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Uma Criança Chamada Coisa Dave Pelzer (c) Copyright 1995 Dave Pelzer Published by arrangement with Health Communications, Inc, Deerfield Beach, Florida, USA Título original: A Child Called "It" Copyright 2001 -AMBAR(r) - COMPLEXO INDUSTRIAL GRÁFICO S.A. Rua Manuel Pinto de Azevedo, 363 - 4100-321 Porto Telef. 22 615 1400 - Telefax 22 617 1407 E-mail: area.editorial@ ambar.pt Visto Legal N.1 164379/01 - Julho de 2001 ISBN 972-43-0470-1 Tradução de Isabel Barbudo Este livro é dedicado ao meu filho Stephen, que, pela graça divina, me ensinou a dádiva do amor e alegria através dos olhos de uma criança. Este livro é também dedicado aos professores e funcionários da Thomas Edison Elementary School, incluindo: Agradecimentos Vil Stephen E. Ziegler Athena Konstan Peter Hansen Janice Woods Betty Howell e a Enfermeira da Escola Para todos, pela vossa coragem e por terem posto a vossa carreira em risco nesse dia fatídico: 5 de Março de 1973. Vocês salvaram a minha vida. Desian

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Uma Criança Chamada �Coisa�

Dave Pelzer (c) Copyright 1995

Dave Pelzer Published by arrangement with

Health Communications, Inc, Deerfield Beach, Florida, USA Título original: A Child Called "It"

Copyright 2001 -AMBAR(r) - COMPLEXO INDUSTRIAL GRÁFICO S.A. Rua Manuel Pinto de Azevedo, 363 - 4100-321 Porto

Telef. 22 615 1400 - Telefax 22 617 1407 E-mail: area.editorial@ ambar.pt

Visto Legal N.1 164379/01 - Julho de 2001 ISBN 972-43-0470-1

Tradução de Isabel Barbudo Este livro é dedicado ao meu filho Stephen, que, pela graça divina, me ensinou a dádiva do amor e alegria através dos olhos de uma criança. Este livro é também dedicado aos professores e funcionários da Thomas Edison Elementary School, incluindo: Agradecimentos Vil Stephen E. Ziegler Athena Konstan Peter Hansen Janice Woods Betty Howell e a Enfermeira da Escola Para todos, pela vossa coragem e por terem posto a vossa carreira em risco nesse dia fatídico: 5 de Março de 1973. Vocês salvaram a minha vida. Desian

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Í N D I C E Notas do Autor 05 CAPÍTULO 1. A Libertação 06 CAPITULO 2. Bons Tempos 10 CAPÍTULO 3. Um Mau Rapaz 14 CAPÍTULO 4. A Luta pela Comida 19 CAPITULO 5. O Acidente 29 CAPÍTULO 6. Enquanto o Pai Está Fora 34 CAPITULO 7. A Oração do Senhor 42 Epílogo: Sonoma Count, Califórnia 49 Perspectivas sobre os Maus Tratos a Crianças 51

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NOTAS DO AUTOR

Alguns nomes deste livro foram alterados, de modo a manter a dignidade e a privacidade das pessoas. Este livro, a primeira parte da trilogia, retrata a linguagem desenvolvida do ponto de vista de uma criança. O tom e o vocabulário refletem a idade e os conhecimentos da criança nesse tempo específico. Este livro baseia-se na vida da criança dos 4 aos 12 anos. A segunda parte da trilogia, O Rapaz Perdido, baseia-se na sua vida dos 12 aos 18 anos.

AGRADECIMENTOS

Depois de anos de intenso labor, sacrifício, frustração, compromissos e decepções, este livro é finalmente publicado e está à venda nas livrarias. Desejo aproveitar este momento para homenagear todos aqueles que realmente acreditaram nesta cruzada.

A Jack Canfield, co-autor do fenomenal "bestseller" Chicken Soup for the Soul, pela sua extrema amabilidade ao abrir-me uma grande porta. Jack é, de fato, uma personalidade rara que, sem reservas, ajuda mais pessoas num só dia do que muitos de nós na vida inteira. Que Deus o abençoe.

A Nancy Mitchell e Kim Wiele do Canfield Group pelo imenso entusiasmo e orientação. Obrigado, minhas senhoras.

A Peter Vegso da Health Communicatios, Inc., tal como Christine Belleris, Matthew Diener, Kim Weiss e todo o pessoal da HCI pela sua honestidade, profissionalismo e amabilidade, que transformam o ato de publicar num prazer.

Calorosos agradecimentos a Irene Xanthos e Lori Golden pela sua tenaz orientação e pela iniciativa. E um enorme obrigado ao Departamento de Arte pelo intenso trabalho e dedicação.

Um agradecimento especial a Marsha Donohoe, editora extraordinária, pelas horas que passou a reelaborar e apagar do livro "a linguagem menos apropriada", de modo a dar ao leitor uma versão clara e precisa desta história através dos olhos de uma criança. Para Marsha, era uma questão de "Confiança do Lavrador."

A Patti Breitman, de Breitman Publishing Projects, pelo seu trabalho inicial e pelo investimento.

A Cindy Adams pela fé inquebrantável quando eu mais precisei. Um obrigado especial a Ric & Don em Rio Villa Resort, que me serviu de lar quando

estava fora do lar, por me proporcionarem o santuário perfeito durante a realização deste projecto.

E, finalmente, a Phyllis Collen. Desejo-lhe paz e felicidade. Que Deus a abençoe!

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Capítulo 1

A LIBERTAÇÃO

DIA 5 DE MARÇO DE 1973, DALY CITY, CALIFÓRNIA

Estou atrasado. Tive de acabar de lavar a louça a tempo, senão não havia pequeno-

almoço; e já que não jantei ontem à noite, tenho de arranjar maneira de conseguir alguma coisa para comer. A Mãe anda a correr e a gritar pelos meus irmãos. Ouço-a a passar pelo vestíbulo em direção à cozinha. Volto a mergulhar as minhas mãos na água a ferver. É demasiado tarde. Ela apanha-me com as mãos fora de água.

TRÁS! A Mãe bate-me no rosto e eu caio para o chão. Eu já aprendi a não ficar de pé aparando o golpe. Aprendi, da pior forma, que ela entende isso como um desafio, o que significa mais pancada ou, pior ainda, nada de comida. Volto à minha posição e evito olhá-la, enquanto ela grita aos meus ouvidos. Eu ajo timidamente, respeitando as suas ameaças. "Por favor", digo para mim próprio, "dá-me de comer. Bate-me de novo, mas eu tenho de comer". Um novo soco empurra a minha cabeça contra o tampo do balcão de azulejo. Deixo as lágrimas de falsa derrota descerem-me pela cara abaixo enquanto ela sai de rompante da cozinha, parecendo satisfeita consigo própria. Depois de contar os seus passos, para ter a certeza de que ela se foi, respiro de alívio. A cena resultou. A Mãe pode bater-me as vezes que quiser, mas eu não a deixei tirar-me a vontade de sobreviver a todo o custo.

Acabo de lavar a louça e depois faço as minhas outras tarefas. Como recompensa, recebo o pequeno-almoço: os restos da tigela de cereais de um dos meus irmãos. Hoje há flocos de cereais coloridos'. Só restaram uns bocadinhos. Na manhã seguinte a Mãe, num tom que raramente usa comigo, afirma:

−Tem um bom dia! Contemplo os seus olhos inchados e vermelhos. Ainda está na ressaca da embriaguez de

ontem à noite. O seu cabelo, outrora belo e brilhante, parece agora um conjunto de cepos gastos. Como de costume, não tem maquiagem. Está com excesso de peso e ela sabe. Em tudo, este se tornou o aspecto típico da Mãe. Por estar tão atrasado, tenho de me apresentar na secretaria. A secretária, de cabelos grisalhos, cumprimenta-me com um sorriso. Momentos mais tarde, a enfermeira da escola sai e conduz-me ao seu gabinete, aonde vamos por rotina. Primeiro, examina o meu rosto e braços.

− O que é isso por cima do olho? − pergunta. Aceno timidamente: −Oh, fui contra a parede do vestíbulo... sem querer. Ela sorri de novo e tira uma ficha da parte de cima de um armário. Percorre uma página

ou duas e inclina-se para mim para me mostrar. − Aqui − aponta para o papel − disseste isso na passada segunda-feira. Lembras-te? − Sim, senhora − respondo eu. "Oh não!", digo para mim próprio, "Fiz algo errado... de novo". A enfermeira deve ter visto a preocupação nos meus olhos. Põe a ficha para baixo e

abraça-me. "Meu Deus", digo para mim próprio, "Ela é tão calorosa". Não quero largá-la, quero ficar

nos seus braços para sempre. Fecho os olhos com força e, por uns momentos, nada mais existe. Ela dá-me pancadinhas na cabeça. Retraio-me por causa do inchaço da pancada que a Mãe me deu esta manhã. A enfermeira então termina o abraço e deixa a sala. Corro a vestir-me de novo. Ela não sabe, mas eu faço tudo o mais depressa possível.

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A enfermeira volta passados alguns minutos com o Senhor Diretor Hansen e dois dos meus professores, a menina Woods e o Sr. Ziegler. O Sr. Hansen conhece-me muito bem. Já estive no seu gabinete mais do que qualquer outro miúdo da escola. Olha para o papel, enquanto a enfermeira lhe comunica o que descobriu. Ele levanta-me o queixo. Tenho medo de olhá-lo nos go, "Hoje não! Não percebe que hoje é sexta-feira?"

O Sr. Hansen assegura-me que não vai chamar a Mãe, e manda-me para a aula. Como já é tarde de mais para a aula de homeroom 1, vou diretamente para a aula de Inglês de Sra. Wordsworth. Hoje há um teste sobre todos os Estados e respectivas capitais. Não estou preparado. Geralmente sou um bom aluno, mas nos últimos meses desisti de tudo na minha vida, incluindo ultrapassar a minha desgraça através do trabalho da escola.

Ao entrar na sala, todos os alunos tapam o nariz e assobiam. A professora substituta, uma mulher mais jovem, abana as mãos em frente do rosto. Não está habituada ao meu cheiro. Dá-me o meu teste com o braço esticado, mas antes de eu me sentar na parte de trás da sala, perto de uma janela aberta, sou de novo chamado ao gabinete do diretor. A sala inteira faz um alarido dirigido a mim: a rejeição do quinto ano.

Corro para a secretaria e chego lá num ápice. A garganta está áspera e ainda arde por causa do "jogo" que a Mãe jogou ontem contra mim. A secretária conduz-me à sala dos professores. Depois de ela abrir a porta, demoro algum tempo a adaptar a vista. À minha frente, sentados à volta de uma mesa, estão o meu professor da aula de homeroom, Sr. Ziegler, a minha professora de Matemática, menina Moss, a enfermeira da escola, o Sr. Hansen e um oficial da polícia.Os meus pés ficam gelados. Não sei se de frio ou de nervoso.

O polícia explica porque é que o Sr. Hansen o chamou. Sinto-me a afundar-me, tremendo na cadeira. O polícia pede-me que lhe fale da Mãe. Digo que não com a cabeça. Já demasiadas pessoas conhecem o segredo e eu sei que ela vai descobrir. Uma voz suave chama-me. Acho que é a menina Moss. Ela diz-me que está tudo bem. Respiro fundo, esfrego as mãos e relutantemente falo-lhes acerca da Mãe e de mim. Então a enfermeira diz para eu me pôr de pé e mostrar ao polícia a cicatriz no peito. Sem hesitar, digo-lhes que foi um acidente; que realmente foi; a Mãe não queria apunhalar-me. Choro como se cuspisse as entranhas, dizendo-lhes que a Mãe me castiga porque sou mau. Queria que me deixassem em paz. Sinto-me pegajoso por dentro. Sei, ao fim de todos estes anos, que não há nada que alguém possa fazer.

Uns minutos mais tarde, dão-me licença para me sentar no gabinete exterior. Quando eu fecho a porta, todos os adultos olham para mim e abanam as cabeças de modo aprovador. Sento-me, perturbado, olhando para a secretária a datilografar papéis. Parece que passou uma eternidade, quando o Sr. Hansen me chama de volta à sala. A menina Woods e o Sr. Hansen saem. Parecem felizes, mas ao mesmo tempo preocupados. A menina Woods ajoelha-se e abraça-me. Acho que nunca me esquecerei do odor do perfume do seu cabelo. Larga-me, voltando-se para que eu não a veja a chorar. Agora estou realmente preocupado. O Sr. Hansen dá-me um tabuleiro de almoço da cafeteria. "Meu Deus! Já é hora do almoço?" Pergunto a mim próprio.

Engulo a comida tão depressa que mal a saboreio. Acabo o tabuleiro em tempo recorde. Em breve retorna o diretor com uma caixa de bolos, avisando-me de que não coma tão depressa. Não faço idéia do que se está a passar. Uma das hipóteses que ponho é que o meu pai, que está separado da minha mãe, veio buscar-me. Mas sei que é uma fantasia. 0 polícia pergunta-me a morada e número de telefone. "É isso!" Digo a mim próprio. "De volta ao inferno! Ela vai bater-me de novo!"

O polícia escreve mais notas, enquanto o Sr. Hansen e a enfermeira olham. Em breve fecha o bloco de notas e diz ao Sr. Hansen que já tem informações suficientes. Olho para o

1 homeroom: Aula de informações diárias sobre as atividades da escola, em que se

juntam turmas do mesmo ano. (N.T.)

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diretor. O seu rosto está coberto de suor. Sinto o meu estômago a enrolar-se. Quero ir à casa de banho e vomitar.

O Sr. Hansen abre a porta e vejo todos os professores no intervalo do almoço a olharem

para mim. Sinto-me tão envergonhado! "Eles sabem", digo para mim próprio. "Eles sabem a verdade acerca da minha mãe; a real verdade". É tão importante que eles saibam que eu não sou um mau rapaz. Quero tanto que gostem de mim, que me amem.

Sigo pelo vestíbulo. O Sr. Ziegler está a amparar a menina Woods. Ela está a chorar. Ouço-a a fungar. Dá-me outro abraço e vai-se embora rapidamente. O Sr. Ziegler aperta-me a mão.

− Sê um bom rapaz! − diz ele. − Sim senhor. Vou tentar! − é tudo o que consigo dizer. A enfermeira da escola está em silêncio ao lado do Sr. Hansen. Dizem-me todos adeus.

Agora sei que vou para a cadeia. "Bom," digo para mim próprio, "pelo menos ela não pode bater-me, se eu estiver na cadeia."

O oficial da polícia e eu saímos e passamos na cafeteria. Vejo alguns miúdos da minha aula a jogar dodge bali 2. Alguns param de jogar e gritam: "O David foi apanhado! O David foi apanhado!" O polícia toca-me no ombro, dizendo-me que está tudo bem... À medida que me conduz pela rua, afastando-nos da Escola Primária Thomas Edison, vejo alguns miúdos que parecem perturbados com a minha partida. Antes de eu sair, o Sr. Ziegler disse-me que diria a verdade aos outros miúdos; toda a verdade. Eu daria tudo para ter estado na aula quando descobriram que não sou assim tão mau.

Dentro de alguns minutos, chegamos à Estação da Polícia de Daly City. Eu estou mais ou menos à espera que a Mãe esteja lá. Não quero sair do carro. O oficial abre a porta e gentilmente segura-me pelo cotovelo e leva-me até um grande gabinete. Não há mais ninguém na sala. O polícia senta-se numa cadeira ao canto, e aí datilografa várias folhas de papel. Observo o oficial de perto, enquanto como devagar os meus bolos. Eu os saboreio o mais longamente possível. Não sei quando é que estarei de novo a comer.

Já passa da uma da tarde quando o polícia acaba de escrever os seus papéis. Pede-me de novo o número de telefone.

- Por quê? - digo a choramingar. - Tenho que a chamar, David - diz ele gentilmente. - Não! - ordeno eu. - Mande-me de volta à escola. Não percebe? Ela não pode descobrir

que eu disse! Ele acalma-me com outro bolo, enquanto marca lentamente 7-5-6-2-4-6-0. Vejo o

mostrador preto girar, enquanto me levanto e me dirijo a ele, esticando o corpo para tentar ouvir o telefone a tocar do outro lado. A Mãe responde. A voz dela mete-me medo. O polícia faz sinal para eu me afastar e respira fundo antes de dizer::

− Sra. Pelzer, fala o Oficial Smith do Departamento da Polícia de Daly City. O seu filho David não vai hoje para casa. Ficará sob a custódia do Departamento da Juventude San Mateo. Se tiver perguntas a fazer, pode fazê-las. − Põe o auscultador no descanso e sorri. − Afinal não foi assim tão difícil, pois não? − pergunta-me.

Mas a sua expressão diz-me que ele está a convencer-se a si próprio mais do que a mim. Umas milhas mais adiante, estamos na auto-estrada 280, dirigindo-nos para os arredores

de Daly City. Olho para a direita e vejo um letreiro que diz: "A MAIS BELA AUTO-ESTRADA DO MUNDO".

O oficial sorri de alívio quando deixamos a zona limítrofe da cidade.

2 dodge bali: Jogo americano. Um grupo atira uma bola de borracha e o outro grupo corre e evita ser tocado pela bola. (N. T.)

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− David Pelzer − diz ele −estás livre. − O quê? − pergunto, agarrando-me à minha única fonte alimentar. − Não percebo. Não

me vai levar para nenhuma cadeia? Ele sorri de novo e gentilmente aperta-me o ombro. − Não, David. Não tens de te preocupar com nada. A sério! A tua mãe nunca mais te vai

magoar. Inclino-me para trás no assento. Um reflexo do sol bate-me nos olhos. Desvio-me dos

raios, enquanto uma única lágrima me escorre pela face. − Estou livre?

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Capítulo 2

BONS TEMPOS

Nos anos anteriores aos meus maus tratos, a minha família era o Brady Bunch 3 da década

de 1960. Os meus dois irmãos e eu éramos favorecidos por termos os pais perfeitos. Qualquer capricho nosso era satisfeito com amor e carinho.

Vivíamos numa casa modesta com dois quartos, naquilo que era considerado uma boa zona em Daly City. Lembro-me de olhar através da janela redonda da nossa sala de estar, num dia claro, contemplando as torres de um laranja brilhante da ponte Golden Gate e o belo horizonte de São Francisco.

O meu pai, Stephen Joseph, sustentava a família com o seu ordenado de bombeiro, trabalhando mesmo no centro de São Francisco. Tinha um metro e setenta e cinco de altura e pesava cerca de oitenta e cinco quilos. Tinha uns ombros e antebraços tão largos que fariam inveja a qualquer halterofilista. As sobrancelhas grossas e negras condiziam com o cabelo. Eu sentia-me especial quando ele me acenava e me chamava "Tigre".

A minha mãe, Catherine Roerva, era uma mulher de estatura e aparência medianas. Eu nunca me consigo lembrar da cor dos seus cabelos ou olhos, mas a Mamã era uma mulher que brilhava de amor pelos seus filhos. A sua grande vantagem era a determinação. A Mamã tinha sempre idéias e era ela que se encarregava de todos os assuntos familiares. Uma vez, quando eu tinha quatro ou cinco anos, a Mamã disse que estava doente, e lembro-me de sentir que ela não parecia a mesma. Foi num dia em que o Pai estava a trabalhar na estação de bombeiros. Depois de servir o jantar, a Mamã saiu da mesa a correr e começou a pintar os degraus que levavam à garagem.

Ela tossia à medida que pincelava freneticamente cada degrau com tinta vermelha. A tinta ainda não secara quando a Mamã começou a pregar rebordos de borracha nos degraus. A tinta vermelha espalhava-se pelos rebordos e pela Mamã. Quando acabou, a Mamã entrou em casa e deixou-se cair em cima do sofá. Lembro-me de lhe perguntar porque é que tinha posto os rebordos antes de a tinta secar. Ela sorriu e disse: "Eu só queria surpreender o teu papá".

No que tocava às lides domésticas, a Mamã era um perfeito diabinho das limpezas. Depois de dar de comer aos meus dois irmãos, limpava o pó, desinfetava, esfregava e aspirava tudo. Nenhuma divisão da nossa casa ficava sem ser mexida. À medida que fomos crescendo, a Mamã fez questão em que fizéssemos a nossa parte, mantendo os nossos quartos limpos. Lá fora, ela cuidava meticulosamente de um pequeno jardim que era a inveja da vizinhança. Tudo aquilo em que a Mamã tocava transformava-se em ouro. Ela não acreditava em fazer fosse o que fosse pela metade. A Mamã dizia-nos, muitas vezes, que deveríamos dar sempre o nosso melhor em tudo o que fizéssemos.

A Mamã era, de fato, uma cozinheira talentosa. De todas as coisas que ela fazia pela família, acho que refeições novas e exóticas eram as suas preferidas. E isto era especialmente verdade naqueles dias em que o Pai estava em casa. A Mamã passava a maior parte do dia a preparar uma das suas fantásticas refeições. Nalguns dias em que o Pai estava a trabalhar, a Mamã levava-nos em excitantes voltas pela cidade. Um dia, levou-nos a Chinatown em São Francisco. Enquanto passeávamos pela zona, a Mamã falou-nos acerca da cultura e da história do povo chinês. Quando voltamos, a Mamã pôs o gira-discos a tocar e a casa encheu-se de belos sons do 3 Brady Bunch: Programa de televisão dos anos 60 e 70, que conta a história de uma família numerosa e sem grandes problemas (N. T.)

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Oriente. Depois decorou a sala de jantar com lanternas chinesas. Nessa noite, vestiu um quimono e serviu algo que nos pareceu uma refeição muito exótica, mas deliciosa. No fim do jantar a Mamã deu-nos bolinhos da sorte e leu-nos as legendas. Eu senti que a mensagem do bolinho me conduziria ao meu destino.

Alguns anos mais tarde, quando eu já sabia ler, encontrei uma das minhas sinas. Dizia: "Ama e honra a tua mãe, pois ela é o fruto que te dá a vida."

Mas, voltando ao assunto, a nossa casa estava cheia de animais de estimação: gatos, cães, aquários cheios de peixes exóticos e uma tartaruga americana chamada "Thor". Eu lembro-me melhor da tartaruga, porque a Mamã deixou-me escolher um nome para ela. Senti-me orgulhoso, porque os meus irmãos tinham sido escolhidos para dar o nome aos outros animais e agora era a minha vez. Pus ao réptil o nome da minha personagem favorita dos desenhos animados.

Os aquários, com capacidade para perto de setenta litros, pareciam estar em todo o lado. Havia pelo menos dois na sala de estar, e um cheio de guppies4 no nosso quarto. A Mamã, criativamente, decorou os tanques aquecidos com areia colorida e folhas de metal colorido a forrar a parte de trás; tudo o que ela achasse que tornava os tanques mais realistas. Sentávamos-nos muitas vezes perto dos tanques, enquanto a Mamã nos falava das diferentes espécies de peixes.

A mais fantástica das lições dadas pela Mamã veio num domingo de manhã. Um dos nossos gatos estava a ter um comportamento estranho. A Mamã fez-nos sentar perto da gata, enquanto explicava o processo do nascimento. Depois de todos os gatinhos terem deslizado em segurança para fora da mãe gata, a Mamã explicou com grandes pormenores a maravilha da vida. Fosse qual fosse a atividade da família, ela aparecia sempre com uma lição construtiva, embora geralmente não tivéssemos consciência de que estávamos a ser ensinados.

Para a nossa família, durante esses bons anos, as férias começavam no Dia das Bruxas. Numa noite de outubro, quando a enorme lua estava bem à vista, a Mamã fez-nos sair a correr de casa para olhar para a "Grande Abóbora" no céu. Quando voltamos aos nossos quartos, disse-nos para procurarmos debaixo das almofadas, onde encontramos carrinhos de corrida. Os meus dois irmãos e eu gritamos de alegria e o rosto da Mamã corou de orgulho.

No dia a seguir ao da Ação de Graças, a Mamã enfiava-se na cave e depois trazia enormes caixas cheias de decorações de Natal. De pé sobre um escadote, pregava faixas decorativas às traves do teto. Quando acabava, todas as divisões da casa tinham um toque da época. Na sala de jantar, a Mamã colocava velas vermelhas de diferentes tamanhos sobre o tampo da sua tão apreciada arca de carvalho. Desenhos a imitar flocos de neve adornavam todas as janelas na sala de estar e de jantar. Luzes de Natal envolviam as janelas dos nossos quartos. Todas as noites eu adormecia olhando para o brilho suave e colorido das luzes de Natal que apagavam e acendiam.

