55
1 DIOGO MARQUES DA SILVA Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820) Monografia apresentada para conclusão de curso de bacharelado em História, na Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Renato Lopes Leite. Curitiba - 2004.

Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

1

DIOGO MARQUES DA SILVA

Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

Monografia apresentada para conclusão de curso de

bacharelado em História, na Universidade Federal do

Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Renato Lopes Leite.

Curitiba - 2004.

Page 2: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

2

DIOGO MARQUES DA SILVA

Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

Curitiba - 2004

Page 3: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

3

DIOGO MARQUES DA SILVA

Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

Monografia apresentada para conclusão de curso de

bacharelado em História, na Universidade Federal do

Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Renato Lopes Leite.

Curitiba - 2004.

Page 4: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

4

RESUMO

Na elaboração da constituição portuguesa iniciada em 1821, a questão da imprensa foi uma das primeiras a ser tratadas, tamanha sua importância. Os deputados não questionavam o direito de expressão, mas isso não significava que fossem todos contrários à censura prévia. Havia os que queriam censura prévia irrestrita, e havia os que queriam apenas nos aspectos que tangiam a moral e a religião. Desse modo foi votada a derrubada da censura em duas partes; primeiro, quanto aos assuntos religiosos e morais, e depois quanto aos assuntos restantes. Em ambos os casos a censura prévia foi derrubada. Entretanto, a lei de imprensa que explicitava as causas de censura posterior apontando as formas de abuso (ao estado, à igreja, à moral e aos particulares) em muitos pontos chegava próximo de restituir a censura prévia: as responsabilidades atribuídas aos vendedores acabavam levando a análise anterior de livros e periódicos estrangeiros. Percebe-se que os conservadores, embora concebessem o direito fundamental de comunicação das idéias, não admitiam a liberdade de imprensa pelo medo da difusão das idéias “jacobinas”. Dificultava-se assim a formação da opinião pública, fundamental para a manutenção do novo regime.

Page 5: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

5

SUMÁRIO

Introdução..............................................................................................................................6

Cap. I – A Censura e a Revolução

1.1 A censura em Portugal no antigo regime........................................................................11

1.2 As Invasões napoleônicas e a Revolução do Porto de 1820...........................................15

Cap. II - A Lei de Liberdade de Imprensa: a discussão nas Cortes

2.1 As Cortes Constituintes e a imprensa..............................................................................21

2.2 O juiz de paz e o jurado...................................................................................................25

2.3 O tribunal do júri.............................................................................................................27

2.4. Os abusos de imprensa e suas penas: a questão religiosa..............................................28

2.5 Os abusos contra o Governo..................... .....................................................................30

2.6 Os abusos contra os bons costumes. ........................................................................... 32

2.7 Os abusos contra os particulares. ...................................................................................34

2.8. As punições dos livreiros. ................................................................................... 35

2.9 Um balanço da lei de imprensa.......................................................................................36

Cap.III – Debates Panfletários em torno da Liberdade de Imprensa

3.1 Sobre o discurso jusnaturalista em Portugal...................................................................38

3.2 Debates Panfletários em torno da liberdade de imprensa...............................................42

3.3. A noção de opinião pública nos debates das Cortes Constituintes de 1821-1823.........46

Conclusão..............................................................................................................................50

Tipologia das fontes..............................................................................................................54

Referências bibliográficas.....................................................................................................54

Page 6: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

6

INTRODUÇÃO

Liberdade de imprensa é um componente fundamental para a manutenção de um

governo democrático. A Constituição da Virgínia, foi um dos primeiros documentos a

admitir que a censura só pode existir nos regimes despóticos1.

A Revolução do Porto de 1820 é um momento importante da História de Portugal e

do Brasil, pois o desenrolar desses debates decide os rumos do império Português. Como

conseqüência da expulsão dos franceses e a incomoda situação de ver a família real vivendo

no que antes era a colônia, somada à ruína econômica, um movimento nacional usa a

prerrogativa de convocação das cortes.

Mas ao contrário da tradicional assembléia de estados meramente consultiva (ou

seja, o rei chamava representantes da sociedade para ouvir opiniões) que a tradição

supostamente sugeria, a Assembléia portuguesa foi desde o início constituinte. Reuniu-se

com o propósito de elaborar uma constituição, com a divisão tripartite de poderes, que

reduziu consideravelmente o poder régio.

Dentre as inúmeras discussões em pauta, a obra legislativa se dedicou a derrubar a

censura prévia que sempre limitou consideravelmente o acesso ao melhor da produção

intelectual européia para a população.

Muitas conseqüências importantes podem ser apontadas na discussão da liberdade

de imprensa, primeiro, a extinção da censura prévia exigia um mecanismo para punir os

abusos que se fizessem dessa liberdade. Um mecanismo, de grandes conseqüências, foi a

adoção do tribunal do júri em Portugal (que a partir daí foi também utilizado nas causas

cíveis). Também se elaborou uma lei de imprensa que, conforme se pode ver ao longo deste

trabalho, foi bastante rigorosa.

Mas o tema deste trabalho não está apenas na lei de liberdade de imprensa, está na

discussão dos deputados em torno da liberdade de imprensa. Miguel Artola afirma que as

revoluções se desenrolam em etapas, alternando progressos e reações2. E a discussão nas

cortes revela como nem todos deputados, ainda que tenham se reunido com o compromisso

1 DECLARAÇÃO DE DIREITOS DA VIRGÍNIA. Art.14° A liberdade de imprensa é um dos mais fortes baluartes da liberdade do Estado e só pode se restringida em regimes despóticos. Disponível: http://www.cefetsp.br/edu/eso/cidadania/declaracaovirginia.html, 10/12/2004. 2 ARTOLA, Miguel. Antiguo regimen y Revolución liberal. Barcelona, Ariel, 1991

Page 7: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

7

de “fazer uma constituição mais liberal que a da Espanha” (que lhes servira de modelo)

tinham em suas fileiras muitos elementos que pareciam mais afinados com as idéias do

antigo regime do que com o pensamento ilustrado.

Este trabalho é dedicado a entender os fundamentos do pensamento conservador

para barrar a liberdade de imprensa, através das discussões nas cortes e na imprensa. A

maioria dos deputados portugueses foi retirada do clero e do direito. Diante da conjuntura

da Revolução do Porto de 1820 (problemas econômicos, uma Europa reacionária contra as

idéias da Revolução Francesa) prevalece na historiografia a idéia de um frágil compromisso

entre clero, senhores locais, burguesia que resulta num regime também frágil.

Trabalha-se aqui com duas fontes para verificar as impressões a respeito da

liberdade de imprensa. A primeira é uma coleção dos debates dos deputados nas cortes

constituintes sobre a liberdade de imprensa, organizada por Costa Dias. A segunda, um

libelo criticando um periódico importante da época tido como difusor das idéias liberais, o

Correio Braziliense. O nome desse panfleto crítico é Reflexões sobre o Correio Braziliense.

A intenção de se trabalhar este tema veio com a oportunidade, durante um trabalho

de extensão, de se trabalhar com um panfleto, disponível em microfilme, chamado

Reflexões Feitas em Abono da Verdade Sobre o Correio Braziliense, escrito pelo frei

Joaquim de Santo Agostinho Brito França Galvão.

Esse panfleto é uma crítica ao Correio Braziliense ou Armazém Literário, periódico

mensal escrito em Londres pelo brasileiro Hipólito José da Costa Pereira Furtado, tido

como um dos mais importantes para a difusão das idéias liberais. Assim como Hipólito,

muitos outros autores escreviam no estrangeiro onde não sofreriam perseguições, ainda que

seus periódicos tenham sido censurados nos domínios portugueses.

O frei Joaquim Galvão deve ter sido financiado por figuras da corte para escrever

esse libelo, as Reflexões Sobre o Correio Braziliense, combatendo as idéias liberais

propagadas pelo periódico do Hipólito.

Deve-se lembrar ainda que se trata de imprensa do início do séc. XIX. Ao tratar da

História da Imprensa Periódica Portuguesa, o historiador José Tengarrinha chama essa

época de “romântica” ou “de opinião”, quando se refere ao Hipólito3. Este teria sido um dos

primeiros a escrever de forma independente e com qualidade (enfim, um dos primeiros

3 TENGARRINHA, José. História da Imprensa Periódica Portuguesa. Lisboa, Portugália, SD.

Page 8: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

8

profissionais de imprensa). A imprensa de opinião, ao contrário da imprensa noticiosa

atual, tem claro conteúdo doutrinal, com defesas apaixonadas dos temas propostos, e uma

linguagem inflamada.

Já as Reflexões Sobre o Correio Braziliense, apesar de ser uma crítica bem

fundamentada, não foge dos padrões da imprensa anterior ao século XIX, quando os

escritores viviam a serviço de nobres. Os nobres usavam os serviços desses escritores para

massacrar publicamente a reputação de seus desafetos.

Explicadas as fontes, pode-se apontar que o objeto desse trabalho é, com base na

discussão, o pensamento contrário à liberdade de imprensa nas Cortes. Procura-se aqui (no

capítulo segundo deste trabalho) listar as principais razões apresentadas contra a liberdade

de imprensa, e as conseqüências disso na elaboração do que ficou sendo a primeira lei de

imprensa.

O terceiro capítulo é dedicado a comparar essas opiniões com o panfleto, de modo a

encontrar as características mais fortes do conservadorismo diante da dita liberdade.

Reconhece-se que as fontes aqui utilizadas têm naturezas diferentes, sendo um panfleto

escrito para ataque de teorias liberais, e a outra um conjunto de discursos taquigrafados.

Como se tratam de discursos, são respostas rápidas (ainda que muitos desses possam ter

sido lidos, premeditados), o que permite verificar os conceitos que estão mais difundidos.

A Constituição elaborada por estas Cortes transferiu a soberania do regente para

uma figura designada como a Nação, o que politicamente significava dar soberania para o

Congresso, que se dizia representante da nação. A nação, por sua vez, seria representada

pela opinião pública.

O método de trabalho é analisar a linguagem das cortes e do libelo, para verificar

como são dominados os conceitos que se procuram aqui analisar, como liberdade de

imprensa. O modelo é a obra de Quentin Skinner, que verifica nos confrontos das correntes

políticas ao longo da história européia o aparecimento de palavras que hoje nos remetam a

determinados conceitos. Ao analisar os fundamentos do estado moderno, este autor se

dedica ao que chama semântica histórica, isto é, quando o que era antes um conceito passa

Page 9: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

9

a ser utilizado como palavra, passa a fazer parte do vocabulário dessa sociedade, significa

que essa sociedade aprendeu esse conceito4.

No caso da obra de Skinner, tal conceito era o Estado (que em sua análise tal

palavra passa a ser utilizada em França e Inglaterra no séc. XVII com o sentido que temos

na modernidade) neste trabalho os conceitos ficam em torno da idéia de opinião pública e

liberdade de imprensa.

Jurgen Habermas fala que a teoria liberal fundamenta a criação da esfera pública, o

conceito que temos atualmente do que é público, ou de interesse geral. Vem da noção de

um povo que pensa de forma autônoma, e que se apresenta dotado dos direitos que o

governo deve respeitar5. Resumidamente, apresenta-se a opinião pública como a instituição

de onde se emanam direitos fundamentais, e o governo só é considerado legítimo enquanto

os respeitar.

Para que haja tal opinião pública é fundamental que haja a livre circulação das

idéias — sem imprensa livre não haveria público pensante. Como se vai ver neste trabalho

todos os deputados concordam com a existência dos inalienáveis direitos do homem, mas

nem todos concordavam com a queda da censura prévia, ainda que isso fosse indispensável

para a manutenção de um governo representativo.

Não se pretende neste trabalho rotular os deputados, mas sim verificar se as noções

destes sobre determinados tópicos são mais ou menos próximas do conceito liberal que

temos hoje. Hipólito, por exemplo, parece um liberal diante do frei Joaquim Galvão, sem

sombra de dúvida. Mas o autor do Correio Braziliense, defensor do modelo britânico de

monarquia constitucional foi contrário aos tratados com a Inglaterra que levaram à abertura

dos Portos. Considerava a abertura uma ameaça para a industria do reino frente ao poderio

econômico inglês, opinião contrária, portanto, aos princípios de livre comércio. Muitos

deputados portugueses tidos como liberais em termos de política tiveram que se colocar

contra o fim do pacto colonial.

Sarazola agrupa os deputados entre monárquico-tradicionais, brasileiros,

moderados (anglófilos), liberais radicais (do modelo francês) e gradualistas (do modelo

4 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1996, Prefácio, p. 10. 5 HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984

Page 10: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

10

espanhol), mas isso em geral, levando em conta questões de soberania, direitos civis e

políticos, economia6.

De acordo com a discussão da liberdade de imprensa, fica realmente mais

interessante o que Zília Osório de Castro aponta: deputados que querem a total abolição da

censura prévia, deputados que querem sua manutenção, e deputados que querem um meio-

termo, com restrições aos temas relacionados à religião7. É dessa perspectiva que este

trabalho se aproxima.

6 SARASOLA, Ignácio Fernández. La constitución española de 1812 y su proyección europea e

iberoamericana. Disponível: 7 CASTRO, Zilia Osório. Cultura e Política. Manuel Borges Carneiro e o Vintismo. Lisboa: INIC , 1990, v.1.

Page 11: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

11

CAPÍTULO I

A CENSURA E A REVOLUÇÃO

1.1 A censura em Portugal no antigo regime.

Antes de se discutir o conteúdo dos debates panfletários é conveniente falar do

estado das condições de impressão e circulação de livros antes da Revolução de 1820.

Trabalhos que se dedicam ao estudo desse tema apontam três épocas distintas. A primeira,

que vai até 1768, é da instalação da inquisição, com o controle das publicações por três

instituições (Santo ofício, Ordinário, Desembargo do Paço). A segunda (1768-1795) é a da

criação da Real Mesa Censória, quando Portugal estava sob o despotismo ilustrado do rei d.

José I e do Marquês de Pombal. Na terceira época, a rainha Maria I desfaz o trabalho do

Marquês, restaurando o modelo ultramontano anterior.

Dos documentos mais antigos relacionando à censura prévia, há a instalação do

tribunal do Santo Oficio, instituído junto com a Inquisição em Portugal, pelo rei D. Manuel

I, autorizado pelo Papa Paulo III pela Bula de 23 de maio de 1526.

O principal motivo do estabelecimento do tribunal inquisitorial no império

Português foi a perseguição dos judeus, sendo de praxe o incentivo e o exercício da delação

dos indivíduos que saíssem da conduta cristã. Uma das possíveis razões para essa

perseguição era seguir o exemplo dos reis católicos de Espanha, Fernando e Isabel, para

com o auxílio da Igreja unificar o país e amealhar bens das populações judaicas e

muçulmanas. Portugal seguiria esse mesmo caminho para consolidação do poder régio,

aliado à religião8.

