela bisavó de minha amiga Isaíra Testae Freitas. Caterina Testae. Após meu nascimento minha mãe solicitou um nome e ela prontamente sugeriu: Ercília. E Ercília ficou sendo meu nome.

Logo abaixo de minha casa ficava a Tecelagem Carbonell onde hoje é o Eniac. Descendo mais um pouco está a atual Praça Prefeito Paschoal Thomeu. Ali era a estação de trem. De lá desciam os recrutas da aeronáutica que residiam na cidade ou se hospedavam em pensões. Ficávamos na janela olhando-os passar e os chamávamos de pasteleiros por usarem bonezinhos brancos.

Meu pai era Benedito Corrêa. Nascido em 27 de fevereiro de 1917 e criado nas olarias dos Testae. Italianos com quem aprendeu a língua italiana tão bem que até blasfemava como eles. O meu avô trabalhava nas olarias e meu pai chegou a trabalhar lá

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também fabricando tijolos. Ele cursou até o 4º ano primário na década de 20 no Grupo Escolar de Guarulhos na esquina das atuais Luís Faccini (naquela época Rua São Paulo) e Siqueira Campos. Atravessava o Rio Tietê de barco com as filhas dos donos das olarias e todo o pessoal. Inclusive Joanna Testae que era sua colega nos bancos da escola. Mãe de minha amiga Isaíra. Posteriormente trabalhou em matadouros. No mais antigo e no Mercantoni. E depois em açougues aqui do centro.

Minha mãe viva até hoje nasceu também em Guarulhos em 26 de fevereiro de 1922 e se chama Arcolina Esperança Corrêa que foi lavrado em meu registro: Erculina Corrêa. Não exigiam documentos para registrar crianças. Conforme os nomes eram falados se registravam. Quando ela se aposentou descobriu o verdadeiro nome. Arcolina Esperança. Como morava na João Gonçalves cursou o primário até a 3ª série em finais dos 20 e início dos 30 no Grupo Escolar de Guarulhos que depois homenagearia o historiador Capistrano de Abreu. Deixou os estudos e dizia: Não levo jeito! Foi trabalhar nas tecelagens que havia na cidade. Foi tecelã na Carbonell. Nas Fábricas Matarazzo em São Paulo. E por último na fábrica de linhos Behru. Meus pais se conheceram no baile em um salão da tecelagem Carbonell. Ele ia lá ver as tecelãs e dançar com elas. Dançou muito com minha mãe e se casaram no civil e no religioso.

Aos cinco anos me mudei da Cerqueira César e viemos morar na João Gonçalves com minha avó Francisca. Após completar sete anos no ano seguinte em 1948 entrei no Grupo Escolar Capistrano de Abreu. O portão da escola ficava aberto e Luísa louca entrava por ele. Jogava no chão os materiais dos alunos que estavam no pátio. Tomava nosso lanche também. Ela e sua

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família moravam em um conjunto de casas na Felício Marcondes em frente ao Cemitério São João Batista... Luísa subia nos ônibus e ia matracando o tempo todo. Xingava e mexia com as pessoas. Gritava. Ninguém a molestava e ela nem pagava passagem. Para cima e para baixo de ônibus. Não a molestavam modo de dizer porque ela engravidou e teve um filho de quem não se sabe. Todos sumiram da cidade. Nunca mais ouvi falar deles.

No meio do curso primário mudamos para uma casa próxima ao coleginho das freiras. Quando eu já estava no 4º ano minha avó Francisca vendeu algumas propriedades e repartiu a soma com filhos e filhas. Com este dinheiro minha mãe deu entrada na casa que ficou sendo nossa na Rua Oswaldo Cruz e o resto pagou à prestação auxiliada pelo meu pai. Ela que trabalhava na Behru ali na Monteiro Lobato onde é hoje Casa de Materiais de Construção e já foi a SENAP sempre tomava a frente. Meu pai concordava e trabalhava no matadouro. Todas as mulheres do lado de minha mãe eram mandonas. Voluntariosas e mandonas.

Minha avó paterna era mais acomodada. Morou muito tempo nos fundos da casa de Nhá Chica na João Gonçalves. Depois foi residir com a filha. Com ela conheci o Santuário de Aparecida e lá tiramos foto que guardo comigo até hoje. Ao lado de outra foto tirada a contragosto e de surpresa de minha avó Nhá Chica que não gostava dessas coisas. Opinião dela.

Entrei em 52 no Ginásio Estadual de Guarulhos que funcionava em período noturno no mesmo prédio do Grupo Escolar Capistrano de Abreu. Antes junto com o 4º ano frequentei o curso particular de admissão ao ginásio do professor Euvaldo de Oliveira Melo que era diretor do Capistrano e funcionava na casa dele na Rua Felício Marcondes. O diretor do ginásio

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era o professor Homero Rubens de Sá. Tive João Fonseca autor de livros como professor de Inglês. Wanda Mascagni como professora de História. Era baixinha e usava uma ponteira. Falava batendo a ponteira nos dedos e contava a História com um olho bem fechadinho. Em frente ao Capistrano onde é hoje a Praça Getúlio Vargas havia o campo de futebol do Paulista. Lá se davam as aulas de Educação Física que meu pai odiava. As meninas frequentavam de calção. Eu ia escondida dele. Ai de mim se soubesse...

Ao falar de meu pai não consigo deixar de me emocionar. Sinto lágrimas nos olhos. Ele gostava de conversar e de receber minhas colegas em casa. Antes de eu me formar ele bebia. Nunca deixei de ir buscá-lo estivesse onde estivesse. Até sentado na sarjeta. Minha mãe e as irmãs dela me criticavam e eu não dava pelotas. Se ele se desmontasse no chão ou no sofá eu o conduzia até a cama. Foi assim até que deixou de beber... E depois só bebia socialmente. Uma cervejinha com os amigos.

Quando eu era mocinha o footing era na Dom Pedro e aquele miolo chamávamos de vila. Fazíamos footing da Praça Teresa Cristina em frente à Igreja Nossa Senhora da Conceição até o Cine República. Íamos e voltávamos. Quem morava mais longe desse pequeno círculo da época dizia que vinha a Guarulhos. Olhe como tudo mudou!

Ao repetir a 4ª série completei o ginasial em 56. Saí para o mundo do trabalho. Trabalhei na Empresa de Ônibus Guarulhos como auxiliar de escritório. Também como auxiliar de escritório trabalhei por pouco tempo no Liceu de Artes e Ofícios. Por fim consegui emprego na Lavre – Laminação Volta Redonda – na Avenida Rotary perto da Escola Rotary onde pude estagiar

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quando normalista e do lado ficava a Serralheria da família Pompeo.

Só fui continuar meus estudos em 59 frequentando o curso normal à noite na Escola Normal Alfredo Pucca em São Paulo que ficava na Rua Beneficência Portuguesa (travessa da Cásper Líbero) no Jardim da Luz. Escola particular e mal afamada. Diziam: Pagou passou. Não concordo com isso. Tive uma excelente professora de Didática. Aprendi muito. Contudo quando fui me inscrever para o concurso de professores para o estado um inspetor escolar (hoje supervisor de ensino) fez comentários depreciativos ao meu diploma. Alfredo Pucca: escola boate.

Entrei na carreira do Magistério Público Estadual como substituta efetiva em 63 na Vila Any. Periferia da periferia de Guarulhos. Assumi uma escola isolada de manhã em que se juntavam 1ª e 3ª séries. Entrava às oito horas e saía do centro de Guarulhos às seis. Tomava ônibus na esquina da Oswaldo Cruz com a Felício Marcondes até a Penha. Da Penha tomava o trem até o Itaim. Do Itaim pagava uma charrete que me levava até a Vila Any. Saía de Guarulhos para chegar à sua periferia. Não havia outro caminho. Em dias de chuva o cavalo fugia e embrenhava no mato. O menino vinha me avisar que não teria charrete. Soltava os alunos mais cedo e ia a pé amassando barro por dois quilômetros para chegar até o Itaim. Uma vez consegui carona numa carroça e conforme as rodas de ferro giravam encheram minhas costas de petit-pois. Petit-pois de lama.

Ao mesmo tempo dava aulas em curso de adultos na Inspetoria Auxiliar que ficava no Capistrano de Abreu cujo diretor era o professor Luís e não me lembro do sobrenome. De início não

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era remunerado. Trabalho voluntário. Depois foi remunerado e a Inspetoria Auxiliar foi transferida para o Paulo Nogueira com o diretor professor Aluísio. Havia dois quadros nessa modalidade. QV (quadro voluntário) que atribuía mais pontos. QR (quadro remunerado) que atribuía menos pontos. Fui a única de Guarulhos do QR e deixei as outras colegas revoltadas. Cultivei muitas amizades na Delegacia de Ensino que ficava na Praça da Sé. Trazia recados para outros cursos e a inspetora Sofia Nicolau se transformou em grande amiga minha. Ela me orientou para entrar no quadro remunerado. Eu dava aulas só para 4ªs séries. Cumpria o programa todinho durante o ano e montava para mim só classes masculinas. As mulheres nesta faixa etária são muito enjoadas e eu não gostava.

Em 64 dei aula na Ponte Grande em escola isolada ligada ao Colégio Santa Catarina que era de freiras. As classes não eram multisseriadas. Assumi uma 1ª série e adotei a cartilha O Patinho Feio para alfabetizar. Eu não tinha preferências e não havia dificuldades na alfabetização. Na periferia era mais difícil e a Ponte Grande não era mais periferia. Só a Irmã Inácia nos vigiava para que não falássemos alto com as crianças e nos chamava atenção. Logo eu que sempre tive voz forte e outra colega que falava muito fino e estridente. Passávamos maus bocados com Irmã Inácia.

Fui também eventual no Grupo Escolar de Torres Tibagy. Ia todos os dias à espera de falta de alguma professora. Descia do ônibus na caixa d’água e ia a pé até lá. Sempre tinha substituição.

Ainda como professora substituta assumi em 65 uma 2ª série no Grupo Escolar de Gopoúva. Em 66 continuei lá com 2ª

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série igualmente. Era efetiva nesta escola minha amiga Isaíra. Posteriormente o Grupo Escolar de Gopoúva mudou de prédio e passou a se chamar Grupo Escolar Professor José Scaramelli.

Enquanto estive no Gopoúva à tarde acumulei com uma licença no SESI de manhã lá na Ponte Grande. Saía ao meio-dia e corria para pegar o ônibus com aquelas bolsas pesadas cheias de materiais didáticos e entrava ao meio-dia e meia na outra escola.

Através de concurso de provas e títulos em 67 ingressei como professora efetiva do estado no Grupo Escolar Athaulfo Alves em São Miguel. Era mais fácil trabalhar na periferia de São Paulo do que na nossa periferia.

Minha remoção se deu em 68 para o Grupo Escolar do Jardim Bebedouro que mais tarde veio a se chamar Vereador Waldemar Freire Veras. Eu já tinha um fusquinha e com ele me locomovia. Havia asfalto até perto da escola mas para subir até ela havia terra e barro. Em dia de chuva era sacrifício. O diretor era professor João Luiz de Godoy Moreira e fiquei em sala de aula até 72 quando assumiu a direção como diretora substituta professora Floracy Arantes Gaudie Ley. Ela me chamou para ser sua auxiliar. Em 74 fui auxiliar de 5ª à 8ª série. Antes fora Terezinha Leão. O nome da escola passara a ser EEPG Vereador Waldemar Freire Veras. E em 76 com a mudança da estrutura administrativa das escolas passei a ser assistente de direção. Continuei na mesma função com a chegada da nova diretora efetiva professora Maria Zampini.

Eu havia cursado dois anos de administração escolar em nível médio nos anos de 72 e 73 no antigo Colégio Nove de Julho de propriedade da professora Ivete Zacarias junto com minha

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amiga Isaíra. Com estes dois anos completos eu e ela cursamos mais dois anos de Pedagogia na Figuinha e nos licenciamos no início de 76.

Ainda nestes anos 70: 72 e 73 fui substituta na Prefeitura de São Paulo no Itaim. Escola Municipal Antônia e Artur Begbie. Junto com Tancha, Tera e Luís. Tancha e Tera tinham um fusca. Eu também. O Luís tinha um passat. Revezávamos os carros. Íamos pela Dutra e entrávamos por Ermelino Matarazzo. Como todas as escolas em que trabalhei o asfalto não ia até a porta. Enfrentávamos ruas de terra com muito barro em dias de chuva. Certo dia muito chuvoso meu carro encalhou não ia nem pra frente nem pra trás. Luís e Tera foram empurrar. Tancha não por causa do problema na perna. Os dois empurravam e riam muito. Eu estava no volante. Gargalhávamos. De repente a dentadura da Tera caiu no barro. Foi um sufoco e as gargalhadas triplicaram. Medo do pneu do carro passar por cima. Por fim ela conseguiu recolher e pedimos a um pessoal de uma casa próxima água para lavá-la. Nem me lembro como o carro chegou à escola. Só sei que rimos o tempo todo.

Ainda no ano de 72 em janeiro fui conhecer Montevidéu com as amigas Tancha e Tera. Elas trabalhavam na Escola Alice Chuery na Vila São Jorge e tinham uma aluna uruguaia cuja mãe as convidou para conhecer o Uruguai. Vendi um terreno pelos lados do Jardim Jovaia lugar só de mato e onde não havia nada. Fui com elas. Hector que se tornou meu marido era sobrinho dessa senhora que nos convidou e ficamos hospedadas em casa dele no centro de Montevidéu. Depois que viemos embora em fevereiro Hector desistiu de um noivado e veio para o Brasil. Em setembro nos casamos. Minha mãe vendeu a casa da Rua

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Oswaldo Cruz e comprou este terreno aqui na Rua Túlio Brancaleoni nº 66 para construirmos esta casa. Meu pai ainda era vivo.

Moramos ainda na casa que minha mãe tem na Luís Faccini para iniciarmos esta construção. Depois viemos residir na primeira edícula nos fundos. Meu marido como eletrotécnico conseguiu bom emprego e vendemos carro novo para comprar carro velho. Sobrou algum dinheiro e terminamos a construção. Aqui na parte térrea fiquei com minha família e meus pais no pavimento superior.

Professora Maria Zampini já havia ingressado como supervisora de ensino em 78 e continuei assistente de direção no Waldemar Freire Veras. O novo diretor efetivo professor Alceu foi substituir na supervisão e me tornei diretora substituta da escola.

Em 83 foi minha vez. Ingressei como diretora efetiva na escola Milton Cernach. Na época EEPG Milton Cernach cuja supervisora era professora Ivone Galvani. Ao redor do prédio ruas de terra em declive. Quando não era aclive como no Freire Veras era declive como no Milton Cernach. Só a avenida que saía da Praça Oito era asfaltada. O carro derrapava. Deixava meu fusquinha num terreno vazio onde hoje é o Posto de Saúde e ia para a escola a pé contornando as ruas para chegar.

Havia uma professora primária e de Educação Física que adorava faltar e tirar licenças. Ela foi à Delegacia de Ensino reclamar que eu obrigava cumprir horário mesmo em dias de chuva com acesso quase impossível até a escola. Professora Ivone que estava ocupada ficou sabendo que havia uma professora no plantão reclamando da diretora do Milton Cernach. Solicitou

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que lhe perguntassem se a diretora em dias de chuva e de muito barro ia à escola... A professora se retirou imediatamente do recinto da Delegacia de Ensino.

Ali era um ninho de cobras. Das famosas panelinhas. A diretora anterior não tinha carro e ia de carona ficando refém do caroneiro. Ou ia de ônibus. Os vizinhos entravam e saíam da escola em qualquer hora que queriam. Levavam comidas e lanches. Havia hora do lanche e da comilança. Professores saíam de carro para buscar alguma coisa. Havia uma inspetora de alunos supostamente contratada pela APM. E muita fofoca. A diretora anterior não aguentou e chegou a receber ameaças de morte em sua casa por telefone. Se removeu...

Levei como assistente de direção professora Lourdes que era do Cantídio. Ela ficava à noite. Cortei os maus costumes aos poucos e pelas beiradas. A assistente anterior todos os dias levava papéis para a delegacia. Saía às duas e não voltava mais. Eu e Lourdes não. Ia à delegacia a secretária e não eram todos os dias. Minha sala só se usava para receber alguma visita, pais etc. Todos ficávamos na secretaria. Alunos indisciplinados faziam lições na mesa que a suposta inspetora dizia ser dela e a inspetora ficava furiosa. Descobri que na falta de professores do diurno ela aparecia na folha de pagamento como substituta embora só trabalhasse no período noturno. Cortei! Não assinaria aquela folha de pagamento! Ofereci que fosse mesmo registrada pela APM como auxiliar de serviços gerais. Ela enrolou e não trouxe os documentos. Um dia caiu da cadeira e sumiu. Fiquei esperando que ela reivindicasse acidente de trabalho e nada aconteceu. Quando retornou não perguntei se estava melhor. Ela desistiu de trabalhar na escola.

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Ao advertir um aluno que era da família dos alemães. Pessoas morenas e nunca vi alemão moreno! Eles mandavam e desmandavam por ali... Traziam comida. Sujavam tudo e nem limpavam... Me alertaram: Cuidado eles são vingativos! Não mexa com esta família! Não me incomodei e ninguém veio tirar satisfação.

Também chorei muito no Milton Cernach por observar e acompanhar crianças que apanhavam muito em casa. Havia duas meninas muito espancadas pela mãe. Falei com a tia que me confirmou: A mãe bate com pedaço de mastro de bandeira. Contornei o assunto para abordá-la. Ela foi direta: Bati e bato! Elas não foram criadas comigo. Quem as criou foi minha mãe que morreu e minha irmã as mandou de volta porque é prostituta. Elas têm que dar comida ao meu bebê cuidar da casa e tirar água do poço antes de vir à escola. Ai delas se não fizerem! As meninas viviam machucadas. Naquela época não havia Conselho Tutelar nem Delegacia da Mulher. Só Delegacia de Polícia que pouco adiantava. Os delegados não tinham sensibilidade. Eu e as professoras sofremos muito. Dávamos uma de forte para não chorarmos junto com as crianças.

Em 85 voltei como diretora efetiva para o Freire Veras.

No ano seguinte professor João Luiz de Godoy Moreira era o delegado na 1ª Delegacia de Ensino de Guarulhos. Fui convidada para substituir supervisor e depois voltei para o meu cargo de diretora efetiva no Freire Veras. Meu lugar preferido!

Nestes anos em que dirigi a EEPG Waldemar Freire Veras acompanhei o Projeto Ciclo Básico implantado pelo Governo do Estado em que as crianças eram avaliadas depois de dois

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anos de alfabetização. Entre o 1º e 2º anos a promoção era automática. Não concordava com essa promoção. Havia uma sala pequenina onde cabiam uns vinte alunos no máximo. Lá eu montava turmas de crianças que tinham dificuldades na aprendizagem para reforço. Por fim deixava no 1º ano quem não tinha condições.

Faltava sala ambiente e espaço para troca de experiências. Não havia estrutura para se atender crianças mais lentas para concluir a alfabetização. Fazíamos o possível e o impossível. Hoje piorou. Há professoras de Didática que nunca pisaram em sala de aula do ensino básico. Quando cursei o normal a professora de Didática tinha anos de experiência tanto na alfabetização como nas séries subsequentes. Para cada momento da aula ela tinha um exemplo concreto para citar. Coisas vividas. A aula era pura vida além dos estágios muito bem acompanhados. Agora não adianta lamentar... Me aposentei em 18 de agosto de 1988.

A partir de 90 experimentei atuar na escola particular. Trabalhei de manhã como assistente de direção no Colégio Elite situado na João Gonçalves. Fiquei dois anos. Depois fui para o Colégio Rio Branco onde fui assistente também. Lá fiquei até o ano 2000. Não me acostumei. Os pais colocavam filhos na escola particular pagavam mensalidade e pronto. Pagou e passou. Havia alguns poucos exagerados que viviam atrás com superproteção. O restante deixava largado. A escola resolve. Os alunos eram petulantes... Em 2000 deixei de vez a educação para ser dona de casa. Acompanho e apoio minha família.

Guarulhos, 23 de abril de 2012.

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Professora Isaíra Testae Freitas

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Nasci em 11 de novembro de 1937 nesta cidade de Guarulhos na Rua Luís Gama nº 6 onde é hoje o Banco do Brasil e já foi a Nossa Caixa. Eram duas casas geminadas de propriedade do sr. Zeferino Rabelo em que havia um poço cortado ao meio pelo muro: metade para uma casa e metade para outra. Cada uma com sua carretilha e seu balde. Os nossos vizinhos eram dona Ana e seu Zé da Lenha cujos filhos moleques levados: Amâncio e Zequinha jogavam a carretilha do poço com força e ela se enozava na nossa que dava um trabalhão para desembaraçar. Seu Zé cortava lenha e vendia nas casas que em sua maioria as utilizavam no fogão. Também era destocador. Arrancava os troncos com as raízes das árvores já cortadas e limpava o terreno. Português trabalhador este meu vizinho e se tornou o primeiro faxineiro do Banco Ítalo Brasileiro que ficava onde hoje é o calçadão e já foi o pontão. Ali na Praça Conselheiro Crispiniano em que havia também o Cine República de propriedade da família Antônio Pratici.

Houve também na Praça Conselheiro Crispiniano a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e o cemitério adjacente que foram derrubados e deram lugar a um sobradão onde morava a família de seu Caetano D’Andréa e dona Carolina Lombardi. No térreo funcionavam bar e restaurante. Comida deliciosa preparada por dona Carolina. Foram substituídos bar e restaurante pelo Banco Ítalo Brasileiro. O segundo banco a chegar à nossa cidade cujo gerente foi seu Mário Guida. O primeiro havia sido o Banco Cruzeiro do Sul na Rua Luís Gama vizinho à minha casa. Estive na inauguração. Em seu lugar hoje é uma loja de artigos de festa.

Meu pai Benedito Alves Ferreira também nasceu em Guarulhos

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nos sítios de propriedade da família às margens do Baquirivu em 10 de julho de 1910. Filho de Flamínio Alves Ferreira e Eulália de Siqueira Bueno. Só havia uma estradinha de terra que ia até Nazaré Paulista e passava pelas terras de meus avós paternos. Indo do lado esquerdo ficavam as propriedades do sr. Marcial Lourenço Seródio que morava em São Paulo e lá possuía granjas. Era o todo poderoso e sempre se vestia de calça preta e camisa branca. O que ele falava era lei. A segunda esposa de meu avô que chamávamos de Nhá Brasa confiava infinitamente neste homem que o chamava de Maciel e deixava todo seu dinheiro em suas mãos mesmo depois da chegada dos bancos. Não. Vão descobrir o tanto de dinheiro que tenho! Dizia ela... E do lado direito da mesma estradinha se avistavam as terras de minha família... Hoje toda aquela região se transformou na Cidade Seródio e há controvérsias. Possivelmente o lugar das terras de meu avô deve ser hoje o Lavras.

Quando minha avó paterna morreu logo após o nascimento de meu pai que foi seu único filho meu avô se casou novamente com Dona Brasilina que com ele teve quatro filhos: dois homens e duas mulheres. Logo meu pai deixou o lugar em que nascera para residir em casarão dos tios paternos: Nhá Rita e Nhô Vicente que eram solteiros e morreram solteiros no Bairro dos Alves. São Roque. Próximo onde hoje é o Parque Cecap do lado da ABB cujas terras laterais eram de meu avô e foram vendidas antes de meu nascimento.

Minha mãe Joanna Testae nasceu em 27 de setembro de 1915 aqui na nossa cidade em terras que ficavam antes do lugar em que se construiu o Presídio Adriano Marrey. Exatamente onde hoje fica o Bairro Porto da Igreja. Lá meu avô Augusto Testae

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casado com minha avó Maria de Mauro Testae e seu irmão Henrique Testae casado com Albina Rossi possuíam uma olaria cada um e carregavam tijolos para São Paulo em dois barcos navegando no Rio Tietê. Tenho guardada até hoje a caderneta comprida de notas de meu avô em que ele registrava créditos e débitos.

Não só o avô Augusto era alfabetizado como a avó Maria também esteve nos bancos da escola. Minha mãe quando chegou sua vez foi matriculada no Grupo Escolar de Guarulhos instalado na esquina das atuais Luís Faccini e Rua Siqueira Campos onde hoje existe um prédio comercial construído mais recente que o antigo ainda fora Posto de Saúde e Secretaria de Assistência Social da Prefeitura antes de ser demolido. Ela atravessava o Rio Tietê de barco com as irmãs e todo o pessoal. Tomava o barco quem estudava e quem vinha a compras ou a trabalho: cozinheiras, lavadeiras, empregadas domésticas, trabalhadores de serviços gerais etc. ou então vinha resolver alguma coisa na cidadezinha. Eram os anos 20 do século passado. Minha mãe completou os quatro anos do primário e guardo um de seus boletins e um caderno. A professora mais querida foi Brasília Castanho de Oliveira que hoje é nome de escola no Picanço.

No início dos anos 30 em diferença de quarenta dias os dois irmãos faleceram. Primeiro Henrique de úlcera gástrica e depois Augusto de pneumonia. Já havia acontecido a quebra da bolsa de Nova York em 29. Eles não conseguiam vender tijolos e se endividaram. As viúvas para se livrarem das dívidas venderam as terras na bacia das almas abaixo de seu valor à família Klabin orientadas por comerciantes seus credores. Foi daí que avó Maria arrumou casamento de minha mãe Joanna com meu

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pai Benedito. Considerou-o bom partido e bom administrador de negócios para ajudá-la. Ele vendia lenha cortada em suas terras para as olarias da família Testae. Estacionava o caminhão velho à beira do Tietê e chamava o barqueiro. Atravessava com a lenha recebia e retornava. Como se observa meu pai também se alfabetizara. Tinha carta de motorista. Mais tarde trabalhou em empresa de ônibus e teve um táxi.

Em 30 de junho de 1934 meus pais se casaram. Minha mãe que era bela de cachos negros não queria se casar e era apaixonada por outro rapaz. Tentou fugir com uma tia para o Paraná e levou uma surra de minha avó. Subiu ao altar machucada principalmente na boca... Posteriormente minha mãe visitou por muito tempo depois de casada o seu primeiro amor no Sanatório Padre Bento onde eram internados os portadores de hanseníase e eu ia junto. Não podia entrar e ficava na portaria. Eles conversavam naqueles bancos dos jardins que os muros não deixavam ver e não podiam se cumprimentar. Os enfermeiros vigiavam o tempo todo para não haver contágio. Naquele tempo era assim. Trocavam cartas e ela se conformou. Herdei e guardo comigo uma foto desse rapaz.

Após o casamento da filha minha avó materna se mudou para o pequeno centro que na verdade constituía toda a cidade de Guarulhos na Rua Cerqueira César para exercer a profissão de costureira e pagava aluguel ao proprietário sr. Juvenal Ramos Barbosa que era fiscal do estado. A casa existe até hoje. Ela tinha uma casa na Rua Dom Pedro esquina com a Padre Celestino que estava alugada e só depois foi lá morar. Este imóvel rendeu muitas dores de cabeça. O marido nos embaraços das dívidas e com receio dos credores passou-o para o nome da filha mais

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velha. Cemira Testae. Esta dizia que não se casaria e nem namorava. Contudo assim que ele morreu arrumou namorado e se casou. Depois de algumas demandas venderam a casa aos Zampoli. Metade do valor ficou para tia Cemira e a outra metade minha avó repartiu com os outros filhos.

Ao se casarem meus pais foram morar no casarão de meus tios avós: Nhá Rita e Nhô Vicente que já havia falecido. Continuava lá Nhá Rita acompanhada da bela Nhá Lucrécia e sua irmã Nhá Guilhermina que eram descendentes de escravos. O casal residiu neste casarão por três anos e se mudou pouco antes de eu nascer para a Rua Luís Gama.

Era o ano de 1937 e nasci em casa como era o costume da época. A parteira dona Durvalina ao ser chamada e examinar a parturiente considerou o parto de difícil desfecho. Eu tinha dificuldades para sair de dentro de minha mãe. Demorou e resolveram recorrer ao dr. Paulino. Médico mais antigo da cidade e por muito tempo o único. Ele não estava. Havia ido para São Paulo. Buscaram dr. Nicolau Falci. Médico recém-chegado e recém-formado. Ele mais tarde instalaria a Santa Casa de Misericórdia de Guarulhos na época do Governo Ademar de Barros. A Santa Casa era um casarão com alpendre na frente para abrigar os que esperavam ser atendidos. Ao adentrar nela se deparava com salas de consultas e quartos. Contudo dr. Nicolau se recusou a fazer meu parto. Minha mãe deveria ser atendida em hospital de São Paulo. Ela não quis enfrentar as estradinhas de terra que nos conduziam até a capital. Não havia asfaltos nem calçamentos.

Após dois dias de sofrimento em que ela agarrada às bordas da cama em trabalho de parto tinha as unhas ensanguentadas

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chegou dr. Paulino que me tirou de seu interior com as mãos. Eu estava entalada pela cabeça que ficou marcada e dividida em duas. Disse o médico a meu pai: A mulher eu salvo. A criança é temerário! Me enrolou num lençol e deixou de lado. Aquele lençol bonito bordado do enxoval de minha mãe que era muito caprichosa. Quem cuidou de mim foi a parteira que orientada por dr. Paulino me colocou uma toca bem apertada para juntar as duas partes da cabeça. Guardei até pouco tempo a toquinha bordada e arrematada com renda. Minha mãe não queria nem me ver. Eu era um bebê que deveria parecer monstro insinuando duas cabeças.

Quem escolheu meu nome foi minha bisavó materna. Caterina Testae. Em homenagem à madrinha de casamento de minha mãe. Zaíra. Meu pai acrescentou o I e não me deu seu sobrenome. O s foi por conta do cartório. Fui registrada Isaíra Testae. Sobrenome da família materna. Na escola primária eu sempre escrevera Isaíra Testae Ferreira. Ninguém nunca me disse nada. No ginásio o secretário Breno Bechelli conferiu os documentos e chamou minha mãe. Ela foi falar com Evaristo Arruda oficial do cartório que minimizou o fato: Ela é mulher. Logo perde o sobrenome e fica com o do marido... Informou também que poderia consertar. Seria muito caro e demorado. Ela desistiu e ficou assim mesmo. Me orgulho desse sobrenome. Testae.

Realmente minha mãe não queria ter filhos e demorou três anos para me conceber. Depois não quis mais nenhum. Sou filha única. Ela custou um pouco para gostar de mim. Quem me agradava era tia Clementina sua irmã. Eu sempre fora muito levada e apanhava de varinha de pessegueiro. Certa vez piquei

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com a tesoura a frente da saia godê de um lindo vestido de organdi que ela acabara de passar para entrega. Fui salva de uma surra por tia Clementina que chegara na hora e me levou passear. Minha mãe ficou em casa consertando o estrago com a sobra do tecido...

O tempo passava. Aos poucos Joanna minha mãe foi se apaixonando por mim que era sua única filha. Confeccionava lindos vestidos e acessórios para me enfeitar. Foi uma paixão para o resto da vida. Cozinhou e bordou para mim a vida inteira e para a família que construí.

Ela herdou de avó Maria a profissão de costureira. A máquina era de mão alemã marca Anker e depois se colocaram os pedais da marca Singer. Guardo os pés e a gavetinha (deveria ter guardado tudo) em minha chácara em Guararema. Minha mãe foi uma das costureiras de Guarulhos e teve como freguesa Dona Nicoleta que era dona do casarão da ladeira e da família dos donos de uma pequena tecelagem que fora vendida para os Carbonell ou para os Besoghini. Não me lembro...

