De Afinidades a Coalizões - Uma Reflexão Sobre a Transpolinização Entre Gênero e Parentesco Em Décadas Recentes Da Antropologia, 2004

Embed Size (px)

Citation preview

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre atranspolinizao entre gnero e parentesco emdcadas recentes da antropologia

    Claudia FonsecaPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    e-mail:Recebido em:

  • ResumoDurante as dcadas de 70 e 80, houve, no campo daAntropologia, um surgimento de estudos de gnero justamentena poca em que os estudos de famlia e parentesco definhavam.O quase desaparecimento do tema parentesco foi devido, emparte, ao questionamento poltico e epistemolgico das anlisesclssicas um questionamento elaborado por, entre outros,pesquisadores feministas. De forma semelhante, a partir daltima dcada, uma nova e dinmica onda de pesquisas sobreparentesco (agora, redefinido como uma forma de conexo degrande peso emocional e simblico) fruto, em grande medida,do investimento de antroplogos influenciados pela teoriafeminista. Historiando esse debate, particularmente nastradies britnica e norte-americana, proponho, neste artigo,olhar para o vaivm entre os dois campos de pesquisa gneroe parentesco para pr em relevo a extrema criatividade deatuais pesquisas que desafiam as fronteiras temticas edisciplinares.

    Palavras-chave Teoria feminista, parentesco, relaes de gnero.

    AbstractDuring the 70s and 80s, studies on gender relations flourishedat the same time that interest in kinship waned. The neardisappearance of kinship from anthropological forums wasbasically due to a profound political and epistemologicalquestioning of classical analyses a questioning inspired, amongothers, by feminist scholars. In like manner, in the past decade,a new and dynamic wave of research on kinship (redefined nowas a particular form of emotionally and symbolically intenseconnection) is to a large extent fruit of the investment byanthropologists influenced by feminist theory. Tracing theevolution of this debate, particularly in the British and NorthAmerican traditions, I propose, in this paper, to consider theinteraction between these two fields of research gender andkinship highlighting the extreme creativity of present-daytrends that defy traditional thematic and disciplinary limits.

    keywordsFeminist theory, kinship, gender relations.

  • iLHA - Flor ianpo l i s , v .5 , n .2 , j ane i r o d e 2004, p . 05-31

    Quando fui convidada a falar sobre a influncia dos estudos feministas no campo de parentesco, aceitei com prazer. Havia acabado de examinar algumas coletneaspublicadas nos ltimos trs anos sobre a antropologia do parentesco,e estava encantada com as discusses que surgiam nesse campo.Pensei originalmente em falar sobre todas as novas idias pipocandonessa linha sobre, por exemplo: a importao de esperma gentlicopara inseminao artificial de mulheres judias ortodoxas em Israel(Kahn 2000); a mistura de fluidos corporais na transfuso de sangueentre brancos e negros no Sul dos Estados Unidos (Weston 2001); arelao de parentesco criada pela circulao de armas entre os Nuer(Hutchinson 2000); as relaes familiares criadas pela organizaode trabalho em indstrias caseiras da Turquia (White 2000); orastreamento gentico usado na Finlndia para determinar quaiscandidatos a imigrao merecem vir morar com parentes(Hautaniemi 2000); o reexame de Lvy-Strauss em que descobrimoscomo metforas da bolsa de valores subscrevem princpios cannicos

    Entretanto, mal tinha comeado a me assustar com essaaventura herclea quando reavaliei a situao e cheguei (at comcerto alvio) concluso de que a tarefa que me cabia no era falarde tudo o que se produz sobre parentesco hoje era, antes, falarsobre apenas uma dimenso desse campo: aquela que reflete ainfluncia da teoria feminista. Esse recorte coloca desafios de umaordem diferente. Para analisar quais as influncias feministas, devodefinir quem so as antroplogas1 que podem ser classificadas comofeministas. Como fazer isso? Vamos depender da auto-classificao?ou de outro indicador mais objetivo a pertena Association for

    De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizaoentre gnero e parentesco em dcadas recentes da antropologia *

    Claudia Fonseca

  • 8 Claudia Fonseca

    i L H A

    Feminist Anthropology, por exemplo? Tudo o que essas nativasproduzem cairia na categoria feminista? ou s aquele materialvoltado especificamente para temas feministas? Existe um grupofeminista que, tal como um povo tribal, vive isolado, com culturaprpria? Haver uma resposta clara a essas perguntas? No temosque reconhecer que as pesquisadoras (que tenderamos a chamarde) feministas fazem parte de um panorama intelectual mais amplo,e que muitas delas se envolvem em debates aparentemente afastadosda temtica feminista?

    Recortar o campo atual de estudos de parentesco outroproblema. Na Antropologia Brasileira, por exemplo, temos ricasdiscusses sobre noes de parentesco na etnologia indgena (verViveiros de Castro 1995) mas a influncia feminista nessa linhade anlise no explcita. Por outro lado, na literatura anglo-saxnica, encontrei uma srie de coletneas publicadas desde o ano2000, todas sobre kinship, e todas atribuindo a popularidaderenovada do tema, depois de vinte anos de declnio, antropologiafeminista. No importa quantas variantes da histria se, para afase queda de inocncia, reconhecem ou no a influncia deoutros pesquisadores alm de David Schneider (Sahlins, Gellner,Needham, etc...), ou se, para os anos de suposto silncio, mencionamou no a expanso de novas reas (corpo, pessoa, gnero,sexualidade...) existe um consenso quanto importncia dapesquisa feminista para a recente reabilitao do tema do parentesco.

    Schneider, cone desse campo, ratifica o consenso quando,em 1995, declara:

    at recentemente, o parentesco tinha deixado de ser um temade grande popularidade na antropologia. Trabalhos sobreparentesco diminuram radicalmente em nmero. [...] Agora[o tema] ressurgiu tal como uma Fnix das cinzas. [Isso] devido a pessoas como Marilyn Strathern... e o novo trabalhoem estudos gay e lsbicos (de Kath Weston e Ellen Lewin,por exemplo) e ao trabalho feminista de pessoas como SylviaYanagisako (Schneider, apud Lamphere 2001: 21).

    importante ressaltar que esse parentesco ressuscitadotem pouco em comum com a verso clssica do conceito. Comolembram Franklin e McKinnon (2001: 6), no se trata de uma BelaAdormecida disciplinar, resgatada intacta pelo beijo de um prncipe.

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 9

    i L H A

    Durante os ltimos vinte e tantos anos, parentesco sofreutransformaes to radicais que se tornou quase irreconhecvel.Depois que Schneider publicou A critique of the study of kinship (1984),em que denuncia o etnocentrismo dos prprios modelos de anliseantropolgica, nenhum analista podia voltar ao uso dos velhosmodelos sem um certo arrepio. No entanto, as respostas a esse mal-estar foram vrias. A proposta que traz Janet Carsten (2000), emCultures of Relatedness (resultado de uma conferncia realizada em1996 na universidade de Edimburgo sobre fronteiras eidentidades), uma das mais citadas atualmente. Para afastar adiscusso da oposio analtica preestabelecida entre o biolgico eo social em que boa parte dos estudos antropolgicos se atolaram,essa autora sugere uma mudana de vocabulrio: prope empregaro termo conexo (relatedness) em oposio ou ao lado deparentesco para assinalar uma abertura para idiomas indgenasde conexo (2000: 4).2 Os demais colaboradores de seu livro trazemexemplos etnogrficos de situaes contemporneas na China, noAlasca, em Moambique e na Inglaterra para entender quais ossmbolos alm do sangue, do smen e do leite materno queremetem a substncia compartilhada (shared substance) e quecriam o tipo de relao profunda e duradoura normalmenteassociada esfera de parentes.