8 BASTOS, José Timóteo da Silva. História da Censura Intelectual em Portugal Ensaio sobre a

compreensão do pensamento português. Lisboa: Moraes Editores, 1983 2a ed, p. 38.

Page 12: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

12

No caso da censura dos livros, há a uma instrução dada a dois autores: na qual

avisavam que concílio mandava que o inquisitor nomeado não autorizasse nenhuma

impressão de livros sem que os antes fossem apresentados aos censores, sob pena de

execução e dez cruzados de multa para as despesas do Tribunal do Santo Ofício.

Além do controle sobre as publicações, a censura também contava com a elaboração

do Index dos livros proibidos. No rol de obras proibidas do inquisitor-geral, o infante D.

Henrique, em 1551, preceituava-se que a leitura ou posse de um desses mesmos livros

acarretava pena de excomunhão, e seriam também excomungados os que não denunciassem

leitores ou possuidores9. Durante os autos de Fé, esses livros apreendidos eram queimados

publicamente.

A censura dos livros se processava dessa forma: antes de uma obra receber

autorização para publicação, esta tinha que passar por três entidades das quais deveriam

receber seis aprovações: duas do Santo Ofício, duas do Ordinário, duas do Desembargo do

Paço. Tratava-se, portanto, de um exame demorado, arbitrário10, uma vez que a avaliação

dos escritos era secreta; e confuso, pois o tribunal do Santo Ofício era autônomo.

A prioridade de manter a pureza da religião cometeu várias mutilações de obras. E

dentre os livros proibidos, figurava a própria Bíblia em vernáculo. Também é bom salientar

que outra arma da Igreja além da inquisição foi a criação da ordem dos Cavaleiros de Jesus.

Os jesuítas enriqueceram com o comércio das colônias e cresceram em poder, exercendo

grande influência nos processos de censura.

Com a progressiva consolidação e fortalecimentos dos Estados, esta presença de

ordens religiosas independentes torna-se um incômodo. A ordem de Santo Inácio torna-se o

principal alvo do ódio dos governantes e das pessoas instruídas, por diversas razões das

quais não nos aprofundaremos neste trabalho. Pode-se entretanto apontar que os jesuítas

enriqueceram com o comércio colonial, e tinham grande poder na instrução e elaboração

dos currículos. E pela nova escolástica resgatada por esses padres defendia idéias de

soberania popular subversivas para o despotismo ilustrado português.

Em 1768, o ministro de D. José, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marques de

Pombal, decidiu barrar o avanço dessas idéias, bem como minar o poder da ordem de Santo

9 Idem, p. 42. 10 A REAL Mesa Censória e a Cultura Nacional. Aspectos da Geografia cultural Portuguesa no século XVIII. Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Coimbra Editora, v. XXVI, 1964, p. 8.

Page 13: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

13

Inácio. Primeiro, circulou um libelo chamado Deduções Cronológicas e Analíticas. A

autoria dessa obra é atribuída ao procurados da coroa, José Seabra da Silva, mas há quem a

atribua ao próprio Marques de Pombal. Trata-se de um ataque nem um pouco velado aos

jesuítas, acusados de obstruir o progresso intelectual do país.

Succedera que os mesmos Jesuítas servindose dos sobredijos meyos (a censura); extinguindo nestes

Reinos e seus domínios todos os Livros dos famosos iluminados, e pios Autores, (...) e substituindo no Lugar

daquelles uteis Livros, os outros Livros perniciosos das usas composiçoens, ordenadas a estabelecerem o seu

dispotismo sobre a ignorância; conseguiram logo precizamente desterrarem desta Monarquia toda a boa e

sãa Literatura, precipitarem todos os Vassallos de Portugal no inculpável e necessário idiotismo, em que

forçozamente vieram a cahir (...)11

Dispensava-se o trabalho dos jesuítas alegando-se que sempre foi o Estado que teve

predominância nesses assuntos relacionados à manutenção da ordem. Alega-se que desde

os primórdios da monarquia, os reis controlavam a impressão de livros pelos ‘Beneplácios

Régios’ — cartas que davam autorização para a publicação, e também se afirma que as

obras religiosas sempre haviam sido censuradas pelo estado. Essas exposições antecederam

a instituição de um novo órgão, a Real Mesa Censória, que se encarregaria da censura

(inclusive a elaboração de um novo Index), da fiscalização das bibliotecas (também de

coleções particulares e armazéns de livreiros) e da supervisão da educação primária.

A Real Mesa Censória era composta por um presidente, sete deputados ordinários,

um secretário, um porteiro e dois contínuos. O presidente distribuía os livros entre os

deputados, os “censores e juízes do merecimento dos livros”, e dentre estes deputados, um

era inquisidor do Santo Ofício. Aos secretários cabia a parte burocrática (cuidava dos livros

de contas, leis, despachos) funcionando como intermediário entre deputados e público por

comunicar aos autores as decisões dos deputados. O porteiro, auxiliado pelos contínuos,

tinha as chaves da Mesa Censória, e na alfândega assistia a entrega dos livros aos

mercadores.

Para uma obra ser publicada ou reeditada, seu autor ou editor deveriam levar o

manuscrito, ou a versão impressa, junto com seu curriculum para este novo órgão de

censura. Lá o presidente distribuiria segundo os critérios de tema e relevância, para que se

11 REAL MESA CENSORIA.Despacho de Criação. In: BASTOS, op. Cit, p. 69.

Page 14: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

14

fizesse “a exata averiguação dos merecimentos, utilidades e pureza dos livros”12. Obras que

tratassem de direito canônico, dogmas ou sobre limites entre sacerdócio e império eram

considerados graves, e podiam precisar da análise de mais de toda a mesa, e não de apenas

um deputado.

Na elaboração do novo Index, são citadas 17 regras que determinam os motivos de

proibição. Os mais importantes, nessa ordem eram: estavam banidos livros de autores ateus;

de autores protestantes; obras que negassem autoridade do papa sobre a Igreja cristã; de

feitiçaria; livros obscenos; infamatórios; obras dos “pervertidos filósofos destes últimos

tempos”13; obras anônimas; obras de jesuítas.

Tais obras poderiam ser lidas pelos que portassem licenças especiais para isso,

concedidas com o comprometimento de que estes tais livros ficassem “em recato,

resguardados em armários, estantes fechadas com chave, redes de arame” de maneira que

não pudessem ser vistos ou lidos por pessoas sem licença. A principal razão era permitir

aos censores conhecer as idéias perigosas para combate-las. Também é bom lembrar que às

vezes podia-se permitir a circulação de uma obra apenas no idioma original.

Com a morte de D. José, o trono passa a ser ocupado por sua filha D. Maria I, que

desfaz a obra pombalina: a pretexto de “ampliar a lei de 1768” muda o nome e ordenação

da Real Mesa Censória, que passa a se chamar Real Mesa da Comissão Geral sobre o

Exame, e censura dos Livros, cujo presidente e metade dos oito deputados seriam teólogos

(e só estes quatro teólogos teriam voto no conselho). A nova mesa também seria regida pela

Bula Romanum Pontofocum, o que é considerado o retorno da autoridade do Santo Ofício.

No Decreto de 17 de dezembro de 1793, a censura aparece novamente exercida por

três instâncias: O Santo Ofício, a Mesa do Desembargo do Paço, e o Ordinário (autoridades

locais). O novo Index que seria elaborado trazia 25 razões. Assim como no período

pombalino, a maioria esmagadora desses itens se dedica a defesa da religião, com as

proibições às obras de ateus, ou que inculcam liberdade de crença.

Mas também apareciam ao fim da lista os ataques ao Governo e Coroa, a difusão de

princípios que destruíssem a “indispensável subordinação dos inferiores aos superiores na

ordem civil e política” como razões para supressão de obras, bem como discursos

12 A REAL mesa Censória... p. 42. 13 Idem, p.49-50.

Page 15: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

15

infamatórios. Todas essas precauções para não permitir que as idéias perigosas que levaram

a França ao caos em 1789 não se espalhassem...

A ascensão de D. João à regência, substituindo sua mãe, dada como demente, a fuga

da família real diante da invasão por parte do exército napoleônico, isso não causou grandes

alterações no esquema de censura, embora mudassem, obviamente, as idéias subversivas

que o Desembargo do Paço procurava suprimir (como durante a ocupação por parte do

general Junot, riscava-se dos periódicos os revezes franceses em Espanha).

No caso dos periódicos, como estes, diferentes dos livros, tinham que circular logo,

de forma a agilizar o trabalho contavam com censores privativos. Caso contrário

enfrentariam certamente grande atraso, porque segundo Bastos afirma em seu ensaio

chegavam pedidos de impressão pra tudo: avisos de loterias, bulas, livrinhos de rezas,

folhetos para se vender pelas feiras, listas de drogas, normas, tabuadas, epitáfios, anúncios

comerciais, teses, dedicatórias “tão servis como hipócritas”...14

1.2 As Invasões napoleônicas e a Revolução do Porto de 1820.

Em 29 de novembro de 1807 o general francês Junot, comandante do exército

napoleônico em Portugal, país invadido sob pretexto de ser protegido da “maligna

influência inglesa”, entra em Lisboa escoltado pela própria Guarda Real, e é recebido por

personalidades ligadas à regência, junta governativa nomeada pelo rei D. João na ocasião

da sua partida para o exílio.

A partida de D. João é o ponto culminante da deterioração das relações com a

França em meio à ambigüidade política de um governo que oscilava entre aproximar-se das

potencias continentais sem trair seu aliado de primeira hora, a Inglaterra, estando em jogo

ainda o destino do império colonial.

Acredita-se que o plano de partida de D. João VI já fora ensaiado em 1801, sendo

acertado em convenção secreta com a Inglaterra a transferência da corte para o Brasil. Sua

fuga na madrugada de 29 de novembro de 1807 é descrita em tons de tragédia e

desespero15.

14 Idem, p. 155. 15 ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu. As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais. In: MATTOSO, José (Org) História de Portugal. Lisboa: Estampa, V.5, pp. 25.

Page 16: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

16

Ao ocupar Portugal, o general Junot estava ciente que o controle da opinião e a

difusão das idéias revolucionárias seria tão ou mais valioso que a força do exército (que

chamaremos mais de napoleônico do que de francês porque a maioria dos seus efetivos era

composta por espanhóis, já que Espanha também caíra sob ocupação). Além de controlar

imediatamente a Gazeta de Lisboa (que pode ser apontado como o diário oficial da época

em Portugal) também manteve (ao menos de imediato) a burocracia. Fala-se portanto, em

um “afrancesamento” das instituições.

Havia entre alguns a impressão de que a invasão francesa traria “o progresso”, já

que parte da propaganda Napoleônica era a de dotar os povos conquistados com

constituições ao modelo francês. Essas pessoas são (muitas vezes exageradamente)

identificadas pelo termo de “afrancesados”, acusados de colaboracionismo.

Um exemplo desse colaboracionismo estava na convenção de Baiona, parte do

plano no qual Napoleão refazia a organização política da Península Ibérica. Na Espanha a

família real fora deposta, e o irmão de Napoleão, José Bonaparte foi nomeado rei. O

general Junot esperava conseguir semelhante feito em Portugal, pois a família Bragança foi

destituída do poder real no dia 1o de fevereiro de 1808. Para as personalidades enviadas

como representação à Baiona, Napoleão demonstrou interesse de publicar em Portugal o

código civil de 1804.

Existia a perspectiva de se conseguir com o auxílio de Napoleão as alterações

necessárias para a superação do antigo regime; a modernização das estruturas políticas, a

divisão tripartite dos poderes, a adoção do sistema representativo em duas câmaras, o

reconhecimento das liberdades individuais, tolerância civil e religiosa, mudanças reguladas

conforme a constituição francesa16.

Enquanto esses “afrancesados” procuravam conseguir as reformas políticas por

parte dos franceses, irrompiam revoltas e motins em diferentes pontos do país contra a

ocupação. Aponta-se nessa reação um caráter popular estimulado pela influência religiosa,

pois desde o fim do séc. XVIII os sermões dos padres condenavam o ateísmo, o “complot

satânico”, a anarquia vinda da França, tanto que as revoltas irrompem com o calendário

religioso, momentos em que ocorriam aglomerações17.

16 Representações dirigidas a Junot pelas câmaras de Tomar, Ançã, Ponte de Lima e Valença, ARAUJO, p. 32. 17 Idem, p.32-33.

Page 17: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

17

A insurreição contra a ocupação foi um movimento que evoluiu da periferia para o

centro, das regiões mais próximas da fronteira espanhola, desguarnecidas, para as regiões

onde a ocupação era mais sentida, a participação dos senhores locais e do clero, o que fez

da religião o principal elemento de coesão. Mas tratou-se mais de uma vaga de motins do

que propriamente uma revolução liberal. A penúria e a fome levaram o povo a se revoltar

contra até mesmo os senhores locais e autoridades constituídas em alguns locais.

A conjuntura internacional também teve influência: a Espanha,, em situação

idêntica, conhecera um movimento de caráter popular e revolucionário, com a formação de

juntas locais que declaravam soberania para decidir seus assuntos internos, e assim levar

adiante a luta contra Napoleão, a qual ficou conhecida na historiografia ibérica como guerra

de Independência da Espanha. Essas escaramuças continham uma nova tática de confronto

que ficou conhecida pelo termo espanhol — guerrilha.

Sendo as forças do invasor francês compostas em sua maioria por espanhóis,

quando estes abandonaram Portugal para se aliar aos seus insurrectos compatriotas em

Espanha a reação popular foi encorajada. A rendição do general Junot foi feita, entretanto,

diante de uma força anglo-portuguesa, 10.000 soldados ingleses desembarcados em agosto

de 1808, sob comando do General Wellesley, reforçados por batalhões portugueses.

Os termos de derrota de Junot foram postos na Convenção de Sintra, outra memória

desagradável aos portugueses, por se tratar de uma rendição que feita exclusivamente ao

exército britânico (que só entrara nessa guerra em momento adiantado). E desse modo a

troca de reféns só incluía ingleses e franceses. E como não houve proibições quanto ao

envio de despojos para a França, deu-se à debandada das tropas napoleônicas o caráter de

“saque legal”.18. Portugal ainda enfrentou mais duas invasões francesas, a do general Soult

(março de 1809) e a do general Massena (1810), que causaram grande destruição pelo país.

Esta seqüência aqui descrita tem a função de expor a situação de Portugal antes da

convocação das Cortes de 1820. Mesmo com o fim das invasões francesas, D. João e sua

família não retornaram; e ainda elevaram o Brasil à condição de Reino Unido em 1815.