Mais tarde o casarão que ficava no topo da hoje conhecida Ladeira Campos Sales também foi vendido e posto abaixo. Em seu lugar se ergueu o cine São Francisco e depois casas comerciais. Houve tempos anteriores em que dali era possível se avistar o Rio Tietê. Fora uma das mais antigas construções da cidade feita de pau-a-pique. A maior e mais bonita. Em sua entrada a porta arredondada um arco dava para o quintal que atravessava até a outra rua. Na entrada ainda havia duas escadas uma de cada lado em curva que ascendia à sala enorme. De frente para a Praça Teresa Cristina existiam ao menos três

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sacadas com portas-balcão. Minha mãe frequentava aquela casa costurando para dona Nicoleta vestidos negros de viúva e demais roupas para suas filhas e netas. Levava peças à prova e eu ia junto para brincar no quintal com as crianças.

No ano de 1945 aos oito anos antes minha mãe não deixara entrei na escola a mesma em que ela havia estudado. Grupo Escolar de Guarulhos que já funcionava no prédio atual na Praça Getúlio Vargas. A partir de 47 passou a se chamar Grupo Escolar Capistrano de Abreu. Contudo em meu caderno no cabeçalho está escrito: Escolas Reunidas do Bairro dos Silveiras. Minha professora era filha da família influente de José Maurício de Oliveira... Dona Benedita mulata simpática e muito querida que morava na Rua Dom Pedro passava em casa para me conduzir à escola. Ela também era professora auxiliava o diretor na secretaria e respondia pela direção quando necessário. Dominava tudo. Sabia tudo...

Em 49 entrei no curso de admissão particular e pago claro. Professor Euvaldo de Oliveira Melo que era diretor do Capistrano ministrava aulas de Português e Matemática. Dona Amália Sampaio também professora do Capistrano ministrava História e Geografia. Fiquei amiga de dona Amália que por mais de 10 anos comeu de marmita com minha mãe que também se tornou cozinheira. Foi nesta época que conheci Tancha. Constância Gabriel que foi minha colega e nos tornamos amigas. Antes eu a via da janela da casa de minha avó passar arrastando aquele gesso pesado na perna. Ela mudara para Guarulhos por ser próximo ao Hospital das Clínicas. Tomava o trem com o pai e ia para São Paulo se tratar. A irmã de Tancha. Tera. Therezinha Gabriel. Já trabalhava na Tecelagem Carbonell e era autodidata.

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Não frequentou o curso conosco e pagou para Tancha. Todavia se aprovou no exame de admissão.

Em 50 entramos no ginásio. Ginásio Estadual de Guarulhos que funcionava no prédio do Capistrano à noite. Eu, Tancha, Tera, Elenice Fantazzini, Maria de Lourdes Iaquinto, Valdira Nagem, Valdira Nascimento, Antônio Nabais Moreno etc. Na primeira carteira. As carteiras eram duplas. Sentávamos eu e Tancha. O corpo docente era constituído de homens e mulheres. Professor Adolfo Noronha de Português. Professora Vanda Mascagni de História. Professor João Fonseca de Inglês que era autor de livros didáticos. Dona Graciosa de Matemática. Dona Iara de Geografia. Dona Abrantina de Economia Doméstica. Padre Negrini era professor de Latim.

Houve um dia em 52 que meus pais já desentendidos havia muito tempo resolveram se separar. Para mim estava tudo bem e ambos me eram queridos. Quando vi meu pai arrumou as malas e se mudou. Antes compareceram por três vezes em frente ao juiz no fórum da Praça João Mendes Júnior. Como não se reconciliaram aconteceu o desquite. Minha mãe foi a primeira desquitada de Guarulhos e sofreu discriminação. Perdeu freguesas e algumas colegas se afastaram de mim. Ela continuou me sustentando com o dinheiro da costura que guardava na gavetinha da máquina. Na inauguração do primeiro banco abriu uma conta. Depois da separação saiu a herança da casa de meus avós maternos. Minha mãe que já possuía um terreno comprado à prestação na Rua São Paulo hoje Luís Faccini construiu nossa casa ao lado de onde atualmente é a Elétrica Takei em pouco mais de um ano entre 54 e 55. Passei a bordar para auxiliá-la assim que aprendi com a bordadeira

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dona Maria. Em casa se costurava e se bordava.

No ginásio me formei em 54 e o paraninfo da turma professor Noronha nos ofereceu um coquetel em sua bela casa que ficava na descida lá embaixo próximo às atuais Praças IV Centenário e Paschoal Thomeu. O baile de formatura aconteceu no Clube Esportivo da Penha em que conheci meu marido João Freitas pé de valsa que não conseguiu me ensinar a dançar até hoje.

Entrei no curso normal em 55 no Instituto de Educação Estadual Nossa Senhora da Penha. Do pré-normal ao 1º normal fui promovida. Contudo do 1º ao 2º fui reprovada com mais 16 colegas pelo muito enérgico professor França de Sociologia. Éramos 17 e se fôssemos 18 metade da classe poderíamos ter exigido nova prova. Entre os reprovados também estava Tancha. E todos fomos estudar na Escola Normal Livre Vera Cruz que se situava na Rua Piratininga. Tomávamos o ônibus e percorríamos a Celso Garcia e depois a Rangel Pestana onde descíamos e nos dirigíamos a pé até a escola que era particular. Tera pagava para Tancha. Eu só não gostava das aulas de música com o maestro e professor João Amarante. Tínhamos que solfejar e cantar...

Quero voltar ao casarão da Estrada de Nazaré trecho onde hoje é a Monteiro Lobato em que ficaram Nhá Rita e suas companheiras negras depois da retirada de meus pais para a Rua Luís Gama. Assim iniciamos o encerramento dos anos 50. Elas criavam galinhas e cultivavam ervas variadas. Nhá Lucrécia com uma linda e enorme cesta de ovos e folhas verdes aromáticas e medicinais vinha a pé até Guarulhos que hoje é este centro e lá na atual Praça Prefeito Paschoal Thomeu tomava o trem para vender seus produtos no Mercado da Cantareira.

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Estava sempre descalça. Ela tinha pavor de andar de carro ou ônibus. Preferia caminhar e tomar o trem. Por capricho morreu atropelada espremida num barranco por um carro que a surpreendeu no meio do caminho quando transportava suas mercadorias. Era o ano de 56 e eu já cursava o normal. Antes Nhá Guilhermina já havia morrido. Nhá Rita ficou só. Minha mãe foi buscá-la para morar conosco. Ela era uma mulher humilde de pouco calçado e roupas simples. Vivia triste no quintal.

No ano de 58 antes de me formar a diretora do Grupo Escolar de Gopoúva que hoje é a EE José Scaramelli Dona Stella Frugolli que tomava refeição em minha casa me levou para dar aulas em substituição no período da manhã. Eu ganhava um dinheirinho e à tarde estudava...

Ainda em 58 e 59 eu e Tancha dávamos aulas no Curso de Alfabetização de Adultos à noite no Grupo Escolar do Taboão que é hoje a EE Plínio Paulo Braga e pudemos amealhar muitos pontos para o ingresso. A luz era de lampião a querosene. Mais tarde Tera que alfabetizava adultos na Vila Flórida e lá já havia luz elétrica nos arranjou lampiões a gás. De qualquer forma nos amedrontávamos ao acendê-los. As aulas terminavam às 21 horas. Quando o ônibus que era único passava para o ponto final ali perto em lugar de matagal e para frente só olarias e desova de cadáveres onde hoje é a Praça Oito apagávamos os lampiões e fechávamos a escola. Acompanhadas dos alunos atravessávamos a rua e esperávamos o ônibus logo em frente. Você me pergunta se era jardineira? Não. Não era não. Ônibus mesmo. Jardineira houve na minha infância que nos levava até a Penha.

A cidade era pequena. Não havia mão nem contramão. Tomávamos o ônibus na Praça do Rosário para irmos e lá

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também descíamos ao voltar. A Otávio Braga de Mesquita era a Estrada do Taboão. De terra. Na chuva se encalhava no barro e na seca era puro pó. À noite pegávamos sempre o último ônibus dirigido por um velhinho que nos esperava se atrasássemos. Depois dele não havia mais nada e não podíamos ficar ali naquele local ermo... Certa vez um motorista de carro preto nos ofereceu carona. Receosas recusamos. Ele acendeu a luz interna do veículo e disse: Sou o vice-prefeito. E reconhecemos. Sr. Francisco Antunes Filho: gordo e de bigodinho preto. Aceitamos na hora.

No final de 59 me formei no curso normal. A missa de formatura aconteceu na Catedral da Sé e tiramos foto na escadaria da igreja. Houve também um chá no Terraço Itália em São Paulo.

A partir de 60 assumi classes como professora substituta no Grupo Escolar de Gopoúva. Ao mesmo tempo consegui através de um vereador a criação da primeira escola municipal de Guarulhos que ficava na Fazenda Bom Clima cuja sede hoje é a Prefeitura Municipal. O proprietário da fazenda cedeu o local que era morada de pombos e ficava mais para frente. Na reta até no morro que é hoje a Avenida Bom Clima. Ali havia loteamento novo e casas novas. A prefeitura reformou o pombal e construiu dois banheiros: feminino e masculino. Eu e outra colega tivemos que ir atrás dos alunos. Exigiram lista com nome completo e endereço deles: 30 para cada uma. O loteamento não preenchia todas as vagas e pegamos a Estrada do Cocaia hoje Faria Lima ladeada por olarias e fomos à luta para completarmos o número exigido. Conseguimos formar duas classes multisseriadas. De manhã funcionava a Primeira Escola Mista do Município de Guarulhos sob minha regência

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com 3º e 4º anos. À tarde a Segunda Escola Mista do Município de Guarulhos cuja professora lecionava para os 1º e 2º anos. Nossa chefa era sra. Dulce Macedo Ierabide que chegou a se sentar na cadeira de prefeito. A primeira mulher prefeita de Guarulhos.

Em agosto de 64 depois de aprovada no primeiro concurso público de provas e títulos de 63 e com mais os pontos adquiridos ingressei como professora primária efetiva do Estado de São Paulo no mesmo Grupo Escolar de Gopoúva. Em finais do ano fui informada de que não poderia manter dois cargos: um na prefeitura e outro no estado. Não investiguei e fui ingênua. Pedi demissão da prefeitura e não recebi nada. Continuei no estado.

Me removi para o Grupo Escolar Paulo Nogueira no meio do ano de 65. O Paulo Nogueira era uma escola de madeira onde hoje existe a Praça Antônio de Ré. Lá fiquei por 10 anos e assisti à mudança para o prédio definitivo. O diretor era sempre professor Aluísio.

Cursei dois anos de administração escolar em nível médio em 72 e 73 no antigo Colégio Nove de Julho. Era de propriedade da professora Ivete Zacarias e ficava na Padre Celestino. Hoje é o SENAC. Com estes dois anos completos cursei mais dois anos de Pedagogia na Figuinha e me licenciei no início de 76.

Neste mesmo ano de 76 com a expansão dos bairros e criação de novas escolas que desde a promulgação da LDB 5692/71 se chamavam Escolas Estaduais de 1º Grau ou Escolas Estaduais de 1º e 2º Graus houve diminuição de classes nas escolas centrais. As professoras que haviam ingressado ou se removido

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por último deveriam ser remanejadas através de uma lista única classificatória. Do Paulo Nogueira sairiam: Amália Poli Novak e outra que vinha da Penha. Houve também a reformulação da estrutura administrativa das escolas e se criou a função de assistente de direção.

Tinha em mãos diploma de Pedagogia e me removi para uma escola nova: EEPG do Parque Uirapuru. Hoje EE Padre Valentin Gonzalez Alonso. Conforme me informara seria a primeira professora efetiva dela e logo fui designada assistente de direção de uma escola nova que não tinha diretor efetivo e me transformei em diretora substituta. Uma das prerrogativas do assistente de direção. Dessa forma Amália não saiu do Paulo Nogueira e fui me aventurar a montar uma escola na periferia de Guarulhos.

Cheguei ao local da escola e só havia o prédio. Mães queriam matricular os filhos. Os vizinhos emprestaram mesa e cadeira para mim e um funcionário que veio comigo da 2ª Delegacia de Ensino cujo delegado era professor João Luiz meu amigo. Na 1ª Delegacia de Ensino estava como delegada professora Adelaide. Fizemos as matrículas em cadernos brochura que havíamos levado e começamos a solicitar os documentos. Era o início de 77. Houve demora de mais vinte dias para chegarem os móveis. Todos os dias os pais iam lá cobrar: E aí? Quando começa?

Finalmente entregaram os móveis e montamos as salas de aula. Foram para lá como professoras efetivas Marli Pinto da Silva e uma porção de professoras recém-formadas. Entre elas Sílvia. Sobrinha de um supervisor de ensino. Não tínhamos material de limpeza e nem dinheiro para comprar. Ao se mudar de

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função o primeiro pagamento demorava cerca de três meses. Um comerciante do armazém vizinho nos ofereceu o necessário para ser pago com o meu dinheiro assim que recebesse. Comprei rodos, vassouras, desinfetantes, sabão, bucha etc. Não havia serventes. Limpavam a escola as mães voluntárias e todos nós ajudávamos.

Minha casa era grande e no centro próximo ao Conselheiro na Rua Luís Turri. Nela João Luiz que era meu amigo e delegado de ensino organizou muitos jantares para políticos e me lembro especialmente de Armando Pinheiro. Havia homenagens às autoridades educacionais da época. Professoras minhas amigas e que trabalhavam comigo preparavam as comidas e a decoração. Não me esqueço de uma parreira que ornamentava a mesa de sobremesa com folhas naturais e cachos de uvas-passas recheadas com creme de coco, leite e ovos. Capricho das duas irmãs Magda Marques e Maria Helena Guimarães. Ambas eram ótimas alfabetizadoras. Utilizavam a Caminho Suave e um método especial que elas mesmas criaram.

No ano seguinte a escola passou a funcionar à noite também. Era um perigo. Havia marginais no portão que atiravam pedras nas janelas. Não queriam estudar e atrapalhavam quem se predispunha. Conversei muito com eles e procurei amizade. Melhoraram um pouco. Contudo não se matricularam por mais que eu insistisse. Muitos trabalhavam durante o dia e outros nem trabalhavam.

Ganhei uma quantidade de mudas de pinheiro grandinhas e num sábado com ajuda de alunos maiores plantamos rodeando toda escola rente à cerca de arame farpado. Na segunda-feira só restara uma que ficava na frente e hoje é um pinheiro enorme.

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Tive por fim uma assistente de direção. Shirley Marangoni que viera de Bauru como professora efetiva e morava perto do local das Casas Bahia atualmente. Antigo Supermercado Missaki na Praça John Kennedy. Trabalhava da tarde até as 11 da noite. Eu trabalhava da manhã até a tarde. Ela ficou comigo durante quatro anos.

Nesta mesma década de 70 dei aulas em curso de admissão ao ginásio ligado à EE Conselheiro Crispiniano. Logo acabou por força da LDB 5692/71. Ainda assumi aulas de OSPB (Organização Social e Política do Brasil) à noite para o 2º colegial nesta mesma escola. Tive como aluna a colunista social Sônia Lago. Pouco me lembro desses fatos.

Instigada pela fala de Bete Chaib no dia de nossa homenagem volto ao assunto dos problemas com marginais no Uirapuru. Cascão era apelido de um assaltante que rondava por ali. Não tive conhecimento de seu verdadeiro nome. Seus irmãos menores eram matriculados nas séries iniciais e moravam na vizinhança. Cascão perturbava o bairro e gostava de empinar pipa com sua turma na quadra da escola. Fiz alguns acordos com ele. Entre outros ele podia empinar pipa quando não havia aula de Educação Física. Ele cumpria. A quadra ficava distante. Abaixo do prédio escolar e se descia uma longa escada para chegar até ela. Nunca chamei a polícia. Quando me afastei da direção a polícia foi chamada e ele foi preso. Ao readquirir a liberdade foi acertar as contas. Com seu bando quebrou tudo na escola. Ficaram poucas coisas. A mesa da diretoria foi revirada e posta de pernas pro ar. A assistente que indiquei para aguardar a diretora efetiva nunca mais voltou...

Conservei amizade com Cascão para preservar a escola. Na

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2ª DE sempre brincava com as funcionárias mais exigentes: O Cascão vem aí! A exigência era que se entregassem papéis no dia certo e na hora marcada. Estivesse a escola onde estivesse. Com chuva ou sol. Principalmente notas fiscais com verbas específicas para compras de materiais. Quando eu me atrasava... O Uirapuru ficava mais longe do que hoje devido à carência de condução e eu só andava de ônibus. Já vinha logo dizendo que Cascão chegaria e só sobravam gargalhadas em vez de caras feias. Fiquei com o codinome de Cascão. O Cascão vem aí! Seja para os antigos colegas e outros que conviveram comigo naquela época ou no próprio Uirapuru. Quando ando por lá e ouço alguém gritar: Cascão! Sei que é comigo e gente daquele tempo... O pobre Cascão o verdadeiro morreu durante um assalto que praticava aqui no centro. Na Rua São Domingos.

Ainda quero relatar um episódio com uma professora de Ciências que tinha um aluno que não tirava os olhos dela. Ele estava na 8ª série e era dos mais velhos da turma. Muito enfezado com o olhar fixo na professora numa sala cheia com aproximadamente 40 alunos para mais. Certo dia ela displicente o chamou para que deixasse as últimas fileiras e viesse se sentar nas primeiras. Ele duramente recusou: Não! Ela insistiu: Deixe de frescuras! Venha! A fúria do rapaz veio à tona e se não fosse os colegas que o contiveram ele com as mãos no pescoço da professora a teria enforcado. Uma grande crise adveio desse fato e era quase o fim do ano. Não sabia se o expulsava. Quem o defendia dizia que frescura não era termo de uma mestra utilizar em sala de aula. Quem o acusava dizia que seu ato era indefensável. Resolvi através de um plebiscito entre os alunos. Um deles pediu a palavra antes da votação. Disse: Quando vemos um amigo ou uma criatura à beira do abismo a gente

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empurra? Argumento antigo e batido. Contudo todos votaram pelo perdão. Terminamos o ano em paz. Mais tarde este aluno prestou concurso e se tornou funcionário da escola.

Por mim passaram ótimos professores. Amigos e bons professores. Não os cito por medo de esquecer alguém. Criei um vínculo de amizade no Uirapuru que dura até hoje. Ao procurar voluntários para CDC Uirapuru extensão da ACM encontrei muitos conhecidos. Entrei na primeira loja comercial uma mãe de aluna me abraçou emocionada: Dona Isaíra a senhora não sabe como me ajudou com a Daldite! E chorava de alegria. Me emocionei também. Daldite hoje tem uma confecção de uniformes e é uma das voluntárias do Uirapuru.

O CDC Uirapuru por ser escola semi-profissinalizante constru-ída em meio à favela que não existe mais foi urbanizada através de casas populares é conhecido nas ACM do mundo todo como modelo de sucesso. Os estrangeiros que nos visitam fazem ro-teiro obrigatório por ele. Sempre os acompanho com uma intér-prete. Americanos, africanos, coreanos, dinamarqueses, india-nos etc.

Nas formaturas de costureiras, marceneiros, serigrafistas, técnicos em informática, artesãos etc. sou chamada para ser madrinha de turma. A maioria já sai empregada principalmente os marceneiros.

Em 81 ao chegar uma diretora efetiva na escola do Uirapuru professora Ivete me retirei para a 2ª Delegacia de Ensino. Fui da turma que conseguiu efetivação como assistente de direção e não mais voltei para a sala de aula. Foi o trem da alegria do Maluf.

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Substituía diretores em todas as escolas das mais longínquas às mais próximas. Professor João Luiz confiava muito em mim.

Quando a Escola Mista do Bairro Capelinha que era de classes multisseriadas se transformou em EEPG do Bairro Capelinha em prédio chamado escola de lata fui sua primeira diretora. O dono da Pau Pedra construíra uma vila de casas para seus funcionários ali perto e descobriu que naqueles terrenos não havia água. Ele contratou um caboclo que veio de longe para perscrutar onde havia o precioso líquido. No terreno da escola a varinha instrumento de sondagem tremeu. Lugar único. O caboclo disse: É aqui! Martelo proprietário da Pau Pedra nos propôs em troca do terreno da escola dar ao estado outro terreno onde escolhêssemos com uma escola de alvenaria construída. Oficializamos a proposta e encaminhamos à Secretaria de Educação do Estado que aceitou. Escolhemos um terreno bem próximo. Ele comprou e construiu o prédio conforme prometera. A escola passou a se chamar EEPG Josephina Martelo. Em homenagem à matriarca dos Martelo. Hoje EE Josephina Martelo.

Ainda na 2ª DE assumi a função de assistente de ensino II. Ajudava em todos os setores e o delegado já era o professor Moreno. Saíamos em veículo oficial uma kombi à procura de melhor terreno para se construir escola dentre os três que a Prefeitura de Guarulhos nos disponibilizava. Decidimos terreno para as escolas do Jardim Fortaleza, do Lavras etc. Auxiliei muito a diretora da rede física professora Suréia Abdala.

Em agosto de 1986 me aposentei. Agora sou voluntária na ACM Guarulhos e São Paulo. Participo da diretoria do Conselho de Desenvolvimento Social e Comunitário da ACM São Paulo.

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Sou voluntária da Y’s men’s que tem parceria com a ACM. Assisto comunidades carentes. Organizamos eventos para angariarmos fundos e aplicamos nestas comunidades. Atendemos crianças e idosos principalmente.

Guarulhos, 23 de abril de 2012.

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Professora Izabel Gonçalves Arpa Gimeno

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Nasci em Aparecida no Vale do Paraíba em 19 de novembro de 1934. Meu pai João Rodrigues Gonçalves era filho e neto de cafeicultores mineiros nascido no ano de 1898 em Virgínia. Sul de Minas próximo a Pouso Alto no caminho para São Lourenço. Chegou à Serra da Mantiqueira em Guaratinguetá aos oito anos em 1906. Na realidade só atravessou as montanhas porque a Serra da Mantiqueira separa São Paulo de Minas. Encostada a ela fica a cidade de Guaratinguetá. Nesta cidade a família arrendou uma fazenda no Bairro das Pedrinhas ao pé da cordilheira o que levou mais tarde meu pai a ser conhecido como João da Serra.

Minha mãe Maria José Broca nasceu em 1900 na Colônia do Piagui em Guaratinguetá às margens do Rio Paraíba do qual o rio Piagui é afluente. Ela tinha cabelos pretos, lisos e olhos azuis. Filha de agricultores descendentes de portugueses provavelmente. Foi uma das primeiras mulheres a receberem o nome do pai. No século XIX as mulheres tinham como sobrenome nomes de santos tais quais minhas avós: Maria Cândida de Jesus e Maria Vitória de São José. Minha mãe tinha cinco irmãos e era a sexta filha. Caçula e única mulher. Aos 20 anos foi morar em uma fazenda vizinha àquela arrendada pelo meu avô paterno. Ajudava nas lidas domésticas e nos cuidados com os sobrinhos a cunhada casada com o irmão mais velho. A cunhada era filha do proprietário da fazenda e padrinho de minha mãe: Vicente Navarro. Nessa ocasião conheceu meu pai morador da fazenda ao lado. Ele era viúvo sem filhos e passava muitas vezes a cavalo em frente sua casa quando ia à cidade.

A primeira mulher de meu pai esteve casada por quatro anos e morreu no quarto parto de crianças prematuras. Na roça não havia recurso. Naquela época não se conhecia o pré-natal.

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Meus pais se casaram em 1922. A sede da fazenda arrendada pelos meus avós paternos era conhecida pelo nome do último proprietário: Costa Manso e recentemente foi restaurada. Da sede da outra cujo proprietário no passado fora o padrinho de minha mãe só existem ruínas. Tenho fotografia de ambas.

Ao se casar minha mãe ganhou do marido uma máquina de costura de mão e muitos cortes de tecidos para costurar suas roupas. Como não sabia costurar foi se aconselhar com a minha avó. A mãe lhe sugeriu: Desmanche uma calça e uma camisa de seu marido e tire os moldes. Assim foi feito e ela se tornou exímia costureira de roupas masculinas.

Meus pais tiveram 15 filhos. Dez foram abortos espontâneos. Um morreu aos seis meses vítima de uma queda da rede. Quatro sobreviveram e foram criados. Sou caçula. Minha mãe analfabeta e meu pai semi-alfabetizado. Ele tinha um tino empreendedor formidável com larga experiência em negócios. Administrava-os organizadamente anotados à sua maneira compreensível naquelas cadernetas antigas... Quando ele contava causos ou no trato afetivo falava caipira oriundo do português deteriorado do Brasil. Zabé. Me chamava. Os demais me chamavam Bezinha. Quando meu pai tratava de negócios e em conversas com pessoas de fora falava um português castiço e correto.

João e Maria residiram na fazenda ao pé da Serra da Mantiqueira em Guaratinguetá por quatro anos. Em 1926 as terras já haviam se cansado da cultura de café. As fazendas começaram a se tornar pastagens para gado e o Vale passou a ser produtor destacável de leite e seus derivados. Ainda naquela época

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houve a ascensão da cultura de fumo que era plantado entre as carreiras do cafezal. Meu pai passou a negociar fumo em corda e vendia em banca no Mercado Municipal de Guaratinguetá. Como percebeu a prosperidade do empreendimento comprava fumo de outros produtores para vender também aos demais vendedores. A fim de facilitar sua vida trouxe minha mãe e a primeira filha de três anos para morar em Aparecida onde nascemos meus dois irmãos e eu.

Não tive na infância contato com a linguagem escrita nem com os meios de comunicação: jornal, rádio, telefone, televisão etc. Só fui ouvinte atenta privilegiada da história oral quando o primo Joaquim João vinha da roça às sextas-feiras para vender sua mercadoria no sábado e se hospedava em minha casa... E então à noite até altas horas ele e meu pai em serões... Uma prosa puxava outra e eu as presenciei encantada dos seis aos 11 anos. Registrei essa experiência publicando o livro: Prosa vai – prosa vem em 1998 por ocasião do centenário de nascimento de meu pai.

Quando completei seis anos minha família retornou para a cidade de Guaratinguetá onde fiz o curso primário de 42 a 45 no Grupo Escolar Dr. Flamínio Lessa. Eu nunca tinha tido nas mãos um lápis, um caderno ou livro. A escola era um casarão imponente e ainda está lá até hoje à Rua Tamandaré. E foi ela além da igreja e da vizinhança o meu primeiro espaço de socialização. Ali não só aprendi a ler e escrever à custa de repetir exercícios sem cartilha ou outro material didático como entrei em contato com teatro e música. Participei do orfeão e incentivei muitas peças. Era exímia declamadora de poemas.

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Muito me marcou o 4º e último ano. Ocasião em que foi necessário formar uma classe mista. A primeira do grupo escolar. Até então as classes eram femininas ou masculinas. Contudo sobraram alguns meninos e algumas meninas que se juntaram no 4º ano misto do qual fiz parte. Era 1945. Nossa professora: dona Nininha. Maria Eurydice Marcondes Guimarães. Solteira e de família ilustre. Ela nos dizia: Sou mãe de vocês. Somos uma família. Tínhamos ideia de sermos todos irmãos. E como tal nos comportávamos alegremente.

Neste ano de 45 acabou a 2ª Guerra Mundial e tive que fazer um desenho com o título: Paris depois da guerra. Fiquei desesperada. Não conhecia nem São Paulo. Como imaginar Paris? Da guerra eu só tomara conhecimento do racionamento porque enfrentava fila todos os dias para comprar pão com um cartão tabelado. Às vezes ficava pensando quando já lecionava nos anos 80 que a escola ainda se mantinha assim distante da realidade do aluno e me angustiava... Pior que ainda continua.

Ao terminar o primário meus estudos foram interrompidos por 11 anos. Meu pai que era mineiro não via necessidade de proporcionar mais estudos para filha mulher. Os professores intercederam por mim para que me deixasse estudar. Ofereceram hospedagem em suas casas. Não houve jeito. Eu estava com 11 anos e todos os meus irmãos haviam se casado. Alegando problemas de saúde meu pai comprou uma chácara em São José dos Campos no caminho para Campos do Jordão e lá fomos morar...

No nascimento de minha primeira sobrinha. Professora Maria Helena Gonçalves que tem sido vereadora por Guarulhos e até

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pouco tempo era Secretária do Trabalho fui para Areias uma das cidades mortas de Monteiro Lobato a fim de fazer companhia à minha irmã mais velha e à criança. Fiquei por lá durante seis meses e retornei para a chácara.

Em 48 voltamos a morar em Aparecida e ao completar 14 anos meu pai me presenteou com uma máquina de costura Phaff importada da Alemanha. Aprendi a costurar com minha mãe e com uma amiga que tinha o mesmo nome que eu: Isabel. Minha mãe costurava só para nós de casa. Meu pai não permitia que ela costurasse para fora. O Vale conservou durante muito tempo estes hábitos de formação das mulheres: costurar, bordar, cuidar da casa e dos filhos e cozinhar. Mesmo que posteriormente elas tenham galgado lugares mais altos atingindo formação universitária como medicina, engenharia, economia etc. não deixaram de ser preparadas para estas tarefas consideradas básicas. Como filha caçula e muito paparicada eu só aprendera a costurar. Os ofícios da cozinha e da casa não me foram obrigatórios. Minha mãe nem me deixava chegar perto do fogão de lenha.

Sempre gostei de ler e tomava emprestados livros nas bibliotecas das igrejas. Ia diretamente à seção de beletrística: romances e compêndios de História, Geografia, Ciências etc. Engoli toda a biblioteca das moças: M. Delly, Guy Wirta, Cronin e coleção Menina e Moça. Além de Alencar, Júlio Diniz e Machado. Preferia os primeiros. Considerava Machado muito amargo. Lia até altas horas da noite. Geralmente um livro por dia. Enquanto não visse o desfecho não dormia. Lia também ao mesmo tempo em que costurava. Havia sempre um livro ao lado da máquina de costura.

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Trocava correspondências com rapazes cujos endereços tirava das revistas. Tinha palavra fácil. Fiz programas de catequese na Rádio Aparecida de 62 a 66. Quando necessário era oradora oficial. Presidia reuniões religiosas. Exercia liderança. Organizava festas e coordenava grupos de catequese na Basílica de Nossa Senhora Aparecida.

Quando atingi os 21 anos voltei a estudar. Frequentei o Ginásio Estadual de Aparecida que funcionava à noite no mesmo prédio do Grupo Escolar Chagas Pereira. Tinha naturalmente 10 anos mais que meus colegas além de uma experiência de leitura e literatura que muito me ajudava. Os meus quatro anos primários de 11 anos atrás equivaliam praticamente a tudo o que se ensinava no ginasial. Exceto no acréscimo do Latim e das línguas estrangeiras modernas: Francês e Inglês. Fui aluna nota 100 e terminei o ginasial no ano de 1959 em primeiro lugar com nota 9,7.

Por este primeiro lugar ganhei uma bolsa de estudos na Academia Municipal de Ensino Técnico de Aparecida atual Escola Técnica Profª. Virgulina Fazzeri. Me matriculei também de manhã em curso normal no Instituto de Educação Conselheiro Rodrigues Alves em Guaratinguetá criado em 1902 como Escola Complementar de Guaratinguetá transformada em 53 em Instituto de Educação. O segundo do Estado de São Paulo que o primeiro é o Caetano de Campos na capital cujo prédio na Praça da República abriga atualmente a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Eu percorria de bonde os cinco quilômetros entre Aparecida e Guaratinguetá. Paralela a este caminho antigo do bonde passa hoje a Avenida Padroeira do Brasil. Moderna, asfaltada e iluminada ligando as duas cidades.