    A mais recente das coletneas, Relative Values (McKinnon eFranklin 2001), sendo tambm a mais assumidamente feminista,ser discutida mais adiante. Por enquanto, basta dizer que, tal comoCarsten (que um dos colaboradores da coletnea), o volumecontesta vises naturalizantes de parentesco. Prope, no lugar disso,sublinhar a incerteza que circunda definies sobre relaes deparentesco (kinship relatedness) e explorar a proliferao de cdigossubstanciais (substantial codings) que informam noescontemporneas de conexo.

    Peter Schweitzer (2000), no workshop que organizou em1996 durante a reunio anual da EASA (European Association ofSocial Anthropology), e Linda Stone (2000), com o grupo que reuniuem 1997 durante a reunio da AAA (American AnthropologicalAssociation), tambm se propem a colaborar na retomada crticada noo de parentesco porm, de um ngulo diferente daqueledas autoras feministas. Concordam com estas em certos pontos: acrtica ao paradigma clssico (genealgico) de parentesco e aampliao do enfoque analtico na direo de construes culturais

  • 10 Claudia Fonseca

    i L H A

    de conexo. Contudo, cada um ao seu modo (Schweitzer, de umaperspectiva instrumentalista que privilegia os usos do parentesco,e Stone, com seu projeto ambicioso de incluir arqueologia,primatologia e antropologia evolucionria na discusso), reafirmamos fundamentos inescapveis de biologia e procriao. Stone,traando uma clara distino entre as suas opinies e aquelas depesquisadoras feministas, afirma que as mulheres universalmenteparem filhos, homens e mulheres desempenham papeis diferentesna reproduo, e nesse fato da vida, possvel realizar comparaestransculturais de gnero e parentesco (2000: 8).

    Em suma: nem todos esses volumes recentes sobre parentescose declaram de inspirao feminista. Mas todos, sem exceo,rendem homenagem influncia estimulante que a antropologiafeminista teve na evoluo do campo (veja tambm Peletz 1995 eCollard 2000). At Linda Stone, que declara ter ntidas divergnciasem relao ao que chama a escola antiparentesco da teoriafeminista, concede que no h dvida de que o renascimento doparentesco se deve, em grande medida, antropologia feminista(2001: 9). Portanto, para definir o meu universo de pesquisa,considero aquele parentesco representado nessa linha anglo-saxnica de estudos e, partindo das quatro coletneas, trabalho defrente para trs, procurando entender quais feministas esto sendocreditadas pela chamada renovao do campo.

    Meu recorteAo passar por esse exerccio, examinando as camadas

    sucessivas de ancestrais feministas, fiquei fascinada peloexclusivismo da linhagem que tinha escolhido como objeto deanlise... quero dizer, pela quantidade de feministas interessantesque no so citadas. Em primeiro lugar, a linhagem traada aqui,medida pelas referncias bibliogrficas, praticamente toda anglo-sax. A grande especialista francesa de parentesco, FranoiseHritier, citada de forma pontual em apenas dois dos 53 captuloscontemplados aqui. At certo ponto, tal excluso compreensvelpois o parentesco de que fala Hritier, inspirado no estruturalismode Lvy-strauss, certamente no o parentesco dos feministas anglo-saxes3. Entretanto, at a pioneira antroploga feminista francesa,Nicole Mathieu4 , foi mencionada em apenas uma dessas quatrocoletneas. Entre os contribuintes das quatro coletneas, constaapenas uma francesa Martine Segalen, co-organizadora do

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 11

    i L H A

    Grfico 1 (?)

  • 12 Claudia Fonseca

    i L H A

    inesquecvel volume Familles en Europe (Segalen e Zonabend 1995) que, de forma significativa, conhecida na Frana como sociloga(e no antroploga).

    Existe tambm, na literatura que consultei, um ntido recortedisciplinar. Sabemos que historiadores (e, em particularhistoriadoras feministas tais como Michle Perrot, Joan Scott eNathalie Davis) deram uma enorme contribuio para a reflexosobre famlia e parentesco e justamente durante as dcadas desetenta e oitenta, quando o parentesco tinha cado de moda naAntropologia. Embora haja menes freqentes do trabalho histricode Jack Goody nas coletneas que examinei, curiosamente noaparece nada das historiadoras feministas. E encontrei apenas umacitao da obra de Maynes et al., Gender, kinship, power: aninterdisciplinary and comparative history, de 1996, que, no obstanteo ttulo, contm artigos interessantssimos de antroplogos (inclusivebrasileiros5).

    Tampouco aparecem em destaque feministas que do ladoda crtica literria irromperam recentemente na teoria feminista. verdade que, em Relative Values, Sarah Franklin discute GenderTrouble de Judith Butler6 ao longo de trs pginas. Porm, faz issobasicamente para sugerir que a obra de Butler diz em outras palavras(e com nfase em elementos diversos) o que as antroplogasfeministas como Collier e Yanagisako, MacCormack e Strathern,ou Kath Weston, dizem h muito tempo (2001: 309-312).Manifestamente, essas antroplogas feministas, apesar de reiteradasexortaes (inspiradas em Schneider) quanto necessidade dederrubar as fronteiras entre os quatro domnios clssicos (parentesco,religio, economia e poltica), continuam a procurar as suas balizastericas exclusivamente entre colegas da disciplina.

    Cabe destacar uma ltima autora que, apesar de no terproeminncia nos atuais volumes sobre parentesco, teve uma presenaconstante nos ltimos trinta anos de antropologia feminista norte-americana: Rayna Rapp. De ideologias americanas sobre famlia e classea ideologias biomdicas sobre anomalias hereditrias, essa pesquisadorademonstra no somente um engajamento duradouro na causa feminista,como tambm uma tremenda capacidade de crescer e mudar com o tempo.Oriunda do Programa de Womens Studies na Universidade do Michigan(vide Rapp 1975), ela ressalta a grande influncia de Gayle Rubin, assimcomo do Grupo Marxista-feminista II no incio da carreira dela. Mudou-se desde cedo para Nova Iorque, onde, na New School for Social Research,

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 13

    i L H A

    formou uma escola prpria. Na introduo de uma coletnea recente queorganizou junto com Faye Ginsburg (Conceiving the new world order: theglobal politics of reproduction), Reiter explicita a sua rejeio das histriasnaturais da mulher e da famlia, advogando uma anlise centrada empolticas globais da reproduo (Ginsburg e Rapp 1995)7 . Rene umgrupo heterogneo de feministas que inclui alm de antroplogas cientistas polticos, historiadoras, socilogas; une pesquisadoras americanase britnicas a outras oriundas de pases perifricos (Noruega, ndia,Nigria, Brasil8...). Certamente, a sua escola tem muitos pontos emcomum com aquela das antroplogas feministas especializadas emparentesco. No entanto, ela no sistematicamente includa, hoje, entreas referncias dos livros sobre parentesco. E, ainda mais, as autoras includasem Conceiving the New World Order, com exceo de Strathern e Franklin,no tomam David Schneider como interlocutor relevante. Afinal, aodiscutirem no espao de um artigo problemas como aborto na Romniade Ceaucescu, mortalidade materna no Egito, polticas de contracepono Brasil ou estupro na ndia, talvez as colaboradores desse volume noconsiderem debates tericos sobre o conceito de parentesco de interesseprioritrio.

