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DE ESCOLA PARA MULHERES A MUSEU FEMININO: O colecionismo de Henriqueta Martins Catharino Marijara Souza Queiroz 1 Resumo Este trabalho trata da formação da coleção museológica da Fundação Instituto Feminino da Bahia a partir da Escola Comercial Feminina à consolidação do Museu Henriqueta Catharino e do Museu do Traje e do Textil. Apresenta considerações sobre as ações de emancipação da mulher desenvolvidas pela colecionadora, Henriqueta Catharino, que resultou nas coleções que se distinguem pelo olhar feminino na seleção do acervo. Discute os itens do acervo que são destacado pelo próprio museu em detrimento de outros, a exemplo da coleção do Museu de Arte Popular, que não são realçadas de modo a indicar a construção de discurso hierarquizados, como a própria sociedade, nas exposições de longa duração. Palavras chave: Museu feminino Henriqueta Catharino Colecionismo Gênero Summary This work deals with the formation of museological collection of Women's Institute of Bahia Foundation from the Commercial School Women consolidation Museum Henriette Catharino and the Museum of Costume and Textile. It presents considerations about women's emancipation actions undertaken by the collector, Henriette Catharino, which resulted in the collections distinguished by feminine look in decent selection. Discusses the items of the collection that are highlighted by the museum itself over others, such as the collection of the Museum of Popular Art, which are not highlighted to indicate the construction of hierarchical discourse as society itself, in the long term exposures. Key words: Women's Museum - Henriqueta Catharino - Collectibles - Gender 1 Professora Assistente do Curso de Museologia da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília. Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Graduada em Museologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

DE ESCOLA PARA MULHERES A MUSEU FEMININO · prática da família burguesa que, segundo Viana fez-se “dos hábitos domésticos e de determinados costumes da elite do Segundo Reinado,

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DE ESCOLA PARA MULHERES A MUSEU FEMININO:

O colecionismo de Henriqueta Martins Catharino

Marijara Souza Queiroz1

Resumo

Este trabalho trata da formação da coleção museológica da Fundação Instituto Feminino

da Bahia a partir da Escola Comercial Feminina à consolidação do Museu Henriqueta Catharino

e do Museu do Traje e do Textil. Apresenta considerações sobre as ações de emancipação da

mulher desenvolvidas pela colecionadora, Henriqueta Catharino, que resultou nas coleções que

se distinguem pelo olhar feminino na seleção do acervo. Discute os itens do acervo que são

destacado pelo próprio museu em detrimento de outros, a exemplo da coleção do Museu de

Arte Popular, que não são realçadas de modo a indicar a construção de discurso hierarquizados,

como a própria sociedade, nas exposições de longa duração.

Palavras chave:

Museu feminino – Henriqueta Catharino – Colecionismo – Gênero

Summary

This work deals with the formation of museological collection of Women's Institute of

Bahia Foundation from the Commercial School Women consolidation Museum Henriette

Catharino and the Museum of Costume and Textile. It presents considerations about women's

emancipation actions undertaken by the collector, Henriette Catharino, which resulted in the

collections distinguished by feminine look in decent selection. Discusses the items of the

collection that are highlighted by the museum itself over others, such as the collection of the

Museum of Popular Art, which are not highlighted to indicate the construction of hierarchical

discourse as society itself, in the long term exposures.

Key words:

Women's Museum - Henriqueta Catharino - Collectibles - Gender

1 Professora Assistente do Curso de Museologia da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de

Brasília. Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Graduada em

Museologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

“Não nasci para vítima e nem para carpideira”

Essa frase foi a resposta que Henriqueta Martins Catharino (1886-1969)2 deu quando da

sua viuvez precoce após a morte de seu noivo, o suíço Ernerst Richard Hunerwald, em 1919. A

firmeza da resposta revelou mais tarde a decisão de permanecer solteira, já que, antes mesmo

de sucumbir ao insistente pedido de casamento, não demonstrava “em oportunidade alguma

desejo de casar-se”, como observou a historiadora Marieta Alves (1970), amiga pessoal e

parceira intelectual e profissional de Henriqueta até a seu falecimento em 1969.

Filha do português Bernardo Martins Catharino, bem sucedido industriário de têxteis,

casado com Úrsula Martins Catharino,

Henriqueta teve uma formação baseada na

moral cristã católica que se refletiu nas

regras de comportamento feminino, na

beneficência e na veneração pela arte, pela

música e pela poesia como formas de

comunicação com o sagrado. Aos modos da

aristocracia baiana oitocentista sob os efeitos

da Belle Époque3, teve ainda formação

linguística, artística e religiosa que recebeu

em casa de professores particulares, que

somavam-se a viagens à Europa, sobretudo à

França, para ampliar e fortalecer os

2 Henriqueta Martins Catharino nasceu em 1886, em Feira de Santana, BA e faleceu em 1969 em Salvador, BA. 3 A Belle Époque é compreendida como um momento na história francesa que teve início no final do século XIX

e se estendeu até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Não é possível demarcar rigorosamente seus

limites, uma vez que ela é mais um estado de espírito do que algo concreto. No Brasil, este período tem início

em 1889, com a Proclamação da República, e vai até 1922. As revistas brasileiras de moda e comportamento,

entre 1890 e 1920, tinha grande circulação entre as classes abastadas – “A Moda Ilustrada, A Luva, A Aurora,

Bahia Ilustrada, etc. – eram uma espécie de tradução das revistas e magazines franceses” e a principal forma de

difusão do espírito Belle Époque. (SOUZA, 2003, pag. 31).

conhecimentos adquiridos. Nessas oportunidades, adquiria objetos de arte, curiosidades e

aguçava o olhar para tipologias de coleções até então pouco valorizadas no Brasil, como as de

arte popular e de moda feminina.

Figura 1: Henriqueta Catharino em 1909.

Fonte: arquivo da Biblioteca Marieta Alves, FIFB.

