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David Sedaris, A Curva da aprendizagem (Tradução do original)
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A Curva da aprendizagem, por David Sedaris1
Um ano após a minha licenciatura na School of the Art Institute of Chicago, cometeram um erro terrível
ao oferecerem-me o lugar de professor da oficina de escrita. Nunca tinha andado numa faculdade, e
embora várias das minhas estórias tivessem sido fotocopiadas e agrafadas, nenhuma tinha sido
publicada no sentido tradicional do termo.
Tal como marcar gado e embalsamar mortos, ensinar era uma profissão que eu nunca tinha considerado
seriamente. Claro que eu não tinha qualificações, porém aceitei o emprego sem hesitar, uma vez que
me permitiria usar uma gravata e ser tratado por Sr. Sedaris. O meu pai era conhecido pelo mesmo
nome, e embora vivesse a mil milhas, eu gostava de imaginar alguém confundindo-se com os dois. “Um
momento”, alguém poderia dizer, “está a falar do Sr Sedaris, um tipo aposentado na Carolina do Norte,
ou do Sr Sedaris, o distinto professor?”
O lugar foi oferecido à última da hora, quando o professor contratado arranjou um emprego mais bem
pago a entregar pizas. Deram-me duas semanas para me preparar, tempo que gastei a procurar uma
pasta e a estar de pé diante do meu espelho grande a repetir as palavras “Olá, pessoal, eu sou o Sr
Sedaris.” Às vezes fazia a minha voz agressiva e dava-lhe um timbre firme e atlético. Este era o Sr Sedaris
masculino, que escrevia sabiamente sobre feridas abertas e torneios de tracção. Depois havia o ladrar
rouco do editor de jornal, num tom que casava sabedoria com uma infinita capacidade para crueldade.
Tentei soar como um homem de negócios e farto de tudo, mas quando, finalmente, chegou o dia, os
nervos apoderaram-se de mim e o verdadeiro Sr Sedaris revelou-se. Numa voz que reflectia dúvida,
medo e um desejo inconfundível de ser amado, soei não como um professor universitário ponderado,
mas antes como uma menina de doze anos nervosa, alguém chamada Brittany.
No primeiro semestre tinha apenas nove alunos. Esperando que me vissem como profissional e bem
preparado, levei comigo cartolinas recortadas com a forma de folhas de plátano. Eu mesmo tinha-as
feito com cartolina laranja e distribuí-as com uma caixa de alfinetes. A minha professora do quarto ano
fizera o mesmo, dizendo que era apenas um alfinete por pessoa. Sendo isto uma universidade e não
uma escola primária, encorajei os alunos a usarem os alfinetes que quisessem. Eles escreveram os seus
nomes nas folhas, prenderam-nas na algibeira da frente, e avançaram para a longa mesa de carvalho
que servia de mesa comunitária.
“Tudo bem”, disse. “Pronto, vamos ao trabalho”. Abri a minha pasta e apercebi-me de que nunca tinha
pensado para lá deste momento. As folhas laranja eram o essencial do meu plano de aula, mas eu insisti
em vasculhar a pasta vazia, consciente de que tinha estupidamente armado a minha audiência com
alfinetes. Acho que pensara que, sem provocação, os meus alunos falariam, expressando pensamentos e
opiniões acerca dos assuntos do dia. Imaginara-me sentado na ponta da mesa, observando uma floresta
de mãos erguidas. Os alunos gritariam para ser ouvidos ao mesmo tempo, eu bateria sobre qualquer
coisa para impor o silêncio. “Ei, pessoal”, diria. “Tenham calma, vai chegar a vossa vez. Um de cada vez,
um de cada vez.”
O erro do meu pensamento bocejou à minha frente. Um silêncio medonho dominou a sala, e, não
arranjando nenhuma outra opção, pedi aos alunos para pegarem nos seus cadernos e escreverem um
pequeno ensaio relacionado com o tema de desilusão profunda. Detestava sempre que um professor
nos obrigava a inventar qualquer coisa de repente. Para além da pressão óbvia, parecia que toda a gente
tinha a sua própria maneira de fazer as coisas, especialmente quando se tratava de escrever. Talvez
alguém precisasse de um tipo especial de candeeiro ou de caneta ou de máquina de escrever. Dizia a
minha experiência que era difícil escrever sem as nossas ferramentas preferidas, mas impossível
escrever sem um cigarro.