Portugal ficara na insólita condição de “colônia da colônia”. Através da mão de ferro do

general Beresford, a Inglaterra exercia grande influência nos assuntos do país, com o

18 Ibidem, p. 38.

Page 18: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

18

controle do exército, às custas da sociedade portuguesa, mas com os melhores postos

reservados para os ingleses19.

Nas cidades, crescia o comércio informal, sintoma do colapso econômico do país —

a economia portuguesa estava arruinada pelas destruições causadas pela ocupação

napoleônica e pela quebra do pacto colonial, já que a mudança da família real para o Brasil

ocasionara a abertura dos portos da antiga colônia.

Nessa situação Portugal foi terreno fértil para a fundação de associações secretas, ao

estilo maçônico (e na maioria das vezes ligadas de fato à maçonaria) dedicadas à

conspiração, com projetos de recuperação do país, passando pelo retorno do rei e fim da

influencia britânica. Esses grupos reuniam principalmente profissionais liberais e militares,

podendo contar com a inspiração de alguns sucessos do constitucionalismo, notadamente a

convocação das cortes de Cádis, na Espanha (resultado do movimento nacionalista de

expulsão dos franceses), e nos movimentos de libertação na América. Aliás, foi nessa época

que os espanhóis começam a usar o próprio termo liberalismo com o nosso significado

político atual: o de defesa da liberdade individual20.

Uma dessas associações secretas, mal sucedida em seus intentos, acabou fornecendo

mártires para essa causa liberal, ao exortar seus compatriotas a sair da “criminosa apatia”

em que se encontravam, e encontrar um terrível fim nas mãos da justiça, no caso conhecido

como conspiração Gomes Freire, pois se atribuía a esse general a liderança do grupo.

Condenados este e mais 11 colegas à morte por enforcamento, seguido de decapitação e

incineração dos corpos, tiveram ainda as cinzas jogadas no mar, evento que só serviu para

aumentar o ódio contra o general inglês, Beresford, uma vez que a pena foi exagerada, para

uma conspiração forjada21.

Mas um outro grupo secreto, chamado de Sinédrio, fundado pelo bacharel

Fernandes Tomás foi bem sucedido, ao conseguir reunir militares em postos estratégicos, a

ponto de deixar de esperar a eclosão de um “movimento popular”, para agir, por achar que

em Lisboa e no porto o espírito público era favorável, e planejar a ação para o dia 24 de

agosto. Esse movimento sim, teve claro caráter de conspiração militar, principiando com

19 Ibidem, p. 51. 20 Ibidem, p. 47. 21 PERES, Damião. História de Portugal. Barcelos: Portucalense 1929, v.VII. Esse autor diz que os conjurados de uma insurreição real e causadora de grandes estragos, a insurreição pernambucana de 1817, não sofreram punições severas.

Page 19: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

19

uma proclamação durante apresentação de tropas pela manhã, e na tarde desse mesmo dia

uma reunião que formou o governo provisório.

Essa nova junta declarou que governaria em nome de D. João VI, manteria a

religião católica romana e convocaria as cortes para fazer uma constituição “adequada a

nossa santa religião, e nossos bons usos” (p. 50). Afirma que no passado Portugal conhecia

as cortes, que datam dos grandes tempos de sua história. Ressuscita-las era o primeiro e

mais importante passo na senda de um “rejuvenescimento das energias nacionais” (p. 52).

Portanto, o termo revolução não era considerado muito adequado por estes revolucionários:

eles referiram-se ao seu movimento como a Regeneração.

O governo português (junta que governava em nome do rei D.João) vendo que não

conseguiria desbaratar este movimento (que contava com o apoio do exército também em

Lisboa) não viu outra alternativa senão convocar rapidamente as cortes, com vista a

esvaziar suas propostas. Fernandes Tomás foi hábil em fundir a velha junta governamental

com sua nova junta revolucionária durante a ausência do general Beresford, que foi buscar

mais recursos na corte joanina. Quando Beresford chegou em Portugal foi proibido de

desembarcar.

A consolidação da obra da regeneração foi a eleição dos deputados. De fato a corte é

uma tradição dos reinos europeus, mas apenas com caráter consultivo. Nesse caso,

entretanto, o propósito da deputação era claro: a elaboração de uma constituição, à qual o

próprio rei ficaria subordinado. O sufrágio era universal — todos os homens maiores de 21

anos, que tivessem emprego — e aberto (pois havia muitos analfabetos). A eleição era

indireta: havia a menor estância que era a freguesia que elegia um eleitor de paróquia, que

posteriormente escolhia um eleitor de comarca, e finalmente estes, representando a

província, elegiam um deputado. Deste modo, a representação ficava em torno de um

deputado para cada trinta mil pessoas. O Brasil também elegeria seus deputados22.

As eleições deveriam se realizar no 2o domingo de dezembro do ano de 1820 nas

paróquias, sendo no 3o domingo realizada a eleição de comarca e no quarto domingo a

eleição dos deputados, de modo que estes se reunissem em Lisboa no dia 6 de janeiro de

1821 para iniciar os trabalhos no Soberano Congresso.

22 A eleição de deputados no Brasil gerou a polemica da eficiência de tais métodos em um território tão grande e com vias de comunicação tão precárias. Os dados sobre o funcionamento das eleições aqui expostos foram tiradas da obra em PERES, Damião.

Page 20: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

20

Havia muito trabalho a ser feito com a elaboração das bases da constituição,

tomando como inspiração principalmente o texto espanhol de 1812, elaborado durante as

cortes de Cádis, e o texto francês de 1791. Dentre as medidas significativas estava na idéia

de soberania residindo na figura da nação, “não sendo propriedade de ninguém”23. A ela

cabia o poder de fazer uma lei fundamental (Constituição) pela figura do Congresso, sem

depender da sanção real.

A difusão das idéias liberais foi feita principalmente pela imprensa periódica

emigrada. Autores que perseguidos pela censura em Portugal, estabeleceram-se

principalmente em Londres e Paris para escrever suas idéias. O trabalho de redator

começava a ganhar prestígio nessa época. Antes, os periódicos eram escritos basicamente

por pessoas contratadas por figuras da corte para difamar outras figuras da nobreza. No séc.

XIX, entretanto, crescia o interesse pela ilustração, pela leitura de jornais políticos e

científicos. Levar adiante esse interesse era fundamental para a consolidação da obra

promovida pela Regeneração. É sobre isso que falaremos a seguir.

23 CONSTITUIÇÃO de 23 de setembro de 1822, art. 26 e 27.

Page 21: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

21

CAP. II

A LEI DA LIBERDADE DE IMPRENSA: A DISCUSSÃO NAS CORTES

2.1 As Cortes Constituintes e a imprensa.

O movimento de 1820 pôs em prática a constituição de Cádis (decidido em reunião

da Conferência Militar no Palácio do Governo, no dia 11 de novembro) também publicando

uma portaria da comissão de Censores, dando instruções quanto à circulação de periódicos.

José Tengarrinha aponta o paradoxo de se aplicar imediatamente uma Constituição

que garantia a liberdade de opinião como direito fundamental mantendo-se a censura

prévia, com base no na época popular periódico Astro da Lusitânia24. Isso seria um fator

denunciante da precariedade do estado de compromisso da Regeneração. O próprio nome

Regeneração, diante da má reputação da palavra Revolução, revela esse caráter da

necessidade de se mostrar que o que ocorreria seria mais uma melhoria do regime do que

uma ruptura.

Uma análise da Constituição Espanhola, entretanto, afirma que a adoção da

Religião católica como ‘protegida pela nação’ podia limitar a liberdade de expressão que o

texto constitucional garantia, e os deputados portugueses apontam isso quando se reúnem

para decidir sobre a censura prévia, como é patente nesse discurso:

Os sábios legisladores de Espanha, cuja autoridade tantas vezes e com to devido respeito se invoca

neste Augusto Congresso, não se arriscaram, na matéria presente das nossas deliberações, a medidas

temporárias [...] sem receio de incorrer na nota, ou de iliberal, ou de fanático tomando por guia

mestres tão seguros, declararei [...] que me parece impolítica a base pela qual se concede a liberdade

de imprensa em matérias de dogma e moral, sem prévia censura25.

24 TENGARRINHA, op. cit. No Astro apareceria o seguinte trecho: “Todos sabem que sem imprensa livre não há liberdade civil, todos conhecem que o exercício de tal liberdade é que contém os satélites do despotismo” p. 71. 25 Fala do deputado Anes de Carvalho, sessão do dia 14 de fevereiro de 1821. In: DIAS, Augusto da Costa, p.34. fala do deputado Madeira Torres, idem, ibidem p. 34: “na constituição de Espanha (...) somente se permite imprimir e publicar livremente as idéias políticas, donde bem se infere que o contrário deve entender-se nas religiosas”.

Page 22: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

22

No caso espanhol, admitir o princípio de confessionalidade do Estado podia servir

ao esforço dos liberais para controlar a Igreja, mas também transformava questionamentos

religiosos em ofensas à lei da nação.

Em Portugal, a questão da imprensa foi encarada como assunto de suma

importância, fundamental para a sobrevivência do regime constitucional, e só recebeu uma

lei regulamentando-a com rubrica real em 12 de julho de 182126.

Aqui vai se analisar as discussões a respeito da liberdade de imprensa, primeiro, a

discussão a respeito da liberdade de imprensa na constituição (entre 13 e 16 de fevereiro de

1821) e também as discussões em torno do projeto de lei de imprensa (que se arrastaram de

fevereiro a julho) que o rei sancionou.

Os artigos sobre liberdade de imprensa27 (8o , 9o e 10o), apresentados no Projeto das

Bases da Constituição Portuguesa (em 8 de fevereiro de 1821), são os que estabeleciam a

liberdade de imprensa (e de expressão) como direito fundamental. Pode-se ver por estes três

artigos ao pé da página que a questão da imprensa suscitou debates que envolvem direitos

fundamentais, e a criação do tribunal de imprensa (que como já foi apontado, serviu de

base para o modelo de júri) o que por sua vez levanta a questão do preparo dos cidadãos

para esta tarefa.

E também despertou outra discussão importante quanto aos limites dos poderes da

Igreja: dava-se aos bispos a autoridade para censurar escritos, mas qual seria exatamente a

punição, uma vez que se procurava delimitar claramente as esferas do poder entre as

instâncias de estado e religião? Criticava um deputado que as autoridades passariam a ver

mensagens perigosas não como crimes, mas como pecados. Pode-se enumerar nos

26 TENGARRINHA, idem, p. 70-77. 27 «Art. 8o. A comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo Cidadão pode conseguintemente manifestar as suas opiniões escrevendo ou falando, contanto que não tendam a perturbar a ordem pública estabelecida pelas leis do estado Art. 9o. A Liberdade de Imprensa ficará portanto estabelecida pela Constituição, sem dependência de Censura Prévia. Todos os Escritos poderão livremente imprimir-se, sendo seus Autores ou Editores responsáveis pelo abuso que fizerem desta preciosa liberdade, devendo ser em conseqüência acusados, processados e punidos na forma que as leis estabeleceram. As Cortes nomearão um Tribunal perante quem hajam de ser processados estes delitos. Art. 10o. Quanto porém àquele abuso, que se pode fazer desta liberdade em matérias religiosas, fica salva aos Bispos a censura dos escritos publicados sobre dogma moral e o Governo os auxiliará para serem castigados os culpados.»

Page 23: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

23

discursos pelo menos quatro razões a favor da censura (e na seqüência os argumentos que

contra-atacavam essas razões).

A defesa da religião continuou a ser o grande entrave à aprovação imediata de uma

lei reguladora da imprensa (ou seja, parcela da elite política tende a defender a censura

prévia para assuntos religiosos).

Nessas sessões das Cortes de Lisboa que ocorreram entre março e julho de 1821,

muitos deputados alegaram que a censura posterior não seria suficiente para evitar os

“inconvenientes da liberdade de imprensa”, principalmente o avanço das seitas protestantes,

como se viu no norte da Europa. Havia ainda as idéias nocivas dos modernos filósofos

alastrando-se muito depressa. “Talvez que Voltaire cause maiores males em um dia do que

cem apologistas fazem em um ano”, disse em seu discurso o deputado Anes de Carvalho28.

Outra linguagem utilizada pelos deputados das Cortes de Lisboa era a de que o povo

português não se encontrava pronto para liberdade de imprensa, por não dispor de

instrução, uma vez que ficara tanto tempo sob vigilância da Inquisição, e o regime

constitucional ainda não se achava consolidado.

Aponta-se ainda o embate entre direitos naturais do direito de expressar opinião

frente às regras que a sociedade impõe, assim como o bispo de Beja apontava a existência

da “lei que proíbe a venda indistinta de veneno”29. O que os mais progressistas defendiam

era uma liberdade ilimitada de expressão com punições posteriores pelos abusos cometidos

(que já fique claro que nenhum projeto constitucional português estabeleceu liberdade de

imprensa sem punições de abusos)30, mas ainda assim esse embate mostra como parece

haver o consenso em torno do reconhecimento da existência de direitos naturais, ainda que

os mais conservadores temam os inconvenientes para a sociedade.

Finalmente um outro fator que serviu como motivo de defesa da censura foi a

concepção de que a religião não é passível de discussão, por se tratar de matéria “perfeita e

28 Fala proferida na sessão de 14 de fevereiro de 1821. In: DIAS, p.11. 29 Fala do deputado bispo de Beja, Sessão do dia 13 de fevereiro de 1821 Sobre este princípio são fundadas muitas providências e precauções estabelecidas pelas Leis para obviar alguns danos e inconvenientes que podem proceder o mau uso que o Cidadão pode fazer os seus naturais direitos A estas classes, devemos referir a Lei que proíbe a venda indistinta de veneno. Como deste se pode fazer bom e mau uso, por isso a Lei procura com uma precedente restrição impedir os nocivos efeitos que podem resultar do direito natural que cada um tem de procurar aquelas coisas que lhe são úteis . idem, p.5. 30 RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. Subsídios para a história da liberdade de imprensa: meados de

século XIX . Coimbra : Arq. da Universidade, 1984. Sep. Bol. Arq. Univ. Coimbra, v. 6., p. 482.

Page 24: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

24

invariável”31. Mais precisamente, diz-se que não se pode abrir mão da censura em matéria

de dogma e moral. Uma análise do iluminismo indica que este movimento filosófico teria

efetivado um divórcio entre moral e religião32, e pode-se supor que isso pareceria

inconcebível aos mais conservadores.

Mas quando esta questão é levantada nesses debates, vê-se que também se propõe

um divórcio entre política e moral — conforme levantaram dois deputados, ao confirmar

que isso era impossível, em se tratando da leitura de textos33. Ou seja, ou se proibiam todos

os escritos ou nenhum. Por exemplo, obras e tratados vindos de autores de países

protestantes tornavam-se imediatamente suspeitos de trazer idéias perigosas implícitas em

seu conteúdo.

