De Mauss a Levi-Strauss

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Patrice Maniglier

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  • DOI: 10.11606/issn.2316-9133v22i22p163-179

    resumo: desde o clebre artigo de Merleau-Ponty, De Mauss a Claude Lvi-Strauss, a maneira como se avalia a relao entre estes dois autores determi-na ou exprime tanto as interpretaes histricas do estruturalismo e as posies tericas ou flosfcas subsequentes, quanto as cincias sociais. Essa flia-o se pretendia uma crtica: ser fel descoberta de Mauss sobre o carter central da reciprocidade impunha ultrapassar a sociologia rumo a uma se-miologia geral. Este artigo quer mostrar que no se trata, contrariamente sutil interpretao de Mer-leau-Ponty, de fazer da realidade social um sistema de pontos de vista substituveis ou de movimentos correlatos de subjetivao, mas de mostrar que so os valores que, por sua natureza, sua ontologia, devem necessariamente circular entre muitos pon-tos de vista exclusivos e complementares. O artigo revisita a clebre crtica de Lvi-Strauss a Mauss a respeito da explicao da obrigao de dar por uma fora das coisas, e reposiciona a contribuio da antropologia estrutural dentro da flosofa do es-prito contemporneo, ali onde ela se confronta s questes abertas pela fsica sobre a ontologia dos objetos qunticos.

    Abstract: Since Merleau-Pontys famous paper De Mauss Claude Lvi-Strauss, the way the

    De Mauss a Claude Lvi-Strauss, cinquenta anos depois: por uma ontologia Maori

    patRice maniGlieRUniversit Paris-Ouest Nanterre La Dfense, Paris, Franatraduo: ian pacKeRcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Paris, Franareviso tcnica: nicoDme De RenesseUniversidade de So Paulo, So Paulo, So Paulo, Brasil

    link between these two authors has been construed determine or reveal as many historical interpreta-tions of structuralism as philosophical and theore-tical choices about social sciences. We know that this vindicated kinship was supposed to be critical: being faithful to Mausss discovery, that of the cen-trality of reciprocity in social life, compelled us to overcome sociology in the direction of a general semiology. Tis paper, in opposition at Merleau--Pontys subtle interpretation of this move, tries to show that it was not aimed at a redefnition of social reality as a system of substitutable points of view and correlated movements of subjectivation, but at the idea that valeurs themselves, because of their very nature, of their ontology, necessarily cir-culate between various exclusive and complemen-tary points of view. Lvi-Strausss famous critique of Mausss explanation of the obligation to give because of a power in the things, is reconsidered from this interpretation, and the benefts of struc-tural anthropology for contemporary philosophy appear to be promising in dialogue with the proble-ms raised in the philosophy of physics about quan-tum mechanics ontology.

    De Mauss a Claude Lvi-Strauss: movi-mento natural ou passo forado? Mal caminho a ser evitado ou salutar continuao de uma verdade ameaada por sua prpria expresso?

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    O debate foi lanado por Merleau-Ponty1 h mais ou menos 50 anos. Ainda hoje, ele con-tinua a existir: seria possvel at mesmo dizer que toda a refexo flosfca sobre as cincias sociais, na Frana do ps-guerra, e as diferen-tes correntes tericas nessas disciplinas, so diferentes respostas essa pergunta2. que ela diz respeito, claro, interpretao e avaliao que se faz do estruturalismo. Como Merleau-Ponty compreendeu imediatamente, se quisssemos descrever o estruturalismo em antropologia no a partir de sua doutrina, mas a partir de sua histria, como acontecimento e no como sistema, nessa passagem que preciso apreend-lo. notvel que os nume-rosos crticos do estruturalismo tenham to frequentemente se empenhado em recolocar o ponto de partida contra o ponto de chegada. O fato claro: para nosso deleite ou lamen-tao, a clebre Introduo obra de Mar-cel Mauss (LVI-STRAUSS, [1950] 2003) , na verdade, um convite ao estruturalismo. O proveito dessa operao parece claro, mas estaramos errados se julgssemos se tratar apenas de apropriao de uma herana. Pois, na realidade, trata-se explicitamente de uma crtica. Ser fel descoberta de Mauss sobre o carter central da reciprocidade na vida so-cial, supe ultrapassar a sociologia em direo a uma semiologia geral. Essa ultrapassagem, no entanto, pode e foi diversamente interpre-tada: a esta correspondem as diferentes esco-lhas radicais no apenas sobre o sentido que preciso dar ao acontecimento estruturalista na histria do pensamento antropolgico, mas tambm sobre as questes fundamentais das cincias humanas.

    A leitura de Merleau-Ponty no tem por nico mrito ser a primeira: uma das raras leituras a evitar os dualismos artifciais e, em particular, a no fazer uso da oposio frontal e caricatural entre objetivismo e subjetivis-

    mo, que continua a dar s discusses em torno do estruturalismo o triste aspecto de um di-logo de surdos. Voltando, contudo, cinquen-ta anos depois, a essa leitura, gostaramos de mostrar aqui que, contrariamente quilo que Merleau-Ponty sugeria, no se trata para Lvi--Strauss de afrmar que a realidade social nun-ca uma coisa, mas somente um sistema de pontos de vista substituveis, de movimentos correlatos de subjetivao, mas, ao contrrio, que so os valores que, devido sua natureza, ao seu modo de existncia, devem necessaria-mente circular entre vrios pontos de vista ex-clusivos e complementares.

    Trata-se de apresentar as regras sociais como tantas maneiras nas quais se determi-nam, em sua existncia, estas entidades es-tranhamente paradoxais que so os valores, formas primitivas dos signos. No so os ho-mens, se podemos dizer, que fazem os valo-res, mas os valores que fazem os homens... E nisso que Lvi-Strauss reencontra a intuio original de Mauss, a saber: que o dom supe uma propriedade da prpria coisa. Assim, sur-ge uma outra histria do estruturalismo: no a descoberta de uma funo cognitiva que sustentaria os fenmenos culturais, as lnguas, as regras de parentesco ou mitologias, mas a descoberta do problema ontolgico que colo-cam as manifestaes simblicas. Uma tal su-perao da psicologia da funo simblica em direo a uma ontologia dos valores, que Lvi--Strauss frequentemente designa como a fna-lidade de sua empreitada e cujos problemas, ns veremos, apresentam notveis analogias com aqueles que encontra uma flosofa da f-sica, tambm ela inspirada em Merleau-Ponty , parecer talvez desenvolver em excesso al-gumas das indicaes parciais de Lvi-Strauss. Mas talvez seja justamente por esse excesso que ns podemos ser fis, por nossa vez, a um pensamento que nunca teve medo deste livre

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    devaneio que ele tambm chama de floso-fa (LVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 619), e que continuemos a nos instruir na agudez do pensamento de Merleau-Ponty...