Tomei nota para trazer alguns cinzeiros e depois vasculhei no cesto de papeis à procura de algumas latas
vazias. Estando por baixo de um grande aviso de PROIBIDO FUMAR, distribuí as latas e coloquei os meus
cigarros em cima da mesa, encorajando os alunos a irem buscá-los. Isto, para mim, era a verdadeira
essência do ensino, e pensei que tinha feito uma grande coisa até que o asmático da turma levantou a
mão e disse que, tanto quanto sabia, Aristofanes nunca fumara um cigarro em toda a sua vida. “Nem a
Jane Austen”, acrescentou. “Ou as Brontés.”
Tomei nota destes nomes no meu caderno e ao lado a palavra Perturbador, e disse que iria confirmar
isso. Porque, sendo eu o professor de escrita, presumia-se automaticamente que eu lera todos os
volumes encadernados a couro que havia na Biblioteca dos Clássicos. A verdade é que eu não lera
nenhum desses livros, nem tinha intenções de o fazer. Dei a volta à maior parte dos desafios com vagas
memórias do cinema e de mini séries baseadas na obra em questão, mas isso era um exercício cansativo
e no fim descobri que era mais fácil responder simplesmente com uma pergunta, dizendo: “Sei o que
Flaubert significa para mim, mas o que pensa dela?” (“her” no original).
Como Sr Sedaris eu vivia em constante medo. Havia o medo perfeitamente compreennsível de ser
denunciado como fraude, e também o medo maior de os alunos me odiarem. Imaginei-os a telefonar
aos amigos, dizendo “Adivinha quem me calhou”. A maior parte dos professores chatos tinha pelo
menos algumas credenciais a apoiá-los. Tinham uma filosofia e um plano de aula e não precisavam de
se esconder atrás de uma gravata e de uma pasta vazia.
Sempre que sentia o perigo de perder a autoridade, atravessava a sala e abria ou fechava a porta. Os
alunos tinham que pedir licença para regular a temperatura ou o nível de ruído, mas eu podia fazer isso
sempre que quizesse. Era a única coisa que de facto me fazia lembrar que eu é que mandava, e
aproveitava-me disso.
“Lá vai ele outra vez”, sussuravam os alunos. “Que se passa com ele e com aquela porta?”
O asmático transferiu-se para outra turma, deixando-me apenas com oito alunos. Destes, quatro eram
fumadores veteranos que tiravam longas passas contemplativas e às vezes exibiam o seu
profissionalismo bufando fantasmagóricos anéis concêntricos que pairavam quais auréolass sobre as
suas cabeças curvadas. Os outros faziam o melhor que podiam, mas era fraco. No fim da segunda
sessão, os alunos não tinham produzido nada a não ser cinza. As suas tosses persistentes e total falta de
resultado sugeriam que, para certos escritores, era evidente que fumar não chegava.
Pensando que uma tarefa inteligente os soltaria, disse-lhes para escreverem uma carta às suas mães na
prisão. Seriam livres de determinar o crime e a sentença, e encorajei imenso a introdução de referências
à suas companheiras de cela.
O grupo lançou-se ao trabalho com objectivo e entusiasmo genuino, e eu senti-me orgulhoso, até que a
aluna mais quieta entregou o seu trabalho, sussurrando que o seu pai e o seu tio estavam ambos a
cumprir uma pena por alegada lavagem de dinheiro.
“Nunca imaginei que a minha mãe também se pirasse”, disse ela. “Este trabalho foi mesmo...
deprimente”.
Nunca imaginara como pudesse ser uma carta real de uma filha para uma mãe na prisão, mas agora já
tinha uma ideia muito clara. Imaginei dois condenados numa cela. Um homem de pé, no lavatório, e
outro deitado na tarimba, lendo a correspondência.
“Alguma coisa interessante?” perguntava o homem de pé.
“Oh, é da minha filha”, dizia o outro. “Ela acabou de entrar para a faculdade e parece que o professor de
escrita é um grande idiota.”
Essa foi a última vez que pedi aos alunos para escreverem na aula. Dali em diante todas as estórias
seriam escritas em casa sobre um tema à sua escolha. Se tivesse sido eu a mandar, teríamos ficado em
casa e dado a aula através de sinais de fumo. Como estavam as coisas, tinha que descobrir maneira de
passar o tempo e convencer os alunos de que estavam a ter uma educação. A turma reunia duas vezes
por semana, duas horas por dia. Preencher uma aula inteira com uma única actividade estava fora de
questão, por isso comecei a dividir cada aula numa série de pequenos períodos de discussão.