As razões apresentadas para manutenção da censura prévia foram todas habilmente

contra-argumentadas. Se os textos dos novos filósofos se difundiam rápido, deveria-se

reconquistar o público com textos também interessantes, ao invés de áridos tratados. A

religião católica não desapareceu nem sob forte vigilância no império Romano, ela não

precisava da proteção de nenhuma censura. E se o povo português estava despreparado e

pouco ilustrado, era justamente por culpa dessa mesma censura. Além do mais, esta era

inócua diante do maior perigo: os libelos difamatórios (que eram anônimos)

Ainda que tivessem apontado a impossibilidade de separar questões políticas de

questões morais, a maioria dos deputados achou isso possível, e para encerrar a discussão

fez-se a votação, que responderia às questões: primeiro, se deveria persistir a censura prévia

— esta caiu por 70 votos contra 8; segundo, se deveria haver censura em escritos que

atacassem dogma e moral — este também caiu, por pequena diferença, 46 votos contra 36.

A censura prévia foi finalmente derrubada, mas havia ainda muitos artigos do projeto de lei

sobre a Liberdade de Imprensa apresentado aos deputados que podiam limitar em muito as

possibilidades de impressão e circulação de obras.

31 Fala do deputado Correia Seabra, Sessão do dia 13 de fevereiro de 1821. In: DIAS, p. 23,. 32 COPLESTON, FREDERICK. Historia de la Filosofia: de Wolff a Kant. Barcelona: Ariel, 1979, v.VI. 33 Falas dos deputados Sr. Faria de Carvalho e Sr, Peçanha. Sessão do dia 13 de fevereiro de 1821. In: DIAS, p. 27-28.

Page 25: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

25

2.2 O juiz de paz e o jurado.

A instituição do juízo dos jurados já foi apontada como conquista da Revolução do

Porto de 1820, ao figurar na constituição elaborada entre 1821-1822 (concluída em

setembro de 1822). Para se mostrar a validade dessa instituição, os deputados portugueses

buscam sua existência no passado longínquo do país. O uso da história para justificar uma

instituição (ou repudiá-la) foi um recurso usado tanto pelos que buscavam reformas quanto

pelos que procuravam evita-las. Um deputado, o Sr. Sarmento, disse que “entre nós os

Alcaides-mores eram quem decidia as Causas, e até pronunciavam a pena última,

presidindo às juntas dos homens bons: não são idéias novas (os jurados)”34 . A essa defesa

soma-se a do deputado Pereira do Carmo:

“Apesar de me convencer desta verdade, seria para mim de grande peso a opinião contrária,fundada

em que a Nação não está preparada para esta novidade se, consultando a história da nossa

jurisprudência, não encontrasse alguns fatos parecidos, até certo ponto, com o que tratamos. (...) E

por esta ocasião noto com grande prazer que os Juízos de paz, que tanto acreditam as modernas

legislações de alguns povos da Europa, eram já conhecidos entre nos no séc. XV”.35

Nesse caso, não parece ter havido razões contrárias à introdução do júri (este foi

aceito por unanimidade), houve sim uma tentativa de conciliação. Mas o que tal debate

transparece é que a busca das instituições do passado (remetendo até à Antiguidade

clássica) são uma justificativa para implementação de um modelo cujo correspondente

contemporâneo mais bem sucedido era o caso inglês (o próprio termo jurados causava

estranheza: preferiu-se juízes de fato). Vê-se isso através de pronunciamentos como este de

Borges Carneiro: “O juízo destes homens será imparcial porque são amovíveis, não

dependem de ninguém. Este ano são os jurados que e o que vem não o são. Olhemos para a

Inglaterra e nela vermos uma prova dos saudáveis efeitos que têm produzido esta

medida”36. E também afirmou o deputado Soares Franco: “não é possível estabelecer a

34 Fala do deputado Sarmento, idem, p. 97. 35 Fala do deputado Pereira do Carmo, Sessão do dia 2 de maio,idem p. 93-94. 36 Fala do deputado Borges Carneiro, idem, ibidem p. 96.

Page 26: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

26

liberdade de imprensa sem que haja juízo dos jurados” , referindo-se a existência do júri

“que por esta causa só a liberdade de imprensa em Inglaterra é a primeira da Europa”37.

As novas instituições gozam de legitimidade porque fazem parte do passado

português. Segue-se o caminho similar às próprias convocações das cortes, “nos tempos em

que o reino foi mais feliz”.

Determinado o júri como instituição responsável pelo julgamento dos delitos,

restava o debate de como seriam escolhidos os jurados, e qual seu número. A escolha dos

jurados pelo povo aparecia como mais conveniente com a tradição portuguesa. A questão

que aparece é quais seriam as qualificações dos possíveis jurados. Neste ponto aparecia

novamente a questão de como se deveria agir frente às questões relacionadas à religião,

como se pode ver pelo exemplo da fala do deputado Souza Magalhães:

Se poderia dizer que ainda que os jurados sejam capazes de julgar alguns fatos civis, porque isso é

de conhecimento claro, não se poderia dizer o mesmo com relação aos Escritos (...) há Obras escritas

em que se tratam essas matérias em que se expendem essas intenções e sutilezas que julgam os

Teólogos necessárias para traçar uma linha entre as doutrinas ortodoxas e heterodoxas. Nesses casos

precisa indispensavelmente conhecimentos: não basta uma intenção reta porque, se chamam os

Jurados e lhes apresentam uma obra Teológica (...) Creio que eles mesmos confessarão sua

incapacidade.38

Desse modo reapareceu a “necessidade” de separar as questões de dogma das

demais. Lembrando o primeiro debate: os deputados mais liberais já apontavam a

complicação na separação dos temas (porque isso acarretaria a fiscalização de todas as

obras que seriam publicadas). A qualificação dos jurados entrava ainda no complicado

processo de separação entre justiça civil e eclesiástica.

Para um ponto de vista reformador, como o do abade Castelo Branco, “para

assegurar que um homem atenta contra a sociedade não precisa ser grande Legista,

Filósofo, nem Matemático”39. Mas saiu-se novamente vitoriosa a divisão dos temas,

estabelecendo-se outro juízo para as matérias de moral e religião (uma matéria considerada

perfectível a priori).

37 Fala do deputado soares franco, idem, ibidem, p. 94. 38 Fala do deputado Sousa Magalhães, idem, ibidem, p. 116. 39 Ibidem, p. 110. Essa fala da sessão do dia 2 de maio de 1821 se refere mais especificamente aos casos de calúnia.

Page 27: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

27

2.3 O tribunal do júri

A maior complicação estava, entretanto, na criação de mais um tribunal, este só

dedicado às questões de imprensa: o Tribunal de Liberdade de Imprensa, cujas funções

ficaram confusas. Foi o que muitos alegaram sobre o artigo n°17 do projeto da lei de

imprensa40.

Diante da possibilidade de se exigir a aprovação prévia dos textos ao tribunal,

deputados consideraram que este artigo tendia para a restauração de uma censura prévia.

Ocorre então um debate, a partir do qual alguns deputados falam do princípio da “censura

voluntária”, como pode ser visto na fala do Deputado Anes de Carvalho:

Por isso, não devendo ser o tribunal de apelação e já estando decretada a existência deste Tribunal e,

em conseqüência havendo de se lhe dar emprego, parece que este deve ser o da Censura voluntária.

Nem se diga que este Tribunal pode abusar, pois que, sendo eleito pelas Cortes ou Corpo Legislativo,

este pode ter nele grande influência41

O Tribunal de Liberdade de Imprensa não impõe penas, mas pode analisar um

escrito antes da publicação, e assim teria influência sobre os escritores, como salienta o

abade Castelo Branco: “uma vez estabelecida uma autoridade (...) tende gozar do maior

poder possível, e por conseqüência (...) estabelecido um Tribunal supremo de imprensa,

este procuraria, por manobras surdas, intimidar todos os Escritores”42.

Entretanto, além da possibilidade da censura voluntária, havia outra questão que

parecia preocupante aos conservadores: de que uma vez dado o aval para a publicação de

uma obra, cessassem todas as punições sobre ela.

O artigo 17 acabou suprimido. Não se pode afirmar pelos debates consultados qual a

razão determinante para elimina-lo, se a ameaça da censura voluntária, ou o perigo de obras

por ele aprovadas ficarem imunes às penas. De todo modo, o Tribunal de proteção da

40 Art. 17 do projeto: «Cessará igualmente a imposição das penas mencionadas quando o escrito tiver sido aprovado pelo Tribunal especial de proteção da Liberdade de Imprensa, antes de impresso, publicado, ou distribuído; ficando para isso permitido, e livre ao Autor, Editor, Impressor, ou vendedor, oferece-lo ao exame do referido Tribunal». 41 Fala do Deputado Anes de Carvalho, Sessão do dia 21 de maio, p.374. 42 Idem, p. 373.

Page 28: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

28

Liberdade de Imprensa permaneceu como tribunal de apelação, contornando-se o problema

da existência de dois tribunais qualificados para a análise dos escritos.

2.4. Os abusos de imprensa e suas penas: a questão religiosa.

Derrubando-se a censura prévia, o projeto de lei se dedicava a punir os abusos no

título II: Dos abusos da liberdade de Imprensa, e das penas correspondentes. O primeiro

artigo desse título, o artigo 843, determinava que haveria abuso de liberdade de imprensa em

4 formas: contra a Igreja, contra o Estado, contra os bons costumes, contra os particulares.

A busca da delimitação dos poderes de Estado e Igreja poderia ser concretizada,

entre outros fatores, pelo reconhecimento do tribunal do júri como qualificado para julgar

os abusos em questões religiosas. Mas como ficaria o papel da Igreja nesse processo? Isso

se fez nessas duas questões salientadas. A primeira: quando os bispos censurassem um

livro, poderia ele circular? A segunda: qual a punição para quem violar esta lei?

Veja-se que entre os mais conservadores, os bispos deveriam poder proibir livros,

como se manifestou o abade de Negrões:

Para satisfazer a dúvida do Preopinante, entendo que podia ser assim: depois de declarar o Bispo a

doutrina do Livro, os Jurados não tratavam mais do que de ver se era subversivo da ordem pública; se o era,

aplicava-se ao Autor as penas Civis; e se não, que ficasse somente o Livro proibido de circular. Deste modo

não se tirava à censura do Bispo nada do seu decoro e, no entanto, o Autor podia pedir um Concílio Nacional

ou Provincial para que se conhecesse se a doutrina do seu Livro era verdadeiramente errônea ou não. Agora,

depois que o Bispo diz que era errônea, permitir que o Livro corra, eu creio que não deve ser.44

As questões religiosas eram encaradas também como um mal para a sociedade

como um todo. O júri, mesmo composto por leigos, dificilmente seria “composto por doze

libertinos” como disse o Dep. Borges Carneiro, em resposta ao próprio abade de Negrões45.

43 «Art. 8 Pode abusar-se da liberdade de Imprensa: 1o contra a Religião católica Romana, 2o contra o Estado, 3o contra os bons costumes; 4o contra os particulares. Art.9 Todos os delitos compreendidos no artigo antecedente serão qualificados em primeiro, segundo, terceiro ou quarto grau, em atenção às diversas circunstâncias, que podem aumentar, ou diminuir sua gravidade.» 44 Fala do Dep. Abade de Negrões, Sessão de 2 de maio, ibidem, p. 145. 45 Fala do Dep. Borges Carneiro, idem, ibidem, p.147.

Page 29: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

29

Foi decidido considerar o júri apto para julgar também as causas de religião (86 votos

contra 5).

Mas declarada a Igreja protegida pelo Estado, ataques aos dogmas do catolicismo

eram encarados como ameaças à ordem social — e isso nenhum deputado questionou46.

Pelo contrário, discutiu-se apenas questões teológicas: desde quais pontos se atacam os

dogmas, até que ponto era perigoso zombar dos santos e.t.c.

Todos os envolvidos na circulação de idéias subversivas, escritores, impressores ou

livreiros (vendedores) poderiam ser punidos pelos ataques a Religião, o que acaba tornando

a lei de imprensa semelhante à Inquisição, e alguns deputados salientaram isso47. O bispo

Castelo Branco não concordava com a gradação de diferentes delitos quando se escrevia

contra a Igreja, mas sim que se punisse apenas ataques aos fundamentos (como a

introdução de uma nova religião), porque uma gradação de delitos implicava comparar

dogmas em importância. Manteve-se a gradação de penas, com prisão e multas.

A segunda questão importante era quanto a punição. Alguns deputados achavam

que quem infringisse a lei deveria perder os direitos de cidadão:

É muito justo que perca os Direitos do Cidadão todo aquele que estiver nas circunstâncias que se tem

dito (...) todo homem que escreve contra um Dogma, inda que não tenha influência nenhuma na ordem social

mas somente na crença deve ser punido pela sociedade, porque a Sociedade jurou manter a Religião, porque

a nossa Constituição funda-se na Religião, toda ela é um Evangelho, todos os que invectivam contra a razão:

o que ataca a Razão ataca a Constituição48

.

Uma posição que foi imediatamente repudiada por liberais como Borges Carneiro,

que afirmou: “Ora, a pena de perdimento de todos os direitos do Cidadão é uma coisa que

eu não posso aprovar. A excomunhão não tem efeitos senão espirituais”49. A expulsão de

46 Mesmo um dos que é apontado pela historiografia como grande líder dos liberais, o dep. Borges Carneiro, concorda entre sessão 10 de maio, ibidem, p. 258. 47 Isso é apontado por exemplo, na fala do bispo Castelo Branco: “Proscreveu-se a Inquisição como incompatível com o sistema Constitucional; mas sobre as ruínas desta Inquisição se levanta outra, tendo por título liberdade de Imprensa. (...) Não é por esses crimes mínimos que, em que muitas vezes não pode haver intenção de ludibriar a Religião, que periga a sociedade: é só quando é atacada a Religião em seus Dogmas ou parte deles, uma vez que sejam parte essenciais da Religião”. Fala de sessão 10 de maio, ibidem, p. 270. 48 Fala do dep. Caldeira. Sessão de 3 de maio, p. 268. 49 Fala do deputado Borges Carneiro, sessão do dia 3 de maio, p. 269.

Page 30: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

30

um indivíduo da comunidade cristã não foi aceito coma pretexto para cassar direitos, mas

como punição ficou estabelecida multa e prisão50.