    Ao levar em considerao as suas limitaes, o nosso objetode anlise (uma determinada escola anglo-saxnica de estudos deparentesco) acaba ficando to dilapidado que podemos perguntarqual o seu interesse. Alm do mais, na Antropologia brasileira,acostumamo-nos a incluir nas nossas anlises um leque bem maisamplo de pensadores. O NIGS em Santa Catarina, sob a direo deMiriam Grossi, tem uma abertura privilegiada no somente para aantropologia francesa de F. Hritier, mas tambm para ashistoriadoras feministas tais como Scott e Perrot (ver, por exemplo,Pedro e Grossi 1998). Por outro lado, o Centro Pagu/UNICAMP(sob a coordenao de Adriana Piscitelli), alm de ter trazidoMarilyn Strathern pessoalmente para um contato com antroplogosbrasileiros, mantm uma rica interlocuo com autoras que mesclampsicanlise e crtica literria Butler, Lauretis... (ver Almeida et al.2003).9 Entretanto, creio que, entre as vrias afinidades e coalizesque existem no campo da teoria feminista, a minha nfase nesseartigo recai sobre uma rea que tem recebido relativamente poucaateno na antropologia brasileira e, nesse sentido, traz certacontribuio ao debate.

    Mesmo depois de tanto podar o meu objeto, meuempreendimento ainda parece pretensioso. Como ouso resumir

  • 14 Claudia Fonseca

    i L H A

    trinta anos da histria da antropologia em alguns pargrafos? No s o pouco espao que me atrapalha aqui. No domino todos oselementos do campo clssico de parentesco aqueles que constituemas linhas mestras das coletneas clssicas sobre parentesco (ver,entre outros, Goody 1973) e que, em grande medida, constituramos temas principais da primeira grande conferncia de Wenner-Gren sobre feminismo e parentesco em 1982. Confesso que venhopara esse campo do lado de fora isto , acompanho a migraode uma gerao mais recente de pesquisadores que comeou coma mulher, reivindicou a politizao do espao domstico e dotempo cotidiano (stios por excelncia de fenmenos classificadoscomo familiares) e, por ltimo, abraou o descontrutivismo quepraticamente acabou com os tradicionais temas de mulher, famliae parentesco. O meu consolo o de que essa perspectiva a quedomina as quatro recentes coletneas que analisei. Certo: os clssicosainda so citados, em geral na introduo do livro ou em artigosexplicitamente voltados para o resgate desses estudos. Contudo,entre os estudos etnogrficos recentes, at aqueles sobre sociedadesditas tribais, os problemas tericos que tanto preocuparamantroplogos de Rivers e Radcliffe-Brown a Leach e Lvy-Straussno parecem de grande relevncia. Parentesco, na linha de anliseressaltada aqui, se inscreve firmemente no mundo contemporneo onde a sede de discutir grupos de descendncia e casamentospreferenciais cedeu definitivamente o lugar a outras questes.

    Antes da queda surpreendente como se encontra, em quase todos os livros

    saindo atualmente sobre a antropologia da famlia e do parentesco,uma mesma narrativa sobre essa rea de estudos. Comea-se com acentralidade histrica do parentesco para a disciplina como umtodo. Cita-se Fox, que em 1966 ainda ousava dizer: O parentesco para a Antropologia o que a lgica para a Filosofia ou o nu paraa Arte: a disciplina bsica de uma rea de estudos (1986: 11).Mas como reza o ditado: quanto maior o salto, maior o tombo. Nasduas dcadas subseqentes, praticamente todas as bases dessa molamestra da Antropologia iram ruir.

    Em 2000, Carsten, escreve no prefcio Cultures of Relatednessque faz quase trinta anos que no sai uma obra coletiva de pesosobre parentesco. Toma como ltima grande manifestao desse

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 15

    i L H A

    campo a obra organizada em 1973 por Jack Goody, Character ofKinship. Examinemos esse livro escrito no perodo logo antes daqueda mais de perto. O livro reflete claramente o prestgio deque o parentesco ainda gozava na poca. Entre os autores quecontriburam com artigos, constam os grandes nomes da disciplina:alm de Goody, Edmund Leach, Fredrik Barth, Maurice Bloch,Stanley Tambiah, J.A Barnes, Julian Pitt-Rivers, Raymond Smith eAndrew Strathern... a maioria deles britnicos, trabalhando natradio de Meyers Fortes. Entre esses gigantes, h apenas duasmulheres uma delas, escrevendo sobre um tema apropriadamentefeminino: Frias, bruxas e mes (Furies, Witches and Mothers)(Harris 1973). Infelizmente, no ficamos a saber muita coisa sobreessas mulheres, nem mesmo sobre os outros colaboradores, porquea coletnea segue o estilo de uma cincia neutra, descartando anecessidade de qualquer informao biogrfica sobre os autores. Ailustrao da capa, uma escultura de Henry Moore que mostra umhomem, uma mulher e duas crianas em atitudes de convviofamiliar, completa o tom de peso e universalidade impessoal doprojeto editorial. As figuras abstratas, esculpidas em pedra, notm cor, nem roupa, nem rosto. No entanto, pelos tamanhos eatitudes corporais, o observador identifica no somente osintegrantes, mas tambm o tom afetivo e moral da famlia nuclearanglo-sax. A justaposio do ttulo e da imagem produz a sensao(sem dvida intencional) de que esse ncleo a clula matriz dasociedade.

    As duas primeiras coletneas sobre Antropologia e a mulhertambm foram concebidas no incio da dcada de 70: Women, Cultureand Society (1974) e Toward an Anthropology of Women (1975). Parafins comparativos, gostaria de centrar essa parte de minha anliseno segundo volume, organizado por Rayna Reiter, que assume umapostura combativa desde a primeira frase da introduo (Esse livrotem suas razes no movimento de mulheres), e que inclui nabibliografia as grandes obras feministas da mesma dcada: aquelas,por exemplo, de Juliett Mitchell e Shulamith Firestone. O teorassumidamente poltico no a nica diferena entre esse volume eo livro de Goody. Enquanto doze dos catorze artigos no clssicoorganizado por Goody so escritos por autores homens, o livro deReiter inclui exclusivamente mulheres, boa parte delas jovenspesquisadoras doutorandas ou recm-doutoras10 (fatodevidamente informado nos resumos biogrficos inseridos nas

  • 16 Claudia Fonseca

    i L H A

    primeiras pginas da obra). Com a exceo de uma arquiteta, todasso antroplogas, a maioria de Michigan ou da regio nova-iorquina, refletindo a trajetria da organizadora. Na pequena(provavelmente auto-)descrio de cada autora, constam detalhesinteressantes. A doutoranda Slocum, por exemplo, acha relevantemencionar que trabalhou como danarina de strip-tease. Muitasdas autoras frisam que tm longa experincia no ativismo feminista(Rubin, por exemplo, declara que j sobreviveu a muitas geraesde poltica feminista). E, em coerncia com o desejo de resgatar,ou tornar visvel, a figura feminina nos estudos etnogrficos, todascitam experincia em pesquisa sobre algum grupo de mulheres.Mulheres aborgines, mulheres iroquesas, francesas, nigerianas ouchinesas a mulher enquanto objeto emprico, em toda a suadiversidade, devidamente retratada nas mini-fotos da capa.

    O qu estou tentando demonstrar com essa comparao?Certamente no estou sugerindo que Goody, de alguma forma,falhou ou agiu de forma politicamente repreensvel, por no terproduzido uma coletnea no estilo daquela de Reiter. Os doisvolumes tm propostas absolutamente diversas... to diversas quese pode at perguntar para que serve a comparao. Mas a diferenaradical entre os dois volumes serve justamente para reforar a nossaadmirao diante da convergncia que houve depois. Se olhamos,por exemplo, para o estilo e o tom de Relative Values, consequnciade uma conferncia Wenner-Gren (Novas direes no estudo deparentesco), realizada em 1998, vemos um volume de grande peso de certa forma, a nova bblia de estudos de parentesco absolutamente invadido por pesquisadoras feministas. No entanto,o volume no simplesmente uma reedio das preocupaesfeministas da dcada de 70. O desenho da capa, pardia da nooconvencional de famlia, sugere o quanto o campo caminhou desdeToward an Anthropology of Women. Trata-se de um bizarro retratode famlia pelo artista mexicano Julio Galn, revelando o que pareceser um casal de gato (me) e cachorro (pai), atrs da figura de ummenino humano. As trs figuras esto de p, seus corposimobilizados por causa dos panos que, em estilo de mmia egpcia,os encasulam. As suas diferentes personalidades aparecem apenasnas cabeas, essas sim, preservadas e com olhar penetrante.

