David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    1/384

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    2/384

    0 verão de 1914 teve o início mais glorioso de que os europeus eramcapazes de se lembrar. Nos bastidores, porém, nascia de forma inexorávela mais destrutiva das guerras que o mundo já conhecera até então — umaguerra cujas consequências continuam a influenciar o mundo do século XXI.

    A questão de como começou a Primeira Guerra Mundial vem intrigandohistoriadores há várias décadas. Muitos citam como motivo para o conflitoo assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando; outros chegaram àconclusão de que ninguém foi responsável. Mas David Fromkin — cujorelato está baseado nas mais recentes pesquisas — dá uma respostadiferente a essa pergunta. Ele deixa claro que a hecatombe que iriadilacerar o continente foi iniciada de maneira deliberada.

    Em uma narrativa fascinante que traz paralelos assustadores com os acon-tecimentos de nossa própria época, Fromkin mostra que não foi travadaapenas uma guerra, mas duas, e que a primeira serviu de pretexto para asegunda. Abordando de forma esclarecedora temas atuais como guerra

     preventiva e terrorismo, o autor descreve em detalhes as negociações etraça retratos incisivos dos diplomatas, generais e líderes protagonistas doconflito: o cáiser alemão, o tsar da Rússia, o primeiroministro britânico. E

    revela como e por que as iniciativas diplomáticas que tentaram evitáloestavam fadadas ao fracasso.

    “Alia um estilo direto e arrebatador a um impressionante domíniode fontes antigas e novas. ”

    P u b l i s h e r s W e e k l y

    “A clareza e ousadia da tese de Fromkin já são suficientes para  justificar o interesse do leitor, mas a fluidez de sua narrativacertamente conquistará para seu livro um público mais amplo. ”

    B o o k l i s t

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    3/384

    “0 céu de onde despencou a Europa

    não estava vazio; ao contrário, esta-va carregado de processos e poderes.  As forças que iriam dilacerálo  —   nacionalismo, socialismo, imperialis-

    mo e afins —

    estavam havia muitoem movimento. 0 mundo europeu já  vinha sendo assaltado por ventos de grande altitude. Havia muito navega-va em céus perigosos. 0 comandante e a equipagem o sabiam. Mas os pas-sageiros, pegos completamente de 

    surpresa, ficaram se perguntando in-sistentemente: por que não receberamnenhum aviso?” 

    Escrito pelo conceituado historiadornorteamericano David Fromkin — autordo grande sucesso  A Peace to End AU  

    Peace (Uma Paz para Pôr Fim a Toda

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    4/384

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    5/384

    Vista aérea de Sarajevo em 1914

    O arquiduque e a duquesa começam o dia em Sarajevo, 28 de junho de 1914.

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    6/384

    O cenário da primeira tentativa de assassinato

    O casal real deixa a prefeitura.

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    7/384

    A prisão deGavrilo Princip

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    8/384

    Imperador Francisco José I

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    9/384

    Presidente Woodrow Wilson e secretário de EstadoWilliam Jennings Bryan, dos Estados Unidos

    Coronel Edward House,enviado diplomático de Wilson

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    10/384

    Primeiroministro sérvio, Nicola Pasic

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    11/384

    O líder do Exército austrohúngaro, Conrad von Hõtzendorf 

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    12/384

    Conde von Berchtold, ministrodas Relações Exteriores daÁustria

    Primeiroministro britânico,Herbert Asquith

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    13/384

    Sir   Edward Grey, secretário britânico das Relações Exteriores

    David Lloyd George,ministro das Finanças

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    14/384

    Winston Churchill,

     primeiro lorde do Almirantado

    Serge Sazonov, ministro das RelaçõesExteriores da Rússia

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    15/384

    O tsar Nicolau II e o presidente francês,Raymond Poincaré

    Em Paris, o rei George Ve o presidente Poincaré

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    16/384

    Joseph Caillaux, primeiroministro da França

    A senhora Caillaux

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    17/384

    O cáiser Guilherme II e o general von Moltke inspecionando manobras

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    18/384

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    19/384

    Alfred von Tirpitz,almirante alemão

    Príncipe Karl Lichnowsky, embaixador

    alemão na GrãBretanha, saindo doMinistério das Relações Exterioresquando a guerra começou

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    20/384

    V E R A O E U R O P E UQ U E M C O M E Ç O U A G R A N D E G U E R R A D E 1 9 1 4 ?

    T  r a d u ç ã o  

     Renato Aguiar 

    O B J E T I V A

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    21/384

    Copyright @ 2004 David FromkinTradução publicada mediante acordo com Alfred A. Knopf, uma divisão da Random House, Inc. 

    Título original: Europe’s Last Summer: Who Started the Great War in 1914?

    Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA OBJETIVA LTDA. Rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22241-090 Tel.: (21) 2556-7824 - Fax: (21) 2556-3322 www.objetiva.com.br

    Todas as ilustrações reproduzidas com permissão da Illustrated London News Library exceto: “Coronel Edward House” e “Conde Graf Berchtold” (Hulton-Deutsch Collection/Corbis); “General alemão 

    Erich von Falkenhayn” (Corbis); e “Almirante alemão Alfred von Tirpitz” (Bettman/Corbis).

    Fotos de capaOn The Ladies Way - ©Hulton-Deutsch Collection/ CORBIS Hand Holding Burning Matching - ©Bettmann/ CORBIS Fotógrafo: Philip Gendreau

    Capa

    Pedro Gaia e Felipe Mello sobre design original de Evan Gaffney 

    RevisãoUmberto de Figueiredo Pinto Taís Monteiro Marilena Moraes

    Editoração Eletrônica 

    FA Editoração Eletrônica

    F931uFromkin, David

    O último verão europeu : Quem começou a grande guerra de 1914? / David Fromkin. Tradução de Renato Aguiar. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2005.

    388 p. ISBN 85-7302-654-5Tradução de: Europe's last summer: Who started the great war in 1914?

    1. Europa —História —Guerra ( 1914 ). 2. Primeira guerra mundial. I. Título

    CDD 940.4

    http://www.objetiva.com.br/http://www.objetiva.com.br/

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    22/384

     Para Alain Silvera

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    23/384

    A transição peremptória de uma paz aparentemente profunda a umaguerra geral violenta em poucas semanas em pleno verão de 1914 conti-nua a desafiar as tentativas de explicação.

    — JOHN keegan ,  A Primeira Guerra Mundial 

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    24/384

    SUMÁRIO

     Mapa  13

    PRÓLOGO(i) Do nada  15

    (ii) A importância da questão  17

    (iii) Um verão a ser lembrado  25

    PARTE UM

    AS TENSÕES EUROPÉIAS

    CAPÍTULO 1 CHOQUE DE IMPÉRIOS 31

    CAPÍTULO 2 LUTA DE CLASSES 35

    CAPÍTULO 3 DISPUTA ENTRE NAÇÕES 37

    CAPÍTULO 4 ARMAMENTO DOS PAÍSES 42

    CAPÍTULO 5 PROFECIAS DE ZARATUSTRA 54

    CAPÍTULO 6 ALINHAMENTO DIPLOMÁTICO 58

    PARTE DOIS

    ANDANDO EM CAMPOS MINADOS

    CAPÍTULO 7 A QUESTÃO ORIENTAL 65

    CAPÍTULO 8 UM DESAFIO PARA O ARQUIDUQUE 67

    CAPÍTULO 9 ALEMANHA EXPLOSIVA 70

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    25/384

    PARTE TRÊS

    À DERIVA PARA A GUERRA

    CAPÍTULO 10 MACEDÔNIA - FORA DE CONTROLE 83 

    CAPÍTULO 11 ÁUSTRIA - PRIMEIRA A DAR PARTIDA 87 CAPÍTULO 12 FRANÇA E ALEMANHA FAZEM SEU JOGO 93 

    CAPÍTULO 13 A ITÁLIA TOMA POSSEs OS BÁLCÃS TAMBÉM 100 

    CAPÍTULO 14 A MARÉ ESLÁVICA 104 

    CAPÍTULO 15 A EUROPA À BEIRA DO PRECIPÍCIO 112 

    CAPÍTULO 16 MAIS ABALOS NOS BÁLCÃS 116 

    CAPÍTULO 17 UM AMERICANO TENTA DETER O PRO CESSO 122

    PARTE QUATROASSASSINATO!

    CAPÍTULO 18 A ÚLTIMA VALSA 133 

    CAPÍTULO 19 NA TERRA DOS ASSASSINOS 138 

    CAPÍTULO 20 A CONEXÃO RUSSA 150 

    CAPÍTULO 21 OS TERRORISTAS ATACAM 153 

    CAPÍTULO 22 A EUROPA BOCEJA 158 

    CAPÍTULO 23 DESCARTE DOS CORPOS 166 

    CAPÍTULO 24 REUNINDO OS SUSPEITOS 168

    PARTE CINCOMENTINDO

    CAPÍTULO 25 ALEMANHA ASSINA CHEQUE EM BRANCO 175 

    CAPÍTULO 26 A GRANDE FRAUDE 185 

    CAPÍTULO 27 BERCHTOLD PERDE O PRAZO 191 

    CAPÍTULO 28 MANTÉM-SE O SEGREDO 193

    PARTE SEISCRISE!