Durante o século XIX, segundo Maria Ângela D’Incao (2015: 223) “o estilo de vida da

elite dominante na sociedade brasileira era marcado por influências do imaginário da

aristocracia portuguesa” baseado no sistema rural e escravista, onde a família patriarcal,

“comandada pelo pai detentor de enorme poder sobre seus dependentes, agregados e escravos,

habitava a casa grande e dominava a senzala”. O desenvolvimento das cidades e da vida

burguesa no final do século XIX influencia na modificação da casa que se torna mais acolhedora

para valorização da vida íntima e privatização da família. De outro modo, essa interiorização

da vida doméstica requeria apreciação pública das amplas salas e salões de festas, saraus e

jantares, que se caracterizavam como “espaços intermediários entre o lar e a rua” em nome do

status. Assim, as mulheres de famílias abastadas passam a participar mais de acontecimentos

sociais como cafés, bailes e bazares beneficentes.

Essa mudança comportamental da sociedade burguesa demandou do sistema patriarcal

novas formas de vigilância da mulher quanto à sua conduta em público não apenas pelo pai ou

marido como por toda a sociedade, já que a convivência social libera emoções. Esse sistema

gera ainda a auto vigilância, pois cabia à mãe, como sujeito central da vida doméstica, zelar

pela conduta da família e projetá-la socialmente para cima através da boa educação das filhas

para o casamento que envolvia alianças políticas e econômicas e, por consequência, a

continuidade do “sucesso da família”. Um ciclo em que coloca a mulher na condição de

zeladora da imagem do homem público já que a família era um bem negociado e adquirido.

(D’INCAO, 2015: 228-230).

Henriqueta rompe esse ciclo ao se resignar à viuvez até o fim da vida após a perda do

noivo tendo como consequência a disposição dos seus recursos materiais, incluindo o próprio

dote, a favor da “promoção da mulher baiana”, segundo Elizete Silva Passos (1992: 42), através

dos cursos profissionalizantes da Escola Comercial Feminina por ela fundada. Outros cursos de

formação religiosa e filosófica eram dedicados a afastar as jovens baianas dos “comportamentos

incorretos” e “métodos ilícitos” para a auto sustentação, em referência ao comportamento

sexual feminino. Segundo D’Incao, a virgindade feminina era “um valor ético propriamente

dito” e funcionava como dispositivo de “valor econômico e político sobre o qual se assentaria

o sistema de herança de propriedade que garantia linhagem da parentela” (2015: 235).

Confirma-se assim a eficácia do sistema de vigilância e auto vigilância da mulher mesmo fora

das relações domésticas: De mulher para mulher.

Essa preocupação com a mulher projetou a atuação de Henriqueta, ainda segundo

Passos, à posição de “feminismo especial” exercido através de ações e práticas com dois eixos

de atuação: emancipando a mulher, especialmente as moças solteiras, através da

profissionalização e inserção no mercado de trabalho, de modo a torná-las independentes em

relação ao matrimonio, ainda visto como negócio e única condição “digna” de incluir a mulher

na sociedade; e, possibilitando que as senhoras casadas tivessem uma atividade fora do lar para

fins de socialização, através de “cursos domésticos” – ateliês de culinária, corte e costura,

artesanato – e da mobilização a favor da beneficência cristã.

A origem da instituição que viria a se solidificar mais tarde foi delineada em 1918

quando Henriqueta pôs sua biblioteca particular à disposição de jovens moças dando início ao

que a historiadora Marieta Alves (2003, 17-23) denominou de “seu apostolado na sociedade”,

com a criação da Propaganda das Boas Leituras. “Não satisfeita com esse auspicioso início de

apostolado convidou senhoras e senhorinhas para uma tarde de costuras em sua residência”,

onde se executaram variados trabalhos manuais com agulhas, crochê e tricô. As peças

resultantes desse trabalho eram doadas às mulheres mais necessitadas, em especial às mães que

esperavam bebês, não sem antes observar se estas viviam de acordo com as leis divinas e cristãs,

o que funcionava como um pré-requisito no estabelecimento de prioridades.

Em 1919, Henriqueta organizou um bazar beneficente no Teatro Polytheama Baiano

para levantar fundos que se somassem à quantia já obtida com a venda de suas posses – um anel

de brilhantes e de um colar de pérolas – além do “adiantamento de uma parte da herança que

lhe caberia um dia” (ALVES, 2003: 22), solicitada ao pai, para o início do seu projeto. Em

1923, com a ajuda de Monsenhor Flaviano Osório Pimentel que já acumulava experiências

filantrópicas como diretor da Associação das Senhoras de Caridade, inaugura o Atelier São

José, uma espécie de agencia de colocações e de trabalho que tinha como objetivo

profissionalizar a mulher e ensinar corte e costura como meio de sustento.

No mesmo ano, inaugura a Casa São Vicente no Terreiro de Jesus, nº 15, esquina com

a Rua Saldanha da Gama, que, dois meses depois, viria a se tornar a Escola Comercial Feminina

com os cursos de datilografia, harmônios, francês e inglês. A Escola foi oficializada em 1929

pelo Governo Federal, o que estimulou a abertura de novos cursos como filosofia, tradição e

história da Bahia, braile, religião e contabilidade, além da mudança para uma nova sede à Rua

do Rosário, 215, após breve passagem pela Praça da Piedade.

A Escola estava consolidada, mas Henriqueta alimentava paralelamente interesse

particular pelo colecionismo, estimulado pelas diversas viagens que fazia à Europa, quando

adquiria objetos de arte, curiosidades e aguçava o olhar para tipologias de coleções até então

pouco valorizadas no Brasil, como a de arte popular e moda feminina.

Em busca de melhores acomodações, entre 1937 e 1939, foi construída a atual sede

(2016) no lugar onde funcionou o Teatro Polytheama Bahiano. O espaço foi propício a novas

atividades de modo que, além das salas de aula, algumas áreas foram destinadas às exposições

de “Arte Antiga Feminina”4, embora todo o prédio já dispusesse de mobiliário de época e

objetos de arte decorativa. Segundo Helder Viana (2002: 36) “caberia ao Museu de Arte Antiga

possibilitar a formação da identidade baiana entre as alunas através do “ensino do bom gosto

artístico”. Acredita-se que as coleções também serviam para complementar a formação das

alunas sobre usos e costumes relacionados à aristocracia baiana no espaço doméstico e no

espaço social, pois, conforme observou Ana Lucia Peixoto5, paralelamente à escola a Fundação

realizava periodicamente “cursos de etiqueta”.