A nossa árvore de Natal nunca tinha menos de dois metros e meio e a família inteira demorava horas a decorá-la. Todos os anos, um de nós tinha a honra de lhe ser permitido colocar o anjo no topo da árvore, enquanto o Pai nos segurava com os seus braços fortes. Depois de a árvore estar decorada e o jantar acabado, amontoávamos-nos na carrinha e percorríamos a vizinhança, admirando as decorações nas outras casas. A Mamã divagava sempre sobre as suas idéias acerca de coisas maiores e melhores para o Natal seguinte, embora os meus irmãos e eu soubéssemos que a nossa casa era sempre a melhor. Quando voltávamos a casa, a Mamã sentava-nos junto à lareira para bebermos caldo de rainha.

Enquanto nos contava histórias, Bing Crosby cantava "White Christmas" na aparelhagem de som. Eu ficava tão excitado durante esses períodos de férias que não conseguia dormir. Por vezes, a mãe pegava-me ao colo, enquanto eu adormecia ouvindo o crepitar do fogo.

4 guppies: Variedade de peixes tropicais ( N. T)

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À medida que o Dia de Natal se aproximava, os meus irmãos e eu ficávamos cada vez mais excitados. A pilha de presentes na base da árvore crescia de dia para dia. Quando o Natal finalmente chegava, havia dúzias de prendas para cada um de nós.

Na véspera de Natal, depois de um jantar especial e das canções, tínhamos autorização para abrir uma prenda. Depois disso, éramos mandados para a cama. Eu esticava sempre as orelhas quando estava na cama, à espera do som das campainhas do trenó do Pai Natal. Mas adormecia sempre, antes de ouvir a sua rena aterrar no telhado.

Antes do amanhecer, a Mamã entrava no nosso quarto e acordava-nos, murmurando: "O Pai Natal já veio!" Um ano, deu a cada um de nós um chapéu alto amarelo e de plástico e fez-nos marchar para a sala de estar. Durava uma eternidade a rasgar o papel colorido dos embrulhos, para descobrir os nossos novos brinquedos de Natal. Depois, a Mamã dizia-nos para corrermos para o quintal das traseiras com as nossas roupas novas, para olharmos através da janela para a nossa enorme árvore de Natal. Naquele ano, de pé no quintal, lembro-me de ver a Mamã a chorar. Perguntei-lhe porque é que estava triste. A Mamã disse-me que estava a chorar de felicidade por ter uma verdadeira família.

Pelo fato de o emprego do Pai lhe exigir que fizesse com freqüência turnos de 24 horas, a Mãe levava-nos muitas vezes em passeios de um dia inteiro a locais como o parque Golden Gate em São Francisco. Enquanto passeávamos devagar pelo parque, a Mamã explicava as diferenças entre as áreas e como ela invejava as flores maravilhosas. Deixávamos sempre para o fim a visita ao aquário Steinhart. Os meus irmãos e eu galgávamos as escadas e irrompíamos pelas pesadas portas. Sentíamos-nos excitados ao inclinarmos-nos sobre a cerca feita de bronze e em forma de cavalo-marinho, olhando lá para baixo para a pequena queda de água e para o lago onde viviam os crocodilos e as enormes tartarugas. Quando eu era criança, era este o meu local favorito, no parque inteiro. Uma vez tive medo ao imaginar cair da cerca abaixo, para o lago. Sem dizer uma palavra, a Mamã deve ter sentido o meu medo. Olhou para mim e deu-me a mão com muita suavidade.

A primavera significava piqueniques. A Mamã preparava um banquete de frango frito, saladas, sanduíches e montes de sobremesas, na noite anterior. No dia seguinte, muito cedo, a nossa família acelerava para o parque Junipero Serra. Aí, os meus irmãos e eu corríamos à vontade pela relva e subíamos cada vez mais alto nos baloiços do parque. Por vezes aventurávamos-nos num caminho novo. A Mamã tinha sempre de nos interromper as brincadeiras, quando chegava a hora do almoço. Engolíamos a comida sem sequer a saborear e rapidamente os meus irmãos e eu eclipsávamos-nos para partes desconhecidas, à procura de grandes aventuras. Os nossos pais pareciam felizes por estarem deitados ao lado um do outro sobre uma manta, sorvendo vinho tinto e vendo-nos a brincar.

Era sempre uma excitação quando a família ia de férias no verão. A Mamã era sempre o cérebro por detrás destas viagens. Planeava todos os pormenores e inchava de orgulho à medida que as atividades se desenrolavam. Geralmente viajávamos até Portola ou Memorial Park e acampávamos na nossa tenda verde, de tamanho gigante, durante uma semana ou duas. Mas sempre que o Pai nos levava para norte através da ponte Golden Gate, eu sabia que íamos ao meu local favorito no mundo inteiro: o Rio Russo. Para mim, a mais memorável viagem ao rio aconteceu no ano em que eu estava no jardim infantil. No último dia de aulas, a Mamã pediu que me deixassem sair meia hora mais cedo. Quando o Pai tocou a buzina, eu galguei o pequeno monte que separava a escola do carro que me esperava. Eu estava entusiasmado porque sabia aonde íamos. Durante a viagem, fiquei fascinado com as vinhas, aparentemente intermináveis. Quando entramos na calma cidade de Guerneville, abri a minha janela para cheirar o ar doce das árvores de pau-brasil.

Cada dia representava uma nova aventura. Os meus irmãos e eu passávamos o dia a trepar pelo tronco de uma árvore velha e queimada, com as nossas velhas botas, ou a nadar no rio, na praia de Johnson. A praia de Johnson era um acontecimento para o dia inteiro. Nós deixávamos a nossa cabana às nove, e voltávamos depois das três. A Mamã ensinou-nos a nadar

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numa pequena poça do rio. Nesse verão, a Mamã ensinou-me a nadar de costas. Pareceu ficar muito orgulhosa, quando finalmente eu fui capaz.

Todos os dias pareciam polvilhados de magia. Um dia, depois do jantar, a Mamã e o Papá levaram-nos aos três para contemplarmos o pôr do sol. Demo-nos as mãos, depois de passarmos a cabana do Sr. Parker em direção ao rio. A água verde do rio estava lisa como vidro. Os gaios ralhavam aos outros pássaros e uma brisa tépida percorria-me os cabelos. Sem uma palavra, ficamos a olhar o sol que parecia uma bola de fogo, à medida que descia por detrás das árvores altas, deixando faixas brilhantes azuis e cor-de-laranja no céu. Senti que alguém me punha o braço sobre os ombros. Pensei que era o meu pai. Voltei-me e fiquei corado de orgulho ao ver que a Mamã me apertava com força. Eu conseguia sentir o seu coração a bater. Nunca me senti tão seguro e tão confortado como naquele momento, no Rio Russo.

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Capítulo 3

UM MAU RAPAZ

A minha relação com a Mamã mudou, drasticamente, da disciplina para o castigo desenfreado. Tornou-se por vezes tão difícil, que eu nem força tinha para rastejar dali para fora; mesmo que isso significasse salvar a vida.

Enquanto criança, eu, se calhar, tinha uma voz mais potente do que os outros. Também tinha o azar de ser apanhado a fazer asneiras, embora os meus irmãos e eu estivéssemos muitas vezes a cometer o mesmo "crime". No início, eu era posto num canto do nosso quarto. Nessa altura, eu já tinha medo da Mamã. Muito medo. Nunca lhe pedia que me deixasse sair. Sentava-me e esperava que um dos meus irmãos viesse ao nosso quarto e pedia-lhe que perguntasse se o David podia sair e ir brincar.

Por essa altura, o comportamento da Mamã começou a mudar radicalmente. Por vezes, enquanto o Pai estava a trabalhar, passava o dia inteiro deitada no sofá, com o robe vestido e a ver televisão. A Mamã só se levantava para ir à casa de banho, tomar outra bebida, ou aquecer restos de comida. Quando nos gritava, a sua voz transitava da mãe carinhosa para a bruxa má. Em breve, o som da voz da Mãe começou a causar-me calafrios na espinha. Mesmo quando vociferava para algum dos meus irmãos, eu corria a esconder-me no nosso quarto, esperando que ela voltasse rapidamente para o sofá, para a bebida e para o seu programa de televisão. Passado algum tempo, eu já sabia que espécie de dia iria ter, pelo modo como ela se vestia. Eu suspirava de alívio sempre que a Mamã saía do quarto com um lindo vestido e o rosto maquiado. Nesses dias, tinha sempre um sorriso.

Quando a Mãe decidiu que o "tratamento do canto" já não dava resultado, fui promovido ao "tratamento do espelho". No princípio, era uma forma de castigo que não chamava a atenção. A Mãe limitava-se a agarrar-me e a esmagar a minha cara contra o espelho, esfregando o meu rosto, marcado pelas lágrimas, no vidro liso e refletor. Depois ordenava-me que repetisse: "Eu sou um mau rapaz! Eu sou um mau rapaz! Eu sou um mau rapaz!" Obrigava-me então a ficar de pé, fixando o espelho. Ficava ali com as mãos atadas aos flancos, balançando para a frente e para trás e receando o momento em que o segundo intervalo para anúncios entrasse no ar.

Eu sabia que a Mãe em breve irromperia pelo vestíbulo para ver se a minha cara ainda estava colada ao espelho e para me dizer quão repugnante eu era. Sempre que os meus irmãos vinham ao quarto, enquanto eu estava ao espelho, olhavam para mim, encolhiam os ombros e continuavam a brincar como se eu não estivesse ali. No início eu ficava ciumento, mas em breve percebi que estavam apenas a tentar salvar a própria pele.

Quando o Pai estava no trabalho, a Mãe gritava e berrava muitas vezes, enquanto forçava os meus irmãos e eu a procurarmos na casa inteira algo que ela tinha perdido. A procura começava geralmente de manhã e demorava horas. Passado algum tempo, geralmente mandava-me procurar na garagem que ficava debaixo de uma parte da casa, como uma cave. Mesmo aí, eu tremia ao ouvir a Mãe gritar com um dos meus irmãos.

As buscas continuaram durante meses e, finalmente, eu era o único escolhido para procurar as coisas dela. Uma vez, esqueci-me do que estava a procurar. Quando timidamente lhe perguntei de que é que eu estava à procura, a Mãe deu-me um murro na cara. Estava deitada no sofá e nem sequer deixou de ver o seu programa de televisão. O sangue escorreu-me pelo nariz e comecei a chorar. A Mãe tirou um guardanapo da mesa, arrancou um bocado e enfiou-mo pelo nariz acima.

−Sabes muito bem de que é que estás à procura! − gritou. − Agora vai buscá-lo! Eu descia a correr para a cave, certificando-me de que fazia barulho suficiente para

convencer a Mãe de que estava a obedecer febrilmente à sua ordem. À medida que o "encontrem

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as coisas" da Mãe se tornava mais habitual, comecei a fantasiar que encontrava o objeto perdido. Imaginava-me a marchar escada acima com o meu troféu, e a Mamã a receber-me com beijos e abraços. A minha fantasia incluía a família a viver feliz para sempre. Mas nunca encontrei nenhuma das coisas perdidas da Mãe e ela nunca me deixou esquecer-me de que eu era um perdedor incompetente.

Enquanto criança, percebi que a Mamã era diferente, como o dia da noite, quando o Pai chegava a casa do trabalho. Quando a Mamã arranjava o cabelo e punha roupas bonitas, parecia mais calma. Eu adorava quando o Papá estava em casa. Significava que não havia pancada, tratamentos do espelho ou longas procuras de coisas perdidas. O Pai tornou-se o meu protetor. Sempre que ele ia para a garagem para trabalhar num projeto, eu seguia-o. Se ele se sentava na sua cadeira favorita para ler o jornal, eu punha-me aos seus pés. À noite, depois de a louça do jantar ser tirada da mesa, o Pai lavava e eu secava. Eu sabia que, enquanto estivesse ao seu lado, não me acontecia mal nenhum.

Um dia, antes de ele sair para o trabalho, tive um choque tremendo. Depois de se despedir do Ron e do Stan, ajoelhou-se, apertou-me os ombros com força e disse-me para ser "um bom rapaz". A Mãe estava de pé por detrás dele com os braços cruzados sobre o peito e um sorriso cruel no rosto. Olhei para os olhos do meu pai e soube nesse instante que eu era um "mau rapaz". Um arrepio gelado atravessou-me o corpo. Queria agarrar-me a ele e nunca o largar, mas antes de conseguir dar-lhe um abraço ele levantou-se, voltou-se e saiu, sem dizer mais nada.

Durante um certo tempo após o aviso do Pai, as coisas entre a Mãe e eu pareceram acalmar. Quando o Papá estava em casa, os meus irmãos e eu brincávamos no nosso quarto ou lá fora, até às três da tarde. A Mãe ligava então a televisão para podermos ver desenhos animados. Para os meus pais, as três da tarde significavam "A Hora Feliz". O Pai cobria o tampo do balcão da cozinha com garrafas de álcool e copos altos com desenhos. Cortava limões e limas, colocando-os em pequenas taças ao lado de um pequeno jarro com cerejas. Frequentemente, bebiam desde o meio da tarde até os meus irmãos e eu irmos para a cama. Lembro-me de os ver a dançar à volta da cozinha com música do rádio. Ficavam muito juntinhos, e pareciam felizes. Eu pensava que podia enterrar os maus tempos. Estava enganado. Os maus tempos estavam só a começar.

Um mês ou dois mais tarde, num domingo, enquanto o Pai estava no trabalho, os meus irmãos e eu estávamos a brincar no nosso quarto, quando ouvimos a Mãe a correr pelo vestíbulo, gritando conosco. O Ron e o Stan correram a esconder-se na sala de estar. Eu sentei-me imediatamente na minha cadeira. Com os braços esticados e levantados, a Mãe dirigiu-se a mim. À medida que se aproximava, eu fui encostando a cadeira à parede. Pouco depois a minha cabeça batia na parede. Os olhos da Mãe estavam vidrados e vermelhos e o seu hálito cheirava a álcool. Fechei os olhos, quando os socos começaram a atirar-me de um lado para o outro. Tentei proteger o rosto com as mãos, mas a Mãe empurrava-as. Os seus golpes pareciam nunca mais acabarem. Finalmente, levantei o meu braço esquerdo para cobrir o rosto. Quando a Mãe me agarrou o braço, perdeu o equilíbrio e recuou um passo. Enquanto ela lutava violentamente para recuperar a estabilidade, ouvi qualquer coisa a estalar e senti uma dor intensa no ombro e no braço. A expressão de espanto no rosto da Mãe dizia-me que ela também tinha ouvido o som, mas libertou-me o braço e foi-se embora como se nada tivesse acontecido. Segurei o braço, enquanto ele começava a latejar de dor. Antes de poder, de fato, observar o meu braço, a Mãe chamou-me para jantar.

Cheguei-me a um tabuleiro para tentar comer. Quando tentei ir buscar um copo de leite, o meu braço esquerdo não reagiu. Os meus dedos mexiam-se, obedecendo às minhas ordens, mas o meu braço zumbia e ficava inerte. Olhei para a Mãe, tentando suplicar com os olhos. Ela ignorou-me. Eu sabia que algo se passava de muito grave, mas tinha demasiado medo para pronunciar uma só palavra. Limitei-me a estar ali sentado, olhando fixamente para o meu tabuleiro de comida. A Mãe, finalmente, deu-me licença para sair dali e mandou-me cedo para a cama, dizendo-me para dormir no beliche de cima. Isto não era usual, pois eu sempre dormira no

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de baixo. Já perto da madrugada adormeci por fim, com o meu braço esquerdo cuidadosamente protegido pelo outro.

Não dormira ainda muito tempo quando a Mãe me acordou, explicando que eu tinha caído do beliche durante a noite. Parecia muito preocupada com o meu estado ao conduzir-me ao hospital. Quando ela contou ao médico a minha queda do beliche de cima eu percebi, pelo olhar que ele me lançou, que sabia que o meu ferimento não tinha sido um acidente. Eu estava outra vez com demasiado medo para falar. Em casa, a Mãe inventou uma história ainda mais dramática para o Pai. Na nova versão, a Mãe incluiu os seus esforços para me apanhar antes de eu chegar ao chão. Ao sentar-me no colo da Mãe, ouvindo-a mentir ao Pai, percebi que a minha mamã estava doente. Mas o meu medo transformou o acidente no nosso segredo. Eu sabia que, se contasse a alguém, o próximo "acidente" seria pior.

A escola era um abrigo para mim. Sentia-me excitado por estar longe da Mãe. Nos intervalos, eu era uma espécie de selvagem. Corria pelo recreio coberto de cortiça à procura de coisas novas e interessantes para fazer. Fazia amigos facilmente e sentia-me muito feliz por estar na escola. Um dia, no fim da primavera, ao voltar a casa da escola, a Mãe atirou-me para dentro do seu quarto. Então gritou-me, afirmando que eu não podia passar de classe porque era um mau rapaz. Eu não percebi. Sabia que tinha mais testes positivos do que qualquer outro na turma. Obedecia à minha professora e sentia que ela gostava de mim. Mas a Mãe continuava a berrar que eu tinha envergonhado a família e seria severamente punido. Decidiu que eu estava proibido de ver televisão para sempre. Eu ia ficar sem jantar e tinha de cumprir todas as tarefas que ela imaginasse. Depois de outra sova, fui mandado para a garagem, onde tive que ficar de pé até a Mãe me mandar para a cama.

Nesse verão, sem aviso, fui despejado na casa da minha tia Josie, a caminho do acampamento. Ninguém me disse nada sobre o assunto e eu não compreendia por que. Senti-me um marginal, quando a carrinha se afastou, deixando-me para trás. Senti-me tão triste e vazio! Tentei fugir da casa da minha tia. Queria encontrar a minha família e, por alguma estranha razão, queria estar com a Mãe. Não cheguei muito longe e a minha tia mais tarde informou a mãe da minha tentativa. Na vez seguinte em que o Pai fez o turno de 24 horas, eu paguei pelo meu pecado. A Mãe esbofeteou-me, esmurrou-me e deu-me pontapés até eu cair para o chão. Tentei dizer-lhe que fugira porque queria estar com ela e com a família. Tentei dizer-lhe que tinha sentido a falta dela, mas a Mãe recusou-se a deixar-me falar. Tentei mais uma vez e ela correu à casa de banho, agarrou numa barra de sabão e enfiou-ma pela garganta abaixo. Depois disso, deixei de ter autorização para falar, a não ser que recebesse ordens nesse sentido.

Voltar à mesma classe foi uma alegria. Eu tinha as bases e fui automaticamente considerado o gênio da turma. Como não passei de ano, o Stan e eu estávamos no mesmo nível. Durante os intervalos, eu ia à turma do Stan para brincar. Na escola éramos os melhores amigos; contudo, em casa, ambos sabíamos que eu tinha de ser ignorado.

Um dia corri para casa para mostrar um teste. A Mãe atirou-me para o seu quarto, gritando acerca de uma carta que recebera do Pólo Norte. Afirmava que a carta dizia que eu era "um mau rapaz" e o Pai Natal não me traria presentes no Natal. Continuou a enfurecer-se, dizendo que eu tinha envergonhado a família de novo. Eu fiquei numa grande confusão, à medida que ela me atormentava sem descanso. Senti que estava a viver num pesadelo que a Mãe tinha criado e rezava para que acordasse. Antes do Natal desse ano havia apenas um par de presentes para mim debaixo da árvore e vinham de parentes afastados. Na manhã de Natal o Stan atreveu-se a perguntar-lhe porque é que o Pai Natal me tinha trazido apenas dois desenhos para colorir. Ela explicou-lhe dizendo que "o Pai Natal só traz brinquedos aos bons rapazes e raparigas". Eu captei um olhar do Stan. Havia sofrimento nos seus olhos, e apercebi-me de que ele compreendia os jogos excêntricos da Mãe. Uma vez que eu estava ainda sob castigo, no Dia de Natal tive que vestir o meu fato de trabalho e desempenhar as minhas tarefas. Quando estava a limpar a casa de banho, ouvi uma discussão entre a Mãe e o Pai. Ela estava zangada com ele por "ter ido nas suas costas" comprar-me os desenhos. A Mãe disse ao Pai que ela é que estava

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encarregada de disciplinar "o rapaz", e que ele a tinha desautorizado ao comprar os presentes. Quanto mais o Pai se justificava, mais furiosa ela ia ficando. Percebi que ele perdera, e que eu ia ficando cada vez mais isolado.

Uns meses mais tarde a Mãe tornou-se a mãe-abrigo do Clube de Escoteiros. Sempre que os outros miúdos vinham a nossa casa, ela tratava-os como reis. Alguns disseram-me que gostariam que as suas mães fossem como a minha. Eu nunca respondi, mas perguntava a mim próprio o que pensariam eles se soubessem a verdade. A Mãe só manteve essa ocupação durante uns meses. Quando ela desistiu eu fiquei aliviado, porque isso significava que podia ir a casa dos outros miúdos para os encontros das quartas-feiras.

Numa quarta-feira fui a casa, vindo da escola, para vestir o meu uniforme azul e dourado do Clube dos Escoteiros. A Mãe e eu éramos os únicos em casa e, pela expressão do seu rosto, percebi que ela queria sangue. Depois de esmagar o meu rosto contra o espelho do quarto, agarrou-me no braço e arrastou-me para o carro. Durante a viagem para a casa da mãe-abrigo, a minha Mãe disse-me o que me ia fazer quando chegássemos a casa. Eu fugi para a extremidade do assento da frente do carro, mas não resultou. Ela estendeu o braço sobre o assento e agarrou-me o queixo, levantando-me a cabeça na direção da dela. Os olhos da Mãe estavam raiados de sangue e a voz parecia a de uma louca. Quando chegamos a casa da mãe-abrigo, corri para a porta a chorar. Lamuriei que tinha sido um mau rapaz e não podia ir à reunião. A mãe-abrigo sorriu amavelmente, dizendo que gostaria que eu viesse à próxima reunião. Foi a última vez que a vi.

Em casa, a Mãe ordenou-me que tirasse a roupa e ficasse de pé junto ao fogão. Eu tremia de medo e de perturbação. Então ela revelou o meu crime hediondo. Disse-me que tinha ido várias vezes à escola para observar os meus irmãos e eu a brincarmos no intervalo do almoço. Afirmou que me vira sempre a brincar na relva, o que era absolutamente proibido pelas suas regras. Eu respondi rapidamente que nunca brincava na relva. Sabia que ela se tinha enganado. A minha recompensa por cumprir as regras da Mãe e dizer a verdade foi um soco na cara.

A Mãe então acendeu os bicos de gás do fogão da cozinha. Disse-me que lera um artigo acerca de uma mãe que obrigara o filho a deitar-se sobre um fogão a escaldar. Eu fiquei imediatamente aterrorizado. O meu cérebro ficou paralisado, e as minhas pernas vacilaram. Eu queria desaparecer. Fechei os olhos, desejando que ela estivesse longe. O meu cérebro fechou-se quando senti a mão da Mãe agarrar-me o braço como se estivesse drogada.

− Tornaste-me a vida num inferno! − disse em tom de escárnio. −Agora é altura de eu te mostrar como é o inferno!

Agarrando-me o braço, pô-lo na chama laranja-azulada. A minha pele parecia explodir com o calor. Sentia o cheiro dos pelos chamuscados do meu braço queimado. Por mais que lutasse, não conseguia que a Mãe me largasse o braço. Finalmente caí no chão, sobre as mãos e os joelhos, e tentei soprar para o meu braço.

−É uma pena o bêbedo do teu pai não estar aqui para te salvar − disse em tom sibilante. Então, ordenou-me que subisse para cima do fogão, para ela me ver a arder. Eu recusei,

chorando e implorando. Estava com tanto medo, que batia com os pés em protesto. Mas a Mãe continuava a empurrar-me para cima do fogão. Eu olhava para as chamas, rezando para que o gás acabasse.

De repente, comecei a perceber que, quanto mais tempo eu conseguisse manter-me afastado do topo do fogão, mais chances tinha de sobreviver. Sabia que o meu irmão Ron chegaria em breve da reunião dos escoteiros e sabia que a Mãe nunca agia desta forma bizarra quando mais alguém estava em casa. Para sobreviver eu tinha que empatar. Lancei um olhar para o relógio da cozinha atrás de mim. O segundo ponteiro parecia andar tão devagar. Para manter a Mãe desorientada, comecei a fazer perguntas em tom lamentoso. Isto ainda a enfureceu mais e ela começou a desferir-me socos na cabeça e no peito. Quanto mais me batia, mais eu me ia apercebendo de que ganhara! Tudo era melhor do que arder no fogão.

