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Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

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DEBATES PERTINENTES para entender a sociedade contemporânea

Volume 1

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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Chanceler: Dom Dadeus Grings

Reitor:

Joaquim Clotet

Vice-Reitor: Evilázio Teixeira

Conselho Editorial:

Antônio Carlos Hohlfeldt Elaine Turk Faria

Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco

Jaderson Costa da Costa Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga

Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)

José Antônio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes

Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira

Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini

Ney Laert Vilar Calazans René Ernaini Gertz

Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chittó Gauer

EDIPUCRS:

Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-chefe

Page 4: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Hermílio Santos Organizador

DEBATES PERTINENTES para entender a sociedade contemporânea

Volume 1

Porto Alegre

2009

Page 5: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

© EDIPUCRS, 2009

Capa: Deborah Cattani

Diagramação: Stephanie Schmidt Skuratowski

Revisão: Rafael Saraiva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D286 Debates pertinentes : para entender a sociedade contemporânea [recurso eletrônico] / org. Hermílio Santos. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. v. Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/>

ISBN 978-85-7430-938-5 1. Ciências Sociais. 2. Sociologia. 3. Sociedade – Século

XXI. 4. Antropologia Social. I. Santos, Hermílio. II. Título.

CDD 301.24

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS

Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33 Caixa Postal 1429

90619-900 Porto Alegre, RS - BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3711 E-mail: [email protected] http://www.edipucrs.com.br

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SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................................ 6 Hermílio Santos

Justiça social e democracia na modernidade periférica .................................. 7 Emil Sobottka

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica .................. 25

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociedades complexas e políticas públicas .................................................... 41 Hermílio Santos

Propaganda Política, Partidos e Eleições ........................................................ 68

Marcia Ribeiro Dias Política e integração na América do Sul .......................................................... 88

Maria Izabel Mallmann Pentecostais e política no Brasil: do apolitismo ao ativismo corporativista .................................................................................................... 112

Ricardo Mariano Mercado Religioso e a Internet no Brasil ....................................................... 139

Airton Jungblut Antropologia das instituições e organizações econômicas ......................... 155

Lúcia Müller Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento ?” .............................................................................................. 176

Léo Peixoto Rodrigues

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6 Hermílio Santos (Org.)

Apresentação

Com este volume iniciamos a publicação da série Debates Pertinentes. Um

conjunto de três livros dedicados a analisar, por um lado, temas importantes para

a compreensão das sociedades contemporâneas, por outro lado, a contribuição

de autores clássicos e contemporâneos, tanto da sociologia, da ciência política

quanto da antropologia, para a compreensão desses temas. Trata-se de uma

iniciativa do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação

em Ciências Sociais da PUCRS em parceria com o Goethe-Institut Porto Alegre.

Os textos publicados neste primeiro volume, cujo subtítulo é “Para entender a

sociedade contemporânea”, foram apresentados em um seminário realizado entre

os dias 9 e 12 de junho de 2008 no auditório do Goethe-Institut de Porto Alegre,

espaço reconhecido por fomentar o debate público e por tornar a pesquisa

acadêmica acessível também à comunidade não acadêmica.

O Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, que

passa a contar com o Doutorado a partir de 2010, vem ocupando um espaço

importante na produção das ciências sociais no Brasil, expresso, dentre outros

indicadores, pela avaliação positiva que vem sendo conferida pela CAPES,

quanto pelo papel ocupado pela Civitas – Revista de Ciências Sociais, publicada

pelo PPGCS da PUCRS. Este primeiro volume da série Debates Pertinentes

pretende dar maior visibilidade à contribuição dos professores e pesquisadores do

PPGCS para o entendimento de problemas sociais contemporâneos, ao analisar

temas sociais relevantes e que constituem objeto de pesquisas conduzidas pelos

professores do PPGCS. Nesse sentido, a publicação da presente coleção tem

como objetivo consolidar a contribuição teórica e de estudos empíricos

conduzidos recentemente pelos autores. Além disso, a coleção visa oferecer

instrumental analítico para introduzir o leitor iniciante em temas e teorias de

sociologia, antropologia e ciência política. Trata-se de uma obra que poderá ser

utilizada tanto nos cursos de graduação, quanto ainda do ensino médio e em

certa medida também no ensino de pós-graduação, na medida em que alguns

autores que serão apresentados (sobretudo no Volume 2 desta coleção) possuem

poucas obras de referência publicadas no Brasil.

Hermílio Santos – Organizador

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Justiça social e democracia na modernidade periférica

Sobre a distribuição da riqueza socialmente produzida

Emil A. Sobottka1

O título dado a esta apresentação, sugerido dentro da proposta de debates

pertinentes que ajudem a compreender a sociedade contemporânea, foi justiça

social e democracia na modernidade periférica. O subtítulo especifica a temática,

ao apontar para a questão sobre como se distribui a riqueza produzida em

sociedades modernas. Assim, os três grandes conceitos: justiça social,

democracia e modernidade periférica podem confluir para a questão da

distribuição da riqueza produzida socialmente.