    1. As ambiguidades da reciprocidadeLvi-Strauss socilogo?

    As estruturas elementares do parentesco visto como um grande livro de sociologia. A proibio do incesto, ouvimos ainda aqui e ali, ao obrigar as descendncias biolgicas a se abrirem s alian-as sociais, instituiriam uma totalidade nova que no mais dada na natureza, mas construda coletivamente. O texto de Lvi-Strauss parecia justifcar essa leitura: O papel primordial da cultura garantir a existncia do grupo como grupo (LVI-STRAUSS, [1949] 2010, p.72)3. Ou ainda esta frase quase conclusiva: As mlti-plas regras que probem ou prescrevem certos ti-pos de cnjuges, e a proibio do incesto que as resume, esclarecem-se a partir do momento em que se estabelece ser necessrio que a sociedade exista (LVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 530). Lvi-Strauss teria ento retomado de Mauss a tese segundo a qual a essncia da vida social no est na experincia de pensamentos, afetos ou aes idnticos, como parecia diz-lo Durkheim, mas na reciprocidade de prestaes que podem ser diferentes, condio que sejam comple-mentares: a totalidade social no , portanto, uma unidade transcendente, mas um sistema organizado onde atos unilaterais se respondem uns aos outros. Ele teria aplicado essa tese ao pa-rentesco, e teria mostrado que as regras particu-lares (casar com a prima cruzada, evitar a sogra, etc.) se explicam e se articulam como peas que permitem montar um sistema de obrigaes re-cprocas cuja nico imperativo se fechar. Ele evidencia assim ciclos de reciprocidade matri-moniais, essa circularidade defnindo a maneira

    segundo a qual o grupo se constitui enquanto tal. A palavra estrutura signifcaria aqui so-mente: princpio de totalizao de um conjunto. Quanto ideia que a vida social seja simblica, essa signifcaria simplesmente que a troca no se explica nem pela necessidade de cooperar nem por sentimentos psicolgicos supostamente uni-versais, tais como o horror do incesto, mas pela vontade de afrmar a existncia do lao social enquanto tal: o presente um sum-bolon, ga-rantia da aliana. A causalidade social subverte, portanto, as causalidades naturais ou psicolgi-cas. E nisso, a ultrapassagem de Durkheim por Mauss teria sido apenas uma maneira de lhe ser fel, pois ela permite compreender que a realida-de social moral, e no biolgica.

    Entretanto, esta interpretao incorreta, e o prprio texto de 1949 o dizia claramente. As-sim, mal Lvi-Strauss havia afrmado que tudo se explica quando se estabelece que preciso que a sociedade exista, ele complementava:

    Mas a sociedade teria podido no existir. No teremos, portanto, julgado ter resolvido um problema seno para atirar todo seu peso so-bre outro problema, cuja soluo aparece ainda mais hipottica que aquela que nos dedica-mos exclusivamente? (LVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 561-562).

    Segue uma dessas passagens prprias ao fer-vor terico de Lvi-Strauss, onde se descobre que as mulheres so signos, que o signo por nature-za algo que circula, e que compreender a ori-gem da sociedade compreender a emergncia do pensamento simblico (LVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 569). isso que a Introduo repetir, dessa vez explicitamente contra Mauss, propondo uma outra interpretao da noo de reciprocidade: Mauss julga ainda possvel elaborar uma teoria sociolgica do simbolismo, quando preciso evidentemente buscar uma ori-

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    gem simblica da sociedade (LVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 22). preciso entend-lo literal-mente: no porque trocamos as coisas que damos sentido a elas, mas porque ns damos sentido a elas que as trocamos. E se os fenmenos de parentes-co apresentam uma certa estrutura, no por-que eles esto no fundamento do metabolismo social, mas porque se trata de uma propriedade de toda atividade signifcante. porque damos sentido ao ato de se casar, aos parceiros que nele se envolvem, s crianas que nascem atravs dele, que nossos atos matrimoniais obedecem um imperativo de reciprocidade4. As estruturas de parentesco evidenciadas ao longo de todo o livro so procedimentos lgicos, e exatamente essa a razo pela qual elas podem se encontrar em so-ciedades que nunca estiveram em contato: elas representam possibilidades do esprito, solues diversas graas s quais os seres humanos do sentido realidade. Alm disso, a troca no o nico domnio onde se pode ver essas estruturas operando: Lvi-Strauss reencontrar no estudo dos mitos, na cosmologia, essas frmulas do es-prito humano, das quais se trata idealmente de ter um catlogo sufcientemente completo para que se possa propor uma teoria geral dos fatores elementares da funo simblica5.

    Uma dialtica da subjetividade?Entretanto, essa retifcao ela mesma

    ambgua, e essas ambiguidades daro espao a interpretaes divergentes do estruturalismo. De fato, identifcar sociologia e teoria da co-municao algo que pode ser feito no senti-do de Norbert Wiener, que Lvi-Strauss cita expressamente6: a comunicao ento uma consequncia entre outras de um certo modo de organizao ou de construo de sistema, de um certo tipo de mquina, a mquina cibern-tica, caracterizada inclusive pelo clebre ciclo de retroalimentao. Mas fca claro, ento, que se considera a sociedade como uma verdadei-

    ra entidade, pertencente a uma fsica ampliada, reabrindo assim os deleites da metfora organi-cista na qual as teorias dos sistemas e da comple-xidade se precipitaro impetuosamente7. Ora, sabemos que foi precisamente contra esse orga-nicismo (representado especialmente por Spen-cer) que Durkheim havia construdo ao mesmo tempo sua flosofa social e seu mtodo, redef-nindo os fatos sociais como representaes e a sociedade como uma realidade moral. por essa razo que Merleau-Ponty, procurando inscrever Lvi-Strauss na tradio sociolgica francesa e apresentar essa ltima como um superao da sociologia hermenutica alem de Weber e Dil-they, props uma interpretao diametralmente oposta do estruturalismo, que encontra nele os meios de defnir o objeto das cincias humanas no como uma coisa real, mas como o conjun-to das condies que permitem a um sujeito se abrir a outrem em outras palavras, de nunca ser unicamente aquilo que ele . O estruturalismo, como ele mostra substancialmente, e de forma contrria uma leitura ainda hoje bastante di-fundida, admite que o socilogo, o psiclogo, o linguista, no procurem explicar os comporta-mentos observveis por meio de leis causais ob-jetivas que exerceriam seus efeitos revelia dos atores, mas compreender o sentido que os atores do eles prprios quilo que fazem e que a verdadeira razo de seus comportamentos. En-tretanto, Merleau-Ponty defne o sentido no como representao consciente (por exemplo, o motivo admitido) que acompanha a execu-o de um ato, mas como a possibilidade para um outro de se colocar no lugar do sujeito. Se aquilo que eu fao tem sentido, porque um outro teria feito a mesma coisa em meu lugar, em outras palavras, porque eu poderia ser um outro. Portanto, na medida em que eu me introduzo em um sistema que articula pontos de vista parciais (no duplo sentido deste ltimo termo), de modo que se possa passar de um a

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    outro de forma regrada, que eu sou um sujeito e que meus atos so, no comportamentos de-terminados por causas objetivas mas, antes de tudo, expresses subjetivas. Fica claro, a partir de ento, que eu no sou depositrio do sen-tido daquilo que eu digo. A tarefa do soci-logo ou do etnlogo estaria cumprida se ele pudesse reconstruir as diversas modalidades de intersubjetividade, e Merleau-Ponty bastante prudente quanto ao projeto de uma cincia das estruturas universais do esprito humano. Um sistema simblico no uma totalidade real, composta de partes objetivas e onde cada ato se encadearia com outros de maneira funcional como as engrenagens de uma vasta mquina social, mas um sistema de pontos de vista sub-jetivos reversveis ou convertveis uns nos outros, exatamente no sentido em que Bergson defnia a noo de totalidade simblica (BERGSON, 1934, p. 190-195). A reciprocidade no aqui-lo que fecha uma sociedade sobre ela mesma, mas aquilo que abre cada indivduo a outrem. Melhor: um sujeito apenas uma instncia divi-dida pela possibilidade de ser outro: nunca uma coisa, sempre um ponto de vista, nem mesmo sobre um objeto exterior, mas sobre aquilo que ele poderia se tornar.