Começávamos todos os dias com o Celebrity Corner. Os alunos tinham a oportunidade de partilhar
informações interessantes dadas por amigos de New York ou de Los Angeles que insistiam em garantir o
conhecimento em primeira mão da separação iminente de uma banda rock ou de obscuros segredos
sexuais de uma estrela de cinema. Felizmente que todos pareciam ter amigos desses e nunca havia falta
de material.
Ao Celebrity Corner seguiu-se a Feedbag Forum, o meu apelo despudorado a fáceis receitas simples, de
jantar e apenas uma panela, o tipo preferido pelas avós e tias velhinhas cujo estatuto dental exigia que
toda a carne caisse do osso sem provocação. Quando me perguntaram o que o Bife cozido à Arkansas
tinha a ver com a arte de escrever, não mencionei a minha compra recente de uma panela Crock; em
vez disso, menti com quantos dentes tinha, explicando que o que era de interesse para o escritor era o
ritmo e não a receita em si.
Depois do Feedbag Forum veio a Pillow Talk, definida como “uma oportunidade para se discutir as vidas
sexuais privadas num ambiente seguro e intelectual.” Como a maioria dos meus alunos estava relutante
em partilhar as suas experiências negociou-se com o departamento de audiovisuais. Passei então a
trazer uma grande televisão a cores para podermos passar uma hora a ver One Life To Live. Isso era na
altura em que Victoria Buchanan desmaiava no seu vigésimo encontro de escola secundária e lembrei-
me de que em vez se licenciar com o resto da turma ela tinha ido à boleia para Nova Iorque, onde se
juntara a um hippie e dado à luz uma filha que não via há muito tempo. Isto parece muito longínquo,
mas tal como um assado esquecido no forno ou uma consulta de dentista adiada, o nascimento de uma
criança é um daqueles pequenos pormenores que tendem a desaparecer das mentes da maioria das
personagens de tele-novelas. É uma característica de personalidade que tem que se aceitar.
No General Hospital ou na Guiding Light uma estória semelhante poderia parecer banal ou até ridícula.
Mas isto era One Life To Live, e ninguém poderia lembrar-se de repente do nascimento de uma criança
como Erika Slezak, que fazia de Victoria Buchanan e da sua dupla personalidade, Nicole Smith. Eu
habituara-me a gravar o programa e a vê-lo todas as noites ao jantar. Agora que era professor
universitário, podia vê-lo nas aulas e acompanhar All My Children à hora do jantar. Alguns alunos
resmungaram, mas voltei a garantir-lhes que isto fazia parte do meu plano geral.
Vieram rumores da administração de que tinha havido queixas sobre a maneira como eu geria o tempo
de aulas. Isto queria dizer que eu tinha que passar a justificar os meus visionamentos diários com um
trabalho de casa. Agora os alunos tinham que passar a ver um episódio e escrever o que eu chamava de
“guessay”, uma breve previsão do que poderia acontecer no dia seguinte.
“Lembrem-se de que isto não é Port Charles ou Pine Valey,” avisei. “Isto é Llanview, Pennsylvania, e
estamos a falar dos Buchanans.”
De facto, o trabalho de casa não era nada mau. Embora o diálogo por vezes vacile, tem que se admirar
as séries dramáticas de dia pelo notável cuidado dado ao enredo. Claro que havia sempre os previsíveis
raptos e triângulos amorosos de Verão, mas um bom episódio podia surpreender-nos com algo tão
simples como a descoberta de uma cidade subterrânea. Eu tinha trabalhado com os alunos ao longo de
meia dúzia de episódios, dando-lhes informação de fundo e explicando-lhes que crianças desaparecidas
não entram pela porta dez minutos depois de uma entrega contada em flashback. O reencontro
inevitável tem de se desenrolar delicadamente e envolver pelo menos dois-terços dos actores.
Pensava que tinha transmitido devidamente a seriedade da tarefa. Pensava que, à minha maneira,
tinha-lhes de facto ensinado algo, e por isso fiquei zangado quando os trabalhos deles incluíam
previsões como “a filha há muito perdida afinal é uma vampiro” e “no dia seguinte Vicki engasga-se e
morre ao comer uma sanduiche.” O vampiro tresandava a reposições de Dark Shadows e recusei-me a
levá-lo a sério. Mas morrer engasgado com uma sanduiche, isso era um insulto. Victoria era uma
Buchanan e nunca iria dar uma saltada a uma loja de sanduiches, e muito menos morrer engasgada num
único episódio. Especialmente numa quarta-feira. Ninguém morre numa quarta-feira – esta gente não
tinha aprendido nada?