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À noite eu frequentava as aulas do curso de contabilidade e não tinha tempo para ir à biblioteca do Instituto de Educação que era muito ampla e praticamente completa para a época. Livros didáticos era coisa rara. Os professores ditavam as aulas. Eu bebia o conteúdo. Sintetizava e memorizava. Escrevia redações que eram elogiadas e havia professores que até duvidavam da minha autoria. Os colegas reforçavam que me presenciaram escrevendo em sala de aula. Um professor novo de Português deu como tema para redação: O amarelo da bandeira. Naturalmente esperava que todos escrevessem sobre o ouro que ele significa. Já era bastante subversiva e escrevi que aquele amarelo exprimia o amarelão, a malária, a febre amarela, o impaludismo, a desnutrição: a miséria do povo brasileiro. O professor ficou furioso. Me deu zero e disse que eu fugira do tema e meus textos eram impublicáveis! Eu era assim. Não estudava porque não me sobrava tempo. Além de frequentar duas escolas: uma de manhã e outra à noite continuava costurando. Confeccionava vestidos de festas, de bailes etc. Prestava atenção nas aulas e discutia com os colegas os conteúdos. Lia as anotações enquanto costurava em casa. Tive muitas dificuldades nos cursos ginasial e normal nas disciplinas de Desenho e Música. Só conheci música clássica na igreja e música folclórica na escola. Para obter nota decorava as notas musicais e solfejava. Artifício que arranjei para disfarçar minha ignorância. No mais ajudava os professores e até corrigia provas. Inclusive as de Latim.

Do curso de contabilidade aproveitei as noções de Direito, Economia e Contabilidade Pública. Tive como professor um economista renomado. Breno Viana. Em uma das provas do curso ele escreveu no final da minha: Lamento poder dar só

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cem. É uma prova de professor... Os corpos docentes em sua maioria eram constituídos por homens de formação variada: médicos, engenheiros, economistas etc. O nosso professor de Português e Latim tinha licenciatura correspondente. Um dos únicos. Professor Afonso Carvalho foi quem nos despertou a mim e minha sobrinha Maria Helena para o estudo de Língua e Literatura. Em 1962 me formei contadora e professora primária.

Em 63 fui morar em São José dos Campos com a família de minha cunhada e pleitear um trabalho porque a região do Vale formava muitos professores normalistas e havia poucos postos para o exercício do magistério. São José dos Campos se destacou pela vinda das indústrias automotivas. GM principalmente na década de 60 em que houve o desenvolvimentismo inaugurado pelo Governo Juscelino Kubitschek de 56 a 61. Período democrático jamais experimentado no Brasil até então desde 45. Ali às margens do Paraíba à noite tudo era escuridão somente o prédio da fábrica Rodosá parecia ao longe um navio iluminado... Isso levou um estrangeiro solicitar um quarto no hotel com vista para o mar...

Consegui meu primeiro emprego na GM sem carteira assinada. Me contrataram para acompanhar os filhos dos diretores oriundos de diferentes países: França, Hungria, Estados Unidos etc... Meninas e meninos poliglotas. Eu os acompanhava até os diferentes locais de ensino em ônibus especial da Breda. O motorista me pegava às seis horas da manhã. Percorríamos a cidade colhendo as crianças e adolescentes deixando-os nas escolas até as oito horas. A maioria delas era particular. A única pública era o Grupo Escolar Dr. Olímpio Catão onde encerrávamos nossa jornada. Foi época em que para atender à

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demanda crescente as escolas estaduais passaram a funcionar em períodos de três horas. O primeiro período do Olímpio Catão funcionava das oito às 11 da manhã. Almoçávamos e retornávamos para iniciar o recolhimento das crianças em trajeto contrário.

Observei que no Olímpio Catão havia falta de professores e sempre voltávamos com alunos dispensados. Fui conversar com a diretora da escola. Solicitei que me contratasse como professora substituta. Ela me disse que não havia vaga. Me dirigi à Delegacia de Ensino e falei diretamente com o delegado. Professor Rivadávia. Ele telefonou em minha frente para a diretora informando que eu deveria iniciar como substituta efetiva no dia seguinte. Ela me detestou e me suportou por dois anos. Como o grupo escolar era o último local do nosso itinerário de entrega de alunos lá eu ficava para exercer minha função e às 11 o motorista retornava para encerrarmos nossa jornada da manhã e iniciarmos a da tarde.

Em 64 passei a residir próximo ao grupo escolar para dar aulas em um curso de admissão particular organizado por uma professora efetiva. Ela tinha uma casa com edícula. Na parte de cima funcionava a Aliança Francesa e embaixo funcionaria o curso de admissão. Ainda do lado como extensão ela construiu um pequeno apartamento de dois andares para minha moradia: sala, cozinha e banheiro no andar inferior e quarto no superior. Em três meses se edificou de dezembro de 63 a fevereiro de 64. Em março demos início ao curso de admissão durante o dia e à noite eu frequentava a Aliança Francesa.

No ano de 65 entrei em um cursinho preparatório para o vestibular à noite. Estudei dois meses e fui convidada a dar

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aulas no supletivo da própria escola. Deixei o cursinho. Os professores consideraram que eu estava preparada. Em 66 fui aprovada no vestibular em Taubaté e em 67 voltei para casa dos meus pais em Aparecida. Continuei como professora substituta desta vez no Grupo Escolar Chagas Pereira. Em 68 me licenciei em Letras na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Taubaté. Atual UNITAU. Universidade de Taubaté.

Prestei em 66 concurso para o magistério primário do Estado de São Paulo e em outubro de 68 ingressei no Vale do Ribeira em Pariquera-Açu. Escola Rural Senador Dantas que ficava em um distrito a uns 12 quilômetros da cidade. O prédio da escola era bem construído com apartamento anexo para a professora. Fazia parte das primeiras construções especiais da Secretaria de Educação do Estado no Vale do Ribeira. Ficava situado em meio a um chazal a uns quinhentos metros das casas dos alunos. Não dava para professora nenhuma morar ali. Resolvi o problema conversando com o sr. delegado de ensino de Registro. O mesmo professor Rivadávia conhecido de São José dos Campos. Ele me autorizou a morar na cidade. Fui morar na pensão onde residiram as professoras Tancha e Tera daqui de Guarulhos que já haviam deixado o Vale do Ribeira.

Eu ia e voltava da escola de táxi. Pagava ao motorista NCR$ 400,00 (quatrocentos cruzeiros novos) por mês e recebia do estado NCR$ 380,00 (trezentos e oitenta cruzeiros novos). Pagava para trabalhar até então. O que me salvou foi assumir aulas no ginásio municipal à noite que me permitia ainda pagar pensão. Conseguia vir para casa uma vez por mês viajando por seis horas de ônibus em estrada de pista única. BR116 chamada Estrada da Morte. E como o táxi estava pago mensalmente aos

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fins de semana eu convidava minhas colegas para passearmos em Cananeia, Iguape etc. Conheci a Caverna do Diabo, a Ilha Grande. Em Registro assistíamos a filmes e frequentávamos casas de chá.

Na Senador Dantas dava aulas para alunos que percorriam até um raio de três km a pé. Ao deparar com vinte e sete alunos: nove principiantes, quatro repetentes de primeira série, oito de segunda série, quatro de terceira e dois de quarta percebi que o curso normal feito brilhantemente em escola conceituada não me havia habilitado para atender àquela realidade. Busquei caminhos. Me aproximei da realidade cultural e vocabular das crianças. Atendi uma a uma para superar a heterogeneidade. Cometi muitos erros. Fiz o que pude e soube naqueles seis meses.

Houve remoção em julho de 69. De Aparecida tomei o ônibus Pássaro Marrom e vim a São Paulo para a escolha. No ônibus me encontrei com duas colegas de minha cidade: Dadá e Margarida Menezes que estavam bem informadas a respeito das escolas de Guarulhos. Interessantes pela proximidade da Dutra e propiciavam facilidades de se viajar todos os dias do Vale do Paraíba até aqui. Sob esta orientação em agosto deste mesmo ano cheguei a Guarulhos removida para o Grupo Escolar Plínio Paulo Braga hoje EE Plínio Paulo Braga que fica no final da Avenida Otávio Braga de Mesquita próximo à Praça Oito de Dezembro no Taboão. Para esta escola e outras que se situavam na mesma região vieram muitas professoras do Vale do Paraíba que viajavam todos os dias. Desciam na Dutra e tomavam outro ônibus para os bairros em frente à Melitta próximo à capela de Bom Jesus. Na volta desciam na Melitta

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outra vez e atravessavam a Dutra para pegar o ônibus de volta. Foi rotina da maioria dessas professoras que vieram do Vale. Eu também nos fins de semana me aventurava nesta arriscada travessia da Dutra que naquela época não tinha passarelas.

Havia resolvido morar em Guarulhos na residência de dona Zica e seu Benedito que eram conhecidos da minha família. A casa ficava na esquina da Avenida Esperança com a Mãe dos Homens e era de propriedade do sr Paschoal Thomeu. O mesmo proprietário da Empresa de Ônibus Guarulhos em que seu Benedito era funcionário. Tomava ônibus em frente ao Conselheiro e na volta descia perto da casa.

Na ida do Conselheiro descíamos a Capitão Gabriel atingíamos a Dom Pedro e depois a Monteiro Lobato para alcançarmos a Otávio Braga que não era asfaltada. Enfrentávamos poeirão ou barro nesta que era a parte maior do trajeto e só se encontravam poucos ônibus que faziam as linhas até a Praça Oito e pouquíssimos carros. O final da Avenida Otávio Braga de Mesquita próximo a Praça Oito de Dezembro era o limite entre a periferia e a zona rural... No Plínio Paulo Braga convivi com ótimos companheiros: Adélia, Zenaide, Hélio, Jaime, Margarida, José Carlos, Maria do Carmo, Nadir, Ofélia, Rosa Chimoni etc. Quando terminávamos o período o motorista do ônibus que tinha este horário e depois demoraria para chegar outro vinha bem devagar da praça para que pudesse nos pegar.

Orientada por dona Zica ainda no final de 69 fui ao Conselheiro conhecer professor Milton Cardoso que me apresentou ao professor Milton Ziller. Coloquei minha intenção de assumir aulas de Português em algum ginásio visto que eu portava

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diploma em Letras com licenciatura plena. Me informaram que no ano seguinte o Ginásio Estadual de Vila Augusta que funcionava no prédio do Grupo Escolar João Crispiniano Soares necessitaria de professor ou professora de Português. Assim como o Colégio Estadual do Jardim Tranquilidade instalado no prédio do Grupo Escolar João Álvares de Siqueira Bueno. Funcionavam em períodos vespertino e noturno. Eram seus diretores Milton Ziller e Milton Cardoso respectivamente.

Em 70 havia realmente aulas de Português nos dois estabelecimentos de ensino. Eu e minha sobrinha Maria Helena pudemos assumi-las: ela no Ginásio da Vila Augusta e eu no Colégio da Tranquilidade. Vale lembrar que fomos admitidas com facilidade porque éramos licenciadas. Exigência da escola secundária e havia pouquíssimos professores nessa condição. Aluguei uma das quatro casas geminadas da Rua João Gonçalves próximo à Praça Getúlio Vargas. A segunda quase encostada à Biblioteca Municipal Monteiro Lobato. As casas não existem mais. Tive como fiador o mesmo seu Benedito marido de dona Zica que havia me indicado aquelas casas alugadas pela Imobiliária Steiner.

Morei na João Gonçalves até 73. Tive contínuos afastamentos do Grupo Escolar Plínio Paulo Braga nesta década para lecionar como PIII. Antiga denominação de PEBII. Da João Gonçalves ia todas as noites para a Tranquilidade. Tomava o ônibus em frente ao Posto de Saúde do outro lado e ao voltar descia dele no mesmo lugar. O ônibus em cada viagem efetuava o contorno pelo centro. Praça Getúlio Vargas, Capitão Gabriel, Dom Pedro e João Gonçalves. Eu lecionava 40 horas semanais sendo 20 à tarde e 20 à noite.

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Certa vez ao descer do ônibus em frente ao Posto de Saúde como fazia todas as noites às 23 horas percebi uma correria de mulheres. Era uma região de trottoir. Atravessei a rua para dirigir à minha casa. Parou um camburão ao meu lado e os policiais queriam me prender. Eu não tinha nem um caderno e nem holerite. Nada que pudesse provar que era professora. Me perguntaram: Se tem profissão por que está aqui estas horas? Inútil responder que as aulas terminavam naquele horário. Dois policiais me acompanharam até minha casa. Aberta a porta me pediram desculpas e se retiraram. Que sufoco!

Graças à intervenção do diretor Milton Cardoso eu e as minhas colegas fomos as primeiras professoras das escolas estaduais a ter permissão para lecionar com calças compridas. O que deixou o delegado de ensino que nos visitava vindo da capital indignado. Professor Milton defendeu a medida: É muito mais decente. A saia sobe quando escrevem na lousa! E ele concordou...

Após meu casamento em 72 procuramos casa para comprar atendendo algumas exigências de minha mãe que vivia comigo desde a morte de meu pai em 68. Casa térrea com quintal e próxima a uma igreja. Encontramos esta em que moramos a partir de 73. Situada na Praça Nossa Senhora de Fátima no Jardim Tranquilidade.

A praça era apenas um campinho rodeado de casas onde garotos jogavam bola. No centro a igreja ainda em construção e já funcionando. Fiquei próxima ao Colégio Estadual do Jardim Tranquilidade que continuava no prédio do Siqueira Bueno ali na Rua Cabo Antônio Pereira da Silva. Para lá me dirigia a pé.

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Atravessava a praça que era um campinho sem luz. Só havia as luzes das casas e só usufruía de iluminação na Cabo Antônio. Entre 74 e 77 o colégio se transformou em EEPSG do Jardim Vila Galvão por força da LDB 5692/71 e mudou de endereço.

Como tínhamos diretor efetivo professor Ernesto Paltrinieri Neto assumimos um novo prédio na Avenida Faustino Ramalho nº 307 Jardim Vila Galvão. Em 78 aprovada em concurso público de provas e títulos escolhi por acesso vaga de PIII nela que passou a se chamar EEPSG Professor Fábio Fanucchi.

Ainda na década de 70 pude propor e colocar em experiência o funcionamento de sala ambiente. Cada professor e sua disciplina tinham sua sala com seus materiais. Recebíamos os alunos que se deslocavam a cada intervalo de aula. Fomos inovadores. Até hoje se considera novidade a sala ambiente. É lamentável a resistência às mudanças.

Na década de 80 exerci na extinta DRE4-Norte funções de responsável junto a TLE pelos livros didáticos adotados na rede e assistente-técnico de 2º grau. Fui membro da equipe técnica da extinta 1ª DE de Guarulhos. Ocasião em que a pedido do Secretário Municipal de Educação Gilmar Lopes dei curso de atualização ao professorado municipal.

Em 86 apresentei dissertação de mestrado na PUC-SP cujo titulo foi: O Objeto do Ensino da Língua Materna. Fiz questão de colocar em pauta que o objeto deste ensino não se resume em gramática. O objeto é a própria Língua que compreende sintaxe, semântica e pragmática.

O período de mestranda foi muito enriquecedor. Basta lembrar ter tido o privilégio de ser durante um semestre aluna de

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Paulo Freire e ter aulas de Teoria da Comunicação com Décio Pignatari. Me lembro também da primeira aula com Ana Maria Cintra que nos daria Iniciação à Linguística e mais tarde foi minha orientadora. Levei um grande susto com sua afirmação: Invejo os professores primários porque eles têm certezas, dão segurança às crianças e elas os admiram como sábios! Só mais tarde pude concordar. Ao terminar o curso tinha muito mais dúvidas do que quando entrara. Na realidade quem tem certeza pode estar equivocado.

Em 87 lecionei Língua Portuguesa e Literatura no CEFAM – Centro Educacional para Formação e Aperfeiçoamento do Magistério.

Em 88 após novo concurso de provas e títulos ingressei como diretora da EEPSG Coronel Ary Gomes. Hoje EE Coronel Ary Gomes. Mal conhecia a escola. Escolhi pela proximidade da minha casa e não precisava de condução. Situada entre a favela São Rafael e a Avenida São Paulo era grande e com muitos problemas. Parte dos alunos muito pobres e parte de classe média. Sem pessoal de serviço. Logo que assumi a secretária prestou concurso para cargo no aeroporto e pediu demissão. A assistente de direção se removeu. Indiquei uma das professoras. Professora Grácia. Ela me ajudou bastante e assumiu a função de diretora depois de minha aposentadoria. Trabalhou na escola até se aposentar também.

Tínhamos só três funcionárias na secretaria e quatro auxiliares de limpeza. Das auxiliares de limpeza uma com quase setenta anos e a outra em licença gestante. Eu entrava às sete horas e saía às 23. Me dediquei à parte pedagógica e precisei assumir igualmente o administrativo embora não gostasse.

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Em 1990 me aposentei do serviço público mas continuei lecionando no ensino superior da rede privada o que já fazia desde 1971.

No ensino superior iniciei minhas atividades como auxiliar de ensino da cadeira de Literatura Brasileira na FFCL de Taubaté hoje UNITAU durante dois anos de 71 a 73. Em 79 lecionei Didática na Faculdade de Educação Física de Guarulhos. De 79 a 2001 ministrei aulas nas Faculdades Integradas de Guarulhos campus Vila Rosália hoje FIG-UNIMESP. Na Figuinha que fica no centro Rua Barão de Mauá coordenei o curso de Pedagogia. De 94 a 2001 fui titular da cadeira de Língua Portuguesa contratada pela Sociedade Guarulhense de Educação ou FIG da Vila Rosália. De 88 a 2002 estive contratada pela Associação Educacional Presidente Kennedy a Figuinha já citada onde exerci as seguintes funções: professora de Psicologia da Educação e de Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º graus. Professora de Língua Portuguesa e Literatura. Chefe do departamento de Pedagogia de 92 a 95.

Fui paraninfa de diversas turmas e homenageada por muitas outras. Dos muitos alunos que tive alguns estão hoje lecionando Língua Portuguesa, Geografia, Historia, Educação Física etc... Muitos são diretores de escola, supervisores e mantenedores de escolas de educação infantil. Alguns se dedicam à política. Outros ao sacerdócio e outros à arte. Frequentemente sou abordada na rua por um deles como há poucos dias um diretor de escola já grisalho me disse: Foi com você que aprendi a ler jornal! Ouvir isso é muito gratificante.

De 92 a 95 fui contratada para ministrar aulas de Literatura Infantil para o Magistério no Projeto Escola Padrão. E retornei com prazer à escola Fábio Fanucchi.

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Em 95 nasceram meus dois primeiros netos: Andrés e Sérgio. Filhos de Edna minha única filha. Eu empolgadíssima escrevi dois livros infantis: Dupla do Chifre Furado e Menina Picicica.

Continuo escrevendo. Trabalho agora em quatro obras que em breve serão publicadas: Papo Firme (conversas de crianças com Deus). Vou dedicar este livro infantil às minhas netas: Isabela e Samara. Sabença (coleção de frases feitas). Cana Verde (quartetos improvisados de uma dança folclórica portuguesa quase extinta). Tradução de: Escuchemos a los pobres (Antropologia do Pobre) do colombiano Frederico Carrasquilla

Participo desde 1985 do Movimento Internacional Equipes Docentes nascido em Paris em 1942 cujo objetivo é apoiar e defender a escola pública. Desde 1990 sou membro do Conselho Nacional do Laicato do Brasil e da Regional Sul 1. Trabalhei em todo o Brasil como membro da Comissão de Formação nos anos de 2009 e 2010. Desde 1998 faço parte da Comissão Arquidiocesana e Regional Sul 1 da Pastoral da Educação de São Paulo. Desde 2004 sou promotora do Projeto Mobilização Social pela Educação em cujo trabalho voluntário estive em 23 dos nossos estados. Desde 2010 participo da Comissão Nacional das Expressões Laicais e da Comissão do Setor Leigo de Educação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Estou comemorando neste ano o cinquentenário da minha formatura de normalista. Nunca tive problema de disciplina. A chave é considerar o aluno sujeito do processo educativo. Resumindo esses 50 anos dedicados à educação pública posso afirmar: ensinei sempre com muito entusiasmo. Acho que meus alunos aprenderam bastante e eu aprendi muito mais com eles.

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Concordo com Guimarães Rosa: mestre é aquele que de repente aprende.

Guarulhos, 16 de abril de 2012.

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Professora Josephina Alves Pereira

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O principal da educação é criar pessoas capazes defazer coisas novas e, não simplesmente repetir

o que as outras gerações fizeram.Jean Piaget

Josephina, Josephinas...

Sou Josephina Alves Pereira. Nasci em 28 de janeiro de 1929 na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo na Rua Barão de Cotegipe nº 142. Sou filha de João Evaristo Alves e Antônia de Souza Alves. Caçula de cinco irmãos. A partir dos cinco anos comecei a dar preocupações a minha mãe. Eu gostava muito de rio e já havia aprendido a nadar. Apanhava diariamente. Nadava escondido e chegava com as roupas molhadas. Certo dia havia chovido muito e acompanhada de uma coleguinha fui atravessar uma ponte coberta pela água e caímos. Eu como sabia nadar atingi a margem sozinha enquanto minha coleguinha precisou de ajuda. De costume ao chegar em casa levei as costumeiras palmadas mas minha mãe ao saber do ocorrido me pediu perdão e liberou a natação no rio. Como liberação não tem sentido nunca mais nadei. Bom era nadar escondido.

A família do lado de minha mãe era tradicional. A irmã dela Jovina era da alta costura. Costurava para mulheres da nata da sociedade de São Paulo e da região. Esposas de deputados etc. O esposo era alfaiate e confeccionava ternos para os homens. Tinham ateliês juntos. A família Scaff que na época possuía lojas na Rua Direita na capital era cliente deles. Minha avó se chamava Christina Maria de Paula Souza e o avô Serafim Cardoso. Viviam separados. Ela morava com tia Jovina e no século XIX usufruíra da Lei do Ventre Livre enquanto sua mãe

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continuara escrava. Como menina livre circulava pela casa e por trás da mãe careteava para o sinhozinho que estudava na escrivaninha.

Serafim Cardoso era negro alto e boiadeiro. Comprava e vendia gado. Minha avó Christina aos 12 anos se casou com ele que era bem mais velho. A bisavó não queria o casamento mas aconteceu. Certo dia o avô chegou para ela e disse que havia uma mulher sozinha que parira uma criança. Se ela não queria ajudar. Minha avó foi e descobriu que a criança era a cara do marido e mesmo assim cuidou. Depois tiveram cinco filhos: Christina, Luísa, Antônia (minha mãe), Benedito e Jovina. Ela criou os filhos sozinha e ele cooperava de longe. Quando um besourão aparecia. Uma mamangaba. Sinal que avô estava chegando de suas viagens. Cavaleiro garboso em cavalo bom e corríamos pedir sua bênção. E ele respondia em voz grossa de trovão: Bênção de Deus! Meus netos! Hoje quando minha neta à noite antes de dormir me diz: Bênção vovó! Respondo em voz grave de trovão: Bênção de Deus! Minha neta! Reeditando aquela voz que me vem do passado...

A lembrança de avó Christina me ocorre quando tomo ou sirvo leite. Naquela época vinha direto da fazenda. Leite grosso e gorduroso em casa de tia Jovina que começou a perceber que era servido para nós muito ralo. Até que descobriu que avó dava leite para vizinhança e sobrava pouco para a família. Então acrescentava água. Ela e suas bondades... Era surda e dizia ter sido castigo. Quando menina caçoara de uma velha surda ao ensinar as crianças da rua baterem na porta e com mãos postas como se pedissem bênção falarem os piores palavrões. A pobre velha respondia: Deus abençoe. Meus filhos! Bênçãos lembram meus avós. Cada um à sua maneira.

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Minha avó também teve oportunidade de aprender a ler e escrever. Ela teve um irmão que residia no Jardim Europa em São Paulo e trabalhava em uma firma de capitalização. Quando alguém procurava os donos da casa pensava que suas filhas negras eram empregadas. Perguntava: A dona da casa está? As moças contrariadas respondiam: Sou eu mesma! Negro não pode ter casa bonita? Elas morreram solteiras. Naquele nível social eram as únicas negras e não encontraram casamento. Não trabalhavam fora segundo o costume da época. Acabaram se envolvendo com o espiritismo de um casal charlatão que fora residir na casa. O pai ainda era vivo. Foram morar no Rio. Lá morreu o pai. As primas voltaram para o Jardim Europa e a casa já hipotecada logo perderam. Quando eu e minha tia Jovina viemos visitá-las elas moravam na Casa Verde.

Na Casa Verde morava outra irmã de minha avó que possuía um espaço enorme de chácara e se casara com um funcionário dos correios. Este certo dia ao voltar do trabalho teve um mal-estar e faleceu na rua. Creio hoje que foi coração. Naquela época não havia prevenções. Na chácara morava a tia viúva, seus filhos e as primas empobrecidas. Na década de 70 tia Jovina também se mudou para lá.

Meu pai seguindo aptidões da família era alfaiate e possuía alfaiataria com muitos funcionários. Minha mãe só se dedicava a casa e à família. Eu e meus irmãos tivemos babás. A minha era branca e calma. Filha do dono da sorveteria. Era chamada Adelaide. Em brincadeiras infantis afirmavam que ela batia o sorvete e babava em cima. As crianças galhofavam: Sua babá baba!

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Ainda na infância antes de entrar na escola me lembro dos costumes do interior na década de 30 do século passado. No entardecer após a labuta do dia às seis horas a família se reunia à mesa para o jantar. Depois da refeição os adultos e toda vizinhança adulta ficavam conversando na sala. A criançada brincava na frente da casa onde deveria ser a calçada que não existia. Era chão batido. Brincávamos muito até anoitecer de vez e irmos dormir.

A família de meu pai era de Tietê. Minha avó uma mulata alta, posuda e muito respeitada se chamava Josephina Maria de Campos. Meu avô que não conheci se chamava Evaristo Alves. Viúva minha avó vivia com outro negro retinto, bonitinho e baixinho. Sr. Vicente do Amaral. Ele era sitiante passava a semana no sítio e ao final vinha para a cidade com os subprodutos do alambique: melado em garrafões de alumínio e rapadura. Seus filhos bem de vida moravam em São Paulo.

Ao adoecer Vicente Amaral ficou tempo de cama e recebia visita de um médico da cidade que nada cobrava. Dr. Ibrahim. Quem ia buscá-lo era eu que naquela época já morava com a avó. Ele dizia que a única pessoa que lhe devia seria a pessoinha que o trazia pela mão. A pessoinha: eu.

Dr. Ibrahim não teve filhos. Adotou um menino de família muito pobre e dele cuidou muito bem. O menino era parente de Yara Salles. Artista que na novela do rádio O Direito de Nascer fazia o papel de mamãe Dolores. Era branca. No rádio não apareciam figuras mesmo só voz. Outro menino Dr. Ibraim apoiou muito e o fez estudar Direito. José Carlos de Toledo que deu nome ao filho de Ibrahim em homenagem ao médico que tanto os ajudou.

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Este veio cursar Odontologia aqui em Guarulhos na UnG e se hospedou em minha casa até se formar. Acompanhei e lhe dei segurança. Assim pude retribuir os favores e nos firmamos como família.

Há algo da política que preciso relatar. Dr.Ibrahim cujo nome completo era Ibrahim Camargo Madeira tinha muita influência na cidade onde fundou o Partido Democrático em 28 e o Partido Constitucionalista em 34. Foi eleito vereador e nomeado prefeito de Tietê nestas décadas. Em 1946 já presidente do diretório do Partido Social e Democrático mais uma vez foi nomeado prefeito. Foi exonerado em 47 pelo então interventor federal no estado Ademar de Barros. Estudou Direito também e a partir de 31 de março de 1964 abandonou atividades político-partidárias.

O pessoal votava em quem dr. Ibrahim indicasse. Contudo o deputado da nossa região era Hugo Borghi do PTB e de origem italiana. Os democratas constitucionalistas e depois sociais-democratas vindos de forte influência do nacionalismo integralista de Plínio Salgado não gostavam dos italianos e nem do PTB. Daí a valorização a nós negros. O companheiro de dr. Ibrahim era o professor de Sociologia Menênio Toledo Lobato. Uma figura grandalhona oriunda do Pará. O partidário de Hugo Borghi era o professor de Biologia que também tinha origem italiana.

Em 45 com o término da 2ª Guerra Mundial alguns expedicionários voltaram. Outros morreram nos campos de batalha na Europa. Entre os que retornaram havia dois de nossa região. Um de Tietê e outro que era negro de Cerquilho. Ambos foram homenageados na Câmara Municipal de Tietê e professor Menênio escreveu o discurso que eu li.

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Ainda Vicente Amaral antes de falecer chamou o escrivão do cartório e regularizou a situação com avó Josephina. Para ela deixou metade de seus bens inclusive caderneta de poupança. Assim minha avó ficou amparada para o resto da vida.

Aos sete anos na escola eu era a rainha do piolho embora minha mãe diariamente limpasse meus cabelos. O ano era 36. Eu era única negra da classe e estudava no Grupo Escolar de Santa Cruz do Rio Pardo. Hoje EE Leônidas Amaral Vieira em homenagem a um deputado da região. Minha primeira professora se chamava Percília Camarinha que sabendo dos cuidados de minha mãe me observou no recreio e chegou à conclusão de que os piolhos eram de coleguinhas de outras classes. Nós andávamos abraçadas.

Naquela época se usava avental branco como uniforme e as carteiras eram duplas. O avental abotoava atrás do pescoço e uma faixa saía da cintura entre duas pregas com dois bolsos e amarrava também atrás. As meninas o trajavam por cima do vestido e os meninos por cima da calça curta e camisa. Certo dia quando minha colega de carteira foi ao banheiro comi toda batata doce roxa que ela levara para o lanche. A menina reclamou que suas batatas sumiram. E estava visível através das manchas no avental que fora eu! De branquinho estava roxo. Naquela época batata roxa era todinha roxa mesmo e não como hoje de roxa só a casca. Não sei o que houve! Lógico que a professora percebera e como em toda cidade pequena se encontrou com minha mãe e contou o fato. Disse que não conseguiu me corrigir de tão engraçada era a cena. Minha mãe sim me deu bronca... Assim se completou meu primeiro ano escolar. Fui uma aluna aplicada e passei para o ano seguinte com distinção.

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Infelizmente em 31 de março de 1937 repentinamente perdi minha mãe. Naquele tempo dado a ingenuidade infantil me fizeram crer que minha mãe fora viajar e fui levada para a cidade de Tietê onde residia avó Josephina. Lá entrei em desalento. Como nunca havia me separado de minha mãe pensava que ao retornar da viagem ela não me encontraria em casa.

Eu tinha um lindo vestido cor-de-rosa bordado com linha de cetim cor-de-rosa também. Meu vestido de crisma que a madrinha vinda especialmente de São Paulo me trouxe de presente. Minha avó paterna o experimentou em mim. Achou curto e acrescentou um babado. Em seguida no grande tacho de cobre despejou tinta preta e mergulhou o vestido. Era o meu luto por seis meses pela morte de minha mãe. Mais tarde entendi. Na época não e fiquei em desespero. No meio de muito choro e lamúrias meu pai foi obrigado a me levar para Santa Cruz. Após passar por médicos vim para São Paulo estudar no Grupo Escolar Buenos Aires na Avenida Cruzeiro do Sul bairro de Santana. Morava em frente à escola no número 180 onde uma prima também professora de nome Maria de Arruda Martins lecionava. Meu pai que nesta época era fiscal de impostos do Estado de São Paulo procurava a melhor adaptação para mim. Era difícil e retornei a Tietê onde fui me adaptando e estudando.

Ao concluir meus estudos primários em 42 cursei um ano de admissão. Curso preparatório e obrigatório para ingresso ao ginásio. Bem sucedida fui estudar na Escola Estadual Plínio Rodrigues de Moraes onde o concluí. Hoje segundo ciclo do ensino fundamental. Na sequência cursei o ensino médio que na época era secundário. O secundário consistia em científico que correspondia às ciências exatas. Clássico que correspondia

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às humanas e normal que formava professor e professora do primário. Fiz pré, 1º e 2º normal. Me formei professora primária em 50.

Não me destaquei entre as primeiras que naquele tempo a melhor aluna ganhava cadeira prêmio. Uma classe para lecionar. Fui a primeira das demais a conseguir uma escola municipal na cidade de Porto Feliz em 51. Permaneci dois meses. Ganhava o equivalente a R$ 300,00 e pagava R$ 500,00 de pensão por ficar de segunda a sábado.