4 CATHARINO, Henriqueta Martins. Carta aberta à sociedade baiana. Bahia, 1933. 5 Ana Lucia Uchoa Peixoto foi diretora da Fundação Instituto Feminino da Bahia entre 2002 a 2009 e incluiu no

Plano Diretor de 2005 a retomada dos cursos de etiqueta ministrados até a década de 1980, conforme suas

pesquisas. Entrentanto, durante sua gestão, não aconteceram novos cursos relacionados à etiqueta.

Figuras 2 e 3: Escola Comercial Feminina, Praça da Piedade (C. 1929); e, atual sede da FIFB construída entre

1937 a 1939 (Fonte: arquivo fotográfico da Biblioteca Marieta Alves, FIFB).

O interesse em preservar a ideia de uso dos espaços privados da elite baiana era apenas

uma extensão da exposição dos espaços públicos da casa em reuniões sociais festivas, conforme

prática da família burguesa que, segundo Viana fez-se “dos hábitos domésticos e de

determinados costumes da elite do Segundo Reinado, um elemento importante de sociabilidade

das elites baianas e nacional” (VIANA, 2002: 136). No intento de consolidar o Museu de Arte

Antiga, Henriqueta lançou uma carta aberta à sociedade baiana, em 1934, transcrita por Ana

Lucia Uchoa Peixoto que publicou trechos no catálogo institucional do Museu do Traje e do

Têxtil, em 2003, solicitando doações de,

“peças antigas de vestuário, leques, lenços, pentes, terços, tudo enfim que a moda consagrou em

era distante assim como trabalhos manuais: bordados, flores, pinturas, etc. [...] No sentido de

transmitir às pessoas amigas o ideal do Instituto, deseja conservar tudo quanto de interessante nos

fale do passado”.6 (PEIXOTO, 2003, 11-12).

Inúmeras exposições foram realizadas nos espaços da instituição, motivadas pelo

crescimento da coleção, a partir das incessantes doações que atendiam à solicitação em carta

aberta o que deu origem, em 1945, ao “Museu de Arte Antiga” que veio mais tarde a denominar-

se Museu Henriqueta Catharino em homenagem à idealizadora, após seu falecimento em 1969.

Segundo Alves, o Museu de Arte Antiga se projetou a partir da realização de Congressos e de

exposições comemorativas, dentre as quais, “a celebração do centenário da Princesa Isabel em

1946 e a exposição retrospectiva do Segundo Reinado”, pensada pela escritora e poeta baiana

6 A referida carta aberta à sociedade em 1934 foi assinada pela presidenta do Instituto, Henriqueta Martins

Catharino, pela sua irmã e presidenta de honra, Almerinda Martins Catharino e pelas Conselheiras: Sofia Costa

Pinto Gomes de Oliveira, Marieta Pacífico Pereira, Leocádia de Sá Martins Catharino e Marieta Alves.

Amélia Rodrigues, em 1961. Alves destaca ainda a participação política e social de Henriqueta

na Campanha Nacional da Criança, em 1948, que contou com a presença do Presidente

Marechal Eurico Gaspar Dutra, evidenciando sua estreita relação com as instancias de poderes

políticos e governamentais, além do respaldo da Igreja. (ALVES, 2003: 17-23).

Através de um processo de transformação gradual, as salas de aula cederam espaço ao

Museu que hoje tem um acervo formado por, aproximadamente, vinte mil itens. Dada sua

dimensão e características distintas, em 2002, o acervo foi dividido em três coleções: arte

popular, artes decorativas e traje e têxteis, as quais convencionaram-se tratar de Museu de Arte

Popular, Museu Henriqueta Catharino e Museu do Traje e do Têxtil. Localizadas no mesmo

edifício identificado como Fundação Instituto Feminino da Bahia (FIFB)7, com a mesma equipe

técnica e sob os mesmos recursos orçamentários. O acervo formado a partir do olhar feminino

– doadoras e colecionadora – retrata o cotidiano e a estrutura social do período de transição

entre os séculos XIX e XX, e permite a leitura das experiências sociais da mulher, o que não

significa, em termos de exposição, uma subversão de ordem na narrativa ou questionamento de

possíveis modificações estruturais na sociedade patriarcal.

Realces das coleções e seus discursos

Os destaques do acervo são dados a um retábulo que pertenceu à Antiga Sé Primacial

de São Salvador, demolida em 1933 para passagem dos bondes; a uma saia e cauda da Princesa

Isabel, usadas quando esta assumiu como Princesa Regente do Império em 1871; e, trajes de

“crioulas” remanescentes do período de escravidão do Brasil que foram adquiridos em um leilão

na paróquia da Piedade, em 1946.

O retábulo8 se destaca por ser um exemplar da talha barroca baiana do século XVIII que

fez parte dos doze retábulos laterais, seis de cada lado, da Antiga Sé, demolida em 1933. Após

a demolição, Henriqueta solicitou ao Arcebispo da época, Dom Augusto Álvaro da Silva, a

7 Fundação Instituto Feminino da Bahia é uma instituição privada, sem fins lucrativos, declarada de utilidade

pública por desenvolver atividades de interesse social, sobretudo por manter três coleções abertas ao público.

Mantém-se financeiramente com recursos próprios gerados a partir do patrimônio deixado pela sua fundadora,

Henriqueta Martins Catharino e, por vontade declarada por esta, em testamento, está sob a salvaguarda da

Arquidiocese de Salvador. 8 As informações sobre o retábulo foram obtidas num documento datilografado por Marieta Pacífico Pereira, no

arquivo do museu, em armário de gavetas sem identificação de pastas ou sistematização de qualquer informação.

retirada de algumas peças para fins de salvaguarda do patrimônio demolido. São elas: uma trave

de cedro entalhado, duas colunas salomônicas, um baldaquino incompleto e um balaústre em

jacarandá. Após concessão, as peças foram restauradas por Alfredo Sarkis para compor a

Capela do Divino Espírito Santo, no 1º andar da FIFB.

Figura 4: Capela do Divino Espírito Santo, segundo pavimento da FIFB. Foto: Sérgio Benutti. Fonte: Arquivo

FIFB.