    CAPÍTULO 29 O itt/TNÃO FOI  AC C O M PLI   197 

    CAPÍTULO 30 APRESENTANDO O ULTIMATO 208 

    CAPÍTULO 31 A SÉRVIA MAIS OU MENOS ACEITA 220

    PARTE SETECONTAGEM REGRESSIVA

    CAPÍTULO 32 CARTAS NA MESA EM BERLIM 227

    CAPÍTULO 33 26 DE JULHO 232

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    26/384

    CAPÍTULO 34 27 DE JULHO 238

    CAPÍTULO 35 28 DE JULHO 244

    CAPÍTULO 36 29 DE JULHO 250

    CAPÍTULO 37 30 DE JULHO 256

    CAPÍTULO 38 31 DE JULHO 262

    CAPÍTULO 39 1“ DE AGOSTO 265

    CAPÍTULO 40 2 DE AGOSTO 272

    CAPÍTULO 41 3 DE AGOSTO 277

    CAPÍTULO 42 4 DE AGOSTO 279

    CAPÍTULO 43 DESTRUINDO PROVAS

    PARTE OITOO MISTÉRIO DESVENDADO

    CAPÍTULO 44 REUNIÃO NA BIBLIOTECA 287

    CAPÍTULO 45 O QUE NÃO ACONTECEU 289

    CAPÍTULO 46 A CHAVE PARA O QUE ACONTECEU 301

    CAPÍTULO 47 QUAL O PORQUÊ? 308

    CAPÍTULO 48 QUEM PODERIA TER IMPEDIDO? 314

    CAPÍTULO 49 QUEM COMEÇOU? 318

    CAPÍTULO 50 PODERIA ACONTECER OUTRA VEZ? 324

    CAPÍTULO 51 RESUMINDO 327

    EPÍLOGO

    CAPÍTULO 52 A GUERRA DA ÁUSTRIA 331

    CAPÍTULO 53 A GUERRA DA ALEMANHA 335

    Apêndice 1: A Nota Austríaca 339Apêndice 2: A Resposta Sérvia 345

    Quem Era Quem 349

     Notas 353

    Bibliografia 365

    Agradecimentos 373

    índice Remissivo 375

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    27/384

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    28/384

    PRÓLOGO

    (i) Do nada

    Pouco depois das onze horas da noite de domingo, 29 de dezembrode 1997, o vôo 826 da United Airlines, um Boeing 747 transpor-tando 374 passageiros e 19 tripulantes, havia cumprido duas horas dasua programada viagem sobre o Pacífico, de Tóquio a Honolulu.1O aviãoalcançara a altitude de cruzeiro indicada, entre 31 e 33 mil pés. O serviçode bordo estava quase terminando. A viagem transcorria sem novidades.

     Num instante terrível, tudo mudou. O avião foi atingido, sem avi-so, por uma força invisível. Abruptamente, levantou o nariz, e depoismergulhou em queda livre. Corpos gritando voaram em todas as direções, batendo no teto e em carrinhos de serviço. Uma japonesa de 32anos morreu e 102 pessoas ficaram feridas. Recuperando o controle doJumbo, o capitão e sua tripulação conduziram o vôo 826 de volta aoaeroporto japonês de onde havia decolado horas antes.

    O que houve de tão assustador no episódio foi o seu caráterinescrutável. Até o momento do impacto, aquele fora um vôo normal. Não houve qualquer razão para esperar que algo pudesse acontecer. Nãohouve qualquer aviso: nenhum raio ou clarão no céu. O que quer que

    15

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    29/384

    PRÓ L O GO

    fosse “aquilo”, não deu para ver que ia acontecer. Os passageiros não ti-nham idéia do que os tinha atingido, e as companhias aéreas não estavamem condições de garantir que algo semelhante não aconteceria outra vez.

    Especialistas citados pelos meios de comunicação acreditavam queo vôo 826 havia sido vítima do que eles chamam de “turbulência de céuou ar claro”. Eles a associavam a um tornado horizontal, mas um torna-do que não se pode ver. Alguns dos especialistas entrevistados expressa-ram sua esperança de que em poucos anos algum tipo de tecnologia deradar fosse desenvolvido para detectar essas tempestades invisíveis antesde elas romperem. A transparência da atmosfera significa pouco, apren-

    deu o público deste episódio; o céu calmo pode irromper em furia tãorepentinamente quanto o oceano.

    Especulase que algo parecido com esse ataque de turbulência de céuclaro tenha ocorrido com a civilização européia em 1914, durante a sua passagem do século XIX para o século XX. O mundo da década de 1890tinha sido, à semelhança da nossa própria época, um tempo de congres-sos internacionais, conferências de desarmamento, globalização da eco-nomia mundial e iniciativas visando implantar algum tipo de liga denações para banir a guerra. O público esperava que um longo períodode paz e prosperidade se estendesse indefinidamente.

    Em vez disso, o mundo europeu mergulhou descontrolado, despe-daçandose e explodindo em décadas de tirania, guerra mundial e assas-sinato em massa. Que tornado terá varrido a Velha Europa civilizada e omundo que ela então dominava? Retrospectivamente, a passagem podeser menos misteriosa do que imaginaram alguns contemporâneos que aexperimentaram. Os anos de 1913e 1914 foram anos de perigos e dis-túrbios. Nas primeiras décadas do século XX, havia sinais de que a catás-trofe poderia eclodir logo adiante; nós podemos vêlos agora, os líderesmilitares e políticos podiam vêlos então.

    O céu de onde despencou a Europa não estava vazio; ao contrário,estava carregado de processos e poderes. As forças que iriam dilacerálo

     —nacionalismo, socialismo, imperialismo e afins —estavam havia muitoem movimento. O mundo europeu já vinha sendo assaltado por ventosde grande altitude. Havia muito navegava em céus perigosos. O coman-dante e a equipagem o sabiam. Mas os passageiros, pegos completamen-

    16

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    30/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    te de surpresa, ficaram se perguntando insistentemente: por que nãoreceberam nenhum aviso?

    (ii) A importância da questão

     No verão de 1914, estourou na Europa uma guerra que se espalhou pelaÁfrica, Oriente Médio, Ásia, Pacífico e Américas. Hoje, um tanto im- precisamente conhecida como Primeira Guerra Mundial, ela acabou setornando, sob muitos pontos de vista, o maior conflito que o planeta

     jamais tinha conhecido. E mereceu o nome pelo qual então foi chama-da: a Grande Guerra.Para entrar na disputa, os países do planeta alinharamse numa ou

    noutra de duas coalizões mundiais. Liderada pela GrãBretanha,* Fran-ça e Rússia, uma delas era chamada de Tríplice Entente;* a outra, lide-rada pela Alemanha e pela ÁustriaHungria, foi inicialmente conhecidacomo a Tríplice Aliança.^ Entre si, as duas coalizões mobilizaram cercade 65 milhões de soldados.2 Na Alemanha e na França, nações que apos-taram toda a sua população masculina no resultado, 80% de todos oshomens foram convocados.3 Nos choques armados decorrentes, eles fo-ram massacrados.

    Mais de 20 milhões de soldados e civis perderam a vida4 na GrandeGuerra, e outros 21 milhões foram feridos.5Milhões mais morreramvítimas das doenças liberadas pela guerra: mais de 20 milhões de pessoasmorreram só na pandemia de gripe de 19181919.6

    Entretanto, por mais esmagadores que sejam, os números não lo-gram contar toda a história ou traduzir integralmente o impacto da guerrasobre o mundo de 1914. As consequências das mudanças engendradas

     pela crise da civilização européia são demasiado numerosas para seremespecificadas, e na sua extensão e profundidade, fizeram dela o pontocrítico da história moderna. E isto seria verdadeiro mesmo que, como

    *A partir de 1801, o título oficial da GrãBretanha passou a ser “Reino Unido da GrãBretanha e Irlan-da”; ou, reduzido, Reino Unido.*Chamada de “Aliados” durante a guerra.§ Com a Itália como terceiro membro em tempos de paz. Chamadas de “Potências Centrais” durante aguerra.

    17

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    31/384

    PRÓ L O GO

    sustentam alguns, a guerra só tenha acelerado algumas das mudançasinduzidas pela crise.

    Em 8 de agosto de 1914, apenas quatro dias após a entrada da Grã

    Bretanha na guerra, o  Economist  de Londres a descreveu como “talvez amaior tragédia da história humana”.7 E é possível que isto continue a serverdade. Em 1979, o eminente diplomata e historiador americano GeorgeKennan escreveu: “ [Passei a] ver a Primeira Guerra Mundial, como creioque muita gente razoavelmente séria aprendeu a fazêlo, como a grandecatástrofe seminal deste século.”8

    Fritz Stern, um dos mais destacados estudiosos de assuntos ale-

    mães, escreve sobre “a primeira calamidade do século XX, a GrandeGuerra, da qual decorreram todas as outras calamidades”.9Os terremotos militares, políticos, económicos e sociais acarreta-

    ram um novo desenho do mapa do mundo. Impérios e dinastias foramvarridos. Novos países tomaram seus lugares. A desintegração da estru-tura política do globo prosseguiu ao longo do século XX. Hoje, a terra édivida em quatro vezes mais Estados independentes do que os existentes

    quando os europeus entraram em guerra em 1914. Muitas das novasentidades Jordânia, Iraque e Arábia Saudita são exemplos que vêm àmente são países que nunca antes existiram.

    A Grande Guerra engendrou forças terríveis que assolariam o res-tante do século. Para tirar a Rússia da guerra, a Alemanha financiou oscomunistas bolcheviques de Lenin, e introduziu o próprio Lenin naRússia em 1917 nas palavras de Winston Churchill: “assim como seria

     possível mandar um frasco contendo uma cultura de tifo ou de cólera para despejar no suprimento de água de uma grande cidade”.10 O bolchevismo foi apenas a primeira dessas íurias nascidas da guerra, se-guido anos depois pelo fascismo e pelo nazismo.

    Entretanto, a guerra também pôs em movimento os dois grandesmovimentos de libertação do século XX. Ao mesmo tempo em que sedilacerava a Europa, desfaziase a sua dominação no restante do planeta.E ao longo do século, literalmente bilhões de pessoas alcançaram a suaindependência. As mulheres, também, em algumas partes do mundo,libertaramse de alguns grilhões do passado, ao que tudo indica em con-sequência direta do seu envolvimento no esforço de guerra —empregosnas fábricas e nas forças armadas , iniciado em 1914.

    18

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    32/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    Um outro tipo de libertação, de alcance amplo e diversificado, re-sultou da Grande Guerra e vem se expandindo desde então, em termosde comportamento, vida sexual, costumes, vestuário, linguagem e nas

    artes. Nem todos acreditam que o fato de tantas regras e restrições teremficado pelo caminho seja uma coisa boa. Mas para o bem ou para o mal,o mundo percorreu um longo caminho —da era vitoriana ao século XXI por sendas que foram abertas pelos soldados de 1914.