Ainda em 51 por intermédio do então prefeito de Presidente Bernardes que era de Tietê fui para a Escola Municipal do Bairro da Olaria em Presidente Bernardes. Antigo Patrimônio de Nova Pátria hoje município. Passava o mês inteiro no bairro onde me sentia muito bem. Aprendi uma realidade diferente entre os imigrantes nordestinos que lá chegavam armando casas de pau-a-pique.

Por obra do acaso durante um acompanhamento à proprietária da olaria em visita ao médico em Presidente Prudente descobri que o mesmo médico dr. Domingos Leonardo Cerávolo era esposo de uma tieteense. Iracema Mainome Cerávolo. Após breve conversa com ela fui convidada para lecionar em escola estadual em Presidente Prudente. A escola era isolada e mista. Localizada no bairro das Taboinhas a oito quilômetros do município de onde me deslocava às vezes a pé outras em caminhão de tora. Escola Mista Rural do Bairro das Taboinhas. Eu era substituta efetiva de uma professora que tinha muitos privilégios. O núcleo era formado por japoneses e muitos dos alunos se tornaram meus afilhados. Os proprietários do sítio

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foram embora para o Paraná com a febre da plantação de café. Outros que o ocuparam eram meeiros e tornou difícil me hospedarem daí a necessidade da escola ser transferida para a Vila Industrial um bairro de Presidente Prudente. Grupo Escolar da Vila Industrial.

Lecionei nesta classe substituindo de 52 até o primeiro semestre de 53. Passava as férias em Santa Cruz do Rio Pardo e sempre me encontrava com o pessoal da educação. Minha tia Jovina costurava para esposas de delegados de ensino e supervisores na época inspetores que muito me orientaram. Amealhei pontos por alta promoção obtida nas classes regulares e em alfabetização de adultos. Em meados de 53 fui chamada para escolher cadeira efetiva no Grupo Escolar São Paulo na Rua da Consolação. Como a professora substituída por mim se removeu escolhi a própria classe dela na Vila Industrial em Presidente Prudente.

No concurso de remoção em 54 me transferi para o litoral sul. Cidade de Pedro de Toledo onde atuei na 2ª Escola Mista do bairro das Três Barras e morava no único hotel da cidade. Em 57 me removi para São Paulo tomando posse no dia 16 de fevereiro no Grupo Escolar da Vila France. Hoje EE Wallace Marques. Meu período de aula era o intermediário das 11 às 14 horas. Para chegar até lá tomava na Praça Clóvis ônibus cujo trajeto era pela Estrada Velha de São Miguel. Lá descia e caminhava dez minutos até a escola. Só uma empresa de propriedade de Antoninho de Barros fazia este trajeto Ele era irmão de Ademar de Barros. No meio da estrada subia uma mulher meio variada que mexia com todo o mundo. Queria óculos e bolsas. Tomava-os e ameaçava jogar pela janela. Escondíamos tudo. Ainda bem

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que íamos em turma. Depois ela descia e não pagava passagem. Diziam que esta senhora salvara o filho do dono da empresa em acidente sério...

Embora com muitos parentes na capital eu morava em uma pensão na rua General Carneiro nº 142. Bairro Sé. Por estar localizada na região central desfrutava de todas as diversões possíveis no antigo Programa Só Para Mulheres na Rua Quintino Bocaiúva transmitido pela Rede Record e apresentado por Sônia Ribeiro. Aos sábados frequentava o Clube de Dança Royal e Aristocratas e aos domingos participava das missas presididas por Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Mota em companhia de professores tieteenses: Arminda Coelho Marson e Luis Antônio Pescarini que comigo lecionavam. Frequentávamos restaurantes e cinemas. Ao retornar de férias em 57 conheci na pensão meu futuro esposo: Claudivino Alves Pereira com quem me casei em 17 de dezembro de 1959. Por ele trabalhar na Camargo Corrêa antiga firma situada em Guarulhos viemos morar na Vila Sorocabana na Rua Felício Cabral de Vasconcellos nº 1 Vila Augusta. Ali nasceu meu primogênito Cláudio em 23 de agosto de 1960.

Em 65 já residia nesta minha casa construída por nós. Avenida Thomás Edson nº 148 atual 172 Vila Pedro Moreira. Tínhamos já dois filhos: Cláudia nascida em 18 de fevereiro de 1964 e Cláudio. Vim removida para Guarulhos no Grupo Escolar do Bairro da Estação onde em 66 assumi o cargo de auxiliar de direção juntamente com a professora Ana de Santis Siqueira. Gozei de licença maternidade de meu terceiro filho Claudir nascido em 28 de julho de 1966 e de férias. Retornei para a sala de aula em uma classe de 1ª série no final do ano. Em 67 pude

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novamente voltar para 2ª série. Minha classe preferida.

Em decorrência das inúmeras enchentes por falta de canalização do Córrego dos Cavalos por exigência da direção e dos pais dos alunos em 1970 o então Grupo Escolar do Bairro da Estação foi transferido para a Rua Bartolomeu de Gusmão nº 2 em prédio próprio. Recebeu tempos depois a denominação de Grupo Escolar Prof. Paulo Nogueira e com a 5692/71 se chamou EEPG Prof. Paulo Nogueira. Neste período houve a reestruturação da educação e a criação das delegacias de ensino em Guarulhos. Até então a escola pertencia à 1ª Delegacia de Ensino da Capital que ficava na Praça da Sé.

Em sala de aula alfabetizei e utilizava a metodologia de abacada (abacadá). As crianças conheciam as consoantes através da combinação com as vogais a partir do a. Todavia permaneci dando aula durante muitos anos para a 2ª série em que dava continuidade à alfabetização. Foi minha paixão. As classes tinham 35 alunos que vinham de excelentes alfabetizadoras. Maria Leda Fernandes Brigo, Aurora Aparecida Mortatti e Ione Gonçalves Conti. Na segunda-feira se dava o preparo de Linguagem: leitura do texto do livro adotado. Todos liam um trecho. Ditado daquela leitura com correção imediata através de um aluno por vez escrevendo na lousa. Eu ditava da maneira como se pronunciavam as palavras e os alunos escreviam aprendendo que fala e escrita se diferem. Tarefa de casa: cópia das palavras mais difíceis.

Ainda na segunda-feira também se preparava Matemática. Escrevia os problemas na lousa e todos copiavam. Um aluno lia. Outro lia. Era continuidade da alfabetização. Explicava

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muito porque eu também tinha muitas dificuldades. As colegas diziam que eu oferecia tudo mastigado. A Ranzani minha amiga que assumiria as crianças na 3ª série me pedia que alfabetizasse bem. Ela desenvolveria o raciocínio lógico.

Na terça-feira: Linguagem execução. Até a hora do recreio era reprodução do texto do livro. Eles escreviam o que entenderam. Contavam. Inventavam etc.. Estudo de sinônimos e antônimos. Gramática sempre aplicada ao texto. Gênero, número e grau. O recreio era dirigido. Eu tomava sopa com os alunos e não frequentava a sala dos professores. Após o recreio a aula era de Matemática. Resolução dos problemas. Correção. Tarefa de casa sempre tabuadas e numerais. Números pares e ímpares.

Na quarta-feira havia avaliação e correção das atividades desenvolvidas. Discussão das dificuldades tanto em Linguagem quanto em Matemática. Às quintas, sextas e sábados se iniciava tudo outra vez. Preparo, execução e correção. Só que aos sábados as correções eram lúdicas. Se corrigia brincando. Simulávamos programa de calouros e jurados. No final havia conversas. As crianças conversavam umas com as outras baixinho. Muitas aulas eram assistidas pelo diretor da escola professor Aluísio. As provas semestrais em julho e dezembro eram aplicadas por ele. Com sua autorização levava os alunos em alguns sábados até o Fioravante. Íamos a pé. Não havia toda essa urbanização de avenidas e prédios. Lá brincávamos e jogávamos bola. Havia viveiros de aves e apreciávamos. Quando chovia minha colega e amiga Isaíra Testae conseguia um ônibus da Empresa Guarulhos cuja garagem ficava perto que nos buscava. As mães já nos esperavam no portão da escola.

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Ainda havia aula de Conhecimentos Gerais em que se preparavam as datas cívicas. A história era contada para as crianças. Na comemoração as mães cantavam o Hino Nacional com os filhos. Quando cantavam bem os alunos ganhavam um ponto na nota. Outras músicas também de outras comemorações também cantavam juntos. Sempre valia aumento na nota. No Sete de Setembro as 3ªs e 4ªs séries desfilavam e as 1ªs e 2ªs séries comemoravam na escola.

Em minha sala de aula havia horário para tudo. Todos os dias era desenvolvida linguagem oral. Conversas do cotidiano. Por 10 minutos cada aluno que se inscrevesse em ordem contava o que quisesse inclusive novela. Relatavam acontecimentos de casa. Eu era amiga das famílias. Encontrava com as mães e me encontro com elas até hoje. Recebo e-mails de alunos até do exterior. Quando deixei a sala de aula para ser assistente de diretor em escola distante minha classe todinha veio bater em minha porta pedindo que eu não fosse. Seu Aluísio asseverou: Ela não fica. Logo volta. E não voltei porque precisava ganhar mais. Contudo nunca me esqueço que aprendi muito na EE Paulo Nogueira.

Em 71 iniciei o curso de administração escolar no Instituto de Educação Nove de Julho localizado na Rua Padre Celestino no centro. Em 73 entrei já no 3º ano do curso de Pedagogia nas Faculdades Integradas de Guarulhos em uma sala cedida no Colégio Virgo Potens. Consegui bolsa de estudos da Prefeitura de Guarulhos e em 75 terminei o curso. Em 76 já exercendo a função de assistente de diretor fiz um ano de supervisão escolar em São Caetano aos sábados. Íamos em grupo de lotação.

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Em continuidade à reestruturação do ensino público no Estado de São Paulo no segundo semestre de 75 houve a criação da função de assistente de diretor. Em 76 fui para a EEPG do Bairro das Lavras com esta função. Local em que fiquei até 81. Atuei como assistente de direção da professora Neide Ferreira Marquezine até 78. Em 79 atuei na mesma função com professora Conceição Munhoz. Época em que tive oportunidade de assumir a direção da escola por conta das licenças médicas da diretora. Com o afastamento definitivo de professora Conceição em 80 assumiu a direção a professora Célia Maria Bittencourt. Em 81 a escola foi transferida para novo prédio e recebeu o nome de EEPG Ilia Zilda Innocenti Blanco. Hoje EE Ilia Zilda Innocenti Blanco.

Com a criação da Escola Estadual de Primeiro Grau Agrupada (EEPGA) no Jardim Soberana houve o remanejamento dos alunos dessa localidade. Diminuíram as classes do Ilia Zilda e não mais coube assistente de direção. Eu já queria me aposentar e professor Domingos era delegado na 2ª Delegacia de Ensino de Guarulhos. Ele e a supervisora Lúcia Fernandes Riquetti aconselharam a não me aposentar e cumprir mais um quinquênio. Fiquei.

Ao término de seu mandato em 82 como governador de São Paulo Paulo Malluf deu efetivação aos assistentes de direção que tivessem cinco ou mais anos ininterruptos de exercício. Fui uma das contempladas. Em 15 de agosto de 1986 montei na condição de diretora substituta a Escola Estadual Agrupada da Vila Carmela que no mês de dezembro recebeu a denominação de EEPG Rafael Thomeu. Uma homenagem ao filho falecido em acidente automobilístico do Prefeito Paschoal Thomeu. Era uma escola bem pequenina com quatro classes: 1ª, 2ª, 3ª e 4ª

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séries. Lá chegamos eu e a merendeira. Depois vieram os quatro professores. A escola cresceu aos poucos. Uma série por ano: 5ª, 6ª etc... Em novembro de 88 ingressou nela como diretora efetiva professora Sônia Hassler que em 95 foi nomeada delegada na 1ª DE de Guarulhos pelo governador Mário Covas. É uma outra história da qual não participei. Com professora Sônia trabalhei poucos meses no Rafael Thomeu até 27 de Abril de 1989. Data em que me aposentei após quase 40 anos de dedicação ao Magistério Público Estadual.

Desta minha carreira tenho ainda hoje lembranças tristes de colegas que já se foram e hoje são nomes de escolas como: Maria Aparecida Ranzani Magalhães, Ione Gonçalves de Conti, Hélio Polizel, Hilda Prates Gallo etc... Em compensação sou feliz por ver muitos de meus alunos realizados profissionalmente como: médicos, dentistas, gerentes de banco, professores, diretores de escola, engenheiros, advogados etc... Principalmente amigos como os da família Amorim que hoje casados pais e já avós estão sempre presentes em todos os marcos tristes e alegres de minha vida. Além dessa família há ainda o Grupo de Aposentadas da Escola Paulo Nogueira que rogo a nosso Deus que o conserve sempre unido e se reúne mensalmente há mais de vinte anos para rir, conversar, comemorar aniversários, contar novidades e voltarmos a ser alunas... Falamos ao mesmo tempo. Brigamos por divergências de ideias etc...

Guarulhos, 15 de março de 2013.

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Professora Katsue Endo Kishi

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Sempre me achei um clone de minha avó materna, porque sou baixinho, magro,

tenho uma marca de nascença idêntica a delana região lombar e voz lírica.

Arthur Kishi Costa Silva, neto, 12 anos

Um buraco sendo cavado no pomar da chácara. Ali livros eram jogados e enterrados por meu avô. Observava quieta sem nada entender. Parecia um ritual macabro em que as lembranças do país de origem estavam sendo apagadas. Um olhar entristecido. Lágrimas nos olhos. Um coração apertado. Que motivo levaria um homem a se desfazer de algo tão precioso?

Policiais invadiam nossa casa. Derrubavam e chutavam tudo. O que procuravam? A resposta: eram os livros escritos em japonês já enterrados!

Nessa época eu frequentava a escola japonesa. Era numa sala em casa de amigos de meus avós. Não era ainda alfabetizada. Não tinha idade para frequentar o grupo escolar mas já escrevia meu nome. Lia e fazia contas em japonês.

Os homens fardados eu os vi novamente. Desta vez acabando com a nossa escola japonesa. Amigos de meu avô presos e judiados na cadeia. Japoneses matando japoneses. Não conseguia entender tamanha barbaridade.

De minha infância trago boas lembranças ao lado dessas guardadas num cantinho escuro de meu coração... Eram os anos 46 e 47 do século passado. Final da 2ª Grande Guerra em que

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o Japão havia perdido. Muitos dos imigrantes não aceitavam a derrota e juravam que o imperador era um Deus invencível. Em 2500 anos de história nunca perdera uma guerra. Outros imigrantes mais esclarecidos entendiam a derrota e aceitavam. Trabalhavam e procuravam se adaptar ao Brasil. Virou uma briga dentro da colônia japonesa em que os presumidos vitoriosos passaram a perseguir e a matar os chamados derrotistas. E por fim aconteceram batidas policiais e muito sofrimento... Estes fatos são narrados por Fernando Moraes no livro Corações Sujos e no filme do mesmo nome. Fui assistir ao filme com meu sobrinho...

Duartina é uma pequena cidade no interior do Estado de São Paulo. Lá nasci em agosto de 1939. Katsue Endo. Cursei o antigo primário na Escola Estadual Benedito Gebara e terminei o ginásio no Instituto de Educação de Adamantina hoje também escola estadual.

Fui criada pelos meus avós analfabetos em língua portuguesa numa pequena chácara em Duartina. Enquanto cursava o primário passei por situações que talvez aconteçam ainda hoje em pequenas localidades do interior do Brasil. Sozinha tentei me matricular no 2º ano primário. Já estava alfabetizada. Na secretaria me disseram que eu era menor de idade. Sorrindo a moça pediu a presença de meu avô. Disse que ele não sabia o português. Não adiantou. Voltei para casa e ensinei meu avô a escrever o nome. Ele me acompanhou até a escola e minha matrícula foi efetivada.

Ainda nesta mesma época se deu outro fato. A professora perguntou: Quem sabe ler as horas? Levantei a mão. E ela

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disse: Vai Endo ler as horas ali no corredor. Na escola éramos chamados pelo sobrenome... Saí à porta da sala e olhei o relógio ali naquele corredor imenso... Não sabia como falar. Sabia ver as horas em japonês como sempre fizera com minha avó. Fiquei um tempão parada. E a professora: Vamos Endo fale! Por fim eu disse: Não sei como! Só sei em japonês! Ela deu risada. Foi à lousa e ensinou a todos como são lidas as horas em português. Claro!

Quando vejo pela televisão as grandes enchentes me lembro desse período de minha vida com certo horror. Há um rio que corta a cidade de minha infância... O Rio Serrote. Nas grandes enchentes a água chegava até a altura da ponte me deixando muito aflita. Da ponte de madeira esburacada a água barrenta subia como se quisesse me arrastar para dentro do rio... Nesses dias chuvosos meu avô me aguardava do outro lado. Juntos voltávamos para a chácara onde morávamos.

Na década de 50 após o falecimento de meu pai eu e meus avós nos mudamos para Adamantina onde residiam minha mãe e meus irmãos. Lá terminei o fundamental que na época era o ginásio e não existia na cidade mais nada para eu fazer.

Não foi fácil continuar os estudos. Um tio irmão de meu pai queria que eu aprendesse corte e costura. Completar o ginásio para uma moça estava bom. Não quis de jeito nenhum! E certo dia minha irmã mais velha fez minhas malas e disse a minha mãe: Leve-a para Marília. Lá ela vai estudar. Não podíamos pagar pensão e fui morar com parentes. Em Marília cursei o científico e tive a felicidade de fazer o curso superior.

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As Faculdades de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo haviam se instalado como extensão nas cidades de Marília e de Assis. Jovens interioranos sem possibilidades financeiras puderam completar seus estudos. Hoje estas faculdades formam a Universidade do Estado de São Paulo. UNESP. A terceira do estado. As primeiras: USP e UNICAMP.

Sair do 2º grau e iniciar a faculdade de Letras com professores vindos da USP foi algo alucinante. Éramos jovens caipiras abobalhados diante de tanta sabedoria. O professor seja ele do curso primário ou da faculdade é um eterno idealista. Meus mestres da FAFI viajavam de trem a noite toda de São Paulo até Marília a fim de nos trazer o conhecimento necessário para nossa formação de futuros professores. Desciam do trem e iam diretamente para a sala de aula. Cansados e nunca desanimados.

Marília. 1963 e 1964. Policiais entrando na Faculdade. Professores de História sendo levados para interrogatório. Pânico entre os alunos e professores. O que buscavam desta vez? Cenas da minha infância voltavam diante de meus olhos. Era um novo pesadelo. Só que o alvo agora eram os comunistas. Não mais os japoneses. De qualquer forma continuava o ser humano sendo torturado. O homem procurando seu semelhante para extravasar seu ódio e selvageria...

Março de 65. Já formada defendo minha tese de licenciatura sob a orientação do professor de Latim. Falo sobre os poemas de Padre Alcuíno que viveu na Idade Média. A USP havia iniciado em 63 a defesa de tese dos concluintes dos cursos. Foi uma experiência única na minha vida universitária. O objetivo seria preparar o aluno para futuras teses de mestrado e doutorado.

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Foi massacrante mas inesquecível. Enfrentar uma banca examinadora composta de três mestres. Saímos da faculdade preparados para fazer qualquer tipo de pesquisa. O objetivo era formar pesquisadores. Ser professor seria consequência. Isto só descobri já em sala de aula como professora principiante. Apesar de conhecer profundamente o Português: origem, evolução, fonética das palavras desde o Latim até o contemporâneo não sabia ensinar o óbvio: substantivo, adjetivo, verbo etc... Fui obrigada a me especializar em gramática normativa criando minha própria didática para melhor desempenho de minha função como professora de 1º e 2º graus. Atualmente ensino fundamental e médio.

Lecionei para o 1º e 2º graus e para o curso normal na Escola Estadual de Adamantina por dois anos: 65 e 66. Em janeiro de 67 me casei e vim morar em São Paulo. Meu primeiro filho Marcus Vinícius nasceu em agosto de 68. No ano seguinte nos mudamos para Guarulhos onde em fevereiro de 70 nasceu minha filha Patrícia.

Enquanto estive sem lecionar vendo meus filhos crescerem no aconchego do lar aproveitei meu tempo livre para ler e fazer alguns cursos. Em 72 fiz o 4º ano do Curso Colegial de Formação de Professor Primário no Instituto de Educação Nove de Julho para ter uma visão de como seria a metodologia do ensino primário visto que eu havia feito o científico. Em ambos os cursos: o de formação de professor para lidar com crianças e o que fiz na faculdade para lidar com adolescentes e adultos percebi que o lado prático do dia a dia deixava a desejar. Era muita teoria e poucas horas de estágio junto aos alunos. Em ambos os casos se sai da escola com um diploma na mão e uma

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pergunta: E agora, José?

A fim de testar a mim mesma após tantos anos afastada do magistério em 73 fiz um curso de especialização nas Faculdades de Filosofia Ciências e Letras (Sedes Sapientiae) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em Análise Semântica Sincrônica. Me senti revigorada e capacitada com o resultado final para retornar à sala de aula. Fui a segunda colocada nas provas avaliatórias. A primeira tirou nota 10 e eu a do lar conforme me apresentara no primeiro dia de aula tirei nota 9,5. Todos os participantes do curso eram professores que atuavam em escolas públicas ou privadas.

Quando disse que a USP forma pesquisadores e não professores propriamente o resultado de minha atuação como aluna do curso de especialização veio comprovar isso. A linha de pesquisa não se perde ao longo do tempo. A memória pode falhar mas o como fazer permanece. De qualquer forma a pesquisa prepara o professor. É só começar...

E comecei. Retornei ao magistério em 74: 10 anos depois de formada pela faculdade. Primeiro no Instituto de Educação Nove de Julho (Rua Padre Celestino no centro de Guarulhos) para estar perto de meus filhos. Lecionava Inglês para crianças pela primeira vez.

O Colégio Nove de Julho na época tinha como diretora a professora Zaira. Havia salas de pré-primário e 1º grau no período diurno. No período noturno havia 1º e 2º graus. Posteriormente o colégio se mudou do pequeno prédio para um prédio novo na Avenida Salgado Filho.

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Deixei o primário e continuei a dar aulas de Inglês aos demais cursos. Nesse período conheci a professora de Português Madalena Panocchia que ao me conhecer usou a expressão: Você é das minhas. Excelente professora e grande amiga. Depois de alguns anos nos reencontramos no Colégio Claretiano.

Em 75 consegui aulas na EEPSG do Jardim Tranquilidade. Cheguei num dia de muita chuva bastante molhada para entregar os papéis orientada pela Delegacia de Ensino. O diretor professor Ernesto Paltrinieri Neto me recebeu cordialmente e após algumas perguntas disse que eu poderia começar de imediato. Naquele dia me sentia mal. Saíra da cama para participar da atribuição de aulas remanescentes na 1ª Delegacia de São Paulo. Lembro que eram 10 aulas de Inglês que viraram 20. E logo conheci uma pessoa muito especial que se apresentou como sendo professora de Português: Izabel. De quem me tornei admiradora e amiga.

O prédio da escola se tornou pequeno para tantos alunos e lá também funcionava o grupo escolar. Foi construído um novo prédio ao lado do Riacho Jacinto no Jardim Vila Galvão. A mudança foi cercada de muita apreensão. O terreno não oferecia muita segurança devido à proximidade do riacho. O prédio segundo os entendidos poderia desabar. O fato é que ele está de pé até hoje sem nenhum incidente.

Na EEPSG Professor Fábio Fanucchi assim passou a se chamar o antigo colégio da Tranquilidade começamos a trabalhar em salas amplas e arejadas como deveriam ser todas as salas de uma escola estadual voltada para o bem-estar das crianças e jovens do povo.

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Neste mesmo ano em 75 fiz o curso de especialização em Metodologia do Ensino da Língua Inglesa nas Faculdades de Filosofia Ciências e Letras Farias Brito.

Aulas de Inglês e Português eram dadas por mim com tanto empenho e carinho que mesmo com as 44 aulas semanais não me sentia cansada. Os alunos diziam que pela primeira vez na vida estavam aprendendo o inglês de forma agradável. Qualquer que seja a língua falada ou escrita ensinada através da produção exata do som dá bom resultado. Tenho uma irmã que alfabetizava através da fonética assim como eu fazia com os meus alunos de Inglês.

Lembro um início de ano por ocasião da atribuição de aulas. Um professor perguntou ao diretor porque me atribuía 44 aulas se eu não tinha necessidade de tanto. A resposta foi: Os pais a querem como professora de seus filhos...

No Fabio Fanucchi após a remoção do professor Ernesto professora Neusa Dalaqua passa a ser a diretora. Conversávamos muito em aulas vagas. Somos amigas até hoje. A escola tinha excelentes corpos docente e discente. O colegial diurno era frequentado por jovens do bairro e o do noturno por aqueles dos bairros próximos. Eram comportados e interessados em aprender. Cantávamos o Hino Nacional nas datas cívicas e em algumas vezes sob minha regência. Na época em que fui estudante se ensinava canto orfeônico na escola estadual.

Tenho agradáveis lembranças de um 3º colegial cujos alunos eram muito inteligentes e brincalhões. Numa certa aula falando da necessidade de se prepararem bem para o vestibular que

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estava quase pegando no pé imediatamente uma fileira inteira se levantou e chutando para trás gritou: Sai vestibular! Sai vestibular! Foi engraçado mas me contive. Pediram desculpas e se sentaram. Essa mesma turma após a última aula ficou em fila na rua aguardando minha saída. Quando viram o meu carro arregaçaram as calças e com as pernas levantadas pediam carona. Só para me encabular. Eu era muito séria. Talvez por isso me provocavam com essas brincadeiras. Isso aconteceu em 78.

Ainda em 78 recebi um convite do Colégio Claretiano para ministrar aulas de Inglês para o 1º e 2º graus. Fui à entrevista. Professor Mantovani o diretor do colegial me recebeu em sua sala e após um tempo de conversa me perguntou se eu aceitava fazer parte do corpo docente do colégio. Antes de dar minha resposta lhe perguntei se era hábito da escola os alunos se levantarem à entrada do professor. Não me respondeu mas perguntou a razão do questionamento. Disse que meus alunos do colégio do estado estavam habituados a se levantar à minha entrada e ele se espantou visto que eram não só os do diurno mas também os do noturno...

No meu primeiro dia de aula no Colégio Claretiano o assunto geral era algo que me surpreendeu. O diretor havia passado pelas salas avisando aos alunos que deveriam receber os professores de pé a partir daquela data. Achei maravilhoso conhecer alguém que percebeu a necessidade de o aluno se levantar a cada cinquenta minutos para o seu próprio bem. Na verdade isso nada mais é que uma atividade física. Ao se levantar o aluno para de falar, presta atenção na entrada do professor que o cumprimenta e se sente melhor para a nova atividade.

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Portanto não é uma exigência é o bem-estar do próprio aluno.

No período da manhã lecionei Inglês para as três séries do colegial. Eram salas numerosas com mais de 50 alunos. Na parte da tarde lecionei para duas classes: 7ª e 8ª séries.

Um incidente aconteceu na sala do 2º colegial após a entrega das notas do 1º bimestre. Terminada a aula ao começar a me retirar ouvi assovios de dois alunos. Voltei. Subi no tablado. Joguei os livros sobre a mesa. Disse em voz firme e forte que ali era uma sala da aula e não um campo de futebol! Perguntei quem eram os responsáveis. Esperei algum tempo. Nada disseram. Saí da sala e fui ao 3º colegial. Estava no meio de minha aula quando uma aluna e um aluno se apresentaram. Eram os autores do assovio e pediram desculpas. O professor de Matemática que entrou após minha aula sabendo do ocorrido aplicou um corretivo. Uma prova surpresa de valor bimestral. Após isso houve a confissão. Se em todas as escolas houvesse um respeito ao colega de profissão como foi demonstrado nesse dia seria um exemplo de solidariedade.

Permaneci no Colégio Claretiano por quase dois anos. Desta época guardo boas recordações de todo o corpo docente. Professores excelentes e de boa formação. Me afastei por motivo de saúde em meados de 79.

Saí da escola Fábio Fanucchi com o coração apertado em agosto de 80. Meus alunos do 1º colegial noturno (eram seis salas: 1º E, F, G, H, I e J) vieram pedir para que eu não os deixasse e escolhesse aquela escola para me efetivar. Expliquei que eu tinha uma família e meu marido exigia que eu escolhesse uma escola

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próxima de minha casa para não chegar tão tarde da noite. O período noturno ia até as 23h30min. Como eram todos homens os alunos entenderam minha situação e nos despedimos com lágrimas nos olhos.

Me efetivei em Português na EEPG Vila São Jorge em agosto de 80. A escola fica a 10 minutos de minha casa. Começa uma nova fase na minha vida. Chego à escola de 1º grau para me apresentar e deparo com um local bem diferente daquela de onde eu vinha. Salas de aula térreas construídas de forma irregular. Três salas de um lado e duas de outro. Quatro ao fundo e duas de lata ao lado da pequena quadra de esportes situada na parte mais baixa do terreno. Do lado direito do portão de entrada havia duas pequenas salas onde funcionavam a diretoria e a secretaria. A sala dos professores ficava ao lado de duas salas de aula. Segundo os moradores do bairro a escola parecia um galinheiro...

Nos dias de chuva se usava um guarda-chuva na mudança de aula. Nada era coberto. Só as salas é claro! Nesses dias os alunos não tinham recreio para não se molharem. No inverno o frio era insuportável. Os alunos do período noturno quase não conseguiam copiar a matéria do quadro-negro. Num desses dias disse que iríamos correr na quadra. Olharam para mim com ar de espanto. Saíram em fila e correram felizes por uns 10 minutos. Voltaram aquecidos e revigorados. Essa deve ter sido uma experiência única na vida desses alunos de 5ª série...

Me recordo de um dia tirar minha blusa de lã e pedir a um aluno que a vestisse. Ele era franzino e tremia de frio. Vestia apenas uma camiseta de mangas curtas. Ele recusou envergonhado

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mas acabou aceitando. No dia seguinte me trouxe de volta muito agradecido. Ao escrever sobre o inverno reporto à minha época de estudante quando também sentia muito frio...

Após algum tempo o nome de nossa escola se mudou para EEPSG Professora Alice Chuery. Nesse ano minha amiga Neusa Dalaqua passa a ser novamente minha diretora. Dessa vez como diretora efetiva. Fiquei muito feliz com sua chegada. Mulher dinâmica que passou a trabalhar para a construção de um novo prédio. Com a ajuda dos professores, dos alunos,dos pais esse sonho se concretizou. Passamos a ter uma escola condizente com a comunidade e com seu corpo docente e discente. Todos os professores eram concursados. Das antigas onze pequenas salas distribuídas irregularmente no terreno passamos a ter um prédio de dois andares com vinte e duas salas espaçosas e arejadas. O número de alunos cresceu de forma espantosa. Consequentemente o número de aulas também.

Antes da construção do novo prédio eu completava minhas aulas na EEPG Padre Conrado com aulas de Inglês. Depois não houve mais necessidade de me deslocar para outra escola. O Alice Chuery passou a ser uma escola de 2º grau para atender alunos da Vila São Jorge, de outros bairro próximos ao centro de Guarulhos e da periferia. Hoje se chama EE Profª Alice Chuery.

Em 89 minha amiga professora Izabel Gonçalves Arpa Gimeno me convidou para fazer parte do corpo docente das Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG). Fiquei apreensiva. Não me sentia pronta para tal tarefa. Ela me encorajou e fui. A diretora Maria Aparecida me entrevistou e assim comecei a ensinar aos futuros professores de Inglês. Algo que não almejava e nem

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sonhava fazer. Izabel dava aulas de Literatura. Fui convencida por ela a aceitar porque me disse que eram no máximo 40 alunos na sala. Achei razoável para fazer um trabalho que surtisse o efeito pretendido.