O projeto da Capela é do Reverendo Dom Paulo Lachmayor9, da Ordem dos

Beneditinos, que incluiu ao conjunto da Sé: uma mesa de altar e duas sanefas feitas por Emilio

Antônio Black, artista e marceneiro; dois anjos tocheiros esculpidos por Pedro Ferreira,

responsável também pelo douramento das peças da Antiga Sé; dois painéis em azulejos

portugueses com representação da criação do mundo e o batismo de Jesus e quatorze medalhões

com passos da Via Sacra, feito por Adelino na cidade do Porto, Portugal; um lampadário e uma

pomba do Divino Espírito Santo em prata doados pelo pai de Henriqueta; portas almofadadas

em cancela e janelas com cornijas, projetadas por Manoel Martins das Neves e executadas pela

fábrica de móveis Schwarz & Martins. A capela foi inaugurada em 29 de março 1949 em

comemoração ao quarto centenário da cidade de Salvador.

9 Informações obtidas em documento datilografado por Marieta Pacífico Pereira, que compõe o arquivo do

Museu Henriqueta Catharino.

Da coleção de trajes, o destaque é dado à saia e cauda usadas pela Princesa Isabel quando

investida como Princesa Regente do Império. A saia foi feita em tafetá de seda pura com ramos

de café bordados em fios de ouro e prata. A cauda é em veludo verde, cor da nobreza e das

cerimônias de magistratura real, ladeada por ramos de café e com estrelas e coroas imperiais

distribuídas ao centro, também bordadas em ouro e prata. Especula-se se o mesmo traje tenha

sido utilizado pela Princesa quando, na quarta vez em que assumiu como Princesa Regente,

assinou a Lei Aurea, em 13 de maio de 1888.

Figura 5: Saia e cauda da Princesa Isabel. Museu do Traje e do Têxtil, FIFB. Foto: Sérgio Benuti.

Embora essa afirmativa não tenha se confirmado através dos documentos do Museu, é

possível que esteja correta, pois se sabe que mesmo após a Revolução Francesa ter declarado

que “cada pessoa é livre para vestir-se de acordo com seu sexo como lhe convém”, em Portugal

e no Brasil as leis suntuárias10 permaneceriam em vigor durante todo o Império, de modo que

as “Fardas Grandes” utilizadas em cerimônias formais eram repetidamente usadas em tais

ocasiões. (SILVA, 2011: 42-46).

As peças reais foram doadas pelo neto da Princesa Regente, Dom Pedro de Orleans e

Bragança que em 18 de outubro de 1948 escreveu à Henriqueta em agradecimentos à

homenagem prestada através da exposição comemorativa ao centenário da Princesa. A própria

10 As Leis Suntuárias eram uma espécie de código que impunham limitações ao uso de certas roupas, tecido e

cores e regulava o luxo apenas a algumas pessoas. FONTE: SILVA, Camila Borges da. O Símbolo

Indumentário: distinção e Prestígio no Rio de Janeiro (1808-1821). Dissertação de mestrado. PPGH/UERJ: Rio

de Janeiro, 2009.

Henriqueta tinha se ocupado em registrar o feito e participá-lo ao descendente monárquico,

como o trecho da carta demonstra,

“Somente agora teve o nosso amigo Dr. Durval Silva Lima a oportunidade de vir a Petrópolis e

entregar-me o magnífico e tão expressivo álbum, confeccionado sob sua direção, documentando

as comemorações levadas à efeito no Instituto Feminino da Bahia por ocasião do centenário de

nossa Avó, a princesa Isabel”. (PEIXOTO, 2003, pag. 11-13).

E finaliza a carta com expressivos desejos de visita à Bahia para “poder doar ao

Instituto objetos que pertenceram à Princesa Isabel” o que é concretizado cinco anos depois

da carta, em 5 de março de 1953, ato este que, segundo Alves, fez com que o Instituto crescesse

ao olhos de qualquer brasileiro e o nome de sua fundadora se tornasse conhecido e admirado

internacionalmente. (PEIXOTO, 2003: 11-13).

Figura 6: Henriqueta Catharino recebendo de D. João Pedro de Orleans e Bragança a saia e a cauda da Princesa

Isabel, em 1953. Fonte: arquivo da Biblioteca Marieta Alves, coleção FIFB.

Em relação às demais peças inseridas à coleção de trajes e têxteis, fica evidente que as

doações provinham sempre de famílias mais abastadas da sociedade baiana da época11. É

possível delinear esse perfil das famílias representadas no Museu a partir da proveniência e

características técnicas e materiais das peças que formam o acervo, como a doação de um

vestido em cambraia de linho bordado a fita de prata, em estilo império, datado

11 A lista das famílias doadoras consta de aproximadamente mil nomes, na grande maioria, de mulheres. Essa

lista está publicada nas ultimas páginas do Catálogo do Museu do Traje e do Têxtil, lançado em 2003, mas deve

ter aumentado consideravelmente, já que a média de doação anual é entre cem a duzentas peças, de, pelo menos,

dez famílias diferentes, ao ano.

aproximadamente de 1890, que pertenceu à Ana Constança dos Reis Rodrigues e foi doado por

Clotilde Lopes Rodrigues.

Ana Constança foi esposa de Manuel Lopes Rodrigues, um casal de portugueses

imigrantes nascidos na Freguesia de Santa Marinha da Vila Nova de Gaia, Bispado do Porto. O

único filho do casal foi o pintor e educador João Francisco Lopes Rodrigues, auxiliar de Miguel

Navarro e, junto a este, fundador da Antiga Escola Imperial de Belas Artes da Bahia onde

lecionou desenho e pintura entre os anos de 1877 a 1893. A árvore genealógica da família

Lopes Rodrigues evidencia a estratificação social da Bahia oitocentista, pois, segundo Candau,

é na genealogia familiar que o jogo da memória na formação da identidade faz-se perceber mais

facilmente. A partir da escolha dos objetos que integram as coleções dos museus, percebe-se a

opção que se faz entre preservar a memória dos meios populares ou a memória das classes mais

abastadas, bem como o caráter dado às narrativas que subsidiam a preservação dessas

memórias.