No passado eu fizera o máximo para ser compreensivo, indo ao ponto de permitir a declinação de
substantivos e o uso de palavras duvidosas como whateverishly. Isto, porém, estava a ir longe demais.
Eu tinha ensinado os Buchanans de Llanview tal qual os meus colegas tinham ensinado Dublin de Joyce e
o Mississipi de Faulkner, mas isso acabava agora. Era evidente que certas pessoas não mereciam ver
televisão a meio da tarde. Se os meus alunos quisessem ficar parados a olhar para as paredes duas horas
por dia, tudo bem, dali para a frente iríamos fazer apenas o essencial.
Não sei quem inventou o modelo para a oficina de escrita, mas quem quer que tenha sido parece ter
conseguido o equilíbrio perfeito entre sadismo e masoquismo. Aqui está um sistema desenhado para
eliminar o prazer para todos os envolvidos. A ideia é um aluno entregar uma estória, que depois é lida e
criticada a fundo por toda a gente na turma. No meu caso o processo funcionou, na medida em que as
estórias eram às vezes entregues, fotocopiadas e distribuídas de mão em mão. Eram dobradas para
dentro de carteiras e mochilas, mas aqui o sistema tendia a falhar. Chegada a fase da crítica, a maioria
dos alunos comportava-se como se o trabalho tivesse por objectivo prender as estórias numa zona
escura e fechada e testar a sua reacção à privação sensorial. Mesmo que os trabalhos fossem lidos em
voz alta na turma, as discussões eram geralmente curtas, como se a combinação de boas maneiras e
total falta de interesse impedissem a maioria dos participantes desta oficina de expressar as suas
honestas opiniões.
Com poucas e honrosas excepções, a maioria das estórias eram excertos velados da vida dos autores
enquanto ele ou ela tentava cumprir a sua tarefa. Companheiros de quarto estavam sempre a sair de
chuveiros, e as empregadas apareciam de repente do nada para trazer rodelas de cebola e burritos que
manchavam as páginas dos manuscritos. A trapalhada incomodava-me às vezes, mas eu não tinha
espaço para me queixar. Esta era uma escola de artes, e a oficina de escrita era popularmente conhecida
como a maneira mais fácil de obter os créditos obrigatórios de Inglês. Os meus alunos tinham sido
aceites porque sabiam pintar ou esculpir ou filmar admiravelmente os seus corpos até ao mínimo
pormenor, e isso não chegava? Eles contavam estórias engraçadas e cativantes acerca das suas vidas,
mas transpor esses pormenores para o papel era, para eles, um frete e não uma aspiração. Eu via a coisa
assim: se os meus alunos queriam fingir que eu era um professor, o mínimo que podia fazer era retribuir
o favor e fingir que eles eram escritores. Mesmo se alguém tivesse usado o seu nome próprio e narrado,
por exemplo, uma consulta recente num dentista, eu aceitava a estória como ficção pura, dizendo,
“Então diga-nos, Dean, como é que se lembrou desta pessoa?”
O aluno podia murmurar, apontando para o algodão em rama ensanguentado e entalado contra a sua
gengiva inchada, e eu perguntava-lhe, “Quando é que decidiu que a sua personagem tinha que tratar
deste molar em mau estado?” Este tipo de interrogatório permitia que os autores se sentissem criativos
e protegia todo aquele que tivesse opiniões políticas impopulares.
“Deixe-me esclarecer isto,” disse um aluno. “Está a dizer-me que se eu digo uma coisa em voz alta, sou
eu a dizê-la, mas se eu escrever a mesmíssima coisa no papel, é outra pessoa, certo?
“Sim”, respondi. “E chamamos a isso ficção”.
O aluno puxou do seu caderno, escreveu qualquer coisa e entregou-me a folha de papel que dizia “Esta
é a coisa mais estúpida que já vi na minha vida”.
Era um grupo esperto.
Como Sr Sedaris eu fazia questão de escrever uma avaliação com erros ortográficos de cada estória que
me entregavam. Começava geralmente com pontos positivos e acabava, uma ou duas páginas depois,
fornecendo conselhos profissionais cheios de sabedoria como “A pontuação nunca magoou ninguém”
ou “Atenção aos verbos!” Costumava perder a paciência com sequências mais longas de sonhos, mas
em geral dávamo-nos bem e os alunos ou aceitavam os meus conselhos ou ignoravam-nos
delicadamente.