    Ao pesquisar a origem de qualquer das grandes questões que con-frontaram o mundo durante o século XX, ou que o confrontam hoje, énotável a frequência com que retornamos à Grande Guerra. Como ob-servou George Kennan, “a mim parece que todas as linhas de investiga-ção remontam a ela”.11Depois dela, as opções se estreitaram ainda mais.Os Estados Unidos e a GrãBretanha tiveram escolha, por exemplo, deentrar ou não na Primeira Guerra Mundial e sem dúvida há desacordoaté hoje sobre o seu acerto ou não de têlo feito , mas, realisticamente,os dois países tiveram pouca ou nenhuma escolha quanto a entrar ounão na batalha da Segunda.

     Nada houve de inevitável na progressão do primeiro para o segun-do conflito. O longo pavio podia ter sido cortado em muitos pontos aolongo do caminho de 1914 a 1939, mas o fato é que ninguém o cortou.Assim, a Primeira Guerra Mundial realmente levou à Segunda, aindaque não tivesse necessariamente de fazêlo, e a Segunda, tivesse ou nãode fazêlo, levou à Guerra Fria. Em 1991, os historiadores Steven E.Miller e Sean M. LynnJones afirmaram: “A maioria dos observadoresdescreve o período atual da política internacional como a era ‘pósGuer

    ra Fria’,12 mas de muitas maneiras nosso tempo seria mais bem definidocomo a era £pósPrimeira Guerra Mundial’.”13

    Desde o começo, a explosão de 1914 pareceu desencadear uma sé-rie de reações, e a seriedade das consequências rapidamente se tornouaparente para os contemporâneos: na introdução ao seu livro A Monta-nha Mágica  (1924), Thomas Mann escreveu sobre “a Grande Guerra,em cujo começo tantas coisas começaram, que ainda mal pararam de

    começar”.E tampouco hoje deixaram inteiramente de fazêlo. Em 21 de abril

    de 2001, o  New York Times noticiava, da França, o retorno ao lar demilhares de pessoas que haviam sido temporariamente evacuadas de suas

    19

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    33/384

    PRÓ L O GO

    casas por causa da ameaça decorrente de sobras de munições da PrimeiraGuerra Mundial estocadas à proximidade. Havia cartuchos, granadas e bombas, e cápsulas de gás mostarda. Os evacuados receberam permissão

     para retornar às suas casas após a remoção de 50 toneladas das muniçõesmais perigosas. Porém, restaram centenas de toneladas de materiais le-tais e ainda restam. Assim, bombas da guerra de 1914 ainda podemexplodir em pleno século XXI.

    Em certo sentido, não há dúvida, já explodiram. Em 11 de setem- bro de 2001, os ataques suicidas muçulmanos fundamentalistas contrao World Trade Center, em Nova York, destruíram o coração de Lower

    Manhattam e ceifaram cerca de 3 mil vidas. Em sua primeira declaraçãotelevisionada após os fatos, Osama bin Laden, o chefe terrorista queevocou este horror e ameaçou com ainda mais, descreveu o atentadocomo uma vingança pelo que havia ocorrido oitenta anos antes. Fazia

     provavelmente referência à intrusão, na esteira e como consequência da Primeira Guerra Mundial, dos impérios cristãos europeus no Orien-te Médio, até então governado por muçulmanos. Os simpatizantes de

    Bin Laden sequestraram aviões a jato e os esmagaram contra as torresgémeas em consequência de uma disputa aparentemente enraizada nosconflitos de 1914.

    De forma semelhante, a escalada da crise do Iraque em 20022003levou jornalistas e personalidades do rádio e da televisão aos seus telefo-nes, à procura dos professores de história das principais universidadesamericanas, para perguntar como o Iraque surgiu como Estado das cin-

    zas da Primeira Guerra Mundial. Eis uma pergunta relevante, pois nãotivesse havido guerra em 1914, o Iraque poderia muito bem não existirem 2002.

    Tratase certamente do acontecimento mais seminal dos temposmodernos.

    Em que consistiu a Primeira Guerra Mundial? Como aconteceu? Quema começou? Por que eclodiu onde e quando eclodiu? “Milhões de mor-tos e de palavras depois, os historiadores ainda não concordaram sobre o

     porquê”, como observou a “Millennium Special Edition” do The  Economist  (l2 de janeiro de 200031 de dezembro de 1999), acrescen-tando que “nada daquilo precisava ter acontecido”. Desde o começo,

    20

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    34/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    todos diziam que a guerra de 1914 foi literalmente desencadeada porum estudante secundarista sérviobósnio, ao atirar e matar o herdeirodos tronos austríaco e húngaro. Mas praticamente todos concordam

    que o assassinato proveu não a causa, mas apenas a ocasião para que primeiro os Bálcãs, depois a Europa e em seguida o resto do planeta pegassem em armas.

    A desproporção entre o crime do estudante e a conflagração emque se consumiu o globo, começando 37 dias depois, era absurda de-mais para que os observadores acreditassem que um era a causa da outra.

     Não é possível 10 milhões de pessoas perderem suas vidas, sentiam eles,

     porque um homem e sua esposa duas pessoas sobre quem muitos ja-mais tinham ouvido falar tinham perdido as suas. Isso não parecia possível. Não podia ser verdade, todos diziam.

    Haja vista a Grande Guerra ter sido um evento tão enorme e carre-gado de consequências, e porque queremos evitar que qualquer coisasemelhante aconteça no futuro, a investigação de como ela aconteceutornouse não apenas a questão mais desafiadora mas também a maior

     pergunta da história moderna. Porém, ela continua elusiva; nas palavrasdo historiador Laurence Lafore, “a guerra foi muitas coisas”, e tambémsão muitos os significados da palavra causa.14

     Nos anos 1940 e 1950, os estudiosos tendiam a acreditar que tinhamaprendido tudo o que havia a ser aprendido sobre as origens da guerra, eque tudo o que restava era debater a interpretação das evidências. Nocomeço da década de 1960, num processo desencadeado pela pesquisado grande historiador alemão Fritz Fischer (cujas opiniões serão comen-tadas posteriormente), novas informações vieram à luz, notadamenteoriundas de fontes alemãs, austríacas e sérvias, e hoje é difícil passar umano sem que o aparecimento de novas monografias acrescente conside-ravelmente ao nosso conhecimento. Fischer inspirou os estudiosos avasculharem os arquivos em busca do que estava escondido. O conteúdodeste livro é uma tentativa de examinar as velhas questões à luz desse novo

    conhecimento, sumariar os dados e tirar algumas conclusões.Quando e onde começou a marcha na direção da guerra de 1914?

    Recentemente, numa sala de aula em Boston, pedi a estudantes uni-versitários para identificarem os primeiros passos do caminho —antes de

    21

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    35/384

    PRÓLOGO

    1908. A partir das suas respostas, o que segue pode ilustrar quantoscaminhos podemos imaginar terem levado a Sarajevo.

    O século IV d.C. A decisão de dividir o Império Romano entre Oci-dente falante do latim e Oriente falante do grego teve consequênciasduradouras. A separação cultural que bifurcou a cristandade em doisramos distintos, em dois calendários e duas escritas rivais (o latim e ocirílico) persistiu. Os austríacos católicos romanos e os sérvios ortodo-xos gregos, cujas rixas deram ocasião à guerra de 1914, estavam, nestesentido, fadados a serem inimigos.

    O século VII. Os eslavos, que estavam em vias de se tornar o maiorgrupo étnico da Europa, deslocaramse para os Bálcãs, onde os teutônicos

     já haviam chegado. O conflito entre povos eslavos e germânicos tornouseum tema recorrente da história européia, e no século XX antagonizougermânicos teutônicos e austríacos com russos eslavos e sérvios.

    O século XI. A divisão formal entre as cristandades católica romana eortodoxa grega gerou um conflito de fé religiosa em torno da mesmafratura que as de grupo étnico, alfabeto e cultural —romanos versus gre-gos —, fratura esta que ameaçava a Europa do Sudeste e acabou resultan-do no terremoto político que ocorreu em 1914.

    O século XV. A conquista do Oriente cristão e da Europa Central peloImpério Otomano (ou Turco) muçulmano privou os povos dos Bálcãsde séculos de experiência de autogoverno. É possível que isto tenha con-tribuído para a violência e o facciosismo da área nos anos que prepara-ram o caminho para a guerra de 1914 e talvez para provocála.

    O século XVI. A Reforma Protestante dividiu a cristandade ocidental.Ela separou os povos germânicos politicamente e levou ao curioso rela-cionamento entre a Alemanha e a Áustria, que está no coração da crisede julho de 1914.

    O século XVII. O começo da secular retirada otomana da Europa signi-ficou que os turcos estavam abandonando terras valiosas, cobiçadas pelas

    22

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    36/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    grandes potências cristãs. O desejo de apoderarse dessas terras alimentoua rivalidade entre a Áustria e a Rússia, desencadeando a guerra de 1914.

    18701871. A criação do Império Alemão e o fato de ter anexado terri-tórios franceses em consequência da guerra francoprussiana tornaram provável outra guerra européia, tão logo a França recuperasse forças su-ficientes para tentar retomar o que tinha perdido.

    1890. O imperador alemão demitiu seu chanceler seu primeiroministro , o príncipe Otto von Bismarck. O novo chanceler revogou a

     política de Bismarck, de aliança tanto com a Áustria como com a Rússia, para manter a paz entre elas. Em vez disso, a Alemanha se alinhou coma Áustria, contra a Rússia, na luta pelo controle dos Bálcãs, o que enco-rajou a Áustria a seguir uma política perigosamente belicosa, que semostrou propensa a provocar uma resposta final russa.

    A década de 1890. Repelida pela Alemanha e sem ver outra alternativa,a Rússia monárquica reacionária foi levada a uma aliança com a Françarepublicana. Isto convenceu os líderes alemães de que cedo ou tarde aguerra seria inevitável, e que a Alemanha teria mais chances de vencer sea empreendesse o mais cedo possível.

    A década de 1900. A tentativa alemã de rivalizar com a GrãBretanhacomo potência naval foi vista em Londres como uma ameaça vital.

    1903. Num sangrento golpe de Estado na Sérvia, oficiais do Exército pertencentes a uma sociedade secreta assassinaram o seu rei e a sua rainha próaustríacos, substituindoos por uma dinastia rival prórussa. As lide-ranças austríacas reagiram planejando punir a Sérvia —um plano que, seexecutado, ameaçava levar a um conflito perigosamente mais amplo.