Finalmente, ouvi a bandeira da porta da frente a abrir-se. Era o Ron. O meu coração encheu-se de alívio. O rosto da Mãe ficou sem sangue. Ela sabia que perdera. Por um instante a

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Mãe gelou. Aproveitei para agarrar nas roupas e correr para a garagem, onde me vesti rapidamente. Encostei-me à parede e comecei a choramingar, até que compreendi que eu a vencera. Eu empatara uns minutos preciosos. Eu usara a cabeça para sobreviver. Pela primeira vez, eu vencera!

De pé, ali sozinho naquela garagem úmida e escura, eu soube, pela primeira vez, que podia sobreviver. Decidi que usaria qualquer tática em que pudesse pensar para derrotar a Mãe, ou para a deter na sua lamentável obsessão. Sabia que, se eu quisesse viver, tinha que pensar com antecedência. Não podia continuar a chorar como um bebê indefeso. Para poder sobreviver, eu nunca podia ceder. Nesse dia, jurei a mim próprio que nunca mais daria àquela megera a satisfação de me ouvir implorar que não me batesse mais.

No frio da garagem, todo o meu corpo tremia, não só de gelada ira, mas também de intenso medo. Usei a língua para lamber a ferida e aliviar o meu braço latejante. Apetecia-me gritar, mas recusei-me a dar-lhe o prazer de me ouvir chorar. Eu mantive-me de costas direitas. Consegui ouvir a Mãe falar com o Ron lá em cima, dizendo-lhe quão orgulhosa estava dele, e quão tranqüila estava quanto à possibilidade de ele se tornar igual ao David: um mau rapaz.

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Capítulo 4

A LUTA PELA COMIDA

No verão a seguir ao incidente da queimadura, a escola tornou-se a minha única

esperança de salvação. Exceto durante o breve espaço de uma ida à pesca, as coisas com a Mãe eram o jogo do toca e foge, ou do esmaga e arremessa: ela esmagava-me e eu arremessava-me para a solidão da cave/garagem. O mês de setembro trouxe a escola e a felicidade. Eu tinha roupa nova e uma lancheira nova e brilhante. Pelo fato de a Mãe me fazer usar as mesmas roupas semana após semana, em outubro as minhas roupas estavam gastas, rasgadas e mal-cheirosas. Ela nem se preocupava em disfarçar as feridas no meu rosto e braços. Se me interrogassem, eu já tinha preparadas as desculpas que a Mãe me tinha posto na cabeça.

Nessa altura, ela "esquecia-se" de me dar o jantar. O pequeno-almoço não era muito melhor. Um dia, tive autorização para comer os restos dos flocos de cereais dos meus irmãos, mas só se cumprisse todas as minhas tarefas antes de ir para a escola.

À noite eu tinha tanta fome que o meu estômago rugia como se eu fosse um urso zangado e ficava acordado a pensar na comida. "Talvez amanhã eu possa jantar", dizia para mim próprio. Horas mais tarde, deixava-me adormecer, sonhando com comida. Sonhava sobretudo com hamburgers colossais, com todos os acompanhamentos. Nos meus sonhos agarrava no meu prêmio e levava-o à boca. Visualizava cada bocadinho do hamburger. A carne pingava de gordura, e fatias grossas de queijo borbulhavam em cima. Os condimentos infiltravam-se entre a alface e o tomate. Ao trazer o hamburger na direção do rosto, abria a boca para devorar o meu prêmio, mas não acontecia nada. Tentava repetidamente, mas, por mais que lutasse, não conseguia saborear um pedaço da minha fantasia. Momentos mais tarde, acordava com o estômago mais vazio do que antes. Não conseguia matar a fome, nem sequer nos meus sonhos.

Pouco depois de começar a sonhar com comida, passei a roubar comida na escola. O meu estômago encolhia-se, não só de medo, mas também de ansiedade. Ansiedade, porque sabia que dentro de segundos teria alguma coisa para pôr no estômago. Medo, porque também sabia que, em qualquer altura, podia ser apanhado a roubar. Roubava sempre a comida antes de as aulas começarem, enquanto os meus colegas brincavam fora do edifício. Encostava-me à parede, na parte de fora da minha aula de homeroom, punha a minha lancheira ao pé de uma outra e ajoelhava-me para que ninguém me visse a pilhar os seus lanches. As primeiras vezes foram fáceis, mas depois de vários dias alguns estudantes começaram a descobrir que as barras de chocolate e outras sobremesas tinham desaparecido. Passado pouco tempo, os meus colegas de turma começaram a odiar-me. O professor disse ao diretor que, por sua vez, informou a minha Mãe. A luta pela comida tornou-se um ciclo. O relatório que o diretor fazia à Mãe levava a que eu tivesse mais tareia e menos comida em casa.

Nos fins-de-semana, para me castigar dos meus roubos, a Mãe recusava-se a alimentar-me. No domingo à noite, crescia-me água na boca quando começava a imaginar formas novas e seguras de roubar comida sem ser apanhado. Um dos meus planos era roubar de outras turmas, onde eu não era tão conhecido. À segunda-feira de manhã, eu saía a correr do carro da Mãe para uma nova turma, a fim de tirar coisas das lancheiras. Consegui manter-me durante algum tempo, mas não durou muito até o diretor relacionar os roubos com a minha pessoa.

Em casa o castigo duplo da fome e dos ataques violentos continuou. Nessa altura, para todos os efeitos práticos, eu já não era um membro da família. Eu existia, mas era quase completamente ignorado. A Mãe até tinha deixado de usar o meu nome; referia-se a mim apenas como: O Rapaz. Não era autorizado a tomar as refeições com a família, brincar com os meus irmãos, ou ver televisão. Estava encalhado na casa. Não podia olhar nem falar com ninguém.

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Quando vinha da escola para casa, cumpria imediatamente todas as tarefas que a Mãe me atribuía. Quando as tarefas acabavam, ia diretamente para a cave, onde ficava de pé até ser chamado para levantar a mesa ou lavar a louça. Ficou muito claro que ser apanhado sentado ou deitado lá em baixo na cave me traria conseqüências terríveis. Eu tinha-me tornado o escravo da Mãe.

O Pai era a minha única esperança e ele fazia tudo o que podia para me passar pedaços de comida. Tentava embebedar a Mãe, pensando que o álcool podia pô-la mais bem-disposta. Tentava levar a Mãe a mudar de opinião quanto à minha alimentação. Tentou até fazer acordos, prometendo-lhe este mundo e o outro. Mas todas as suas tentativas foram em vão. A Mãe era firme como uma rocha. Se possível, a bebedeira ainda a tornava pior. A Mãe foi-se tornando num monstro.

Eu sabia que os esforços do Pai para me ajudar estavam a causar um mau ambiente entre ele e a Mãe. Em breve começaram a surgir discussões a meio da noite. Da cama eu conseguia ouvir o ritmo a crescer, até um clímax de estalar os ouvidos. Nessa altura estavam ambos bêbedos e eu ouvia a Mãe gritar toda a espécie de impropérios. Fosse qual fosse o assunto inicial da luta, eu rapidamente me tornava o objeto da disputa. Sabia que o Pai estava a tentar ajudar, mas na cama eu continuava a tremer de medo. Sabia que ele perderia, tornando as coisas piores para mim no dia seguinte. Quando começavam a brigar, a Mãe arrancava no carro com os pneus a guincharem. Geralmente voltava em menos de uma hora. No dia seguinte, ambos agiam como se nada tivesse acontecido. Eu ficava agradecido, quando o Pai arranjava uma desculpa para descer à cave e me passava um bocado de pão. Prometia-me sempre que continuaria a tentar.

À medida que as discussões entre a Mãe e o Pai se tornaram mais freqüentes, ele começou a mudar. Frequentemente, após uma discussão, enchia um saco de roupa e partia para o trabalho a meio da noite. Depois de ele sair, a Mãe arrancava-me da cama e arrastava-me para a cozinha. Enquanto eu permanecia de pé, tremendo no meu pijama, empurrava-me de um lado para o outro da cozinha. Uma das minhas técnicas de resistência consistia em deitar-me no chão, como se não tivesse força suficiente para me manter de pé. Essa técnica não durou muito tempo. A Mãe puxava-me pelas orelhas e gritava-me para o rosto com o seu hálito alcoólico, minutos seguidos. Nessas noite a sua mensagem era sempre a mesma: eu era o motivo dos problemas entre ela e o Pai. Muitas vezes, eu ficava tão cansado, que as minhas pernas tremiam. A minha única saída era fixar o chão e esperar que a Mãe ficasse sem forças.

Quando eu mudei de classe, a Mãe ficou grávida do quarto filho. A minha professora, a menina Moss, começou a ter um interesse especial por mim. Começou por me fazer perguntas acerca da minha falta de atenção. Eu mentia, dizendo que tinha ficado a ver televisão até tarde. As minhas mentiras não eram convincentes e ela continuou a fazer perguntas, não só sobre o fato de eu estar com sono, mas também sobre o estado da minha roupa e as marcas no meu corpo. A Mãe ensaiava-me sempre sobre o que dizer a respeito do meu aspecto. Por isso eu limitava-me a contar à professora a história que a mãe queria.

Os meses foram passando e a menina Moss tornou-se mais persistente. Um dia, participou finalmente a sua preocupação ao diretor da escola. Ele conhecia-me bem como o ladrão de comida, por isso mandou chamar a Mãe. Quando voltei a casa nesse dia, foi como se alguém tivesse largado uma bomba atômica. A Mãe estava mais violenta do que nunca. Estava furiosa, porque um professor "Hippie" a tinha acusado de maltratar uma criança. A Mãe disse que se iria encontrar com o diretor no dia seguinte, para se defender das falsas acusações. No fim da sessão, o meu nariz sangrou por duas vezes e faltava-me um dente.

Quando voltei da escola, na tarde seguinte, a Mãe sorria, como se tivesse ganho um milhão de dólares nas corridas de cavalos. Contou-me como se tinha vestido para ir ver o diretor, com o seu bebê Russel nos braços. Contou-me como explicara ao diretor que o David tinha uma imaginação prodigiosa. A Mãe disse-lhe que o David se tinha muitas vezes golpeado e arranhado a si próprio para chamar a atenção, desde o recente nascimento do seu novo irmão, Russel. Eu conseguia imaginá-la a usar o seu encanto de serpente, à medida que acariciava o Russel para que o diretor visse. No fim da conversa, a Mãe disse que tinha imenso prazer em colaborar com a

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escola. Disse que podiam chamá-la sempre que houvesse qualquer problema com o David. A Mãe disse que o pessoal da escola tinha recebido instruções para não dar atenção às minhas loucas histórias sobre bater em crianças ou não lhes dar comida. Estar ali de pé na cozinha nesse dia, ouvindo-a gabar-se, deu-me uma sensação de vazio total. Enquanto me contava o encontro, eu sentia a sua confiança fortalecida e essa confiança fez-me temer pela minha vida. Desejei eclipsar-me e desaparecer para sempre.

Nesse verão, a família passou férias junto do Rio Russo. Embora me desse melhor com a mãe, o sentimento mágico tinha desaparecido. As corridas pelo feno, os churrascos e as histórias eram coisas já antigas. Passávamos cada vez mais tempo dentro da cabana. Até mesmo as excursões à praia de Johnson eram raras.

O Pai tentou tornar as férias mais divertidas, levando-nos ao novo super-escorrega. O Russel, que era ainda um ser cambaleante, ficou na cabana com a Mãe. Um dia, quando o Ron, o Stan e eu estávamos a brincar na cabana de um vizinho, a Mãe chegou à porta e gritou para que entrássemos imediatamente. Já dentro da cabana, fui admoestado por fazer demasiado barulho. Para castigo, não tinha autorização para ir com o Pai e os meus irmãos ao super-escorrega. Sentei-me numa cadeira a um canto, a tremer, desejando que acontecesse alguma coisa de modo a que os três não se fossem embora. Eu sabia que a Mãe tinha qualquer coisa terrível na cabeça. Logo que eles partiram, trouxe uma das fraldas sujas do Russel. Esfregou-me a fralda na cara. Eu tentei manter-me sentado, perfeitamente quieto. Sabia que se me mexesse seria pior. Não olhei para cima. Não conseguia ver a Mãe por cima de mim, mas conseguia ouvir a sua respiração pesada. Depois do que me pareceu ser uma hora, ela ajoelhou-se a meu lado e, numa voz sarcástica, disse:

−Come-a. Eu olhei em frente, evitando os seus olhos. "Nem pensar!" disse para mim próprio. Como

em muitas vezes anteriores, evitá-la era a pior coisa. A Mãe abanou-me de um lado para o outro. Eu mantive-me agarrado à cadeira, temendo que, se caísse, ela saltasse para cima de mim.

−Eu disse come-a! − afirmou em tom de escárnio. Mudando de tática, comecei a chorar. "Empata-a", pensei comigo próprio. Comecei a

contar mentalmente, tentando concentrar-me. O tempo era o meu único aliado. A Mãe respondeu ao meu choro com mais socos na cara e só parou quando ouviu o Russel a chorar.

Mesmo com a cara coberta de fezes, eu estava satisfeito. Pensei que podia vencer. Tentei atirar o pano fora, arremessando-o para o chão de madeira. Ouvia a Mãe cantando suavemente para o Russel, e imaginei-o embalado nos seus braços. Rezei para que ele não adormecesse. Uns minutos mais tarde a minha sorte acabou.

Ainda a sorrir, a Mãe voltou à sua batalha. Agarrou-me pela parte de trás do pescoço e levou-me até à cozinha. Ali, aberta sobre o tampo do balcão, estava outra fralda cheia. O cheiro deu-me volta ao estômago.

−Agora, vais comê-la! − disse. A Mãe tinha a mesma expressão nos olhos que tivera no dia em que queria que eu me

deitasse em cima do fogão a gás, lá em casa. Sem mover a cabeça, virei os olhos, à procura do relógio da cor das margaridas que eu sabia estar na parede. Alguns segundos depois, percebi que o relógio estava atrás de mim. Sem o relógio, sentia-me indefeso. Eu sabia que tinha de me concentrar nalguma coisa, de modo a manter algum controlo sobre a situação. Antes de eu conseguir encontrar o relógio, as mãos da Mãe agarraram-me o pescoço. Repetiu de novo:

−Come-a! Eu sustive a respiração. O cheiro era nauseabundo. Tentei focalizar o canto superior da

fralda. Os segundos pareciam horas. A Mãe deve ter percebido o meu plano. Esfregou-me a cara na fralda de um lado para o outro.

Eu previ o que ela ia fazer. Ao sentir a cabeça empurrada para baixo, fechei os olhos com força e mantive a boca fechada. O meu nariz bateu lá primeiro. Uma sensação tépida deslizou-me pelas narinas. Tentei reter o sangue, inspirando. Bocados de fezes subiram-me pelo nariz,

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juntamente com o sangue. Pus as mãos em cima do tampo do balcão e tentei libertar-me. Torci-me de um lado para o outro com toda a minha força, mas ela era demasiado forte. De repente, a Mãe soltou-me.

−Vêm aí! Vêm aí! − arquejou. A Mãe tirou um pano do lava-louça e atirou-mo. −Limpa a merda da cara − rugiu, enquanto limpava as manchas castanhas do tampo do

balcão. Limpei a cara o melhor que pude, mas antes, deitei bocados de fezes pelo nariz.

Momentos mais tarde, a Mãe enfiou-me um guardanapo no meu nariz ensangüentado e ordenou-me que me sentasse no canto. Fiquei ali sentado o resto da tarde, ainda com o cheiro da fralda no nariz.

A família nunca mais voltou ao Rio Russo. Em setembro voltei à escola com a roupa do ano anterior e a minha velha e gasta

lancheira verde. Eu era uma miséria ambulante. A Mãe embrulhava o mesmo almoço todos os dias: duas sanduíches de manteiga de amendoim e alguns pedaços de cenoura. Como eu já não era um membro da família, já não podia ir na carrinha para a escola. A Mãe mandava-me ir a correr para a escola. Sabia que eu não chegaria a tempo de roubar comida aos meus colegas.

Na escola, eu era um completo marginal. Nenhum miúdo queria nada comigo. Durante o intervalo do almoço, enfiava as sanduíches pela garganta abaixo, enquanto ouvia os meus antigos amigos inventarem canções sobre mim. "David, o Ladrão de Comida" e "Pelzer, o Mal-Cheiroso"5 eram duas das favoritas. Não tinha ninguém com quem falar ou com quem brincar. Sentia-me completamente só.

Em casa, de pé durante horas na garagem, passava o tempo a imaginar novas formas de arranjar comida. O Pai, de vez em quando, tentava passar-me bocados de comida, mas com pouco êxito. Acabei por acreditar que, se conseguisse sobreviver, eu teria que me bastar a mim próprio. Esgotara todas as possibilidades na escola. Os alunos agora escondiam todos as lancheiras ou fechavam-nas à chave no armário da sala de aula. Os professores e o diretor conheciam-me e observavam-me atentamente. Eu não tinha praticamente nenhuma hipótese de roubar mais comida na escola.

Finalmente concebi um plano que poderia funcionar. Os alunos não tinham autorização para sair do recreio durante o intervalo do almoço; por isso ninguém esperaria que eu saísse. A minha idéia era escapulir-me do recreio e correr para a mercearia local para roubar bolos, pão, batatas fritas ou qualquer outra coisa. Na minha mente, planeei cada passo do meu esquema. Quando corri para a escola na manhã seguinte, contei todos os passos, de modo a poder calcular o meu ritmo e mais tarde aplicá-lo à minha excursão à mercearia. Ao fim de algumas semanas, tinha toda a informação de que precisava. A única coisa que faltava era encontrar coragem para tentar o plano. Sabia que demoraria mais tempo a ir da escola à mercearia porque era a subir; por isso, calculei 15 minutos. Voltar para baixo seria mais fácil; então calculei 10 minutos. Isso significava que tinha apenas 10 minutos na mercearia.

Todos os dias, quando corria para a escola e da escola, tentava correr mais depressa, marcando cada passo como se fosse um atleta de maratona. À medida que os dias passavam e o meu plano se tornava mais sólido, a minha fome foi substituída por fantasias. Eu fantasiava, sempre que desempenhava as minhas tarefas em casa. De gatas, enquanto esfregava os azulejos da casa de banho, imaginava que era o príncipe da história O Príncipe e o Pobre. Enquanto Príncipe, eu sabia que podia pôr fim ao papel de criado, sempre que quisesse.

5 "Pelzer, o Mal-Cheiroso”: No original: "Pelzer-Smellzer". Joga-se aqui com a semelhança sonora entre o apelido da personagem (Pelzer) e a designação "Smellzer", derivada de "Smell" (cheiro). (N. T.)

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Na cave permanecia quieto com os olhos fechados, sonhando que era um herói de banda desenhada. Mas os meus devaneios eram sempre interrompidos pelos gritos da fome e os meus pensamentos depressa voltavam ao meu plano de roubar comida.

Mesmo quando eu tinha a certeza de que o meu plano era infalível, sentia demasiado medo para o pôr em ação. Durante o intervalo do almoço na escola, andava à volta do recreio, dando desculpas a mim próprio pela minha falta de coragem para correr até à mercearia. Dizia a mim próprio que seria apanhado ou que os meus cálculos do tempo não eram rigorosos. Durante a discussão comigo próprio o meu estômago grunhia, chamando-me "cobardolas".

Finalmente, depois de vários dias sem jantar e só com os poucos restos ao pequeno-almoço, decidi fazê-lo. Momentos depois de a campainha do intervalo do almoço tocar, acelerei pela rua acima, afastando-me da escola com o coração a bater e os pulmões a rebentar. Cheguei à mercearia em metade do tempo que tinha calculado. Ao percorrer os corredores da mercearia, senti-me como se todos estivessem a olhar para mim. Senti-me como se todos os clientes estivessem a falar acerca da criança mal-cheirosa e esfarrapada. Foi então que percebi que o meu plano não tinha hipóteses, porque não tinha considerado o impacto que podia ter nas outras pessoas. Quanto mais me preocupava com o meu aspecto, mais o medo se apoderava do meu estômago. Enregelei no corredor, sem saber o que fazer. Comecei lentamente a contar os segundos. Comecei a pensarem todas as vezes que passei fome. De repente, sem pensar, agarrei a primeira coisa que vi na prateleira, saí do armazém a correr e acelerei até à escola. Apertado na minha mão estava o meu prêmio: uma caixa de bolachas.

Ao aproximar-me da escola, escondi o que era meu sob a camisa, no lado que não tinha buracos, e atravessei o pátio. Lá dentro, enfiei a comida no caixote do lixo da sala de estar dos rapazes. Mais tarde, depois de dar uma desculpa ao professor, voltei à sala para devorar o meu prêmio. Já sentia água na boca, mas o meu coração desfaleceu quando olhei para o caixote do lixo vazio. Todos os meus cuidadosos planos e toda a minha esperança de que iria comer, desperdiçados. A contínua tinha despejado o caixote antes de eu conseguir escapulir-me até à sala.

Nesse dia o meu plano falhou, mas tive sorte noutras tentativas. Uma vez consegui esconder o meu tesouro na minha secretária na sala de homeroom para vir a descobrir, no dia seguinte, que tinha sido transferido para a escola do outro lado da rua. Exceto pelo fato de perder a comida roubada, fiquei satisfeito com a transferência. Sentia que agora tinha uma nova possibilidade de roubar. Não só conseguia de novo tirar comida aos meus colegas de turma, como corria até à mercearia cerca de uma vez por semana. Por vezes, na mercearia, se eu sentia que as coisas não estavam bem, não roubava nada. Como sempre, acabei por ser apanhado. O gerente chamou a Mãe. Em casa, fui sovado sem piedade. A Mãe sabia por que é que eu roubava comida e o Pai também, mas mesmo assim recusava-se a alimentar-me. Quanto mais ansiava por comida, mais tentava arranjar um plano melhor para a roubar.

Depois do jantar a Mãe tinha o hábito de despejar os restos dos pratos para um pequeno caixote do lixo. Então mandava-me vir da cave, onde estivera de pé enquanto a família comia. Era minha obrigação lavar a louça. Ali, de pé, com as mãos na água a ferver, sentia o cheiro dos restos do jantar no pequeno caixote do lixo. No início a minha idéia causava-me náuseas; mas quanto mais pensava nela, melhor me parecia. Era a minha única esperança de conseguir comida. Acabei de lavar a louça o mais depressa que pude e despejei o lixo na garagem. Tinha água na boca ao olhar para a comida e tirei com cuidado os bons pedaços, deitando fora bocados de papel ou pontas de cigarros e engolia comida o mais depressa possível.

Como de costume o meu novo plano teve um fim abrupto quando a Mãe me apanhou em flagrante. Durante algumas semanas deixei a rotina do lixo, mas acabei por ter de voltar a ela, de modo a silenciar os grunhidos do meu estômago. Uma vez comi restos de carne de porco. Horas depois estava todo enrolado com umas dores terríveis Tive diarréia durante uma semana. Enquanto eu estava doente, a Mãe informou-me que tinha de propósito deixado a carne no frigorífico durante duas semanas, para que ficasse estragada antes de a deitar fora. Ela sabia que

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eu não resistiria a roubá-la. À medida que o tempo foi passando, a Mãe mandava-me trazer-lhe o caixote do lixo para que pudesse inspecioná-lo, quando estava deitada no sofá. Nunca veio a saber que eu embrulhava comida em guardanapos de papel e a escondia no fundo do caixote. Eu sabia que ela não iria sujar os dedos mexendo no fundo do caixote; por isso o meu esquema funcionou por um tempo.

A Mãe pressentia que eu estava a conseguir comida de algum modo. Por isso começou a aspergir amoníaco no caixote do lixo. Depois disso desisti do lixo em casa e concentrei-me em encontrar outro modo de arranjar comida na escola. Depois de ser apanhado a roubar os almoços dos outros miúdos, a idéia seguinte foi extorquir almoços congelados da cafetaria da escola.

Controlei o tempo do meu intervalo na sala de estar, de modo a que o professor me deixasse sair da sala de aula logo depois de o camião de entregas deixar o seu fornecimento de almoços congelados. Entrei subrepiciamente na cafetaria e apanhei alguns tabuleiros congelados, fugindo a seguir para a sala de estar. Aí, sozinho, engoli os cachorros quentes congelados em grandes pedaços, tão depressa que quase sufocava durante o processo. Depois de encher o estômago, voltei para a sala de aula, sentindo-me orgulhoso porque eu tinha-me alimentado a mim próprio.