“Apesar das diversas tentativas de fixação dessa memória (registros, árvores genealógicas,

brasões, armas, etc.), a busca identitária movimenta e reorganiza, regularmente, as linhagens mais

bem asseguradas, jogando em permanecia com a genealogia naturalizada (relacionada com o

sangue e o solo) e a genealogia simbolizada (constituída a partir de um relato fundador).”

(CANDAU, 2012: 137).

Uma das obras representativas de João Francisco Lopes Rodrigues é o Retrato do

Conselheiro Jonathas Abbott, que faz parte do acervo do Museu de Arte da Bahia, como quase

toda a coleção formada pelo retratado. Segundo Paulo Knauss, Jonathas Abbott pode ser

considerado o mais antigo colecionador sistemático do Brasil que encontrou no fim do estatuto

colonial da ordem social um terreno fértil para o desenvolvimento da prática do colecionismo

da arte europeia e a formação de um mercado de arte com certa autonomia em relação à “arte

religiosa ou da Igreja instrumentalizada pelo poder do Estado ou das instâncias de representação

da monarquia”. (KNAUSS, 2001).

Ainda na coleção de trajes e têxteis, outros exemplos podem ser identificados a partir

da doação de peças como um traje de passeio em tecido de algodão cru tingido de marrom,

usado com anquinha12 em finais do século XIX, que pertenceu à Sofia Costa Pinto Gomes, irmã

12 Estrutura feita em penas (tipo almofadinha) amarrada à cintura para dar volume à parte traseira da roupa, na

altura das nádegas para dar à silhueta da mulher vista de perfil o formato de S.

mais velha de Carlos Costa Pinto, também colecionador, cuja coleção particular,

predominantemente de ourivesaria, deu origem ao Museu Carlos Costa Pinto. O traje foi doado

em 1958, pela filha da proprietária, Annie Costa Pinto Gomes Wildberger, esposa de Arnold

Wildberger. Da mesma proprietária, foi o vestido de noiva em seda bege de 1892.

Figuras 7 e 8: Traje de Passeio do final do século XIX (Foto: Sérgio Benutti, arquivo digital FIFB).; e, vestido de

noiva de 1892 (Foto: Davi Santana, arquivo pessoal). Ambas pertenceram a Sofia Costa Pinto.

Além das doações das senhoras da aristocracia baiana, as aquisições que formaram a

coleção de trajes contavam ainda com compras em bazares beneficentes como é o caso do

vestido de baile em tafetá de seda brocada, furta-cor, costurado à mão, que pertenceu à Maria

Conceição Pinho, adquirido em 1934 em um bazar do Asilo da Ordem Terceira da Piedade, do

qual a proprietária do vestido foi Terceira e benfeitora.

No mesmo bazar, foi adquirido também um vestido em seda bordada datado de 1895,

doado por Mariana Cerqueira de Magalhães também Terceira da Piedade que deixou em

testamento sua casa à Avenida Araújo Pinho, 19, hoje Escola de Belas Artes da Universidade

Federal da Bahia, para que nela fosse fundado um abrigo para “as irmãs Terceiras que estiverem

na indigência e para aquelas que precisem de um asilo para conforto de seu estado de velhice”.13

Até aqui é possível perceber como aristocracia, colecionadores, artistas, Igreja e Estado

fazem parte da mesma engrenagem que move a sociedade baiana oitocentista formadora das

coleções dos museus. Outra análise possível diz respeito ao “feminismo conservador” praticado

pelas senhoras da aristocracia baiana, e não apenas por Henriqueta, o qual segundo Passos, não

propunha modificações profundas na situação da mulher, pois era desenvolvido com base em

participações assistenciais, promovidas pela fé cristã.

Figuras 9 e 10: Vestido de Baile que pertenceu à Maria Conceição Pinho; e, vestido de passeio que pertenceu à

Mariana Magalhães. Ambos do século XIX. (Foto: Sérgio Benutti, arquivo digital FIFB).

A coleção de trajes de “crioula”14 remanescentes do período de escravidão do Brasil,

composta por vinte peças, dentre as quais doze saias que foram adquiridas por Henriqueta em

13 Documento encontrado no arquivo da FIFB e publicado parcialmente no Catálogo do Museu do Traje e do

Têxtil em 2003. Em 1960 o abrigo foi desapropriado pelo Governo do Estado e o Asilo Mariana Magalhães foi

transferido para a Rua do Salete, depois para a Ladeira dos Barris, 4, onde permanece até os dias atuais. 14 Termo usado pela historiografia do século XIX para se referir às roupas usadas pelas negras, escravas ou não.

O mesmo termo foi adotado na documentação da FIFB referente às peças. Segundo dados documentais, as peças

pertenceram à Florinda Anna do Nascimento, conhecida como “Preta Folô” Desse grupo de peças, quatro trajes

leilão beneficente, também na Igreja da Piedade, em 1946. Quando inseridos à coleção da FIFB

esses trajes figuravam nas exposições de arte popular onde, por duas vezes, a primeira em 1923

e segunda provavelmente em 1933, durante a exposição “Arte e Lavores”15, foram apresentados

em exposições, tendo como manequim uma boneca de pano preta em tamanho natural, sentada

a um tabuleiro de baiana de acarajé16 em representação ao traje de baiana, separadas da coleção

de indumentária feminina que já era expressiva desde a carta aberta solicitando doações.

A categorização anterior desses trajes como arte popular está relacionada à compreensão

de que os objetos pertencentes a grupos adversos ao universo aristocrático tinham uma posição

diferenciada na coleção. Segundo Viana, desde a denominação de Museu de Arte Antiga e

Museu de Arte Popular na década de 1950, “a divisão da coleção e a separação dos museus

parecem denotar uma certa dificuldade de seus organizadores” em reunir as coleções num

mesmo princípio ordenador, logo a opção tem sido “oferecer uma visão hierarquizada delas”,

de modo a constituir os valores dos grupos sociais dominantes no processo de formação da

identidade baiana. (VIANA, 2002: 133).