    2. O ser daquilo que se dA natureza contraditria do objeto pensado

    Essa leitura se inscreve de maneira coerente na flosofa de Merleau-Ponty que, poderamos dizer grosseiramente, deseja seguir o movimen-to do Husserl tardio, buscando a origem do sentido no mais na conscincia, mas na in-tersubjetividade, colocando, por assim dizer, a possibilidade do Outro antes da possibilidade da conscincia. Entretanto, inteiramente ab-sorvida pela sua vontade de mostrar que a vida social no uma realidade objetiva, mas uma

    intersubjetividade viva e constituinte de todo objeto (mesmo que fosse o objeto do prprio antroplogo), a interpretao de Merleau-Pon-ty, possivelmente, passa ao largo das intuies mais promissoras nas quais Lvi-Strauss enca-minhava no apenas a antropologia, mas tam-bm a flosofa. Com efeito, mais tarde, em O homem nu ([1971] 2011), Lvi-Strauss, re-tomava o problema da origem simblica, no mais do parentesco, mas dos mitos, e conclua:

    a questo da gnese do mito se confunde, por-tanto, com a do prprio pensamento, cuja ex-perincia constitutiva no a de uma oposio entre o eu e o outro, mas do outro aprendido como oposio. Na falta dessa propriedade in-trnseca a nica, na verdade, absolutamente dada nenhuma tomada de conscincia consti-tutiva do eu seria possvel. No sendo apreens-vel como relao, o ser equivaleria ao nada. As condies de surgimento do mito so, pois, as mesmas daquela de todo pensamento, j que esse no poderia ser seno pensamento de um objeto, e um objeto s o , por mais simples e despojado que se o conceba, pelo fato de constituir o su-jeito como sujeito e a prpria conscincia como conscincia de uma relao (LVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 539-540, grifo meu).

    Antes da subjetividade, h, portanto, uma certa apreenso do objeto enquanto oposio. Se h dupla constituio da subjetividade e da objetividade, essa se deve ao prprio modo do objeto, a seu carter opositivo. Ora, sabe-se que essa propriedade era precisamente aquela pela qual Saussure defnia o signo. Assim, no por-que ns vivemos para o outro que ns percebe-mos a realidade exterior e nossos prprios atos sob um modo simblico; ao contrrio, por-que ns percebemos a realidade como simblica que ns ocupamos um lugar enquanto sujeitos em um sistema de pontos de vista reversveis.

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    Outras formulaes presentes na mesma passa-gem no deixam nenhuma dvida:

    Esse ser do mundo consiste numa disparidade. No se pode simplesmente dizer do mundo que ele ; ele na forma de uma assimetria primeira, que se manifesta diversamente conforme a pers-pectiva adotada para apreend-lo: entre alto e baixo, cu e terra, terra frme e gua, perto e lon-ge, esquerda e direita, macho e fmea, etc. Esta disparidade inerente ao real pe em marcha a es-peculao mtica porque condiciona, aqum do pensamento, a existncia de todo objeto de pensa-mento (LVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 581).

    Os sistemas simblicos, antes de serem con-fguraes intersubjetivas instveis, so mo-dos de elaborao do real (LVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 581).

    Podemos nos perguntar se essas consideraes puramente especulativas tm algum interesse, para alm dos prazeres necessariamente suspeitos oferecidos pela flosofa, aqueles precisamente do pensamento que se inebria com suas prprias pos-sibilidades e sacrifcar toda consequncia empri-ca. Desconfana legtima, da qual Lvi-Strauss, por sua vez, nunca se desfez, ele que se satisfazia de ter conservado de seus estudos de flosofa ape-nas certas convices toscas, e de no correr o risco de ser enganado por sua complicao inter-na, nem de esquecer sua fnalidade prtica para me perder na contemplao de sua maravilhosa organizao (LVI-STRAUSS, [1955] 1996, p. 50). Acontece, contudo, que essas considera-es concernem a interpretao que devemos dar a noes como mana, hau, etc., e que dizem respeito ao segundo grande movimento da ultra-passagem de Mauss proposta por Lvi-Strauss. Contra Mauss, Lvi-Strauss escrevia:

    A troca no um edifcio complexo, construdo partir de obrigaes de dar, de receber e de

    retribuir, com o auxlio de um cimento afetivo e mstico. uma sntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simblico que, na troca como em qualquer outra forma de comunica-o, supera a contradio que lhe inerente de perceber as coisas como os elementos de um dilogo, simultaneamente relacionados a si e a outrem, e destinadas por natureza a passarem de um a outro [grifo meu]. Que elas sejam de um ou de outro, representa uma situao derivada em relao ao carter relacional inicial (LVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 40).

    Em outras palavras, a prpria modalidade do objeto considerado como valor, riqueza ou bem, o tipo de objeto percebido que ele , que faz que ele s possa ser concebido como devendo ser repartido entre mltiplos pontos de vista. a natureza do signo que implica uma dupla apre-enso subjetiva, e no sua funo intersubjetiva que determina sua natureza. Longe, portanto, de propor uma gnese do valor partir do fato da reciprocidade, Lvi-Strauss prope uma gnese da reciprocidade partir dos caracteres particu-lares daquilo que os fenomenlogos chamariam de constituio objetiva do valor como forma primordial do signo8. Se preciso buscar uma origem simblica para a sociedade, porque o pensamento fabricado de tal maneira que ele recorta objetos que tm um carter intrinseca-mente duplo ou dividido, e que fazem em si prprios, consequentemente, a sntese entre dois pontos de vista subjetivos e incompatveis.

    A diviso do signoPara compreend-lo, preciso retornar de-

    fnio do signo. Um erro persistente apresenta a inveno da semiologia como uma extenso a outras atividades humanas que no a lingua-gem - como os hbitos indumentrios, as len-das, etc. -, da ideia segundo a qual elas servem para comunicar e exigem, consequentemente,

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    que se separe nelas o cdigo social das perfor-mances individuais. Na realidade, a grande descoberta de Saussure ter chamado a ateno sobre um fato, que s ser confrmado expe-rimentalmente algumas dcadas mais tarde, e que concerne o tipo de objeto que o prprio signo, independentemente de toda hiptese so-bre sua funo. Com efeito, a identidade de um signo, por exemplo senhores, repetido muitas vezes ao longo de uma conferncia (SAUSSU-RE, 1972, p. 152) no como a identidade de um objeto fsico qualquer (mesa, molcula). Entre diversas ocorrncias do mesmo signo em meu discurso, h variaes de pronncia (r-pida, lenta) e de signifcado (irnico, elogioso, etc.) to importantes que impossvel defnir um retrato do signo retendo apenas as seme-lhanas empricas. Gravaes experimentais mostraro que duas ocorrncias de um mesmo signo podiam ter nenhuma propriedade posi-tiva (por exemplo, de frequncia) em comum (JAKOBSON, 1976). Saussure levanta a hi-ptese de que somente as correlaes entre as diferenas sobre os dois planos heterogneos (signifcante e signifcado) so constantes: uma variao sobre um plano implica uma outra va-riao, sobre um outro plano. Assim, um sig-no defnido no por propriedades positivas, mas por diferenas pertinentes, que permitem distingui-lo entre todos os outros possveis, e no possui outra identidade se no negativa. Se preciso defnir um signo no por aquilo que ele representa (crtica da teoria da lngua como nomenclatura), mas pela posio que ele ocupa em um sistema de sries de diferenas, isso se d no em virtude de uma tese sobre a natureza da signifcao, mas porque no h outra soluo para se identifcar o objeto que um signo: o signifcante de senhores no a realidade so-nora registrvel, mas um conjunto de critrios que permitem simplesmente perceb-lo...