Quando corria da escola para casa, nessa tarde, só conseguia pensar em roubar comida da cafetaria no dia seguinte. Minutos mais tarde a Mãe fez-me mudar de idéias. Arrastou-me para a casa de banho e bateu-me no estômago com tanta força, que eu me curvei todo. Puxando-me para que eu ficasse de frente para a sanita, ordenou-me que enfiasse um dedo pela garganta abaixo. Eu resisti. Tentei o meu velho truque de contar mentalmente, enquanto olhava para a sanita de louça, "Um... dois..." Não consegui chegar ao três. A Mãe meteu-me o dedo dela na boca, como se quisesse tirar-me o estômago pela garganta. Sacudi-me em todas as direções, num esforço para a afastar. Finalmente largou-me, mas só quando concordei em vomitar para ela ver. Eu sabia o que é que ia acontecer a seguir. Fechei os olhos, enquanto bocados de carne vermelha caíam na sanita. A Mãe estava atrás de mim, com as mãos na anca e disse:

− Eu já sabia. O teu pai vai saber disto! Contraí-me à espera dos socos que certamente aí vinham, mas não aconteceu nada. Após

alguns segundos, olhei à roda e descobri que a Mãe tinha saído da casa de banho. Eu sabia que o episódio não acabara. Momentos mais tarde, voltou com uma pequena tigela. Ordenou-me que tirasse a comida parcialmente digerida da sanita e a pusesse na tigela. Como o Pai estava nas compras nessa altura, a Mãe estava a recolher provas para o seu regresso.

Nessa noite, depois de eu terminar as minhas tarefas noturnas, a Mãe mandou-me ficar de pé ao lado da mesa da cozinha, enquanto ela e o Pai falavam no quarto. À minha frente estava a tigela de cachorros quentes que eu vomitara. Não conseguia olhar para ela; por isso fechei os olhos e tentei imaginar-me longe de casa. Pouco depois, a Mãe e o Pai entraram de rompante na cozinha.

− Olha para isto Steve − grunhiu a Mãe, espetando o dedo na direção da tigela. − Então achas que O Rapaz deixou de roubar comida, não é?

Pela expressão no rosto do Pai, pude ver que ele estava a ficar cada vez mais cansado da constante rotina "O que O Rapaz fez agora". Olhando para mim, abanou a cabeça em sinal de reprovação e disse titubeando:

− Bem, Roerva, se ao menos deixasses O Rapaz comer alguma coisa. Uma ardente batalha de palavras rebentou à minha frente e, como sempre, a Mãe ganhou. − COMER? Tu queres que O Rapaz coma, Stephen? Bem, O Rapaz vai COMER! Ele

pode comer isto! − A Mãe gritava a plenos pulmões, empurrando a tigela para junto de mim, e saindo abruptamente para o quarto.

A cozinha ficou tão silenciosa que conseguia ouvir a respiração arquejante do Pai. Gentilmente, pôs-me a mão no ombro e disse:

− Espera aqui, Tigre. Vou ver o que posso fazer.

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Voltou uns minutos mais tarde, depois de tentar demover a Mãe da sua ordem. Pela expressão entristecida do seu rosto, eu soube imediatamente quem é que tinha vencido.

Sentei-me numa cadeira e tirei os bocados de cachorro quente da tigela com a mão. Pastas de saliva grossa escorregavam pelos meus dedos, quando pus a comida na boca. Ao tentar engolir, comecei a choramingar. Voltei-me para o Pai, que estava de pé a olhar para mim com uma bebida na mão. Acenou-me que continuasse. Eu não podia acreditar que ele estivesse ali parado enquanto eu comia o repugnante conteúdo da tigela. Naquele momento eu soube que nos estávamos a afastar cada vez mais.

Tentei engolir sem lhe tomar o gosto, até que senti uma pancada na parte detrás do pescoço.

− Mastiga! − rosnou a Mãe − Come tudo! Come tudo! − disse, apontando para a saliva. Eu afundei-me na cadeira. Um rio de lágrimas rolou-me pela cara abaixo. Depois de ter

mastigado a porcaria que estava na tigela, atirei a cabeça para trás e forcei o resto a descer-me pela garganta. Fechei os olhos e gritei para mim próprio para evitar que me subisse de novo à boca. Não abri os olhos até ter a certeza de que o meu estômago não ia rejeitar a minha refeição da cafetaria. Quando os abri olhei para o Pai, que se afastou para evitar assistir ao meu sofrimento. Naquele momento, senti um ódio enorme pela Mãe, mas ainda mais pelo Pai. O homem que me ajudara no passado estava ali de pé como uma estátua enquanto o seu filho comia algo em que nem um cão tocaria.

Depois de eu ter acabado a tigela de cachorros quentes vomitados a Mãe voltou com o seu robe e atirou-me um monte de jornais. Informou-me que os jornais eram os meus cobertores, e o chão sob a mesa era agora a minha cama. Lancei o meu olhar de novo para o Pai, mas ele agia como se eu nem estivesse ali. Forçando-me a mim próprio a não chorar em frente deles, gatinhei, completamente vestido, debaixo da mesa e cobri-me com os jornais, como um rato numa gaiola.

Durante meses dormi debaixo da mesa do pequeno-almoço, ao lado de um caixote dos gatos, mas em breve aprendi a usar os jornais a meu favor. Com os jornais enrolados ao corpo, o calor deste mantinha-me quente. Finalmente a Mãe disse-me que eu já não teria o privilégio de dormir no andar de cima; por isso fui afastado lá para baixo para a garagem. A minha cama era agora um velho beliche do exército. Para não arrefecer, tentava manter a cabeça perto do aquecimento a gás. Mas depois de umas noites frias, achei melhor manter as mãos debaixo dos braços e os pés curvados na direção das nádegas. Por vezes, de noite, acordava e tentava imaginar que eu era uma verdadeira pessoa, dormindo sob um cobertor elétrico quentinho, sabendo que estava em segurança e que alguém me amava. A imaginação funcionava durante algum tempo, mas as noites frias traziam--me sempre de volta à realidade. Sabia que ninguém me podia ajudar. Nem os meus professores, nem os chamados meus irmãos, nem sequer o Pai. Eu estava sozinho, e todas as noites rezava a Deus para ser forte, quer no corpo quer na alma. Na escuridão da garagem, ficava deitado sobre o beliche de madeira e tremia de frio, até cair num sono agitado.

Uma vez, durante as minhas fantasias a meio da noite, tive a idéia de mendigar comida a caminho da escola. Embora "a inspeção do vômito" depois da escola fosse levada a cabo todos os dias, quando voltava a casa, pensei que qualquer coisa que eu comesse de manhã já estaria digerida à tarde. Ao correr para a escola, fi-lo com velocidade extra, de modo a ter mais tempo para a minha caça à comida. Depois alterei o meu percurso, parando e batendo às portas. Perguntava à dona da casa se, por acaso, tinha encontrado uma lancheira perto da casa. Na maior parte das vezes o meu plano funcionava. Ao olhar para aquelas senhoras eu percebia que tinham pena de mim. Por prevenção usava um nome falso, para que ninguém soubesse quem eu era de fato. Durante semanas o meu plano resultou, até um dia em que fui ter à casa de uma senhora que conhecia a Mãe. A minha aprovada história: "Perdi o meu almoço. Não se importa de me arranjar um?", desmoronou. Mesmo antes de deixar aquela casa eu sabia que ela iria falar com a Mãe.

Nesse dia, na escola, rezei para que o mundo acabasse. Enquanto eu me inquietava na escola, sabia que a Mãe estava deitada no sofá a ver televisão e a embebedar-se, pensando em

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algo terrível para me fazer quando eu chegasse a casa depois da escola. Ao correr da escola para casa nessa tarde, os meus pés pareciam presos em blocos de cimento. A cada passo rezava para que a amiga da Mãe não tivesse falado com ela ou de algum modo me tivesse confundido com outro miúdo. Por cima de mim o céu estava azul, e sentia os raios do sol aquecer-me as costas. Ao aproximar-me da casa da Mãe, olhei para cima na direção do sol, pensando se o voltaria a ver.

Devagarinho abri a porta da frente antes de entrar subrepticiamente e desci na ponta dos pés a escada para a garagem. Estava à espera que a Mãe corresse pela escada abaixo e me batesse sobre o chão de cimento a qualquer momento. Ela não veio. Depois de vestir o meu fato de trabalho, subi até à cozinha e comecei a lavar a louça do almoço da Mãe. Não sabendo onde é que ela poderia estar, as minhas orelhas tornaram-se antenas de radar, tentando localizá-la.

Enquanto lavava a louça, as minhas costas ficaram tensas de medo. As minhas mãos tremiam e não conseguia concentrar-me nas minhas tarefas. Finalmente, ouvi a Mãe a sair do quarto e atravessar o vestíbulo em direção à cozinha. Por um instante olhei pela janela. Ouvia o riso e os gritos das crianças a brincar. Fechei os olhos e imaginei que era um deles. Senti-me quente por dentro. Sorri.

O meu coração ficou suspenso quando sentia respiração da Mãe no meu pescoço. Apanhado de surpresa eu deixei cair um prato, mas antes de ele chegar ao chão apanhei-o no ar.

− És uma merdazinha rápida, não és? − escarneceu. − Consegues correr depressa e ter tempo para mendigar comida. Bem... já vamos ver quão rápido és, de fato.

Esperando que a Mãe me batesse, retesei o corpo, à espera do golpe. Como isso não aconteceu, pensei que ela voltaria para o seu programa de televisão, mas isso também não aconteceu. A Mãe ficou uns centímetros atrás de mim, observando todos os meus movimentos. Eu via o reflexo dela na janela da cozinha. A Mãe também o viu, e pôs-se a sorrir. Eu quase mijei nas calças.

Quando acabei de lavar a louça, comecei a limpar a casa de banho. A Mãe sentou-se na sanita enquanto eu limpava a banheira. Quando me pus de gatas a esfregar os azulejos do chão ela permaneceu quieta e sossegada atrás de mim. Fiquei à espera que ela desse a volta e me desse um pontapé na cara, mas não. À medida que eu continuava os meus afazeres a ansiedade crescia. Sabia que a Mãe me ia bater, mas não sabia como, quando, ou onde. O tempo que levei a limpar a casa de banho pareceu-me uma eternidade. Quando acabei as minhas pernas e os meus braços tremiam de ansiedade. Não conseguia concentrar-me em nada, a não ser nela. Sempre que ganhava coragem para olhar para a Mãe, ela sorria e dizia:

− Mais depressa, jovem. Tens de te mexer muito mais depressa do que isso. À hora do jantar, eu estava exausto de medo. Quase adormeci enquanto esperava que a

Mãe me chamasse para levantar a mesa e lavar a louça do jantar. Ali, de pé, sozinho na garagem, as minhas vísceras soltaram-se. Estava aflito para subir as escadas e ir à casa de banho, mas sabia que, sem a autorização da Mãe para me movimentar, eu era um prisioneiro. "Talvez seja isso que ela planeou para mim", disse para mim próprio. "Talvez ela queira que eu beba a minha própria urina". A princípio, o pensamento era demasiado cruel para ser imaginado, mas eu sabia que tinha de estar preparado para qualquer coisa que a Mãe me impusesse. Quanto mais tentava concentrar -me nas hipóteses relativas ao que ela me poderia fazer, mais a minha força interior diminuía. Então uma idéia brilhou-me no cérebro: percebi porque é que a Mãe tinha seguido cada passo meu. Queria manter uma pressão constante sobre mim, criando-me insegurança quanto ao momento ou ao lugar onde me ia bater. Antes de conseguir pensar num modo de a derrotar, a Mãe gritou-me que subisse. Na cozinha, disse-me que só a velocidade da luz me poderia salvar, por isso era melhor eu lavar a louça em tempo recorde.

− É claro − rosnou − não é preciso dizer que hoje ficas sem jantar, mas não faz mal, eu tenho uma cura para a tua fome.

Depois de acabar as tarefas da noite, a Mãe ordenou-me que esperasse lá em baixo. Fiquei de pé encostado à parede, interrogando-me sobre os planos que ela teria para mim. Eu não fazia idéia nenhuma. Comecei a ter suores frios, que pareciam chegar-me aos ossos. Fiquei tão

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cansado, que adormeci de pé. Quando senti a cabeça a cair para a frente, levantei-a e acordei. Por mais que tentasse ficar acordado, não conseguia controlar a cabeça, que oscilava para cima e para baixo, como um pedaço de cortiça na água. Naquele estado semelhante a um transe, sentia a tensão elevar-me a alma para fora do corpo, como se também eu estivesse a flutuar. Sentia-me leve como uma pena, até que a cabeça caiu de novo para a frente, acordando-me. Eu sabia que não podia adormecer profundamente. Ser apanhado podia ser fatal; por isso consegui escapar olhando através da janela da garagem, ouvindo os sons dos carros a passarem e observando os raios vermelhos dos aviões que voavam lá em cima. No fundo do meu coração eu desejava poder voar dali para fora.

Horas mais tarde, depois de o Ron e o Stan irem para a cama, a Mãe ordenou-me que voltasse lá acima. Eu tremia de medo a cada passo. Sabia que tinha chegado a hora. Ela tinha-me esvaído emocional e fisicamente. Eu não sabia o que é que ela tinha planeado. Só desejava que me batesse, e acabasse com aquilo.

Quando abri a porta, uma sensação de calma encheu-me a alma. A casa estava às escuras, com exceção de uma única luz na cozinha. Vi a Mãe sentada à mesa do pequeno-almoço. Fiquei completamente quieto. Ela sorria e pelos seus ombros descaídos pude perceber que a embriaguez se apoderara bem dela. Estranhamente soube que não me ia bater. Os meus pensamentos ficaram confusos, mas o meu transe acabou quando a Mãe se levantou e se dirigiu ao lava-louça. Ajoelhou-se, abriu o armário e retirou uma garrafa de amoníaco. Eu não percebi. Ela pegou numa colher e deitou nela um pouco de amoníaco. O meu cérebro estava demasiado baralhado para pensar. Por mais que quisesse, não o conseguia pôr a funcionar.

Com a colher na mão, começou a aproximar-se de mim. Como uma parte do amoníaco se entornou, caindo para o chão, afastei-me da Mãe até que a minha cabeça bateu no tampo do balcão perto do fogão. Eu quase que me ri para dentro. "É só isto? É isto? O que ela me vai fazer é obrigar-me a engolir um bocado desta coisa?", disse para mim próprio.

Eu não estava com medo. Estava demasiado cansado. Só conseguia pensar: "Vá lá, vamos lá. Vamos acabar com isto". Quando a Mãe se inclinou, percebi de novo que só a rapidez me podia salvar. Tentei compreender o seu enigma, mas o meu espírito estava demasiado confuso.

Sem hesitar, abri a boca e a Mãe introduziu a colher fria até à garganta. De novo disse a mim próprio que era tudo demasiado fácil, mas no momento seguinte não conseguia respirar. A minha garganta estava colada. Fiquei de pé, vacilando diante da Mãe, sentindo como se os meus olhos me saltassem das órbitas. Caí no chão, de gatas. "Bolha!", gritou o meu cérebro. Esmurrei o chão da cozinha com toda a minha força, tentando engolir e tentando concentrar-me na bolha de ar presa no meu esôfago. De repente fiquei aterrorizado. Lágrimas de pânico caíam-me pela cara abaixo. Após alguns segundos, senti a força dos meus punhos a diminuir. As minhas unhas arranhavam o chão. Os meus olhos ficaram fixos no chão. As cores pareciam juntar-se. Comecei a sentir-me desfalecido. Sabia que ia morrer.

Voltei a mim e senti a Mãe a dar-me pancadas nas costas. A força dos seus socos fez-me arrotar e consegui respirar de novo. Enquanto eu inspirava grandes golfadas de ar, a Mãe voltou para o seu copo. Ingeriu uma longa bebida, olhou para mim e soprou na minha direção.

− Então, não foi assim tão difícil, pois não? − disse ela acabando a bebida, antes de me mandar lá para baixo para o meu beliche.

Na noite seguinte repetiu-se o espetáculo, mas desta vez em frente do Pai. Ela gabou-se: − Isto há de ensinar O Rapaz a não voltar a roubar comida! Eu sabia que ela só estava a fazer aquilo em função do seu prazer doentio e pervertido. O

Pai ficou inerte enquanto a Mãe me deu outra dose de amoníaco. Mas desta vez eu lutei. Ela teve de me abrir a boca à força e, ao abanar a cabeça de um lado para o outro, eu consegui que ela entornasse a maior parte do líquido para o chão. Mas não o suficiente. De novo fechei os punhos e bati no chão. Olhei para cima, para o Pai, tentando chamá-lo. Os meus pensamentos estavam claros, mas não saiu nenhum som da minha boca. Ele limitou-se a estar ali de pé por cima de mim sem mostrar qualquer emoção enquanto eu dava murros com as minhas mãos perto dos

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seus pés. Como se se ajoelhasse para acariciar um dos seus cães, a Mãe bateu-me de novo nas costas algumas vezes, até que desmaiei.

Na manhã seguinte, enquanto limpava a casa de banho, olhei para o espelho para observar a minha língua queimada. Algumas camadas de carne tinham desaparecido e as que restavam estavam vermelhas e ásperas. Fiquei ali de pé, fixando a sanita, e pensando na sorte que eu tinha em estar vivo.

Embora a Mãe nunca mais me tivesse mandado engolir amoníaco, fez-me beber colheres de detergente algumas vezes. Mas o jogo favorito dela parecia ser o detergente de lavar a louça. Espremia o líquido barato e cor-de-rosa da garrafa para a minha garganta e ordenava-me que ficasse de pé na garagem. A minha boca ficava tão seca que eu corria para a torneira da garagem e enchia o estômago de água. Em breve descobri o meu terrível erro e seguiu-se a diarréia. Gritei para a Mãe, implorando-lhe que me deixasse usar a casa de banho lá de cima. Ela recusou. Fiquei ali de pé, com medo de me mexer, enquanto bocados de matéria liquefeita atravessavam a roupa interior, escorrendo pelas calças até ao chão.

Sentia-me tão degradado que chorei como um bebê. Não tinha qualquer espécie de auto-respeito. Precisei de novo de ir à casa de banho, mas tinha demasiado medo para me mexer. Finalmente, enquanto as minhas vísceras se retorciam, reuni um resto de dignidade. Dirigi-me ao balcão da garagem, peguei num balde de vinte litros e agachei-me para me aliviar. Fechei os olhos, tentando descobrir uma forma de me lavar a mim e às minhas roupas, quando, de repente, a porta da garagem se abriu atrás de mim. Voltei a cabeça e vi o Pai, que olhava sem qualquer emoção, enquanto o seu filho vagamente o encarava e a substância castanha se derramava para o balde. Senti-me pior do que um cão.

A Mãe não ganhava sempre. Uma vez, numa semana em que não tive autorização para ir à escola, espremeu o detergente para a minha boca e disse-me que limpasse a cozinha. Ela não soube, mas recusei-me a engolir o detergente. À medida que os minutos passavam, a minha boca ficou cheia de uma mistura de detergente e saliva. Eu não me permitiria engolir. Quando acabei as tarefas na cozinha, corri para baixo para esvaziar o caixote do lixo. Sorria de orelha a orelha quando fechei a porta atrás de mim e cuspi o detergente cor-de-rosa. Junto dos caixotes do lixo perto da porta da garagem, inclinei-me para um deles, tirei uma toalha de papel usada e limpei o interior da boca, de modo a remover qualquer vestígio do detergente. Depois de terminar, senti-me como se tivesse ganho a Maratona Olímpica. Estava muito orgulhoso por vencer a Mãe no seu próprio jogo.

Embora a Mãe me apanhasse na maior parte das minhas tentativas para me alimentar, ela não conseguia apanhar-me sempre. Depois de meses enclausurado horas a fio na garagem, a minha coragem venceu e roubei bocados de comida congelada do frigorífico da garagem. Eu estava consciente de que podia ter de pagar pelo meu crime a qualquer momento. Por isso comia cada bocadinho como se fosse a minha última refeição.

Na escuridão da garagem, fechava os olhos e sonhava que era um rei vestido com as mais finas vestes, e comendo as melhores iguarias do mundo. Enquanto segurava num pedaço da crosta de uma empada de abóbora, ou num bocado da massa de um pastel, eu era o rei, e como um rei no seu trono, olhava para a minha comida e sorria.

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Capítulo 5

O ACIDENTE

O verão de 1971 estabeleceu o tom do resto do tempo em que vivi com a Mãe. Eu ainda

não fizera 11 anos, mas, em grande medida, sabia quais as formas de punição que me esperavam. Exceder um dos limites de tempo da Mãe em qualquer das minhas múltiplas tarefas, significava não ter comida. Se olhasse para ela ou para um dos seus filhos sem a sua permissão, recebia uma bofetada na cara. Se fosse apanhado a roubar comida, sabia que a Mãe repetiria uma velha forma de castigo ou então inventava algo de novo e terrível. Na maior parte do tempo, ela parecia saber exatamente o que estava a fazer e eu conseguia prever o que se seguiria. Contudo estava sempre alerta e o meu corpo ficava tenso se imaginava que ela podia vir ter comigo.

Quando de junho se transitou para o início de julho, o meu estado de espírito esmoreceu. A comida era pouco mais do que uma fantasia. Raramente comia, mesmo os restos do pequeno-almoço, por mais que trabalhasse, e nunca almoçava. Quanto ao jantar, a média era de uma refeição de três em três dias.

Um determinado dia de julho começou como qualquer outro dia, na minha atual existência de escravo. Já não comia há três dias. Como a escola estava fechada para as férias do verão, as minhas hipóteses de arranjar comida acabaram. Como sempre, durante o jantar, sentei-me ao fundo das escadas com as nádegas sobre as mãos, ouvindo os sons da "família" a comer. A Mãe agora exigia que me sentasse sobre as mãos com a cabeça atirada para trás, numa posição de "prisioneiro de guerra". Deixei a cabeça cair para a frente, imaginando que eu era um deles: um membro da "família". Devo ter adormecido, porque fui subitamente acordado pela voz rabugenta da Mãe:

−Levanta-te! Mexe esse rabo! − gritou. À primeira sílaba da sua ordem, levantei a cabeça, levantei-me e corri pelas escadas acima.

Rezei para que nessa noite recebesse alguma coisa, qualquer coisa, para mitigar a minha fome. Começara a tirar a louça da mesa da sala de jantar a um ritmo frenético, quando a Mãe me chamou à cozinha. Baixei a cabeça, quando ela começou a papaguear os seus limites de tempo.

− Tens 20 minutos! Um minuto, um segundo a mais, e ficas de novo com fome! Está compreendido?"

− Sim, senhora! − Olha para mim quando estou a falar contigo! − resmungou. Obedecendo à sua ordem, ergui devagar a cabeça. Ao levantá-la, vi o Russel a embalar-se

para a frente e para trás sobre a perna esquerda da Mãe. O tom áspero da voz da Mãe não parecia incomodá-lo. Limitou-se a olhar para mim através de um par de olhos frios. Embora o Russel tivesse apenas quatro ou cinco anos nessa altura, tornara-se o "Pequeno Nazi" da Mãe, espiando todos os meus movimentos e certificando-se de que eu não roubava comida. Por vezes inventava histórias para a Mãe, de modo a ver-me ser castigado. A culpa realmente não era do Russel. Eu sabia que a Mãe lhe tinha feito uma lavagem ao cérebro, mas eu começara a ficar frio com ele e a odiá-lo à mesma.

− Estás a ouvir-me? − vociferou a Mãe. − Olha para mim, quando estou a falar contigo! Quando olhei para ela, tirou um trinchante do tampo do balcão e gritou: − Se não acabares a tempo, eu mato-te! As suas palavras não tiveram qualquer efeito em mim. Ela dissera o mesmo

repetidamente durante a última semana. O próprio Russel não ficou perturbado com a sua ameaça. Continuou a embalar-se na perna da Mãe, como se estivesse a montar um cavalinho de madeira. Ela aparentemente não estava satisfeita com a sua renovada tática, pois continuou a

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massacrar-me sem parar, enquanto o relógio avançava, comendo-me o tempo-limite. Eu só desejava que ela se calasse e me deixasse trabalhar. Estava desejoso de cumprir o seu tempo-limite. Queria tanto comer alguma coisa. Temia ser novamente enviado para a cama.

Alguma coisa parecia estar errada. Muito errada! Esforcei-me por fixar a vista na Mãe. Ela começara a agitar a faca na mão direita. Continuei a não ficar muito receoso. Ela também já fizera isto antes. "Olhos", disse para mim próprio. "Olha para os seus olhos". Foi o que eu fiz e pareciam estar no seu normal: meio vidrados. Mas o meu instinto dizia-me que algo de estranho se passava. Não pensei que ela me atingisse, mas de qualquer modo o meu corpo começou a ficar tenso. À medida que ia ficando mais tenso, percebi o que é que se passava. Em parte por causa do movimento do Russel a embalar-se e noutra parte por causa do movimento do braço e da mão dela com a faca, todo o corpo começou a balançar para a frente e para trás. Por um momento, pensei que ela ia cair.