A referência para refletir sobre a sociedade contemporânea é a

modernidade clássica, aquele modo de organizar a vida que surgiu em

substituição ao período medieval. Trata-se de uma forma de organizar as relações

sociais que tem entre seus traços mais característicos estar constantemente em

mudança. Alguns autores interpretam algumas mudanças particulares como se

elas indicassem a superação desse modelo de sociedade e o surgimento de um

novo tipo; isso tem permitido a esses autores propor que a atualidade seja uma

modernidade tardia, uma pós-modernidade, uma hiper-modernidade. Mas mesmo

esses autores retornam à modernidade clássica como sua referência para

dimensionar as transformações.

Na questão de como se distribui a riqueza socialmente produzida e como

se estruturam as relações sociais, também eu gostaria de começar com uma

reflexão sobre aquilo que, pelo menos classicamente, se reivindica como a

situação normal dentro da sociedade moderna. Começo analisando a ideia do

trabalho como a forma central tanto de alocar a riqueza produzida socialmente

como também o eixo constitutivo, estruturador central das relações dentro da

sociedade moderna.

1 Doutor em Sociologia e Ciência Política, pesquisador do CNPq e professor do PPG em Ciências Sociais da PUCRS. O texto apresenta resultados parciais da pesquisa Reconhecimento, cidadania e democracia: Direitos sociais e política social no Brasil e na Alemanha nas últimas duas décadas, apoiada pelo CNPq e pelas Fundações Humboldt e Thyssen.

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8 Emil A. Sobottka

Trabalho e distribuição da riqueza socialmente produzida

Diferente de outros períodos históricos, na sociedade moderna, em

especial aquela que se fez modernidade capitalista, o trabalho foi transformado no

centro gerador e estruturador dessas duas dimensões da sociedade. Na obra

denominada Princípios de filosofia do direito, um escrito do período da

maturidade, Hegel reflete explicitamente sobre a questão de como a sociedade

moderna que se torna individualizada, que vai perdendo certos vínculos

tradicionais externos, pode encontrar novos fundamentos para se estruturar e

também novos critérios para que as pessoas possam construir nela sua

identidade. Hegel vê no trabalho o lugar social desses dois processos. O trabalho

é visto a partir do homem que se encontra face à natureza e, mediante sua

transformação, produz a partir dela meios para suprir as suas necessidades.

Nessa sociedade, porém, a base do trabalho não é mais o artesanato, como em

períodos históricos anteriores, e sim a divisão social e técnica: as pessoas não

fazem mais "de tudo um pouco", segundo as necessidades concretas, mas se

especializam em determinadas atividades. No conjunto tornou-se possível

produzir muito mais – diz-se que aumentou a produtividade –, mas as pessoas

individualmente passam a concentrar-se crescentemente sobre um número

restrito de procedimentos. Para diversos teóricos esse novo trabalho pareceu

muito centrípeto, dispersivo, individualizante, e colocou a pergunta pelo modo

adequado de manter unida a sociedade agora sem os vínculos tradicionais.

Quando Hegel dá ao trabalho esse lugar central nas relações sociais, ele

não se refere ao avanço técnico, ao aumento da produtividade. Se isso fosse a

característica central da nova forma de trabalho nessa sociedade moderna e

capitalista, ela seria extremamente pobre. Hegel, ao contrário, vê nessa nova

modalidade de transformar a natureza em satisfação das necessidades uma base

ética (Honneth, 2008). A pessoa que trabalha não produz mais o produto na sua

integridade e também não se apropria apenas da quantidade de produtos que ela

produziu para suprir as suas necessidades; agora ela está inserida em processos

através dos quais contribui para as necessidades dos outros e os outros

contribuem para as suas necessidades. Assim forma-se uma interdependência

que, segundo Hegel, deveria motivar os indivíduos a deixarem o seu ócio, a sua

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Justiça social e democracia na modernidade periférica 9

preguiça de lado e a trabalharem para que, com os frutos do seu trabalho,

pudessem contribuir para a satisfação das necessidades também dos outros.