    Nesse volume, exploram-se de forma crtica, e em etnografiasdetalhadas, os diferentes idiomas de conexo (relatedness): comofica a relao consangneo quando se trata da transfuso de

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 17

    i L H A

    sangue entre branco e negro no Sul dos Estados Unidos? O queacontece com a linguagem de pertena familiar (fulano parece-secom o seu pai) em casos de adoo internacional quando paisbrancos tm filhos africanos e asiticos, de aparncia completamentediferente da sua? Qual a ordem genealgica (supostamenteinexorvel) de geraes quando uma mulher resolve doar os seusvulos para a prpria me esta, determinada a ter mais um filhocom o seu novo companheiro? Qual o grau de parentesco entrediferentes portadores de doenas genticas estes parecendo emcertos aspectos ter mais biologia em comum entre eles do quecom seus pais? O que significa um retrato de famlia divulgadomundialmente que mostra a filha milagre da mais velha me daHolanda, carregada nos ombros do ginecologista italiano querealizou essa faanha tecnolgica? Artigos que colocam essasperguntas se intercalam com outros sobre linhagens de cientistas,sobre genealogias e vida artificial que emergem do hiper-texto, sobrecomunas chinesas, avs e netos franceses e assim por diante... Comoo pintor da casa, os colaboradores brincam de forma irreverentecom a noo de famlia e, no processo, conduzem o leitor a territriosinesperados.

    O que aconteceu, nos trinta anos que separam a primeira esegunda onda de coletneas? Por onde andaram a antropologia doparentesco e a antropologia da mulher? Como dois campos depesquisa to diversos, e que comearam com propsitos e estilosto diferentes, interagiram ao longo das ltimas trs dcadas,engendrando esse novo estilo de fazer antropologia, essas novasmaneiras de pensar parentesco?

    O suposto silncioAo que tudo indica, durante o famoso perodo de silncio,

    algo estava acontecendo. Um primeiro algo a ser consideradoaqui a Conferncia Wenner-Gren que se realizou em Bellagio (Itlia)em 1982. O ttulo da conferncia j diz tudo: Feminismo e Teoriade parentesco. De forma significativa, a lista de convidados inclui,alm de alguns homens da escola clssica (Bloch, Goody, Smith),um grande nmero de mulheres com interesses feministas: SylviaYanagisako, Jane Collier e Michelle Rosaldo11 (as organizadoras),Verena Stolcke, Annette Weiner, Harriet Whitehead, Rayna Rapp...e, dessa vez, Marilyn em vez de Andrew Strathern.

    David Schneider, excludo da coletnea de Goody, tampouco

  • 18 Claudia Fonseca

    i L H A

    participou da Conferncia Wenner-Gren. O seu primeiro grandelivro, American Kinship: A cultural account, j tinha sado em 1968,trazendo a proposta ousada de analisar o parentesco americano(com a sua nfase em sexo e biologia) no como o cume dacivilizao, e muito menos como um dado da natureza, mas, antes,como um determinado sistema de normas e valores. Porm,podemos supor que, no incio dos anos 70, esse tipo de trabalhoainda destoava do mainstream12 .

    Entretanto, de ausncia conspcua no livro de Goody,Schneider virou eminncia parda na Conferncia de Wenner-Grenonde, particularmente entre as pesquisadoras feministas, ele jgozava de uma recepo calorosa. Antes da Conferncia Wenner-Gren, Schneider j havia travado um debate acadmico com SylviaYanagisako (1978), que estudava noes de parentesco entrejaponeses nos Estados Unidos (imigrantes de primeira e segundagerao), tanto como Marilyn Strathern, que, deslocando-se daMelansia para Europa, atacava diretamente o cerne doparentesco branco e hegemnico na Inglaterra (Kinship at the Core,1981). Sugiro que, entre esses trs antroplogos em Chicago,Stanford, e Manchester13 , a partir de uma afinidade intelectualsurgiu uma coalizo estratgica que resultou num dos grandesmovimentos tericos da disciplina: a transpolinizao de idiasentre os campos de gnero e parentesco.

    A idia comum, que veio a ser consagrada no livro deSchneider Critique of the Study of Kinship (1984), era a de que oprprio conceito de parentesco, calcado em smbolos de sexo esangue, era produto do etnocentrismo ocidental. Ao sugerir que oscientistas sociais projetavam os valores de sua prpria sociedadepara categorias supostamente universais de anlise, Schneiderapertou no boto pausa da agenda cientfica. A grande maioriados analistas atribui o incio do fim de parentesco a esse gniotruculento e a ele apenas... mas no podemos deixar de reconhecerque as feministas, na sua rejeio da mulher universal, j estavamdesnaturalizando tudo o que era tido como natural(MacCormack e Strathern 1980). Ser por acaso que o primeiro sub-item na pauta daquela conferncia de 1982 foi Desconstruindo a[teoria da] descendncia pela anlise do gnero (ver Tsing eYanagisako 1983)?

    Para entender o quanto esse perodo representa um salto(para no dizer reviravolta) no pensamento das prprias

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 19

    i L H A

    pesquisadoras feministas, recuamos dez anos para o incio dos anos70, quando Michelle Rosaldo, junto com uma srie de colegas,ministrou um seminrio na Universidade Stanford sobre Asmulheres sob a perspectiva de uma transcultura.14 Foi essaexperincia que deu origem, alguns anos mais tarde, ao volumeorganizado por Rosaldo e Louise Lamphere (as duas formadas emHarvard), Woman, culture and society (1974). irnico que esse livro,descrito como um comeo pelos seus organizadores, contendoidias que em muito pouco tempo seriam radicalmente revisadaspelas prprias autoras, tenha tido um impacto to duradouro. Foieditado em portugus menos de cinco anos depois da publicaonos EUA, e hoje provavelmente porque no houve traduo deoutras coletneas continua sendo, em muitas pesquisas brasileiras,a obra norte-americana mais citada sobre a antropologia da mulher.

    A tremenda popularidade dessa obra devida, sem dvida, sua ressonncia entre os adeptos de uma vertente da causafeminista. As organizadoras do volume, sob inspirao de Simonede Beauvoir, vem a subordinao feminina como um universal e,com um evidente intuito revolucionrio, recorrem a dadosetnogrficos para procurar entender as causas dessa subordinao.As anlises transculturais de Ortner e Rosaldo sobre as dicotomiasde (respectivamente) natureza/cultura e domstico/pblico, assimcomo o artigo de Chodorow sobre a subjetividade feminina, jesboavam os primeiros passos na direo de uma anlise simblicadas relaes de gnero (sofisticando a exegese feminista de ideologiassexistas). Porm, ainda no visavam romper com certos pressupostosdo campo acadmico tradicional. Apresentando-se como afiliadasaos desenvolvimentos tericos mais recentes da disciplina(representados por autores tais como Leach, Firth e Lvy-Strauss),reivindicavam um lugar mais central para a mulher dentro dasanlises antropolgicas. Apesar de rejeitar qualquer idia deinferioridade biolgica ou gentica da mulher, essas autoras aindalocalizavam a causa da inferioridade feminina (axiomaticamente)universal na desvalorizao das esferas e atividades que eramnaturalmente ligadas mulher pelo fato de ela parir e amamentarcrianas.