Tentou recuperar o equilíbrio, batendo no Russel para que ele lhe largasse a perna, enquanto continuava a gritar-me. Nessa altura, a parte de cima do seu corpo parecia uma cadeira de embalar fora de controlo. Esquecendo-me das suas inúteis ameaças, imaginei que a velha bêbeda ia bater com a cara no chão. Concentrei toda a minha atenção na cara da Mãe. Pelo canto do olho, vi um objeto indistinto a voar da sua mão. Uma dor aguda irrompeu mesmo por cima do meu estômago. Tentei permanecer de pé, mas as pernas cederam e o meu mundo enegreceu.

Quando recuperei os sentidos tive uma sensação de calor vinda do meu tórax. Levei alguns segundos a perceber onde estava. Estava sentado na sanita, puxado para cima. Voltei-me para o Russel, que começou a cantar:

− O David vai morrer! O Rapaz vai morrer! Virei os olhos na direção do meu estômago. Ajoelhada, a Mãe aplicava apressadamente

uma compressa de gaze numa zona do meu estômago de onde saíam golfadas de sangue vermelho-escuro. Tentei dizer alguma coisa. Sabia que fora um acidente. Queria que a Mãe soubesse que lhe perdoava, mas sentia-me demasiado fraco para falar. A minha cabeça tombava para a frente repetidas vezes, enquanto eu tentava mantê-la firme. Perdi a noção do tempo, porque voltei à escuridão.

Quando acordei a Mãe ainda estava ajoelhada, envolvendo a parte de baixo do meu tórax com um pano. Muitas vezes, quando éramos mais novos, a Mãe contava ao Ron, ao Stan e a mim, que tencionara ser enfermeira, até que conheceu o Pai. Sempre que acontecia algum acidente em casa, ela não perdia o controlo. Nunca duvidei, nem por um segundo, das suas aptidões como enfermeira. Estava só à espera de que ela me levasse no carro para o hospital. Tinha a certeza de que ela o faria. Era só uma questão de tempo. Tive uma curiosa sensação de alívio. Sabia, no fundo do meu coração, que tudo acabara. Todo este enigma de viver como um escravo chegara ao fim. Mesmo a Mãe não teria hipótese de mentir neste caso. Senti que o acidente me libertara.

A Mãe demorou quase meia hora a envolver-me a ferida. Não havia remorsos nos seus olhos. Pensei que, pelo menos, me tentaria reconfortar com a sua voz suave. Olhando para mim sem qualquer emoção a Mãe levantou-se, lavou as mãos, e disse-me que eu tinha trinta minutos para acabar de lavar a louça. Abanei a cabeça tentando perceber o que me dissera. Após alguns segundos a mensagem da Mãe penetrou em mim. Tal como no incidente do braço, uns anos atrás, a Mãe ia ignorar o que acontecera.

Eu não tinha tempo para a auto-piedade. O relógio avançava. Levantei-me, vacilei durante uns segundos e dirigi-me para a cozinha. A cada passo a dor dilacerava-me as costelas e o sangue inundava a minha T shirt esfarrapada. Ao chegar ao lava-louça da cozinha, inclinei-me e arfei como um cão já velho.

Da cozinha eu ouvia o Pai na sala de estar, folheando o jornal. Inspirei profundamente com dificuldade, na esperança de ser capaz de avançar na sua direção. Mas inspirei com demasiada força e caí para o chão. Depois disso percebi que tinha que inspirar lentamente e pouco de cada vez. Dirigi-me à sala. Sentado no canto mais afastado do sofá estava o meu herói.

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Eu sabia que ele se encarregaria da Mãe e me conduziria ao hospital. Fiquei de pé diante do Pai, esperando que virasse a página e me visse. Quando o fez, balbuciei:

− Pai... a Ma... a Ma... a Mãe apunhalou-me. Ele nem uma sobrancelha levantou. − Por quê? − perguntou. − Ela disse-me que, se eu não lavasse a louça a tempo, me... me mataria. O tempo parou. Por detrás do jornal, eu ouvia a respiração entrecortada do Pai. Pigarreou

antes de dizer: − Bem... tu... tu volta para lá, e lava a louça. A minha cabeça inclinou-se para a frente, como se quisesse apanhar as suas palavras. Eu

não podia acreditar no que tinha ouvido. O Pai deve ter-se apercebido da minha confusão, já que o vi bater com o jornal e levantar a voz, dizendo:

− Jesus Cristo! A Mãe sabe que estás aqui a falar comigo? Tu volta para lá, e lava a louça. Caramba, rapaz! Não há necessidade de fazer seja o que for que a ponha mais mal-disposta! Eu não tenho necessidade de passar por isso esta noite... − O Pai parou por um segundo, inspirou profundamente e baixou a voz, sussurrando: − Já sei. Tu voltas lá e lavas a louça. Nem sequer lhe digo que me contaste, está bem? Este será o nosso pequeno segredo. Volta lá para a cozinha e lava a louça. Vai lá, antes que ela nos apanhe aos dois. Vai!

Fiquei de pé diante do Pai, completamente chocado. Ele nem sequer olhou para mim. Eu tinha a impressão de que, se ele ao menos virasse uma ponta do jornal e me olhasse nos olhos, perceberia; sentiria a minha dor, quão desesperado e necessitado eu estava da sua ajuda. Mas como sempre, eu sabia que a Mãe o controlava, como controlava tudo o que acontecia na sua casa. Penso que o Pai e eu sabíamos ambos o código da "família": se ignorarmos um problema, ele simplesmente não existe. Enquanto ali estava de pé diante do Pai, sem saber o que fazer, olhei para baixo e vi gotas de sangue a sujar a carpete da família. Eu sentira no meu coração, que ele me levantaria nos seus braços e me levaria dali para fora. Imaginei até que rasgaria a camisa para mostrar a sua verdadeira identidade antes de voar pelos ares como o Super-homem.

Voltei-me. Todo o meu respeito pelo Pai desaparecera. O salvador que eu imaginara durante tanto tempo era uma fraude. Sentia-me mais zangado com ele do que com a Mãe. Desejei poder voar dali para fora, mas a dor dilacerante trouxe-me de volta à realidade.

Lavei a louça o mais depressa que o meu corpo me deixou. Aprendi rapidamente que qualquer movimento do meu antebraço resultava numa dor aguda por cima do meu estômago. Se eu andava de lado, da bacia de lavagem para a bacia de secagem, uma outra dor percorria-me o corpo. Sentia que a pouca força que me restava estava a desaparecer. À medida que o tempo-limite da Mãe era ultrapassado, também o eram as hipóteses de conseguir comer.

Só me apetecia deitar-me e desistir, mas a promessa que fiz há uns anos manteve-me vivo. Queria mostrar à Megera que só me venceria se eu morresse e eu estava decidido a não desistir, até à morte. Enquanto lavava a louça aprendi que, ficando em bicos dos pés e encostando a parte de cima do corpo ao tampo do balcão, conseguia aliviar um pouco a pressão sobre a parte de baixo do tórax. Em vez de andar de lado, de tantos em tantos segundos, lavava alguma louça de uma só vez e então movia-me e passava-a por água. Depois de secar a louça, tive medo da tarefa de a arrumar. Os armários ficavam por cima da minha cabeça e sabia que chegar lá me faria doer muito. Segurando num prato pequeno estiquei as pernas o mais que pude e tentei levantar os braços por cima da cabeça para colocar o prato. Quase consegui, mas a dor foi demasiado forte. Caí para o chão.

Nessa altura a minha camisa estava cheia de sangue. Ao tentar pôr-me de pé senti as mãos fortes do Pai a ajudar-me. Afastei-o.

− Dá-me a louça − disse ele. − Eu guardo-a. É melhor ires lá abaixo mudar de camisa. Eu não disse uma palavra, quando me retirei. Olhei para o relógio. Levara cerca de uma

hora e meia a completar a minha tarefa. A minha mão direita apertava com força o corrimão

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enquanto descia vagarosamente. Eu via, de fato, o sangue a escorrer-me pela camisa, por cada passo que dava.

A Mãe veio ter comigo ao fundo das escadas. Ao tirar-me a camisa, vi que a Mãe o fazia o mais cuidadosamente possível, mas essa foi a única consolação que tive. Percebi que, para ela, era apenas uma questão de eficiência. No passado vira-a tratar os animais com mais compaixão do que a mim. Eu estava tão fraco que, sem querer, caí para cima dela quando me vestia uma velha t-shirt demasiado grande. Esperava que a Mãe me batesse, mas deixou-me ficar encostado a ela durante uns segundos. Então pôs-me no fundo das escadas e foi-se embora. Uns minutos mais tarde a Mãe voltou com um copo de água. Engoli-a o mais depressa que fui capaz. Quando acabei, a Mãe disse-me que não podia ainda dar-me de comer. Disse que me daria comida dentro de algumas horas, quando eu me sentisse melhor. Mais uma vez, a sua voz era monótona; completamente desprovida de emoção.

Olhando de soslaio, vi que o crepúsculo da Califórnia dava lugar à escuridão. A Mãe disse-me que eu podia ir brincar lá fora com os rapazes, na rua em frente à porta da garagem. A minha cabeça estava confusa. Demorei uns segundos a compreender o que me dissera.

− Vá lá, David. Vai − insistiu. Com a ajuda da Mãe, saí devagar da garagem para a rua. Os meus irmãos olharam para

mim casualmente, mas estavam muito mais interessados em acender os seus paus de estrelinhas do dia 4 de julho.

À medida que os minutos passavam, a Mãe tornava-se mais compreensiva para comigo. Pôs-me o braço sobre os ombros, enquanto víamos os meus irmãos fazerem oitos com os paus de estrelinhas.

− Queres um? − perguntou-me a Mãe. Eu acenei que sim. Ela segurou-me a mão e ajoelhou-se para acender o pau de estrelinhas.

Por um momento imaginei o odor do perfume que a Mãe usava há uns anos. Mas há muito tempo que ela não usava perfume nem maquiagem.

Enquanto brincava com os meus irmãos não pude deixar de pensar sobre a Mãe e a mudança no modo como me estava a tratar. "Será que ela está a tentar fazer as pazes comigo?", pensei eu. "Será que finalmente acabaram os dias passados na cave? Estarei de volta ao seio da família?". Durante uns minutos não quis saber. Os meus irmãos pareciam aceitar a minha presença e eu senti uma sensação de amizade e calor junto deles, que pensara estar enterrada para sempre.

Após alguns segundos o meu pau de estrelinhas apagou-se. Virei-me para o sol poente. Há séculos que eu não via um pôr do sol. Fechei os olhos, tentando absorver o máximo de calor. Durante uns efêmeros momentos, a dor, a fome e a minha vida miserável desapareceram. Senti-me tão quente, tão vivo. Abri os olhos na esperança de conservar aquele momento para o resto da eternidade.

Antes de ir para a cama, a Mãe deu-me mais água e uns bocadinhos de comida. Senti-me como um animal deficiente a ser tratado para recuperar a saúde, mas não me importei.

Lá em baixo, na garagem, deitei-me sobre o meu velho beliche do exército. Tentei não pensar na dor, mas era-me impossível ignorá-la à medida que ela trepava pelo meu corpo. Finalmente a exaustão venceu e lentamente mergulhei no sono. Durante a noite tive vários pesadelos. Sobressaltei-me e acordei banhado em suores frios. Atrás de mim ouvi um som que me assustou. Era a Mãe. Ela inclinou-se e aplicou-me uma toalha fria na testa. Disse-me que tinha tido febre durante a noite. Eu estava demasiado cansado e fraco para responder. Só conseguia pensar na febre. Mais tarde a Mãe voltou para o quarto dos meus irmãos, no andar de baixo, que ficava mais perto da garagem. Senti-me seguro, sabendo que ela estava perto para olhar por mim.

Em breve mergulhei de novo na escuridão e com o sono agitado veio um terrível sonho de lençóis de chuva vermelha e quente. No sonho eu parecia ficar ensopado. Tentava limpar o sangue do meu corpo, mas logo a seguir ele cobria-me de novo. Quando acordei na manhã seguinte, fiquei a olhar para as minhas mãos que estavam cheias de crostas de sangue seco. A

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camisa que cobria o meu peito estava toda vermelha. Sentia o sangue seco em partes do meu rosto. Ouvi a porta do quarto abrir-se atrás de mim, voltei-me e vi a Mãe a andar na minha direção. Eu estava à espera de mais compaixão como a que ela me dera na noite anterior, mas era uma esperança vã. Não me deu nada. Com uma voz fria a Mãe disse-me que me lavasse e começasse as minhas tarefas. À medida que a ouvi subir as escadas, soube que nada mudara. Eu era ainda o bastardo da família.

Cerca de três dias depois do "acidente", continuava a sentir-me febril. Não me atrevia a pedir à Mãe uma simples aspirina, sobretudo porque o Pai estava a trabalhar. Eu sabia que ela voltara ao seu normal. Pensei que a febre era resultante da ferida. A fenda no meu estômago abrira mais do que uma vez desde aquela noite. Em silêncio, para que a Mãe não me ouvisse, aproximei-me do balcão da garagem. Peguei no trapo mais limpo que pude encontrar naquele monte de farrapos velhos. Abri a torneira, só o suficiente para deixar cair umas gotas de água no meu trapo. Então sentei-me e enrolei a minha camisa vermelha e encharcada. Toquei na ferida e estremeci de dor. Respirei fundo e, o mais cuidadosamente possível, apertei a fenda.

A dor foi tão forte que atirei a cabeça para trás contra o frio pavimento de betão, quase me pondo a mim próprio fora de combate. Quando olhei para o meu estômago de novo, vi uma substância amarelada começar a escorrer da ferida vermelha e de mau aspecto. Eu não sabia muito acerca destas coisas, mas percebi que estava infectada. Comecei a levantar-me para subir as escadas e pedir à Mãe que me limpasse. Quando já estava quase de pé, parei. "Não!"; disse a mim próprio. "Não preciso da ajuda daquela megera". Eu sabia o suficiente sobre técnicas básicas de pronto-socorro para limpar uma ferida; por isso confiei em que conseguiria fazê-lo sozinho. Queria tratar de mim próprio. Não queria depender da Mãe, ou deixar que ela tivesse mais controlo sobre mim do que aquele que já tinha.

Voltei a molhar o pano e aproximei-o da ferida. Hesitei antes de lhe tocar. As minhas mãos tremiam de medo e as lágrimas corriam-me pela cara abaixo. Sentia-me como se fosse um bebê e não gostei disso. Finalmente, disse a mim próprio: "Se choras, morres. Vá, trata da ferida". Percebi que a minha ferida certamente não me punha a vida em perigo; mentalizei-me de modo a bloquear a dor.

Mexi-me depressa, antes que a motivação desaparecesse. Peguei noutro trapo, enrolei-o e pu-lo na boca. Foquei toda a atenção no dedo polegar e no primeiro dedo da mão esquerda, enquanto agarrava na pele à volta da fenda. Com a outra mão limpei o pus. Repeti o processo até que o sangue perpassou e já estava a limpar só o sangue. A maior parte da substância esbranquiçada desaparecera. A dor resultante do agarrar e limpar era superior às minhas forças. Com os dentes enterrados no pano os meus gritos eram abafados. Sentia-me como se estivesse pendurado de um rochedo. Quando acabei, um rio de lágrimas ensopava-me a gola da camisa.

Temendo que a Mãe me apanhasse sem estar sentado no fundo das escadas, limpei o que sujara e caminhei meio de gatas para o lugar que me era destinado, junto ao último degrau. Antes de me sentar sobre as mãos verifiquei a camisa; só se viam pequenas gotas de sangue a saírem da ferida para a compressa feita de trapos. Eu queria que a ferida sarasse. De algum modo, sabia que sim. Senti-me orgulhoso de mim próprio. Imaginei-me como uma personagem de um livro de banda desenhada, que ultrapassou grandes vicissitudes e sobreviveu. Em breve a minha cabeça tombou para a frente e adormeci. No meu sonho, voava pelo ar em cores vivas. Usava uma capa vermelha... eu era o Super-homem.

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Capítulo 6

ENQUANTO O PAI ESTÁ FORA

Depois do incidente da faca, o Pai passava cada vez menos tempo em casa e mais no

trabalho. Ele dava desculpas à família, mas eu não acreditava. Muitas vezes eu tremia de medo, sentado na garagem, esperando que, por alguma razão, ele não partisse. Apesar de tudo o que acontecera, ainda sentia que o Pai era o meu protetor. Quando ele estava em casa a Mãe só me fazia metade das coisas que fazia quando ele se ia embora.

Quando o Pai estava em casa, tornou-se seu hábito ajudar-me a tratar da louça. O Pai lavava e eu limpava. Enquanto trabalhávamos, falávamos em voz baixa, de modo a que nem a Mãe nem os outros rapazes nos ouvissem. Às vezes, passavam vários minutos sem que falássemos. Queríamos ter a certeza de que a costa estava livre. O Pai quebrava sempre o gelo:

− Como vais, Tigre? − dizia. Ao ouvir aquele nome que o Pai usava quando eu era um rapazinho, vinha-me sempre ao

rosto um sorriso. − Estou bem − respondia. − Hoje comeste alguma coisa? − perguntava muitas vezes. Eu geralmente abanava a cabeça em sinal negativo. − Deixa lá − dizia. − Um dia, tu e eu sairemos desta casa de doidos. Eu sabia que o pai detestava viver lá em casa e sentia que a culpa era toda minha. Dizia-

lhe que eu seria bom e não voltaria a roubar comida. Dizia ao Pai que me esforçaria mais e faria melhor as minhas tarefas. Quando eu dizia estas coisas ele sorria e assegurava-me que a culpa não era minha.

Às vezes, enquanto limpava a louça, sentia um novo raio de esperança. Sabia que o Pai, muito provavelmente, não faria nada contra a Mãe; mas quando estava perto dele sentia-me a salvo.

Como em todas as coisas boas que me aconteciam, a Mãe pôs fim à ajuda do Pai na tarefa da louça. Insistiu que O Rapaz não precisava de ajuda. Disse que o Pai me dava demasiada atenção e não a suficiente aos outros membros da família. Sem sequer lutar, o Pai desistiu. A Mãe tinha agora um controlo total sobre toda a gente lá em casa.

Passado algum tempo o Pai já nem ficava em casa nos seus dias de folga. Entrava por uns minutos apenas. Depois de ver os meus irmãos ia ter comigo aonde eu estivesse a cumprir as minhas tarefas, dizia umas frases e ia-se embora. Não demorava mais do que 10 minutos, após o que voltava para a sua solidão, que geralmente encontrava num bar. Quando o Pai falava comigo, dizia-me que estava a fazer planos para ambos nos irmos embora. Isto fazia-me sempre sorrir, mas lá bem no fundo eu sabia que não passava de uma fantasia.

Um dia ajoelhou-se para me dizer o quanto lamentava. Olhei para o seu rosto. A mudança no Pai assustou-me. Tinha círculos escuros à volta dos olhos e o rosto e o pescoço tinham um tom avermelhado. Os ombros do Pai, outrora rígidos, estavam agora descaídos. A cor cinzenta começara a apoderar-se do seu cabelo preto. Antes de ele se ir embora nesse dia, lancei-lhe os braços à volta da cintura. Não sabia quando é que o voltaria a ver. Depois de terminar as minhas tarefas corri lá para baixo. Tinha recebido ordens para lavar as minhas roupas andrajosas e mais um monte de farrapos mal-cheirosos. Mas nesse dia a partida do Pai deixara-me tão triste que me afundei na pilha de farrapos e chorei. Chorei para que voltasse e me levasse com ele.

Após alguns minutos de auto-comiseração, comecei a esfregar as minhas roupas que pareciam um "queijo suíço". Esfreguei até os nós dos dedos sangrarem. Eu já não me importava com a minha própria existência. A casa da Mãe tornara-se insuportável. Desejava encontrar uma

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maneira de fugir daquele local, a que eu agora chamava: "Casa de loucos". Num período de tempo em que o Pai esteve fora, a Mãe fez-me passar fome cerca de dez dias seguidos. Por mais que tentasse respeitar os seus limites de tempo, não era capaz. E a conseqüência era não ter comida. A Mãe estava completamente empenhada em ter a certeza de que eu não conseguia roubar comida. Ela própria levantava a mesa, pondo a comida no caixote do lixo. Remexia o caixote todos os dias antes de eu o ir esvaziar lá em baixo. Fechava o frigorífico da garagem com uma chave e guardava-a. Eu já estava habituado a passar sem comida por períodos que iam até aos três dias, mas este período tão dilatado era insuportável. A água era o meu único meio de sobrevivência. Quando enchia o tabuleiro dos cubos de gelo do frigorífico, chegava o canto do tabuleiro à minha boca. Lá em baixo, aproximava-me da bacia de lavagens e abria a torneira. Rezando para que o cano não vibrasse e alertasse a Mãe, chupava o metal frio até que o meu estômago ficava tão cheio, que parecia que ia rebentar.

No sexto dia estava tão fraco, quando acordei sobre o meu beliche do exército, que mal me conseguia levantar. Fiz as minhas tarefas a passo de caracol. Sentia-me tão entorpecido! Os meus pensamentos tornaram-se confusos. Parecia-me que demorava minutos a compreender cada frase que a Mãe me gritava. Quando levantei devagarinho a cabeça para a olhar, percebi que, para ela, aquilo era um jogo; um jogo que lhe dava muito prazer.

− Oh, coitadinho! − sussurrou sarcasticamente. Depois perguntou-me como é que eu me sentia e riu-se quando lhe implorei comida. No

fim do sexto dia e nos que se seguiram, desejava do fundo do coração que a Mãe me desse alguma coisa para comer, qualquer coisa. Estava num ponto tal, que qualquer coisa servia.

Uma noite, já perto do fim do seu "jogo", depois de eu terminar as minhas tarefas, a Mãe põs-me um prato de comida à minha frente. Os restos frios eram um banquete para os meus olhos. Mas eu estava de pé atrás; parecia demasiado bom para ser verdade.

− Dois minutos! − rosnou: − Tens dois minutos para comer. É tudo! Como um relâmpago peguei no garfo, mas quando a comida estava prestes a chegar-me à

boca, tirou-me o prato e esvaziou a comida no caixote do lixo. − Demasiado tarde! − disse em tom de desprezo. Eu fiquei mudo diante dela. Não sabia o que fazer ou dizer: Só conseguia pensar "Por

quê?" Não conseguia perceber porque é que ela me tratava assim. Eu estava tão perto, que sentia o cheiro de cada bocadinho. Sabia que ela queria que eu me fosse abaixo, mas aguentei-me e contive as lágrimas.

Sozinho na garagem senti que estava a perder o controlo. Ansiava por comida. Queria o meu pai. Mas, mais do que tudo, queria um mínimo de respeito; um pouco de dignidade. Ali sentado sobre as mãos, ouvia os meus irmãos a abrir o frigorífico para tirar a sobremesa e sentia ódio. Olhei para mim. A minha pele estava amarelada e os meus músculos enfraquecidos. Sempre que ouvia um dos meus irmãos a rir-se de um programa de televisão, amaldiçoava os seus nomes. "Sacanas com sorte! Porque é que ela não alterna e bate em cada um deles para variar?"; gritei para mim próprio, dando largas ao meu sentimento de ódio.

Há cerca de dez dias que estava sem comida. Tinha acabado de lavar a louça, quando a Mãe repetiu o seu jogo "tens dois minutos para comer". Só restavam uns bocadinhos de comida no prato. Senti que ela me tiraria de novo o prato; por isso, mexi-me com um objetivo. Não lhe dei a hipótese de mo tirar como fizera nas três últimas noites. Assim agarrei no prato e rapidamente engoli a comida sem a mastigar. Em segundos, acabei de comer tudo o que estava no prato e lambi-o.