Assim, esse autor constrói uma ponte ética que ele julga ser capaz superar o

comodismo, a eventual vontade de curtir o ócio indeterminadamente, para dar

uma contribuição social. Nessa visão, não são as necessidades como tais que

impelem o homem a trabalhar, num sentido mais animalesco, e sim o

compromisso ético com a coletividade. Mas o novo lugar que o trabalho ocupa na

sociedade não compromete eticamente de forma unilateral o indivíduo com a

coletividade. Segundo Hegel, a sociedade deve corresponder a essa disposição

do indivíduo, permitindo que ele receba o suficiente para sustentar

adequadamente a si e a sua família. Ou seja, o indivíduo que renunciar à

liberdade de curtir o ócio e se dispor a contribuir com o trabalho para a satisfação

das necessidades de outros membros da sociedade tem direito à expectativa

fundada de ter supridas as suas necessidades – dele e de sua família, à altura

das práticas usuais no seu tempo e contexto. Dessa forma cria-se um sistema de

interdependência e se estabelece um critério, uma medida padrão para alocação

das riquezas em sociedade. Esse esquema de argumentação revela uma

proximidade com o contratualismo: ao invés de o indivíduo tentar viver o máximo

do ócio possível e apenas se contentar com alguma transformação da natureza

para as suas necessidades, ele cede parte de sua liberdade para receber em

troca um grau maior de satisfação das necessidades, suas e de sua família. Hegel

introduz aqui uma dimensão que será vista com muita frequência na discussão

das relações econômicas na sociedade moderna: a ideia de que, de alguma

forma, a família e não só o indivíduo ocupa um lugar importante nas relações de

trabalho.

Essa reflexão de Hegel foi apropriada por Marx de um modo muito

específico, colocando as relações de produção no centro da estruturação da

sociedade. A sociedade capitalista, que para ele eclipsa a sociedade moderna,

tem um modo peculiar de alocação da riqueza: os proprietários dos meios de

produção ficam com quase tudo e trabalhadores, que na visão dele são os

efetivos produtores da riqueza, ficam com tão pouco, que é insuficiente para viver

e sustentar a família. Mudanças no modo de produzir que, em linguagem atual,

podem ser chamados de avanços tecnológicos permitiram um aumento da

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10 Emil A. Sobottka

geração de valor, de riqueza. Mas o poder maior dos proprietários dos meios de

produção, dos donos da indústria, na hora de barganhar o preço da força de

trabalho, faz com que eles possam ficar com uma parcela muito maior da riqueza

e pagar uma parcela menor para aqueles que vendem sua força de trabalho. A

dificuldade que Marx tem nesse contexto é encontrar critérios aceitáveis para uma

distribuição diferente. Para ser aceitável, numa sociedade moderna, um critério

deve satisfazer várias condições – um dos principais é não ser aleatório. Para

diversos autores, como Axel Honneth (2008), os critérios precisam ser internos ao

próprio processo social em questão. Intuitivamente, com base no bom senso,

talvez seja possível argumentar em favor de uma distribuição mais equitativa. Mas

um critério aceitável precisa ser consistente em termos teóricos. E Marx tem

dificuldade em apresentar uma boa argumentação que fundamente como deveria

ser a distribuição da riqueza.

A argumentação feita por Hegel pode não ser convincente na atualidade,

mas ela tinha uma importância para a sociedade do seu tempo: era uma

fundamentação interna ao próprio processo. No momento em que o indivíduo

cede algo que ele não precisaria ceder – no caso, uma parte da sua liberdade – e

se dispõe a trabalhar e assim a cooperar com o bem coletivo, ele tem direito a ter

a expectativa de receber dessa coletividade algo em troca. Marx não levou

suficientemente a sério a necessidade de uma fundamentação, mas essa é hoje

uma exigência central em quase toda teoria social. A atividade teórica dele tem

sido muito mais produtiva em diagnosticar patologias sociais do que em

apresentar critérios aceitáveis com os quais pudessem ser fundamentadas

exigências de mudança social.

Um autor que trabalhou mais nessa argumentação hegeliana foi Emile

Durkheim (1984). Ele não foi muito explícito nesse sentido, mas não é difícil

encontrar nele o parentesco com Hegel através daquilo que Max Weber

denominou de afinidades eletivas. Durkheim retoma a ideia do trabalho como um

dos pontos centrais da sociedade moderna em seu estudo sobre a divisão do

trabalho social, e tenta demonstrar como o trabalho cria solidariedade mesmo na

sociedade moderna – individualizada e com divisão técnica do trabalho. Segundo

ele, o trabalho tradicional criava um tipo de solidariedade mecânica, por imitação,

que não correspondia mais aos tempos modernos. Mas ele, tal como Hegel,

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Justiça social e democracia na modernidade periférica 11

julgava infundado o temor de que a sociedade se decomporia em uma infinidade

de indivíduos isolados. Exatamente a interdependência da divisão técnica do

trabalho – na qual são necessárias muitas pessoas realizando tarefas parciais

para produzir determinado produto – e da divisão do trabalho social – na qual as

diversas funções necessárias ao bom andamento da sociedade estão

amplamente distribuídas, mas de algum modo coordenadas entre si – geraria um

tipo novo de solidariedade, especifico da modernidade: a solidariedade orgânica.