    Ora, Lvi-Strauss redefne a antropolo-

    gia como uma disciplina semiolgica (LVI--STRAUSS, [1973] 2010, p. 19) precisamente porque os objetos com os quais o antroplogo lida apresentam esta mesma caracterstica de no se confundirem com sua aparncia empri-ca, ou ainda, porque a identidade das diferentes realizaes de um signo no depende de suas semelhanas observveis, mas da conservao de uma certa distribuio das oposies. Assim, o que aparece em um mito como o mocho, pode se revelar uma variante daquilo que aparece em um outro mito como uma guia, se esta pas-sagem de um animal do dia a um animal da noite se acompanhar sistematicamente de um conjunto de outras inverses de valores opon-veis que afetam o contexto, por exemplo sobre o eixo do bem e do mal, da natureza e da cul-tura, etc. Estas transformaes correlatas fazem aparecer um sistema de compatibilidades e de incompatibilidades (LVI-STRAUSS, [1973] 2010, p. 162), que s conservado atravs des-sas variaes. Um signo , portanto, defnido no por sua qualidade substantiva, mas pela distribuio das oposies que ele atualiza: no importa que o trao A seja + ou -, contanto que se possa mostrar que, quando ele +, o trao B -, e que, inversamente, quando ele -, o trao B ser +. Ainda que de maneira limitada, per-tence assim ao signo poder ser outro, e no ter outra identidade que no a de sua posio em um grupo de substituies que opera com opo-sies distintivas de natureza bastante varivel (alto/baixo, cozido/cru, etc.). O pensamento simblico, antes de ser um meio para comuni-car signifcaes, uma maneira de organizar a realidade sensvel, que revela entidades que no correspondem a nenhuma invarincia substan-cial e que tm a propriedade de serem idnticos sob (ao menos) duas relaes diferentes: com efeito, basta inverter conjuntamente os valores dos parmetros (alto ou baixo, etc.) para pro-duzir o mesmo signo. Ou melhor: um signo s

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    pode se atualizar de maneira parcial, remeten-do a uma atualizao complementar, onde as correlaes das oposies distintivas so inver-tidas de maneira simtrica. Se uma estrutura um sistema de pontos de vista recprocos, porque um signo sempre dividido e s pode ser apreendido parcialmente, relativamente a outros termos com os quais ele entretm rela-es de simetria invertida. neste sentido que Lvi-Strauss, ao afrmar na Introduo que a troca apenas uma maneira de superar a con-tradio que faz perceber as coisas como ele-mentos de um dilogo, e que suas atualizaes parciais eram derivadas em relao ao car-ter relacional inicial, dava este exemplo:

    o juzo mgico, implicado no ato de produzir fumaa para suscitar as nuvens e a chuva, no se baseia numa distino primitiva entre fumaa e nuvem, com o apelo ao mana para sold-las uma outra, mas no fato que um plano mais profundo do pensamento identifca fumaa e nuvem, de que um a mesma coisa que o outro, ao menos sob certo aspecto, e esta identifcao justifca a associao subsequente, no o contr-rio (LVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 41).

    Ocorre o mesmo com o parentesco e, de ma-neira geral, com as estruturas sociais. Se as mu-lheres so valores, porque elas so atravessadas por uma oposio, entre mulheres adquiridas (esposas) e mulheres cedidas (irms e flhas), de forma que as ltimas so necessariamente com-plementares s primeiras, e que elas constituem juntas uma estrutura, isto , um sistema de in-verses de valores: passando das esposas s flhas, as atitudes se invertem; em outras palavras, h correlao entre as transformaes, exatamente como nos mitos. Pode-se dizer, entretanto, que elas atualizam o mesmo signo, no sentido em que o signo s defnido por essas correlaes entre as oposies: um ato da conscincia, primitivo

    e indivisvel, que faz apreender a flha ou a irm como um valor oferecido e, reciprocamente, a flha e a irm de outrem como um valor exig-vel (LVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 162). a constituio de diferentes mulheres como sig-nos, isto , como atualizaes necessariamente complementares umas das outras, que introduz a reciprocidade e que, consequentemente, est na origem da vida social, eu e outrem ocupando os lugares determinados pelo sistema das atualiza-es possveis do signo:

    Nosso esquema de interpretao [...] implica so-mente que as mulheres sejam consideradas como valores [...] e a apreenso, pela conscincia indivi-dual, de relaes recprocas do tipo: A est para B assim como B est para A. Ou ainda: se A est para D assim como B est para C, C deve estar para D como B est para A [...]. A aquisio da capacidade de apreender essas estruturas levanta um proble-ma, mas um problema psicolgico e no socio-lgico (LVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 172).

    Dito de outra forma, a troca um efeito entre outros de mecanismos psicolgicos ou lgicos que no podem funcionar sem in-duzir mecanicamente, por assim dizer, a cons-tituio destes objetos paradoxais que so os signos ou os valores. No , portanto, a inter-subjetividade ou a dialtica do reconhecimen-to que vem primeiro, mas esse modo singular de constituio dos objetos percebidos pelo pensamento simblico que, em razo de sua arquitetura, induz

    a contradio que fazia perceber a mesma mulher sob dois aspectos incompatveis: de um lado, ob-jeto de desejo prprio e, por conseguinte, exci-tante dos instintos sexuais e de apropriao; e, ao mesmo tempo, sujeito, percebido como tal, do desejo de outrem, isto , meio de lig-lo aliando--se (LVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 536).

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    Talvez pudssemos mesmo dizer que o ob-jeto do desejo essencialmente o objeto do desejo do outro9. Contudo, no porque o de-sejo seria constitutivamente tomado em um tringulo intersubjetivo, mas porque tanto eu quanto outrem somos constitudos de tal ma-neira que ns percebemos um objeto em si de-sejvel, isto , duplamente desejvel, piscando interminavelmente entre duas interpretaes exclusivas e complementares. Realmente, estra-nho objeto esse... A mesma mulher percebida como dvida por um grupo e crdito por um outro. A troca permite repartir, por assim dizer, esta contradio, a oposio do eu e do outro distribuindo a oposio constitutiva do prprio valor... A dialtica no do sujeito, mas do objeto:

    Como no caso das mulheres, o impulso original que levou os homens a trocar palavras talvez devesse ser buscado numa representao des-dobrada, ela mesma resultante do surgimento primeiro da funo simblica? Assim que um objeto sonoro apreendido como portador de um valor imediato, ao mesmo tempo para quem que fala e para quem que ouve, adquire uma natureza contraditria cuja neutralizao s possvel por esta troca de valores complemen-tares a que se reduz toda a vida social (LVI--STRAUSS, [1958] 2008, p. 74)10.