− Comes como um porco! − rosnou ela. Baixei a cabeça, fingindo que me importava. Mas por dentro ri-me, dizendo a mim

próprio: "dai-te lixar! Podes dizer o que quiseres! Eu consegui comer!" A Mãe tinha um outro jogo favorito quando o Pai estava fora. Mandou-me limpar a casa

de banho nos seus habituais limites de tempo. Mas desta vez, deixou um balde cheio com uma mistura de amoníaco e detergente perto de mim e fechou a porta. Na primeira vez em que fez

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isto, informou-me que lera algo a esse respeito num jornal e queria experimentar. Embora eu agisse como se tivesse medo, de fato não tinha. Não fazia idéia do que é que se ia passar. Só quando a Mãe fechou a porta e me ordenou que não a abrisse é que comecei a ficar preocupado. Com a divisão fechada, o ar começou a mudar rapidamente. No canto da casa de banho pus-me de gatas e olhei para o balde. Uma névoa cinzenta elevava-se na direção do teto. Ao respirar aquele fumo, tive um colapso e comecei a cuspir. A minha garganta parecia que estava a arder. Dentro de poucos minutos estava áspera. O gás resultante da reação do amoníaco com o detergente fazia-me lacrimejar. Estava em pânico por não ser capaz de cumprir o limite de tempo da Mãe para a limpeza da casa de banho.

Passados mais alguns minutos, as vísceras quase me saíam pela boca com a tosse. Eu sabia que a Mãe não iria ceder e abrir-me a porta. Para sobreviver ao seu novo jogo, tinha que usar a cabeça. Deitado no chão de azulejo, estiquei o corpo e, com o pé, empurrei o balde para a porta. Fi-lo por duas razões: queria o balde o mais longe possível de mim e, no caso de a Mãe abrir a porta, queria que ela sentisse uma baforada do seu próprio remédio.

Enrolei-me todo no outro canto da casa de banho, com o pano das limpezas sobre a boca, o nariz e os olhos. Antes de cobrir o rosto, molhei o pano na sanita. Não me atrevi a abrir a água do lavatório, com medo de que a Mãe ouvisse. Respirando através do pano, via a névoa aproximar-se cada vez mais do chão. Senti-me como se estivesse fechado numa câmara de gás.

Então, pensei na pequena abertura do aquecimento, no chão junto aos meus pés. Sabia que ela ligava e desligava, de tantos em tantos minutos. Pus a cara junto à abertura e inspirei todo o ar que os meus pulmões puderam aguentar. Passada meia hora, a Mãe abriu a porta e disse-me que esvaziasse o balde no esgoto da garagem, antes que pusesse mau cheiro na sua casa. Lá em baixo, cuspi sangue durante uma hora. De todos os castigos, o jogo da câmara de gás era o que eu mais odiava.

Já perto do final do verão, a Mãe devia estar farta de inventar formas de me torturar em casa. Um dia, depois de eu ter terminado todas as minhas tarefas da manhã, mandou-me lá para fora para aparar relvados. Não era uma rotina completamente nova. Durante as férias da Páscoa, na primavera anterior, ela mandara-me aparar relvados. Estabelecera uma quantia para os meus ganhos e ordenara-me que lhe entregasse o dinheiro. Eu não conseguia atingir tal quantia. Por isso, em desespero, uma vez roubei nove dólares do mealheiro de uma rapariguinha que vivia ali perto. Passadas umas horas o pai da rapariga estava a bater à nossa porta. É claro que a Mãe devolveu o dinheiro e culpou-me a mim. Depois de o homem se ir embora, bateu-me até eu ficar cheio de nódoas negras. Eu só roubara o dinheiro para conseguir a quantia que ela estipulara.

O plano de aparar relvados no verão não me correu melhor do que o das férias da Páscoa. De porta em porta, perguntava às pessoas se queriam que eu lhes aparasse os relvados. Ninguém queria. As minhas roupas esfarrapadas e os meus braços fininhos deviam dar-me um ar patético. Por piedade, uma senhora pôs-me um almoço numa bolsa castanha e mandou-me embora. Meio quarteirão mais abaixo, um casal concordou em deixar-me aparar o relvado. Quando acabei, voltei para a casa da Mãe a correr, levando a bolsa castanha comigo. Tencionava escondê-la antes de voltar ao quarteirão da senhora. Não consegui. A Mãe passou de carro e apanhou-me com a bolsa. Antes de ela parar a carrinha, pus as mãos no ar, como se fosse um criminoso. Lembro-me de desejar que a sorte que tivera com a senhora estivesse comigo ao menos uma vez.

A Mãe saltou do carro, agarrou na bolsa com uma mão e esmurrou-me com a outra. Então atirou-me para dentro do carro e dirigiu-se à casa onde a senhora me tinha preparado o almoço. A mulher não estava em casa. A Mãe estava convencida de que eu penetrara na casa da senhora e preparara o meu próprio almoço. Eu sabia que ser apanhado com comida era o pior dos crimes. Silenciosamente gritei para mim próprio por não ter escondido a comida mais cedo.

Já em casa a pancada do costume deixou-me caído no chão. A Mãe disse-me então que me sentasse no quintal das traseiras enquanto ela levava "os seus filhos" ao Jardim Zoológico. A zona em que ela me ordenou que me sentasse estava coberta de rochas com cerca de uma polegada de diâmetro. Parou-me a circulação no corpo enquanto estive sentado sobre as mãos na

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minha posição de "prisioneiro de guerra". Comecei a descrer de Deus. Sentia que Ele me devia odiar. Que outra razão poderia haver para uma vida como a minha? Todos os meus esforços para sobreviver pareciam inúteis. As minhas tentativas de ficar um pouco à frente da Mãe fracassavam. Uma sombra negra pairava sempre sobre mim.

Até o sol parecia evitar-me, escondendo-se numa nuvem grossa que passava lá em cima. Encolhi os ombros, recolhendo-me na solidão dos meus sonhos. Não sei quanto tempo passara, mas mais tarde ouvi o som nítido da carrinha da Mãe voltando à garagem. O meu tempo de estar sentado sobre as rochas acabara. Tentei imaginar o que é que a Mãe planeara para mim a seguir. Rezei para que não fosse mais uma sessão de câmara de gás. Da garagem, ela gritou-me que a seguisse até lá acima. Levou-me à casa de banho. O meu coração desfaleceu. Senti-me condenado. Comecei a inspirar grandes lufadas de ar fresco, sabendo que em breve sentiria a sua falta. Para minha surpresa, não havia nenhum balde nem garrafas na casa de banho. "Estou fora do anzol?", perguntei a mim próprio. Parecia demasiado fácil. Observei timidamente a Mãe, enquanto ela abria a torneira da água fria da banheira. Achei que era estranho ela esquecer-se de abrir também a de água quente. Quando a banheira começou a ficar cheia, a Mãe tirou-me as roupas e ordenou-me que entrasse na banheira. Entrei na banheira e deitei-me. Um medo gelado percorreu-me o corpo.

− Mais baixo! − gritou ela. − Põe a cara dentro de água, assim! Então, inclinou-se, agarrou-me no pescoço com as duas mãos e pôs-me a cabeça debaixo

de água. Instintivamente esbracejei e dei pontapés, tentando desesperadamente pôr a cabeça fora de água para poder respirar. Mas ela agarrava-me com demasiada força. Debaixo de água, abri os olhos. Via bolhas escaparem-se da minha boca e flutuarem até à superfície, ao tentar gritar. Tentei abanar a cabeça de um lado para o outro, ao ver as bolhas ficarem cada vez mais pequenas. Comecei a sentir-me fraco. Num esforço frenético, levantei-me e agarrei-lhe os ombros. Os meus dedos devem ter-se enterrado nela, porque me largou. Olhou para mim, tentando recuperar o fôlego:

− Põe a cabeça debaixo de água, senão da próxima vez demorará mais tempo! Submergi a cabeça, mantendo as narinas à superfície da água. Sentia-me como um

crocodilo num pântano. Quando a Mãe deixou a casa de banho, o seu plano tornou-se mais claro. Estendido dentro da banheira, a água ficou insuportavelmente fria. Era como se estivesse num frigorífico. Tinha demasiado medo da Mãe para me mexer; por isso mantive a cabeça submersa como me ordenara.

Passaram horas e a minha pele começou a engelhar. Não me atrevia a tocar em nenhuma parte do meu corpo para a tentar aquecer. Mas levantei a cabeça fora de água, o suficiente para ouvir melhor. Sempre que ouvia alguém passar pelo vestíbulo ao lado da casa de banho, voltava a pôr devagar a minha cabeça no frio.

Geralmente os passos que ouvia eram de um dos meus irmãos a dirigirem-se para o quarto. Por vezes, um deles vinha à casa de banho para usar a sanita. Limitavam-se a olhar para mim, abanavam a cabeça e iam-se embora. Tentei imaginar que estava num outro lugar, mas não conseguia relaxar-me o suficiente para divagar.

Antes de a família se sentar para jantar, a Mãe veio à casa de banho e gritou-me que saísse da banheira e me vestisse. Reagi imediatamente, agarrando numa toalha para me secar.

− Oh, não! − gritou. − Veste as roupas assim como estás! Sem hesitar, obedeci à sua ordem. As minhas roupas estavam encharcadas quando desci

as escadas a correr, para me sentar no quintal das traseiras, seguindo as instruções. O sol começara a pôr-se, mas metade do quintal ainda estava iluminado. Tentei sentar-me numa zona ao sol, mas a Mãe mandou-me ir para a sombra. No canto do quintal, sentado na minha posição de prisioneiro de guerra, eu tremia. Só queria uns segundos de calor, mas à medida que os minutos passavam, as minhas hipóteses de secar diminuíam. Da janela lá de cima ouvia o som dos membros da "família" a passarem pratos cheios de comida uns aos outros. De vez em quando uma gargalhada escapava pela janela. Como o Pai estava em casa eu sabia que, fosse o

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que fosse que a Mãe cozinhara, era bom com certeza. Apetecia-me virar a cabeça e olhar lá para cima para os ver comer, mas não me atrevia. Eu vivia num mundo diferente. Nem sequer merecia olhar para a boa vida.

O tratamento da banheira e do quintal em breve se tornou rotina. Às vezes quando eu estava deitado na banheira, os meus irmãos traziam os seus amigos à casa de banho para verem o seu irmão nu. Os amigos muitas vezes gozavam comigo. "O que é que ele fez desta vez?", perguntavam. Regra geral os meus irmãos limitavam-se a abanar a cabeça, dizendo: "Não sei."

Com o início das aulas no outono, veio a esperança de uma escapadela temporária daquela vida terrível. A nossa aula de homeroom teve uma professora substituta nas primeiras duas semanas. Disseram-nos que a nossa professora estava doente. A substituta era mais jovem do que a maior parte dos outros professores e parecia mais afável. No fim da primeira semana deu gelados aos estudantes que se tinham portado bem. Eu não consegui, na primeira semana, mas esforcei-me mais e recebi a minha recompensa no fim da segunda semana. A nova professora punha a tocar êxitos populares em discos de 45 rotações e cantava para a turma. Nós gostávamos muito dela. Quando a sexta-feira à tarde chegou, eu não queria ir-me embora. Depois de todos os outros estudantes se irem embora, inclinou-se para mim e disse-me que eu tinha de ir para casa. Ela sabia que eu era uma criança problemática. Eu disse-lhe que queria ficar com ela. Agarrou-me por um momento, levantou-se e pôs a tocar a canção de que eu mais gostava. Depois disso, fui-me embora.

Como estava atrasado, corri para casa o mais depressa que pude, e fiz as minhas tarefas a alta velocidade. Quando acabei, a Mãe mandou-me sentar no quintal, sobre o frio chão de cimento.

Nessa sexta-feira olhei para cima, para a densa camada de nevoeiro que cobria o sol e chorei para dentro. A professora substituta tinha sido tão simpática comigo. Tratou-me como a um ser humano e não como se eu fosse um bocado de lixo da sarjeta. Enquanto estava ali sentado, sentindo pena de mim próprio, pensei onde é que ela estaria e o que estaria a fazer. Na altura não percebi, mas tinha um fraquinho por ela.

Sabia que não ia comer nessa noite, nem na próxima. Como o Pai não estava em casa, ia ter um mau fim-de-semana. Sentado ao frio no quintal, sobre os degraus, ouvia o som da Mãe a dar de comer aos meus irmãos. Não me importei. Fechando os olhos, conseguia ver o rosto sorridente da minha nova professora. Nessa noite, sentado a tremer lá fora, a sua beleza e bondade aqueceram-me.

Em outubro a minha vida mórbida estava no auge. Havia pouca comida na escola. Eu era uma presa fácil para os fanfarrões da escola, que me batiam à vontade. Depois das aulas tinha de correr para casa e derramar o conteúdo do meu estômago para a Mãe inspecionar. Às vezes, deixava-me começar logo as minhas tarefas. Outras vezes enchia a banheira com água. Se estava realmente bem-disposta, punha a mistura do gás para mim na casa de banho. Se estava farta de me ver em casa, mandava-me ir aparar relvados, mas não antes de me bater. Algumas vezes chicoteava-me com a corrente do cão. Era muito doloroso, mas eu cerrava os dentes e agüentava. A pior dor era o golpe na parte de trás das pernas com o cabo da vassoura. Por vezes os golpes do cabo da vassoura deitavam-me ao chão e ficava quase incapaz de me mexer. Mais do que uma vez coxeei pela rua abaixo empurrando o velho aparador da relva, tentando ganhar algum dinheiro para ela.

Chegou, finalmente, uma altura em que já não me servia de nada o Pai estar em casa, porque a Mãe o proibira de me ver. A minha esperança deteriorava-se e comecei a acreditar que a minha vida nunca mudaria. Pensava que seria o escravo dela enquanto fosse vivo. Por cada dia que passava, a minha força de vontade enfraquecia. Já não sonhava com o Super-homem ou qualquer herói imaginário que viria salvar-me. Sabia que a promessa do Pai de me levar para longe era uma fraude. Desisti de rezar e só pensava em viver um dia de cada vez.

Um dia de manhã, na escola, disseram-me que fosse ter com a enfermeira. Fez-me perguntas sobre a minha roupa e sobre as muitas feridas que tinha ao longo de ambos os braços.

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No início disse-lhe aquilo que a Mãe me ensinara. Mas, à medida que a minha confiança nela começou a crescer, fui-lhe contando tudo acerca da Mãe. Ela tomava notas e dizia-me que fosse ter com ela sempre que precisasse de falar com alguém. Soube mais tarde, que a enfermeira se interessara por mim por causa de algumas informações que recebera da professora substituta no início do ano letivo.

Durante a última semana de outubro, era tradição em casa da Mãe, os rapazes esculpirem desenhos em abóboras. A mim fora-me negado esse privilégio desde os sete ou oito anos. Quando chegou a noite de se esculpirem as abóboras, a Mãe encheu a banheira, mal eu tinha acabado os meus afazeres. Avisou-me, de novo, que tinha que manter a cabeça debaixo de água. Para eu não me esquecer, agarrou-me no pescoço e empurrou-me a cabeça para debaixo de água. Então, saiu de rompante da casa de banho, apagando a luz ao sair. Olhando para a esquerda, vi através da pequena janela da casa de banho, que a noite começava a cair. Passei o tempo contando para mim próprio. Comecei no um e parei em mil. Depois recomecei. À medida que as horas passavam, sentia a água a escoar-se lentamente. E enquanto a água se escoava, o meu corpo ia ficando cada vez mais frio. Pus as mãos em concha entre as pernas e encostei o corpo ao lado direito da banheira. Ouvia os sons do disco do Dia das Bruxas que a Mãe comprara para o Stan há uns anos. Fantasmas e vampiros gemiam e portas rangiam. Depois de os rapazes esculpirem as abóboras ouvi a Mãe, com voz suave, contar-lhes uma história de terror. Quanto mais ouvia, mais eu odiava todos e cada um. Já era suficientemente mau esperar como um cão lá fora no quintal sobre as rochas enquanto eles jantavam; mas ter de estar deitado na banheira gelada, tremendo, enquanto eles comiam pipocas e ouviam os contos da Mãe, dava-me vontade de gritar.

O tom de voz da Mãe nessa noite fez-me lembrar a Mamã que eu amara há tantos anos atrás. Agora até os rapazes se recusavam a dar pela minha presença na casa. Eu significava menos para eles do que os espíritos que gemiam no disco do Stan. Depois de os rapazes irem para a cama a Mãe entrou na casa de banho. Pareceu admirada de me ver ainda deitado na banheira.

− Tens frio? − escarneceu. Eu tremi e abanei a cabeça, dando a entender que estava cheio de frio. − Bem, porque é que o meu lindo rapazinho não tira o rabo da banheira e aquece a pele

na cama do seu pai?" Precipitei-me para fora da banheira, vesti a roupa interior, e arrastei-me até à cama do Pai,

encharcando os lençóis com o meu corpo molhado. Por razões que eu não compreendia, a Mãe decidira deixar-me dormir no quarto principal, quer o Pai estivesse em casa, quer não. Ela dormia no quarto lá de cima, com os meus irmãos. Eu não me importava, desde que não tivesse que dormir no beliche do exército, na garagem fria. Nessa noite o Pai veio a casa, mas antes de conseguir dizer-lhe alguma coisa, adormeci.

No Natal o meu espírito secava. Detestava estar em casa durante as duas semanas de férias e aguardava impacientemente o regresso à escola. No dia de Natal recebi um par de skates. Fiquei surpreendido por receber alguma coisa, mas pelo desenrolar dos acontecimentos, os skates não eram um presente oferecido no espírito do Natal. Os skates eram apenas mais um instrumento usado pela Mãe para me fazer sair de casa e sofrer. Nos fins de semana a Mãe mandava-me andar de skate lá fora, quando as outras crianças estavam todas dentro de casa por causa do intenso frio. Eu andava no quarteirão de um lado para o outro, sem ter sequer um casaco para me aquecer. Era a única criança na rua em toda a vizinhança. Mais do que uma vez Tony, um dos nossos vizinhos, veio cá fora buscar o jornal da tarde e viu-me a andar de skate. Deu-me um grande sorriso antes de correr para dentro para fugir do frio. Num esforço para não arrefecer, eu andava o mais depressa que podia. Via o fumo a sair das chaminés das casas que tinham lareira. Desejava estar lá dentro, sentado perto do fogo. A Mãe fazia-me andar de skate durante horas a fio. Só me chamava quando queria que eu concluísse algumas das suas tarefas.

No fim de março desse ano a Mãe entrou em trabalho de parto, quando estávamos nas férias da Páscoa. Enquanto o Pai a conduzia ao hospital em São Francisco, eu rezei para que

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fosse de fato o trabalho de parto. Eu queria tanto que ela estivesse fora de casa. Sabia que, estando ela fora, o Pai me daria comida. Também estava feliz por me livrar das tareias.

Enquanto a Mãe esteve no hospital, o Pai deixou-me brincar com os meus irmãos. Fui imediatamente aceite de volta. Brincávamos ao Star Trek e o Ron deu-me a honra de me deixar fazer o papel do Capitão Kirk. No primeiro dia o Pai serviu sanduíches ao almoço e deixou-me repetir. Quando o Pai foi ao hospital ver a Mãe, nós os quatro brincamos no outro lado da rua, em casa de uma vizinha chamada Shirley. A Shirley era simpática para conosco e tratava-nos como se fôssemos seus próprios filhos. Mantinha-nos entretidos com jogos como o pingue-pongue, ou deixáva-nos, pura e simplesmente, correr dentro de casa. Nalguns aspectos a Shirley fazia-me lembrar a Mamã, nos tempos em que ainda não me batia.

Passados alguns dias a Mãe veio para casa. Apresentou à família um novo irmão, chamado Kevin. Após algumas semanas, as coisas voltaram ao normal. O Pai permanecia fora a maior parte do tempo e eu continuei a ser o bode expiatório no qual a Mãe descarregava as suas frustrações.

A Mãe não costumava passar muito tempo com os vizinhos. Por isso não era uma coisa natural ela e a Shirley terem-se tornado amigas íntimas. Visitavam-se diariamente. Na presença da Shirley, a Mãe representava o papel da progenitora amorosa e solícita, tal como acontecera quando era mãe-abrigo do Clube de Escoteiros. Após vários meses a Shirley perguntou à Mãe porque é que o David não tinha autorização para brincar com as outras crianças. Também tinha curiosidade em saber porque é que o David era castigado tantas vezes. A Mãe tinha uma série de desculpas. O David, ou estava constipado, ou estava a trabalhar num projeto da escola. Finalmente, disse à Shirley que o David era um mau rapaz e merecia estar enclausurado durante muito, muito tempo.

Aos poucos a relação entre a Shirley e a Mãe ficou tensa. Um dia, sem razão aparente, a Mãe quebrou todos os laços com ela. O filho da Shirley não teve permissão para brincar com os rapazes e a Mãe correu à volta da casa chamando-lhe megera. Embora eu não tivesse autorização para brincar com os outros, sentia-me um pouco mais tranqüilo quando a Shirley e a Mãe eram amigas.

Num domingo, durante o último mês de verão, a Mãe veio ao quarto principal, onde me ordenara que estivesse sentado sobre as mãos, na minha posição de prisioneiro de guerra. Mandou-me levantar e sentar no canto da cama. Disse-me então que estava cansada da vida que estávamos a viver. Disse-me que estava arrependida e queria recuperar todo o tempo perdido. Pus um sorriso de orelha a orelha, saltei-lhe para o colo e apertei-a com força. Quando me passou a mão pelo cabelo, comecei a chorar. A Mãe também chorou e comecei a sentir que os meus maus dias tinham acabado. Afastei-me um pouco dela e olhei-lhe para os olhos. Eu tinha que ter a certeza. Tinha que a ouvir dizê-lo de novo.

− Acabou mesmo? − perguntei timidamente. −Acabou, meu querido. A partir deste momento, quero que esqueças tudo o que

aconteceu. Vais tentar ser um bom rapaz, não vais? Abanei a cabeça. − Então tentarei ser uma boa mãe. Depois de fazer as pazes, a Mamã deixou-me tomar um banho quente e vestir as roupas

novas que recebera no Natal. Eu ainda não tivera autorização para as vestir. Ela então levou-me a mim e aos meus irmãos para jogarmos bowling enquanto o Pai ficou em casa com o Kevin. No regresso a casa, a Mamã parou numa loja de brinquedos e comprou um pião para cada um. Quando chegamos a casa, ela disse que eu podia brincar lá fora com os outros rapazes, mas eu levei o pião para o canto do quarto principal e brinquei sozinho. Pela primeira vez em anos, com exceção dos dias em que recebíamos convidados, comi com a minha família à mesa do jantar. As coisas estavam a acontecer demasiado depressa e eu sentia que, de algum modo, era bom demais para ser verdade. Sentia-me tão feliz, que era como se estivesse a caminhar sobre nuvens. Pensei que, de certeza, a Mãe iria acordar e voltar a ser o que era. Mas não. Comi tudo o que quis ao

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jantar e deixou-me ficar a ver televisão com os meus irmãos antes de irmos para a cama. Pensei que era estranho que ela continuasse a querer que eu dormisse com o Pai, mas ela disse que queria estar perto do bebê.

No dia seguinte, enquanto o Pai estava no trabalho, uma senhora dos Serviços Sociais veio a nossa casa de tarde. A Mamã mandou-me lá para fora brincar com os meus irmãos, enquanto ela falava com a senhora. Falaram durante mais de uma hora. Antes de a senhora se ir embora, a Mamã mandou-me entrar. A senhora queria falar comigo durante uns minutos. Queria saber se eu era feliz. Eu disse-lhe que sim.

Depois que ela foi embora, tudo voltou ao normal.

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Capítulo 7

A ORAÇÃO DO SENHOR

Cerca de um mês antes de eu entrar para o quinto ano passei a acreditar que, para mim, não havia Deus.

Sentado sozinho na garagem ou lendo na quase escuridão do quarto dos meus pais, passei a compreender que viveria assim o resto da minha vida. Nenhum Deus justo me deixaria assim. Acreditei que estava sozinho na minha luta, e que a minha batalha era pela sobrevivência.

Na altura em que decidi que não havia Deus, eu já me tinha dissociado de qualquer dor física. Sempre que a Mãe me batia, era como se estivesse agredindo uma boneca de trapos. Por dentro, as minhas emoções oscilavam entre o medo e uma intensa ira. Mas por fora eu era um "robot", raramente revelando as minhas emoções; só quando pensava que poderia agradar à Megera e trazer-me vantagens. Retinha as lágrimas, recusando-me a chorar, porque não lhe queria dar a satisfação da minha derrota.

À noite já não sonhava, nem deixava a imaginação funcionar durante o dia. As outrora vibrantes divagações, em que me via a voar através das nuvens em trajos de um azul brilhante, eram agora coisas do passado. Quando adormecia, a minha alma consumia-se num vazio de cor negra. De manhã, quando acordava, já não me sentia retemperado; estava cansado e dizia a mim próprio que tinha menos um dia para viver neste mundo. Arrastava-me pelas minhas tarefas, temendo cada momento do meu dia. Sem sonhos, percebi que palavras como esperança e fé eram apenas letras, postas ao acaso em algo sem sentido; meras palavras para contos de fadas.