    As mudanas que ocorriam na disciplina no final dos anos 70eram dramticas. Antroplogos estavam sendo expulsos de seus territriostradicionais pelas guerras anti-colonialistas e, ao se ver repatriada, aAntropologia passava por profundas alteraes. At ento, havia um

  • 20 Claudia Fonseca

    i L H A

    entendimento implcito na disciplina de que a noo de parentesco (coma sua complexa lgebra que descrevia com maior ou menor preciso asrelaes sexuais e consangneas de um povo) era mais adequada parasociedades tribais, enquanto que a famlia era o termo mais relevanteno estudo de sociedades complexas. A repatriao da antropologiamodificou radicalmente essa diviso do mundo (e da cincia) entre nse eles. At esse momento, os analistas de parentesco preferiam querpovo tribais (na Oceania, frica, Amrica Latina) quer populaesatrasadas (camponeses, minorias tnicas...) da Europa e da Amricado Norte. Rapp (1978), Yanagisako (1978) e Strathern (1981) estavamagora seguindo o exemplo de Schneider (1968), pensando parentesco nassuas prprias sociedades. Vemos nessa poca, pela primeira vez, asorganizadoras de uma coletnea sobre parentesco (Ortner e Whitehead,1981) fazerem uma autocrtica devido ao fato do volume no contemplarum nmero maior de artigos sobre sociedades complexas. Mas voltar oolhar examinador na direo da prpria sociedade implicava em muitomais do que incluir o sistema ocidental (ou anglo-saxo) de parentescoentre os objetos de estudo. Eram as noes, justamente, desse sistema quetinham sido universalizadas nas anlises cientficas at ento. Tomar oparentesco dos prprios pesquisadores como objeto de estudo implicavaportanto em repensar os termos da cincia acadmica.

    Assim, j antes do livro seminal de Schneider (1984) sobreparentesco nos estudos antropolgicos, MacCormack e Strathernofereciam ao pblico uma reflexo sobre a tradio intelectual dosprprios pesquisadores, visando pr em perspectiva a maneira comoantroplogos (...) usaram os conceitos de natureza e cultura naexegese do simbolismo de gnero entre outros povos (1980: vii). Secertos analistas j questionavam a universalidade da associao dehomens e cultura em oposio a mulheres e natureza, agora haviaaqueles que questionavam, de forma ainda mais radical, a prpriaoposio entre cultura e natureza. Estranhar essa dicotomia, sugerirque, em vez de se tratar de uma classificao binria empiricamenteverificvel em todas as sociedades do mundo, representa, antes,uma viso particular de mundo, tpica da sociedade ocidental, podeparecer uma agenda modesta de pesquisa. No entanto, talperspectiva provocou uma revoluo na reflexo antropolgica,uma espcie de bomba intelectual que acabou ressoando muitopara alm dos estudos de gnero.

    Aos poucos, revelou-se um paradoxo incmodo nos estudosda mulher o fato de que, no obstante a rejeio do determinismo

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 21

    i L H A

    biolgico, qualquer construo transcultural da mulher tomavacomo pressuposto a relevncia em todas as sociedades da diferenabiolgica. Assim, as mesmas autoras que, em 1974, estavamprocurando explicaes universais para a subordinao damulher, cinco anos mais tarde repensavam o prprio pressupostode subordinao universal. Ortner e Whitehead (1981), no volumeSexual Meanings, tecem uma crtica explcita teoria psicolgicacom suas premissas fundamentadas na biologia (biologically-groundedpsychological theory), responsvel (segundo elas) pelo vis naturalistaque assombrou at ento os estudos de sexo e gnero. Evitam osdebates sobre papis sexuais, assim como aqueles sobre dominaomasculina/subordinao feminina, considerando essas pistasanalticas pouco teis. Agora, numa perspectiva da Antropologiahermenutica, propem explorar as variadas estruturas simblicasde hierarquia e prestgio associadas ao sexo (ertico e de gnero),considerado antes de tudo como um smbolo ou sistema de smboloscom significados culturalmente variveis (1981: ix).

    A rejeio de pressupostos transculturais ficou ainda maisclara no artigo publicado em 1982 pelo trio de Stanford, Collier,Rosaldo e Yanagisako: Is there a family? New anthropological views(in: Thorne e Yalom 1992).15 Neste artigo, as autoras lamentam ofato de que, na rea de famlia e parentesco, pesquisadores tenhamdescartado, junto com o evolucionismo, elementos interessantes daanlise engeliana a saber, o carter histrico e contextual dasdiversas formas familiares. Pior, que tenham abandonado ainvestigao histrica das diferentes formas familiares para seaproximar de um funcionalismo malinowskiano apoiadoimplicitamente numa essncia transcultural da famlia e remetido,no fundo, a caractersticas biolgicas de cada sexo.

    Sem dvida, Michelle Rosaldo foi a mais clara quanto volta-face que ela mesma vivenciou na sua maneira de pensar. Numartigo publicado em 1980 na revista Signs, j incorpora autores taiscomo Schneider, Haraway e Yanagisako para rever elementos desuas reflexes anteriores. Depois de resumir longamente os artigosda coletnea que ela mesma organizou, A Mulher, a Cultura e aSociedade, Rosaldo desabafa:

    ...eu agora acredito que gnero no um fato unitriodeterminado em todos os lugares pelos mesmos tipos depreocupaes, mas antes um produto complexo de uma

  • 22 Claudia Fonseca

    i L H A

    variedade de foras sociais. As mais srias objees minhadescrio de 1974 tm demonstrado com razo, eu acho que o status da mulher no uma, mas, sim, muitas coisas;as vrias medidas do lugar da mulher no parecem tercorrespondncia entre elas; e poucas destas parecem serrelacionadas com uma causa isolvel (1995 [1980]: 23).

    Em poucas palavras, Rosaldo acaba com a mulheruniversal, colocando implicitamente em questo boa parte dosestudos feministas realizados at ento. Dedicada memria deMichelle Rosaldo, o livro Gender and Kinship: Essays toward a unifiedanalysis (Collier e Yanagisako1987)16 leva adiante o programa queesta antroploga esboou em 1980. Os colaboradores da coletneamostram como, questionada a universalidade da mulher, tambmcai por terra a relao invarivel me-filhos, assim como asdicotomias que subscrevem a anlise de parentesco desde as suasorigens: as que opem as esferas domstica e pblica (poltico-jural),natural e cultural, e reprodutiva e produtiva. O questionamentodas categorias naturalizadas da esfera feminina no secircunscreve pesquisa feminista. Ruda essa pedra angular, cedetodo o edifcio da cincia social. No colapso dessa casa de cartas,no surpreendente que outra distino deixa de fazer sentido aquela que separa parentesco de gnero em dois domniosacadmicos. Assim se explica o apelo de Collier e Yanagisako poruma teoria unificada de anlise para o estudo de ambos os temas:o que tem sido concebido como dois campos distintos de pesquisaconstituem um s campo que no conseguiu se livrar de noes[folk] sobre diferenas naturais entre pessoas (1987: 15).

    Ao considerar Gender e kinship, torna-se evidente que aambio das feministas cresceu muito desde a sua proposta original.Lembramos que, nos primrdios da antropologia clssica,justamente quando o parentesco declarava encontrar-se no magode qualquer reflexo mais consistente da disciplina, as consideraesde gnero eram absolutamente secundrias. Por conseguinte, nadcada de 70, a primeira gerao de auto-declaradas antroplogasfeministas, ao denunciar o androcentrismo das etnografiasclssicas, apontavam para a ausncia de mulheres nesses textos ou,de fato, de qualquer problematizao sobre questes de gnero. Oseu programa de estudos visava resgatar ou restituir avisibilidade das mulheres na descrio das sociedades consideradas.