2.5 Os abusos contra o Governo..

O abuso da imprensa contra o Estado foi um ponto considerado perigoso, tocante ao

artigo número 12, que indicava as formas de abuso51. As razões que tornaram este ponto tão

importante foram as seguintes: não era o governo considerado perfectível como a religião, e

o termo combater o Sistema Constitucional presente no artigo poderia sugerir que

quaisquer críticas ou sugestões poderiam ser proibidas52, o que se pode ver pela fala do

Dep. Anes de Carvalho:

O que significa combater o Sistema Constitucional? Creio que é escrever contra o sistema

Constitucional. Isto é o que eu entendo por combater: apontar os erros que vêm no nosso

sistema.Esta palavra combater é tomada no sentido metafórico; reduzida ao sentido literal, creio que

significa combater o nosso sistema constitucional (...) Por consequência (...) creio que deve ficar

livre a todo cidadão o declarar as suas idéias contra a constituição (...)

Assim, todas as Nações adotaram este princípio e permitem aos cidadãos o censurar a sua

constituição. Se quisermos aqui lançar peias, nunca poderemos reformar os erros que houver no

nosso Sistema Constitucional. Por isso o artigo deve ser emendado53 .

O regime de governo não era, ao contrário da religião, considerado perfeito. E

ninguém poderia ser punido por apontar seus defeitos, uma vez que esse era o processo pelo

qual o sistema constitucional poderia se aperfeiçoar.

50 Art. 10o Abusa-se da liberdade de Imprensa contra a Religião: 1o quando se nega a verdade de todos, ou de algum dos Dogmas definidos pela Igreja: 2o quando se estabelecem, ou defendem dogmas falsos: 3o quando se blasfema, ou zomba de deus, dos seus santos, ou do culto religioso aprovado pela Igreja.. Art. 11o Quem abusar da liberdade de Impre2nsa contra a religião católica romana em primeiro grau, será condenado em um ano de prisão, e cinqüenta mil réis em dinheiro: no segundo em oito meses de prisão, e cinqüenta mil réis: no terceiro em quatro meses de prisão, e cinqüenta mil réis: e no quarto em cinqüenta mil réis somente. 51 «Art 12o Abusa-se da liberdade de Imprensa contra o Estado: 1o Excitando os Povos diretamente à rebelião, 2o Combatendo o Sistema Constitucional, 3o Desacreditando ou injuriando o Congresso Nacional, ou o chefe do Poder Excecutivo» 52 “Não tenho dúvida enquanto à Religião, mas tenho dúvida enquanto se proíbe o falar em matérias tão interessantes como são as do Governo. Eu creio que a ciência do Governo não chegou ao ápice da perfeição e só pode se aperfeiçoar esta ciência por meio da liberdade de pensar.” Fala do dep. Sr. Serpa Machado, sessão 10 de maio, ibidem p.274. 53 idem, ibidem, p.275-276.

Page 31: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

31

Entretanto, os Deputados tidos como de matiz mais liberal, como Manuel Borges

Carneiro, alegavam que o regime não estava ainda maduro o suficiente para suportar

qualquer ataque:

Eu não quererei que possa ficar livre a qualquer um atacar o Sistema Constitucional, agora no

princípio. Depois de ele estar consolidado, depois que a experiência mostrar que ele é bom, que este Sistema é

filho da Natureza e da boa razão — daqui a quatro ou cinco anos pouco importa que se combata este Sistema,

e , em conseqüência, o meu parecer é que se conservem as palavras combater o Sistema Constitucional, mas

com a declaração que por elas não se entende com aqueles que apontarem alguns defeitos nas opiniões ou

decisões que aqui se tomem54.

A religião sobreviveria à ataques da imprensa porque era considerada verdadeira. A

constituição não. E muitos outros deputados vão mais além, ao apontar que mesmo na

Inglaterra, onde o sistema constitucional estava radicado há muito tempo, podia-se

suspender a lei de hábeas corpus em caso de ameaça ao regime55. O que se tem agora são

os liberais procurando cercear a imprensa, alegando que só o farão temporariamente,

enquanto o regime se consolida. Ainda que acreditassem que o governo constitucional era o

melhor ditado pela razão, não queriam dar espaço aos seus inimigos. A expressão combater

o sistema constitucional foi mantida, ficando a critério do júri decidir se o ataque é contra o

governo ou à forma de governo.

Quando se discute as punições para os crimes contra o Estado, no artigo 11 do

projeto de lei de imprensa56, as punições foram consideradas exageradas, pois incitar uma

rebelião não era algo tão perigoso quanto pegar em armas contra o país57. Considerou-se

54 Fala do Dep. Sr. Borges Carneiro, sessão 10 de maio, ibidem, p. 279. 55 Fala do Dep. Sr. Fernandes Tomás. “Olhemos para a Inglaterra, onde tem florescido a Lei de liberdade. Ali há a Lei do Hábeas corpus; entretanto, quando o bem da nação o pede, suspende-se a aplicação da Lei por algum tempo. Façamos o mesmo à liberdade de imprensa.” Idem, ibidem, pp. 291-292. “A liberdade de imprensa foi proclamada nas bases como medida essencial para sustentar o Sistema Constitucional. Portanto parece que nós não devemos dar aos nossos inimigos esta arma para sustentar o contrário”. Uma exceção dentre os liberais é o abade Castelo Branco, que diz que se deveria agir com o governo da mesma forma que as críticas à religião: esta era perfectível e só sofreria com ataques aos seus dogmas fundamentais, da mesma forma ninguém conseguiria causar estragos atacando os fundamentos do sistema constitucional. Idem, ibidem, p.304. 56 «Art. 11 Quem abusar da liberdade de Imprensa em algum dos casos mencionados no Artigo precedente, será condenado em seis meses até cinco anos de trabalhos públicos, e em 60 até 600$000 rs.» 57 Veja-se a fala do Dep. Serpa Machado: “Digo que é horroroso o crime de excitar os Povos à rebelião, mas não é o maior crime. Porventura aquele que, com armas, se apresenta à testa de uma multidão de povo, não ataca, não convida mais do que aquele que espalha doutrinas que excitem à rebelião por meio da Imprensa?” Sessão 17 de maio de 1821, p. 317.

Page 32: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

32

um exagero, por exemplo, a pena de prisão ou trabalhos públicos, algo que explicitou

diferenças entre liberais e conservadores, o que fica explicito na fala do Dep. Agostinho de

Mendonça Falcão (deputado pela Beira):

Creio que a pena dos trabalhos públicos é inadmissível. Eu não posso supor que uma Escritor, que

um homem que se delibera a publicar um Escrito sobre qualquer matéria seja um homem de condição plebéia;

e segundo o sistema das nossas leis a pena dos trabalhos públicos só pode aplicar-se àquele que é peão.

Aquele que tem a qualidade de nobreza civil, por isso está fora da circunstancia de se lhe aplicar a pena dos

trabalhos públicos. Por conseqüência quando o juiz quiser aplicar a lei 58

E foi interrompido pelo deputado Fernandes Tomás que disse que a lei é igual para

todos. Muitos deputados concordam que a lei é para todos, mas não concordavam com

punição de trabalhos degradantes para escritores. Estes eram vistos como dotados de

“nobreza civil”, e não deveriam ser submetidos a trabalhos mecânicos.

2.6 Os abusos contra os bons costumes.

O artigo 12, que falava dos abusos contra a moral e os bons costumes59, revela outro

ponto de embate quanto aos códigos civis, remeteia ao 1º ponto sobre a derrubada da

censura prévia. Veja-se esta fala do deputado abade Castelo Branco:

Falarei da doutrina deste parágrafo. Eu entendo que todas as ações que são contra as leis expressas

são contra os bons costumes, são imorais (...) As ações particulares, as ações domésticas do homem

não são, em regra, sujeitas à sanção das Leis; entretanto elas podem prejudicar os interesses do

mesmo homem. Tais são, em geral, os vícios — vícios que são ações que a Lei não classifica mas

que no entanto são reprovados pelos princípios da são consciência. 60

A importância dos costumes como reguladores da sociedade já era conhecida dos

juristas das monarquias absolutas. O rei tinha seus poderes limitados pelas leis naturais e

58 Sessão de 17 de maio, 1821, p. 320. 59 «Art. 12. Abusa-se da liberdade de Imprensa contra os bons costumes: 1o Defendendo, ou justificando ações proibidas pelas leis. 2o Publicando Escritos obscenos, e desonestos.» 60 Sessão do dia 19 de maio, ibidem, p. 339-340.

Page 33: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

33

divinas. Mas uma característica interessante dessa fala do abade de Castelo Branco é a

separação entre vícios e crimes, algo importante para o estabelecimento do código civil.

Os deputados, como Anes de Carvalho, se referiam às Leis positivas como a dos

códigos de justiça:

Em uma palavra: tanto nas sociedades antigas quanto nas modernas são inumeráveis os artigos de Lei

que não podem conciliar-se com os costumes. Querer por toda a moralidade só em relação às Leis

civis é contrariar demasiadamente a moralidade. Eu concedo que as Leis positivas concorrem muito

para formar os bons costumes: muito e muito; mas, além disto, há outras fontes: concorre a

consciência ou razão natural, concorre também a educação, a Religião e a Opinião pública. (...) Por

conseqüência não são só os Escritos contra os bons costumes, defendendo ou justificando ações

proibidas pelas Leis civis, mas todos os outros Escritos que puderem ter relação, não só com a moral

Civil,mas com a moral Universal, devem ser objeto da ação do Legislador.61

Os costumes da sociedade eram freios aos exageros do reis, e leis não escritas que

regulavam a vida das pessoas em sociedade. A regulamentação das leis positivas vinha com

a instituição do júri, que foi estendido às causas cíveis depois da discussão da liberdade de

imprensa.

Concordava-se que os ataques á lei seriam ataques à moral. Mas a lei e o estado,

bem como a religião já eram protegidos pelos artigos anteriores que foram aqui

apresentados. O que restaria para ser definido como moral além dos costumes da

sociedade? Diante disso, recorreram ao termo moral Universal, algo muito vago62.

Diante disso, o abade Castelo Branco disse:

A Religião católica compõe-se de duas partes: parte Dogmática e parte Moral (...) mas entendo que

essa Moral de que se fala não é a moral dos que nós designamos particularmente por bons costumes (...) É dos

bons costumes que devemos tratar num artigo especial desta Lei, porque se fossemos cometer ao

61 Idem, ibidem, p. 333-335. 62 Idem, ibidem, p. 342-244. ‘As ações proibidas pelas Leis ficam fora do discurso e reflexões do escritor; porventura todas as ações proibidas pelas Leis têm alguma coisa com a Moral Religiosa? Se tem, lá está a regra; se não tem, não passa de mera opinião; porque têm a seu favor a generalidade e opiniões de uma grande parte do povo e uma grande parte da Nação, mas não deixam de ser opiniões, porque bem se vê que isto a que se chama moral universal é tão vago que certamente não se pode compreender (...) Voto portanto, a respeito do primeiro membro do artigo 12o (defendendo ou justificando ações proibidas pela lei), que isto se deite fora;

Page 34: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

34

conhecimento privativo dos prelados o abuso da liberdade de Imprensa contra os bons costumes e

honestidade, certamente excederíamos os limites da Jurisdição que lhes é dada e cairíamos em um absurdo.63

Foi decidido que o artigo ficaria como “publicando Escritos que ataquem a moral

Cristã recebida pela Igreja Universal”, especificando melhor o que se entendia por bons

costumes.

2.7 Os abusos contra os particulares.

Quanto ao outro modo de abuso, o uso da imprensa para difamar pessoas e destruir

reputações, a lei reserva três artigos (os de número 14, 15, 16)64. Lembrando-se que os

escritos publicados na época eram carregados de teor ideológico, de linguagem inflamada, e

muito propícios à troca de ofensas (o jornalismo de caráter puramente — ou pretensamente

— noticioso só aparece na segunda metade do séc. XIX), pensou-se em um castigo severo

para se evitar que reputações fossem arruinadas.

Exigir que o autor provasse o que escrevia era uma necessidade clara, uma

unanimidade entre os deputados que discursaram. Em se tratando de escrever sobre a

conduta dos funcionários, o escrito não seria publicado antes de julgado.

Isto parece uma coisa muito simples; está dito em duas palavras: que ninguém possa escrever ou

imprimir senão aquilo que puder provar. Seja contra quem for, se o fato é público e pode provar-se, escreve-

se, se não, não se deve escrever. Até agora se praticava isto, e é o que entendo que se deve praticar: porque

nós, pela mesma Lei Cristã, temos obrigação de não descobrir fato nenhum oculto, ainda que seja

verdadeiro65.

Para o bispo, mesmo que se pudesse provar a denúncia, o nome do funcionário, a

notícia (antes do julgamento) não deveria ser divulgado. Havia grande receio da ruína das

63 idem, ibidem, p.348. 64 «Art 14o Abusa-se da liberdade de Imprensa contra os particulares; 1o Imputando a alguma corporação qualquer fato criminoso, que daria lugar a procedimento contra ela. 2o Imputando vícios, ou defeitos, que a exporiam ao ódio, ou desprezo público. 3o Insultando com palavras de desprezo, ou ignomínia. Art 16o Será livre de toda pena quem provar os crimes imputados, quando forem contra o Estado, ou quando consistirem em abusos de autoridade, cometidos por algum emprego público: e nos outros casos, quando o fato imputado estiver julgado provado em Juízo anterior.» 65 Fala do abade de Negrões, sessão dia 21 de maio, idem, p. 359.

Page 35: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

35

reputações dos funcionários públicos e promoção da anarquia. Entretanto, isso limitaria a

possibilidade da imprensa vigiar os funcionários do governo.

2.8. As punições dos livreiros.

Outros pontos de grande discórdia quanto à liberdade de imprensa foram as

responsabilidades quanto à publicação e circulação, vistos nos artigos 3 e 466. A

regulamentação da propriedade literária era parte fundamental da lei de imprensa, e a

obrigação de se incluir nomes de autor, local de impressão, data, editor fazia-se necessária

para punir falsificações e abusos. Era unânime a opinião de que autores e editores fossem

responsabilizados pelos abusos de linguagem.

O problema residia na punição dos vendedores, os livreiros, nos casos em que se

desconhecessem autor e editor e em se tratando de obras estrangeiras. Mas responsabilizar

vendedores implicava a revisão das obras antes da venda, resultando no estabelecimento da

censura prévia que acabara de ser derrubada, como se vê em manifestações como a do

deputado Gouveia Durão: “Ou temos de conservar a Censura prévia para os livros de fora,

ou se há de estabelecer. Seria necessário declarar isto de uma vez”67.

Contra o estabelecimento da censura muitos se levantaram, como o deputado

Miranda: “Se o livreiro ficasse absolutamente responsável, ficaríamos pior que antes da

liberdade de imprensa” e “seria o mesmo que dizer que não podem entrar obras

estrangeiras”68. Outros deputados viram na proibição de escritos impressos no exterior a

oportunidade de trazer benefícios para a industria portuguesa, trazendo os escritores

exilados em Londres69.