Tudo isso é bastante conhecido. Menos conhecido possivelmente seja que

na teoria de Durkheim há uma reflexão sobre a fundamentação ética que esse

novo processo de estruturação das relações sociais através do trabalho exigiria.

Em sintonia com a tradição liberal, ele coloca a igualdade de condições como

ponto de partida eticamente normativo. Nessa tradição, a igualdade da formação

para o desenvolvimento pleno das habilidades vocacionais profissionais permitiria

que todas as pessoas tivessem na sua juventude, no momento da definição da

sua carreira profissional, a oportunidade de ter uma formação que as habilitasse a

competir no mercado em condições de igualdade e, acima de tudo, a realizar

plenamente a sua vocação e não ser frustrado nela. Isso seria, a rigor já por

antecipação, um dever da sociedade para com o indivíduo, para que ele possa

contribuir com ela melhor depois. Seria quase como uma hipoteca que a

sociedade já coloca para o indivíduo e tem depois a expectativa fundada de

receber a sua contribuição de volta.

Um segundo ponto que, pelo menos na tradição das ciências sociais, se

enfatiza pouco na leitura de Durkheim, é sua defesa de uma remuneração do

trabalho segundo o seu valor para a sociedade. Quase lá no final da obra A

divisão do trabalho social (Durkheim, 1984, v. 2) há todo um subcapítulo que trata

dessa questão. Nele o autor defende que trabalho não pode ser remunerado

segundo os humores do mercado, de quem contrata o trabalho do assalariado,

mas deve ser recompensado segundo aquilo que esse trabalho contribui para a

sociedade. Portanto, o que deveria orientar a distribuição da riqueza não é o valor

de mercado, mas sim a importância da função que aquele trabalho tem dentro da

sociedade. Isso aproxima a argumentação de Durkheim da tese hegeliana do

direito a uma compensação adequada para a renúncia feita pelo indivíduo ao

deixar o ócio e contribuir para o bem de todos.

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12 Emil A. Sobottka

Um terceiro ponto que Durkheim coloca nesse contexto merece ser

enfatizado. Segundo ele, é necessário que o trabalhador possa sentir dentro do

próprio processo de trabalho que ele está dando uma contribuição para a

sociedade. O oposto aparece no filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin

(1936), que mostra a pessoa sendo reduzida a um trabalho extremamente

rotineiro, no qual quase não precisa usar mais a sua cabeça para pensar; ela

apenas precisa cumprir a rotina com eficácia. Durkheim, ao contrário, reivindica

uma ética, segundo a qual as atividades devem ser divididas de tal modo que

quem as executa possa perceber dentro do próprio processo de trabalho que está

dando uma contribuição para a sociedade. Há também aqui a preocupação de

não buscar externamente, como na tradição, por exemplo, uma fundamentação

para os critérios de distribuição do fruto do trabalho. Comum a Hegel é aqui a

ideia de que quem trabalha consiga reconhecer dentro desse trabalho que está

dando uma contribuição para a sociedade. Talvez seja possível dizer que nas

reivindicações feitas por Durkheim há uma componente identitária.

Esses são apenas alguns exemplos de teóricos que têm colocado o

trabalho como central para a sociedade. Central não apenas para o

desenvolvimento da economia, para o aumento da produtividade, para a geração

de riquezas, mas também para a estruturação de relações sociais e para a

conformação de aspectos éticos da convivência em sociedade. Com essas

construções de critérios éticos, feitas a partir de dentro do próprio mundo de

trabalho, torna-se possível dar respostas bem fundamentadas para a questão de

como a riqueza deveria ser distribuída socialmente. Mas a observação de

situações históricas mostra que tem sido grande a dificuldade para cumprir esses

critérios. As razões para isso não podem ser analisadas aqui. Principalmente em

momentos de crise, quando tem ficado evidente que havia falhas na distribuição

da riqueza socialmente produzida, em muitas sociedades recorreu-se à política

para construir critérios que justificassem formas de distribuição da riqueza que

não fosse a via da renda salarial. Essa nova forma de distribuição da riqueza

socialmente criada é a política social.

Page 14: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Justiça social e democracia na modernidade periférica 13

Política social e distribuição supletiva da riqueza

Quando políticas sociais começaram a ser instituídas, elas tiveram várias

vertentes teóricas ou políticas que buscavam justificá-las. Uma das razões mais

comumente alegadas é a necessidade de um complemento ou uma correção do

mercado em momentos ou situações em que este falha na alocação da riqueza.