Os trajes de crioula foram elevados ao patamar de indumentária do século XIX digna

de estudos, pesquisa e exposição, a partir de 2002, com a idealização do Museu do Traje e do

Têxtil, por Ana Lucia Uchoa Peixoto, diretora da FIFB até 2009. Entretanto, outras peças

relacionadas ao universo afro-baiano permanecem como parte da coleção de arte popular, no

subsolo da FIFB, sem visitação pública regular até os dias atuais (2016).

completos de crioula estão expostos no pavilhão da FIFB, 3º andar do prédio, que recebeu o nome de Almerinda

Martins Catharino, irmã de Henriqueta Catharino, e está reservado ao Museu do Traje e do Têxtil. Os trajes estão

acompanhados por joias de crioulas e compõem a galeria do século XIX, que aborda as formas de vestir das

senhoras baianas “Entre o público e o privado” numa narrativa que apresenta as crioulas como símbolo de poder

e status social de suas proprietárias, ao acompanhá-las nas compras ou nas missas dominicais. 15 Essa exposição foi organizada por ocasião do I Congresso Eucarístico Nacional em Salvador, em 1933. 16 Informações obtidas através no caderno número 1, dentre os 18 cadernos que registravam a entrada de peças

no acervo de 1923 até a década de 1980, o que nos conduziu à localização, em 2008, de uma fotografia que

confirmou a cena descrita, na Biblioteca Marieta Alves. No retorno à campo para reprodução da imagem, em

2012, a fotografia não mais foi localizada.

Figura 11: “Trajes de crioula” do final do século XIX, em exposição no Museu do Traje e do Têxtil, FIFB.

(Foto: Marijara Queiroz).

Este é o caso de “uma Boneca de pano, preta com olhos de contas, medindo 32 cm.

Vestida de 3 saias brancas (bico valenciennes com fita verde cana como chale). Vestimenta

pobre e inadequada. Doação: Dra. Margarida Ribeiro Diniz” de número 6087. Nos cadernos

antigos, que funcionavam como inventário de entrada de peças no acervo, pelo menos mais seis

bonecas são identificadas com descrições aproximadas a esta, diferenciando-se apenas pela cor

da roupa e por algumas insígnias agregadas às peças, essas, mal descritas. Na observação das

bonecas, constata-se, sem muita dificuldade, que são representações de Orixás e Caboclos, logo,

representam religiões de matrizes africanas ou afro-brasileiras.

Além dessas peças que não conseguiram, ainda que a partir de narrativas hegemônicas,

como o caso dos trajes de crioula, a inserção na exposição de longa duração, existem outras que

foram deslocadas para a coleção de arte popular, após avaliação mais criteriosa. Por exemplo,

“as peças de números 3906 a [3]911 foram para o Museu de Arte Popular em julho de 1957”

que se refere a “01 rosário de contas brancas e pretas com medalha de N. S. das Graças (usado

pelas pretas). Bahia, 1900”. Identificaram-se outros cinco rosários também utilizados pelas

pretas na lista que seguia abaixo, todos transferidos da coleção do Museu Henriqueta Catharino

para o Museu de Arte Popular, no subsolo do edifício.

Até a 2011 a coleção de arte popular não estava inventariada, nem ao menos arrolada.

Entretanto, sabe-se que em maio de 1956 “o Sr. Hans Geissler tirou fotos do Museu de Arte

Antiga e de Arte Popular”17. Essas fotos foram localizadas e foi a partir delas que se soube

também de uma coleção de trinta objetos religiosos afro-brasileiros, em estado de deterioração

avançada já que as peças são, na maioria, em madeira e outros materiais orgânicos como

cabaças e cocos. Na comparação entre as fotos e os objetos encontrados em um armário do

subsolo constata-se a perda ou extravio de algumas peças não localizadas.

Segundo Maria Paula Adinolfi, que pesquisa esta e outras coleções da mesma natureza

no Brasil, as peças foram resultantes de apreensões policiais a partir das invasões nos Terreiros

de Candomblé nas primeiras décadas do século XX18.

“As invasões incluíam “a prisão de líderes religiosos, a profanação de santuários e apreensão de

objetos religiosos, tais como atabaques e outros instrumentos musicais, ferramentas de orixás,

indumentária religiosa e mesmo objetos que compunham o assentamento das divindades, como

quartinhas, igbás, e até mesmo os próprios otás, pedras que materializam o próprio orixá”.

(ADINOLFI, M. P. 2011)

Não há registro de como essas peças integraram a coleção da FIFB, se através de doação

ou compra, como a maioria das formas de aquisição encontradas no Inventário. Mas, acredita-

se que, como as demais coleções estudadas por Adinolfi, a presença dessas peças no museu era

um atestado da condição “primitiva” dos negros e de suas práticas “fetichistas”, o testemunho

material do atraso, da barbárie e da idolatria praticada pelos negros, “pautadas por uma

ideologia evolucionista, racialista e eugenista, que pressupunha a inferioridade de negros e

indígenas e que desprezava e discriminava tudo que fosse relacionado à cultura destes grupos”.

(ADINOLFI. 2011).

17 Esta informação foi encontrada nos cadernos antigos da FIFB que serviam como inventário para registro de

entrada de peças, mas também registravam a movimentação dessas peças e outras observações consideradas

relevantes para histórico do objeto. N maioria das vezes essas observações interrompem o numero de ordem do

que poderia ser considerado inventário e causa certa desordem nas informações. 18 Essas práticas eram apoiadas pelo artigo 157 do Código Penal de 1890, que criminalizava as práticas religiosas

afro-brasileiras. Estas eram consideradas prática de charlatanismo e, portanto, condenadas. Esta disposição

jurídica estava calcada no pensamento racista que orientava as práticas do Estado e que criminalizava diversas

práticas culturais afro-brasileiras: candomblé, batuques, sambas, capoeira. (ADINOLFI, M.P.F. 2011.)

Segundo Viana, a presença dessas peças no museu “vinha demonstrar a subjugação

desses grupos sociais, considerados supersticiosos e avessos à ordem e o progresso trazidos

pelos ideais da República”. (VIANA, 2005: 39).

Figuras 12, 13, 14 e 15: Insígnia de Oxumaré; Xequerê (instrumento musical); Oxè de Xangô; e, Abebê de Oxum.

(Fotos: Maria Paula Fernandes Adinolfi. Acervo FIFB).