    Para melhor esclarecer ainda como uma mesma coisa pode implicar dois pontos de vista opostos e complementares, pode-se com-parar o signo, tal como Lvi-Strauss o redef-niu, a estes desenhos ambguos que podem ser interpretados de duas maneiras incompatveis mas complementares, dos quais Escher, entre outros, deu belos exemplos. Assim Convexo e cncavo (cf. reproduo em ERNST, 1994, p. 83) brinca com a possibilidade de interpretar um desenho de maneiras complementares mas

    exclusivas: seja como uma bacia (cavidade), seja como uma cpula (em relevo), de acordo com a maneira segundo a qual se coloca em correlao as oposies: se est em relevo, porque a luz vem da esquerda, enquanto que em contra-re-levo sua trajetria deve ser simtrica e inversa. Quando o desenho isolado, impossvel de se decidir, a no ser de maneira arbitrria. Mas o contexto determinar a boa interpretao. Es-cher, no entanto, constri uma clebre compo-sio, onde ele obriga o olhar do espectador a alternar permanentemente suas interpretaes, inscrevendo o convexo/cncavo em um espao saturado de outros objetos ambguos (a esca-da, os arcos, o plano em perspectiva), deter-minados por outras oposies (visto de cima/visto de baixo, frente/atrs, etc; cf. ERNST, 1994, p. 80-84). Podemos pensar tambm no desenho de W.E. Hill, Minha mulher et mi-nha sogra, mais prximo do trocadilho visual (alis, tido por Lvi-Strauss como modelo de exerccio simblico) (LVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 600), onde pode-se ver ou uma velha senhora de nariz curvo ou uma bela senhorita com casaco de pele e o rosto virado, mas no as duas ao mesmo tempo (ERNST, 1994b, p. 22-23). As interpretaes dependem da correlao entre as oposies axiais e os valores estticos e mesmo parentais... O prprio Lvi-Strauss compara o signo estas

    lmpadas eltricas de um complicado painel publicitrio, que se acendem ou se apagam, a cada vez fazendo aparecer imagens diferentes, luminosas sobre fundo escuro ou escuras sobre fundo luminoso (tipo de obra que tambm ela uma criao do esprito) sem nada perder de sua coerncia lgica (LVI-STRAUSS, [1983] 2010, p. 223).

    ou a estas construes geomtricas ou de-corativas em que a fgura e o fundo se equili-

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    bram de tal maneira que, s vezes, o fundo se sobressai como fgura e a fgura como fundo, de maneira que o motivo oscila sob o olhar do espectador, que o v alternadamente cla-ro sobre fundo escuro ou ento, escuro sobre fundo claro, remetendo-as uma atividade autnoma do esprito, que, movida por um lan interno, vai alm daquilo que ele havia inicialmente percebido (LVI-STRAUSS, [1983] 2010, p. 234).

    3. Retorno a MaussA partir de ento, possvel melhor compre-

    ender em que sentido Lvi-Strauss acredita estar sendo fel a Mauss ao propor super-lo. Recorde-mo-nos sucintamente do problema. Mauss cons-tatava que um grande nmero de sociedades no conheceram outra forma de economia que no a do dom. V-se o paradoxo: a sociedade apenas sobrevive graas circulao de bens, mas no h nenhum princpio que reclame compensao imediata por um servio ou bem recebido. Para que o dom seja um dom, preciso que ele negue por princpio toda exigncia de retribuio. No se devolve um presente; oferece-se um outro, que leva ele mesmo a um outro presente; assim nunca se est quitte. Entre o dom e o contra--dom, deve haver descontinuidade e no medida comum. Falsa conscincia ou outros costumes? Mauss mostra que a obrigao de dar, de receber e de retribuir pensada a partir da prpria coisa, e no em relao aos outros parceiros: a coisa que contm um princpio metafsico que nos constrange faz-la circular11. O paradoxo da troca dom , portanto, resolvido pela noo de uma propriedade da prpria coisa. Dando, recebendo, retribuindo, no se compensa inte-resses contrrios, realiza-se a natureza das coisas que no podem permanecer onde esto e devem necessariamente se deslocar:

    tudo, alimentos, mulheres, crianas, bens, ta-lisms, solo, trabalho, servios, ofcios sacerdo-tais e funes, matria de transmisso e de prestao de coisas. Tudo vai e vem como se houvesse troca constante de uma matria espi-ritual que compreende coisas e homem, entre os cls e os indivduos, repartidos entre as fun-es, os sexos e as geraes (LVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 203).

    No so as pessoas changeuses12 que fazem circular os objetos trocados, mas os objetos tro-cados que, por sua natureza, pela propriedade metafsica que possuem (o hau ou o mana), foram as pessoas d-los, recebe-los, retribui--los, em suma, a pass-los adiante. , alis, um dos temas constantes de Mauss a demonstra-o de que no h, de um lado, sujeitos que trocam e, de outro, objetos trocados, mas que o prprio da troca-dom , precisamente, que nela as pessoas e identidades sociais circulam tanto quanto as coisas, e que a distino entre ttulo de propriedade e coisa possuda jamais defnitiva. Compreende-se, a partir de ento, que no se pode pensar a circulao como uma relao intersubjetiva, pois os prprios sujeitos no so externos troca.

    Esses textos fzeram correr muita tinta. Quanto a Lvi-Strauss, ele os acusa de terem simplesmente reconduzido a explicao que os Maori do da experincia cindida da troca sob a forma de dons e contra-dons, sem terem buscado explic-la. questo por que vocs do coisas uns aos outros, se no porque tro-cam de maneira dissimulada?, os indgenas respondem: no somos ns, so as prprias coisas que pedem para serem trocadas. Tudo aquilo que sabemos, portanto, que os indge-nas percebem as prprias coisas como devendo circular. O hau no diz nada alm disso. Mas o que faz que com que elas sejam percebidas assim? Sobre isso, nenhum explicao. Eviden-

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    temente, podemos nos contentar com isso, e defender a ideia que nunca necessrio ir alm da explicao que os seres humanos do de suas prprias aes: esta posio que defende, por exemplo, Vincent Descombes em Les institu-tions du sens, sugerindo que Mauss no busca explicar, mas somente compreender o sentido que os prprios Maoris do a sua prpria ao, reconstruir uma racionalidade que primeira vista nos escapa porque no partilhamos das mesmas concepes flosfcas, morais ou te-ricas. Podemos, contudo, pensar que o sentido explcito por meio do qual os seres humanos justifcam suas aes , na maior parte do tem-po, secundrio em relao ao sentimento da obrigao; em outras palavras, que geralmente se tratam de racionalizaes de segundo grau, e que assim, as teorias que ns construmos sobre nosso prprio universo normativo so to sus-cetveis de serem verdadeiras ou falsas quanto qualquer outra teoria. A vida social no como um conjunto de jogos cujas regras ns mes-mos nos damos; ns aprendemos a jogar antes mesmo de conhec-las. Quando os sujeitos nos dizem que, em tal ao, eles aplicam tal regra, ns no temos, portanto, nenhuma razo para acreditar neles. Um pouco de familiaridade com o direito mostra que uma grande parte do trabalho doutrinal consiste em esclarecer a na-tureza da norma qual de fato se obedece13... Admitamos com Lvi-Strauss, portanto, que legtimo no apenas buscar dar uma outra ex-plicao racional aos comportamentos, como tambm mostrar que as racionalizaes secun-drias que expressamos so, frequentemente, consequncias da racionalidade real, ainda que no explcita, de nosso comportamento.