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 23

    i L H A

    Ainda no era o momento de reivindicar, atravs da perspectivafeminista, uma revoluo epistemolgica da disciplina. No fim dosanos 80, as pesquisadoras feministas j no se contentavam emsimplesmente ampliar as pginas sobre a mulher na grandeenciclopdia da humanidade. Agora, traziam novos estilos, novossistemas de classificao, e uma nova viso da prpria cincia, numaproposta articulada de reescrever, de cabo a rabo, a enciclopdiainteira.

    * * * * *De fato, vemos hoje que as feministas foram bem alm de

    Schneider na descontruo das bases biolgicas da natureza (ver,em particular, Strathern 1992a). Se ainda existem antroplogosafirmando que afinal, a mulher tem tero, existe um consensomajoritrio (eu diria) na disciplina no sentido de que a noo denatureza to socialmente construda quanto qualquer outro tropode nossa realidade. A rejeio de universais nessa linha to radicalque sobram crticas at para antigos aliados tais como Simone deBeauvoir, Lvy-Strauss (McKinnon 2001) e o prprio Schneider(Franklin 2001).

    No campo de parentesco, foras opositoras podem objetar:Mas sem biologia sem reconhecer o sangue e a gentica comofundamento dessas relaes primrias , como podemos falar deparentesco?. E a resposta varia. H aquelas antroplogas quelembram que rejeitar o uso de determinada categoria no implicaeliminar todos os fenmenos que antes caam nessa rubrica de nossaagenda de pesquisa. Assim, por exemplo, estudam relaes entrepais e filhos ou ideologias de paternidade, etc., mas sem jamais suporque estes temas se restrinjam nem que sejam explicados por umdomnio analtico isolado, chamado parentesco (Yanagisako eDelaney 1995: 12). H outras que dizem que devemos estudarparentesco principalmente para no repetir os erros do passado,para no permitir que o senso comum invada mais uma vez ocampo, impondo vises naturalizadas e moralistas da famliahumana (Weston 2001). Todas, no entanto, concordam na rejeiodo parentesco como um domnio particular de estudos. Reconhecemque infrutfero estudar o parentesco (seja qual for a definio)sem se emaranhar na realidade complexa que envolve a anlise dedinmicas tradicionalmente relegadas s reas de economia, poltica,

  • 24 Claudia Fonseca

    i L H A

    religio, cincia e tecnologia. Enfim, a nova agenda de pesquisasno abre mo do estudo de significados, redes e relaes queinteressavam os antroplogos clssicos, mas traz novas indagaesque exigem a ampliao do enfoque para as variadas formas deconexo, conforme as vises nativas.

    Aos novos rumos de anlise, podem surgir objees tambmdo lado feminista. A sofisticao terica das pesquisas feministasno estaria afastando as pesquisadoras do campo de ativismo ondea mulher universal parece ser mote de bom nmero de estratgiaspolticas (ver Strathern 1988)? A essa acusao, as antroplogasdiscutidas aqui responderiam: insistir nas particularidades docontexto poltico e cultural no anula a questo de desigualdade.Muito pelo contrrio. As noes de hierarquia, autoridade erepresso continuam centrais, mas no como a prioris. Agora, socondies que exigem explicao. De forma significativa, Rosaldoconclui o seu ltimo artigo discorrendo sobre esse tema:

    O que os cientistas sociais tradicionais no conseguiramcompreender (...) que as assimetrias sexuais so to sociaisquanto os papis dos caadores ou dos capitalistas, e queelas aparecem em muitos fatos tais como racismo e classessociais (...). A tarefa crucial que surge para as pesquisadorasfeministas no [como antigamente] a de documentar openetrante sexismo enquanto fato social. [, antes,enfrentar] o desafio de descobrir novas maneiras de associaros pormenores das vidas, atividades e objetivos das mulheresa desigualdades, onde quer que elas existam (1980/1995:36).

    De fato, ao abandonar a noo da eterna mulher, asantroplogas feministas no se afastaram da poltica. Pelo contrrio,levaram as suas inquietaes polticas para o campo de parentesco,situando as relaes de poder desigualdade e mecanismos derepresso no centro desse campo de estudos (ver, por exemplo,Yanagisako e Delaney 1995). Contudo, quer sejam centradas nacrtica da prpria cincia e suas categorias de conhecimento(Haraway 1989, 1991, Strathern 1992b) quer se concentrem noexame microfsico das relaes de fora entre indivduos de statusdesigual (ver, por exemplo, Ragone 1994, Modell 1998, Rapp 2000),as novas perspectivas analticas parecem todas acatar em maior ou

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 25

    i L H A

    menor grau os trs elementos do programa analtico avanado porCollier e Yanagisako:

    Para nos livrar daquelas dicotomias analticasconstantemente reinventadas, [mas sempre] arraigadas [naconvico] de diferenas naturais entre as pessoas, propomosum programa especfico para a anlise de totalidades sociais(social wholes). Nossa abordagem (...) envolve a explicaode significados culturais, a construo de modelos da relaodialtica entre prticas e idias na constituio dedesigualdades sociais e a anlise histrica de continuidadese mudanas (1987: 7-8).

    A grande ironia, claro, que esse programa no falaespecificamente nem de mulher, nem de parentesco. Contudo,podemos ler nas entrelinhas a longa caminhada que levou at aesse ponto: o esgotamento do paradigma clssico e a inteno deforjar uma nova abordagem que, ao mesmo tempo que d conta dasofisticao terica das ltimas dcadas, aprofunda a nossacompreenso de fenmenos classicamente ligados a esses temas:gnero e parentesco.

    Reflexes finais significativo frente a tanta reflexo no campo feminista

    que muitos autores continuem a dar a impresso de que no houvenada produzido sobre parentesco durante quase trinta anos. evidente que a suposta lacuna envolve certo artifcio retrico, usadopor autores que desejam pr em relevo a importncia inovadora deseu prprio trabalho. Schweitzer (2000: xix), por exemplo, apresentaa coletnea que organizou como o primeiro volume sobreparentesco da European Association of Social Anthropologists (EASA).Para tanto, frisa que, nas primeiras reunies anuais da associao(1990 e 1992), havia uma ausncia conspcua de grupos de trabalhosobre temas relacionados a parentesco. A sua afirmao, primeiravista bastante convincente, perde rapidamente impacto quandoolhamos para as diversas oficinas organizadas naqueles anos sobrecorpo e gnero. Mais estranho ainda Schweitzer omitir menoda coletnea organizada por Tereza de Valle (1993), com artigosapresentados justamente nesses primeiros anos da EASA sobre alm de corpo e gnero diversos temas diretamente ligados ao

  • 26 Claudia Fonseca

    i L H A

    campo clssico de parentesco.17 Ser que o ttulo do volume,Gendered Anthropology, justifica essa omisso?

    A antroploga feminista, e ex-presidente da AmericanAnthropological Association, Louise Lamphere, levanta uma vozdissonante em relao grande narrativa sobre o declnio eressurgimento do parentesco. Reconhece que houve uma srie deeventos no final da dcada de 90 que aparentemente marcam umnovo interesse pelo tema (a conferncia Wenner-Gren NewDirections in Kinship Study, de 1998, e, no mesmo ano, dois painisna AAA sobre a teoria de parentesco, alm de outros tantos sobrereproduo, gnero, famlia...). No entanto, lembrando o quantoela, como muitas de suas colegas, estavam pesquisando e publicandodurante os anos 80 e 90, ela sugere que o suposto silncio foi de fatoruidoso, e que

    O que parece, primeira vista, como o ressurgimento doparentesco o resultado, antes de tudo, da maiorlegitimidade (...) que a pesquisa feminista angariou (2001:27)18 .