O meu primeiro dia como professora de faculdade foi hilariante. Um senhor que cuidava do estacionamento após eu colocar o carro no local disse que ali aluno não poderia estacionar. Nada respondi e fui caminhando em direção à porta de entrada. Ele me perseguia repetindo a mesma coisa. Cheguei à secretaria e contei o sucedido. O secretário esclareceu ao vigilante que eu era professora...

Voltando ao passado: situação semelhante aconteceu na EE de Adamantina no meu primeiro dia como professora na mesma escola onde completei o 1º grau. O inspetor de alunos me impediu de entrar. Calculou que eu fosse uma aluna chegando atrasada à escola.

Na faculdade constatei que eram poucos alunos conforme dissera Izabel. Era uma 6ª feira. A aula começava às 19h30min e terminava às 22h30min com um pequeno intervalo às 21h. No segundo dia de aula quando fui entrar na sala percebi que ela estava lotada. Imaginei ter errado de local e me retirei. Ouvi uma gritaria. Os alunos diziam: É aqui teacher! Voltei. Fiquei muito espantada com o que presenciei. Havia conseguido com apenas uma aula abarrotar a sala de alunos.

Depois de algum tempo mudamos de local porque o quadro-negro não era suficiente para as explicações que se faziam necessárias sobre a estrutura da frase inglesa. Copiar é um ótimo

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exercício de memorização da palavra. Parece algo ultrapassado mas surte excelentes resultados. Não usava apostilas. Era necessária a presença do aluno em sala para um aprendizado eficiente.

Um pequeno texto foi dado para que fosse traduzido do inglês para o português. Grupos de 10 alunos foram formados. Ao corrigir a atividade tive uma triste constatação. Muitos não tinham o domínio da própria língua portuguesa. Havia erros crassos de escrita, concordância, colocação etc... Frases sem sentido. Aqueles eram os adultos que foram prejudicados na infância e não se alfabetizaram devidamente. Não tendo quem os ajudasse no decorrer dos anos chegaram ao curso superior de forma lamentável. Claro que havia alguns bons. Uma boa parte era esforçada e desejosa de aprender. Tentei ajudar a todos na medida do possível. Esclarecia dúvidas de gramática etc...

Aqui quero abrir parênteses e reportar a décadas anteriores. Quando então um certo governador de nosso estado propalou aos quatro ventos que iria dobrar o salário da professorinha... O que foi dobrado? O serviço da professora primária que passou a ter duas salas de aula: uma no período da manhã e outra no período da tarde. Ela não poderia trabalhar mais do que já trabalhava. Era polivalente. Dava todas as aulas da grade curricular. Sempre responsável pela alfabetização e formação nos quatro primeiros anos de escola.

Acabou o amor à profissão. Depois do serviço dobrado a professora primária não conseguiu mais se dedicar a todos os alunos. Corrigir todos os cadernos. Dar atenção a quem mais necessitasse. Incentivar leituras e amor aos livros. É

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incontestável o valor dos primeiros anos na formação. O Estado de São Paulo era considerado o melhor dentre todos os demais principalmente na educação e saúde. As melhores escolas, os melhores profissionais se concentravam aqui. Hoje após quatro anos o aluno criança lê, escreve, faz contas quando consegue. Difícil corrigir o que não aconteceu no período de alfabetização. É possível seguir adiante mas com muita dificuldade. Vi claramente esta situação há 23 anos ao dar aulas de Inglês no ensino superior...

Me afastei das aulas da Figuinha por motivos de doença. Meu braço direito estava impossibilitado de ser usado para escrever no quadro-negro. Foi usado demais. Fiquei de licença médica por labirintite e pelo braço que doía.

Em agosto de 90 a direção do Colégio Mater Amabilis me convidou para ministrar aulas de Inglês para os 1º e 2º graus. Fui recebida pela diretora professora Dília e por minha amiga professora Yassuko. Ali fiquei até 91 quando saiu minha readaptação.

Após maio de 91 já fora da sala de aula me dediquei a ajudar professores e alunos nos seus momentos de desajustes diários. Tinha uma sala de orientação. Era bom acabar com as incompatibilidades de ambos os lados. Conhecedora do ser humano e suas fraquezas depois de tantos anos de magistério pude ajudar sem nunca tomar partido de lado algum.

Permaneci na escola Alice Chuery até minha aposentadoria que aconteceu em fevereiro de 97. Nesta minha longa mas agradável caminhada meu maior prazer foi a companhia dos alunos. Tive uma visão global do comportamento deles desde a infância até

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a idade adulta ao ministrar aulas de inglês da 1ª série do curso fundamental à faculdade. Em todas as faixas etárias observei um interesse muito grande pelo aprendizado do inglês. Foi gratificante.

Minha fortuna. O saber. Dividi graciosamente com todos ao longo dos meus 27 anos de magistério. O aluno nos bancos escolares sob nossa tutela era como filho. Hoje curto as lembranças dessa época com muito carinho...

Guarulhos: Colégio Nove de Julho. Escola Estadual Fábio Fanucchi. Escola Estadual Alice Chuery. Escola Estadual Padre Conrado Sivila Alsina. Colégio Claretiano. Faculdades Integradas de Guarulhos. Colégio Mater Amabilis...

Guarulhos, 17 de julho de 2013.

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Professora Maria Elizabet Chaib

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Sou a quarta filha de uma família numerosa de oito filhos: seis mulheres e dois homens. Todas as mulheres temos o prenome de Maria. Homenagem a avó materna de meu pai que se chamava Mariam. No dia 24 de março de 1942 nasci Maria Elizabet Chaib. Filha de Abdo Chaib e Izolina Aparecida Badan Chaib. Em Posse da Ressaca distrito de Mogi-Mirim. Hoje município de Santo Antônio de Posse. Região metropolitana de Campinas.

Assim que nasci houve a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial. As consequências atingiram também o pequeno distrito onde morávamos. Principalmente minha família de comerciantes. Meu avô Abrão Chaib foi um dos primeiros comerciantes da região a adquirir uma bomba de gasolina ainda manual. Havia não só racionamento de combustível como de outros produtos básicos: farinha de trigo, açúcar etc. Este racionamento o afetou muito. Ele se refazia da crise do café em que muitos fazendeiros não saldaram as contas no armazém.

A zona rural da nossa região era maior que a zona urbana e a economia se estruturava na agricultura. O comércio dependia dela. Boa parte da população rural era de meeiros.

Ao terminar a guerra a industrialização das metrópoles esvaziou os pequenos povoados cuja população foi à busca de vida melhor. O comércio local foi se esgotando. A nossa zona era cafeeira ou tinha sido. Se transformou em algodoeira e de cultura mista. Não havia mais grandes fazendas nem colonos e nem meeiros.

Meu pai era um idealista. Falava sobre todas as revoluções do início do século XX. Participou da Revolução de 32 em São Paulo no batalhão de estudantes quando cursava Farmácia

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na USP. Assinava vários jornais e revistas. Escrevia de vez em quando para jornais regionais. Um editor do Diário de São Paulo chegou a convidá-lo para escrever no mesmo. Não aceitou. Tinha família grande e necessitava sustentar.

Minha mãe estava doente desde que nasceu minha quinta irmã. Era cheia de sonhos. Mulher do lar perfeita. Apaixonada e dramática. Minha primeira infância foi cercada de comentários da guerra sem me esquecer jamais de meus avós que eram estrangeiros. Tanto paternos quanto maternos. Libaneses e italianos. Na Posse brincar só com os primos turcos que eram muitos em casa dos avós. Gede. Avô em árabe. Em Mogi-Mirim só com os primos maternos em casa do avô Badan.

Outras pessoas para nós não existiam. Só a família. Os livros e os jornais. A revista O Oriente. Jornais: Síria e Líbano em casa de gede. Em casa do avô Badan O Fanfúla. Jornal da colônia italiana. Óperas muitas óperas. Meu tio materno Mário Badan era cientista e professor na Universidade do Rio de Janeiro. Formado pela Universidade de São Paulo. Descobriu um método de tratamento de canais dentários desinfetando-os pelo oxigênio nascente em reação com a prata. Chama-se oxigenargentaterapia. Nosso ambiente era esse. Livros, ciência e política.

Em minha casa gostávamos de música e poesia. Meu pai nos ensinava poesias românticas, clássicas e indianistas. Meu avô materno nos contava o enredo da Divina Comédia. Do Rigoletto e da Tosca. E outras óperas e histórias da região da Lombardia. Gede nos reunia para contar histórias em que sempre prevaleciam a justiça e a nobreza de sentimentos. Nos ensinou

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a respeitar a todos. Perto dele podiam se sentar os poderosos e onde ele se sentasse era sempre a cabeceira da mesa. Pobres e ricos tinham o mesmo tratamento em sua casa. Ele também nos fazia declamar, cantar e dançar. Eu declamava Canção do Tamoio de Gonçalves Dias e este meu gede dizia: Tão inteligente pena que é mulher! Contudo estivesse fazendo o que quer que fosse até jogando taule/gamão seu maior prazer que na hora do cinema dizia: Agora é hora de meus netos! Íamos ao cinema...

Em 16 de fevereiro de 1949 fui para o 1º ano misto do Grupo Escolar Mário Bianchi em Santo Antônio de Posse e quase alfabetizada de tanto ler os cabeçalhos dos jornais que chegavam no trem das dez e íamos buscar no correio. Cursei o primário. Fiz exame de admissão ao ginásio no Colégio Imaculada Conceição em Mogi-Mirim e me transferi para o Instituto de Educação Monsenhor Nora também em Mogi-Mirim. Cursei o clássico em São Paulo e o curso de formação de professores no Monsenhor Nora. Em Amparo fiz aperfeiçoamento e administração no Dr. Coreolano Bengos. Me licenciei em Pedagogia na Faculdade Plínio Augusto do Amaral. Tudo isso aconteceu entre 54 até 67.

Lecionei oito anos na zona rural de Santo Antônio de Posse. Passei logo no concurso todavia meu pai não quis que eu escolhesse cadeira. Esperei cinco anos para que pudesse sair de casa. Normalmente se ingressava na periferia de São Paulo ou no sertão do estado. Alta Araraquarense. Ele não permitia que as filhas morassem sozinhas.

Em Santo Antônio de Posse por todas as escolas em que passei promovi mudanças. Mudei prédios e fiz com que construíssem outros. Fundei APMs. Fazia sopa e merendas. Os alunos mais

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velhos me ajudavam. Ficava duas horas a mais na escola para dar conta de tudo o que programava. Ao mesmo tempo dava aulas no Colégio Santo Antônio de Artes Industriais. Fui Orientadora Cívica. Professora de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política. Sempre tive ideias próprias e quando encontro meus ex-alunos eles me dizem nunca terem estudado tanto quanto naquela época. Também fui professora de Ensino Religioso.

Finalmente ingressei como professora efetiva na rede pública estadual em julho de 1977 no município de Cajamar. Distrito de Jordanésia. EEPG Walter Ribas. Em novembro desse mesmo ano fui substituir diretor de escola no Sadokin em Guarulhos. A comunidade da EEPG do Bairro Sadokin era de descendentes de japoneses na divisa com Arujá. Quem me convidou foi a diretora da DRE4-Norte. Professora Neide Campos Aragão. Tive total apoio do professor João Luiz de Godoy Moreira. Delegado da 2ª Delegacia de Ensino de Guarulhos.

A EEPG do Bairro Sadokin se encontrava em processo de sindicância. A diretora havia sido denunciada ao Ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki do Governo Giesel. Ela não tinha culpa alguma do que fora acusada. Simplesmente queria ser independente das ingerências que a comunidade exercia na escola. Contudo o ministro era amigo de infância de várias mães e precisava mostrar serviço. As disputas internas não chegavam até nós e nem sequer afloravam aos não pertencentes àquele grupo populacional. Os alunos eram auto-policiados. Formavam filas sozinhos ao olharem o relógio. Me surpreendi com tanta ordem e submissão. Disputavam as melhores notas. Assíduos e pontuais. Incentivavam os não descendentes de

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japoneses a se comportarem como tal. Tive problemas com professor, professora e servente que me denunciaram na DE por excesso de rigor. O vigilante da escola foi assassinado na sala dos professores no dia 25 de abril de 1978. Senões da carreira que vários diretores enfrentam.

Ao final do ano de 78 a escola do Sadokin se mostrava diferente. Uma comunidade rica com IDH elevado para os padrões vigentes. Nos deram a mim e aos professores anéis de ouro com brilhantes. Eu por minha vez lhes ofereci o livro de Kalil Gibran: Jesus, o Filho do Homem. Estava então conhecendo Guarulhos e suas diferenças gritantes entre comunidades e aglomerados.

Em 11 de janeiro de 1979 foi publicada lei cujo projeto era de autoria do deputado professor Sólon Borges dos Reis que transformou o diretor substituto em assistente de diretor de escola. Muitos substitutos como eu não pudemos prestar concurso para diretor de escola em 1978.

A EEPG do Bairro Sadokin hoje EE Paschoal Maimoni foi escolhida por uma diretora efetiva. Como professora efetiva me removi para EEPG Comandante João Ribeiro de Barros em Cumbica. Tomei posse e fui acometida por cálculo renal. Fiquei em licença saúde por 30 dias. Enquanto isso eram definidos os postos de trabalho dos assistentes de diretor. O meu foi fixado em Santa Isabel. Escolas Agrupadas da Fazenda Redentor. Como não dirijo tenho deficiência no olho esquerdo chegava em Santa Isabel de ônibus e ia para a escola de táxi. O prédio estava caindo aos pedaços. Não é metáfora. As janelas não possuíam vidros. Se chovesse inundava. Se fechássemos as janelas escurecia tudo. Ali era um convênio entre prefeitura,

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estado e educandário. Os alunos do educandário moravam lá. Recebiam alimentos e merenda na escola. Tratamento médico e odontológico de voluntários. Tinham dentes muito bem cuidados e aparentemente eram bastante sadios. A prefeitura deveria manter o prédio e o estado fornecia funcionários e demais estruturas da educação.

Não me conformei com o status quo e fui à Câmara Municipal falar com o presidente que por sinal era nosso colega. Professor Levi de Oliveira. Enviei um ofício relatando toda precariedade da escola. Embora houvesse questões entre diretoria do educandário e prefeitura as providências foram tomadas e houve a reforma em julho. As aulas foram retomadas em agosto e logo se construiu outro prédio.

Como meu cargo não era fixo e podia ser chamada de acordo com o interesse da Delegacia de Ensino em 1º de agosto de 1979 me convocaram para substituir diretor na 2ª EEPG do Jardim Maria Dirce. Hoje EE Vicente Melro. Descobri ali uma comunidade completamente diferente das anteriores. De origem nordestina à procura de um lugar ao sol no sul maravilha. Dividiam um ovo entre duas pessoas para não gastarem o dinheiro da prestação do lote. Seu pedacinho de chão. Outros eram aproveitadores tal como pude observar em outras comunidades. É dessa mistura que se faz a massa do povo brasileiro. Povo bom.

No Jardim Maria Dirce tive contato com aspecto indesejável da função de diretor de escola. A merenda escolar precisava ser vigiada de perto. Admirava sua qualidade e fartura. Grãos nobres: grão de bico, feijão branco, lentilha, ervilha. Legumes e frutas liofilizados. Leite em pó à vontade. Tudo que faria a

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felicidade de qualquer nutrólogo. Pena que as merendeiras gostavam demais dessa merenda...

No dia 24 de agosto de 1979 uma sexta-feira eu havia ido à Faculdade de Direito. Era horário de minha assistente Elizabeth Fernandes que não compareceu. Uma placa de aglomerado de pó de serra se soltou da guarnição do teto e caiu sobre a perna de um aluno. A placa era pesada. Padrão das construções da CONESP. Governo Paulo Egydio Martins. Escolas de péssimo acabamento. Maçanetas quebradas. Problemas na caixa d’água e outros detalhes importantes.

Na segunda-feira tomei todas as providências que o caso da placa requeria. Elaborei os mais incisivos ofícios cobrando responsabilidades nas precariedades das construções escolares. Provoquei uma celeuma. Me procuraram construtora e engenheiros. Me propuseram favorecimento ao prédio. Àquela época se costumava solicitar ao diretor da escola que assinasse um termo de recebimento da obra em que constasse não haver defeitos aparentes. Ora diretor não é técnico como poderia cumprir isso? Sempre discordei.

Bem. Depois de alguns dias se marcou uma reunião em São Paulo na CONESP. Entre os engenheiros da manutenção, construtora e eu a diretora da escola. Não havia mais ninguém. Nem DRE e nem DE. Fiquei ouvindo. Depois me pus a falar. Falei tudo o que acontecia. Bem como não impediria que a imprensa tomasse conhecimento do aluno machucado e do perigo que todos corriam. Foi a gota d’água. O superintendente da manutenção apareceu e se pôs a falar que era necessário um voto de confiança na CONESP. Respondi com um chavão

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de professora. Quando dou a prova a um aluno ela vale 10. À medida que ele deixa de responder as questões é que vou diminuindo o valor. No momento para mim a CONESP vale zero. Está de recuperação. O superintendente Dr. Ruy Tone de saudosa memória se tornou meu amigo e muito nos ajudou em Guarulhos. Houve uma verdadeira revolução no prédio do Maria Dirce e praticamente uma nova obra no telhado e no teto.

Essa admiração como diretora de escola que Dr. Ruy passou a me dedicar o levou a considerar que as diretoras de escola não eram apenas nomeadas políticas atrás de louros. A maioria de nobres ideais estava preocupada com as comunidades que possuíam sérios problemas. Ele atendeu as outras que apresentei e provaram suas reais necessidades.

Deixei o Jardim Maria Dirce em 30 de abril de 1980. Fui para a EEPG Padre Bruno Ricco. Neste ponto minha história se cruza com o Aeroporto. Às vésperas da comemoração do Dia do Trabalho fui chamada pelo professor João Luiz Godoy Moreira. Ele me exibiu a publicação em DO do decreto de desapropriação oficial para a construção do Aeroporto Internacional de São Paulo em Guarulhos. Incluía a área de instalação da escola Bruno Ricco no Parque São Luiz até o início do Jardim Presidente Dutra. A diretora substituta de lá estava bastante compungida e preferia se retirar para a divisão regional a permanecer à frente da escola até o fim. Meu novo posto de trabalho fixado na EEPG Padre Bruno Ricco hoje somente EE Padre Bruno Ricco se iniciou em plena comemoração cívica do 1º de maio de 1980. Depois. Foi depois. Eu era a diretora que vinha recolher as chaves. Não as chaves do reino. Teria que aplainar veredas e derrubar barreiras. Enfrentar monstros até me ver desincumbida da missão.

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A população do Parque São Luiz era organizada. Havia certa base de imigrantes portugueses oriundos da Revolução dos Cravos. Angolanos e moçambicanos que precisaram sair de seus países. Eram moradores do bairro também um contingente de desapropriados das áreas do metrô de São Paulo que se via novamente alcançado pelas mesmas medidas anteriores. Lá residiam havia muitos anos e amavam a escola.

O princípio do plano era que as famílias desapropriadas se mudassem. Os alunos seriam transferidos e a escola naturalmente esvaziada para que o prédio fosse demolido. Todavia não foi o ocorrido. A comunidade se surpreendeu com a saída da diretora e chegada de outra. A escola possuía uma superintendente que mandava e desmandava acima da diretora e com sua anuência era obedecida pelas professoras. A superintendente era a merendeira. Os alunos efetuavam a limpeza pesada e as duas serventes fingiam que trabalhavam. A merenda era servida na sala de aula. Os alunos ajudavam a merendeira a servir e lavar a louça. Nada contra a colaboração dos alunos. Contudo a prepotência da merendeira sobre as professoras e a ousadia de vir me dar ordens me irritaram ao máximo. Todo o pessoal de apoio pediu transferência e assinei. Só ficaram duas escriturárias.

Foram iniciadas reuniões na escola a despeito das desapropria-ções. Irreversíveis por força do decreto. Moradores inconfor-mados, revoltados e instigados por reportagens e guerras ide-ológicas entre vereadores do bairro Jardim Presidente Dutra. Kan Kise contra. Otoya Sato a favor. As disputas se refletiam na escola. As famílias se mudaram mas os alunos continuavam vindo às aulas. Tomavam ônibus e vinham. Como fazer?

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As construções em nosso entorno começaram a ser demolidas. Era assustador. Até a igreja em frente foi derrubada. Ficamos nós. Algumas casas remanescentes se tornaram refúgio e esconderijo de facínoras. Pessoas procuradas pela polícia. O major Quiroga da PM sabedor da situação destacou um soldado para fazer a guarda da escola. A alimentação dele ficava às minhas expensas. Outra pessoa que nos ajudou foi dona Irene. Psicóloga e assistente social ligada à Infraero e ao Ministério da Aeronáutica. Fazia levantamento das famílias a serem desapropriadas. Um dia me levou à Favela do Esqueleto e aos limites da Rua Cem. No Jardim Presidente Dutra.

Contraste total e absoluto entre as populações que eu conhecia no Parque São Luiz e alguns moradores do Presidente Dutra. Estes ordeiros zelosos do patrimônio e com base social assentada. O que vi ali na dita Favela do Esqueleto foi assustador. Aglomerado de seres humanos reivindicando o que todos reivindicavam e tinham direito. Pedindo. Verificamos até onde o ser humano pode ser abandonado por seus semelhantes. A assistente social tudo ouvia cheia de técnicas e se fazia ouvir. Eu cada dia mais mergulhada na miséria e na pobreza dessa Guarulhos que aprendera a gostar em apenas três anos.

A construção do aeroporto já se iniciara. Nem sonho. Nem pesadelo. Apenas realidade. Realidade que transformou a pequenina que João Álvares benzeu com fé na cidade progresso. Esta terra que cresce de pé! Em meio aos esqueletos das casas resistimos até o início de 82. Por essa época já se construíra um prédio no Jardim Carmela Dutra. Um apêndice do Jardim Presidente Dutra para onde se pretendia transferir a escola. Os alunos de uma localidade adjacente ao Parque São Luiz que

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não seria desapropriada conhecida à época como Conjunto Lutfalla ou Vila do Sapo e hoje Vila Aeroporto faziam parte da clientela do Bruno Ricco. Pelo traçado original essa área se excluiu da desapropriação. Eram mais ou menos cem crianças. A maioria das quatro primeiras séries. Essa comunidade possuía características especiais. Os alunos eram contaminados pelo schistosoma mansoni por ser uma região de brejo que vivia constantemente alagada nas chuvas de verão. A Pfizer desenvolvia um remédio chamado Mansil para a debelação da epidemia. O remédio por via oral era ministrado na escola e toda a população contaminada era controlada. Tínhamos preocupação séria com esta clientela. Pois bem. Eles estavam isolados em termos de escola...

Quando a escola no Presidente Dutra ficou pronta recebemos ordem de nos mudar. Ainda que nossa situação fosse insustentável. Sozinhos e sem proteção em um lugar ermo entre esqueletos de casas. Decidi em uma das minhas explosões. Não me mudo! Enquanto não solucionarem a situação do Conjunto Lutfalla! O pessoal da INFRAERO, da CONESP e da COGESP em minha sala. E eu dizendo: Não me mudo! As crianças vão morrer na Estrada de Nazaré Paulista. Vou construir uma funerária! As estradas estavam perigosíssimas com tráfego intenso de caminhões. Batia a mão na mesa. Disse que chamaria a imprensa. Fiz o bafafá que costumava fazer...

Em São Paulo na CONESP Dr. Ruy Tone ficou sabendo e me ligou: Arrumem um terreno que vou construir prédio com dinheiro da manutenção. Foram construídas duas salas onde é hoje a EE Pastor Rubens Lopes. Apesar de eu ter prometido ao Padre José de Anchieta que se eu conseguisse a escola seria

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dado o nome dele. Guarulhos não tem nenhuma escola pública com o nome de Padre José de Anchieta. Alguém do conjunto não queria essa construção e me advertiu por telefone: Você está cutucando a onça com a vara curta! Temerária e irresponsável respondi: Se vocês são cangaceiros também serei! A escola teve que ser engolida. A primeira que se teve notícia da construção antes da aprovação. Prédio pronto em tempo recorde. Os alunos não necessitariam mais atravessar a perigosíssima Estrada de Nazaré. Me mudei para o prédio do Carmela Dutra e transferimos a escola.

O Padre Bruno Ricco do Parque São Luiz era escola muito bem montada. De acervo material antigo e bem conservado. Móveis fortes de madeira e bons que foram recolhidos pela DRE. Não cabiam no prédio novo que recebemos de quatro salas. Levamos apenas o material didático e de uso administrativo. A escola passou a funcionar em quatro períodos. Apesar de todos os problemas o Departamento de Recursos Humanos da Secretaria da Educação do Estado não reduziu as classes embora tivéssemos solicitado. Isso contudo é tão pouco para uma diretora de priscas eras. O difícil mesmo era demonstrar que alunos não eram mercadorias não tinham culpa do caos em que se envolviam. A nós cabia lhes dar segurança e estabilidade. Como Abraão todos os dias pedia a Deus: Se eu encontrar cinco professores que se disponham a trabalhar comigo fermentarei a massa... Fui mais feliz que Abraão. Encontrei professores que moravam na comunidade e pais dispostos a ajudar. No final de 82 o prédio estava completo e no início de 83 a escola foi transformada em EEPSG Padre Bruno Ricco. Foram criadas classes de Educação Infantil e Educação Especial. Havia alunos com dificuldades de aprendizagem que eram rejeitados por professores nas classes

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comuns...

E a parte pedagógica? Ai do diretor ou diretora que quisesse ver um plano de aula e discutir sobre a matéria. Saber algum item. Arguir. Opinar a respeito de alguma prática. Éramos déspotas, tiranos etc. e tal.

Ficamos no Carmela Dutra até meados de 84. Não era mais a comunidade pacífica apegada ao Parque São Luiz. Era uma comunidade mista. Guarulhos se abrindo para uma nova era de migrantes ávidos pelo progresso. Era o INOOCOP sendo construído e nós pregando que as sociedades deviam estar sempre em mudanças e com nossas atitudes favorecíamos o status quo de hoje.

Gostaria de ter ficado nesta escola por mais tempo e acompanhar os acontecimentos posteriores significativos que ocorreram. Tive que escolher nova sede. O Bruno Ricco tinha diretor efetivo afastado na USP por mais de 20 anos.

Aprovada em concurso. Escolhi de verdade minha sede como diretora efetiva. Na hora de me decidir optei pela Escola Comandante João Ribeiro de Barros que fica em frente à Base Aérea de Cumbica. Embora tivesse muitos pontos preferi continuar na 2ª Delegacia de Ensino a vir para a 1ª Delegacia de Ensino mais central.

A Escola Comandante Ribeiro de Barros se localiza no centro de Cumbica onde passavam todos os ônibus que se dirigiam às regiões periféricas situadas depois. Vastíssimas áreas dado o tamanho do município de Guarulhos. Aí fui ter contato com a mais dolorosa e triste vida das crianças de nossas periferias.

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A clientela da escola era toda do entorno da Rodovia Presidente Dutra. Eram comunidades então favelas que segundo padre Lino Camacho pároco de Cumbica quando eu visitava alguma delas e voltava desesperada pelas condições subumanas ele me consolava dizendo: Hoje a senhora foi na favela de primeira classe. Eram amontoados de gente. Acabavam se identificando em núcleos. Os trabalhadores, os honestos, os traficantes, os perigosos, os agitadores, os paus mandados, os etc. e tais... Eram poucos os que faziam alguma coisa pelo povo.

A maioria dos professores vinha do centro de Guarulhos, da Base Aérea, do Cecap que se constituíam ilhas de prosperidade perto do local de onde vinham os alunos. Nenhum contato com a miséria de onde eles se originavam. Contatos tangenciais. Matrícula. Reunião de pais e tudo bem. Era a escola mais afastada da realidade que eu já havia trabalhado.

Da janela da diretoria observava nos primeiros dias o inspetor de alunos levando alunos da 3ª série nas oito salas e os mesmos serem rejeitados pelas oito professoras. A escola funcionava em quatro períodos. Logo duas salas foram concluídas e os alunos puderam ser acomodados em três. O número deles ficou grande nas classes. Muitos atravessavam a Dutra para chegarem à escola. Já havia a rede física. Prioridade para construção de prédio próximo à SKF. A Prefeitura alegava falta de recursos para desapropriação.

Os diversos núcleos das comunidades viviam de rixas. Os alunos chegavam sempre insatisfeitos do serviço no curso noturno. Conseguimos que lhes fosse servida uma merenda antes de entrarem para as aulas. Continuamente acontecia algo

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para atrapalhar o bom andamento dos trabalhos. Ficávamos na escola das sete da manhã até as 23 horas. Eu, minha assistente Adelina Nicoli e Maria Estela Chaim Rezecke outra assistente que chegava às 14 horas e saía também às 23.

Quase todos os dias eu passava telegrama para o governador Franco Montoro já que as autoridades cujo poder lhes era delegado não agiam. Eram dúbias e em cima do muro. Justiça seja feita o governador nunca se omitiu. Sempre me deu alguma resposta. Contudo fui criando uma rede de inimigos que um dia souberam se vingar...

Foram tantas reclamações, invectivas, desrespeitos... Os professores não conseguiam trabalhar no período noturno. Até que um dia irresponsavelmente apesar de bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas me sentei com um revólver de brinquedo no pátio e avisei: Aquele que entrar na escola hoje vai ver o que é bom! Sabia que estava cometendo graves infrações porém maquiavelicamente pensava os fins justificam os meios. Naquele dia e nos subsequentes os professores puderam dar suas aulas sem agressões.

No noturno me dispus a dar aulas de Ensino Religioso porque para o diurno havia conseguido um físico nuclear da USP presbiteriano e pastor. E outro kardecista. Insistia que as aulas deveriam ser confessionais teístas. Um engenheiro da Base Aérea até tentou mas não conseguiu. Chegou a frequentar um treinamento no Colégio Virgo Potens. Precisei parar porque as contingências do dia a dia não me permitiram continuar.

A todo instante instávamos a COGESP para necessidade de se construir outra escola na região. Havia uma multiplicação de

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crianças que nos surpreendia. Chegamos a receber ordens de não matricular alunos. O que eu não aceitava. Mandava os pais irem ao Ministério Público e com ordem do mesmo matriculava os filhos. Por fim se construiu nova escola e houve certo alívio.

No período noturno havia duas salas ociosas. Propuseram criação do ensino supletivo. O que fizemos com muito gosto por estarmos mais uma vez servindo o propósito da educação. Além de que a escola ficava em ponto estratégico. Parada de ônibus de quase todos os bairros que iam pelas estradas internas. A clientela que saía do trabalho poderia parar ali para estudar. Todos os dias louvo a Deus por esta boa coisa que foi feita. Pude ser um instrumento de mudanças e progresso. Necessidade de mudar. Mudar sempre. O velho Heráclito. Tudo é movimento. Nada permanece estático. Quantos agradecimentos recebo até hoje! Cada vez que vou a Guarulhos encontro com um e outro que me dizem: Graças à senhora pude voltar a estudar! Me soa como louvação...

Na parte administrativa existiam umas saletas ociosas. Sala de Psicóloga. Sala de Orientador. Nunca foram ocupadas. Na DRE me sondaram a respeito de instalação de classes de deficientes auditivos. A localização da escola favorecia. Concordei na hora. Foi feita a proposta e também criamos classe para deficientes mentais. Até hoje não sei se eram os alunos especiais ou os professores mesmo que eram. No caso da deficiência mental. Enfim as classes foram instaladas. Embora hoje a orientação seja outra o progresso dos deficientes auditivos foi significativo e o retorno satisfatório.

Quanto aos alunos rejeitados que relatei no início chamei as professoras de maior profissionalismo e propus ficarem com

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todos logo no começo do ano letivo de 85. De antemão já teriam o conceito A ao final do ano. O que levaria a 5% a mais no salário a partir do ano seguinte. Foi um pacto justo. Os alunos progrediram. Foram promovidos. Nenhum deles sequer foi encaminhado à diretoria. Pena mesmo eu tinha de não poder me dedicar mais à parte pedagógica. Não havia integração escola e comunidade. A clientela era conglomerados vindos de lugares diversos. Alunos com variados problemas. Rejeitados na vida e rejeitados na escola. Passavam pela indiferença de todos. Poucos professores se sensibilizavam. Mundos mais distantes que os intergalácticos. Nunca entendi o magistério assim.