    Ora, contrariamente ao que diro certos leitores (por exemplo LEFORT, 1978), Lvi--Strauss critica Mauss no por ter atribudo s coisas uma propriedade que s pode ser aquela que homens conscientes e vivos lhes atribuem,

    mas, ao contrrio, por ter separado as coisas des-sa propriedade que as faz circular, e por no ter compreendido que a prpria maneira como so defnidas, delimitadas, postas, que faz que elas s possam ser percebidas como devendo-ser-troca-das. Mauss pensa os valores trocados como ob-jetos materiais aos quais o esprito acrescentaria uma propriedade abstrata e indeterminada, que obrigaria os homens faz-las circular, enquanto que na realidade a avaliao j est na prpria de-terminao do objeto (como escudo, como colar, etc), que s pode ser defnido em um sistema de termos substituveis uns pelos outros. A invoca-o de um princpio abstrato pelos flsofos Ma-oris apenas uma explicao entre outras desse carter consubstancial da substituibilidade de-terminao do objeto. Se preciso buscar uma origem simblica para a reciprocidade, porque no necessrio acrescentar nada ao signo para que este seja naturalmente dividido, duplamente atualizado, incessantemente entre dois, sempre virtualmente um outro... De maneira geral, se as coisas so avaliadas, no por um princpio abstrato externo (como o ainda o trabalho so-cial para Marx e para o conjunto da tradio socialista), mas porque elas s podem ser identi-fcadas em um espao de substituio virtual. As-sim, os atos dos homens no esto no princpio da troca, mas so tantos momentos daquilo que se poderia chamar de processo do valor, no sen-tido do processo de determinao progressiva e sempre arriscada das entidades simblicas umas em relao s outras. As avaliaes subjetivas so secundrias: o valor, ainda que visto do esprito (se podemos falar assim), coloca suas exigncias aos homens e os submete a sua lei. Ou melhor: o potlatch no deve ser interpretado como o teste-munho de que a representao da relao social como afrmao de sujeitos em sua rivalidade implica uma relao bem determinada pr-pria coisa, onde ela se torna substituvel pela sua prpria negao?

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    4. A matria simblicaAinda assim, no basta defnir o signo como

    oposio para remontar origem da socieda-de ou do pensamento; preciso ainda explicar por qual razo o esprito humano procede por oposio e correlao entre oposies e, consequentemente, gera sistemas simblicos. A resposta a essa questo, nota Lvi-Strauss, ul-trapassa os limites da antropologia e pertence psicologia, ou at mesmo biologia. Quanto ao antroplogo, ele pode se contentar com o poderoso instrumento ao mesmo tempo crtico e metodolgico que essa hiptese fornece para seu prprio trabalho. Com efeito, o verdadeiro problema do etngrafo no compreender o sentido que os atores do aos objetos que eles manipulam, aos seus gestos, etc., mas sim def-nir simplesmente aquilo que eles fazem, aqui-lo que eles percebem, etc, se tornar sensvel quilo que so sensveis aqueles que ele estuda; reconstruir, poderamos dizer, a escanso da experincia deles. Sua ateno se voltar assim para os detalhes que poderiam t-lo escapado e que tornam signifcativos outros aspectos da realidade, precisamente por sua complemen-taridade com os primeiros. O problema etno-grfco similar ao problema da aprendizagem de lnguas estrangeiras que colocava Saussure (1972:145): no se trata de compreender o que os outros dizem, mas de perceber os signos eles mesmos, de passar, se assim podemos dizer, de uma experincia confusa a uma experincia articulada. No h, de um lado, fatos obser-vveis e, de outro, as signifcaes que se lhes atribui, de um lado realidades fsicas, de outro os conceitos (isto um casamento, entre X e Y, etc): o que permite identifcar o aconte-cimento, ver simplesmente que ocorre algo, tambm o que permite compreend-lo. Um sistema de parentesco no apenas um con-junto de regras formais que permitem predi-

    zer ou prescrever um cnjuge, mas tambm o que permite reconhecer, em um conjunto de fenmenos bastante diversos (o desloca-mento de uma mulher, rituais, transferncias de bens, etc), um acontecimento nico. Um sistema simblico no um meio para dar sentido, mas uma organizao real da experin-cia, que atuando sobre a correlao entre seus traos distintivos, extrai dela acontecimentos descontnuos. Trata-se para o antroplogo de reconstruir o sistema de traos pertinentes que permite identifcar os acontecimentos. O flsofo W. Quine tinha razo, para alm de suas prprias esperanas, quando dizia que o problema do antroplogo em uma situao de traduo radical no era reconstruir a sig-nifcao de uma performance verbal como Gavagai (QUINE, 1960, p. 57), mas, antes de tudo, conseguir perceber Gavagai, isto , reconhecer esta palavra quando eventualmen-te pronunciada em um outro contexto, por uma senhora ao seu neto e no por um jovem e arrogante informante, etc. E quando ele conseguir, ele se dar conta que compreendeu. O mtodo fecundo tambm porque prospec-tivo: ele permite supor, a partir da reconstruo das oposies determinantes de um sistema, a atualizao de variantes aparentemente no da-das. Numerosas vezes ao longo das Mitolgicas, Lvi-Strauss se dedica verifcar uma an-lise estrutural mostrando que um dos termos do grupo de substituies (por exemplo uma variante de um motivo mtico) efetivamente realizado, e ao mesmo tempo confrma e am-plia a hiptese. Em sua busca pelo pensamento simblico, o antroplogo se limita, portanto, a reconstruir seu funcionamento, e no teria condio de propor uma explicao.