Quando me davam o luxo de alguma comida, devorava como um cão sem dono, grunhindo como um animal às ordens da Mãe. Já não me importava que ela fizesse pouco de mim, quando corria para devorar uma só migalha. Nada estava abaixo de mim. Num sábado, enquanto eu lavava a louça da manhã, a Mãe despejou umas panquecas meio-comidas, de um prato para o recipiente dos cães. Os seus bem alimentados animais de estimação comeram até não quererem mais e então se afastaram à procura de um lugar para dormirem. Mais tarde, quando estava a arrumar panelas e frigideiras num armário da parte de baixo, fui de gatas até ao recipiente dos cães e comi o que sobrara das panquecas. Ao comer cheirava-me a cão, mas comi à mesma. Já não me incomodava. Tive a percepção de que, se a Megera me apanhasse a comer o que pertencia aos cães, eu pagaria caro; mas conseguir comer fosse como fosse; era o meu único meio de sobrevivência.

Por dentro a minha alma estava tão fria que eu odiava tudo. Até detestava o sol, porque sabia que nunca poderia brincar na sua quente presença. Encolhia-me de ódio sempre que ouvia as outras crianças a rir ao brincarem lá fora. O meu estômago contorcia-se sempre que cheirava a comida que ia ser servida a qualquer outra pessoa, sabendo que não era para mim. Apetecia-me bater em qualquer coisa sempre que me chamavam lá acima para desempenhar o papel do escravo da família, apanhando restos cheios de baba. Odiava sobretudo a Mãe e desejava-lhe a morte. Mas antes de morrer, queria que ela sentisse a dimensão da minha dor e solidão durante todos estes anos. Durante os anos em que rezei a Deus, Ele só me respondeu uma vez. Um dia, quando eu tinha cinco ou seis anos, a Mãe atirara-me de um lado para o outro da casa. Nessa noite, antes de ir para a cama, ajoelhei-me e rezei a Deus. Pedi-Lhe que fizesse a Mãe adoecer, para que ela não pudesse bater-me mais. Rezei durante muito tempo, concentrando-me tanto que fui para a cama com dores de cabeça. Na manhã seguinte, para minha surpresa, a Mãe estava doente. Ficou deitada no sofá o dia inteiro, mal se mexendo. Como o Pai estava no trabalho, os meus irmãos e eu tomamos conta dela, como se fosse uma nossa doente.

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À medida que os anos passavam e as tareias se tornavam mais intensas, pensava na idade da Mãe e tentava calcular quando é que ela morreria. Ansiava pelo dia em que a sua alma fosse levada para as profundezas do inferno; só então eu me livraria dela.

Também odiava o Pai. Ele tinha plena consciência do inferno em que eu vivia, mas faltava-lhe a coragem para me salvar, como prometera tantas vezes no passado. Mas quando eu examinava a minha relação com o Pai, percebia que ele me considerava parte do problema. Acho que me considerava um traidor. Muitas vezes, quando a Megera e o Pai tinham acesas discussões, ela incluía-me. Gritava por mim onde quer que eu estivesse e ordenava-me que repetisse todas as vis palavras que o Pai teria usado em discussões anteriores. Eu percebia o jogo dela, mas tendo de escolher entre eles, não era difícil. A ira da Mãe era muito pior para mim. Eu abanava sempre a cabeça, dizendo timidamente o que ela queria ouvir. Então ela gritava-me que repetisse as palavras na presença do Pai. Muitas vezes insistia para que eu inventasse as palavras, se não me conseguisse lembrar. Isto incomodava-me muito, porque sabia que, no esforço de evitar uma tareia, estava a morder a mão que frequentemente me alimentava. No início tentava explicar ao Pai por que é que tinha mentido e ficado contra ele. Começou por me dizer que compreendia, mas acabei por perceber que perdera a confiança em mim. Em vez de o lamentar, odiava-o ainda mais.

Os rapazes que viviam lá em cima já não eram meus irmãos. Às vezes, em anos anteriores, eles tinham conseguido encorajar-me um pouco. Mas, no verão de 1972, revezavam-se a dar-me pancada e pareciam divertir-se muito a atirarem-se para cima de mim. Era óbvio que se sentiam superiores ao escravo da família. Quando se aproximavam de mim, o meu coração ficava duro como pedra e tenho a certeza de que viam o ódio cravado na minha cara. Numa vitória rara e vazia, eu murmurava a expressão "olho do cu" quando algum deles passava por mim. Fazia-o de modo a que não me ouvissem. Acabei por detestar os vizinhos, os parentes e qualquer outra pessoa que conhecesse as condições em que eu vivia. O ódio era tudo o que me restava.

No âmago da minha alma odiava-me a mim próprio, mais do que a qualquer outra pessoa ou coisa. Acabei por acreditar que tudo o que me acontecia, a mim ou à minha volta, era por minha culpa, pois permitira que as coisas se prolongassem por tanto tempo. Queria aquilo que os outros tinham, mas não via maneira de o conseguir; então odiava-os por isso. Queria ser forte, mas interiormente sabia que era um cobarde. Nunca tive a coragem de enfrentar a Megera. Por isso, sabia que merecia tudo o que me acontecia. Durante anos, a Mãe fizera-me uma lavagem ao cérebro, fazendo-me gritar alto: "Odeio-me! Odeio-me!" Os seus esforços deram resultado. Umas semanas antes de começar o meu quinto ano, eu odiava-me tanto que desejava estar morto.

A escola já não tinha para mim o atrativo que tivera uns anos antes. Esforçava-me por me concentrar no trabalho, na aula, mas a minha ira armazenada rebentava, por vezes, nas alturas menos próprias. Numa sexta-feira à tarde, no inverno de 1973, sem nenhuma razão aparente, saí da sala, de rompante, gritando para toda a gente, enquanto corria. Bati com a porta com tanta força, que pensei que o vidro da parte de cima da porta se iria quebrar. Corri para a casa de banho e com o meu pequeno punho vermelho dei socos nos azulejos até a minha ira se esvair. Depois caí no chão, rezando por um milagre, que nunca veio.

O tempo passado fora da aula era, pelo menos, melhor do que a "casa infernal" da Mãe. Pelo fato de eu ser marginalizado por toda a escola, os meus colegas de turma, por vezes, retomavam aquilo que a Mãe deixara a meio. Um deles era o Clifford, um brutamontes do recreio, que de vez em quando me apanhava quando eu ia a correr da escola para casa da Mãe. Bater-me era o modo de o Clifford se armar em valente perante os seus amigos. A única coisa que eu podia fazer era cair para o chão e cobrir a cabeça enquanto o Clifford e o seu grupo se revezavam a dar-me pontapés.

A Aggie atormentava-me duma outra forma. Vinha sempre com novas e diferentes maneiras de me dizer o quanto desejava que eu, pura e simplesmente, "caísse morto". O seu estilo era de pura arrogância. A Aggie fazia questão em ser sempre a chefe de um pequeno grupo de raparigas. Para além de me atormentarem, mostrarem os seus belos fatos parecia ser o principal

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objetivo na vida da Aggie e do seu bando. Eu sempre soubera que a Aggie me detestava, mas não sabia de fato quanto, até ao último dia de aulas do nosso quinto ano. A mãe da Aggie lecionava na minha aula de homeroom do quarto ano e, no último dia de aulas, a Aggie veio à nossa sala, agindo como se estivesse a vomitar e disse:

− O David Pelzer-Mal-cheiroso vai estar na minha turma no próximo ano. O seu dia não ficou completo até desferir uma observação grosseira a meu respeito,

perante as suas amigas. Eu não levava a Aggie muito a sério; pelo menos, até ao dia em que, no quinto ano, fizemos uma visita a um veleiro de São Francisco. Quando eu estava sozinho na proa do navio, olhando para a água, a Aggie aproximou-se de mim com um sorriso cínico e disse em voz baixa:

− Salta! Assustei-me e olhei-lhe para o rosto, tentando perceber o que ela queria dizer. Afirmou

de novo, calma e placidamente: − Eu disse que fosses em frente e saltasses. Sei tudo a teu respeito, Pelzer, e saltar é a tua

única saída. Uma outra voz veio detrás dela: − Ela tem razão, tu sabes. A voz era do John, outro colega, um dos fanfarrões da Aggie. Olhando para trás, fixei a

vista na água verde e fria que batia na madeira da parte lateral do navio. Por um momento, visualizei-me a mergulhar na água, sabendo que me afogaria. Era um pensamento reconfortante, que me permitia livrar-me da Aggie, dos seus amigos e de tudo o que eu odiava no mundo. Mas o meu bom senso voltou e olhei para cima, fixando o meu olhar diretamente nos olhos do John, tentando não o desviar. Após alguns momentos ele deve ter sentido a minha ira, porque se voltou e levou a Aggie consigo.

No início do meu quinto ano o Sr. Ziegler, meu professor da aula de homeroom não fazia idéia da razão por que eu era uma criança tão problemática. Mais tarde, depois de a enfermeira lhe dizer porque é que eu roubava comida e me vestia daquela maneira, o Sr. Ziegler fez um grande esforço para me tratar como se eu fosse um miúdo normal. Uma das suas funções, como responsável pelo jornal da escola, consistia em formar uma comissão de miúdos para encontrarem um nome para o jornal. Eu sugeri um nome apelativo e, uma semana depois, a minha proposta apareceu ao lado de outras, numa eleição a nível de toda a escola, para escolher o melhor nome para o jornal. O meu título ganhou por um triz. Nesse dia a votação teve lugar e o Sr. Ziegler chamou-me à parte para me dizer quão orgulhoso estava por o meu título ter ganho. Absorvi as suas palavras como se fosse uma esponja. Há tanto tempo que não me diziam uma coisa positiva que quase chorei. No fim do dia, depois de me assegurar que eu não iria ter problemas, o Sr. Ziegler deu-me uma carta para levar à Mãe.

Por estar atrasado, corri para casa da Mãe mais depressa do que nunca. Tal como eu deveria ter imaginado, a minha felicidade durou pouco. A Megera abriu o envelope, leu a carta rapidamente, e disse em tom de escárnio:

− Bem, o Sr. Ziegler diz que eu deveria estar orgulhosa de ti, por teres dado o nome para o jornal. Também afirma que és um dos melhores alunos da sua aula. Bem, não és tão especial?

De repente, a sua voz gelou, espetou o dedo na direção da minha cara e disse num tom sibilante:

− Convence-te de uma coisa, seu filho da puta! Não há nada que possas fazer que me impressione! Compreendes? Tu és um Zé-ninguém! Uma coisa! Tu não existes! És um filho bastardo! Odeio-te, e queria que estivesses morto! Morto! Estás a ouvir? Morto!

Depois de rasgar a carta em pedacinhos, a Mãe virou-me as costas e voltou para o seu programa de televisão. Eu fiquei estático, olhando fixamente para a carta que jazia a meus pés em pedaços como se fossem flocos de neve. Embora eu já tivesse ouvido aquelas palavras vezes sem conta, desta vez a palavra "coisa" chocou-me como nunca. Ela extorquira-me a minha própria existência. Eu fiz tudo o que pude para merecer o reconhecimento dela. Mas falhei de novo. O

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meu coração desfaleceu ainda mais do que até então. As palavras da Mãe já não vinham do álcool; vinham-lhe do coração. Para mim teria sido um alívio se ela tivesse voltado com uma faca e acabasse com tudo.

Ajoelhei-me tentando juntar os bocadinhos da carta. Era impossível. Deitei os bocados da carta no lixo, desejando morrer. Nesse momento acreditei de fato, que a morte seria melhor do que qualquer esperança de qualquer espécie de felicidade. Eu não passava de uma "coisa".

O meu estado de espírito estava tão embaixo que, de um modo auto-destrutivo, desejava que ela me matasse e senti que acabaria por fazê-lo. Na minha mente era apenas uma questão de saber quando é que ela o faria. Então comecei a irritá-la de propósito, esperando provocá-la o suficiente para que ela pusesse fim à minha desgraça. Comecei a fazer as minhas tarefas de forma descuidada. Esquecia-me de limpar o chão da casa de banho, esperando que a Mãe ou um dos seus reais súbditos escorregasse e caísse, aleijando-se no duro chão de azulejo. Quando lavava a louça do jantar, deixava bocados de comida nos pratos. Queria que a Megera soubesse que eu já não me importava.

À medida que a minha atitude mudava, fui-me tornando cada vez mais rebelde. Um dia, na mercearia, rebentou uma crise. Eu geralmente ficava no carro, mas por alguma razão a Mãe decidiu levar-me lá dentro. Ordenou-me que agarrasse o carrinho com uma mão e inclinasse a cabeça para o chão. Eu desobedeci deliberadamente às suas ordens. Sabia que ela não queria fazer uma cena em público; por isso pus-me a andar em frente do carro, tendo o cuidado de me manter a alguma distância dela. Se os meus irmãos me faziam algum comentário, eu ripostava. Disse, simplesmente, a mim próprio, que não continuaria a aparar o jogo de ninguém.

A Mãe sabia que os outros clientes nos estavam a observar e nos podiam ouvir; por isso, por diversas vezes pegou gentilmente no meu braço e disse-me, num tom de voz agradável, que me acalmasse. Senti-me vivo, sabendo que na loja eu estava em vantagem, mas também sabia que lá fora pagaria o preço. Tal como eu previa a Mãe deu-me uma grande sova antes de chegarmos à carrinha. Já dentro do carro, ordenou-me que me deitasse no chão do banco de trás, onde os seus rapazes se revezaram a dar-me pontapés por ser "desbocado" com eles e com a Mãe. Mal chegou a casa, a Mãe preparou uma mistura especial de amoníaco e detergente. Deve ter adivinhado que eu usara o pano como máscara, porque o deitou para o balde. Logo que ela fechou a porta, corri para a fenda do aquecimento. Não funcionava. Não vinha nenhum ar através da fenda. Devo ter estado na casa de banho mais de uma hora, porque o fumo cinzento encheu o pequeno compartimento até ao chão. Os meus olhos encheram-se de lágrimas, o que parecia ativar ainda mais o veneno. Cuspi expectoração e tive vômitos até pensar que ia desmaiar. Quando a Mãe finalmente abriu a porta, fugi para o vestíbulo, mas ela agarrou-me pelo pescoço. Tentou empurrar-me a cara para o balde, mas eu reagi e ela falhou. Depois deste incidente mais alongado da "câmara de gás", voltei à minha habitual cobardia, mas por dentro ainda sentia a pressão a crescer como num vulcão, à espera de irromper das profundezas da minha alma.

A única coisa que me mantinha com alguma sanidade era o meu irmãozinho Kevin. Era um bebê lindo e eu amava-o. Cerca de três meses e meio antes de ele nascer, a Mãe deixou-me ver um desenho animado especial da época natalícia. Depois do programa, por razões que não entendi, ordenou-me que me sentasse no quarto dos meus irmãos. Minutos mais tarde entrou intempestivamente no quarto, pôs as mãos à volta do meu pescoço, e começou a estrangular-me. Abanei a cabeça de um lado para o outro, tentando libertar-me. Ao começar a sentir-me desfalecer, instintivamente dei-lhe um pontapé nas pernas, obrigando-a a afastar-se. Em breve me arrependi.

Cerca de um mês depois da tentativa da Mãe de me estrangular, disse-me que lhe dera um pontapé tão forte no estômago, que o bebê nasceria com um defeito. Senti-me um assassino. A Mãe não se cansava de me dizer isso. Tinha diferentes versões do incidente, consoante a pessoa que ouvia. Dizia que me tentara abraçar e eu lhe dera repetidos pontapés ou socos no estômago. Afirmava que eu lhe dera pontapés porque tinha ciúmes do novo bebê. Dizia que eu receava que o bebê tivesse mais atenção da parte dela. Eu, de fato, amava o Kevin, mas como não tinha

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autorização, nem sequer de olhar para ele ou para os meus irmãos, não tinha a possibilidade de mostrar o que sentia. Lembro-me do que aconteceu num sábado em que a Mãe levou os outros rapazes a um jogo de baseball em Oakland, deixando o Pai a tomar conta do Kevin enquanto eu desempenhava as minhas tarefas. Depois de terminar o meu trabalho, o Pai deixou o Kevin fora do berço. Adorei vê-lo gatinhar, com o seu engraçado fatinho. Achei-o lindo. Quando o Kevin levantou a cabeça e sorriu para mim, o meu coração derreteu-se. Fez-me esquecer o meu sofrimento por uns instantes. A sua inocência hipnotizava-me e segui-o pela casa fora; limpei-lhe a baba da boca e mantive-me um pouco atrás dele, para que não se magoasse. Antes de a Mãe voltar, brinquei com ele. O som do riso do Kevin aqueceu-me o coração e mais tarde, sempre que me sentia deprimido, pensava nele. Eu sorria por dentro, quando ouvia o Kevin gritar de alegria.

O meu breve encontro com o Kevin rapidamente se desvaneceu e o meu ódio veio de novo à tona. Esforçava-me por enterrar os meus sentimentos, mas não conseguia. Sabia que não estava destinado a ser amado. Sabia que nunca teria uma vida como a dos meus irmãos. Pior que tudo, sabia que era só uma questão de tempo o Kevin passar a odiar-me, tal como os outros.

Mais tarde, nesse mesmo outono, a Mãe começou a canalizar as suas frustrações para outros alvos. Detestava-me como sempre, mas começou a afastar-se das suas amigas, do marido, do irmão e até da mãe. Mesmo quando eu era muito pequeno, sabia que a Mãe não se dava muito bem com a família. Achava que toda a gente se tentava impor a ela. Nunca se sentia à vontade, especialmente com a mãe dela, que era também uma pessoa de personalidade forte. A Avó geralmente, queria comprar-lhe um vestido novo ou levá-la ao instituto de beleza. A Mãe não só recusava as ofertas, como gritava e berrava até a Avó se ir embora da sua casa. Às vezes a Avó tentava ajudar-me, mas isso só tornava as coisas piores. A Mãe insistia em que a sua aparência e o modo como educava a família "não eram da conta de ninguém". Após alguns destes confrontos a Avó raramente ia a casa da Mãe.

À medida que se aproximavam as férias, a Mãe discutia cada vez mais ao telefone com a Avó. Chamava à sua própria mãe os piores nomes que conseguia imaginar. O problema entre a Mãe e a Avó era mau para mim, porque depois da luta entre elas, eu tornava-me o objeto da fúria da Mãe. Uma vez, lá de baixo da cave, ouvi a Mãe chamar os meus irmãos à cozinha para lhes dizer que já não tinham uma avó, nem um tio Dan.

A Mãe também era desumana na sua relação com o Pai. Quando ele vinha a casa, fazer uma visita ou ficar por um dia, ela começava a gritar-lhe, mal ele entrava a porta. Como conseqüência, ele vinha frequentemente bêbedo. No esforço de sair do caminho da Mãe, o Pai passava muito do seu tempo a desempenhar tarefas fora de casa. Mas até no trabalho ele apanhava com a ira dela. Telefonava frequentemente para o Pai e chamava-lhe nomes. "Inútil" e "Bêbedo falhado" eram duas das expressões suas favoritas. Após algumas chamadas, o bombeiro que atendia desligava sem chamar o Pai. Isto enfurecia a Mãe e eu tornava-me de novo o objeto da sua fúria.

Durante algum tempo, a Mãe pôs o Pai fora de casa e a única vez que o vimos foi quando fomos a São Francisco buscar o ordenado dele. Uma vez quando íamos buscar o cheque, passamos pelo Parque Golden Gate. Embora a minha raiva estivesse sempre presente, lembrei-me dos bons tempos em que o parque era tão importante para toda a família. Os meus irmãos também ficaram calados nesse dia, quando atravessamos o parque. Todos pareciam ter a sensação de que o parque perdera o encanto e que nada seria como dantes. Penso que talvez os meus irmãos sentissem que os bons tempos também tinham acabado para eles.

Durante algum tempo a atitude da Mãe para com o Pai mudou. Num domingo a Mãe amontoou-nos a todos no carro e andou de loja em loja à procura de um disco com canções alemãs. Queria criar uma atmosfera especial para o Pai, quando ele chegasse a casa. Passou uma parte da tarde a preparar um banquete com o mesmo entusiasmo que costumava ter no passado. Demorou horas a arranjar o cabelo e a pintar-se toda. Até pôs um vestido que lembrava a pessoa que ela já fora. Pensei que, certamente, Deus respondera às minhas orações. Enquanto ela andava

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pela casa, arrumando tudo o que achava que estava fora do sítio, eu só conseguia pensar na comida. Sabia que o seu coração a levaria a deixar-me comer com a família. Mas era uma esperança vã.

O tempo foi avançando pela tarde fora. O Pai, em princípio, chegaria a casa cerca da uma hora da tarde e, de cada vez que se ouvia um carro a aproximar-se, a Mãe corria para a porta da frente, para o receber de braços abertos. Um pouco depois das quatro o Pai entrou a cambalear, com um colega do trabalho. O ambiente festivo foi uma surpresa para ele. Do quarto ouvi a voz tensa da Mãe, tentando ser paciente com o Pai. Uns minutos mais tarde o Pai entrou aos tropeções no quarto. Olhei para cima, surpreendido. Nunca o vira tão embriagado. Não precisou falar para que eu sentisse o cheiro a álcool. Os olhos estavam mais do que vermelhos e parecia que para ele era um problema insolúvel conseguir manter-se de pé e de olhos abertos. Antes mesmo de ele abrir o armário eu sabia o que é que ele ia fazer. Percebi porque é que viera a casa. Enquanto enchia o seu saco azul, comecei a chorar por dentro. Queria ser suficientemente pequeno para conseguir saltar para dentro do saco e ir com ele.

Quando acabou de juntar as suas coisas, o Pai ajoelhou-se e resmungou-me qualquer coisa. Quanto mais eu olhava para ele, mais fracas ficavam as minhas pernas. A minha mente estava paralisada com perguntas. Onde está o meu Herói? O que lhe aconteceu? Quando abriu a porta para deixar o quarto, o amigo bêbedo chocou contra o Pai, quase o deitando ao chão. O Pai abanou a cabeça e disse numa voz triste:

− Já não agüento mais. Tudo em conjunto. A tua mãe, esta casa, tu. Não agüento mais". − Antes de fechar a porta do quarto, mal consegui ouvi-lo murmurar − Eu... Eu... Lamento.

O jantar de Ação de Graças desse ano foi um fracasso. Numa espécie de gesto de boa fé, a Mãe deixou-me comer à mesa com a família. Eu sentei-me bem fundo na minha cadeira, concentrando-me em silêncio, a fim de não dizer nem fazer nada que a chateasse. Sentia a tensão entre os meus pais. Eles mal falavam e os meus irmãos mastigavam a comida em silêncio. Mal o jantar tinha acabado quando irromperam palavras ásperas. Depois da luta acabar o Pai foi-se embora. A Mãe foi a um dos armários buscar o seu prêmio engarrafado e sentou-se na ponta do sofá. Ficou ali sentada sozinha, bebendo sucessivos copos de álcool. Enquanto levantava a mesa e lavava a louça, percebi que, desta vez, eu não era o único a ser afetado pelo comportamento da Mãe. Os meus irmãos pareciam estar a sentir o mesmo medo que eu sentia há tantos anos.

Durante um curto período, a Mãe e o Pai tentaram ser civilizados um com o outro. Mas no dia de Natal, ambos estavam fartos desse jogo. A tensão resultante da tentativa de serem simpáticos um com o outro era superior às suas forças. Quando eu estava sentado no topo das escadas e os meus irmãos acabavam de abrir as prendas, ouvi-os trocarem palavras azedas. Rezei para que, de algum modo, eles fizessem as pazes, ao menos nesse dia especial. Sentado nas escadas da cave, nessa manhã de Natal, eu percebi que, se Deus quisesse que a Mãe e o Pai fossem felizes, eu teria que estar morto.

Uns dias mais tarde a Mãe meteu a roupa do Pai em caixas e comigo e com os meus irmãos, foi de carro até um local perto da estação dos bombeiros. Aí, em frente a um motel de aspecto sujo, estava o Pai à espera. O seu rosto parecia exprimir alívio. O meu coração afundou-se. Depois de anos de orações inúteis, percebi que finalmente acontecera: os meus pais estavam a separar-se. Fechei os punhos com tanta força que pensei que os meus dedos se enterrariam nas palmas das mãos. Enquanto a Mãe e os rapazes entravam no quarto do motel do Pai eu fiquei sentado no carro, amaldiçoando o seu nome vezes sem conta. Odiava-o por abandonar a família. Mas talvez mais do que isso, tinha inveja dele, porque se libertara e eu não. Eu ainda tinha de viver com a Mãe. Antes dela se afastar com o carro, o Pai inclinou-se para a janela aberta onde eu estava sentado e entregou-me um pacote. Era uma informação que me dissera que ia arranjar para um trabalho que eu estava a fazer na escola. Percebi que estava aliviado por se afastar da Mãe, mas também vi tristeza nos seus olhos, quando nos afastamos em direção ao centro da cidade.