Em 87 a escola passou por uma reforma gigantesca. O teto era de concreto e o calor insuportável. Sufocante. Não se aumentaram salas e a população voltava a crescer.

No final de 89 se marcou uma reunião com a diretoria da Cummins S.A. Fábrica de anexos automotivos. Queriam ajudar a escola. No entorno dessa firma se amontoava uma população que trabalhava ali cuja alcunha era favela da Cummins. Até nas fichas cadastrais dos alunos constavam entre aspas este local de residência. Pois bem. No vai e vem da conversa com representantes do alto capital americano eu matreiramente perguntei: Os senhores sabiam que a Cummins tem uma favela? E lhes expus a situação. Os brasileiros borra-botas quase enfartaram na minha sala. Eles sabiam e não passaram esta informação. Desenxabidos não sabiam o que falar. Continuei a explanar o problema. Foi o ponto de partida. Tomaram providências e a escola da Cummins logo estava pronta e instalada para servir o povo.

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Na inauguração estavam todos os poderosos locais. Orgulhosos do feito como se tivessem algum mérito. Requebravam na sua pequenez diante do verdadeiro poder que era dos americanos. Eu apenas sorria e observava. Lembrava duplamente de Jorge Amado em Tereza Batista Cansada de Guerra. Ele advertia que umas das poucas amigas do povo brasileiro são as professorinhas além das putas. Os políticos nada mais são do que empregados do poder do dinheiro.

Como tudo muda a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo resolveu mudar. Quis acabar com o curso supletivo que era uma experiência positiva. Mandei os alunos chamarem o Aqui Agora. Chamaram e deram entrevistas. A secretaria cedeu e o supletivo continuou. Os políticos por sua vez se entusiasmaram e quiseram levar a paternidade. Todavia não tiveram nada com isso. Foi um trabalho de base.

Em 90 convocada pela 2ª Delegacia de Ensino me tornei assistente jurídica. Em 91 voltei para a escola e todos os seus problemas. Não quis continuar na delegacia. Não concordava com a mudança de prédio. O estado tinha dupla jurisdição e o processo de despejo se arrastaria por mais cinco ou seis anos.

Ainda no ano de 91 a Cidade Seródio possuía grande clientela para supletivo e para alunos de 5ª à 8ª série. Queriam vir para a escola em que eu era diretora. O Comandante João Ribeiro de Barros. Era impossível pela falta de espaço e vagas. O vereador Paulo Carvalho cedeu um prédio razoável para uma nova escola ali no Seródio. Contudo não havia tempo hábil para sua criação e instalação naquele ano. Fora de prazo. Mais uma vez me perguntaram se aceitaria outro trabalho além dos que já tinha.

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Respondi afirmativamente. A escola é do povo. Res publica. Do povo para o povo e pelo povo. Foi nomeada uma assistente de minha inteira e plena confiança. A que já era um faz tudo nas escolas em que a conheci. Aclaer Trevisan. Hoje diretora da EPG Zulma Castanheira. A administração seria nossa. Por que não? Quando me formei minha carreira foi dedicada ao Padre José de Anchieta. Ad Majorem Dei Gloriam. Tudo pela glória de Deus.

Neste mesmo ano cometi a insanidade de aceitar substituir delegado de ensino por 45 dias. Assinei uma ordem de pagamento calculada em ORTN que já deveria estar calculada em São Paulo. O cálculo estava errado e já vinha desde outros três delegados que me antecederam. Assinaram inocentemente como eu. Resultado. Fomos processados e condenados. Réus. Estamos pagando até hoje por danos ao estado enquanto outros roubam deslavadamente e são considerados inocentes. Este episódio me deixou doente. Sempre tratei a coisa pública com respeito e dignidade. Cuidei mais das coisas públicas do que das minhas. Mas contra documentos não há argumentos. Por 45 dias de substituição estou pagando até hoje mais de R$16 000,00 (dezesseis mil reais). Não só eu como mais seis pessoas.

Quando retornei à escola meus alunos deficientes auditivos necessitavam de aparelhos. Com o dinheiro da cantina e da APM pagávamos uma fonoaudióloga. Conseguimos adaptar três salas que se transformaram em ambiente especializado. A fono insistia na necessidade de aparelhos. Como conseguir? Eram tão caros! Solicitamos ao Palácio do Governo. Nada. L.B.A. Nada. Mas Deus não desampara quem nele confia. Meu tio que era cientista também era surdo. Rezo todos os dias para ele. Naqueles dias especialmente. Pedia uma ideia.

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No início de 93 eu estava sentada no jardim da escola rezando por uma ideia quando entra o Maguila acompanhado de pais de alunos seus amigos. Nasceu a ideia. Fiz as honras da casa. Elogiei o lutador e de chofre lhe perguntei se faria uma luta para comprar aparelhos a alunos deficientes auditivos. Ele concordou. Forneceu telefones. A luta aconteceu em 14 de maio de 1993 no Ginásio CECAP. Foi um sucesso. Conseguimos comprar 14 aparelhos de surdez.

Na entrega deles estavam lá novamente os políticos poderosos, deputados, vereadores, repórteres, porta-vozes etc. Não deixei ninguém se autopromover ao afirmar categoricamente que os aparelhos eram fruto da magnanimidade do lutador. Este foi meu último feito em Guarulhos.

Foram anos de aprendizagem. Contato com a miséria física e com a pobreza. Uma clientela que podia chegar à aula mordida de ratos intoxicada de drogas queimada no fogão por não ter tomado remédio para epilepsia. Deixou de tomar por ordem do pastor da igreja. Alunas estupradas e alunos violentados por padrastos e pais. Filhos rejeitados e odiados pelos próprios pais cujo único porto seguro era a escola. Alunos de ambos os sexos vinham armados de estiletes, revólveres, facas e nós indefesos os revistávamos. Armávamos de coragem e receio para que nada acontecesse dentro do recinto escolar. Contando com boa vontade e altruísmo de muitos em ajudar os mais simples e dar algo de si constatamos a veracidade do provérbio árabe: Darás pouco quando deres de tuas posses, quando deres de ti mesmo que terás dado alguma coisa.

O mais grave de tudo era o contingente de professores oriundos

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do Norte e Nordeste semi-alfabetizados e no entanto licenciados e registrados no MEC aptos a dar aulas. Éramos obrigados a alfabetizá-los. Maria de Lourdes Souza e Leila Salomão são testemunhas e me ajudaram nessa tarefa. Concordavam comigo que não era justo deixar as professoras que não tinham culpa desse processo irem para a sala de aula despreparadas. Como podem observar sempre levamos a sério as coisas da educação.

Muito deixei de relatar. Não seria razoável escrever mais. É uma verdadeira comédia. Às vezes hilária. Às vezes chocante. Muitas vezes tragédia mesmo. É a vida. A escola é o filtro da sociedade. Há outras memórias a serviço da mesma causa. Essa nobre causa a que nos dedicamos. A educação.

Belo Horizonte, 30 de setembro de 2012.

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Professora Nehy da Silva Martini

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Minha vida e minhas recordações: lembranças de uma professorinha de Guarulhos.

Ainda que eu falasse línguas, a dos homens e a dos anjos,

se eu não tivesse o amor, seria como um bronze que soa, ou como um címbalo que tine.

1 Cor 13, 1-13

Li algo que dizia: O ontem é história. O amanhã é mistério. O hoje é uma dádiva. Por isso que se chama presente. Pergunto: Estarei neste momento no presente ou mergulhada nos sonhos concretizados ou não do passado? À cabeça surge um emaranhado de dúvidas e imprecisões sobre o assunto. Principalmente quando relembro e revejo as relações vividas no passado como educadora guarulhense. Só ficaram registradas lembranças de momentos vividos com intensa emotividade. E somente delas se pode falar e contar...

Filha de pais camponeses e analfabetos do interior paulista. Moradora de sítios e fazendas de plantios de algodão, milho ou de gado na região ranchariense. Trago nas veias a herança bela da inocência do caipira e a crença dos interioranos da década de 50 e 60 nas rezas do terço e nos mutirões solidários e alegres das festas juninas das vizinhanças.

Nasci em Rancharia. Uma cidade paulista de médio porte situada entre Assis e Presidente Prudente também chamada região da Alta Sorocabana. A Estrada de Ferro Sorocabana era responsável pelos transportes de cargas e de passageiros até

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a capital paulista. No meu tempo década de 50 foi capital do algodão e uma cidade próspera que dispunha de grupo escolar, ginásio, curso colegial, normal e contabilidade de jurisdição estatal. Estes estabelecimentos de ensino atendiam também os jovens das cidades vizinhas: Martinópolis, Quatá, Paraguaçu Paulista, Indiana etc.

Sou de família pequena. Filha de Alfredo. Mulato queimado, alto, sarado, vaidoso de olhos de tonalidade imprecisa indo do mel ao verde variando conforme suas emotividades e estado de espírito. E de Flauzina. Branca, modesta, batalhadora, descendente de europeus possivelmente portugueses.

Meu pai nasceu no dia 16 de dezembro de 1893. Final de século. Momento de passagem de Brasil monárquico para Brasil republicano e da escravidão para libertação de negros. Talvez toda a conturbação na época de seus primeiros dias de vida tenha influenciado sua personalidade marcando-o como homem de coragem. Empreendedor e destemido na frente de sua geração e etnia. Filho de Chrispim Franco da Silva. Mestiço de negro alforriado. E de Idalina de Jesus. Filha de português com índia laçada no mato segundo contam os parentes. É desconhecida a tribo de onde avó de Alfredo se originou.

Flauzina Gonçalves Pedroso. Minha mãe. Era bem mais nova que meu pai. Nasceu em 21 de dezembro de 1915. Filha de Francisco Gonçalves Pedroso e de Izaltina Maria de Jesus. Bonita e cheinha. Parecia uma bonequinha de louça.

O casamento de meus pais não teve o apoio de meus avós maternos. Como a maioria dos brancos eram também preconceituosos mesmo sendo pobres. Só consentiram na

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união civil devido à insistência e aceitação implícita de meu tio Zezé irmão de minha mãe. Não queriam negro nem mulato na família. Entretanto foi meu pai quem deu abrigo e proteção aos sogros durante suas vidas. Por isso não deixavam de proclamar arrependimentos pela rejeição do genro.

Meu pai era o quarto de uma ninhada de nove filhos e minha mãe a penúltima de quatro. Ambos criados na roça viveram uma cultura que Antonio Cândido denominou de caipira em que o progresso não foi feito para ela. O trabalho servia para a sobrevivência e não para o lucro. Cultivavam milho, arroz, feijão, mandioca, amendoim, verduras, poucos legumes. Criavam uns porquinhos e umas galinhas para a alimentação cotidiana. Confeccionavam seus vestuários e utensílios domésticos.

Aos doze anos meu pai perde a mãe que fugiu com um caboclo da região e fica responsável pelos irmãos menores e por meu avô ébrio que morre logo depois. Cria todos sendo pouco ajudado por parentes distantes. Por este fato era respeitadíssimo pelos irmãos e sobrinhos.

Sou pela minha ancestralidade uma legítima representante do povo brasileiro. Minha miscigenação me dá orgulho porque constitui expressão de tudo aquilo que é verdadeiramente nacional. Sou produto da fusão de traços e padrões culturais pertencentes aos três povos raízes do Brasil: português, indígena e negro. Tataraneta de escravo negro. Bisneta de filha de português. Tataraneta de indígena de aldeia tribal. Daí meu fenótipo: pele morena, pequena estatura, cabelos pretos e lisos, olhos grandes e amendoados.

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Meus pais tiveram uma vida conjugal bastante satisfatória. Pobre no início de casados e com algum conforto na medida em que meu pai se tornou sitiante e comprador de bezerros de Mato Grosso e Goiás. Tratava-os e vendia adultos por um preço mais vantajoso.

Meu pai era bastante autoritário conosco. Principalmente quanto à moral. Acredito que fosse racista pelo avesso. Tínhamos que viver rigorosamente dentro da moral dos brancos. Segundo ele qualquer deslize pode desgraçar a vida de um mestiço que deixa de ser respeitado pela sociedade. Daí suas exigências em relação às nossas amizades e companheirismos. Fazia o possível para que frequentássemos ambientes de gente respeitada e vestíssemos como eles. Não desculpava nenhum vacilo no estudo e não cansava de dizer: Estudar é sua única obrigação! Faça tudo para não ficar reprovado. Se quiser ter um lugar ao sol o único jeito é o estudo. Vocês só se casarão depois de formados. Não se pode confiar num casamento definitivo. O preconceito racial está espalhado em todos os poderes sociais. Estas e outras frases nos serviram para traçar caminhos e acredito que foi por isso que todos nós de casa nos formamos em curso superior.

Parece que estou vendo hoje: meu pai com seus 60 anos sentado na varanda de nossa casa à Rua Maria Lúcia Vita nº 17 em Guarulhos. Contemplava o sol se pôr ou a chuva cair. Sem nada a fazer. Tendo vendido seu pequeno sitio no interior a única coisa que lhe restava era a ociosidade. Foi nesta casa que vivi o maior e melhor tempo de solteira. Minha mãe vivendo numa cultura machista não parava de trabalhar. Cozinhava, lavava, limpava a casa, passava roupa. Era o hábito das mulheres do passado: cuidar de filhos e do marido. Fui muito bem cuidada.

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Sou a primogênita de uma família de cinco rebentos. Nasci em 7 de abril de 1938. Tenho como irmãos duas mulheres e dois homens. Praticamente crescemos, estudamos e casamos em Guarulhos e na vizinha São Paulo.

Vim para Guarulhos nos meus 16 anos. Idade do medo e da insegurança. Todavia também dos sonhos. Me lembro da chegada. De ônibus passei pelos bairros de Tranquilidade e Gopoúva. Chorei por sentir que estava indo morar num fundão esquecido por Deus e não em São Paulo. Cidade próspera e bela que eu já conhecia e desejava habitar. Vim morar na Rua Maria Lúcia Vita no centro de Guarulhos. Próximo à Santa Casa e à Praça Getúlio Vargas. Contudo a cidade e sua periferia constituíam na época um pobre e atrasado município. Muitas moradias simples poucas ruas calçadas muitos terrenos baldios cheios de matos e ratos. Poucas e singelas lojas comerciais e um pequeno cinema na Rua Dom Pedro II. No meio da Praça Getúlio Vargas havia ainda um campinho de futebol onde os garotos costumavam jogar suas peladas. Minha cidade de origem era mais bonita e charmosa. Dispunha de mais recursos à população.

Completei o curso de formação do magistério no Colégio Estadual Nossa Senhora da Penha em São Paulo em 1958. Guarulhos na época não tinha escola normal e nem curso médio. Bem mais tarde em 64 já professora efetiva do primário fui fazer Sociologia na USP. Precisava trabalhar para colaborar com o sustento da casa já que meu pai roceiro e sem aposentadoria dispunha de muito pouco recurso para estudo e alimentação de meus irmãos em idade escolar.

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Nunca fiquei sem lecionar. Foi muita sorte. Logo formada fui trabalhar na escola da Camargo Correa na Pedreira Reago que ficava na periferia de Guarulhos e simultaneamente dei aulas nas escolas primárias do estado: Gopoúva, Capistrano de Abreu e Francisca Batista Trindade onde fiquei até passar a lecionar para o ginásio.

Tive uma juventude feliz. Divertíamos muito. Tínhamos o Clube Bancários e Clube Recreativo para entretenimentos das domingueiras e para os bailes tradicionais. Suscitadores de toda uma parafernália de preparativos: roupas, sapatos, penteados... Ficávamos na expectativa durante toda a semana para saber quem ia como e com quem... Toda a elite guarulhense comparecia e prestigiava o evento.

Meu companheiro e marido conheci na USP. Ele fazia Filosofia e eu Sociologia. Casamos em 1972. Construímos nossa casa na Rua Jorge Street nº 142. Centro da cidade. Fomos professores de ginásios e faculdades em Guarulhos e em São Paulo. Fiz pós-graduação em Antropologia Cultural sob a orientação do meu saudoso professor dr. Teófilo de Queiroz na USP de 75 a 79. Moramos em Guarulhos até 98. Eu já aposentada do estado e meu marido só lecionando em São Paulo fomos morar na capital. Era mais tranquilo devido à distância percorrida todos os dias. Eu continuava a trabalhar na Universidade São Judas Tadeu e ele na PUC.

Lembrar e relatar os meus feitos e fatos durante o tempo vivido em Guarulhos como educadora não é tarefa fácil. São quarenta anos de atividades. Há nebulosidades e esquecimentos. Ambiguidades e incertezas. Não sou boa em síntese. O que

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tenho na minha cabeça é um conjunto de verdades particulares. Registros somente daqueles fatos marcantes vividos por mim com intensidade e emoção.

Interessante... Acredito que sempre fui professora. Saí de pais analfabetos. Vivi a realidade de povo simples e humilde sem luz elétrica, livros e rádios para preencher o cotidiano da infância. De repente deparei com toda uma vida cheia de luzes e sonhos nos livros. Agarrei com unhas e dentes durante a 1ª série do ginásio estadual que frequentava. Naquele ano devorei toda a biblioteca da Escola Estadual de Rancharia. Descobri com os livros que poderia fazer outras vidas felizes e cheias de imaginação e sonhos. Fiz o curso normal. Alfabetizei crianças. Me sentia transbordante quando via os olhinhos brilhantes dos alunos no momento da descoberta de que já podiam juntar sílabas formando palavras ou juntar palavras formando frases. Esta magia resplandecia com todo vigor em outubro de cada ano quando os alunos participavam da festa do primeiro livro...

A escolinha da Camargo Corrêa na Pedreira Reago foi grande mestra para mim. Crianças pobres, descalças, dedos e mãos encardidos pelo barro que amassavam nas olarias onde moravam e trabalhavam vinham aprender a ler e a escrever. Tínhamos salas de alunos de 1ª, 2ª e 3ª séries. Éramos três professoras contratadas para o serviço. Cada ano trocávamos as séries. Ali eu passava manhãs ou tardes convivendo com meus alunos e colegas como uma família. A comida eu e os alunos fazíamos e comíamos juntos. Brincávamos de roda cantando durante todo o intervalo. Não havia servente para limpeza. Eu e os alunos limpávamos aquilo que havíamos sujado todos os dias antes de sair. Quando necessário eu catava piolhos cortava

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unhas dava banho naquelas crianças que não tinham o hábito de fazer em casa até que aprendessem e fizessem sozinhos. As mães trabalhavam para a sobrevivência da família o dia todo e não tinham costume e nem tempo para os filhos.

Não posso me esquecer das emoções que vivia todos os anos no dia do professor. Voltava com a perua da firma que me transportava de casa para a escola carregada de flores colhidas no quintal ou no mato. De pequenas bugigangas feitas pelas mães e por outros presentes que hoje seriam considerados no mínimo esquisitos até mesmo ultrajantes. Eram diversos tipos de alimentos que as famílias consumiam em seu cotidiano: galinha, mandioca, abobrinha, cenouras, verduras... Cheguei até a ganhar um leitãozinho... Não me lembro de ter ganhado frutas que eram compradas e não faziam parte do regime alimentar destas crianças. Exatamente por isso pedimos ao gerente da firma a compra de bananas, laranjas e maçãs para enriquecer a merenda escolar. Me lembro também das duas festas anuais que preparávamos com carinho para a criançada: o dia da criança e o encerramento das aulas. Trazíamos bolos, lanches e doces de casa. Minha mãe gostava de fazer os bolos e preparar os lanches além de ajudar a servir. Ficávamos festejando o dia todo. Tanto no dia das crianças como no final do ano contávamos sempre com a presença de algumas mães e de pessoas importantes da diretoria da firma. Às vezes até com a presença do próprio dono.

Com estes alunos da Escola Camargo Corrêa aprendi que o dar é mais prazeroso que o receber. Foi também nesta escola que meus alunos pobres, matutos e caipiras conheceram o zoológico e o planetário. Assistiram a algumas peças infantis

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em São Paulo. Sebastião Camargo dono da firma e da escola enquanto vivo e gestor de seus bens no dia das crianças ou no fim do ano pessoalmente entregava presentes a todos. Comia, ria e colocava no colo alguns deles. Parecia um sujeito realizado e feliz...

Aprendi muito com minhas companheiras das quais gostaria de destacar minha madrinha de casamento: professora Olinda Amaral. Competente alfabetizadora e educadora compromissada. Só deixei a escolinha quando ela me deixou na mão. A firma entregou sua administração à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo passando a ser uma escola rural pública. A firma Camargo Corrêa enriqueceu e se tornou complexa. Os executivos acharam que a despesa em manter a escola apenas para descontar impostos não estava compensando mais. Daí o abandono e a entrega. Eles haviam por certo descoberto formas mais vantajosas de não pagar impostos devidos.

Fiz USP na década de 60. Fase de predominante crença na possibilidade de mudança feita pelo homem enquanto sujeito. Tínhamos enquanto jovens convicção e certeza de que o homem poderia mudar sua história.

Guarulhos nesta década era uma cidade quintal da capital paulista. Tudo de bom era buscado lá. Não tinha nada em termos de infraestrutura cultural e recreativa à grande população trabalhadora que vivia no município. Nem uma verdadeira biblioteca para seus leitores. Aquela existente em 64 e 65 fora resultado da servidora Áurea que junto com outras criaturas abnegadas fizeram a campanha. Doe livro para biblioteca! E

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conseguiram recolher um número razoável de exemplares que ficaram sob sua tutela como bibliotecária não formada claro. Instalada numa pequena sala na Rua Sete de Setembro. Alunos e interessados podiam ler e consultar livros nos horários estabelecidos. Precisávamos de uma verdadeira biblioteca e de um teatro. O município de Guarulhos já contava com uma população bastante numerosa.

Não posso deixar de mencionar uma das diferenças entre aquela época e a de hoje. Era que na década de 60 os grandes artistas de teatro, cinema e TV se disponibilizavam pessoal e gratuitamente com suas artes na colaboração daquilo que consideravam importante à população principalmente juvenil: a universalização de uma educação cultural. Gianfrancesco Guarnieri conhecido meu por ser marido de uma amiga minha na USP foi o que mais nos ajudou neste sentido. Veio com seu filme Eles não usam black-tie discutir com os alunos do colegial do Conselheiro. Apresentou e indicou o diretor Luís Sérgio Person para o bate-papo sobre o filme: São Paulo, Sociedade Anônima. Facilitou nossa chegada a outros diretores e artistas compromissados com o mesmo objetivo educacional. José Cunha já conhecido diretor de teatro graciosamente veio nos ajudar a organizar e ensaiar um grupo de universitários guarulhenses dispostos a formar um teatro amador nos idos de 69 e 70. Éramos pela pressão que fazíamos pichação e panfletagens respeitados por algumas autoridades do município. Fomos consultados até na escolha do tipo de cadeira que deveria compor o novíssimo salão teatral montado pelo prefeito Waldomiro Pompêo.

Inauguramos o Teatro Municipal de Guarulhos no mesmo prédio da Biblioteca Municipal com uma peça nordestina. Não

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me lembro do nome da peça e nem do autor. Era crítica aos costumes sociais e dela participaram jovens universitários meus conhecidos. Me lembro de: Antonio Carlos (Tietê), Maria do Carmo Cotrim, Ana Ida, Yannos, Guilherme Figueiredo e Irineu. Fazíamos os ensaios depois das aulas que ministrávamos. A maioria do grupo era professor de curso noturno dos nossos ginásios estaduais. Vínhamos de faculdades e cursos diferentes: USP, Mackenzie, PUC-SP e Mogi das Cruzes. Apresentávamos somente aos fins de semana. Principalmente nossas famílias e alunos nos acolheram muito bem. Chegamos até a apresentar um espetáculo na Faculdade de Machado (MG) onde amigos nossos frequentavam curso de Direito. Estávamos preparando uma peça coletiva para prosseguirmos na jornada quando fomos desestimulados pelos coronéis de Cumbica que proibiram nossa apresentação...

Iniciei minha vida de professora efetiva na EE Francisca Batista Trindade bairro do Macedo onde fui professora do primário. Depois trabalhei como professora de História no Ginásio Estadual de Vila Augusta bastante tempo. Funcionava no mesmo prédio do grupo escolar à noite. Depois ganhou prédio próprio na Vila Endres. É hoje a EE Érico Veríssimo em que fui auxiliar de direção e junto com professor José Fernando Bacan diretor da escola fomentei o jardim e a horta comunitária do prédio recém-construído. Os alunos tiveram condições de selecionar sementes, plantar e cultivar as mudas. Fizemos também uma exposição de enfeites de natal no final do ano.

Por acreditarmos no efeito da musicoterapia experimentamos utilizar compositores clássicos: Bach, Beethoven, Tchaikovsky, Strauss, etc. nos sinais e recreio para equilíbrio emocional do

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alunado. Toda a semana era a vez de um. Nas segundas-feiras se apresentava a biografia do compositor, principais obras e principais características culturais de sua época. Tivemos respostas bastante favoráveis. Nos intervalos desapareceram brigas e gritarias. As crianças se mantinham calmas e as brincadeiras eram tranquilas. Pena que tive que deixar a escola e não pude ver a continuidade do projeto.

Antes do Érico Veríssimo durante bastante tempo dei aulas de Sociologia e Antropologia no ensino médio do Conselheiro Crispiniano. Tanto nas turmas chamadas científicas como nas humanas. Cognomes que atendiam à continuidade de áreas de estudo nos cursos superiores preparando alunos para vencer no vestibular. Época em que excelentes professores junto com o Centro Acadêmico e o Clube de Cinema gerenciados pelos alunos do colegial faziam do Conselheiro Crispiniano escola diferenciada. Uma das melhores da região da Grande São Paulo.

Em 78 passei no concurso público de direção de escola do Estado de São Paulo. Estive pouco tempo no Vale do Ribeira como diretora da EEPG do Votupoca e voltei como assistente de ensino do 2º grau na DRE4-Norte. Foi ocupando ainda este cargo que tivemos a eleição democrática de Franco Montoro para governo do Estado de São Paulo. Com o objetivo de testar sua coerência ideológica que pensamos numa eleição para delegado de ensino. Corresponde atualmente à dirigente. Na época e até hoje este é um cargo de confiança indicado de preferência por políticos regionais. Havia boatos de que poderiam ser indicadas pessoas que durante o período militar foram colaboradoras e financiadoras da Operação Bandeirante que torturava presos políticos. Alguns até a morte. Professores

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que pertenciam a grupos de esquerda garantiram terem sido castigados na presença desses senhores. Constituiu motivo mais que suficiente para que fôssemos alguns professores, diretores e funcionários de nossas escolas estaduais lutar contra tais possíveis indicações.

Depois de pesquisas feitas por uma comissão organizadora da eleição para delegado da 1ª. DE ficaram apenas dois nomes: o meu e o de Nancy Calhes. Excelente supervisora de ensino. Acabei sendo eleita. Houve reação muito forte por parte dos poderes executivo e legislativo do estado. Principalmente de políticos do município. Com muita diplomacia e insistência uma comissão de professores de Guarulhos – líderes do magistério – negociou com Fernando Henrique que acabou aceitando minha indicação. Talvez o fato de eu ter sido sua aluna na USP tenha contribuído para a decisão.

Tive muita sorte de ter estado nesta época – de 83 a 87 – em função tão importante dentro do sistema de ensino público do Estado de São Paulo. Foram secretários da Educação do governo Montoro: Chopin Tavares de Lima, José Aristodemo Pinotti e Paulo Renato Souza. Na Cogesp – Coordenadoria de Ensino da Grande São Paulo – tínhamos como coordenadora a professora Cecília Guaraná. Sábia educadora que havia trabalhado no Colégio Vocacional. Aquele que teve talvez a maior e melhor experiência bem sucedida em um projeto pedagógico e educativo no Brasil. Todo o corpo de auxiliares e a coordenadora da Cogesp acreditavam como eu que professores compromissados com a educação se tornam capazes de mudar o rumo dela. Basta que tenham liberdade para criar e apoio para poder colocar em prática o desejado.

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Cecília Guaraná na Cogesp lançou um dos primeiros desafios às escolas da Grande São Paulo. A elaboração de um projeto: Reestruturação do Curso Noturno que desde aquela época apresentava uma série de falhas e insatisfações sentidas por alunos e professores na qualidade do ensino.

Tivemos por parte da Cogesp a aceitação de 12 escolas. A proposta exigia apenas uma por delegacia de ensino. Fizemos belíssimos trabalhos. Cada uma delas elaborou um projeto conforme aquilo que acreditava ser melhor para sua realidade escolar acompanhado por supervisores de ensino e assistentes técnicos que eram professores afastados da sala de aula a serviço na DE. Tivemos uma cobertura de orientação e estímulo por parte da Cogesp.

Vivíamos na ocasião preocupados com a integração escola-comunidade. Podemos afirmar que na 1ª DE a integração foi real. Pais, alunos, professores, funcionários e vizinhanças todos se voltaram para a educação de seus filhos e deram sua contribuição. Tivemos na época a mudança no Conselho de Escola que passava de órgão consultivo a deliberativo. Visitamos eu e minha assistente Izabel Arpa Gimeno todas as unidades escolares. Conversamos com pais e professores. Colhemos no Projeto do Curso Noturno importantes rendimentos: maior promoção, pouquíssima evasão e muita assiduidade. As 12 escolas umas mais e outras menos se tornaram na época o centro da comunidade onde estavam inseridas. Os resultados destes projetos estão (ou deveriam estar) na CENP – Coordenadoria de Ensino e Normas Pedagógicas – para onde foram encaminhados.

Como tínhamos o desejo de que houvesse a qualquer hora e

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a todos os momentos atividades prazerosas de aprendizagem fizemos a experiência de férias na escola. Escolhemos por solicitação e disposição da diretora Clyde Pompeo a EE Waldomiro Pompeo. O projeto elaborado conjuntamente pela equipe escolar, nossos assistentes técnicos e supervisores de ensino contava com cinco estágios ou dimensões diferentes conforme as peculiaridades da clientela.

O primeiro. Educação Infantil: de três a seis anos. Brincadeiras e lições.

O segundo. Enriquecendo o saber: de 1ª à 4ª série do fundamental. Contadores de história. Jogos com as quatro operações e tabuadas. Leituras de livros infantis. Desenhos, artes, músicas etc.

O terceiro. Aprendendo um ofício. Grupo do SENAC – Unidade Móvel – veio instalar cursos pré-profissionalizantes na escola durante o mês de julho. Período escolhido para o projeto. Tivemos cursos de cabeleireiro, manicure, datilografia, pintura em pano e artesanato. As inscrições foram abertas com antecedência para jovens maiores de 14 anos.

O quarto. Disputando esportes com sabedoria. Preparação de times inter-classes de futebol de salão, vôlei e basquete utilizando a quadra da escola. Disputas com torcidas organizadas.

O quinto. Palestra e discussão com pais e outros interessados do bairro. Tema: trabalho e leis trabalhistas no Brasil. Constituía em conhecer os direitos dos trabalhadores. Inserção no mercado e a preparação de mão de obra. Situação do mercado de trabalho no Brasil para formação de uma consciência cidadã. Convidamos

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dois advogados trabalhistas compromissados e competentes no assunto. Um deles José Carlos Marinho era marido da professora de Geografia do Conselheiro Crispiniano: Mariza Marinho. Além de advogado é autor infanto-juvenil de renome. Entre suas obras se destacam O Gênio do Crime e Sangue Fresco.

Professores voluntários e alunas do curso de Formação para o Magistério em nível de 2º grau ficaram com a parte pedagógica para os alunos de educação infantil e ensino fundamental. Ensinaram entre outras coisas a confeccionar pipas ou papagaios. Tivemos tardes de miradas ao céu para ver o melhor e o mais bonito papagaio do dia. Ofereceram aulas de dobraduras e contaram histórias. Houve uma exposição de artesanatos de alunos de 1ª à 4ª série no último final de semana de férias.