Só havia problemas quando os autores usavam as suas estórias para se vingarem de uma grande ofensa
ou de uma sentida injustiça. Foi o caso de uma mulher a quem a secretaria teria rotulado de “Aluna
recorrente”, querendo dizer que a sua vida social não girava à volta da cafetaria. A mulher era uns bons
quinze anos mais velha do que eu e reprovava abertamente os meus métodos de ensino. Nunca
contribuiu para a Pillow Talk ou para o Feedbag Forum, e eu tinha razões de sobra para desconfiar de
que era ela que se tinha queixado dos episódios de One Life To Live. Com os caloiros adolescentes, eu
tinha uma hipótese, mas não havia nada que eu pudesse fazer para agradar alguém que se queixava
frequentemente de que já tinha gasto tempo demais. A turma estava dividida em dois grupos distintos
com ela, de um lado, e os outros todos do outro. Tinha tentado tudo menos algemas para as pernas,
mas nada conseguia unir as duas partes. Um problema dos diabos.
A aluna recorrente tinha saído de um divórcio litigioso, e porque a sua dor era grande insistia
erradamente que a sua escrita também era importante. Intitulada qualquer coisa como “Mereço uma
nova oportunidade”, a sua estória não foi bem recebida pela turma. Depois da pequena discussão de
grupo, entreguei-lhe a minha avaliação escrita, que ela leu silenciosamente na diagonal antes de
levantar a mão.
“Pois”, disse ela. “Se não se importa, tenho aqui uma perguntinha”. Acendeu um cigarro e quedou-se
por momentos a identificar-se com o fósforo incandescente. “Quem é você”, perguntou, “quero dizer,
quem Diabo é você para me dizer que a minha estória não tem um final?”
Era uma questão pertinente que estava para ser levantada mais cedo ou mais tarde. Eu reparara que a
estória dela tinha acabado a meio de uma frase, mas àparte disso, quem era eu para criticar alguém,
especialmente no que toca a escrita? Eu tinha pensado em dedicar algum tempo para analisar essa
questão, mas tinha havido camisas para passar a ferro e etiquetas com nomes para fazer e, entre uma
coisa e outra, esqueci-me.
A mulher repetiu a pergunta, emocionada. “Quem Diabo você pensa... que é?”
“Posso responder-lhe amanhã?” perguntei.
“Não”, berrou ela. “Quero saber já. Quem é que você pensa que é?”
Pelas suas expressões podia ver que a outra parte da turma estava a fazer a mesma pergunta. A dúvida
espalhava-se pela sala como os germes frios num close-up de um espirro em câmara lenta. Imaginei-me
a arder numa pira de sequências oníricas, e depois veio a resposta.
“Quem sou eu?” perguntei. “Sou o único que é pago para estar nesta sala”. Não era nada de que eu me
pudesse orgulhar, mas depois da resposta sair da minha boca, abracei-a como filosofia de ensino
perfeitamente aceitável. As minhas anteriores dúvidas e medos evaporaram-se uma vez que agora sabia
que podia desculpar tudo. O novo Sr Sedaris nunca mais aceitaria a derrota ou pediria desculpa. Daqui
para a frente, mandaria os meus alunos abrir e fechar a porta e faria com que isso me fizesse lembrar
que quem mandava era eu. Poderíamos fazer tudo o que eu quizesse porque eu era um profissional
qualificado – era isso que dizia o meu cheque. A minha voz ficou mais grave quando endireitei a gravata.
“Então muito bem”, disse. “Mais alguém tem uma pergunta estúpida para o Sr. Sedaris?”
A aluna recorrente voltou a levantar a mão. “É uma pergunta pessoal, eu sei, mas exactamente quanto é
que a escola lhe está a pagar para estar nesta sala?”
Respondi honestamente, e então, pela primeira vez desde o princípio do ano lectico, os alunos reagiram
em bloco. Não me lembro que lado começou, só me lembro de que a gargalhada foi tão forte, tão
violenta e prolongada que o Sr Sedaris teve de correr e fechar a porta para os professores a sério
poderem continuar o seu trabalho em paz.
1 Tradução do original The Learning Curve, de David Sedaris (Me Talk Pretty One Day. London: Abacus, 2002, 83-96), por Octávio Lima, com base nas sugestões de alunos das turmas 9, 10 e 12 do 12º ano dos Cursos Profissionais de Comunicação, Informática e Turismo da Escola Secundária Dr Manuel Gomes de Almeida (Espinho), e revisão de Ana Gonçalves. Março 2010.