    1905. A primeira crise do Marrocos foi uma questão complicada. Ela

    será descrita aqui, no Capítulo 12. Nela, a diplomacia agressiva da Ale-manha teve o efeito não intencional de unificar os outros países contraela. A GrãBretanha passou de mera amizade com a França a Entente Cordiale a algo mais próximo de uma aliança informal, incluindo con

    23

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    37/384

    PRÓLOGO

    versações entre os dois governos e consultas entre Estadosmaiores, e posteriormente acordos e conversações com a aliada da França, a Rússia.Houve um endurecimento dos alinhamentos europeus em blocos rivais

    e potencialmente inimigos: França, GrãBretanha e Rússia, de um lado,e uma Alemanha isolada apenas com um tíbio apoio da ÁustriaHungriae da Itália do outro.

    Até certo ponto, todas essas respostas estavam certas. Outras datas entre as quais 1908, que é discutida nas páginas que seguem —tambémservem como pontos de partida do estopim que levou às explosões de

    1914. Podese dizer que todas elas contribuíram de algum modo para oadvento da guerra. Não obstante, em certo sentido todas as respostas também estão

    erradas, à pergunta de por que o conflito aconteceu. Trinta e sete diasantes da Primeira Grande Guerra, o mundo europeu estava confortavel-mente em paz. Os líderes da Europa iniciavam as suas férias de verão enenhum deles esperava ser perturbado. O que deu errado?

    Todos os estopins identificados por meus estudantes tinham sidotão perigosos para a paz da Europa em 1910e 1912 quanto o foram em1914. Mas como não levaram à guerra em 1910 ou em 1912, por que ofizeram em 1914? A questão não é apenas o porquê de a guerra aconte-cer, mas o porquê de ela ter acontecido no verão europeu de 1914; não por que a guerra? mas por que aquela guerra?

    Por que as coisas aconteceram como aconteceram e não de outro modo,eis a questão que os historiadores têm se colocado desde que Heródoto eTucídides, gregos do século V a.C., começaram a fazêlo há mais de 2.500anos. Porém, resta discutível se questões como esta podem ser respondi-das com algum nível de precisão; frequentemente, tantos afluentes correm

     para o rio que é difícil dizer qual é de fato a fonte.Em sua magnitude e múltiplas dimensões, a Primeira Guerra Mun-

    dial é talvez o exemplo supremo da complexidade que desafia e confun-de os historiadores. Arthur Balfour, primeiroministro britânico de antesda guerra, político conservador de longa data, filósofo e patrocinador doEstado judeu na Palestina, é citado em algum lugar como tendo ditoque a guerra era grande demais para ser compreendida.

    24

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    38/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

     Não é à toa, portanto, que a explicação da guerra seja a maior ques-tão da história moderna; tratase de uma questão exemplar, que nosforça a reexaminar o que queremos dizer com palavras como “causa”.

    Havia causas muitas delas para as grandes potências europeias esta-rem dispostas a entrar em guerra umas com as outras. Havia outras cau-sas imediatas, nas quais este livro está interessado para elas entraremem guerra onde e como o fizeram.

    (Ui) Um verão a ser lembrado

    Para os homens ou mulheres nas ruas do mundo ocidental alguémvivendo nos primeiros e vibrantes anos do século XX , nada teria pare-cido mais remoto do que a idéia de uma guerra. Naqueles anos, os ho-mens que eventualmente sonhassem com aventuras em campos de batalhateriam imensa dificuldade para encontrar uma guerra em que pudessem

     praticar. Em 1901, e nos 13 anos seguintes, os povos da Europa Oci-

    dental e das Américas anglófonas estavam se tornando consumidoresem vez de guerreiros. Eles almejavam mais: mais progresso, mais prospe-ridade, mais paz. Na época, os Estados Unidos “navegavam num mar dealmirante” (comentou um observador inglês), mas também a GrãBretanha, a França e outros países.15 Há quase meio século não haviaguerras entre as grandes potências, e a globalização da economia mun-dial sugeria que as guerras tinham se tornado coisa do passado. A culmi-

    nação daqueles anos no verão quente, ensolarado e deslumbrante de 1914,o mais belo da memória recente, é lembrada por muitos europeus comouma espécie de Éden. Stefan Zweig falava por muitos quando escreveuque raramente tinha experimentado um verão “mais exuberante, mais

     belo e, estou tentado a dizêlo, mais estival”.16Os britânicos de classe média e alta viamse num mundo idílico

    cujas realidades económicas resguardariam as grandes potências da Eu-ropa de travarem guerra umas com as outras. Para aqueles com umarenda confortável, o mundo da sua época era mais livre do que o dehoje. Segundo o historiador A. J. P. Taylor, “até agosto de 1914, uminglês sensível e obediente à lei podia passar pela vida sem notar a exis-tência do Estado”.17 Você podia viver em qualquer lugar que quisesse,

    25

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    39/384

    PRÓ L O GO

    como quisesse. Podia ir praticamente a toda parte no mundo, sem a permissão de ninguém. Para a maior parte dos lugares, você nem pre-cisava de passaporte, e muitos viajaram. O geógrafo francês André

    Siegfried deu a volta ao mundo sem qualquer identificação além do car-tão de visitas: sequer o seu cartão profissional, apenas o pessoal.18

    Admirado, John Maynard Keynes lembra do período como umaépoca sem controles comerciais ou alfândegas.19 Você podia entrar como que quisesse na GrãBretanha ou mandar qualquer coisa para fora.Podia levar qualquer soma em dinheiro quando viajasse, ou enviar (outrazer de volta) qualquer quantia; seu banco não informava ao governo,

    como é feito hoje em dia. E se você decidisse investir qualquer quantiaem quase todos os países estrangeiros, não havia ninguém a quem deves-se pedir permissão, e tampouco era necessária autorização para retirar oinvestimento ou quaisquer lucros que possa ter dado quando quisessefazêlo.

    Muito mais do que hoje, era um tempo de fluxos livres de capital ede movimentos livres de pessoas e mercadorias. Um notável estudo em

    andamento do mundo no ano 2000 nos mostra que havia mais globa-lização antes da guerra de 1914 do que há agora: “Grande parte doúltimo quarto do século XX foi gasta apenas e tãosomente na recupera-ção do terreno perdido nos últimos 75 anos.”20

    Os contatos e a interdependência económicos e financeiros esta-vam entre as poderosas tendências que faziam parecer que a guerra entreas principais potências européias tinha se tornado impraticável e certa-mente obsoleta.

    Era fácil sentxrse seguro naquele mundo. Os americanos o sentiamtanto ou talvez mais do que os europeus. O historiador e diplomataGeorge Kennan recorda que, antes da guerra de 1914, os americanostinham tanta sensação de segurança “que suponho que nenhum povo atenha experimentado desde a época do Império Romano”.21 Eles tinham

     pouca necessidade de governo. Até 1913, quando foi ratificada umamedida específica à Constituição, concebiase que o Congresso não de-via ter sequer o poder de decretar impostos sobre a renda.

    Stefan Zweig, o autor judeuaustríaco, recordando aqueles anos do préguerra décadas mais tarde, observou: “Quando tento encontrar uma

    26

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    40/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    fórmula simples para o período no qual cresci, antes da Primeira GuerraMundial, espero traduzir sua plenitude chamandoo de Época de Ouroda Segurança.22 Tudo na nossa monarquia austríaca de quase mil anos

     parecia basearse na permanência.” No mundo ocidental, de modo geral era verdade que as pessoascomuns não sentiam qualquer apreensão. Como veremos, havia líderesque estavam preocupados, mas no inverno e na primavera de 1914, nemeles esperavam que a guerra estourasse no verão.

    A França, é verdade, teria apreciado recuperar territórios tomados pela Alemanha décadas antes, mas pessoas bem situadas para avaliar ti-

    nham certeza de que ela não ia começar uma guerra para tomálos devolta. A Rússia, como aliada da França, estava bem informada sobre o pensamento oficial francês; e o primeiroministro russo relatou ao tsar,em 13 de dezembro de 1913: “Todos os políticos franceses querem paze tranquilidade. Eles querem trabalhar com a Alemanha.” Esses senti-mentos pareciam ser correspondidos pelos alemães. John Keiger, desta-cado estudioso da política daqueles anos, argumentou: “Não há dúvidas

    de que ao final de 1913 as relações francoalemãs estavam em melhor pé do que há anos.”23 A Alemanha temia uma guerra eventual com aRússia, mas em 1913, Berlim reconheceu que a Rússia não estava emcondições de iniciar uma guerra, e que não seria capaz de fazêlo nosanos seguintes. Era manifesto que a GrãBretanha queria a paz. Assim,escreve o professor Keiger, “a primavera e o verão de 1914 foram marca-dos na Europa por um período de calma excepcional”.24 Nenhuma dasgrandes potências européias acreditava que qualquer outra estivesse emvias de lançar uma guerra de agressão pelo menos não no futuroimediato.

    Como os passageiros do vôo 826 da United Airlines, nos últimosdias gloriosos de junho de 1914 os europeus e americanos viajavam sobum céu sem nuvens, sobre um mar de verão —até serem atingidos por umraio que, erradamente, acreditaram ter vindo do nada.

    27

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    41/384

    PARTE UM

    AS TENSÕES EUROPÉIAS

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    42/384

    CAPÍTULO 1: CHOQUE DE IMPÉRIOS

    o começo do século XX, a Europa era o ponto culminante da rea-lização humana. Na indústria, na tecnologia e na ciência, ela havia

    ido além das sociedades anteriores. Em termos de riqueza, conhecimen-to e poder, excedia qualquer civilização que jamais havia existido.

    A Europa é quase o menor dos continentes: de 8 a 10 milhões dequilómetros quadrados de extensão, dependendo de como são definidas

    as fronteiras orientais. Por comparação, o maior continente, a Ásia, tem44 milhões de quilómetros quadrados. É verdade, alguns geógrafos vi-ram a Europa como uma simples península da Ásia.

    Contudo, no começo dos anos 1900, as grandes potências da Eu-ropa um mero punhado de países —tinham conseguido dominar amaior parte do planeta. Entre eles, ÁustriaHungria, França, Alemanha,GrãBretanha, Itália e Rússia dominavam a Europa, a África, a Ásia, o

    Pacífico e até mesmo partes substanciais do hemisfério ocidental. Do pouco que restava, grande parte pertencia a Estados europeus menos poderosos: Bélgica, Holanda, Portugal e Espanha. Quando todos estesimpérios eram somados, a Europa abarcava o globo.