Também havia deputados que faziam a divisão entre libelos famosos e escritos

estrangeiros (livros e tratados). Estes só eram comprados por literatos, gente de grande

66 «Art.3o Todo Escrito impresso nos Estados dos Portugueses deve ter estampado o lugar, e ano da impressão, e o nome do Impressor; e os Impressos em Países Estrangeiros serão assinados pelo Livreiro, ou Pessoa que os vender. Art. 4o Quem vender, publicar, ou distribuir qualquer impresso sem algum dos requisitos no artigo precedente, será condenado a pagar de 3 até 30$000 rs., conforme a maior ou menor importância do Impresso, e não tendo por onde pague, em três meses, até três anos de prisão. 67 Fala do deputado Gouveia Durão, sessão de 9 de maio de 1821, p. 217. 68 Fala do deputado, Miranda, idem, p. 219-221. 69 Fala do deputado Alves do Rio, ibidem, p. 226.

Page 36: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

36

instrução, e assim não eram perigo para a sociedade70, para não falar ainda dos que os

compravam apenas para ‘ornamentos’ nas estantes de suas bibliotecas particulares71. E

desse modo, não eram um perigo para a sociedade, ao contrário dos libelos famosos.

E foi o medo dos libelos famosos que prevaleceu ao considerarem punições para os

vendedores, assim como posteriormente o artigo que se referia a abusos contra estado

ganharia o reforço de difundir obras estrangeiras que criticassem o sistema constitucional.

2.9 Um balanço da lei de imprensa.

Silva Dias aponta uma divisão entre os deputados da assembléia entre liberais,

conservadores moderados e ultras. Aplicando essa divisão aos debates aqui analisados,

percebe-se que os partidários da censura prévia não eram de fato um bloco homogêneo.

Havia deputados que procuravam censurar todos os escritos, e desse modo a saída

encontrada para a derrubada da censura foi a divisão dos temas, entre morais e religiosos e

o restante (notadamente os políticos). O mesmo já havia sido feito na Espanha, anos antes,

durante sua experiência constitucional, nas Cortes de Cádis.

Tanto na experiência espanhola, como no caso português de 1820-1823, primeiras

experiências constitucionais modernas desses países, não há partidos políticos sólidos com

programas claros. Obviamente a análise dos periódicos da época permite visualizar a

formação dos grupos políticos no tocante a assuntos fundamentais, como a questão

brasileira. Mas quando se aplica isso à analise das votações, tem que se levar em conta o

pragmatismo das questões políticas. Quando um deputado vota em uma resolução, ela pode

não corresponder ao seu ideal, mas apenas o melhor para o momento.

Ainda que a queda da censura tenha sido seguida dos tantos entraves aqui

mencionados, a instituição do júri foi uma conquista muito significativa, pois cabendo a

este decidir se houve ou não abuso, reduzia-se consideravelmente o poder de censura do

governo.

É importante salientar que a lei de imprensa foi inócua contra os verdadeiros

‘inimigos do sossego público’: os libelos inflamatórios, as folhas volantes que traziam

70 Fala do deputado Peçanha, ibidem, p. 231. 71 Fala do deputado Anes de Carvalho, ibidem, p. 231.

Page 37: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

37

ataques ao governo e aos principais nomes do regime. Estes eram anônimos, e proliferavam

em grande quantidade. O meio mais eficiente de censura do antigo regime, o monopólio da

imprensa régia, fora derrubado, e a profusão de imprensas trouxe consigo uma enxurrada de

impressos de péssima qualidade72.

O governo constitucional tentava se consolidar em um período pouco auspicioso,

em que os governos constitucionais sofriam reveses. A obra legislativa também encontrou

insucessos como a independência do Brasil, e a crise econômica (resultante do fim do pacto

colonial e das invasões francesas). Mais importante de todas, a causa mais clara da

Revolução do Porto de 1820, seu principal elemento de consenso era o retorno do rei. A

volta de D. João esvaziava a principal causa.

Além dos ataques dos jornais absolutistas, o governo constitucional passou a

enfrentar ataques dos próprios jornais de matiz liberal que queriam reformas mais

profundas, de modo que em 1823 a censura prévia foi restabelecida.

72 TENGARRINHA, José. Da Liberdade mitificada a liberdade subvertida, p.34

Page 38: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

38

CAP. 3: DEBATES PANFLETARIOS EM TORNO DA LIBERDADE DE IMPRENSA

3.1 Sobre o discurso jusnaturalista em Portugal.

Quando se propôs para este trabalho a análise dos discursos, o intento era procurar

os significados dos conceitos como opinião pública e liberdade de imprensa, e as formas

como estes conceitos são apropriados pelos diferentes lados em confronto na Regeneração,

o que revelaria as próprias concepções de liberdade e soberania por parte desses deputados.

Como já foi também dito na introdução, e pelo que se pode ver no capítulo II deste

trabalho, há muitas outras possibilidades e conceitos para essa análise de discurso, como a

instituição do júri, por exemplo, já que tal tema traz a dúvida quanto à qualificação dos

jurados.

Estes discursos servem para mostrar as tensões neste primeiro período

constitucional liberal, e também mostra como conceitos que chegaram até nós foram

criados, adaptados ou manipulados. O modelo que se propõe, como já foi dito

anteriormente, é o de Quentin Skinner, de “resgate das intenções do autor”.

Um modelo que teria, nas palavras de Pocock (outro estudioso da história de idéias

políticas), “propósitos destrutivos” em relação ao discurso, pois a busca as intenções do

autor ao escrever um determinado texto significa colocar fora de consideração intenções

que um autor não poderia ter tido por não dispor de uma linguagem em que pudesse ser

expressa, e isso o levaria a procurar outra linguagem para expressar suas intenções73. Em se

tratando de um debate, essa linguagem pode ser por sua vez adotada pelos adversários deste

autor, e desse modo vai-se construindo o discurso político.

Para explicar melhor, é interessante apresentar um exemplo prático de Skinner

colocando seu método em prática na obra Fundações do Pensamento Político Moderno, a

respeito do pensamento da Contra-Reforma. Este tópico é interessante para este trabalho

porque mostra a elaboração do discurso político utilizado pelos dominicanos e jesuítas

(contendo idéias mais tarde consideradas “subversivas”, segundo o ensaio de José Timóteo

da Silva Bastos) que D. José I e o Marques de Pombal baniram.

73 POCOCK, p. 28.

Page 39: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

39

São apresentados vários autores, como Francisco de Vitória, Luís de Molina (1535-

1600), Francisco Suárez (1548-1616), João de Mariana (1535-1624), produzindo nas

universidades de Coimbra, Salamanca, Paris. Seus trabalhos visavam combater idéias do

humanismo e do protestantismo. No caso do ataque ao humanismo, Skinner cita o repúdio

às idéias de razão de estado de Maquiavel.

Na obra O Príncipe, Maquiavel não se aprofunda em explicar razões de ser do

Estado (se limita a discutir suas formas, nos capítulos em que fala da origem dos governos,

Maquiavel se refere mais exatamente à conquista do poder — herança, conquista,

usurpação etc.) e apresenta o governante, ou o príncipe em função da sua habilidade para se

manter no poder, não interessando se os expedientes usados para isso serem bons ou maus.

Em suma, a principal razão para tornar Maquiavel odiado estava em admitir que para um

príncipe conquistar ou conservar o poder ele não poderia agir dentro da moral cristã.

No combate desses teóricos a Maquiavel Skinner fala do trabalho de elaboração do

discurso político. Os teóricos teriam procurado derrotar Maquiavel com suas próprias

armas: o pragmatismo. Os príncipes hipócritas propostos por Maquiavel não conseguiriam

erguer um Estado sólido, e capaz de funcionar ignorando princípios de justiça74.

O humanismo também era perigoso por resgatar princípios dos antigos romanos

quanto à história da formação da sociedade, no tocante à condição inicial do homem. Para

Cícero por exemplo, os homens começaram vivendo sozinhos. Isso contrariava a idéia do

homem como “animal político”, dotado de uma tendência natural para formar sociedades, e

portanto, sempre vivendo nestas.75

Decididos a reafirmar a existência das leis naturais como base de constituição de

sociedades, os teóricos da igreja se apóiam em são Tomás de Aquino (por isso são

designados como neo-tomistas) para afirmar que o homem recebeu de Deus o raciocínio

para criar os alicerces morais de sua vida política.76

Assim aparecem três formas de leis: a lei divina, as leis naturais (princípios que

Deus deu à humanidade para compreender o que é certo e errado), e as leis positivas, que os

homens elaboram para regular a vida em sociedade.

74 SKINNER, op. cit. p. 448-449. 75 E tal concepção de condição inicial humana apareceria posteriormente nas obras dos filósofos do liberalismo, como Tomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. 76 SKINNER, p. 426.

Page 40: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

40

Escrevendo a respeito da constituição de sociedades através das leis naturais, seus

teóricos salientaram uma origem contratual e produziram idéias que depois foram armas

para formação dos conceitos de Estado e sociedade de Tomas Hobbes, Pufendorf, Grotius e

outros77 conhecidos como pais do jusnaturalismo.

A noção de sociedade política não foi atacada apenas pelos humanistas, mas

também pelos protestantes, ainda que numa forma mais sutil, a teoria do sacerdócio.

Pregando que a salvação é um dom individual, e não uma dádiva garantida pelas ações e

sacramentos, os protestantes também abriram caminho para uma teoria de “homem só”,

fora da sociedade, e talvez isso seja a melhor explicação para o fato dos jusnaturalismo ser

oriundo de países protestantes. O que definimos aqui como jusnaturalismo é a idéia do

homem possui direitos inerentes à condição de ser homem — tais direitos independem da

sociedade.

É importante notar que essas impressões de direitos aparecem em períodos

posteriores dentro da Igreja, quando esta passou a enfrentar no séc. XVIII, época da

consolidação dos Estados (no sentido moderno do termo), a intenção do despotismo

esclarecido na redução da influência da Santa Sé.

Heresias como o galicanismo e o jansenismo (que chegou aos limites de formar um

partido político na França) basearam-se numa visão pessimista da natureza humana

(segundo Santo Agostinho, o homem, criatura decaída desde a expulsão do Éden, não é

capaz de reconstruir só por seus esforços a hierarquia perfeita na terra, porque jamais

chegará sozinho pela sua razão à Verdade, mas só pela fé) e procuram um isolamento do

século, uma purificação da Igreja Católica, o que implicava um afastamento das questões

políticas.

Em Portugal temos o padre Pereira de Figueiredo (1725-1797), jesuíta afinado com

o projeto de modernização das estruturas do Estado proposta pelo Marquês de Pombal.

Baseando-se em autores jansenistas, Pereira de Figueiredo defende a primazia de estado

sobre igreja nas questões de investidura de bispos.

O padre também fazia parte da Real Mesa Censória, que nas regras de elaboração do

Index permitiu a introdução de alguns jusnaturalistas como Puffendorf e Grotius no reino,

“Primeiro porque não se deve privar a República das Letras da vasta e útil instrução de tão

77 Idem, p. 460.

Page 41: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

41

eruditas Obras” e “Segundo porque semelhantes Livros só costumam servir para a

aplicação dos Homens doutos e superiores ao perigo que se pode considerar nos sobreditos

Livros”78.

A introdução dessas novas idéias se fez consoante com o processo de reforma do

ensino superior. No currículo da Universidade de Coimbra introduziu-se o Direito Natural.

Mas a introdução dessas novas idéias em Portugal tem algumas particularidades.

Segundo Antonio Paim, o jusnaturalismo introduzido o reino foi feito dentro da

escolástica, matéria superada nos países vizinhos europeus pelo empirismo, que propunha

uma reformulação do conhecimento humano em separado da religião.

Mas tal conhecimento separado da religião não se aplicava apenas ao saber

cientifico, mas também aos tratados morais. O pensamento de John Locke ser solidário à

liberdade do indivíduo em matéria religiosa79, e Locke foi proibido em Portugal tanto

traduzido quanto no original.

Portugal abraçou o avanço na novidade das Ciências Naturais, mas no que

chamamos plano ético-político não pode ir muito adiante. Primeiro, porque a obra

pombalina trouxe progressos dentro do despotismo ilustrado — o que deixava claro os

limites onde a discussão política deveria chegar. Segundo, a obra de D. José teria sido

quase em todo demolida pela sua sucessora, D. Maria I, momento que a historiografia

chama de Viradeira.

A obra pombalina foi de todo perdida (para quem quer salientar os progressos,

como Zilia Osório de Castro) porque a introdução do jusnaturalismo, admitindo todos os

homens como portadores de direitos, e vindos de um estado original de igualdade (perdido

num passado muito remoto) vai de encontro à sociedade estamental. Ela é golpeada pelo

despotismo ilustrado, vai encontrar sua ruína no liberalismo.

Entretanto, no princípio do séc. XIX, havia uma forte tradição em Portugal de não

separação de ética e religião. Isso é muito notado na imprensa quando se trata da defesa do

trono, como se vai ver a seguir.

78 A REAL MESA Censória e a Cultura Nacional, p. 50. 79 PAIM, A. p. 226. Locke não tolerava, entanto, ateus e religiões que exigissem submissão à governantes estrangeiros.

Page 42: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

42

3.2 Debates Panfletários em torno da liberdade de imprensa:

Um exemplo claro do conservadorismo até aqui abordado está no panfleto Reflexões

em Abono da Verdade Sobre o Correio Braziliense, publicado entre 1809-1810, de autoria

atribuída ao frei Joaquim de Santo Agostinho Brito França Galvão (1767-1845), frade da

ordem de Santo Agostinho e abade de Lustosa. Licenciado em teologia em 1793, lecionava

direito natural no seminário em Santarém, e foi deputado pelas cortes em 1822.

Esse panfleto saído do prelo da Imprensa Régia é uma clara prova da política real de

enfrentar e contra-argumentar as idéias do periódico Correio Braziliense, ou Armazém

Literário, de autoria do brasileiro Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça.

O Correio Braziliense é um periódico mensal admirado por alguns autores como

grande difusor de idéias liberais, e uma prova do seu sucesso é o longo tempo de circulação

— de 1808 a 1822 — tempo bem longo considerando-se que na primeira metade do século

XIX eram muito poucos os periódicos que duravam mais de dois anos80.

Hipólito fugiu de Portugal após ficar preso por dois anos, vítima da Inquisição, e foi

para a Inglaterra, onde encontrou asilo, provavelmente sob proteção do duque de Sussex,

Augusto Frederico. Hipólito também deve ter contado com a ajuda da maçonaria, que deve

ter facilitado sua fuga da cadeia e ida à Inglaterra. Neste trabalho não nos aprofundaremos

nas idéias de Hipólito quanto ao Brasil, até porque o período que se discute aqui é o de

1808-1810. O que se salienta aqui é a defesa que é feita no Correio Braziliense do sistema

de governo britânico, a monarquia constitucional, e da liberdade de imprensa.