    Mas talvez seja que a resposta, na verdade, pertena ontologia, na medida em que, como dir mais tarde Lvi-Strauss e cada vez com mais insistncia, o esprito realiza operaes

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    que no diferem em natureza daquelas que se desenrolam no mundo desde o comeo dos tempos (LVI-STRAUSS, [1983] 2010, p. 165). Assim, se a troca a consequncia desta realidade autnoma que o social, no so-mente porque os smbolos so mais reais que aquilo que simbolizam (LVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 29), mas tambm porque o real ele mesmo simblico: a natureza das coisas de ordem mica, no tica (LVI--STRAUSS, [1983] 2010, p. 170), em outras palavras, ela feita destas virtualidades que so os signos, e no de suas atualizaes passagei-ras; ela prpria puramente diferencial e no positiva14. Consequentemente, isso signifca tambm que as prprias coisas so necessaria-mente interpretadas de maneiras exclusivas e complementares, que elas s se atualizam em pontos de vista. No h, de um lado, os objetos fsicos, em sua identidade teimosa de coisas indiferentes interpretao que se faz delas, e do outro, sujeitos que, lanando, por assim dizer, do exterior seu olhar sobre as primeiras, as decompem em aspectos variados que de-pendem da organizao de seu aparelho per-ceptivo. A prpria coisa apenas o sistema de pontos de vista nos quais ela se atualiza. As-sim, na Introduo, Lvi-Strauss contestava a tentao de atribuir separao do sujeito e do objeto um valor defnitivo, mesmo nas cincias naturais:

    todo elemento do real um objeto mas suscita representaes, e uma explicao integral do objeto deveria esclarecer simultaneamente sua estrutura prpria e as representaes por meio das quais apreendemos suas propriedades. [...] uma qumica total deveria nos explicar no apenas a forma e a distribuio das molcu-las do morango, mas de que modo um sabor nico resulta desse arranjo (LVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 25)

    Ele acrescentava, contudo, que na prtica esta distino entre as qualidades primeiras e as qualidades segundas era possvel e pro-veitosa nas cincias fsicas. Ela no o para as cincias sociais na medida em que as modif-caes que [a observao] produz so da mesma ordem de grandeza que os fenmenos estuda-dos (LVI-STRAUSS, [1958] 2008, p. 67; ver tambm LVI-STRAUSS, [1973] 2010).

    Esse dualismo metodolgico volta, con-tudo, a ser questionado no seio mesmo da disciplina sobre a qual a distino entre as qualidades primeiras e as qualidades segun-das durante muito tempo se fundou e se jus-tifcou, entre outros, a fsica. Efetivamente, sabemos que a mecnica quntica descreve a evoluo de um sistema microfsico partir de uma equao, a equao de Schrdinger, que contnua. Entretanto, quando o sistema mensurado, constata-se que ele sofre uma transio descontnua. Sabemos que essa dua-lidade evolutiva do sistema, ao mesmo tempo contnua e descontnua, foi interpretada como uma dualidade onda-partcula, e que uma de suas consequncias, entre outras, que no se pode determinar ao mesmo tempo a velo-cidade de uma partcula e sua posio, em um instante t. No basta, contudo, atribuir este salto quntico interao do sistema estuda-do e do aparelho de medida, pois o segundo tambm um sistema fsico e o grande siste-ma que eles constituem conjuntamente , do ponto de vista da fsica, descritvel pela equa-o de Schrdinger. O problema da medida , portanto, interpretar esse salto, que parece no poder ser deduzido da descrio fsica do sistema (BITBOL, 2000, p. 30-34). Ele im-plica, ao mesmo tempo, a questo da nature-za da matria e a compreenso do que medir quer dizer. O prprio Lvi-Strauss intuiu que a mecnica quntica apresentava problemas similares queles que ele encontrava. Ele cita

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    diversas vezes uma frase de Niels Bohr, em que o fsico compara as diferenas tradicio-nais das culturas humanas aos modos diver-sos, mas equivalentes, como se pode descrever uma experincia em fsica (LVI-STRAUSS, [1958] 2008, p. 320).

    Um livro recente de Michel Bitbol permi-te ampliar a comparao e precis-la. O autor prope que se considere os acontecimentos produzidos pela medio no como aciden-tes que acometem esta realidade completa que seria o sistema descrito pela equao de Schrdinger, mas antes como pontos de vis-ta parciais e situados, relativos a outros, que so diferentes maneiras, incompatveis mas complementares, de se envolver em uma situ-ao experimental. Essa interpretao supe uma reformulao da teoria das probabilida-des, afm de mostrar que essas no medem a possibilidade de um acontecimento ocor-rer independentemente da avaliao que faz dela o sujeito, mas, antes, a possibilidade de acontecimentos relativos a diversos contextos por vezes incompatveis, o clculo clssico das probabilidades sobre eventos que se pode tratar como ocorrendo por si s na natureza aparecendo partir de ento como um limite macroscpico do clculo quntico (BITBOL, 2000, p. 94). Assim, de certa maneira a me-cnica quntica obrigaria o ideal cientfco a renunciar interpretao metafsica que ele d de si mesmo, como descrio descontextu-alizada, como viso de parte nenhuma, para reconhecer que ele no mais que uma pr-tica da comunicao que antecipa ou pressu-pe a intercambialidade das posies entre os membros da comunidade falante (BITBOL, 2000, p. 186). Alis, Bitbol evoca Merleau--Ponty para descrever essa compreenso que se funda apenas sobre a reciprocidade do meu e do outro (BITBOL, 2000, p. 193). As teorias cientfcas deveriam ser avaliadas como

    formalizaes (lingusticas ou matemticas) de racionalidades processuais de generalidade crescente; [...] cada regio de objetividade cons-tituda como patamar estacionrio de uma dia-ltica (prpria a cada racionalidade processual) das variaes locais e da busca de invarincia; [...] o procedimento de objetivao tido mais como meio de coordenar, de maneira cada vez mais controlada, os enunciados situados, do que como um fm, revelar alguma realidade absolu-ta (BITBOL, 2000, p. 332)

    Ele conclui, assim, que esse novo conceito de cincia automaticamente quebra a separa-o metodolgica entre cincias da natureza e cincias humanas, pois mobiliza para a cincia da natureza que a fsica um dos procedimen-tos mais especfcos das cincias humanas: o procedimento hermenutico, que implica a considerao das situaes e de suas possveis intersubstituies, que tende a compreender os processos do interior, apoiando-se sobre o ponto de vista do participante e sobre suas dia-lticas parciais envolvimento-distanciamento, mais do que a descrever um nico grande ob-jeto distanciado (BITBOL, 2000, p. 341).

    Mas se a lio do estruturalismo para as cin cias humanas que a substituibilidade das posies s pode ser uma funo da lingua-gem (como afrma Michel Bitbol, seguindo Wittgenstein) porque ela consequncia da natureza semiolgica dessa, isto , do carter opositivo ou diferencial dos elementos que a constituem, podemos sugerir que a confronta-o entre os resultados da antropologia estru-tural e os resultados de um sculo de debates sobre a mecnica quntica se anuncia como o lugar promissor, onde talvez poder se aproxi-mar o ideal que professava Lvi-Strauss: o da reintegrao da cultura na natureza, e, fnal-mente [da] vida no conjunto de suas condies fsico-qumicas; ideal que supe, contudo,

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    que se esteja preparado para ver cada reduo perturbar por completo a ideia pr-concebida que se possa fazer do nvel, qualquer que seja, que se tente alcanar (LVI-STRAUSS, [1962] 2005, p. 276). Esse caminho que bus-cava Merleau-Ponty, pelo qual Lvi-Strauss teria escapado de Mauss permanecendo-lhe fel, encontraria aqui, portanto, um novo im-pulso, no ponto em que se cruzam uma fsica que reintegra as subjetividades na compreenso de seus prprios resultados e uma antropolo-gia que explica o estilhaamento da subjetivi-dade pela lgica de entidades necessariamente desdobradas. No se deveria mais, a partir de ento, defnir os smbolos como objetos de pensamento resultantes de um certo modo de funcionamento do esprito, e remeter sua expli-cao psicologia cognitiva, mas, antes, defnir o esprito como uma maneira de ser e um nvel de desdobramento dessas realidades necessaria-mente estilhaadas, divergentes, que seriam os smbolos, nicas realidades s quais, em lti-ma instncia, talvez nos seja permitido aceder. Mas, reconhecendo assim no apenas o carter real dos valores, mas ainda o carter simblico do real, ns no reencontramos a direo que os prprios Maori, h quase um sculo, nos haviam indicado pela voz de Mauss? Parece, efetivamente, que ainda h muitas luas mor-tas, ou plidas, ou obscuras, no frmamento da razo... No obstante, trabalhando sobre o fo do pensamento de Merleau-Ponty e talvez contra ele - e, nesse caso, fortemente contra ele -, que se poder contribuir para revel-las.