    A agenda de trabalho dos estudantes de parentesco chegoulonge desde as inquietaes cannicas resumidas por Fox e apesquisa feminista, sem dvida, foi responsvel por boa parte dessacaminhada. Na linguagem inevitavelmente simplista de metfora,poderamos dizer que a derrubada do muro conceitual entre asesferas domstica e pblica permitiu que o campo de parentesco(mais clssico, mais masculino) fosse invadido por pesquisadoresde gnero (mulheres, na sua grande maioria), tornando quaseirreconhecvel o territrio em disputa. Desconfiamos, contudo, deque tal viso, quase ufanista, sobre a lenta ascendncia da teoriafeminista nos estudos de parentesco deixa de fora muita coisa. Clamapor outros comentadores, menos apressados, que mergulharo nosaspectos sombrios da histria: as lutas entre as prprias antroplogasfeministas, as vozes silenciadas e as limitaes deste novo paradigmahegemnico, reflexo, em grande medida, de power politics na arenaacadmica. Carece tambm de uma voz que lembre que a evoluode idias esboada aqui faz parte de uma revoluo geral na filosofiada cincia que, nesses ltimos trinta anos, deixou a sua marca empraticamente todas as disciplinas. Entretanto, como deixei claro noincio desse artigo, no minha inteno contar, nesse curto espao,

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 27

    i L H A

    a histria dos estudos de parentesco. Creio que, por enquanto, servecomo provocao adequada visar, num esprito iconoclasta, anarrativa amplamente divulgada sobre as dcadas de silncio.Repensar esse suposto silncio apontar, justamente, para a relaoda produo feminista com a cincia tradicional, implicando numrearranjo de categorias analticas que no somente lana uma novaluz sobre o passado mas tambm (oxal) ajuda a formular umaagenda frutfera para estudos no futuro.

    Referncias Bibliogrficas

    ALMEIDA, Helosa B.; Costa, Rosely G.; Ramirez, Martha C. e Souza, Erica R. de(orgs.). 2003. Gnero em Matizes. Bragana Paulista, Coleo EstudosCDAPH.

    BARROSO, Carmen e Sonia Correa. 1995. Public servants, professionals, andfeminists: the politics of contraceptive research in Brazil. In: Faye Ginsburge Rayna Rapp (orgs.) Conceiving the new world order: the global politics ofreproduction. Berkeley: University of California Press.

    BUTLER, Judith. 2003. Is kinship always already heterosexual? Cadernos Pagu21: 219-260.

    CARSTEN, Janet. 2000. Cultures of relateness: new approaches to the study of kinship.Cambridge: Cambridge University Press.

    COLLARD, Chantal. 2000. Kinship studies au tournant du sicle. LHomme 154-155: 635-658.

    COLLIER, Jane, Michelle ROSALDO e Sylvia YANAGISAKO. 1992. Is there a family:new anthropological views. In: B. Thorne e M. Yalom (orgs.) Rethinking thefamily: some feminist questions. Boston: Northeastern Univ. Press.

    COLLIER, Jane F. e Sylvia J. YANAGISAKO. 1987. Gender and kinship: essays towarda unified analysis. Stanford: Stanford University Press.

    FOX, Robin. 1986. Parentesco e casamento: uma perspectiva antropolgica. Lisboa: Veja.[1967. Kinship and marriage: an anthropological perspective. Harmonds-worth,UK: Penguin.]

    FRANKLIN, Sarah e Susan McKinnon. 2001. Relative values: reconfiguring kinshipstudies. Durham & London: Duke University Press.

    FRANKLIN, Sarah. 2001. Biologization revisted: kinship theory in the context ofthe new biologies. In: Sarah Franklin and Susan McKinnon (orgs.) RelativeValues: reconfiguring kinship studies. Durham: Duke University Press.

    GINSBURG, Faye e Rayna RAPP. 1995. Introduction. In Conceiving the New WorldOrder. Berkeley: Univ. of California Press.

    GOODY, Jack (org.). 1973. The character of kinship. Cambridge: University ofCambridge Press.

    HARAWAY, Donna. 1978. Animal sociology and a natural economy of the bodypolitic. Signs 4(1): 21-60.

    HARAWAY, Donna. 1989. Primate visions: gender, race and nature in the world of modernscience. New York: Routledge.

    _____ . 1991. Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. New York:Routledge.

  • 28 Claudia Fonseca

    i L H A

    HARRIS, Grace. 1973. Furies, witches and mothers. In: Jack Goody (org.) Thecharacter of kinship . Cambridge: University of Cambridge Press.

    HAUTANIEMI, Petri. 2000. Connecting genes building families: DNA testing inSomali family reunion. Trabalho apresentado no EASA Workshop, HumanAgency and Kinship, New Paradigms, Copenhaga (Dinamarca), August, 2002.

    HUTCHINSON, Sharon Elaine. 2000. Identity and substance: the broadening ba-ses of relatedness among the Nuer of southern Sudan. In: J. Carsten (org.)Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship . Cambridge:Cambridge University Press.

    KAHN, Susan. 2000. Producing jews: a cultural account of assisted conception in Israel.Duke University.

    LAMPHERE, Louise. 2001. Whatever happened to kinship studies? Reflections ofa feminist anthropologist. In: L. Stone (org.) New directions in anthropologicalkinship. New York: Rowman & Littlefield Pbs.

    MACCORMACK, Carolyn e STRATHERN, Marilyn (eds.). 1980. Nature, culture andgender. Cambridge: Cambridge University Press.

    MATHIEU, Nicole-Claude. 1973. Homme-culture et femme-nature?. LHomme13: 101-141.

    MAYNES, Mary Jo et al. 1996. Gender, kinship, power. New York: Routledge.MCKINNON, Susan. 2001. The economies in kinship and the paternity of culture:

    origin stories in kinship theory. In: Franklin, S. e McKinnon, S. (eds.) Relativevalues: reconfiguring kinship studies Durham & London: Duke UniversityPress.

    MODELL, Judith. 1998. Rights to the children: foster care and social reproductionin Hawaii. In: Franklin, S. e Ragone, H. (eds.) Reproducing reproduction:Kinship, power, and technological innovation. Philadelphia: University ofPennsylvania Press.

    ORTNER, Sherry e WHITEHEAD, Harriet. 1981. Sexual meanings: the culturalconstruction of gender and sexuality. Cambridge: Cambridge University Press.

    PEDRO, Joana Maria e GROSSI, Miriam (orgs.). 1998. Masculino, feminino, plural.Florianpolis: Editora Mulheres.

    PELETZ, Michael. 1995. Kinship studies in late twentieth-century anthropology.Annual Review of Anthropology 24: 343-372.

    RAGONE, Helen. 1994. Surrogate motherhood: conception in the heart. Boulder:Westview Press.

    RAPP, Rayna. 1992. Family and class in contemporary America: notes toward anunderstanding of ideology. In: B. Thorn e M. Yalom (orgs.) Rethinking thefamily: some feminist questions. Boston: Northeastern Univ. Press.

    _____ 2000. Testing women, testing the fetus: the social impact of amniocentesis in America.New York: Routledge.REITER, Rayna (org.). 1975. Toward an anthropology of women. New York: Monthly

    Review Press.ROSALDO, Michelle. 1995. O uso e abuso da antropologia: reflexes sobre o

    feminismo e o entendimento intercultural. Horizontes Antropolgicos n.1. [1980.The use and abuse of anthropology: reflections on feminism and cross-cultural understanding. Signs: Journal of women in culture and society 5(3):389-417.]

    RUBIN, Gayle. 1975. The traffic in women: notes on the political economy ofSex. In: R. Reiter (org.) Toward an anthropology of Women . New York: MonthlyReview Press.

    SCHNEIDER, David. 1984. A critique of the study of kinship. Ann Arbor: Univ. ofMichigan Press.