A difusão desse periódico, com suas idéias liberais (em termos de política) e críticas

quanto alguns atos do governo (mas não se tratam de críticas diretas à monarquia

portuguesa) fez com que fosse definido pelo Marquês de Funchal (embaixador em

português Londres) como “monstruosa invenção de um jornal português em Inglaterra”.

Tendo falhado o marquês em conseguir a extradição de Hipólito, procurou-se usar outros

expedientes procurando, além da censura, para deter a “monstruosa invenção”.

80 RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. Subsídios para a história da liberdade de imprensa: meados de

século XIX . Coimbra : Arq. da Universidade, 1984. Sep. Bol. Arq. Univ. Coimbra, v. 6.

Page 43: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

43

Saída encontrada foi o financiamento de outros periódicos e panfletos, dedicados a

competir com o Correio Braziliense, ou a atacar as idéias e reputação de seu autor81. Destes

libelistas a serviço do governo, o frei Joaquim Galvão (autor, além das Reflexões sobre o

Correio, é também autor da Apologia do periódico que tem por título “Reflexões sobre o

Correio Braziliense”, de 1810), é citado como uma das críticas mais bem fundamentadas.

Essas Reflexões..., seguem o padrão dos panfletistas, escritas de forma a analisar edição por

edição do Correio, detalhe por detalhe82 , onde o frei Joaquim Galvão dirige-se a Hipólito

da Costa como Redator83.

Como lente de direito natural, o prelado português baseia-se na história da

constituição do reino de Portugal para combater as teorias liberais. Quando fala de

constituição, não está se referindo àquela noção contratualista de Estado, a de que o povo é

o único detentor da soberania, e a cede ao governante, e admite que os homens, nas

diferentes sociedades, têm a capacidade de instituir os governos que lhes aprouverem. Mas

todos viverão sob a ameaça de dois “desgovernos”: num extremo o despotismo, no outro, a

anarquia.

O frei Joaquim Galvão pretende, em suas palavras, opor História à Filosofia, e

assim o “Homem real ao Homem ideal”. E pergunta “se o homem da natureza não

corresponde aos filósofos, porque não reformam eles as suas idéias?”, e desse modo lembra

se regimes parecem falhos, as desgraças são advindas não dos vícios das formas de

81 Dentre estes periódicos, pode-se citar: Exame dos artigos históricos e políticos que se contem na collecção

periodica Intitulada Correio Braziliense, de José Joaquim de Almeida & Araújo Correia de Lacerda (Lisboa: Impressão Régia, 1810); Reflexões sobre a conspiração descuberta [sic], e castigada em Lisboa no ano de

1817, do frei Mateus da Assunção Brandão (Lisboa: Impressão Régia, 1818); e os ataques de José Agostinho de Macedo, notadamente Carta de hum pai para seu filho, estudante na Universidade de Coimbra, sobre o

espírito do Investigador Portuguez em Inglaterra (Lisboa: Impressão Régia, 1812), O Espectador Portuguez (Lisboa: 1816-18), desde o suplemento ao nº 26, intitulado "Hipólito ou o Correio Braziliense", até ao fim da publicação; Os burros (Paris: Officina Typographica de Casimir, 1835); e, em colaboração com Joaquim José Pedro Lopes, Gazeta Universal (Lisboa: 1822). DINES, Alberto. Hipólito Hoje. Observatório de imprensa. Disponível: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/spe021220031.htm em 8/12/2004 82 Hipólito, por outro lado, escrevia num estilo mais próximo do ensaio. PAULA, Sergio Góes; LIMA, Patrícia Souza. Correio Braziliense.Os Paradoxos da liberdade. Observatório da Imprensa. Disponível:http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/alm100620032.htm em 7/12/2004. 83 Se o Redator do Correio Braziliense, antes de censurar a conduta do governo (...) se desse ao trabalho de ler os papéis públicos impressos, (...) se os seus correspondentes em lugar de notícias exatas, e sentimentos gerais lhas não fizessem presente das quimeras dos ociosos (...) porventura não teria o seu jornal merecido a acerba censura de todas as gentes de bem, nem ele se veria reduzido à necessidade de sucumbir nesta luta, porque em fim seja o que for das suas intenções, que para mim não são palpáveis, e diga o que quiser quando se trata de opiniões, e princípios doutrinais, que sempre podem apoiar-se, mais ou menos, com razões, ou com sofismas, mas negar, ou alterar os fatos! REFLEXÕES em Abono da Verdade Sobre o Correio Braziliense, p. 102-103

Page 44: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

44

governo, mas dos vícios dos homens; e independente da forma de governo, os homens

seriam homens.

Eu não posso duvidar um só instante de que o homem é um ser perfectível, dotado de razão e

liberdade: que o Estado Social lhe é útil, e necessário a alguns respeitos: que a Sociedade Civil de

Seres racionais e livres pede, e foi sempre acompanhada de uma Regulação, Lei, e Autoridade

pública: que nem se concebe, nem existiu jamais Lei e Autoridade pública sem Moral, nem Moral

sem Religião Daqui concluo (...) que a Religião, a Moral, a Autoridade pública a Lei humana, a

Sociedade Civil, o Homem natural, a felicidade do seu Ser, tem entre si um nexo (...) que são

indispensáveis todos os anéis desta cadeia, que destruir um destes elos é despedaçar a série, e destruir

a harmonia real da natureza84.

Assim apresenta-se a teoria de que a humanidade é dotada da capacidade de

constituir sociedades, e organiza-la através da moral, autoridade, lei. Tem-se termos aqui

que podem trazer muitas dúvidas: o frei Joaquim Galvão apresenta claramente argumentos

usados pelos neo-tomistas, mas também fala do homem como “ser perfectível” uma idéia

iluminista. Também usa o conceito de sociedade civil, fruto de teorias contratualistas

liberais (que partem do princípio de que o povo “cede” sua soberania ao governante, mas

jamais a perde), mas não apresenta tal sociedade em confronto com governo, mas sim como

parte de uma cadeia 9moral, religião, lei). E essa cadeia foi atacada pelos filósofos do

iluminismo, os chamados “novos filósofos” ou “filósofos jacobinos”.

Nas Reflexões..., os novos filósofos são acusados de “reduzir as todas as formas

constitucionais”, o que obviamente é a crítica ao contratualismo — à monarquia

constitucional (da qual Hipólito fazia apologia). O ataque dos filósofos à religião, ou ao

governo e suas autoridades, quebra a cadeia de princípios nos quais as sociedades foram

sabidamente erigidas. O resultado é que os homens ficaram desorientados, tendo de optar

entre duas formas que não são governos: o despotismo e a anarquia. Normalmente optam

pelo despotismo. O exemplo mais acabado é Napoleão, “que fala às Nações com a fitinha

da liberdade à esquerda, e os grilhões da escravidão à direita”85.

A destruição causada pela invasão do exército napoleônico é evocada para justificar

a ação contra as idéias dos filósofos jacobinos, e esta deve acontecer na educação e na

84 idem, p. 195-197. 85 Idem, p. 110.

Page 45: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

45

censura das obras. Por isso não pode haver liberdade de imprensa. Quando Hipólito alega

que isso leva a perseguição das ciências, o frade português diz que não se trata de

perseguição das ciências a proibição dos “livros perniciosos” dos “Mr Enciclopedistas, que

eram anuncio da barbaridade e miséria das gerações seguintes”. Não se tratava de

perseguição das letras, mas “de punição do abuso delas”.86

Isso permite ao autor das Reflexões... afirmar que a ignorância dessas idéias

destrutivas que circulavam na Europa era um mal menor do que a destruição dos valores da

sociedade. Quando Hipólito critica a censura portuguesa, dizendo que em Portugal aos

livros bons se dava o nome de leitura proibida. O frei Joaquim Galvão dizia que circulavam

muitos livros no país, mas também disse que os homens sábios não precisam de tais livros:

“lido um, estão lidos todos”87.

Ele também desconfia se os jesuítas do séc. XVI teriam causado mais estragos à

cultura européia que os filósofos do séc. XVIII88. E finalmente, quanto analisa a introdução

da imprensa no Brasil, afirma que esta parte do império poderia fazer bom uso das gazetas

de artes e comércio, mas gazetas políticas e histórias só trariam problemas: “Quanto lhe

será mais útil a ignorância, do que o conhecimento, dos erros e dos crimes da nossa

idade?”89.

A Inglaterra conhecia liberdade de imprensa porque esta fazia parte da sua

constituição. Sendo a constituição portuguesa diferente, segundo frei Joaquim Galvão, a

introdução desta liberdade não teria os efeitos que Hipólito desejava. Não estando Portugal

acostumado a isso, a discussão e a desconfiança nas autoridades levariam à “dissolução do

corpo social”. Assim afirma: “é o que a experiência tem mostrado (...) a multidão cega,

ignorante, interessada, estaria mais em estado de pensar bem e dar conselhos proveitosos?

(...) Delírio fatal!”90

86 Ibidem, p. 10. 87 Ibidem, p. 209. 88 Ibidem, p. 234. 89 Ibidem, ´p. 250. 90 Ibidem, p. 201-202

Page 46: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

46

3.3. A noção de opinião pública nos debates das Cortes Constituintes de 1821-1823.

Fica claro que o autor das Reflexões... pregava contra a liberdade de imprensa

baseado em razões muito consideradas em Portugal. Primeiro, o impacto negativo das

invasões é apresentado como resultado final da difusão de filósofos muito lidos, como

Voltaire e Rousseau. Outra razão é considerar a sociedade alicerçada na religião, da qual

dificilmente se separa a moral. E uma outra razão muito forte era o temor da anarquia, dado

o baixo nível cultural da população em geral.

Os deputados das cortes de 1821, também admitindo o alto índice de analfabetismo

entre os portugueses, consideravam as estampas obscenas mais perigosas que os livros. No

debate sobre as punições quanto a venda de livros que abusassem dos direitos de liberdade

de imprensa, um deputado salientou que os livros não chegavam a representar perigo por

circularem apenas nas mãos dos “homens doutos”91.

Nos discursos também aparece a reclamação quanto ao atraso de Portugal em

relação aos vizinhos europeus, sendo a censura responsável por este descompasso. Portanto,

os projetos de educação eram de grande importância para os vintistas. A educação serviria

para consolidar uma tradição constitucional, ao formar uma opinião pública.

O conceito de opinião pública está bem difundido entre os deputados, aparecendo

em vários discursos, sendo evocado ainda com a idéia de tribunal incorruptível, do modo

característico na primeira metade do séc. XIX, como se vê neste discurso de um deputado a

respeito da censura:

Existe em todas as Nações um tribunal invisível, sempre em atividade, que as leis, que o rei e que

ninguém pode dominar. Este tribunal que, pelo efeito, nos mostra que a soberania reside

constantemente em a nação e que em certo modo a exercita, é a Opinião Pública92

.

A opinião publica é reconhecida como soberana, por ser a melhor representação da

Nação. Um expoente dessa noção é Jeremy Bentham, com que os deputados das cortes

parecem familiarizados, pois este autor é citado em algumas ocasiões. Este pensador inglês

teria sido o primeiro a expressar a relação entre opinião pública e publicidade, ao afirmar

91 falas dos deputados Anes de Carvalho e Serpa Machado, sessão de 92 fala do deputado Sr. Abade Castelo Branco, sessão de 15 de fevereiro de 1821, In: DIAS, op. cit, p. 65.

Page 47: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

47

que “a totalidade do público constitui um tribunal que vale mais que todos os tribunais

reunidos (...) cada um sente que este tribunal, embora sujeito a erros, é incorruptível”93.

Habermas apresenta o conceito de esfera pública como uma instituição burguesa,

que se opõe ao Estado, sem a intenção de substituí-lo. Ela de certa forma faz parte do modo

de vida da burguesia, que quer independência e liberdade para tocar seus negócios, mas

também precisa de regras bem delimitadas para faze-lo (principalmente no que toca a

regulamentação e defesa da propriedade).

A primeira vista essa idéia de esfera pública encarna a relação de oposição

estado/sociedade que caracteriza o liberalismo. Basicamente porque o nosso conceito atual

de sociedade civil é característico do liberalismo — ela até precede o Estado.

Na obra de Habermas a burguesia traçou essa linha de separação entre sociedade e

estado entre os séculos XVII-XIX pois sendo seu trabalho e sobrevivência autônomos em

relação ao Estado, seu pensamento também foi ficando autônomo. E este pensamento

passou a articular contra a monarquia absoluta a concepção de leis genéricas e abstratas,

que por fim se auto-afirmaram como única fonte legítima das leis94. Ou seja, a opinião

pública passava a ser a soberana.

Habermas aponta a Inglaterra como primeiro país a permitir a fundamentação de um

público pensante justamente pela abolição da censura prévia, que permite que a política

passe a ser tratada na imprensa como debate público. Desse modo as decisões políticas

passaram a ser tomadas diante do “fórum público”, durante o reinado da rainha Anne

(1702-1712), jornais publicam os debates parlamentares.

No início tais publicações favoreciam o governo, mas logo os partidos ingleses

começam a contratar literatos para defender suas causas nos jornais, e apresentar seus

programas políticos. Habermas encontra nessa época o aparecimento do termo espírito

público (1793)95, na Inglaterra, a opinião do povo baseada nos costumes — o common

sense — era tido como infalível.

O filósofo alemão Emanuel Kant aponta a opinião pública como racionalização da

política em nome da moral96. De princípio ele se refere apenas aos proprietários como

93 BENTHAM, apud. HABERMAS, J. Mudança Estrutural da Esfera Pública, p. 123. 94 HABERMAS, p. 71. 95 Idem, p. 85. 96 Ibidem, p. 126.

Page 48: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

48

público politicamente pensante (por serem proprietários independem de outros para

sobreviver) que usando a razão fora da subordinação de esferas como o Estado e a Igreja

acabariam cumprindo a função de esclarecer o restante do povo. Assim Kant afirma,

primeiramente, que se dando ao povo a liberdade de se ilustrar, ele o fará.

Mas também afirma, por outro lado, que esse uso da razão livre de subordinações

(Kant chama uso público da razão) é feito entre iguais. Ainda que se trate de proprietários

iguais, Habermas salienta essa fundamental característica da esfera publica burguesa: a

discussão se dá entre iguais, entre homens (despidos dos atributos de classe) — entre

cidadãos.