    Notas1. Cf. Merleau-Ponty, 1960. As referncias remetem

    bibliografa detalhada no fnal do texto.2. Podemos citar, entre as mais importantes, a intro-

    duo ao Sens pratique de Pierre Bourdieu (1980), Lchange symbolique et la mort de Baudrillard (1976),

    Lchange et la lutte des hommes de Claude Lefort (artigo de 1951, republicado em LEFORT, 1978), Marcel Mauss: une science en devenir de Louis Du-mont (artigo de 1972, republicado em DUMONT, 1983), mais recentemente a obra de Vincent Des-combes, Les institutions du sens (DESCOMBES, 1996, 245-266), Godelier (1996), Hnaf (2002). Frequentemente publica-se artigos que propem mostrar que a crtica de Lvi-Strauss passou ao largo do sentido exato das teses de Mauss, esse pecado ori-ginal ao mesmo tempo simbolizando e explicando as derivas do estruturalismo.

    3. Da mesma forma, no fnal de As estruturas elementares do parentesco: A exogamia fornece o nico meio de manter o grupo como grupo, de evitar o fraciona-mento e a diviso indefnidos que seriam o resultado da prtica dos casamento consanguneos (LVI--STRAUSS, [1949] 2010, p. 520).

    4. O prprio Lvi-Strauss parece refutar essa interpre-tao quando nega ter tentado fazer uma gnese in-consciente da troca (LVI-STRAUSS, [1962] 2005, p. 300). Mas isso para dizer que ele estuda no tanto as causas reais dos atos humanos, quanto os impera-tivos que se descobre ao analisar a maneira como os homens do sentido quilo que fazem.

    5. Ver Marcel Hnaf (1991) para uma apresentao completa dessa leitura lvi-straussiana de Mauss no que diz respeito aos estudos de parentesco e Hnaf (2002), para uma retomada e uma discusso comple-ta do problema do dom.

    6. Por outro lado, ao associar-se cada vez mais intima-mente lingustica, para um dia constituir com ela uma vasta cincia da comunicao, a antropologia social pode esperar benefciar-se das imensas perspec-tivas abertas prpria lingustica pela aplicao do raciocnio matemtico ao estudo dos fenmenos de comunicao (LVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 33). E Lvi-Strauss remete a Cybernetics de Norbert Wiener e a Mathematical Teory of communication de Shannon e Weaver.

    7. Podemos pensar aqui em Piaget (1968). Um exemplo bastante caracterstico dessa sntese ecumnica entre a teoria dos sistemas e o estruturalismo foi proposta por Wilden (1972).

    8. Talvez no seja intil lembrar que, para Saussure, o cerne da semiologia se identifique teoria do valor e que, alm disso, ela parece ter sido inspira-da diretamente por Pareto e o problema do valor em economia.

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    9. Mauss lembrava que os Kwakiutl distinguem entre as simples provises e a riqueza-propriedade e que o termo que designava os objetos da segunda categoria, dadekas, devia signifcar originalmente a coisa que se pega e que torna invejoso (MAUSS, [1950] 2003, p. 207). prprio do valor ser essencialmente dese-jvel por outrem.

    10. Eu deixo aqui em suspenso ao menos dois aspectos maiores da refexo de Lvi-Strauss que nuanam e completam a refexo aqui proposta. Primeiramente, o carter dialtico dos signos um pouco mais comple-xo: um signo no somente defnido por sua posio em relao a outros, mas tambm por suas relaes com outros, e essas duas determinaes no podem ser intei-ramente superpostas. Para uma exposio mais formal dessa dialtica, na medida do possvel, podemos nos re-portar ao esquema do operador totmico em O Pensa-mento Selvagem, onde v-se bem que a simetria entre os esquemas posicionais de termos de nveis lgicos hierar-quicamente dependentes (espcie/indivduo) possvel na medida em que as relaes sofrem uma espcie de torso (LVI-STRAUSS, [1962] 2005, p. 185). Esse aspecto um dos mais profundos do pensamento de Lvi-Strauss. ele que inspira o problema da frmula cannica do mito, onde os termos so defnidos ao mes-mo tempo por seu personagem (pastor, porco-espinho, etc.) e por sua funo. Da mesma forma, no parentesco h uma relao dialtica entre as nomenclaturas e as atitudes de parentesco. nesse sentido que se deveria aprofundar a teoria da funo simblica. Alis, pre-ciso notar que o parentesco e a linguagem no so to facilmente passveis de serem superpostos por diversas razes, uma delas nos levando ao cerne da contribuio lvi-straussiana teoria do valor: no parentesco, objeto e sujeito de comunicao so quase da mesma natureza (mulheres e homens respectivamente), enquanto que, na linguagem, aquele que fala jamais se confunde com suas palavras (LVI-STRAUSS, [1958] 2008, p. 53; cf. tambm LVI-STRAUSS, [1949] 2010). Essa seria a diferena entre signo e valor.

    11. Cf. o captulo intitulado O esprito da coisa dada (MAUSS, [1950] 2003, p. 197-200).

    12. Optamos por no traduzir o termo changeuses aqui afm de manter a frmula adjetival empregada por Patrice Maniglier, sem equivalente em lngua portuguesa e fundamental para caracterizar a troca como uma propriedade intrnseca do sujeito, da pes-soa, concepo essa que combatida por Maniglier nesse trecho (N. de T.).

    13. A jurista Marcela Iacub mostrou a fertilidade heurs-tica dessa tese e props uma reinterpretao dialti-ca do positivismo jurdico de Kelsen a partir desse princpio: cf. a introduo de Iacub (2002a) e tam-bm Iacub (2002b).

    14. Podemos nos reportar tambm s ltimas pginas do Final do O homem n, que vai do pensamento m-tico percepo: a matria-prima, por assim dizer, da percepo visual imediata j consiste em oposies binrias como aquela entre simples e complexo, cla-ro e escuro, claro sobre fundo escuro e escuro sobre fundo claro, movimento dirigido de cima pra baixo ou de baixo para cima, segundo um eixo reto ou obli-quo, etc. (LVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 668), e da percepo ao prprio dado, para concluir que o estruturalismo deixa entrever a ordem natural como um vasto campo semntico onde a existncia de cada elemento condiciona a de todos os outros; realidade intrinsecamente dialtica, diz ele tambm.

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    tradutor Ian Packer Mestre em Filosofa (EHESS/Frana)

    revisor Nicodme de Renesse Doutorando em Antropologia Social/USP

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