Dentro dessa maneira de pensar, o mercado capitalista em geral, e o mercado de

trabalho em particular, seriam o melhor instrumento para distribuir a riqueza

socialmente produzida. Apenas quando houver algum distúrbio grave seria

eticamente justificável e, portanto, aceitável uma intervenção corretiva. Essa

intervenção em regra é delegada ao estado, para que ele faça algum

complemento ou que ajude a superar a situação que o mercado

momentaneamente não conseguiu gerir.

Além dos momentos de crise, outra área admitida como justificada para

políticas sociais é a cobertura de certos riscos do ciclo de vida. Um desses riscos

previsíveis é o período em que, em tese, cessarão as forças para o trabalho. Para

cada trabalhador é estatisticamente previsível o prazo normal, dentro de

determinada sociedade, até quando ele terá forças para trabalhar e se sustentar;

a questão que se coloca é: o que virá depois disso? Como ele sobreviverá depois

de findo seu ciclo de vida profissional, para não recair na dependência de

terceiros, que é um dos grandes temores do indivíduo emancipado na

modernidade? A seguridade social é uma instituição que permite ao indivíduo que

ele próprio seja previdente, que faça alguma contribuição a algum fundo, ou que a

coletividade reserve uma parte da riqueza social, e assim o trabalhador tenha

assegurado o direito a receber o seu sustento vitalício quando deixar a vida

laboral. Essa política é a aposentadoria – que muitas vezes é extensiva a

determinados membros da família na forma de pensão. Através dessa política

haverá uma alocação de uma parcela da riqueza social para que aquela pessoa

que contribuiu para o bem da sociedade com seu trabalho possa viver e

envelhecer dignamente.

Há outros riscos do ciclo da vida que são previsíveis no conjunto de uma

população, mas dificilmente podem ser individualizados – como enfermidade e

desemprego. Entre as primeiras políticas sociais em diversos países figuram

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14 Emil A. Sobottka

aquelas que buscavam responder à preocupação com a continuidade da renda, e,

com isso, a possibilidade de seguir dando sustento à família nos casos de

impossibilidade de trabalhar devido a uma enfermidade ou ao desemprego. Hoje

a preocupação com o custo do tratamento de saúde ocupa o lugar central, mas

nas primeiras políticas sociais de saúde a questão era a interrupção da

remuneração que afetava diretamente a satisfação das necessidades do

trabalhador e de sua família. Há razões históricas para que os custos do

tratamento de saúde passassem a esse lugar central, como maior valorização da

longevidade e o aumento do próprio custo dos tratamentos pela incorporação de

tecnologia, pela maior abrangência dos tratamentos possíveis e assim por diante.

Outro momento em que a política social pode cobrir riscos é o do

desemprego. Dentro de certo nível de flutuação macroeconômica, o desemprego

é considerado normal; ele faz parte da coordenação de oferta e procura pelo

mercado. Mas mesmo que na teoria econômica se considere normal uma

pequena oscilação nos níveis de emprego, quando o desemprego afeta o

indivíduo, ocorre uma interrupção na renda que pode ameaçar a sua

sobrevivência. Para assegurar a continuidade na satisfação das suas

necessidades e de sua família, mesmo a tradição liberal passou a aceitar alguma

forma de suprimento dessas necessidades via política social.

Mas há também outra reivindicação na política social, uma utopia mais

próxima da vertente socialista, de que a política social possa decomodificar as

relações de trabalho. Essa expressão, usada por Esping-Anderson (1990), talvez

fique mais compreensível se utilizada em outro contexto: o do mercado de grãos,

minérios ou petróleo. Dentro desse contexto, commodity se refere a um produto

com características genéricas, mais ou menos igual em qualquer lugar do mundo.

Ele tem pouca variação e, portanto, não apenas seu preço será relativamente

igual, mas pode ser trocado por outro sem maiores consequências. A commodity

força de trabalho num mercado capitalista pode chegar a este extremo – em que

as pessoas que trabalham são intercambiáveis porque aquilo que elas têm a

oferecer, a sua força de trabalho, passa a ser considerado como uma mercadoria

qualquer, que pode trocar por outra em qualquer momento. Isso valia por muito

tempo principalmente naquelas atividades em que a qualificação, a experiência ou

a habilidade técnica tinham uma importância menor. Hoje, cada vez ampliam-se

Page 16: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Justiça social e democracia na modernidade periférica 15

mais as áreas de atuação em que a força de trabalho passa a ser tratada como

uma commodity. A consequência é que tão logo houver uma oferta um pouco

mais barata, ela é substituída. A utopia de uma política social que decomodifique

o trabalho seria associar não ao trabalho, mas à pessoa que o executa o direito

de participar da riqueza da sociedade de tal modo, que ela não dependa direta e

exclusivamente do mercado de trabalho para satisfazer as suas necessidades. A

proposta não é que o ócio fosse permanente, que a pessoa deixasse de trabalhar;