    31

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    43/384

    CHOQUE DE IMPÉRIOS

    Porém, os impérios europeus eram de tamanho e força muito desi-guais, um desequilíbrio que conduzia à instabilidade; e como rivais, seuslíderes se estudavam constantemente, tentando adivinhar quem derro-

    taria quem em caso de guerra e, portanto, com quem era melhor se aliar.A superioridade militar era vista como um valor supremo numa épocaque acreditava erradamente que a sobrevivência do mais apto de CharlesDarwin dizia respeito ao mais mortífero, em vez de (como agora o en-tendemos) ao mais bem adaptado.

    O Império Britânico era a mais rica, a mais poderosa e a maior dasgrandes potências. Controlava mais de um quarto da superfície e um

    quarto da população do globo, e sua Marinha dominava os oceanos domundo, que ocupam mais de 70% do planeta. A Alemanha, uma confe-deração recémcriada pela Prússia militarista, comandava o mais pode-roso Exército de terra. Na Rússia, o maior país do mundo, um giganteatrasado que se estendia por dois continentes, restava um enigma; debi-litada por uma guerra que perdeu contra o Japão em 19041905 e pelarevolução de 1905, ela deu uma guinada, tratando de industrializarse e

    armarse com apoio da França. Apesar de contar com um grande impé-rio, a França já não era mais páreo para a Alemanha, e apoiou a Rússiacomo contrapeso ao poder teutônico. A monarquia dual da ÁustriaHungria governava uma variedade de nacionalidades bastante agitadas efrequentemente em conflito. A Itália, um Estado novo, na condição derecémchegada que aspirava conquistar seu lugar entre as potências, an-siava ser tratada como igual.

    Acreditavase comumente na época que o caminho para a riqueza ea grandeza das potências européias passava pela aquisição de mais coló-nias. O problema era que as grandes potências já controlavam tantas

     partes do mundo que pouco restava aos outros para tomar. Repetida-mente, as potências européias se atropelaram umas às outras ao avançar.De tempos em tempos, a guerra ameaçava estourar, e somente a hábildiplomacia e o autocontrole as tornavam capazes de recuar. As décadas

    anteriores a 1914 foram pontuadas por crises, e quase todas podiam terlevado à guerra. Nada houve de acidental no fato de as mais conspícuas dessas crises

    terem resultado de iniciativas alemãs. Ao trocar seu chanceler em 1890,o imperador alemão o cáiser, ou César também mudou sua política

    32

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    44/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    de governo. Otto von Bismarck, o líder cuja determinação férrea tinhacriado a Alemanha em 18701871, não acreditava no imperialismo.*Longe de crer que colónias ultramarinas trouxessem riqueza e poder,

    aparentemente ele acreditava que, de riqueza e poder, elas fossem antesum sumidouro. Para distrair a França de eventuais pensamentos de re-cuperar territórios que a Alemanha havia tomado na Europa na AlsáciaLorena —, Bismarck estimulou e apoiou a França a buscar novas aquisiçõesno norte da África e na Ásia. Como esta política levaria a França a fre-quentes colisões com a Inglaterra e a Rússia imperiais, dividindo destemodo os rivais potenciais da Alemanha, servia a todos os propósitos de

    Bismarck.A Alemanha pósBismarck passou a cobiçar os territórios ultrama-rinos que o Chanceler de Ferro vira como ouro de tolo. Ela se colocouem posição de tomar parte da partilha iminente da China. Mas osgovernantes de Berlim tinham entrado no jogo muito tarde. A Alema-nha já não podia mais conquistar um império numa escala proporcionalà sua posição de maior potência militar da Europa. Não havia mais con-tinentes a serem tomados: não havia mais Áfricas, não havia mais Américas. Não obstante descuidadamente , a Alemanha guilherminamanifestava interesse em terras ultramarinas.

     No começo do século XX, como a França avançasse mais profun-damente no Marrocos para ampliar seu império norteafricano, a Ale-manha, em vez de estimular e apoiar, como Bismarck teria feito, interveioem oposição. As iniciativas alemãs fracassaram, mas acenderam o esto- pim das crises internacionais mais notáveis daqueles anos: as crises doMarrocos de 19051906 e de 1911. Para o governo alemão, aquelasmanobras podem ter sido meras tentativas, mas na Europa causaramverdadeira apreensão.

    Retrospectivamente, fica claro que o problema era que a cobiçaimperial da Alemanha pós1890 não podia mais ser satisfeita, a não sertomando territórios ultramarinos dos outros países europeus. Isto nãoera algo que se pudesse alcançar por meios pacíficos. Assim, podia a

    Alemanha contentarse em continuar sendo a principal potência militar 

    * Por razões não inteiramente claras, Bismarck divergiu brevemente desta política no começo da décadade 1880, ocasião em que a Alemanha adquiriu uma pequena quantidade de colónias.

    33

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    45/384

    CHOQUE DE IMPÉRIOS

    e industrial do continente mas com impérios africanos e asiáticos meno-res do que os da Inglaterra ou da França? Os alemães discordavam, éclaro, sobre qual devia ser a resposta a esta pergunta, e o clima das opi-

    niões estava mudando. Em 1914, a Alemanha era o único país do conti-nente com mais trabalhadores industriais do que rurais, e a força crescentedas suas massas operárias e socialistas sugeria que a nação poderia serobrigada a concentrar sua atenção na solução de problemas internos, emvez de aventuras estrangeiras. Ou então, alternativamente, a sugestãoseria os líderes alemães empreenderem uma política estrangeira agressi-va, em vista de distrair a atenção dos problemas que permaneciam sem

    resolução dentro de casa.

    34

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    46/384

    CAPÍTULO 2: LUTA DE CLASSES

    A Alemanha não era tampouco a única a estar dividida contra si mes jna. Antes da guerra, a Europa era presa de revoltas sociais e econó-micas que estavam modificando suas estruturas e sua política. A Revolu-

    ção Industrial que havia começado na França e na Inglaterra do séculoXVIII continuava, num ritmo acelerado, a realizar mudanças radicaisnesses dois países, assim como na Alemanha, e promovia mudanças se-

    melhantes nos outros. A Europa agrária, em parte ainda feudal, e a Eu-ropa das chaminés, trazendo modernidade, viviam literalmente ao mesmotempo, mas figurativamente a séculos de distância uma da outra. Algunscontinuavam a viver como se estivessem no século XIV, com seus ani-mais de carga e seus lentos ritmos aldeões quase imutáveis, enquantooutros habitavam as grandes cidades abarrotadas do século XX, impul-sionadas pelas recéminventadas máquinas de combustão interna e in-

    formadas pelo telégrafo.Ao mesmo tempo, o crescimento da população urbana de operá-

    rios fabris na Revolução Industrial produziu conflitos entre esta popula-ção e os proprietários das manufaturas, sobre salários e condições de

    35

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    47/384

    LUTA DE CLASSES

    trabalho. Isto também antagonizou trabalhadores e industriais, de umlado, os quais só podiam expandir suas exportações num mundo de co-mércio livre, e os agricultores, que necessitavam de proteção, e a peque-na nobreza sem liquidez, do outro. A classe social tornarase uma linhadivisória e uma lealdade a fronteira principal, segundo muitos. Dispu-tas domésticas ameaçavam todos os países da Europa Ocidental.

     Na GrãBretanha, o Partido Trabalhista foi constituído para falarem nome de uma classe trabalhadora que já não estava mais satisfeita deser representada pelo Partido Liberal, o qual simpatizava com os assala-riados mas falava como portavoz das classes médias e mesmo de alguns

    dos bemnascidos. No continente, o trabalhismo também se transfor-mava em socialismo, com sucesso crescente nas pesquisas: nas eleiçõesalemãs de 1912, os sociais democratas surgiram como o maior partidoisolado do  Reichstag. Deve ter sido de algum consolo para os conserva-dores alemães e britânicos perceberem que os trabalhadores em seus paí-ses geralmente se expressavam pacificamente por meio do voto, em vezde greves, levantes e ataques terroristas (como os sindicalistas franceses,

    espanhóis e italianos). Naqueles tempos de crises bélicas frequentes, osgovernos se preocupavam com a possibilidade de o seu povo não apoiálos se uma guerra estourasse. Mas o problema tinha dois lados: aventu-ras estrangeiras também podiam distrair a atenção dos conflitos sociais ede classe, levando o povo a se reagrupar sob a bandeira. Qual seria aalternativa? Os choques sociais e de classes dividiriam, ou os conflitosinternacionais uniriam?

    36

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    48/384

    CAPÍTULO 3: DISPUTA ENTRE NAÇÕES

    ara o internacionalismo socialista, o rival era o nacionalismo, uma paixão que se tornava crescentemente prioritária nos corações e

    mentes dos europeus, à medida que terminava o século XIX e chegava oXX. Até mesmo os britânicos contraíram a febre. A Irlanda ou pelomenos a sua maioria católica romana agitavase violentamente em nome

    da autonomia ou independência, entrando em confronto com os pro-testantes do Ulster, que se preparavam para pegar em armas a fim dedefender a união com a GrãBretanha.

    A Inglaterra eduardiana já era um país surpreendentemente violen-to, dilacerado por questões como salário e condições de trabalho indus-triais, e também pela causa do sufrágio das mulheres. Ela era igualmentesacudida por uma crise constitucional que era também uma crise de

    classe. A crise centravase em duas questões interligadas: o orçamento eo poder da Câmara do Lordes, hereditária, de vetar a legislação aprovada pela Câmara dos Comuns, eleita popularmente. Esses dois conflitos es-tavam destruindo o sentido de solidariedade nacional.

    37

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    49/384

    DISPUTA ENTRE NAÇÕES

    O país já estava polarizado com a questão da autodeterminação daIrlanda, amplos setores do Exército e da facção UnionistaConservadora parecendo prontos a desafiar a lei e o governo em vista de manter aunião com a Irlanda. O precedente estabelecido pelos Estados Unidosem 1861 era perturbador. Haveria uma guerra civil britânica?