A coleção de arte popular, de grande representatividade da cultura material, foi formada

pela própria Henriqueta como um recorte cultural de outros grupos sociais e étnicos. Fazem

parte desse universo outras peças como cerâmicas, cestarias, esculturas em madeira, bonecas

de pano, conchas, rochas e minerais, provenientes de várias partes Brasil e do mundo,

predominando o Nordeste brasileiro e o Recôncavo Baiano.

O pensamento cientificista que motivou os colecionadores entre os séculos XVII e XIX

formaram coleções que, classificadas e catalogadas, eram instrumentos de erudição e

consolidação de instrumentos enciclopédicos. Ou seja, quanto maior a diversidade de objetos,

maior o conhecimento (e domínio) sobre a cultura do outro. De outro modo, no Brasil, entre

1940 a 1960, havia uma conjuntura favorável para criação de museus de arte popular devido à

“grande ascensão do movimento folclorista no país” no ímpeto de formação da identidade

nacional, como observado anteriormente. Assim o museu de Arte popular da FIFB não foi um

fato isolado no nordeste, no período. (VIANA, 2005: 137).

A coleção de artes decorativas, que hoje compõe o que se convencionou tratar de Museu

Henriqueta Catharino, é formada por mobiliário, cristais, porcelanas, opalinas, prataria,

pinturas, gravuras e, sobretudo, por uma diversidade de peças artesanais denominadas, segundo

Machado, “artes menores”19. Essas são elaboradas com penas, conchas, tecido, papel, folhas

secas e cabelos colocados em redomas ou molduras ovais com vidros abaulados20. A partir

dessa classificação, a coleção de quadros de cabelos retirados de defuntos ilustres para a

ornamentação da peça é inserida nas artes decorativas do Museu Henriqueta Catharino, pois

embora avaliados como “trabalhos artesanais”, considerados de menor valor artístico à época,

simbolizam a memória dos mortos da mesma aristocracia tão bem representada nos amplos

salões e salas do Museu.

No cerne da discussão, os quadros de cabelos, sobretudo os que apresentam

monogramas como principais motivos ornamentais estariam simbolicamente relacionados à

submissão da mulher em relação ao homem? O monograma, conforme interpretado, é sempre

composto pelas iniciais do nome do homem e está associado à relação de poder que este exercia

sobre a mulher.

De acordo com os nossos conhecimentos sobre o acervo da FIFB21, em sua totalidade,

podemos considerar que os monogramas são encontrados em quase todas as peças que

compõem os enxovais de casamentos, sejam nas fronhas, lençóis, toalhas e roupas íntimas,

predominantemente brancos em representação à pureza da noiva, ou nas baixelas em porcelana

e objetos decorativos que compunham os aparelhos e salas de jantar do século XIX até as

primeiras décadas do século XX.

Na coleção formada por 40 quadros de cabelos, verificou-se que algumas peças

continham cabelos retirados da esposa e dos filhos para homenagear o patriarca falecido,

externando uma renúncia da família órfã à vida social. Por outro lado, verificou-se também que

as peças produzidas na Bahia, tanto em Salvador como em Santo Amaro da Purificação,

19 Na historiografia da arte do século XIX/XX convencionou-se tratar como “artes menores” a produção

artesanal eclética que invadiu os Salões do Segundo Reinado Brasileiro, numa referencia clara aos modos

vitorianos, copiado da Rainha Vitória (1837-1901) que exerciam forte influência sobre o reinado de Luís XVI da

França e sobre 1/3 do mundo ocidental ou ocidentalizado. Segundo definição de Argan, eram classificados como

“artes maiores” a arquitetura, escultura e a pintura que exigiam um momento indutivo ou intuitivo na produção,

enquanto as “artes menores” referiam-se a todos os gêneros de artesanato, que exigia apenas um momento

executivo, mecânico. In. ARGAN, Giulio Carlo. Guia da História da Arte. Europa: Lisboa, 1992. 20 Convexos. In. MAGALHÃES, Paulo A. C. 21 A autora foi coordenadora técnica dos museus da Fundação Instituto Feminino da Bahia de 2005 a 2010.

contaram de fato com as mãos femininas na feitura, bem como a maioria das peças produzidas

no Rio de Janeiro.

Figura 16 e 17: Quadros de cabelos da coleção da FIFB, o segundo com monograma “A.S”, 1885, 10,0 x 8,2cm,

doação de Henriqueta Martins Catharino. Fotos: Péricles Mendes.

Segundo o texto sem autoria, em exposição junto aos quadros de cabelos até 2005 na

FIFB, “a escumilha é um atestado eloquente da perícia dos dedos femininos e da veneração

tributada aos mortos no final do século XIX, mimos que falam de ternura e saudade”. Poder-

se-ia afirmar que à mulher cabia o manuseio e produção das “artes menores”22? Segundo Zanini,

até meados do século XIX, as “artes menores” se referiam à produção artesanal e às artes

decorativas, para a qual bastava possuir habilidades manuais, enquanto as “artes maiores”

estavam relacionadas à pintura, escultura e arquitetura que exigiam pensamento intelectual para

o processo criativo.

A discussão referente a “artesanato” versos “arte” foi travada por Jancileide Santos

(2013: 30-36) que nos esclarece que “o valor que é dado aos objetos artesanais está relacionado

com a organização social do lugar em que ele é produzido [...] de maneira que a produção de

arte e artesanato vai ser definida como bela, feia, utilitária ou ruim pela imposição de grupos

22 ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. 2 v., Il.

sociais na luta pela dominação cultural”. Poder-se-ia aqui considerar também uma imposição

pela dominação de gênero? Por ora importa-nos considerar a relevância da existência de uma

coleção inteira, como é a da FIFB, formada a partir do olhar feminino, em uma sociedade onde

prevaleciam os símbolos de poder masculino.

A coleção de artes decorativas certamente é aquela considerada nobre pela FIFB, desde

a inauguração do museu até gestões museológicas atuais, ocupando a maior parte dos halls,

salões e salas do térreo e 1º andar, já que foi à esta coleção, e não à de arte popular ou trajes e

têxteis, que coube manter a homenagem em memória da fundadora. Contudo, percebe-se uma

hierarquização de acervo dentro dela mesma. As “artes menores”, passada a era vitoriana, são

peças de menor visibilidade do que o mobiliário em jacarandá, os cristais bacarrat e as

porcelanas francesas ou inglesas.