a ideia é que a pessoa tivesse condições de rejeitar ofertas de trabalho

consideradas atentatórias a sua dignidade enquanto pessoa ou indignificantes da

riqueza socialmente produzida porque a contrapartida proposta em forma de

remuneração é muito baixa. Portanto, uma política social decomodificadora do

trabalho criaria a situação na qual as pessoas poderiam ficar tanto tempo sem

trabalhar até que alguma oferta no mercado de trabalho estivesse à altura de sua

dignidade enquanto pessoa e enquanto produtoras de riqueza. Não é difícil

perceber que essa reivindicação tem um horizonte utópico, ainda relativamente

distante. Mas ao mesmo tempo é interessante observar que há países que se

aproximaram razoavelmente desse tipo de situação.

As políticas sociais na grande maioria dos países no ocidente capitalista –

seja na Europa, nos EUA ou no Brasil – estão vinculadas à condição de

trabalhador formal; no Brasil, inclusive, por décadas muitos direitos relativos à

política social beneficiavam apenas o trabalhador urbano. Alguns poucos países,

em especial os escandinavos, orientaram sua política social para o cidadão, sem

restringi-la ao vendedor da força de trabalho. Com isso eles criaram espaços mais

amplos de autonomia do cidadão para escolher onde ele se inserirá no mercado

de trabalho – modestos quando comparados aos ideais utópicos de uma

reumanização plena da mercadoria força de trabalho, mas uma valorização do

cidadão.

A política social coloca na pauta da discussão pública a questão da

distribuição da riqueza socialmente produzida e, assim, a pergunta pela justiça

social. Não se pode fazer política social sem confrontar-se com a questão sobre o

que é aceitável como socialmente justo, sobre como deve ser distribuída a

riqueza socialmente produzida e como devem ser supridas as necessidades das

pessoas dentro da situação biológica, cultural e social da sociedade específica.

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16 Emil A. Sobottka

Cada sociedade se confronta, ademais, com a questão sobre como agir nas

situações em que a pessoa não tem possibilidade de suprir suas necessidades

autonomamente.

Uma contribuição interessante para essa questão é feita por Claus Offe

(2005). Para esse autor existem três princípios de justiça social: ajuda,

previdência e direito de cidadania. O princípio da ajuda implica em que a pessoa

com necessidade tem direito a receber ajuda, e sua comunidade tem o dever

moral de ajudá-la. A tradição de ajuda aos pobres é milenar (Geremek, 1991), e

no Ocidente ela esteve fortemente vinculada à tradição cristã; hoje

crescentemente esse dever moral de ajudar o próximo em necessidade é visto

como um compromisso humanitário. O princípio da ajuda ao necessitado, no

entanto, não serve como regra geral para a distribuição da riqueza na sociedade.

A riqueza na sociedade moderna não se distribui por sentimentos interindividuais;

para contrapor-se ao acúmulo privado são necessárias regras mais abrangentes e

bem fundamentadas, são necessárias instituições que deem suporte aos

princípios da igualdade e da fraternidade.

O princípio da previdência está amplamente presente na política social e se

refere a uma relação em que através de uma contribuição prévia o indivíduo

adquire o direito a receber dessa provisão uma remuneração. Exemplos são os

seguros sociais, os fundos mutualistas, a previdência social. Face ao fato que

certos riscos da vida têm um grau razoável de previsibilidade de virem a ocorrer,

pode-se instituir formas coletivas de contribuição para um fundo, e essa

participação gera o direito de receber do seguro social uma remuneração quando

for necessário. Todos contribuem enquanto podem e aqueles que necessitam

recebem segundo critérios previamente estabelecidos. Esse princípio tem sido

comum para antecipar-se ao desemprego, a situações de doença e ao período de

aposentadoria. Os seguros sociais geralmente são amparados por legislações

nas quais o estado define e zela pelo cumprimento das regras e também dá seu

aval como garantidor último para as situações em que as necessidades de

desencaixe forem maiores que os fundos acumulados. Eles diferem dos seguros

comerciais porque não se orientam por categorias definidoras de risco, mas

contêm uma dimensão redistributiva da riqueza na medida em que a contribuição

Page 18: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Justiça social e democracia na modernidade periférica 17

se orienta pela renda e a definição do benefício se orienta principalmente pela

necessidade.

Dentro do princípio da previdência há uma variante impulsionada por

liberais que têm dificuldade em aceitar a socialização dos riscos e benefícios: é a

previdência individual que segue o cálculo atuarial. Essa forma de previdência

pode ter uma dimensão distributiva indireta, por exemplo, via incentivos fiscais

para a capitalização, mas se orienta fortemente pela relação entre contribuição e

benefício, deixando em plano secundário a necessidade do beneficiário.