     Na Europa continental, as chamas do nacionalismo ameaçavam incen-diar e destruir mesmo estruturas que haviam resistido durante séculos.A Áustria dos Habsburgo, uma remanescência das Idades Médias queaté pouco antes fora dirigida pelo Santo Império Romano, restava, comoocorrera ao longo do século XIX, como o principal inimigo do naciona-lismo europeu. As duas grandes novas nações da Alemanha e da Itáliahaviam sido esculpidas em territórios antes dominados pelos Habsburgo.

     Nas universidades, cafés e esconderijos parcamente iluminados das so-ciedades secretas e terroristas, nos Bálcãs e na Europa Central dos pri-meiros anos do século XX, planos eram urdidos por grupos étnicos queaspiravam realizar algo semelhante. Os nacionalistas estavam em conta

    to uns com os outros, e com os niilistas, anarquistas, socialistas e outrosque vivessem e conspirassem na obscuridade da resistência política. Eralá que sérvios, croatas, tchecos e outros tramavam para minar e destruiro Império Austríaco.

    Os Habsburgo eram uma dinastia que, ao longo de um milénio,chegou a governar uma coleção heterogénea de territórios e povos —umimpério multinacional que nunca teve qualquer perspectiva de se tornar

    um Estado nacional homogéneo. Centrada em Viena, cidade onde sefalava alemão, a ÁustriaHungria incluía uma variedade de línguas, gru- pos étnicos e climas. Seus 50 milhões de habitantes abrangiam talvez 11nações ou partes. Muitas das suas terras tinham sido originalmente do-tes trazidos por casamentos com herdeiras territoriais: independente-mente do que se possa dizer sobre ela, a família Habsburgo casavase bem. Em seu apogeu, no século XVI, quando abrangeu a Espanha e

    grande parte do Novo Mundo, os haveres da família Habsburgo com- preendiam o maior império do mundo. Suas raízes recuam ao Natal de800, quando Carlos Magno, o Franco, foi coroado pelo papa imperadordo Império Romano do Ocidente. Como imperadores do Santo Impé-rio, posto para o qual um Habsburgo quase sempre era eleito desde o

    38

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    50/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    século XV até ele ser abolido no começo do século XIX, os Habsburgodominaram a Europa Central, inclusive as suas muitas entidades políti-cas falantes de alemão e de italiano. Na esteira das revoluções de 1848,

    eles perderam suas possessões italianas para a Itália recémunificada. Em1871, foram excluídos da Alemanha recémunificada organizada pelaPrússia. Antigo líder dos alemães e italianos da Europa, o imperadorHabsburgo era agora o estranho do ninho.

    Abandonado com um núcleo alemão dos 28 milhões de habitan-tes da Áustria, apenas 10 milhões eram alemães —e um império refratário de povos centroeuropeus e balcânicos, principalmente eslavos, o

    governante Habsburgo, Francisco José, de repente se viu presidindo umaentidade que, segundo toda aparência, não era viável A solução que en-controu em 1867 foi um pacto entre a Áustria e uma Hungria que eragovernada por sua minoria magiar, nos termos do qual ele passou a ser-vir como imperador da Áustria e como rei da Hungria. A MonarquiaDual, como foi chamada, era um Estado em que a Áustria e a Hungriatinham cada qual o seu próprio Parlamento e primeiroministro, mas

    apenas um ministro das Relações Exteriores, um da Guerra, um da Fa-zenda e, é claro, apenas um monarca, tanto do império austríaco comodo reino húngaro. Os povos governantes eram a minoria de alemães daÁustria e a minoria magiar da Hungria. O que eles tentavam governar,nas palavras de um político Habsburgo, era um complexo formado por“oito nações, dezessete países, vinte grupos parlamentares, vinte e sete

     partidos” e um espectro de povos e religiões.

    A Europa tornavase rapidamente um continente de naçÕesEstado. Ao entrar no século XX, uma das principais debilidades da ÁustriaHungria é que ela estava situada no que parecia ser o lado errado dahistória. Mas o que ameaçava derrubála era uma força que tampoucoera inteiramente progressista; o nacionalismo tinha os seus aspectosatávicos.

    Considerado como filosofia política ou como o seu contrário, um tipode delírio de massa, o nacionalismo era ambivalente. Ele era a crençademocrática de que cada nação tinha o direito de tornarse independen-te e de governar a si mesma. Mas também era a insistência nãoliberal deque os nãomembros da nação deviam assimilarse, ter direitos civis cas-

    39

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    51/384

    DISPUTA ENTRE NAÇÕES

    sados, ser expulsos, ou até mortos. O nacionalismo odiava uns comoexpressão de amor por outros. E para aumentar a obscuridade da situa-ção, não havia acordo sobre o que constituía a nacionalidade. A edição

    de 1911 da Encycbpaedia Britannica caracterizao como “termo vago” eobserva que “a ‘nacionalidade’[...] representa um sentimento comume uma reivindicação organizada, em vez de atributos distintos que pos-sam ser compreendidos numa definição estrita”. De modo que não exis-tia um acordo geral sobre que grupos eram nações e que grupos não oeram. Tratavase, isto sim, de mais uma questão para a Europa disputar.Pensavam alguns e há quem continue a fazêlo —que esta era a princi-

     pal questão que a Europa tinha para disputar.

     Na ausência de uma medição científica da opinião pública por meio de pesquisas, os historiadores não são capazes de nos dizer com qualquergrau de certeza o que a população da Europa pensava ou sentia na era

     pré1914. Isto produz uma lacuna no nosso conhecimento. Não umalacuna tão grande como seria hoje, pois há um século o público desem-

     penhava um papel pequeno na formação da política externa. Mas a opi-nião pública tinha alguma significância, no sentido de que os tomadoresde decisão a levavam provavelmente em consideração —na medida emque soubessem qual era.

    A evidência sugere que o sentimento mais disseminado na Europana época era a xenofobia: uma grande hostilidade em relação uns aosoutros. Os grupos étnicos dos Bálcãs forneciam um exemplo óbvio de

    ódio recíproco, mas países muito mais avançados também mostravamessas tendências.

    A Inglaterra é um exemplo apropriado. Esteve em guerra com aFrança intermitentemente desde o século XI em outras palavras, porcerca de mil anos. Já bem adentrado o século XX, o sentimento antifrancêscontinuava alto. Mesmo durante a Primeira Guerra Mundial, em que osdois países foram aliados, os oficiais britânicos e franceses conspiravam

    e manobravam uns contra os outros pelo controle do Oriente Médioárabe no pósguerra.

    Os britânicos só entraram em choque com a Rússia muito depoisde o terem feito com a França, mas uma vez iniciada a colisão, nãofaltou para ninguém. Os dois países se opuseram em cada ponto, econô

    40

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    52/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    mica, política, militar e ideologicamente, até os britânicos começarem ase opor aos russos não apenas pelo que eles faziam, mas pelo que eram.A história é contada num clássico: The Genesis o f Russofobia in Great  

     Britain  [A Génese da Russofobia na GrãBretanha], de John HowesGleason.A Alemanha começou a existir como Estado em 1871, e parecia ser

    um aliado possível a idéia foi discutida mais de uma vez nos mais altosescalões , mas os britânicos começaram a desconfiar da Alemanha e,depois, a antagonizála. Isto aconteceu por uma variedade de razões,exaustivamente discutidas no relato definitivo de Paul Kennedy, The 

     Rise ofthe AngloGerman Antagonism [A Ascensão do Antagonismo Angloalemão].

    Assim, ainda que acreditassem ser um povo de mente aberta, os britânicos odiavam os três povos que vinham logo depois deles na clas-sificação das grandes potências: franceses, russos e alemães.

    As questões que os políticos europeus tentavam resolver na aurora doséculo XX estavam sendo enfrentadas, portanto, num contexto em que

    os povos abrigavam sentimentos hostis e às vezes francamente belicosos.

    O surgimento e o crescimento de jornais independentes de circulação demassa no século XIX em países europeus como a Inglaterra e a Françafizeram pesar ainda uma outra poderosa influência sobre a tomada dedecisões, impossível de calcular precisamente. Fazendo apelo a medos e

     preconceitos populares para conquistar leitores, a imprensa parece ter exa-

    cerbado o ódio e as divisões entre os europeus. Sobre a imprensa britânicaantialemã e a alemã antibritânica, o imperador alemão escreveu ao rei daInglaterra em 1901: “A imprensa é terrível para ambos os lados.”1

    41

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    53/384

    CAPÍTULO 4: ARMAMENTO DOS PAÍSES

    Esperavase do nacionalismo, como pregavam Giuseppe Mazzini eseus discípulos na Europa do século XIX, que trouxesse a paz. Emvez disso, trouxe a guerra. E o mesmo aconteceu com um desenvolvi-mento muito mais profundo da época: a revolução da energia, quese tornou possível quando Michael Faraday aprendeu como gerar

    eletricidade.Energia praticamente ilimitada, eis a novidade que tornava possí-vel quase tudo mais. Henry Adams, historiador e profeta, o Jano ameri-cano que enxergava para trás e para a frente, a identificou. Maravilhadocom o que viu nas feiras mundiais de Chicago (1893) e Paris (1900), eleespeculou que ela poderia tornar toda a história humana obsoleta. Anovidade “desconcertaria os professores”, observou ele, mas “pescoços

     professorais” já haviam sido “quebrados” umas poucas vezes desde que aEuropa começou, e dessas poucas vezes, “a que mais se aproximava darevolução de 1900 era a de 310, quando Constantino instituiu a Cruz”.De fato, os raios de eletricidade eram algo que Adams achou quase so-

     brenatural: “Uma energia como a da Cruz.”1

    42

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    54/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    Era natural que Adams fosse otimista; era filho do século que acre-ditava que a história fosse a história do progresso. Antes de o século XIXcomeçar, os homens olhavam para trás, para uma época de ouro. Então,

    eles passaram a olhar para a frente, para poder vislumbrála.Europeus e americanos estavam fascinados com as especulações

    sobre o futuro. Um novo tipo de ficção alimentou suas predileções. Jú-lio Verne e H. G. Wells foram os pioneiros da criação de narrativas demaravilhas científicas e tecnológicas: de máquinas voadoras, vida sob osoceanos, viagens interplanetárias.