O regresso a Daly City foi solene. Quando os meus irmãos falavam, faziam--no de um modo suave, para não incomodarem a Mãe. Quando chegamos aos arredores da cidade, a Mãe

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tentou alegrar os seus rapazes levando-os ao McDonald's. Como de costume eu fiquei sentado no carro enquanto eles entravam. Olhei pela janela aberta do carro, para o céu. Um espesso manto cinzento cobria tudo e sentia frios pedaços de nevoeiro no rosto. Enquanto olhava para o nevoeiro, fiquei aterrorizado. Sabia que agora nada poderia deter a Mãe. A pouca esperança que eu tinha desaparecera. Já não possuía a vontade necessária para continuar. Sentia-me como se fosse um homem na fila para a morte, sem saber quando é que chegaria a minha vez. Queria fugir do carro, mas tinha demasiado medo até para me mexer, um milímetro que fosse. Odiei-me por esta fraqueza. Em vez de fugir agarrei-me ao embrulho que o Pai me dera e cheirei-o, tentando detectar o odor da água-de-colônia do Pai.

Como não consegui sentir qualquer odor, soltei um soluço. Nesse instante odiei Deus mais do que qualquer outra coisa, neste ou em qualquer outro mundo. Deus sabia dos meus esforços durante anos, mas Ele limitara-se a ver as coisas irem de mal a pior. Nem sequer me concedia um vestígio do After Shave Old Spice do Pai. Deus retirara-me por completo a minha maior esperança. Maldisse interiormente o Seu nome e desejei nunca ter nascido. Lá fora ouvi os sons da Mãe e dos rapazes a aproximarem-se do carro. Limpei rapidamente as lágrimas e regressei à segurança interior da minha concha endurecida. Quando a Mãe estava a tirar o carro do parque de estacionamento do McDonald's, olhou de relance para mim e disse em tom de escárnio:

− Agora és todo meu. Que pena o teu pai não estar aqui para te proteger! Eu sabia que todas as minhas defesas eram inúteis. Não iria sobreviver. Sabia que ela me

iria matar; se não hoje, amanhã. Nesse dia desejei que a Mãe tivesse piedade e me matasse depressa.

Enquanto os meus irmãos devoravam os seus hamburgers, sem eles saberem juntei as mãos, inclinei a cabeça para baixo e rezei com todo o meu coração. Quando a carrinha virou para a rua, senti que a minha hora chegara. Antes de abrir a porta do carro, inclinei a cabeça e com paz no meu coração, murmurei:

− ...e livrai-nos do mal. Amém.

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EPÍLOGO

SONOMA COUNT, CALIFÓRNIA

Sinto-me tão vivo! Ao olhar de frente para a beleza do interminável Oceano Pacífico, uma brisa do fim de

tarde sopra dos montes, lá atrás. Como sempre, está um dia lindo. O sol está a acabar de descer. A magia está prestes a começar. Os céus estão prontos a arder de brilho, mudando de um azul suave para um laranja brilhante. Olhando para oeste, contemplo com admiração o poder hipnótico das ondas. Uma onda gigante começa a ganhar forma, depois rebenta com um barulho ensurdecedor ao bater na costa. Uma neblina invisível roça-me a face, momentos antes de a espuma branca quase me molhar os pés. A espuma, cheia de bolhas, rapidamente regressa à força da rebentação. De repente um pedaço de madeira é atirado para a costa. Tem uma forma estranha, retorcida. A madeira tem buracos, porém está macia e manchada por ter estado ao sol. Inclino-me para a apanhar. Quando os meus dedos estão prestes a tocar-lhe, a água apodera-se dela e arrasta-a de novo para o mar. Por um momento parece que a madeira está a lutar por ficar em terra. Deixa um rasto atrás de si antes de chegar à água, onde se agita violentamente até que se rende ao oceano. Fico maravilhado a olhar para a madeira, pensando em como me faz lembrar a minha vida anterior. O meu início foi extremamente turbulento, sendo puxado e empurrado em todas as direções. Quanto mais terrível ficava a minha situação, mais eu sentia como se uma imensa energia me estivesse a puxar para uma onda gigante. Eu lutava o mais que podia, mas o ciclo parecia nunca acabar. Até que, de repente e sem aviso, me libertei.

Tenho tanta sorte! O meu negro passado ficou para trás. Por muito mau que fosse, eu sabia, mesmo nessa altura e em última análise, que o meu modo de vida havia de ser consentâneo comigo. Fiz a promessa a mim próprio que, se saísse daquela situação com vida, teria que fazer alguma coisa de mim. Havia de ser a melhor pessoa que eu conseguisse ser. Hoje julgo que sou. Fiz tudo para deixar o passado para trás, aceitando o fato de essa parte da minha vida ser apenas uma pequena fração dela. Sabia que o buraco negro estava ali, esperando para me sugar e controlar para sempre o meu destino; mas só se eu deixasse. Passei a ter um controlo positivo sobre a minha vida.

Sou tão abençoado! Os desafios do meu passado tornaram-me imensamente forte por dentro. Adaptei-me rapidamente, aprendendo como sobreviver a uma má situação. Aprendi o segredo da motivação interna. A minha experiência deu-me uma perspectiva diferente da vida, que os outros podem nunca vir a ter. Tenho um grande apreço pelas coisas que os outros encaram como certas. Pelo caminho cometi alguns erros, mas tive a sorte de os corrigir. Em vez de me fixar no passado, mantive a mesma esperança que incutira em mim próprio anos atrás na garagem, sabendo que o bom Deus estava sempre a meu lado, dando-me sereno encorajamento e força, quando eu mais precisava.

A minha bênção incluiu a oportunidade de conhecer tantas pessoas que tiveram um impacto positivo na minha vida. Um mar sem fim de rostos, estimulando-me, ensinando-me a fazer as escolhas certas e ajudando-me na procura do êxito, fortaleceram a minha ânsia de vencer. Expandindo-me a um outro nível, alistei-me na Força Aérea dos Estados Unidos, descobrindo valores históricos e um sentimento interior de orgulho e pertença que não conhecera até então.

Após anos de luta, o meu objetivo tornou-se claro; pois acima de tudo acabei por compreender que a América era, de fato, a terra em que se pode ter uma origem menos que humilde e vir a ser um vencedor pela própria força.

Um explosivo bater das ondas traz-me de volta à realidade. O pedaço de madeira que tenho estado a observar desaparece nas águas em remoinho. Sem hesitar volto-me rapidamente e regresso ao meu jipe. Momentos mais tarde dirijo o meu Toyota pelas curvas sinuosas em direção

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à minha secreta utopia. Anos atrás, quando vivia na escuridão, costumava sonhar com o meu local secreto. Agora, sempre que me posso afastar, volto sempre ao rio. Depois de parar para recolher a minha preciosa carga no Rio Villa, no vizinho Monte Rio, estou de volta ao topo negro de um só caminho. Para mim é uma corrida contra o tempo, pois o sol está prestes a pôr-se e um dos sonhos da minha vida está prestes a tornar-se realidade. Quando entro na serena cidade de Guerneville, o jipe passa de uma velocidade de corrida para a de caracol. Toco nos travões antes de virar à direita, para o caminho de Riverside. Com as janelas abertas encho os pulmões do ar doce a purificado que vem dos gigantescos paus-brasil que balançam suavemente.

Faço parar o Toyota branco em frente à mesma casa onde, há tanto tempo atrás, a minha família e eu ficávamos nas férias do verão: 177426 Riverside Drive. Como muitas outras coisas, a casa também mudou. Há uns anos, foram acrescentados dois pequenos quartos por detrás da lareira. Uma vaga tentativa de alargar a minúscula cozinha foi feita antes das cheias de 1986. Até o grosso tronco, em que anos atrás os meus irmãos e eu passávamos horas sem fim a trepar, está agora em declínio. Só o teto de cedro escurecido e a lareira feita com pedras do rio é que não mudaram.

Sinto-me um pouco triste quando me afasto, andando sobre a pequena estrada de cascalho. Então, fazendo questão em não incomodar ninguém, conduzo o meu filho, Stephen, por uma pequena passagem ao lado da mesma casa aonde os meus pais me levaram a mim e aos meus irmãos uns anos antes. Conheço o dono e tenho a certeza de que ele não se importa. Sem pronunciar uma palavra o meu filho e eu olhamos para oeste. O Rio Russo está igual ao que sempre foi: verde-escuro e liso como um espelho, à medida que vai fluindo suavemente para o poderoso Oceano Pacífico. Gaios azuis chamam-se uns aos outros enquanto deslizam pelo ar, antes de desaparecerem por entre os paus-brasil. O céu, lá em cima, está repleto de faixas cor-de-laranja e azuis. Inspiro de novo profundamente e fecho os olhos, saboreando o momento, tal como o fizera anos atrás.

Quando abro os olhos, uma lágrima escorre-me pelo rosto. Ajoelho-me, rodeando os ombros do Stephen com os meus braços. Sem hesitar, ele inclina a cabeça para trás e dá-me um beijo:

− Amo-te, Papá! − Também te amo! − respondo. O meu filho contempla o céu que vai escurecendo. Os seus olhos abrem-se mais ao tentar

captar o sol que desaparece. − Este é o meu local favorito no mundo inteiro! − anuncia o Stephen. A minha garganta fica apertada. Uma pequena corrente de lágrimas começa a cair. − O meu também! − replico. − O meu também! O Stephen está naquela idade mágica da inocência. No entanto, é bastante maduro para a

idade. Mesmo agora, enquanto lágrimas salgadas me escorrem pela face, o Stephen sorri, deixando-me manter a dignidade. Mas ele sabe porque é que eu estou a chorar. O Stephen sabe que as minhas lágrimas são de alegria.

"Amo-te, Papá!". "Também te amo, filho!"

Estou livre.

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PERSPECTIVAS SOBRE OS MAUS TRATOS A CRIANÇAS

DAVE PELZER Sobrevivente

Enquanto criança, vivendo num mundo escuro, eu temia pela minha vida e pensava que estava só. Enquanto adulto, sei agora que não estava só. Havia milhares de outras crianças maltratadas.

As fontes de informação variam, mas estima-se que uma em cada cinco crianças são maltratadas física, emocional ou sexualmente, no nosso país. Infelizmente, existem pessoas entre o público não informado que acreditam que a maior parte dos maus tratos não passa do exercício, por parte dos pais, do seu "direito" a disciplinarem os seus filhos, deixando que as coisas saiam um pouco do controlo. Essas mesmas pessoas são capazes de acreditar que o excesso de disciplina certamente não se refletirá no estado adulto. Estão tragicamente mal informadas.

Em qualquer altura, um adulto que foi vítima de um negro passado de maus tratos, pode projetar as suas acumuladas frustrações, quer na sociedade, quer naqueles que ama. O público está bem informado sobre os casos mais fora do comum. Os incidentes inusitados atraem os meios de comunicação e dinamizam as estatísticas. Ouvimos falar do pai, advogado, que esmurrou e deixou uma criança inconsciente no chão, antes de se deitar. Ouvimos falar do pai que afogou uma criança na sanita. Ambas as crianças morreram. Num caso mais bizarro, uma mãe e um pai mataram cada um uma criança e esconderam os corpos durante um período de quatro anos. Existem outras histórias gritantes, como o da criança maltratada que se transformou no homem que entrou em histeria assassina num McDonald's, matando a tiro vítimas indefesas, até que a polícia lhe tirou a vida.

Mais comuns são os desconhecidos que desaparecem, como o rapaz sem abrigo que dorme debaixo de uma ponte e cujo lar é um caixote de recolha de cartões. Todos os anos milhares de raparigas vítimas de abuso fogem de casa e vendem os corpos para sobreviverem. Outros reagem, juntando-se a grupos que se entregam à violência e à destruição.

Muitas crianças vítimas de maus tratos escondem o passado no fundo de si tão profundamente que a possibilidade de elas próprias virem a maltratar alguém é impensável. Vivem vidas normais, casam, constituem família e constroem carreiras. Mas os problemas comuns da vida do dia-a-dia muitas vezes levam aquele que foi vítima de maus tratos, a agir como lhe ensinaram em criança. As esposas e as crianças tornam-se então o objeto das suas frustrações; e sem terem consciência disso, fecham o círculo, completando o incessante ciclo da raiva. Algumas crianças vítimas de maus tratos mantêm-se sossegadamente fechadas nas suas conchas. Olham para o outro lado acreditando que, se ignorarem o passado, ele desaparece. Parecem acreditar que, acima de tudo, a Caixa de Pandora deve permanecer fechada.

Todos os anos, milhões de dólares são investidos em sociedades de proteção à criança. Esses dólares são canalizados para estruturas de apoio, como albergues e centros de juventude. Há subsídios para milhares de organizações privadas, cujas funções incluem prevenção de maus tratos a crianças, aconselhamento aos pais que as maltratam e às vítimas. Todos os anos os números aumentam. Em 1990, mais de 2,5 milhões de casos de maus tratos foram relatados nos Estados Unidos. Em 1991, o número aumentou para 2,7 milhões. No momento em que escrevo este texto, a estimativa é de 3 milhões.

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Por quê? O que é que causa a tragédia dos maus tratos a crianças? É, de fato, assim tão mau como dizem? É possível acabar com isso? E talvez a pergunta mais importante: como são vistos os maus tratos por uma criança?

O que acabaram de ler é uma história de uma família comum, que foi devastada pelo seu segredo escondido. A história tem dois objetivos: o primeiro, é informar o leitor de como um progenitor carinhoso e solícito se pode transformar num monstro frio e agressivo, projetando as suas frustrações numa criança indefesa; o segundo é a possível sobrevivência e triunfo do espírito humano sobre adversidades aparentemente inultrapassáveis.

Alguns leitores acharão a história irreal e perturbadora, mas os maus tratos a crianças são um fenômeno perturbador e uma realidade na nossa sociedade. Os maus tratos têm um efeito de dominó, que se estende a todos os que tocam na família. O maior prejuízo vai para a criança e espalha-se na família próxima, nomeadamente na esposa, que muitas vezes fica dilacerada entre a criança e o seu companheiro. Daí vai para as outras crianças da família, que não compreendem e também se sentem ameaçadas. Envolvidos também são os vizinhos que ouvem os gritos, mas não reagem; os professores, que vêem as feridas e têm que lidar com uma criança demasiado aturdida para conseguir aprender e os parentes, que querem intervir, mas não querem pôr em risco as relações.

Isto é mais do que uma história de sobrevivência. É uma história de vitória e celebração. Mesmo nas passagens mais negras, o coração é invencível. É importante que o corpo sobreviva, mas é mais significativo que o espírito humano prevaleça.

Esta história é minha e só minha. Durante anos estive confinado na escuridão da minha própria mente e coração, sozinho, e sendo um lamentável "perdedor". No início, só queria ser como os outros, mas a minha motivação cresceu. Quis tornar-me um "vencedor". Durante mais de 13 anos servi o meu país nas forças armadas. Agora sirvo o meu país, dando seminários e colóquios àqueles que precisam, ajudando-os a quebrarem as correntes. De alguém que já lá esteve, trago uma mensagem às crianças maltratadas e àqueles que trabalham com elas. Trago uma perspectiva nascida na brutal realidade dos maus tratos a crianças e alimentada na esperança de um melhor futuro. O mais importante é que eu quebrei o ciclo e tornei-me um pai cuja única culpa consiste em estragar o seu filho com amor e encorajamento.

Hoje há milhões no nosso país a precisarem desesperadamente de ajuda. A minha missão é ajudar os que necessitam de uma mão amiga. Acredito que é importante que as pessoas saibam que, seja o que for que exista no seu passado, podem ultrapassar o fado negro, e insistir num mundo mais briIhante. Talvez seja um paradoxo que, sem os maus tratos do meu passado, eu poderia não ser o que sou hoje. Por causa da escuridão da minha infância tenho um profundo apreço pela vida. Tive a sorte de transformar a tragédia em triunfo. Esta é a minha história. Talvez em nenhuma altura da história do nosso país a família tenha estado sob tanta pressão. As mudanças econômicas e sociais empurraram a família para o seu limite, e tornaram mais prováveis os maus tratos a crianças. Se a sociedade quer resolver o problema, tem que o expor. Uma vez exposto, as causas dos maus tratos poderão ser compreendidas e o apoio poderá, então, realmente começar. A infância deveria ser despreocupada, brincando ao sol e não,vivendo um pesadelo nas trevas da alma. STEVEN E. ZIEGLER Professor

O mês de setembro de 1992 começou para mim, como um típico mês de retorno às aulas. No meu décimo segundo ano de docência, encontrei a habitual confusão febril e imparável. Havia perto de 200 novos alunos com nomes que teria que aprender e vários novos membros universitários a quem dar as boas-vindas. Era o adeus às férias do verão e uma saudação a responsabilidades acrescidas e ao calvário anual respeitante às verbas para as escolas.

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Aparentemente nada mudara no início das aulas, até que no dia 21 chegou um telefonema que dolorosamente me fez recuar 20 anos: "Um tal David Pelzer gostaria que contatasse o seu agente, a propósito de uns relatórios referentes a maus tratos a crianças, a que o senhor esteve ligado há vinte anos atrás." O passado regressava de uma forma demasiado súbita. Oh, sim, lembro-me muito bem do David Pelzer. Eu era um recém-licenciado, um novo professor; e agora vejo que sabia pouco acerca do mundo real da carreira que escolhera. E aquilo que eu menos conhecia eram os maus tratos a crianças. No início da década de 1970 eu nem sabia se os maus tratos a crianças realmente existiam. A existirem, estavam escondidos no "armário", tal como muitos estilos de vida e comportamentos não mencionáveis dessa época. Aprendemos muito; todavia, ainda há muito caminho a percorrer. A minha mente voltou à Escola Thomas Edison em Daly City, Califórnia, em setembro de 1972. Entra o pequeno David Pelzer, como um dos meus alunos do quinto ano. Eu, na altura, era ingênuo, mas fui abençoado com uma sensibilidade que me disse haver algo de profundamente errado na vida do David. A comida que desaparecia dos almoços dos outros alunos foi relacionada com este rapaz magro e triste. Feridas estranhas apareciam em partes expostas do seu corpo. Tudo começou a apontar para uma única coisa: este miúdo estava a ser sovado e castigado de uma forma que ultrapassava a prática normal entre os pais. Só muitos anos mais tarde vim a saber que aquilo a que estava a assistir na minha aula era o terceiro pior caso de maus tratos a crianças registrados em todo o estado da Califórnia.

Não me compete repetir todos os pormenores que os meus colegas e eu testemunhamos e comunicamos às autoridades há tantos anos. Esse relato constitui o privilégio e a oportunidade do David neste livro. Mas que maravilhosa oportunidade que é para este jovem vir contar a sua história, para que outras crianças não venham a sofrer. Admiro profundamente a sua coragem ao fazê-lo.

As minhas melhores saudações para ti, David. Não tenho quaisquer dúvidas no meu espírito sobre quão longe tu conseguiste chegar.

VALERIE BIVENS Assistente Social

Como Assistente Social dos Serviços de Proteção à Criança na Califórnia, tenho bem consciência da freqüência e da gravidade dos crimes contra as crianças. Este livro é o relato dos inimagináveis maus tratos infligidos a uma criança. Nós temos a sua percepção, à medida que ela se move através de um contínuo aterrador, desde uma ideal vida em família até à situação de "prisioneiro de guerra" na sua própria casa. Esta história é dada a conhecer ao leitor por um sobrevivente, um homem de extrema coragem e força de caráter.

Infelizmente o público em geral, ignora a extensão dos maus tratos a crianças. Estas crianças, vítimas de crimes hediondos, são frequentemente incapazes de falar sobre ou contra os maus tratos a que foram sujeitas. A sua raiva e dor viram-se contra elas próprias ou contra os que lhes estão próximos; e o ciclo continua.

Começamos agora a ouvir falar mais sobre os maus tratos a crianças. Os filmes e artigos em revistas, sobre este assunto, estão a tornar-se mais freqüentes, mas os casos são, muitas vezes, tratados de forma sensacionalista e nós estamos demasiado longe para compreender a realidade e a dor, virtuais, da vítima. Este livro esclarece e educa. À medida que acompanhamos o David através do medo, da perda, do isolamento, da dor e da raiva, até chegar à esperança, o mundo negro das crianças maltratadas torna-se dolorosamente claro. Tomamos consciência do grito da criança através dos olhos, dos ouvidos e do corpo de David Pelzer. Também sentimos o coração da vítima, à medida que transita de um sofrimento insuportável, para um triunfo final.

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GLENN A. GOLDBERG Ex-Diretor do Consórcio da Califórnia para a Prevenção dos Maus Tratos a Crianças

A história de David Pelzer deve ser contada, a fim de que possamos mobilizar todos para a criação de um país em que não doa ser criança. Milhões das nossas crianças, que constituem o nosso mais precioso recurso natural, estão a ser vítimas de uma trágica e ignorada epidemia de maus tratos e negligência. Quer o nível quer a intensidade dos maus tratos, aumentaram dramaticamente na última década. A história do David ajudará as pessoas a compreenderem que esta crise ultrapassa, em muito, o mero excesso de pancada. Todos os anos, centenas de milhares de crianças indefesas são violentadas e torturadas física, emocional e sexualmente.

Cada ato de violência repercute-se no futuro; quando uma criança é magoada, todos nós podemos vir a sofrer as conseqüências. David Pelzer é um triunfante sobrevivente dos maus tratos, e a sua história é uma inspiração para todos nós. Não devemos, no entanto, esquecer as dezenas de milhares de outras crianças que não sobreviveram às provações e os milhões que ainda estão a sofrer. A única cura para os maus tratos a crianças é a prevenção; e a minha ardente esperança é que este livro ajude a construir o nosso crescente movimento de pessoas que trabalham para impedir os maus tratos a crianças, em todas as formas que estes assumem.

EU NÃO SABIA Eu não sabia como era grave; Só sabia que existia. Fiquei horrorizada com o crime Que roubava à juventude Um tempo tão "especial". Eu não sabia como doía; As feridas e mazelas não se vêem. E porque é que, nalgum momento da vida, violência dos maus tratos Se vira contra ti. Eu não sabia como te sentias, Com tão pouca auto-estima. Eu só sabia que te afastavas, E nunca os teus sentimentos mostravas. Eu não sabia o que podia fazer; Que podia de algum modo ajudar. Que apenas precisavas de um amigo; De alguém que ali estivesse a teu lado. Mas agora sei que posso ajudar; E fazer algo mudar. Fico contigo; grito com o teu grito, E os outros já não podem dizer: "Eu não sabia". Cindy M. Adams

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SOBRE O AUTOR

Membro da Força Aérea dos Estados Unidos, atualmente na reserva, Dave desempenhou um papel crucial nas operações: "Just Cause", "Desert Shield" e "Desert Storm". Enquanto servia nas Forças Armadas, Dave trabalhou em "Juvenile Hall" e outros programas envolvendo "A Juventude em Risco", através do Estado da Califórnia.

Os feitos extraordinários de Dave foram reconhecidos através de uma série de prêmios e louvores, outorgados pelos ex-Presidentes Ronald Reagan e George Bush. Em 1990, recebeu o troféu J.C. Penney Golden Rule. Em janeiro de 1993, Dave foi condecorado como um dos Dez Mais Proeminentes Jovens Americanos. Dave junta-se a um distinto grupo de discípulos que inclui John F Kennedy, Richard Nixon, Anne Bancroft, Orson Welles, Elvis Presley, Walt Disney e Nelson Rockfeller. Em novembro de 1994, Dave foi o único cidadão dos Estados Unidos a ser homenageado como uma das Jovens Personalidades Mundiais, em Kobe no Japão, pelos seus esforços na tomada de consciência e prevenção dos maus tratos a crianças e também por contribuir para a resistência de outros. Dave teve também a honra de transportar a chama Olímpica, que representa o indómito espírito humano, na passagem da Tocha Olímpica de 1996.

Dave é o autor de O Rapaz Perdido, a segunda parte da sua trilogia. Está neste momento a escrever a parte final, Um Homem Chamado Dave.

Quando não está na estrada ou com o seu filho Stephen, Dave leva uma vida calma no Rio Russo, em Guerneville, Califórnia, com a sua tartaruga chamada Chuck. Lisboa 03 de junho de 2002 Ana Filipa Graça