Aposentadorias complementares e planos de saúde no Brasil têm esse caráter. A

contribuição independe da renda, mas se orienta pela expectativa do futuro

benefício, enquanto no seguro social, ao contrário, a dimensão redistributiva

prepondera.

O terceiro critério de justiça social mencionado por Offe é o direito de

cidadania.

A agregação de direitos sociais à cidadania ocorreu basicamente ao longo

do século 20. Uma de suas origens foi a responsabilidade que sociedades

europeias assumiram para com ex-combatentes que perderam a capacidade para

o trabalho e/ou familiares de combatentes mortos na guerra. Outra, sistematizada

por T. H. Marshall (1967) para o caso da Inglaterra, vê a política social como

ampliação da participação nas conquistas do processo civilizatório: os membros

da comunidade podiam esperar uma participação nas condições gerais de vida

por serem cidadãos daquela localidade ou região – uma noção que foi evoluindo

até tornar-se uma cidadania nacional. Segundo esse princípio, o direito a

participar da riqueza da sociedade é derivado da condição de ser membro dela.

A maioria dos sistemas de política social, na atualidade, mesclam em maior

ou menor grau esses três princípios, mas todos eles estão presentes. Contudo,

para os defensores do mercado capitalista moderno a pergunta prioritária que se

coloca não é pelo princípio de justiça social, mas, sim, se a política social

intervém indevidamente nas regras do mercado e assim desequilibra a lei da

oferta e da procura. Nas últimas décadas, os defensores radicais do mercado têm

conseguido força política capaz de desfazer algumas conquistas civilizatórias nas

relações sociais feitas no século 20 e tornar plausíveis para a esfera das relações

de trabalho ideais dos séculos anteriores.

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18 Emil A. Sobottka

Resistência à justiça social e processos de exclusão

Há diversas preocupações e temores que eram expressos já no século 19

e que ressurgiram mais persistentemente a partir de meados do século 20, na

esteira do renascimento do liberalismo conservador e que tem em Friedrich Hayek

(1987) um de seus expoentes. Um desses temores é que a política social seja um

sustentáculo da preguiça; não se fala em ócio, como Hegel, que é um direito do

indivíduo, mas em preguiça, que tem conotação moral negativa e indicaria que a

pessoa não quer cumprir com seu dever de trabalhar para descansar sobre os

benefícios da política social. Assim, surge a exigência de fortalecimento de

mecanismos que impeçam que as pessoas se acomodem à condição de

beneficiado de alguma política social e as forcem a voltar, pela força de seu

trabalho, a fazer jus à participação na riqueza socialmente produzida.

Há outro temor, antigo, mas ainda presente na atualidade, de que o

fortalecimento dos segmentos considerados dependentes do trabalho pudesse

criar uma força política que demandaria participar mais intensamente dos

assuntos públicos; como pela sua proporção no conjunto da população poderiam

se constituir em maiorias, eles em algum momento colocariam em risco a

estabilidade da sociedade. Os defensores desse temor não consideram que

essas maiorias tenham civilidade suficiente para poder decidir sobre os destinos

da nação. Esse preconceito elitista raramente admite, hoje expressamente, ser

avesso à democracia por considerá-la um risco; ele aparece antes na forma de

despolitização da política, como nos regimes militares da América Latina do final

do século 20, ou de transformação da política social em populismo clientelista,

como se os benefícios fossem devidos à generosidade do governante.

Nas últimas décadas também tem sido expresso com frequência o temor

de que a política social se tornaria como uma bola de neve: seus custos poderiam

até começar modestos e justificáveis, mas criariam vulto até exacerbar qualquer

limite e tornar inviável a produção de riqueza; chegaria o momento em que não

apenas haveria mais consumidores do que criadores de riqueza, mas a proporção

da riqueza apropriada privadamente seria tão pequena face àquela dada em

benefício da sociedade, que deixaria de haver estímulo econômico para seguir

trabalhando. Olhando a evolução estatística de alguns orçamentos públicos,

Page 20: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Justiça social e democracia na modernidade periférica 19

pode-se perceber efetivamente um crescimento dos gastos considerados sociais.

Contudo, uma análise mais detalhada desses gastos pode revelar um panorama

bem mais diferenciado: nem tudo que é apresentado como gasto social tem

relação com distribuição da riqueza socialmente produzida nem está em sintonia

com os princípios de justiça social. No Brasil, por exemplo, a maioria dos gastos

declarados como sociais tem um efeito concentrador de riqueza; eles tiram mais

riqueza de quem tem pouco para dar mais a quem já tem muito. Quem afirma isso

é um relatório do Banco Mundial (World Bank, 2003); ele mostra, por exemplo,

como o sistema de aposentadorias no serviço público, em particular no judiciário,

é um forte concentrador de renda, que só fica atrás da política de juros.