    O foco sobre todos esses prodígios que o futuro mantinha em esto-

    que para uma humanidade de poderes aumentados pode ter sido um pouco exagerado. Só uns poucos perceberam que o lado escuro da histó-ria, não fosse por isso prometéica, era que a raça humana estava lançan-do mão das suas extraordinárias possibilidades evocando novos eexplosivos poderes de destruição.

     Numa carta muito citada, escrita quando estourou a guerra em1914, Henry James, o famoso romancista americano residente na Ingla-

    terra, escreveu: “O mergulho da civilização neste abismo de sangue etrevas [...] é uma coisa que trai tão gravemente a longa época durante aqual supomos que o mundo, apesar dos percalços, estava gradualmentemelhorando, que ter de percebêlo agora pelo que os anos de ilusão esta-vam o tempo todo realmente construindo e significando é  trágico demais para quaisquer palavras.”2 A ciência não tinha tornado o ser humanomais pacífico e civilizado; ela traiu esta esperança e em vez disso tornou

     possível os Exércitos serem mais selvagemente destrutivos do que qual-quer soldado do passado jamais poderia ter sonhado.

    A Europa não estava progredindo na direção de um mundo me-lhor, mas sim de um gigantesco desastre, pois, na primeira guerra entresociedades industriais modernas do século XX, o poder explosivo acu-mulado desenvolvido pela ciência avançada concentravase na meta dadestruição em massa.

    Por que os contemporâneos acreditavam estar evoluindo para ummundo mais pacífico? Como puderam eliminar a hipótese de uma guer-ra entre as potências européias dos seus temores e de suas mentes? Porque foram pegos de surpresa quando a guerra estourou? Nunca busca-ram ver o que suas principais indústrias estavam fabricando?

    43

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    55/384

    ARMAMENTO DOS PAÍSES

    Ao olharmos para trás, talvez a característica mais notável da paisa-gem internacional préguerra fosse a aceleração da corrida armamentista.Tomada isoladamente, a fábrica de armamentos alemã Krupp era o maior

    negócio da Europa. Suas rivais —Skoda, Creusot, Schneider e VickersMaxim também eram gigantescas. Em grande parte, o negócio daEuropa na nova era industrial tinha se tornado prepararse para lutar.Retrospectivamente, a intensa corrida armamentista era o aspecto maisvisível da paisagem política da Europa naqueles anos antes da guerra. Écurioso que o homem das ruas não o tenha percebido com igual clarezana época.

    A economia de guerra européia tornarase proporcionalmente imen-sa, mas não dava nenhuma segurança. Uma realização tecnológica comoo desenvolvimento pelos britânicos do encouraçado  Dreadnought,  queobsolesceu todos os navios de guerra existentes, não apenas forçava ou-tros países a descartar seus esforços e investimentos anteriores, mas ex-

     punhaos ao risco de ficar expostos aos inimigos ao longo do temponecessário para equipararse.

    Todos adaptavam suas exigências de contingente —sua combina-ção de Exército regular, alistamento e reservas de um tipo ou de outro —  para pelo menos igualar os níveis dos seus adversários potenciais. A com- petitividade inflexível produziu o oposto do que era pretendido. A ex- pansão das forças armadas visava consolidar a segurança nacional, masem vez disso minoua: a corrida armamentista, impulsionada pelo medorecíproco, acabou tornando todas as grandes potências européias radi-

    calmente inseguras.Todas elas —mesmo a Rússia, depois da revolução de 1905 eramsociedades relativamente abertas, em que a dotação de fundos pelos Par-lamentos para fins militares podia ser monitorada pelos Estados rivais,cujas análises com certa frequência eram tingidas de alarmismo. Como

     programas militares aprovados por lei agregam cronogramas, os paísessabiam dos planos de produção de armamento uns dos outros e conseqúentemente buscavam lançar iniciativas para compensação.

    Uma inovação introduzida no século XIX foi que as forças armadasdos respectivos países passaram a preparar rotineiramente planos de con-tingência contra seus rivais, caso as hostilidades estourassem. Estes pla-nos eram secretos, é claro, embora os governos geralmente tivessem pelomenos uma idéia de qual seria a estratégia geral de uns e de outros.

    44

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    56/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    Não havia grandes mistérios sobre quais seriam os potenciais ini-migos. Apesar das suas diferenças ideológicas de fundo, a França e aRússia eram sabidamente aliadas, reunidas pela ameaça comum da Ale-

    manha. Esta tinha vínculos estreitos com a ÁustriaHungria e tambémera aliada dos pouco confiáveis italianos, apesar de eles ainda alimenta-rem reivindicações territoriais contra a Áustria. Ainda que preferissepermanecer neutra, a GrãBretanha estava sendo premida, pelo cresci-mento das ambições alemãs, a se aproximar da França e no interesse daFrança —da Rússia.

     As várias crises bélicas do começo do século impeliram as grandes

    potências a iniciar conversações de Estadomaior conjunto com as for-ças armadas dos seus aliados. Discussões secretas de Marinha e Exércitoentre a GrãBretanha e a França em 19051906 e 1911 examinaram asrespostas a dar a um eventual ataque da Alemanha. Em 19081909,conversações semelhantes foram iniciadas pelos chefes dos Estadosmaiores alemão e austrohúngaro, tendo como centro a possibilidade de umaguerra com a Rússia. O gabinete britânico autorizou conversações secre-

    tas entre as Marinhas da GrãBretanha e da Rússia em maio de 1914;quando Berlim soube, a Alemanha ficou aterrorizada. Essas conversa-ções conjuntas não comprometiam os governos europeus num sentidoformal, mas ao transformarem a teoria em prática, os governos da Euro-pa de algum modo deram um gigantesco passo adiante no caminho quelevou a 1914. E conforme aconteceu, elas realmente definiram a guerraiminente. Produziram um roteiro que de fato teve de ser seguido. For-

    neceram uma boa indicação de quem ficaria em que coligação: Alema-nha e Áustria fechariam questão, enquanto a GrãBretanha decidiu apoiara França e a Rússia.

    Tenha ou não a aceleração da corrida armamentista das grandespotências tornado o conflito inevitável, como afirmou o secretário bri-tânico das Relações Exteriores, Sir  Edward Grey, de algum modo asgrandes potências da Europa precipitaram o evento ao engajaremse em

     verdadeiros ensaios gerais de guerra e não de qualquer guerra, masas etapas iniciais da guerra específica que elas estavam em vias deempreender.3

    Era o medo recíproco, impulsionado pela corrida armamentista ealimentando a si mesmo, que estava fazendo a Europa chegar perto do

    45

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    57/384

    ARMAMENTO DOS PAÍSES

    limite? Ou era a agressividade congénita, reprimida durante as quatrodécadas artificialmente longas de paz entre as grandes potências, queagora ameaçava explodir? Ou eram os governos, como muitos iriam di-

    zer, que deliberadamente estavam manobrando seus países para a guerraa fim de desviar a atenção de problemas domésticos que pareciam inso-lúveis? Ou estariam alguns governos implementando políticas agressivasou perigosas a que eles próprios sabiam que outros países seriam obriga-dos a se opor pela força das armas? Qualquer tenha sido a razão, comodisse Helmuth von Moltke, chefe do Estadomaior alemão, ao chance-ler civil num memorando datado de 2 de dezembro de 1912: “Todos os

    lados estão se preparando para a Guerra Européia, que todos os paísesesperam para mais cedo ou mais tarde.”4

    Os planos de guerra foram examinados e alterados à luz da experiênciaobtida em exercícios de guerra. Eles foram atualizados conforme a mu-dança das circunstâncias e pela obtenção, por meio da espionagem dosserviços de inteligência, de novas informações sobre os planos inimigos.

    Nisto, a França foi extraordinária, pois na véspera da guerra modificouseus planos à luz de uma filosofia em voga. A nova doutrina francesa erade que o aspecto moral era a chave da vitória. Tratavase de concepçãodecorrente dos ensinamentos dos oficiais Ardant du Picq (182170)* eFerdinand Foch (18511929). A opção de enfatizar o aspecto moral em

     vez do material parecia confirmarse na filosofia de Henri Bergson (18591941), que via no élan vital- força vital a energia que propelia a evo-

    lução. Tais concepções se prestavam à glorificação do ataque às expensas,talvez, da prudência —e isto se manifestou no viés ofensivo que muitoscriticariam posteriormente no Plano XVII, o plano organizacional eestratégico adotado pela França em maio de 1913.

    De todas as estratégias examinadas previamente pelos chefes militaresdas potências européias, a que figuraria mais amiúde no pensamento

    ulterior sobre a guerra seria o esquema que tomou o nome do conde Alfred von Schlieffen, general alemão a quem foi atribuída a concepção.

    "Algumas fontes fornecem1831como sua data de nascimento.

    46

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    58/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    Schlieffen (18331913) serviu como chefe do Grande Estadomaior ale-mão de 1891 a 1906. O Estadomaior do Exército prussiano era chama-do de “Grande” desde 1871, para distinguirse dos Estadosmaiores dos

    outros Estados da confederação alemã: Bavária, Saxônia e Wurttemberg.Corpo de elite de cerca de 650 oficiais, o Grande Estadomaior funcio-nava como cérebro e centro nervoso do Exército.

    Em sua primeira guerra hipotética após a unificação em 1871, oGrande Estadomaior imaginou um conflito em que o inimigo consistianuma coalizão formada pela França, a ÁustriaHungria e a Rússia. Detodas a mais perigosa, esta possibilidade correspondia ao pesadelo da

     Alemanha de se ver cercada: o “oriente eslavo e o ocidente latino contrao centro da Europa”, nas palavras de Helmuth von Moltke —conhecidocomo Moltke, “o Velho” , então chefe do Estadomaior.5A partir de1879, nos termos do acordo de aliança firmado com a ÁustriaHungria,o planejamento alemão sempre pensou uma guerra contra a Françae a Rússia: combinação improvável no campo ideológico, pois aFrança era uma democracia avançada, e a Rússia, uma tirania atrasada.

    Reunidas contra toda a probabilidade pela ameaça alemã, em 1894 aFrança e a Rússia acabaram formando uma aliança, e os planos de guerraalemães deixaram de ser hipotéticos. Os sucessivos chefes do GrandeEstadomaior não se perguntavam se a guerra ia acontecer, mas apenasquando seria. O difícil desafio que enfrentavam —como vencer umaguerra de duas frentes decorria da inépcia dos líderes do país em polí-tica externa.