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 29

    i L H A

    _____ 1995. Schneider on Schneider. Durham: Duke University Press.SCHNEIDER, David e SMITH, Ramond. 1973. Class Differences and Sex Roles in

    American Kinship and Family Structure Englewood Cliffs, N.J: Prentice-Hall.SCHWEITZER, Peter. 2000. Dividends of kinship: meaning and uses of social relatedness.

    London and New York: Routledge.SEGALEN, Martine e ZONABEND, Franoise. 1986. Familles en France. In Histoire

    de la famille, vol.3: Le choc des modernits. Paris: Armand Colin.STONE, Linda. 2000. New Directions in Anthropological Kinship. Boston: Rowman and

    Littlefield.STRATHERN, Marilyn. 1981. Kinship at the core: an anthropology of Elmdon, Essex.

    Cambridge: Cambridge University Press._____ . 1992a. After nature: English kinship in the late twentieth century. Cambridge:

    Cambridge University Press._____ . 1992b. Reproducing the future: Anthropology, kinship, and the new reproductive

    technologies. New York: Routledge.THORNE, Barrie e YALOM, Marilyn (orgs.). 1992 [1982] Rethinking the family: some

    feminist questions. Boston: Northeastern Univ. Press.TSING, Anna Lowenhaupt e YANAGISAKO, Sylvia Junko. 1983. Feminism and

    kinship theory. Current Anthropology 24(4): 511-516.YANAGISAKO, Sylvia. 1978. Variance in American Kinship: Implications for

    Cultural Analysis. American Ethnologist, volume 5: 15-29.YANAGISAKO, Sylvia e DELANEY, Carol. 1995. Naturalizing power. In:

    Yanagisako, S. e Delaney, C. (orgs.)Naturalizing power: essays in feminist culturalanalysis . New York: Routledge.

    VALLE, Teresa del. 1993. Gendered Anthropology. London: Routledge.VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1995. Antropologia do parentesco: estudos amerindios.

    Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.WESTON, Kath. 2001. Kinship, controversy, and the sharing of substance. In:

    Franklin e McKinnon (eds.) Relative values: reconfiguring kinship studies.Durham & London: Duke University Press.

    WHITE, Jenny. 2000. Kinship, reciprocity and the world market. In: P. Schweitzer.(org.), Dividends of kinship: meaning and uses of social relatedness London andNew York: Routledge.

    Notas

    1 Embora homens possam ser (e, freqentemente, so) de uma orientao tericafeminista, a maioria esmagadora de pesquisadores influentes nesse campo somulheres. Portanto, neste artigo, falo em geral de pesquisadoras.

    2 A traduo do ingls da autora, assim como as demais tradues neste artigode fontes em ingls.

    3 O fosso que separa o parentesco das feministas norte-americanas da versoestruturalista francesa enorme. Seria, por exemplo, quase impossvel encontrar,entre pesquisadoras feministas da linha anglo-sax, a opinio expressa por FranoiseHritier de que nenhuma sociedade admite o parentesco homossexual (apudButler 2003: 243). Avessas a qualquer pressuposto apriorstico sobre uma ncorabiolgica, as pesquisadoras anglo-saxnicas poriam em questo a prpriapossibilidade de tirar concluses transculturais dessa natureza. Qual seria a noonativa de parentesco em cada uma dessas sociedades? Ser que todos os povos tmum mesmo entendimento sobre o que homossexual?

  • 30 Claudia Fonseca

    i L H A

    4 Antes mesmo do golpe dado por G. Rubin (1975) heterossexualidadecompulsria dos modelos estruturalistas, Mathieu (1973) j contestava o cartereurocntrico do binmio natureza/cultura.

    5 O volume, resultado de um seminrio (Matrilineality and Patrlineality inComparative and Historical Perspective) realizado na University of Minneapolis em1992, traz contribuies de Parry Scott e Eni Samara.

    6 No deixa de ser significativo que Butler, na prpria orelha de Relative Values,fornece um endosso entusistico s pesquisas antropolgicas feministas, alm dedar destaque para estas em artigos recentes (Butler 2003).

    7 No sem interesse a maneira como essas pesquisadoras denominam o seucampo: antropologia da reproduo. Com esse termo, elas conseguem incluirdiversas formas de reproduo, colocando a procriao sexuada dentro de umcontexto poltico e social amplo, ao mesmo tempo que com essa temtica permanecem perto do tema, mulher.

    8 Refere-se aqui ao artigo por Carmem Barroso e Sonia Correa (1995).9 Certamente existem muitos outros centros de Antropologia no Brasil em que

    se desenvolvem importantes pesquisas sobre gnero, muitas vezes vinculandoesse tema com sexualidade e sade (UERJ, UFRGS, UFPE, entre outros). Citei aquiapenas dois dos centros mais antigos, conhecidos pela combinao particular deantropologia e feminismo.

    12 O peso relativamente pequeno dessas pesquisadoras pode ser medido pelofato de que apenas uma das colaboradoras, Kathleen Gough, citada no livro deGoody. Por outro lado, a maioria dos autores publicados no livro de Goody sodevidamente citados por elas.

    11 Rosaldo, que participou em toda a organizao, faleceu em um acidente depesquisa de campo antes da realizao da Conferncia.

    12 Raymond Smith, com quem escreveu Class Differences and Sex Roles in AmericanKinship and Family Structure (1973), foi includo no volume de Goody, mas foi semdvida por causa de seu trabalho na Guiana Britnica.

    13 Schneider, com um doutorado da Universidade de Harvard, permaneceu de1960 a 1986 na Universidade de Chicago. Em 1986, mudou-se para a Universidadeda Califrnia em Santa Cruz, onde ficou at sua morte, em 1995. Yanagisakorecebeu seu doutorado da Universidade de Washington em 1975. Neste ano, passoua lecionar em Stanford (junto a Jane Collier e Michelle Rosaldo), permanecendonessa universidade at hoje. Marilyn Strathern, com doutorado da Universidade deCambridge, lecionou na University of Australia, na Universidade da Califrniaem Berkeley e na Universidade de Manchester antes de voltar para Cambridge,onde continua at hoje.

    14 Citao da traduo para portugus (1979: 13).15A coletnea, Rethinking the family: some feminist questions (Thorne e Yalom 1992),

    foi editada em 1982, e reeditada, com nova introduo e o acrscimo de algunscaptulos, em 1992. Com artigos sobre famlias negras, lsbicas e ps-modernas, ovolume continua sendo de grande relevncia hoje.

    16 O livro resultado da Conferncia Wenner-Gren sobre teoria feminista eparentesco organizada em Bellagio em 1982.

    17 Artigos tratam em grande medida de povos tribais (na Asia, Oceania eAmaznia), e de temas tais como o dualismo na organizao social de parentes, arelao (sexuada ou no) entre irmos e irms, as conexes entre as noes desangue, esperma e alma...

    18 Em um recente boletim da American Anthropology Association (Anthropology News vol44, n. 7, October 2003, encontramos clara indicao dessa legitimidade. Dois dos maisimportantes prmios acadmicos de 2003 foram para antroplogas feministas: Marilyn

  • De afinidades a coalizes: uma reflexo sobre a transpolinizao entre (...) 31

    i L H A

    Strathern ganhou o Viking Fund Medal 2003 da Fundao Wenner-Gren, e Rayna Rappganhou o Staley Prize (da School of American Research) para o melhor livro do ano nocampo de antropologia (Testing women, testing the fetus).

    * Trabalho apresentado no Frum Especial: Perspectivas Feministase a Antropologia Contempornea, organizado por AdrianaPiscitelli e Monica Tarducci durante a V Reunio de AntropologiaMercosul, Florianpolis, 2 de dezembro, 2003.