Tivemos dois sábados de espetáculo musical. Um com a Orquestra Municipal de Guarulhos oferecido pelo seu maestro oficial que infelizmente não lembro o nome. Outro com um conjunto de jovens músicos instrumentistas existente na Vila Galvão. Através de bate-papo ficamos sabendo que muitos pais pela primeira vez tiveram a oportunidade de ouvir e conhecer música clássica bem tocada no seu espaço social.

Nas cinco escolas de 2° grau onde havia magistério os alunos que participaram desse projeto e se prepararam para isso foram dispensados de parte do estágio supervisionado.

Outro projeto interessante que desenvolvemos foi o chamado VAPT: Feira de Valorização ao Trabalho. Das 102 escolas da 1ª DE uma grande maioria participou. Nosso objetivo inicial era conhecer todos os setores de atividades de trabalho. Setores econômicos existentes em Guarulhos. Cada escola discutia com

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a comunidade o que era setor econômico. A importância para o trabalhador e as possibilidades de emprego no município. Dividimos pelo mapa as ruas que cada uma iria pesquisar. Através de entrevistas, gráficos de material de propaganda de empresas, de estatísticas existentes sobre as modalidades de ofícios, remunerações, números de empregados etc. os alunos se preparariam para a exposição. Para complementar coube a cada unidade escolar preparar atividades artísticas à escolha de alunos e professores.

Tínhamos já organizado na DE um grupo de professores de Arte-Educação que se reunia sistematicamente para trocas de experiências. Me lembro muito bem de Ernesto Motooka, Solange, Nívea, Elzy que juntos com muitos outros acreditavam na arte como um dos principais elementos de desenvolvimento da personalidade humana.

Fácil foi então divulgar o projeto VAPT. Contando com a ajuda desta comissão de arte-educadores como se autodesignavam as escolas se prepararam para as duas apresentações: pesquisa coletada sobre setores econômicos em Guarulhos e atividades culturais. Esta comissão organizou o evento: estabeleceu horário, dias e uso das repartições do colégio escolhido.

Numa das semanas de setembro foram montadas as exposições do VAPT na EE Conselheiro Crispiniano que ficava aberta das 9h às 22h30min e dispõe de um auditório para 600 pessoas. Durante toda a semana o auditório funcionou de tarde e de noite.

Cada escola tinha seu dia, horário de visita e de apresentação.

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Mas não significava que seus alunos não pudessem participar dos eventos em outros dias. Participaram indústrias como a Yamaha, Phillips, Borlem etc. Lembro que no sábado eu e o professor Martinatti diretor do Conselheiro na época andando e conversando pelo corredor discutíamos sobre o perigo do acúmulo de tantas pessoas naquele segundo andar. Garanto que não tinha clareza quanto ao tamanho da entrada ou saída do ambiente. A rampa no Conselheiro era larga mas não sei se suficiente para facilitar a saída de muitas pessoas numa catástrofe. Todavia ficamos sossegados: o prédio fora erguido em época em que se acreditava na escola pública como capital humano.

Não se pode esquecer que tivemos educadores de muita capacidade: pessoas bem formadas e compromissadas com a educação. Em cada disciplina e em cada uma das 102 escolas pertencentes à 1ª. DE se destacavam educadores, verdadeiros líderes e intelectuais orgânicos segundo conceito de Antonio Gramsci. Obviamente tivemos também os reacionários ou conservadores avessos às mudanças.

Me lembro de uma das minhas primeiras reuniões com os diretores de escola. Coloquei na lousa uma frase de Paulo Freire do livro Pedagogia do Oprimido. Não me lembro qual. O diretor da EE Paulo Nogueira me perguntou de quem era. Eu respondi: Desculpe professor Aluisio me esqueci de colocar o nome do autor mas é Paulo Freire. Ele se virou e disse: É! Você não deixou de ser esquerdista mesmo! Citar um comunista para nós diretores de escolas estaduais... É um absurdo!... Respondi: Realmente continuo a mesma que ia à porta de sua escola avisar meus companheiros da greve. Estou aqui para tentar melhorar

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a educação brasileira. Ele foi saindo e eu atrás: Fique à vontade professor... Se não quiser assistir às reuniões pode deixar de comparecer. Não costumo obrigar ninguém a fazer algo que não deseja. Só sei que durante todo o tempo em que fiquei na DE somente a vice-diretora comparecia às reuniões pedagógicas.

Como ele professores, diretores, supervisores de ensino que na minha frente atendiam àquilo que deles era requerido por trás faziam tudo para solapar nosso trabalho. Ainda mais porque na época os diretores eram avaliados pelo delegado de ensino com cotas de muito bom (25%) de bom (50%) e de regular (25%) oficialmente divididas pela Secretaria de Educação conforme critérios que até hoje desconheço. Só sei que muito bom correspondia a uma nova referência salarial e dois bons também. Regular correspondia à reprovação e não havia acréscimo salarial. Devo registrar aqui que sempre fui contra este critério de premiação por achar injusto. Criava puxa-sacos e bajuladores. O chefe imediato julgava conforme sua opinião e critérios subjetivos. Além disso colocava na figura do avaliador dificuldades enormes para atribuir notas aos avaliados dado que a porcentagem vinda de cima nunca correspondia à necessidade real do número de pessoas... No meu caso contava com a participação dos supervisores de ensino que visitavam escolas regularmente e conviviam mais estreitamente com os diretores. Penso hoje que talvez eu fosse tida por muitos trabalhadores da DE como uma aventureira vanguardista irresponsável ou uma revolucionária que quisesse subverter o povo.

Tivemos outros projetos menores como o de Alfabetização orientado por um doutorando da Unicamp professor Sérgio Leite que visitava semanalmente duas escolas tidas como

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escolas-piloto. A educadora Maria Nilde Mascelane na EE Glauber Rocha colaborou na construção de um projeto sobre o patrono da escola: o cinema novo, os filmes brasileiros da época e as preocupações sociopolíticas e econômicas. É uma pena que nada ficou registrado.

Proporcionamos realmente aos professores e diretores de nossas escolas ocasiões de discussões e trocas de experiências através de palestras e bate-papos com os melhores intelectuais da educação do momento em São Paulo. Tivemos em Guarulhos a presença de Paulo Freire, Marilena Chauí, Cacilda Lanuza, Maria Nilde Mascelane, Guiomar Namo de Mello, Eva Blay e outros que abordaram educação e acontecimentos sociais e culturais. Com esta última personagem apontada Eva Blay aconteceu um desencontro: a intelectual da USP não veio no dia marcado por ter sido avisada de um cancelamento que não existiu. Reconhecendo nossos esforços veio em outra ocasião. Tivemos visitas de políticos como Fernando Henrique e José Serra. Houve um encontro destes na Faculdade Farias Brito contando com mais de 500 pessoas.

Pouco antes da reunião com Fernando Henrique houve duas outras com bastante participação de professoras e diretoras sobre gênero. Na época o assunto estava começando a ser discutido nas escolas. Cacilda Lanuza e Eva Blay estavam divulgando a Associação das Mulheres Paulistas da qual eram líderes. Fizeram palestras para nossas educadoras visando conscientizá-las de seus papéis de mulheres em busca de igualdade social no Brasil.

Tentamos criar ainda na ocasião um Fórum de Educação para o

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município de Guarulhos. Pensávamos que era chegada a hora de termos um espaço político permanente para que professores e diretores até pais pudessem discutir prioridades e necessidades da educação. Passos a serem dados por educadores, escolas e população em idade escolar. Contudo não houve interesse suficiente e a ideia morreu.

Participei de alguns movimentos da Igreja Católica no município em projetos socioeducativos por volta de 83 a 86. Preparamos aulas para crianças e jovens das escolas que optassem pelos temas da Campanha da Fraternidade. O casal Lurdinha e Hélio foram os principais professores especialistas na elaboração dos exercícios e textos. Escrevi para ilustrar esta campanha um livrinho de Literatura Infantil chamado Lilico, o rainho de sol. Tive como revisora a competente professora de Português Deucélia Adegas Pera da EE Francisco Antunes. Os alunos de 1ª à 5ª série liam e discutiam sobre as condições de pobreza e marginalização dos personagens. E depois faziam atividades variadas.

Participei também das discussões sobre iniciativas de atendimento e acolhimento de adolescentes que viviam no regime de liberdade assistida. Apoiei propostas que foram discutidas nas bases e incluídas no texto boneco que resultaria mais tarde no Estatuto da Criança e do Adolescente hoje parte da Constituição Brasileira.

No trabalho social da Igreja Católica aprendi muito com companheiros mais experientes no tratamento da população de Guarulhos. Cida assistente social e Elton Soares de Oliveira jovem colaborador dos movimentos sociais marcaram bastante

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minha vida principalmente pelo modelo de retidão. Ajudei também na igreja nos projetos para crianças e jovens carentes coordenados pelo padre canadense Raymond Roger Forget. Sábio sacerdote da Teologia da Libertação.

Padre Raymond e eu contávamos com a assistência da Caritas Diocesana local. Todos os projetos eram voltados aos menores em estado de risco e crianças iniciantes de delinquência. Recebíamos dinheiro vindo do Canadá e da Holanda. Criamos cinco padarias no Bairro dos Pimentas e adjacências. Uma marcenaria nas imediações do Bairro Bom Clima. Os jovens aprendizes de marceneiro e de padeiro aprendiam e faziam pães e móveis sob monitoria de pessoal qualificado. A Secretaria do Trabalho do Estado de São Paulo em que meu amigo Leôncio Homem de Mello era diretor forneceu verba para compra dos fornos de todas as padarias. Fiquei também com a tarefa de visitar as famílias dos garotos mais problemáticos. Conversar com os monitores além da contabilidade de todas as despesas e ganhos do projeto.

Houve um fato que me deixou muito preocupada. Depois bastante aliviada. Furtaram minha carteira num ônibus quando eu vinha de São Paulo para Guarulhos. Estava com um talão de cheques em que vários deles estavam assinados por Padre Raymond. Corri no Banespa que já estava fechado. Pedi ao meu primo Toni que era subgerente para sustar todo o talão. O que foi feito imediatamente. Mal sabiam que para validação dos cheques também era necessária minha assinatura. Só sei que tentaram descontar em Guarulhos e até em estados como Ceará e Rio Grande do Sul bastante distantes. Felizmente pela sustação não sofremos prejuízos...

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Na época em que estive como delegada na 1ª. DE não tivemos nenhuma propaganda ou notificação de nossos trabalhos por rádios, jornais ou outros meios de comunicação de massa. Penso que todos deviam estar atrelados às autoridades políticas do município que me viam como pessoa não grata nem desejada politicamente. Em duas das minhas férias tive que voltar correndo porque me avisaram do pedido de minha dispensa do cargo por deputado ou pelo prefeito do município. Ou os dois juntos. Sorte é que a drª Gilda assessora direta do Secretário de Educação dr. Pinotti compreendendo a política local e conhecendo o caso chamava a professora Sonia Mari Pires minha assistente política para providenciar recursos em favor de minha permanência. Foram os abaixo-assinados de diretores, professores e funcionários que contribuíram para as decisões favoráveis. Serviram nas duas vezes em que tentaram puxar meu tapete de uma boa justificava ao Secretário de Educação junto aos políticos exigentes para me manter no cargo.

Para finalizar minha longa narrativa devo acrescentar a elaboração de um projeto de formação para o magistério meu e de professora Izabel Gonçalves Arpa Gimeno com auxílio de alguns professores do Conselheiro Crispiniano. Procuramos atender a uma nova legislação que determinava aos empregadores e às repartições públicas do Estado de São Paulo com um número considerável de funcionários a necessidade de criar ou pagar uma creche para os filhos dos mesmos. Para ser exata: funcionárias. Nossa DE tinha um número maior de funcionárias do que o mínimo exigido por lei. Há muito sonhávamos com uma escola modelo que atendesse crianças de zero a 10 anos em continuidade num novo processo de ensino-

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aprendizagem e que se preocupasse com a formação de seus professores a partir da práxis.

Numa ação conjunta de teoria e prática os alunos do magistério aprenderiam durante quatro horas a teoria. E trabalhariam sob a supervisão de especialistas graduados de diferentes formações e currículos nas outras quatro horas como monitores-professores de crianças da educação infantil de zero a seis anos e do ensino fundamental de 1ª. à 4ª. série. Como era um projeto especial para jovens de famílias de baixa renda por este período de oito horas diárias seriam remunerados mensalmente. Estaríamos verdadeiramente vivenciando os processos de aprender ensinando e ensinar aprendendo.

Ainda em processo de elaboração esta iniciativa chegou ao conhecimento do Secretario de Educação dr. Pinotti que nos chamou para uma conversa e aprovou-a em nossa frente. Recebemos parte da verba para construção da creche. Alugamos uma chácara e demos o nome de Carolina Bispo professora e autora do Hino de Guarulhos. Ganhamos o projeto de reforma do local de uma jovem arquiteta sobrinha da nossa amiga professora Nívea Raquel de Figueiredo Brasil. Íamos eu e Izabel dia sim dia não acompanhar a reforma da casa. Tínhamos determinado o espaço verde: horta e quintal. O espaço de brinquedo, berçário, salas de aulas, banheiros para crianças de educação infantil e para as do ensino básico. Laboratórios necessários. Salas de professores e direção. Tipo e tamanho da cozinha etc. Enfim estava quase pronto para se tornar realidade quando dr. Pinotti foi substituído por dr. Paulo Renato.

O projeto foi levado para a CENP que o dividiu em partes e o

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descaracterizou. O mais importante era o trabalho integrado. A justificativa era muito gasto para algo incerto e não correspondia à concepção de educação que pretendiam implantar na rede paulista. O CEFAM projeto educacional imediatamente colocado por Paulo Renato para a formação do magistério de 2º. grau foi formulado com alguns objetivos, procedimentos, estratégias, metodologias, metas etc. quase como reprodução daquilo que havíamos elaborado...

A reforma da chácara não foi concluída obviamente. Tornou por ter sido já alugada por pouco tempo o local de uma creche igual à outra qualquer existente no Estado de São Paulo.

Me aposentei com a saída de Franco Montoro do governo porque a 1ª. DE já estava indicada para alguém apadrinhado. Eu era supervisora efetiva. Talvez receando de que eu pudesse mobilizar professores e diretores em prol da minha permanência como delegada de ensino a Secretaria de Educação primeiro me ofereceu o papel de técnica para trabalhar em duas grandes cidades do Estado de São Paulo. Bases políticas do novo secretário com a finalidade de desenvolver projetos educativos com grêmios estudantis de acordo com o modelo que investimos nas escolas da 1ª. DE. Realmente tivemos grande sucesso com nossos grêmios graças aos nossos educadores mas principalmente pela participação do jovem vereador Gilmar Lopes que sempre colaborou com nossas atividades voltadas à juventude guarulhense. Depois como eu não aceitei a oferta do novo trabalho se apressou a publicação da minha aposentadoria que saiu num tempo recorde de uma semana depois do pedido.

São Paulo, 30 de junho de 2012.

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Professora Neuza Dalaqua

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Sou professora Neuza Dalaqua. Nasci em 22 de abril de 1941 na cidade de Manduri. Filha de Jerônimo Antônio Dalaqua e Angela Giberni Dalaqua. Ambos falecidos. Meu pai nascido em Botucatu no dia 15 de agosto de 1910 morreu em Assis no dia 14 de julho de 1969. Minha mãe nascida em 24 de julho de 1914 na cidade de Itatinga veio a falecer em São Paulo no dia 11 de fevereiro de 1966. O casamento deles se deu no ano de 1933.

Manduri fica no interior do Estado de São Paulo na região sorocabana. Na época de minha infância uma cidadezinha com duas ruas principais de areia sem calçamento e sem asfalto cortada ao meio pela Estrada de Ferro Sorocabana. Zona rural cujos habitantes em geral se constituíam de agricultores. Tinha fazendeiros e sitiantes. Os demais faziam agricultura de subsistência e criação de animais domésticos. A maioria dos habitantes era imigrante. Italianos e espanhóis. Duas famílias árabes: uma de comerciantes cuja matriarca se chamava Dora. Poucos mulatos e um só homem negro chamado Gestor que era ajudante de caminhão e trabalhava com meu tio. Maior número era de brancos mesmo e o padre italiano.

Meus pais tiveram sete filhos nascidos em Manduri. A mais nova nasceu em Assis e se totalizaram oito filhos. Todos criados o que foi uma bênção numa época de partos feitos com parteiras em casa. Minha bisavó Catarina Rigon Giberni era parteira. Naquela região inexplorada todos a chamavam. Quando chegava a hora alguém da família vinha buscá-la. Geralmente a distância era longa de um sítio a outro. Às vezes ia e vinha por vários dias na incerteza até a criança nascer. Ia e vinha quantas vezes fossem necessárias. Ao sair de casa ia ao terreiro e pegava uma galinha bem gorda. Levava para fazer canja à mãe após

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o nascimento da criança. Era para restabelecer as forças. Nada se cobrava. Nem o parto nem a galinha. Tudo por amizade e camaradagem. Todos eram solidários. A mulher de dieta por quarenta dias poderia tomar diariamente um cálice de vinho português do Porto se a família tivesse condição. Ou um vinho reconstituinte. Tinha nas farmácias o vinho Reconstituinte Silva Araújo.

Meus bisavós vieram para o Brasil nos finais do século XIX na iminência da libertação dos escravos. Aportaram no Rio de Janeiro e de lá vieram em outro navio para São Paulo via porto de Santos. A família de minha mãe da parte italiana do avô Domingos Giberni foi até Buenos Aires e resolveu voltar para o Brasil. Quando estes meus ancestrais aqui desembarcaram no restaurante ficaram abismados com o prato de queijo ralado. Qual foi a decepção ao levar à boca. Não era queijo ralado. Era farinha de pau ou seja farinha de mandioca.

A família de minha avó materna Prado Lopes era espanhola. Ela nasceu no navio quando este entrava na Baía de Guanabara. Na Espanha todos eram professores ou advogados e tinham dinheiro. Voltaram para a terra natal a fim de batizar a menina que se chamou Antônia Prado Lopes. Não conheciam ninguém aqui. Lógico que os herdeiros dos Prado de Madrid não vieram para serem agricultores. Trouxeram a herança de direito para aplicá-la no Brasil. Vejam o destino! Batizada a filha retornaram e a fortuna foi roubada no navio. Desvalidos foram para a zona rural serem agricultores como todos os outros imigrantes.

Digno de nota é que todos indistintamente homens e mulheres eram alfabetizados na língua natal. Chegaram a uma terra onde

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a maioria era analfabeta. A minha avó paterna Lúcia Mioto Dalaqua tinha por costume após levar o almoço na roça que era às 10 da manhã se sentar na escada da porta da cozinha e sob a luz forte do sol ler livros das vidas dos santos. Em italiano óbvio. Estes livros foram trazidos por eles no navio.

Os italianos e demais imigrantes que vinham para São Paulo eram alojados em uma pensão do governo no Brás que hoje se tornou o Museu do Imigrante. De lá se dirigiam para o interior do estado depois de contratados para serviços de agricultura. Segundo informação de Norberto do Rosário genro português de meu avô paterno hoje falecido as famílias se dirigiam para Sorocaba em cima de carros-de-boi com todos os seus pertences. Este trajeto era feito em três meses de viagem. Mais tarde ao ouvir o ranger das rodas de carros-de-boi as mulheres choravam. Choravam na viagem e choravam ao recordá-la.

Não tinha estradas largas. Somente picadas onde passavam tropas de burros carregadas levando mercadorias nos dois sentidos: interior-capital e capital-interior.

Ao entardecer a caravana de imigrantes parava à beira de um riacho. Faziam suas refeições. Descansavam e se lavavam. Às quatro horas da manhã seguiam viagem.

Acabaram adentrando mais para o interior ou seja: Avaré, Botucatu, Cerqueira César, Itatinga, São Manuel etc. em busca de serviço. Mais tarde seguiram para o norte do Paraná procurando novas terras para o plantio do café.

Na região de Manduri não havia grandes fazendas no final do século XIX. Não houve portando trabalho escravo. Meu avô

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Gerolomo Dalaqua ali comprou um sítio em 1913 chamado Sítio do Matão para desbravar as matas e plantar café. As famílias tinham que ter muitos filhos para tocar as terras. Meu pai Jerônimo o caçula que minha nona chamava mio garofano/meu cravo não era muito afeito ao trabalho da roça. Foi o primeiro a se mudar para a cidade. Como sabia dirigir preferiu ser motorista. Na época começaram as vendas de carros e caminhões no interior. Como filho de fazendeiro ele comprou o seu caminhão para trabalhar por conta própria.

O vecchio como era chamado meu nono prosperou bastante. Transformou o sítio em fazenda de café. Plantava também fumo e comercializava na cidade. Tinha plantação de cana-de-açúcar e com uma grande moenda com dois varões puxados por animais fazia açúcar mascavo para vender na cidadezinha. Tinha um chiqueirão de porcos e também criava gado bovino e equino. Nessa época ele andava a cavalo e também tinha uma charrete para ir à cidade. Um luxo só. No domingo todos iam à missa e depois às compras necessárias para o sítio. Com o seu trabalho meu avô se tornou um homem rico e em vida doou um sítio para cada filho: seis no total.

Lembro que meu nono assinava o jornal da capital para acompanhar o preço do café. Nunca mais voltou à Itália. Era um homem que apesar de viver na zona rural tinha visão do progresso. Colocou uma bomba d’água manual no poço e a água era levada para a pia da cozinha. Naquela época a nona Lúcia tinha água encanada na cozinha. Nem na cidade havia isso. Todos a puxavam do poço com sarilho ou carretilha e balde. Ou iam buscar na torneira da Estrada de Ferro Sorocabana. A estação precisava de água para as caldeiras dos trens a vapor.

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Depois da morte de meu avô em 53 os herdeiros venderam as terras. Apenas um neto conservou as suas até hoje. Meu pai vendeu sua herança e o sítio. Nunca mais quis voltar para roça.

Quando todos moravam no sítio ficaram completamente abandonados pelo poder público. Não tinha médicos muito menos hospital e somente existia uma farmácia. Não tinha escola e muito menos professor na zona rural. Eles aprenderam a língua através da convivência. Acabaram misturando espanhol, italiano, caipira e se entendiam.

Na idade certa meu avô materno Domingos Giberni começou a ensinar aos filhos e moços da região as primeiras letras e as primeiras operações: somar, dividir, diminuir e multiplicar. Numa mistura de italiano, espanhol e caipira. Depois de um dia de serviço na roça as aulas eram ministradas em casa à luz de lamparinas, lampiões e velas. Só os rapazes podiam aprender. As moças não. Era perigoso. Poderiam fazer mau uso da linguagem e mandar cartas para namorados o que se proibia. As três filhas do professor ficaram analfabetas. Quando dava a hora da aula se recolhiam ao quarto. Na década de 50 o avô confessou a minha mãe que se arrependera por não tê-la ensinado. Ela frequentava o curso de alfabetização de adultos à noite em Assis onde já morávamos. Os tempos mudavam e a mentalidade antiga também.

As meninas mais velhas cuidavam dos irmãozinhos mais novos. Certo dia minha mãe estava com a irmãzinha no colo e brincando... A nenê bateu com a mãozinha em seu rosto com as unhas não aparadas rompeu a película externa do olho. Ela ficou cega e foi tratada somente com colírio. Lavolho. Se lá não existia médico imagine oculista.

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Em Manduri não tínhamos dinheiro. Tínhamos fartura. Só comprávamos sal e óleo para salada. Cozinhávamos com gordura de porco que era castrado e se chamava capado. A cada três meses se matava um para o abastecimento. Comprávamos também remédios e roupas. Toda alimentação vinha do sítio: leite, arroz, feijão, café, mandioca, batata doce, milho verde e milho seco para criar galinhas e leitões etc. Com a criação de galinhas tínhamos fartura de ovos e minha mãe também criava pato e cabrito para o Natal. Fazia horta e as frutas vinham do sítio.

Na maior parte do tempo as crianças andavam descalças. Podiam brincar nas ruas. Não havia perigo. Os carros eram pouquíssimos. Assim como carroças, charretes e cavalos. Fomos criados ao ar livre em uma região de muito verde e dois pequenos rios. As mulheres lavavam roupa em um deles. Nós acompanhávamos e aproveitávamos para brincar na água que chegava a cobrir nossos pezinhos. Eu tinha na época mais ou menos seis anos. Toda criança tinha um par de sapatinhos para ir à missa aos domingos e frequentar a escola durante a semana.

Quando mudamos para Assis em 51 tudo mudou. Todas as crianças já eram adolescentes ou quase. No ano da mudança nasceu a caçula. Ninguém trabalhava. E junto conosco veio o irmão mais novo de minha mãe que era mocinho como meu irmão mais velho.

Meu pai se tornou esteio absoluto da família. Não tínhamos mais de onde tirar o que vinha das três fontes: fazenda do nono, sítio do avô e sítio de meu pai. Passamos da grande fartura para uma vida regrada com muita necessidade. O pai

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passava de 15 a 20 dias por mês fora de casa viajando com os caminhoneiros de Manduri. Ele resolveu a mudança para Assis porque a cidade era ponto de passagem obrigatório da rota Paraná – Rio de Janeiro. Tinha um bar na Vila Xavier chamado Bar dos Motoristas que era ponto de encontro de todos. Eles seguiam em comboio levando principalmente madeira e café. Do Paraná meu pai trazia sacos de 60 kg de laranja, mamão verde e abóbora para fazer doce... Em suas longas viagens ele percorria a Via Dutra que era de terra. Na época das chuvas se passavam correntes em todos os pneus para os caminhões não atolarem na lama. Vida difícil!

A mudança para Assis me foi favorável. Lá havia dois grupos escolares do governo. O grupinho: Grupo Escolar Lucas Thomaz Menke. E o grupão: Grupo Escolar Dr. João Mendes Júnior. Um Instituto de Educação com ginásio e colégio. O colégio com três cursos diferenciados. Normal: formação de professor primário. Clássico: formação nas humanidades. Científico: formação nas exatas. Tinha também duas escolas confessionais. Colégio Santa Maria das Freiras para meninas. Colégio Claretiano dos padres para meninos. No grupão cursei os 3º e 4º anos primários. Fiz exame de admissão. Exigência na época para acesso ao ginásio. Acabei cursando os 1º e 2º anos do ginásio no colégio das freiras e os 3º e 4º anos no Instituto de Educação de Assis que era estadual e gratuito. Em seguida no mesmo instituto cursei o normal.

Como se fosse natural continuei os estudos e fiz o curso de História na FFCLA. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis. Na época extensão da USP. Hoje UNESP. Fui da primeira turma e nossa classe se compunha de 13 alunos.

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Disse como se fosse natural continuar os estudos é que meus irmãos mais velhos e eu era a sexta não continuaram. Tirar o diploma do primário foi o máximo numa cidadezinha como Manduri que não oferecia mais opções. Todos paravam por aí. Quem não ia para roça buscava outras profissões da época. Os jovens procuravam ser aprendiz de alfaiate, seleiro, carroceiro, funileiro, mecânico. Ou se tornavam trabalhadores em máquina de beneficiar café e arroz. Ou em fábrica de farinha de mandioca. As meninas aprendiam a costurar, bordar, fazer tricô, crochê, serviços domésticos etc. Inclusive criar animais e cultivar horta e jardim.

Fiz o curso superior de 63 a 66. Antes de terminar minha mãe faleceu e três anos depois faleceu meu pai. O curso normal preparava para ensinar crianças do primário. Hoje 1ª à 4ª série do ensino fundamental. Não dava suporte para o ensino superior. Foi difícil não saber línguas. Se ao menos eu tivesse feito o clássico como minhas colegas teria aprendido espanhol, francês e inglês. Além de ter aprendido um português mais aprimorado. Imprescindível. Procurei cursar o normal porque precisava trabalhar urgentemente. Lecionei no primário por apenas quinze dias como substituta e deixei.

No último ano de faculdade fui trabalhar. Não teve jeito. Comecei lecionando em Maracaí. Uma pequena cidade perto de Assis voltada para agricultura onde tinha uma colônia de alemães. Todos vinham para a cidade estudar. Lecionava Educação Física. Havia falta de professor licenciado nesta matéria. Eu como normalista que tivera algum preparo estava habilitada. No ano seguinte em 67 me inscrevi e fiquei com as aulas de História. Lecionei História também na Escola Comercial de

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Assis que era particular. Conhecida como a escola do professor Antoninho.

Prestei concurso público de provas e títulos em julho de 70. Ingressei como professora efetiva de História em São Paulo na EE Silva Jardim no Tucuruvi. No interior onde eu morava não havia vagas.

Como na época o estado demorava seis meses para preparar a papelada do professor que se efetivava também demorava esse tempo para pagar vim morar em Guarulhos na Ponte Grande em casa de tio Orlando Giberni. O mesmo que mudou conosco nos anos 50 para Assis. Morava também em Guarulhos tio Norberto Rosário que já citei por ter me revelado muitas passagens da família.

Fiquei também só seis meses no Silva Jardim e me removi em 71 para o 2º Ginásio Estadual de Guarulhos que funcionava na Vila Augusta no mesmo prédio do Grupo Escolar João Crispiniano Soares. O diretor era o professor Milton Ziller. Regulada minha situação funcional comecei a receber. Aluguei uma casa na Ponte Grande. Paguei aluguel por 10 anos até que consegui empréstimo do estado através do IPESP e comprei minha casa. Em 75 comprei um fusca de segunda mão. Em 80 foi a vez da casa financiada em 19 anos. Na época se brincava que o professor era um indivíduo que tinha um relógio Seiko, um fusca e uma casa financiada pelo BNH. No meu caso IPESP.

Minha irmã caçula Cleusa Dalaqua terminou o normal no interior e veio morar comigo. Ela fez Matemática na FIG (Faculdades Integradas de Guarulhos) e passou a lecionar das 5ªs séries em diante em nossas escolas públicas. Em 1978 se

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casou com o professor José Aparecido de Oliveira.

Tínhamos casa própria em Assis. Minha irmã Judith e os filhos ficaram morando lá. Assim que os filhos cresceram e terminaram o colegial vieram morar comigo para trabalhar e fazer faculdade. As duas sobrinhas: Nilsia Aparecida França e Judith Thereza França estudaram na FIG. O sobrinho Vanderlei França fez advocacia na Faculdade de Direito da Vila Rosália.

Em 80 quando comprei a casa até Judith minha irmã veio morar comigo. Ela como enfermeira prática foi trabalhar no Hospital Pio XII na Vila São Jorge. Hoje Hospital da UNIMED.

De todos os meus sobrinhos somente duas seguiram a carreira de professor. Nilsia que se efetivou como professora de Geografia no estado aqui em Guarulhos. Adriana Delaqua que estudou em Marília se tornou professora de DM (deficientes mentais) e se efetivou pelo estado de Santa Catarina em Joinville prestando serviços junto à APAE. Ninguém mais quis ser professor. Como dizia o governador Ademar de Barros é uma profissão que exige diploma e se ganha pouco. Judith Thereza prestou concurso federal no INSS e passou. Os outros sobrinhos seguiram carreiras de advogado, médico, pesquisador etc.

Fiz Pedagogia na UnG. Tinha intenção de prestar concurso para diretor de escola. O que acabou acontecendo.

Em 76 fui convidada para ser assistente de direção da EEPSG do Jardim Tranquilidade que naquela época funcionava no mesmo prédio do grupo escolar. Já era a transição direcionada pela LDB 5692/71. Ali havia cinco períodos. Os três primeiros do grupo escolar e os dois últimos do ginásio e colégio. Cada

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qual tinha sua estrutura administrativa: professores efetivos ou contratados e diretores efetivos. PI professor primário nível médio. PIII professor secundário nível universitário. Eu já havia substituído diretor no Vila Augusta no início da década e tinha alguma experiência.