    Moltke, o Velho, e seu sucessor, o conde Alfred von Waldersee,planejaram promover uma guerra limitada contra a Rússia, que obrigas-se o tsar a buscar a paz rapidamente, enquanto guerreavam com a Fran-ça com o objetivo de negociar a paz em termos favoráveis. Tratavase deuma estratégia moderada, de espírito defensivo, visando alcançar umaposição mais vantajosa. Mas ela realmente significava dividir forças paralutar com ambos os inimigos ao mesmo tempo.

    O conde Schlieffen assumiu a chefia do Estadomaior em 7 de fe- vereiro de 1891. Foi nomeado apesar da sua falta de experiência de com-bate. Desde a morte da esposa, ele era uma figura solitária de poucasambições profissionais. Era um oficial sarcástico cujo monóculo retorci-do o fazia parecer uma caricatura de oficial prussiano.

    47

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    59/384

    ARMAMENTO DOS PAÍSES

    Schlieffen conduzia o que seria quase uma universidade para osoficiais sob seu comando. Punhaos ao trabalho anualmente, testando ereelaborando planos de desdobramento de tropas à luz do que aprendia

    nos frequentes exercícios de guerra e cavalgadas no terreno. Sob sua su-pervisão, o Estadomaior preparou 49 diferentes planos estratégicos to-tais para a guerra européia, que ele acreditava estar chegando: 16 contraa França, separadamente, 14 contra a Rússia e 19 contra as duas juntas.

    No caso de uma guerra nas duas frentes, a Alemanha tinha essen-cialmente três escolhas. Uma delas lutar contra a França e a Rússia aomesmo tempo parecia ser uma estratégia arriscada para uma Alema-

    nha cujos números eram inferiores. Lidar com a Rússia primeiro nãoparecia prático; mesmo derrotados, os russos podiam retirarse para ointerior quase sem fim do seu vasto país: não podiam ser vencidos comum ataque rápido, decisivo. Além disso, os russos estavam armando Exér-citos e construindo estradas de ferro num ritmo rápido; a cada minutotornavamse oponentes mais formidáveis. Por outro lado, desde 1905Schlieffen não tinha boa opinião sobre as capacidades dos militares russos.

    Um certo número de fatores sugeria a estratégia de combater pri-meiro a França, e para a opinião militar, a única maneira prática de a Alemanha atacar a França era através do território neutro da Bélgica. Alguns oficiais do alto comando francês percebiam isso. Na GrãBretanha, Winston Churchill estava a par; tinhao sabido por meio deum informe confidencial do Comité Britânico de Defesa Imperial, em1911. As razões tinham sido explicadas ao comité pelo generaldebriga

    da Sir  Henry Wilson, diretor de operações militares do Ministério daGuerra. Ao final do seu mandato como chefe do Estadomaior, Schlieffen

    compôs um memorando informal resumindo para seu sucessor como ainvasão da França através da Bélgica deveria ser levada a cabo. O memo-rando supunha que a Alemanha tinha noventa divisões à disposição parao hipotético ataque num momento em que apenas setenta estavam

    disponíveis. Isto quer dizer que o memorando não era de fato uma pro-posta? Que na verdade não passava de uma demonstração no papel deque a Alemanha precisava de um Exército maior do que o que o Minis-tério da Guerra estava propenso a reunir? Tratarseia de um documen-to destinado a convencer o Ministério da Guerra a mudar de idéia? O

    48

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    60/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    que quer tenha sido, serviu como roteiro, e esta é provavelmente a me-lhor maneira de encarálo.

    Os memorandos de Schlieffen de 19051906 continuam a ser ob

     jeto de intensa controvérsia. Após o final da Primeira Guerra Mundial,os generais sobreviventes da Alemanha afirmaram que a guerra haviasido perdida apenas porque colegas mortos tinham deixado de seguir aopé da letra um suposto plano secreto de Schlieffen, que teria se mostradoum verdadeiro guia para a vitória.

    Em grande parte, a sua alegação foi aceita. O plano supostamentechamava quase todo o Exército alemão a constituir um braço direito —

    um flanco direito —que avançaria sobre as costas holandesa e belga edepois cairia rapidamente, envolvendo o oeste da França, para entãoguinar e penetrar até Paris, a caminho de uma vitória decisiva a lestedaquela cidade: uma vitória sobre um Exército francês àquela altura in-teiramente cercado. A França seria destruída para sempre como grandepotência. Toda a manobra seria questão de semanas, e o Exército ale-mão seria então transferido para o leste, para lidar com a Rússia.

     Ao longo de todo o século XX, e agora no XXI, os historiadorestêm debatido as consequências do assim chamado plano Schlieffen. Seurígido cronograma teria supostamente obrigado a Alemanha a iniciar aguerra quando e como ela iniciou. O curso dos acontecimentos no verãode 1914 é frequentemente descrito como um exemplo de automação,como se o governo de Berlim estivesse preso nas garras do seu próprioplano secreto imutável. Mas hoje nós podemos ver que todos esses rela-

    tos são distorcidos.Hoje nós temos recursos críticos que não estavam disponíveis para

    as gerações passadas. Documentos de Schlieffen, levados pelos america-nos, foram descobertos em Washington, D.C., em 1953, nos ArquivosNacionais. Após a pesquisa pioneira de Gerhard Ritter nos anos 1950,lucidamente secundada em 2001 por John Keegan, tornouse claro que,o que quer possa ter acontecido, o memorando Schlieffen de 1905, com

    seu suplemento de 1906, não era um plano. Ele não entrava em detalhese não emitia ordens. Não era operacional. É possível examinálo em seucontexto por meio da leitura de uma coletânea dos escritos militares deSchlieffen, recémpublicada em tradução inglesa por Robert T. Foley.

    49

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    61/384

    ARMAMENTO DOS PAÍSES

    Outro desafio —lançado enquanto o presente livro estava sendoescrito —é a publicação de Inventing the Schlieffen Plan [Inventando oplano Schlieffen], de Terence Zuber. Baseado em material de arquivo

    que ele nos diz nunca ter sido utilizado, Zuber argumenta que mesmoos memorandos que dizemos materializarem a proposta de estratégia deSchlieffen não expressam as estratégias por ele realmente propostas, enem seus planos e idéias.

    É claro, a Alemanha realmente invadiu a França através da Bélgica,como o memorando de Schlieffen imaginou que faria. Porém, a invasão foiconforme, com mais exatidão, ao que deveria ser chamado de plano Moltke,

    pois foi durante o mandato de Moltke que o documento operacional —o verdadeiro plano de invasão da França foi promulgado.Examinando os memorandos de Schlieffen cerca de cinco anos mais

    tarde, em 1911, Moltke indicou em suas notas que concordava que aFrança devia ser invadida através da Bélgica. A decisão exerceu uma es-pécie de efeito multiplicador nas desavenças alemãs. No contexto dapolítica externa da Alemanha pós1890, criava a própria coalizão cir-

    cundante que os alemães professavam temer. E também transformava,automaticamente, a guerra alemã numa guerra européia que resultarianuma guerra mundial. Se a Alemanha atacasse a Rússia, começaria inva-dindo Bélgica, Luxemburgo e França, trazendoos assim para a guerra,igualmente, e também a GrãBretanha, e além dela a índia, Austrália,Nova Zelândia, Africa do Sul e Canadá, e outros também, possivelmen-te incluindo o aliado britânico no Pacífico, o Japão.

    Toda esta suscitação de inimigos foi assumida em função de umaestratégia que, mesmo nas palavras de um estudioso que acredita na exis-tência do esquema Schlieffen, “nunca alcançou a forma final perfeitaque às vezes lhe foi imputada”.6

    Schlieffen considerou violar a neutralidade do Luxemburgo, da Bélgicae da Holanda ao invadir a França. Moltke, em vez disso, decidiu deixar

    a Holanda em paz. Em primeiro lugar, a resistência armada holandesapoderia fazer pender a balança contra os invasores; em segundo, a desen- volverse uma guerra de atrito, a Alemanha necessitaria de uma Holandaneutra como rota de suprimento. Ambas as razões eram boas para res-peitar a neutralidade holandesa.

    50

  • 8/20/2019 David Fromkin-O último verão europeu - Quem começou a grande guerra de 1914_-Editora Objetiva (2005)

    62/384

    O ÚLTIMO VERÃO EUROPEU

    Entretanto, uma das consequências de fazer esta opção era estreitara rota de invasão através da qual as forças alemãs deveriam deslocarse.Seria um corredor de cerca de 20 quilómetros de largura, que poderia

    ser dominado pelas fortificações belgas em Liège. Assim, confiando nasurpresa total e em velocidade máxima, as forças alemãs teriam tomadoLiège antes sequer de o inimigo ficar sabendo que a guerra o alcançara.Tudo isto só seria possível em completo segredo. Consequentemente,Moltke não autorizou sequer outros líderes militares alemães a tomaremconhecimento da informação —e civis menos ainda.

    Posteriormente —no verão de 1914 —, outro ponto assumiu grande im-portância. A rapidez crescente com que a Rússia se mostrou capaz demobilizarse e o fortalecimento das suas forças armadas, significandoque, em caso de guerra, a Alemanha sozinha poderia não ser capaz derepelir um primeiro ataque da Rússia. Ela teria de chamar a ÁustriaHungria para ajudar. Este fator será chave para entender a crise de julhode 1914.

    Na federação alemã unificada que a Prússia havia organizado numa

    única potência nas guerras das décadas de 1860 e 1870, as forças arma-das desempenhavam um papel desproporcionalmente grande e —atravésdisso —também o rei da Prússia, que servia não apenas como imperadoralemão mas também como chefe militar. Como chanceler o líder civilda Alemanha —, Otto von Bismarck usava uniforme militar, buscandoassim identificarse com o serviço militar e consequentemente indicaronde ele, que havia criado o novo Estado e era o autor da sua constitui-

    ção, acreditava estar baseado o poder.Poderes quase ditatoriais estavam investidos na figura do cáiser emtermos de guerra e paz: quase, mas não totalmente. Ele tinha o poder dedeclarar guerra o