A contextualização das salas com esse acervo em exposição remonta a um solar de

família baiana do período de transição entre os séculos XIX e XX, apesar da FIFB ter sido

escola para moças e nunca residência de família baiana. Segundo Suely Cerávolo (2011), “no

fluxo da modernização do século XIX e do início do XX, a elite baiana empenhou-se em criar

instituições representativas da cultura” e, com essa narrativa, aproxima-se do “culto à tradição”,

“no sentido de enaltecimento de pessoas e eventos exemplares no contexto de uma certa ideia

de imortalidade conferida a eles pelos museus, muitas vezes, através das coleções doadas”.

O enaltecimento “suprapessoal”, segundo Rosane Pasione (2011), depende sempre de

uma escolha de insistir no indivíduo que residiu ou dedicou parte de sua vida à casa, em

detrimento da construção de narrativas voltadas para temas sociais ou culturais de determinados

períodos históricos ou de reflexões sobre categorias profissionais ou identidades locais.

Segundo as categorias estabelecidas para tipologização dos Museus Casas23, o Museu

Henriqueta Catharino poderia se enquadrar como “casas de colecionadores”, ou “casas

dedicadas a pessoas ilustres”, ou “casas testemunhas de histórias familiares”, ou “casas

dedicadas a história de determinados grupos sociais”. Uma diversidade de leituras possíveis.

23 O Comitê Internacional de Museus - Cenas Históricas foi criado em São Petersburgo em 1999 para o projeto

de classificação das tipologias de museus-casas. A proposta surgiu antes, em 1997, na Conferência Internacional

de Gênova chamada “Morar na História”. (PASIONE, R. 2011).

O diferencial da formação da coleção da FIFB pode estar na peculiaridade dos objetos

eleitos para o acervo, a maioria deles através de doações feitas pelas senhoras baianas,

estimuladas por Henriqueta para atuar socialmente, enquanto os museus e espaços dedicados à

memória criados na Bahia e também em outros locais no Brasil, no mesmo período, enfocavam

os grandes feitos históricos representados por bandeiras, troféus, numismática, moedas, armas,

medalhas, fardões, condecorações, títulos e comendas, como é o caso do Museu do Estado da

Bahia. (CERÁVOLO, 2011).

Esses objetos representativos de fatos históricos, na maioria das vezes evidenciando

guerras e política, estão fortemente relacionados ao universo masculino, como o próprio ato de

colecionar que, neste caso, tem sentido de acúmulo de bens do que de cuidar, preservar. Nesse

sentido, talvez a FIFB tenha sido vanguardista no que se refere ao olhar feminino sobre a cultura

material a ser preservada pelos museus e sobre a formação de uma coleção, o que não significa

que a leitura sobre essa cultura material proponha uma subversão de ordem ou modificações

estruturais na sociedade baiana. Preferimos manter a noção de que é um museu feito por

mulheres, para mulheres e de mulheres, uma vez que o universo feminino é colocado como

questão central de suas ações, da Escola ao Museu.

Considerações finais

A discussão sobre gênero permeia esse trabalho, sobretudo pela procedência da coleção

inserida no acervo da FIFB que, na sua trajetória histórica, está associado à promoção da mulher

baiana através da educação formal e formação profissional e espiritual, na perspectiva de

emancipação feminina. Ademais, a especificidade do olhar feminino sobre a sociedade que

elegeu os itens a serem preservados na coleção da FIFB objetivava a formação da identidade

baiana que neste caso inclui a possibilidade de leitura da experiência social da mulher naquela

(e como resquícios nesta) sociedade.

Cabe ainda um aprofundamento sobre a figura de Henriqueta Martins Catharino e o seu

papel no processo de emancipação feminina, uma vez que suas formas de atuação a favor da

mulher se davam por vias adversas, já que, como observou Viana, cabia à Escola, através do

Museu e de suas exposições, proporcionar às alunas experiências para a “formação como

mulher, esposa e cristã”, dentre as quais, aprender “maneiras apropriadas ao seu comportamento

no espaço público e privado”. (VIANA, 2002: 136). Essas diretrizes se configuram de fato

como feminismo, à época?

Vale lembrar que o movimento de emancipação da mulher já estava em curso, sobretudo

na Europa, desde finais do século XIX, acentuando-se significativamente durante a Primeira

Guerra Mundial, quando a mulher passa a assumir posições no mercado de trabalho em

substituição aos homens. Dessa forma, a escola para mulheres não seria uma maneira de aderir

a um processo inevitável de forma mais contida ou mantenedora da estruturação social que

impunha hábitos domésticos e cristãos como parte da boa conduta feminina? Ainda segundo

Viana, o Museu de Arte Antiga, “procurava destacar o espaço privado das classes superiores: o

espaço do lazer, dos passatempos, das festas e das devoções religiosas”, de modo a representar

o “antigo” e não o “presente” o que fica evidente nas palavras da própria Henriqueta em sua

carta aberta que invocava a conservação de objetos relacionados ao universo feminino do

passado. (VIANA, 2002: 134).

Desde os princípios de criação da FIFB, Henriqueta Catharino tinha em mente a criação

de um museu no espaço da escola como uma complementação educacional na formação das

alunas. Embora o museu tenha se expandido e tomado todo o edifício que abriga a FIFB, a

perspectiva educacional sempre esteve presente nas missões institucionais caracterizadas ao

longo da sua existência. Em 2006, Peixoto24 redefiniu sinteticamente a missão institucional para

“educar e instruir sobre todos os aspectos”, inclusive os artísticos, através do museu, e os

espirituais, através do Centro de Fé e Cultura, mantido até os dias atuais como pilar religioso

da Fundação, que realiza cursos livres de filosofia e artes.

24 A informação foi adquirida através do Plano Diretor da FIFB de 2009, elaborado por Ana Lucia Uchoa

Peixoto, diretora da FIFB no período em tela. O Plano Diretor da FIFB é revisado de quatro em quatro anos e é

submetido à aprovação do Conselho Curador formado por sete membros da sociedade civil e presidido pelo

Arcebispo de Salvador.

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