Da Tranquilidade a escola se mudou para prédio próprio no Jardim Vila Galvão e passou a se chamar EEPSG Prof. Fábio Fanucchi. Hoje simplesmente EE Prof. Fábio Fanucchi. O diretor era Ernesto Paltrinieri Neto. Diretor efetivo e advogado.

Como professora me removi para o Conselheiro Crispiniano saindo do antigo Vila Augusta que já era a EEPSG Érico Veríssimo e se mudara para a Vila Endres. Nunca trabalhei no Conselheiro. Continuei assistente de direção no Fábio Fanucchi.

Novamente prestei concurso de provas e títulos para PIII de História e fui aprovada. Pude acumular o cargo com assistente de direção e escolhi a EE Johann Gutenberg em São Paulo.

Em 80 quando passei no concurso para diretor de escola escolhi a EE Prof. Cid Augusto Guelli na Vila Any em Guarulhos. Como professora me removi para a EE Dom Paulo Rolim Loureiro na Ponte Grande perto de minha casa.

Na EE Profª. Alice Chuery que fica na Vila São Jorge cheguei em 81 como diretora e lá me aposentei em 91. No Dom Paulo em 2004 encerrei minha carreira na educação formal após 38 anos de dedicação às crianças e aos adolescentes.

Quando acumulava cargo sofri muito no trânsito. Trânsito caótico e infernal. Para ir ao Johann Gutenberg eu dirigia na

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Fernão Dias. Estrada antiga que hoje melhorou muito. Para ir do Alice Chuery ao Dom Paulo pela Avenida Guarulhos entre 17h30min e 18h pegava trânsito congestionado e cheguei a ficar parada por duas horas. Muitas vezes não dei a primeira aula. Era uma estupidez! Não havia semáforo em frente à Vigoritto no cruzamento com a Rua Carlos Ferreira Endress. Ali era uma avalanche de carros, ônibus e caminhões embolados. Hoje há sinalização mas falta alargar a avenida.

Durante o período de formação e trabalho como professora fiz três viagens internacionais pela América do Sul. O que é necessário para estudo e alargamento de visão em contato com o outro. Na faculdade de Assis fizemos uma viagem de Intercâmbio Cultural ao Paraguai coordenada pelos professores Virgílio Noya Pinto e Manoel Lelo Bellotto. Visitamos as missões jesuíticas e a igreja de Yaguarón. Barroco do século XVIII. Visitamos os povoados indígenas e compramos rendas de nhanduti. Arte das índias que se tornou artesanato paraguaio. Conhecemos o lago de Ipacaraí rodeado de mansões. Ficamos alojados no centro de recrutamento militar. O Paraguai vivia a ditadura e nas ruas havia muita pobreza. O povo de lá fala duas línguas: espanhol e guarani. Ficaram admirados ao saber que nós brasileiros só falamos o português e não falamos o guarani. Afinal nossa língua nativa.

Em 94 fiz parte das Equipes Docentes. Um grupo que reúne e promove encontros de professores de toda América Latina para discutir e estudar problemas que envolvem o ensino público gratuito nesta região. Na época era dirigido e orientado pelo padre francês Juan Dumont. O grupo de Guarulhos tinha a orientação da professora Izabel Gonçalves Arpa Gimeno.

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Neste mesmo ano fomos ao Chile. Ficamos alojados a preços módicos em um convento de freiras. Havia estrutura necessária para os encontros. Na primeira semana fizemos seminário para tomarmos conhecimento e nos aprofundarmos nos problemas e possíveis soluções. Quantos problemas levantados e infelizmente nenhum resolvido!

Após a semana de estudos fizemos excursão pelo Chile indo até o sul do país e nos fartamos de frutas. Dali fomos para a Argentina. Atravessando de barco os lagos limítrofes entre os dois países chegamos à Bariloche e pudemos conhecer as famosas montanhas dos esportes radicais. Pela primeira vez peguei nas mãos as pedrinhas de gelo que se formam no alto das serranias. Conhecemos Buenos Aires e finalizamos a excursão no Uruguai.

De Santiago do Chile fomos de ônibus para Mendoza. Terra dos vinhos onde pousamos por uma noite e voltamos para seguir viagem. O guia nos levou à loja de fábrica de lápis-lazúli. No mundo só há dois lugares principais de extração desse tipo de rocha: Afeganistão e Chile. Não é necessário dizer que suas joias são caríssimas. Na antiguidade somente os faraós do Egito se adornavam com elas.

Em cada país visitado degustamos pratos típicos e assistimos a apresentações de danças e teatros folclóricos. Visitamos museus e tomamos conhecimento das histórias locais. Na Argentina, Chile e Uruguai predomina a cultura europeizada.

Em 98 novamente com o grupo Equipes Docentes para América Latina fui para a Bolívia. O encontro se deu na cidade de Cochabamba. O povo boliviano é formado de grupos indígenas

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puros com pouquíssima miscigenação como no Paraguai. Falam o espanhol e o quíchua. Línguas oficiais. E o aimará é falado por população menor. Os grupos indígenas dominantes são reconhecíveis nas ruas pelas vestimentas e costumes. Vimos uma sociedade muito pobre onde no mercado as mercadorias eram expostas em pano no chão e as mulheres vendedoras igualmente ficavam sentadas ao lado. A maioria desse povo descendente dos primeiros habitantes da América se concentra nos chamados pueblos na zona rural.

Na Bolívia conhecemos o grão chamado quinoa ainda naquela época não divulgado no Brasil e que hoje virou moda. Os professores-guia do encontro nos informaram que as crianças bolivianas não eram desnutridas devido ao consumo desse rico produto agrícola como base alimentar. Faziam suco para se tomar de manhã assim como cozidos e farináceos. Na Bolívia quanto no Paraguai conhecemos um salgadinho chamado taco muito gostoso. Hoje com a vinda de muitos bolivianos para o Brasil se tornou comum aqui também. É feito de farinha de mandioca e fica crocante. Equivale ao nosso pão de queijo. Vai bem a qualquer hora.

Ainda tivemos uma verdadeira aula de arqueologia. Visitamos todos ou quase todos os lugares históricos do povo Inca. Construções de pedras, templos e cidades milenares: Cuzco e Machu Picchu no Peru. Viajamos pelo lago Titicaca o mais alto do mundo de água doce acima do nível do mar localizado no altiplano dos Andes entre Bolívia e Peru. Bolívia é pobre também em rios de água doce e o que nela mais existem são as correntezas oriundas do degelo dos Andes. As poucas nascentes valorizadas pelos incas eram guardadas como lugar

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sagrado. Atravessamos o lago num barco chamado Cataramã e levamos horas para atravessar. Almoçamos nele e chegamos ao porto ainda do lado boliviano onde nos foi oportuno visitar o Santuário de Nossa Senhora de Copacabana. Interessante. Copacabana é uma palavra de origem indígena daquela região que um devoto brasileiro trouxe para o Brasil dando o nome à famosa praia carioca e ao bairro.

Conhecemos a lhama e a vicunha. Animais de que se extrai o pelo para tecer roupas. No Peru ficamos pouco tempo. O suficiente para conhecer os mercados com lojas ricas em artesanatos. Roupas como poncho (poncho no quíchua e ponche no guarani) de lhama e pelerine de vicunha. Outras roupas mais simples também tecidas à mão. Joias de prata e pedras semipreciosas. Uma festa para os turistas. Na Bolívia em Cochabamba no mercado central comprei todos os CDs indígenas que pude. Não consegui ouvi-los na hora por causa da correria para ver tudo.

Estes encontros de estudos eram de quatro em quatro anos no exterior e de dois em dois anos no Brasil. Toda a despesa corria por conta do participante.

Pude ir com as equipes para Fortaleza capital do Ceará quando lá se deu o encontro. Durante o evento ficamos alojados em convento de freiras católicas a preços módicos. O restante da excursão saiu a preços normais e começamos pelo Maranhão em São Luís e praias. Em seguida fomos para Manaus com direito a apreciar o encontro das águas do Rio Negro com o Rio Amazonas. Com guia particular fomos conhecer o arquipélago das Anavilhanas o segundo arquipélago fluvial do mundo situado no Rio Negro dentro da Floresta Amazônica.

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Conhecemos igualmente o hotel no meio da mata cujos troncos das árvores apresentavam as marcas das enchentes anuais a 20 metros de altura.

São viagens enriquecedoras. Há estudos e após os estudos uma oportunidade de conhecer lugares que os ilustram.

Ainda quando estava em atividade no magistério participei de vários encontros nacionais de professores de História. Em 67 houve um encontro em Porto Alegre. Houve outro em cidade no interior de São Paulo. Não me lembro de qual nem sei precisamente a data porque fiquei sem comprovante. De volta desci em São Paulo e tive que esperar um dia inteiro para embarcar para Assis. A cidade estava movimentadíssima com desfile militar no auge da ditadura. Mais tarde já residindo por aqui participei de outro em 92 na USP.

Quase todos os cursos de História ministrados pela FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação autarquia da SE do Estado de São Paulo) frequentei. Professores de História eram convidados e eu me inscrevia. De outros eu ficava sabendo e me inscrevia também. Os certificados valiam pontos no início do ano para classificação na escolha das aulas. Além de render progressão na carreira.

No IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) cuja sede fica na USP embora seja um órgão cultural independente dela fiz um curso de férias. Ministrado pelo professor doutor Antônio Dimas de Língua Portuguesa. Tive a grata satisfação de conhecer o bibliófilo José Mindlin que veio participar e nos ilustrar. Não esperávamos. Professor Antônio Dimas nos brindou com a presença desse homem que tanto amou os livros e deixou para a

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USP sua biblioteca de riqueza incalculável. Obras inestimáveis da cultura brasileira e de outros conhecimentos humanos...

Assim trabalhando e constantemente me aprimorando terminei minha carreira no Magistério Público Estadual. Logo que me aposentei fui procurar novo rumo à minha vida. Eu já era voluntária em centro espírita. Arrecadava brinquedos, livros, mantimentos, roupas etc. para obras de caridade. Quando as pessoas tinham simpatia pela causa espírita doavam para o centro ou então me avisavam é para a creche. A creche era da Paróquia São Geraldo na Ponte Grande que mantinha creche e orfanato. Eu lógico distribuía de acordo com o pedido do doador. Todos à sua maneira estavam fazendo a sua parte para o bem. Tive ajuda de amigos parentes professores e vizinhos aos quais sou bastante agradecida. Tinham imenso prazer em doar para minimizar o sofrimento dos mais necessitados.

Minha primeira atividade de aposentada foi pintar telas sob orientação da professora de Educação Física do Dom Paulo: Sônia Mastrângelo. Excelente pintora. Depois ela se mudou para Uberaba e eu fui morar em São Paulo capital. Lá entrei no curso pintura em tela do CPP (Centro do Professorado Paulista) e continuo até hoje.

Fui para a Federação Espírita do Estado de São Paulo fazer curso de artesanato e acabei voluntária para coordenar esta sala por três dias da semana. Estou inscrita no curso avançado de computação para o segundo semestre de 2013... Também farei o curso de bordado. Coisa que nunca pensei!

Além de ter toda a semana tomada de atividades fora de casa leio um jornal por dia. À noite assisto ao noticiário televisivo

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em quatro canais diferentes. Vou às exposições do MASP do Ibirapuera e da Caixa Cultural. Ultimamente não tenho saído à noite para ir a teatro ou cinema. Temo sofrer agressões na rua. Nunca pensei que São Paulo seria refém do banditismo. Eu que nunca tive medo fui roubada duas vezes. Levaram todos os meus documentos e dinheiro em plena luz do dia. A delegada de polícia me perguntou: A senhora percebeu ao ser roubada? E respondi: Não! Ela retrucou: Então o ladrão deve ter saído do bueiro. Eu como sou espírita pensei uma alma penada! E respondi: Só se for. Usam cada artimanha!... Estamos prisioneiros do medo na maior cidade do país...

Encerro recomendando aos descendentes de imigrantes o site do arquivo do estado com toda documentação de quem veio para o Brasil nos séculos: XIX e XX:

www.arquivoestado.sp.gov.br/imigracao

São Paulo, 25 de junho de 2013.

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Professora Nilza Gomes de Oliveira

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Nasci em 24 de novembro de 1940 na fazenda Pirajuí noroeste paulista. Hoje cidade de Pirajuí. Sou caçula de seis irmãos. A mais velha não conheci. Dois já faleceram e só restam três contando comigo.

Minha irmã mais velha. Alice. Nasceu no tempo da revolução e havia escassez de leite. Minha mãe ia lavar roupa no rio junto com outras mulheres e eram guardadas por um soldado que portava uma garrucha. Alice caiu no rio e mãe a salvou. E a menina ainda disse: Sagada ága mãii! Alice faleceu logo por ter engolido cascas de feijão que perfuraram seus intestinos. Não se usava passar feijão na peneira para alimentar as crianças pequenas.

Meu pai. José Gomes de Oliveira era mineiro. Negro retinto como Grande Otelo. Gostava de cozinhar. Cozinhava minestra que era uma delícia. O básico dela é arroz cozido com feijão. Ele bebia muito e quando pisava no batente da porta já vinha cantando: Acorda Maria bonita acorda vem fazê café... E minha mãe gritava: Lá vem o cachaceiro!

Minha mãe se chamava Maria Gomes do Amaral. Era analfabeta e quando falava do lugar onde nascera eu não compreendia. Pensava que ela fosse do Rio. Dizia: Lá em Farcão. Garça. Finalmente entendi. Ela se referia a Vila Falcão. Um bairro de Bauru. E a cidade de Garça que fica vizinha. Nesta região meus pais se conheceram. Minha mãe pouco se lembrava das coisas. Sempre dizia: Não sei quando é. Meus irmãos não se interessavam. Eu sempre queria saber. Minha avó materna era índia. Bugra como se falava. Foi laçada no mato. Magoada cortou os cabelos e enrolou num pau para não os perder. Teve

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muitos filhos. A maioria homens que eram amarrados como escravos e apanhavam do pai meu avô até desmaiar. Depois avó índia morreu de desgosto e minha mãe ganhou uma madrasta que a maltratava. Não pôde ir para escola. Se tentasse atravessar o rio que era raso para chegar até a escola a madrasta jogava um bambu em suas costas para machucá-la. Muitas vezes dormiu no quintal embaixo da bananeira. Não tinha casaco e passava frio. Certa vez quando o pai e a madrasta saíram às compras ela cortou o cobertor e costurou um casaco. Deve ter apanhado. Contudo fez o casaco.

Minha mãe dizia que não gostava de meu pai. Se casou com quem apareceu. Ela queria ter liberdade. Viveram do jeito que foi possível viver. Mas quando eu morrer vou ficar do lado direito de seu pai! Dizia ela.

Na fazenda Pirajuí meu pai trabalhava com madeiramento na derrubada de árvores. Aroeiras que eram empregadas para proteger os trilhos dos trens. A madeira também era usada como combustível para os trens de Maria Fumaça que faziam o trajeto de São Paulo até Mato Grosso. Transportavam passageiros e cargas. Em anos anteriores meu pai já trabalhara em outras fazendas e outras atividades. Assim foram nascendo os filhos. Na época da Revolução Constitucionalista ou Guerra Paulista em 32 nasceu minha irmã Cecília e ele trabalhava como foguista no trem.

Como meu pai trabalhava em derrubada de árvores quando acabava as árvores de uma região ia para outra. À noite a gente se mudava de caminhão. As crianças iam na carroceria dormindo em colchões e tralhas da mudança. Me lembro da

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última viagem de minha família. Para mim a primeira e não me lembro de nada para trás. Em uma parada experimentei um vestido. O primeiro que conheci desses comprados feitos. Era novidade e já queria ir embora com ele. Acho que meu pai não comprou. Comemos ovos fritos com cebola o que me fez mal. O pai nem queria pagar a refeição!

Chegamos à fazenda Primeira Aliança. Hoje bairro da Primeira Aliança no município de Mirandópolis a 612 km de São Paulo. Quando amanheceu fomos conhecer o lugar. Para nós crianças era uma festa! Armávamos arapuca para pegarmos pássaros. As codornas que eram para comer. Nossa carne para as brincadeiras. Peitinho e ossinhos de codorna. Ao redor tudo era mato que meu pai iria derrubar. Minha irmã mais velha ajudava serrar as árvores em dupla com o pai. No serrote grande cada um de um lado pra lá e pra cá.

Nesta mesma fazenda Primeira Aliança meu pai passou a trabalhar na plantação de arroz e cuidava do cafezal. Eu e os outros dois irmãos mais novos não frequentávamos a escola e meu pai que entendia um pouco de marcenaria fabricava todos os nossos móveis. Fabricou carteiras e nos ensinava a ler e escrever. Era também sapateiro e fabricava sandálias para nós de couro de boi nos modelos das havaianas de hoje. Quando eu passava nas estradas encontrava alguma cartela de cigarro fazia questão de guardar para ler quando fosse à escola. Meu pai sempre dizia que não tinha condições de matricular três filhos nos estudos.

Minha mãe costurava para a família e aprendera sozinha. De uma peça de tecido fazia roupas para todos e iguais. Vestidos

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e camisas para os homens. Tínhamos forno de barro nos fundos do quintal onde ela assava pães enrolados em folhas de bananeiras, bolos e bolinhos. Ela fabricava sabão de barrigada de boi, cabrito, porco e do que tivesse. Erguia com uma tábua a mistura que fervia com soda. Se descesse direto não estava no ponto. Só ficava pronto quando descesse aos pingos. Aprendi com ela o hábito de fazer sabão e hoje faço sabão de forma atual de óleo saturado da minha casa e do que ganho.

Cecília é minha irmã mais velha que sobreviveu sempre ao lado de minha mãe amparando-a. Ajudou-a na viuvez. Sabe ler e escrever. Ficou pouco tempo na escola. Se tornou cabeleireira e mora em Guarulhos. Tem 82 anos.

Arsênio é meu irmão que não gostava de ser pobre. Não aceitava nossa condição. Minha mãe sempre contava a história do filho que arrancou o coração da mãe para vender a um belo moço por muito dinheiro. O moço era o demônio que fugiu ao vê-lo retornar. O rapaz tentou alcançá-lo e caiu. Se machucou e derrubou o coração que lhe disse: Machucou meu filho? Esta história não comoveu meu irmão que saiu de casa aos sete anos e foi morar com fazendeiros conhecidos com consentimento de minha mãe. Foi trabalhar nas fazendas. Ele tinha menos características de negro. Era mais claro sem carapinhas e de cabelo cacheado.

Oliveira e Mário eram os outros dois irmãos. Trabalhadores que capinavam no eito. Mário sempre vencia sua parte primeiro e ficava lá na frente vitorioso esperando os outros. O patrão dizia para minha mãe que de tão esperto ele tinha parte com o diabo. Minha mãe não gostava desse comentário. Na escola Mário se

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mostrou muito inteligente. A professora tomava tabuadas e não se podia errar. Certa vez ela mandou que decorássemos a do dois. Quando a professora o chamou ele não só deu conta da tabuada do dois como falou de uma vez todas até a do dez. Ela ficou admirada. E ele ainda acrescentou: Se quiser sei também a do onze e a do doze. É pra você parar de encher o saco! A professora mandou chamar minha irmã mais velha a quem se queixou. Minha irmã conversou com ele e acabou lhe dando razão.

Quando meu pai faleceu eu tinha por volta de oito a nove anos de idade. A primeira coisa que fiz foi ir à escola sozinha. Era 1949. Quando os alunos passaram pela estrada fui correndo atrás deles até chegar à escola sem material. Me encolhi na fila com vergonha. Enfrentei por fim e caminhei junto até a sala de aula. No outro dia o diretor chamou minha irmã para que fosse efetivar minha matrícula. Ela compareceu e aproveitou para matricular meus outros dois irmãos. Oliveira e Mário. Passamos a fazer parte da Caixa Escolar. Ganhamos material e tomávamos sopa todos os dias. Para os outros alunos a sopa era vendida. Eu era a única aluna negra e pobre. Os outros alunos eram filhos de fazendeiros. A maioria era descendente de japoneses.

No recreio eu ficava sozinha. As meninas não queriam brincar comigo. Com jeitinho consegui fazer alguma amizade com elas mesmo rejeitada. Acho que sempre fui agitada na sala de aula porque nela havia um quadro de honra ao mérito em que meu nome nunca esteve presente. Será que a professora gostava de mim? Sempre que ela pegava o giz eu pegava o lápis e acabávamos juntas. Não fazia nada para ofendê-la mas sim para mostrar meu interesse pelo aprendizado. Eram poucos

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alunos e cada sala possuía duas séries diferentes. Eu sempre arrumava tempo para atrapalhar os outros...

Quanto ao trabalho na lavoura eu ia todos os dias para dormir entre os sacos de algodão esperando o sol aparecer. Meus irmãos ficavam irritados e diziam: Mãe a Isa é caçula e nunca vai crescer? Minha mãe levantava às quatro horas da manhã e preparava o almoço. Íamos para roça de madrugada. O luar do sertão era muito claro e não precisávamos de lanterna para enxergar. Sinto um pouco da minha infância quando passo por praças aqui em Guarulhos e deparo com homens podando o gramado. O cheiro de mato. A cobertura de lona para o almoço lembra o lençol que minha mãe estendia para proteger nosso almoço que era aquecido ao sol na cesta.

Naquele Bairro da Primeira Aliança havia muitas competições nas festividades. Muito me lembro das comemorações do Sete de Setembro. Nós lá de casa sempre ganhávamos as corridas. Minha mãe sempre dizia: Meus filhos são sacudidos!

Conta a lenda naquela região que Primeira Aliança recebeu este nome porque ali morou uma moça de origem japonesa que noivou com um rapaz fora da colônia. A família a proibiu de se casar e ela enterrou naquele lugar a aliança. Depois vieram os outros bairros Segunda Aliança e Terceira Aliança. Todos oriundos desse episódio bastante comentado.

Ao término do 4º ano primário parei de estudar. Não tinha condições e estava com 14 anos. Era 1954. Os outros foram para as colônias verdadeiras casas de estudo com alojamento para estudantes em outras cidades maiores. Em Promissão

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havia o Colégio Xavier que era de freiras. Fiquei triste no ponto de ônibus. Minha mãe se mudou para São Paulo e fiquei trabalhando em casa de minha professora. Depois trabalhei e morei em casa de um médico. Cheguei a viajar de férias com a família para São Paulo onde morava minha mãe sem que ela o soubesse e pudesse me encontrar. A viagem era de trem. Os patrões iam de primeira e nós empregadas íamos de segunda. Na hora do almoço escolhíamos boas comidas com misturas de carne. Contudo a patroa já havia decidido e comíamos arroz feijão e ovo. Na pensão onde nos hospedávamos que presumo se localizar na Mooca eu ajudava nos afazeres domésticos assim como a outra empregada... Após dois anos em 57 minha irmã foi me buscar.

Quando cheguei a São Paulo no bairro de Vila Maria fiz o curso de datilografia. Obtive êxito no exame de admissão ao ginásio em 62. Continuei meus estudos em 63 com 22 anos e o restante da sala com 11. Naquela época as crianças terminavam o primário com 10 anos e faziam um ano de admissão para entrarem no ginásio aos 11.

Morava na Vila Maria e frequentava o antigo Ginásio Estadual da Vila Guilherme. Lá cursei da 5ª à 7ª série. Em 65 terminei a 6ª série me casei e vim morar em Guarulhos. Vila Augusta na Rua Cabo Sebastião nº 165. Os moradores a chamavam de Rua São Sebastião e festejavam em 20 de janeiro o padroeiro.

Meu marido e meu sogro achavam que mulher não era para estudar nem trabalhar fora. A minha decisão era trabalhar fora e estudar. Caso contrário voltaria para casa de minha mãe. Quando meu marido percebeu que eu não estava brincando foi

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até a escola buscar minha transferência. Não consegui entrar na 7ª série em Guarulhos. Havia seleção. Poucas vagas e muitos candidatos. Continuei na Vila Guilherme.

Nos três primeiros anos no Ginásio Estadual da Vila Guilherme a língua estrangeira ministrada era o Francês que eu estudava com minha patroa francesa Dona Berta que residia no Itaim-Bibi. O livro adotado era único para as três séries. Eu frequentava a escola de manhã e à tarde ia para o emprego. Depois que tive filhos minha sogra os olhava para que eu fosse trabalhar e estudar. Como era diarista não trabalhava todos os dias. O marido de Dona Berta era funcionário da Vale do Rio Doce. Eles tentaram me colocar na Vale como funcionária. Não pude ir por só ter uma muda de roupa melhor para começar.

Enquanto morava em Guarulhos na Vila Augusta e cursava 7ª série à noite na Vila Guilherme descia na Dutra em lugar ermo no meio do lixão. Pisava no lixo misturado com lama da chuva. Na escola lavava a sapatilha feita por mim de napa e o sapateiro punha solado. Ao retornar para casa perto da meia-noite meu marido me buscava no ponto de ônibus. Muitas vezes os alunos discutiam com os professores. Eu não gostava e me retirava da sala. Sempre dizia: Nunca quero dar aulas para adolescentes! E só quis dar aulas para as crianças mesmo...

Finalmente em 67 consegui vaga para estudar em Guarulhos. Me matriculei no Ginásio Estadual Prestes Maia que funcionava no prédio em que hoje funciona a EE João Crispiniano Soares na Vila Augusta. Senti dificuldades na troca da língua estrangeira por Inglês. Dona Berta que gostava muito de mim não podia me ajudar. Como não tinha filhos dizia que eu era a filha que

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teve e nascera à noite. Marcou minha vida e me lembro sempre dela. No fim fiquei quase como sua dama de companhia e a acompanhava nas compras. Em Inglês fui aprovada pelo conselho de professores.

O ginásio que levava o nome do engenheiro e ex-prefeito de São Paulo Prestes Maia perdeu o patrono e passou a se chamar 2º Ginásio Estadual de Guarulhos. Na década de 70 se transferiu para Vila Endres e hoje se chama EE Érico Veríssimo.

Em 69 minha escola foi o Conselheiro Crispiniano. Entrei no curso Colegial de Formação de Professor Primário que consistia em dois anos básicos. No primeiro ano levei bomba com a professora Flávia Carone em Português. Tudo por causa da interpretação de um texto que era uma carta e até hoje não sei se era de um filho para a mãe. Ou se era da mãe para o filho. No ano seguinte tive João Roberto como professor de Português. Me dei bem com ele que ensinava análise sintática de maneira que eu entendia perfeitamente. Elaborava escalas dos termos da oração divididos em essenciais, integrantes e acidentais. As escalas lembravam cerquinhas e tive muita facilidade para aprender. Ao terminar o básico cursei os dois últimos anos e a grade curricular abrangia matérias específicas da formação de professor primário. Me formei em 74.

Em 75 iniciei a carreira no Magistério Público Estadual como substituta efetiva preenchendo as faltas dos professores na EE João Crispiniano Soares. Dona Berta para quem eu trabalhava me disse: Agora você é professora e ganha seu dinheiro. Vai cuidar melhor de seus filhos. Me despedi dela. Passei a cuidar melhor de meus filhos mesmo.

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Substituí em várias escolas de Guarulhos além do João Crispiniano Soares. Em escolas do Jardim Moreira e Jardim Jovaia. No Parque Santo Antônio: EE Profª Emília Anna Antônio. No Jardim Cocaia: EE Profª Dulce Breves Neves.

Em 81 ao mesmo tempo em que substituía no Dulce Breves Neves cursei e obtive certificado em Habilitação Específica de 2º Grau para o Magistério e Pré-Escola no já extinto Instituto de Educação Nove de Julho.

No primeiro concurso de provas e títulos para ingresso ao Magistério Público do Estado de São Paulo que prestei fui aprovada e ingressei em 82. Ao mesmo tempo meu marido conseguiu para mim classe na Prefeitura de Guarulhos onde tinha muitos conhecimentos. Ele jogava bola aos domingos na Vila Augusta com políticos locais.

A primeira classe que assumi na Prefeitura foi na Escola Da Emília próxima à minha casa. Substituí a professora Jurema afastada em licença gestante. Hoje ela é diretora de escola na rede municipal de Guarulhos: EPG Visconde de Sabugosa. Meu cargo no estado ficava no Itaim Paulista em São Paulo. Dava aula de manhã no Itaim e à tarde na prefeitura na Vila Endres. A rede municipal naquele ano de 82 possuía 270 professores. Só havia filhos, filhas e mulheres de políticos.

Como Dona Berta me havia dito: Agora você pode deixar de trabalhar para mim. Você vai ganhar bem e poderá cuidar melhor de seus filhos. Desta vez deu certo. Com os dois primeiros salários me perguntei: O que fazer com tanto dinheiro? Comprei todos eletrodomésticos para casa e sobrou.

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Continuei substituindo na prefeitura. Em 83 fui para o Santo Afonso. Bairro dos Pimentas. No estado me removi para a EE Cantídio Sampaio aqui na Vila Flórida.

Minha experiência mais rica é com alfabetização. Sempre segui a Caminho Suave. Cartilha que todos aproveitavam. Meus filhos foram alfabetizados com ela e comprei uma só. Quando professora Vera Bersaghi chegou ao Cantídio como diretora e tinha outras ideias sobre alfabetização me perguntou: Você sabe trabalhar com essa cartilha? Respondi: Sei sim. E ela me retorquiu: Então continue.

A partir de 84 assumi classe minha na prefeitura. Não mais substituiria. Fiquei trabalhando na EPG Sítio do Pica-Pau Amarelo e na EE Cantídio Sampaio. Ambas próximas uma da outra. Nelas permaneci até me aposentar.

Em 2001 me aposentei na rede estadual e apesar de aposentada frequentei o PEC (Programa de Educação Continuada) através da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Valeu a inscrição feita anteriormente. Obtive formação universitária. Me formei pela USP. Universidade de São Paulo. Licenciatura Plena para o Magistério nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Havia pessoas que me diziam ser bobagem eu continuar estudando já que me aposentara. Não liguei. A maior luta de minha vida sempre foi por frequentar escola e não perderia essa oportunidade. Tenho sido feliz!

Em 2005 me aposentei pela CLT na rede municipal e continuo trabalhando na EPG Glorinha Pimentel. Na CLT aos 70 anos não existe afastamento compulsório. Continuo na sala de aula com uma classe de 2º ano. Gosto de alfabetizar e dar aula para o

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ensino básico. Fiquei triste quando no ano passado a diretora me atribuiu classe de educação infantil. Neste ano fiquei satisfeita e já em janeiro havia preparado toda a programação de aulas para o ano inteiro.

Guarulhos, 03 de abril de 2013.

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As opiniões e depoimentos expressos nesta obra são muito particulares e não refletem necessariamente a opinião da Secretaria Municipal de Educação, sendo de responsabilidade da autora e das memorialistas.

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PrefeitoSebastião Almeida

Vice-PrefeitoCarlos Derman

Secretário Municipal de EducaçãoProf. Moacir de Souza

Secretária Adjunta de EducaçãoProf.ª Neide Marcondes Garcia

Diretora do Departamento de Ensino EscolarSueli Santos da Costa

Diretora do Departamento de Orientações Educacionais e PedagógicasSandra Soria

Diretor do Depto. de Controle da Execução Orçamentária da EducaçãoJosmar Nunes de Souza

Diretor do Departamento de Alimentação e Suprimentos da EducaçãoReginaldo Andrade Araújo

Diretor do Departamento de Manutenção de Próprios da EducaçãoLuiz Fernando Sapun

Diretor do Departamento de Planejamento e Informática na EducaçãoCarlos Eduardo da Silva

Diretora do Departamento de Serviços Gerais da EducaçãoMargarete Elisabeth Shwafati

DIVISÃO TÉCNICA DE PUBLICAÇÕES EDUCACIONAISJosé Augusto Lisboa, Claudia Elaine Silva, Maurício Burim Perejão, Eduardo Calabria Martins, Maristela Barbosa Miranda, Camila Lima dos Santos, Carla Maio, Yve Pinheiro de Azevedo Oliveira e Alan Neves.

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