Combinando-se ao jusnaturalismo, a opinião pública aparece como o conjunto dos

cidadãos dotados de direitos. A lei do estado só tem valor se está em concordância com

esses direitos. De modo que ela serve ainda de orientação ao Estado deve fazer, noção bem

cara aos deputados vintistas, como se pode ver desta reprovação à censura:

É proveitosa aos governados? (a censura) Não [...] é impossível combinar Constituição com

escravidão. É proveitosa aos governos? [...] Não, porque lhes tolhe o conhecimento da Opinião

Pública, e sem esta bússola infalível dão consigo à costa, como temos observado até em nossa casa97

A opinião pública era dada como soberana pelos deputados, considerando-a

desinteressada e autônoma. Mas para consolida-la tinham problemas a superar: a influência

do rei, da Igreja, a fraca instrução popular. No caso do rei, sua ausência permitiu a

elaboração de um texto que reduziu em muito seus poderes, ao transferir a soberania à

figura da nação, que por sua vez só podia ser representada pelo congresso.

O problema da Igreja era mais complexo, sendo a abolição da Inquisição em 1820

foi um passo importante. Mas também é possível ver como a discussão nas cortes tendia a

separar claramente os limites as esferas estatal e eclesiástica.

Nas discussões, entretanto, o baixo nível cultural do povo aparecia como um

obstáculo muito forte a consolidação do regime. O problema maior, como salientou

Tengarrinha, foi o fato da imprensa não ter cumprido apenas o papel de veículo de

exposição de idéias, mas ter se dedicado mais a ataques pessoais as principais figuras

políticas. Era típica a circulação de folhas anônimas, a colocação de cartazes dedicados a

97 fala do deputado Sr. Pereira do Carmo, idem, idem, p. 57.

Page 49: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

49

ofender os deputados e outras autoridades. A derrubada da censura prévia foi uma grande

conquista, mas as inúmeras restrições dentro da lei de abuso da imprensa deixam

transparecer a insegurança dessa época.

Ficou o paradoxo de se julgar a opinião pública como fundamental salvaguarda da

constituição elaborada, mas com restrições à imprensa, justamente o meio fundamental, se

não o único, de construir uma opinião permanente e sempre vigilante. Típico de regimes

frágeis, diante o conservadorismo reinante, somado à situação política externa desfavorável

esse ato de cercear a imprensa matava a própria opinião nascente. As idéias liberais, que já

não se encontravam muito bem difundidas em Portugal, enfrentariam ainda maior

dificuldade para serem divulgadas.

Page 50: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

50

CONCLUSÃO

O que se procurou neste trabalho foi verificar as características do pensamento

conservador nas Cortes Constituintes de 1820 no tocante à liberdade de imprensa. Para se

compreender esse assunto também é necessário estudar o período imediatamente anterior, o

das invasões francesas, pois isso exerceu enorme influência nos acontecimentos seguintes.

Como foi demonstrado ao longo deste texto, o direito de comunicação dos

pensamentos não foi questionado nos debates, porque a idéia de direitos humanos

encontrava-se amplamente divulgada em Portugal, ainda que elaborada em conjunto com a

Escolástica. A reforma pombalina foi não foi capaz de fazer o divórcio sucedido nos países

que se entregaram ao empirismo elaborando um pensamento científico autônomo, e uma

ética autônoma.

Na Península Ibérica, a adoção direito dentro da escolástica impossibilitou o

divórcio entre ética e religião, levando à intolerância que proibia reformas administrativas e

sociais. Vemos pelo panfleto do frei Joaquim Galvão que as idéias liberais são rechaçadas

como atéias e destruidoras da ordem, prelúdio de conseqüências nefastas para o país. E a

voz do clero exercia enorme influência na população, pois muitos dos deputados eram

clérigos (o próprio frei Joaquim Galvão foi eleito para a deputação de 1822, seguinte à que

analisamos neste trabalho).

A Contra Reforma consolidara o catolicismo como traço nacional mais

característico tanto em Portugal quanto em Espanha. As invasões francesas prejudicaram

ainda mais o contato com as idéias do iluminismo. As guerrilhas contra os franceses foram

movidas pela liderança dos clérigos locais, fortalecendo as autoridades senhoriais, sendo

difundidas como verdadeiras cruzadas98. E essa cruzada também foi guiada contra o

pensamento ilustrado.

O frei Joaquim Galvão, por exemplo, refuta as propostas “jacobinas” do autor do

Correio Braziliense, afirmando que:

98 QUIROS, J. Carlos Peñas. El pensamiento reaccionario en las Cortes de Cádiz. In: ALBALADEJO, Pablo. Fernandez ; LOPEZ, Margarita Ortega (Ed.) Antiguo Régimen y liberalismo. Madrid: Alianza Editorial, 1995, v. 3.

Page 51: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

51

Filósofos Jacobinos trabalham por alucinar os povos, arruinar a reputação dos

ministros, e derrubar os Soberanos, para preencherem às vistas particulares da sua

ambição: logo que eles sejam os válidos, os Ministros, os Soberanos, está a casa

quieta, e concluída a regeneração do gênero humano99

A própria palavra filósofo é usada como deboche, quando ele se refere ao “Redator

Filósofo” do Correio, ainda o acusando de elogiar Napoleão Bonaparte, cujo império é

conseqüência da “cegueira fatal aos princípios de imoralidade, e da irreligião, que lhes

inspirou a filosofia do séc. XVIII”100. Ao movimento ilustrado cosmopolita é oposto um

nacionalismo religioso que instaurara uma paranóia guerra contra a filosofia atéia.

Como foi visto, esse clérigo português mostrou-se orgulhoso da pureza do reino

diante da propagação da obra dos novos filósofos, e para isso a censura prévia é o melhor

recurso. Note-se que nas próprias discussões das cortes deputados ficaram a favor da

manutenção da censura pois temiam os estragos que os filósofos iluministas podiam

causar101.

Ao tratar do pensamento reacionário nas cortes de Cádis, que serviram de modelo

pára a constituição portuguesa, J. Carlos Quiros afirma não ter havido na Espanha um

movimento ilustrado nacional102. O que havia era alguns homens ilustrados. Portugal traçou

um caminho similar, segundo Antonio Paim — pois, como vimos, as novas teorias foram

assimiladas sem um questionamento profundo do pensamento religioso e sua hierarquia.

São esses ilustrados, que tiveram acesso às obras dos filósofos iluministas pelo

contrabando ou no exílio que lamentam o estrago causado pelos tempos de censura. Eles

sentem o atraso em relação ao restante da Europa. Um dos deputados assim resumiu a

situação: “não temos um livro de filosofia, nem de princípios sábios de legislação, nem

mesmo uma história racional, numa palavra: não temos nada”103.

99 REFLEXÕES... , p. 75. 100 Idem, p.112. 101 fala do deputado Anes de Carvalho, Sessão de 14 de fevereiro de 1821, In: DIAS, p.11 102 QUIROS, p. 540. 103 fala do deputado Margiochi.sessão de 15 de fevereiro de 1821. In: DIAS, p. 73. Francisco Simões Margiochi (1774-1838) foi deputado pela Extremadura, era maçon, bacharel em matemática e filosofia em 1778, oficial da marinha e do exército. Em 1833 foi ministro da marinha ultramar. Disponível: http://maltez.info/respublica/Cepp/classe_politica/monarcon/monarconm.html, 12/12/2004.

Page 52: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

52

Mas se por um lado os deputados liberais lamentam a falta de instrução do povo, os

partidários da censura prévia alegam o mesmo para limitar a própria liberdade de imprensa.

Esse é mais um ponto convergente, o reconhecimento do baixo nível de instrução, ainda

que encarado de formas diferentes, há uma expectativa autoritária, de negar liberdade ao

povo antes que se instrua, e uma oposta, de que é a liberdade que permitirá ao povo se

instruir.

Um outro ponto importante a se salientar no tocante à discussão de liberdade de

imprensa é a separação entre Igreja e Estado. No tocante à censura, não é uma novidade,

como foi visto nas reformas pombalinas. O regulamento de imprensa da rainha Maria I

alegava que bispos não podiam aplicar penas temporais104, ainda que estes pudessem usar

sua influência para que livros fossem proibidos de correr. Admitir a separação não foi,

portanto, o passo adiante dado pelos deputados, mas sim o reconhecimento do júri como

qualificado para decidir sobre estes aspectos.

Zilia Osório de Castro, ao fazer uma análise da biografia e obra de Manoel Borges

Carneiro (este reconhecido como um dos líderes liberais) aponta que os deputados

portugueses liberais em política, não o foram em matéria de economia, mostrando também

enorme intransigência com as reivindicações dos brasileiros. Borges Carneiro, como

também se viu, estava temeroso dos ataques ao sistema constitucional por parte da

imprensa, por sua fala é que se tem a impressão da fragilidade do novo Regime105.

Ou seja, pesando-se tais argumentos de fragilidade do regime, não se pode

menosprezar o grande progresso que foi trazido pela lei de imprensa com a instituição do

juízo dos jurados, depois levado às outras causas, para a decisão do que era abuso.

É interessante levar em conta uma outra observação a respeito das próprias idéias de

soberania. Uma, dentre as inúmeras queixas do frei Joaquim Galvão contra o iluminismo é

à redução dos modelos constitucionais, admitindo-se apenas uma forma justa de governo (o

104 Veja-se pelo despacho de criação da Real mesa de comissão Geral Sobre o Exame e Censura de Livros: 11o Porém como os mesmos Bispos, como tais não têm poder, para permitir, ou proibir, que os livros se imprimam, e corram, e para estabelecer penas Temporais, mas sim, e tão somente para censurar, e delcarar doutrina: Mando pelos justos motivos que deram causa à criação deste Tribunal, que a permissão, aprovação, e proibição dos Livros, e quaisquer outros Papéis, seja privativa da sua inspeção, e que os Bispos nesta parte não se intrometam: Quando porém acharem que nos seus Bispados corram alguns Livros maus, e perigosos podem, e devem, em razão do seu Alto, e Sagrado Ministério censurar: e sendo necessário fazer o seu ofício ao mesmo Tribunal, para proibir, que corram, e dar as Providências necessárias, o que muito lhes Encomendo: ou recorrer a Mim imediatamente. In; BASTOS, p.136. 105 CASTRO, p. 898.

Page 53: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

53

representativo), o que contraria a tradição portuguesa, pois ela tinha sua constituição

particular — segundo o frei, uma constituição puramente monárquica.

A Inglaterra, por outro lado, foi bem sucedida com sua “devassa”106 liberdade de

imprensa, graças à sua tradição, que sendo diferente da portuguesa, impossibilitava que os

deputados de Lisboa abrissem mão da busca do melhor equilíbrio (ou seja, leis mais

severas). De certa forma, muitos deputados não romperam com a concepção que o frei

Joaquim Galvão expõe na introdução de seu panfleto:

O escritor que não se propõe espalhar sobre seus semelhantes as luzes de uma sã razão, dilatar o

Império da virtude, e melhorar a condição do homem social, inculcando moderação nos que

mandam, e sofrimento aos que obedecem, é um charlatão indigno, que merece o desprezo dos

homens justos, e sábios de todos os séculos e todas as nações107.

Para um homem defensor dessa hierarquia, como se pode formar uma opinião

pública de cidadãos discutindo todos os atos do governo? O frade português deixa claro que

não concebe outra soberania além da do rei. Ainda que os resultados dos debates e das

votações apontassem uma tendência de mudança, essa concepção de poder absoluto ainda

permaneceu forte em Portugal.

106 fala do deputado Madeira Torres, sessão do dia 14 de fevereiro de 1821 In: DIAS, p. 35 107 REFLEXÕES... p. 01.

Page 54: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

54

TIPOLOGIA DAS FONTES

GALVÃO, Joaquim de Santo Agostinho Brito França. Reflexões sobre o

Correio Braziliense. Lisboa : Na Impressão Regia, 1809-[1810].

Este periódico de França Galvão está disponível em microfilme (perto de 170

páginas).

DIAS, Augusto da Costa. Discursos sobre a liberdade de imprensa / 1821. Lisboa:

Portugália,1966.

LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO

ARTOLA, Miguel, Antiguo regimen y Revolucion liberal, Barcelona, Ariel, 1991

TENGARRINHA, José. História da Imprensa Periódica Portuguesa. Lisboa,

Portugália, SD.

TENGARRINHA, José Da imprensa mitificada à liberdade subvertida: uma

exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828. Lisboa :

Edições Colibri, 1993.

RIBEIRO, Manuela "Subsídios para a história da liberdade de imprensa". Boletim

do Arquivo da Universidade de Coimbra. Coimbra : Universidade de Coimbra,

1984, v.VI, p. 461-593.

SARASOLA, Ignácio Fernández. La constitución española de 1812 y su

proyección europea e iberoamericana. Cadernos Monográficos de Teoria do

Estado, Direito Político e História Constitucional, V.2. Disponível:

http://constitucion.rediris.es/fundamentos/segundo/index.html, 28/06/2003

QUIROS, J. Carlos Peñas. El pensamiento reaccionario en las Cortes de Cádiz. In:

ALBALADEJO, Pablo. Fernandez ; LOPEZ, Margarita Ortega (Ed.) Antiguo

Régimen y liberalismo. Madrid: Alianza Editorial, 1995, v. 3.

Page 55: Debates panfletários em torno da liberdade de imprensa (1808-1820)

55

COPLESTON, FREDERICK. Historia de la Filosofia: de Wolff a Kant.

Barcelona: Ariel, 1979, v.VI.

CONSTITUIÇÃO de 23 de setembro de 1822. Disponível:

http://www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/const822.html, em 8/12/2004.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo :

Companhia das Letras, 1996.

HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1984.

CASTRO, Zilia Osório. Cultura e Política. Manuel Borges Carneiro e o Vintismo.

Lisboa: INIC , 1990, 2 vol.

PERES, Damião. História de Portugal. Barcelos: Portucalense 1929, v.VII

ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu. As invasões francesas e a afirmação das

idéias liberais. In: MATTOSO, José (Org) História de Portugal. Lisboa: Estampa,

V.5.

BASTOS, José Timóteo da Silva. História da Censura Intelectual em Portugal

Ensaio sobre a compreensão do pensamento português. Lisboa: Moraes Editores,

1983 2a ed.

A REAL Mesa Censória e a Cultura Nacional. Aspectos da Geografia cultural

Portuguesa no século XVIII. Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra.

Coimbra Editora, v. XXVI, 1964.

POLITICOS PORTUGUESES DA MONARQUIA CONSTITUCIONAL.

Disponível:http://maltez.info/respublica/Cepp/classe_politica/monarcon/monarconm

.html, em 5/11/2004.

PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo,

1967.

DECLARAÇÃO DE DIREITOS DA VIRGINIA.

Disponível:http://www.cefetsp.br/edu/eso/cidadania/declaracaovirginia.html,em

10/12/2004.