Face a esses temores, principalmente temores de que os gastos sociais se

tornariam incontroláveis, foram lançadas diversas propostas de reformas.

Algumas pretendiam deslegitimar a reivindicação de maior participação dos

cidadãos na riqueza socialmente produzida para, depois, retirar das políticas

sociais suas dimensões redistributivas. Como consequência ocorreram cortes nos

orçamentos sociais e uma reorganização das prioridades de investimentos. O

montante total de impostos arrecadados e de gastos governamentais não caiu; o

que houve foi uma diminuição proporcional dos orçamentos sociais e uma

realocação maior de recursos em outros lugares. Em alguns países, como no

Brasil, pode-se observar uma migração da riqueza social arrecadada das políticas

que beneficiavam os cidadãos mais necessitados em direção ao que é chamado

de atração de investimento. Ou seja, a riqueza socialmente produzida é

canalizada na forma de subsídios ou de benefícios fiscais para empreendimentos

que prometem se instalar e gerar mais emprego e riqueza, assim

empreendedores forâneos se apropriam por antecipação de uma riqueza

socialmente produzida pela população local com a promessa de futuramente

produzir mais riqueza. Há duas distorções nesse modelo de alocação da riqueza

social. Primeiro, via de regra são concedidos a esses empreendimentos amplos

benefícios fiscais, isentando-os, portanto também no futuro de participarem da

mais importante forma de redistribuição da riqueza socialmente produzida em

sociedades capitalistas, que são os impostos. Segundo, nos contratos de atração

de investimento em regra não são previstas auditorias para conferir se essa

Page 21: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

20 Emil A. Sobottka

riqueza será realmente produzida tal como prometido, nem exigências de

restituição da riqueza social local em caso de descumprimento das promessas.

Nas discussões públicas sobre reformas se fazem reiteradamente

presentes propostas de maior mercantilização do trabalho. Sugestões de reforma

em políticas sociais, na legislação trabalhista, no sistema de ensino e em outras

áreas com frequência derivam da pretensão de que as pessoas sejam

impulsionadas a estarem no mercado de trabalho, a venderem sua força pelo

preço que o mercado quiser oferecer por ela. O resultado de muitas dessas

reformas seria uma recomodificação da força de trabalho; não uma

decomodificação, como era a expectativa de defensores de políticas sociais, mas

uma reinserção do trabalho como commodity. Essa impulsão à maior presença

das pessoas no mercado de trabalho leva, segundo as leis da oferta e da procura,

a uma saturação do mercado de trabalho e a uma desvalorização da mercadoria

força de trabalho. A consequência é um achatamento do rendimento que o

mercado está disposto a pagar pela força de trabalho ofertada.

Um risco adicional é que haja uma redução das possibilidades de venda da

força de trabalho. Isso teria, para voltar a Hegel e Durkheim, a dramática

consequência de impedir que esses indivíduos contribuam para o bem-estar

social e assim pudessem ter a justificada expectativa de ter a recompensa de

poder suprir adequadamente as necessidades suas e de sua família. Talvez

nesse contexto se possa falar de riscos de exclusão social, um tema

extremamente controvertido e difícil de ser definido. Niklas Luhmann (1992),

quando confrontado com as limitações da teoria sistêmica por ele concebida para

interpretar a situação concreta de alguns países, como os da América Latina e

especialmente o Brasil, formulou a tese de que em determinadas circunstâncias

há uma anteposição de critérios que interferem no funcionamento dos sistemas

sociais. Essa anteposição pode provocar a exclusão social. A situação de

normalidade seria a inclusão social: quando a pessoa depende de um sistema

social e tem acesso aos benefícios de seu desempenho. Por exemplo: em dada

circunstância a pessoa depende de uma boa formação para participar do mercado

de trabalho e tem acesso ao sistema de formação que a prepara para o exercício

profissional. Essa pessoa estaria, na concepção de Luhmann, incluída. Ela

depende do desempenho de um sistema social e tem acesso a ele. E quando se

Page 22: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Justiça social e democracia na modernidade periférica 21

daria a exclusão? Na concepção de Luhmann, exclusão social não ocorre porque

a pessoa está fora da sociedade, mas quando ela depende de algo dentro da

sociedade e não tem acesso àquele algo. A exclusão social seria a anteposição

de uma barreira ao acesso àquilo que dá plenitude à integração social; seria

quando o indivíduo não consegue se colocar adequadamente naquele lugar no

qual são definidas as relações sociais importantes para ele. Se for o mercado de

trabalho, não consegue uma qualificação para o emprego; se for a formação, não

consegue um local adequado para a formação; se forem as relações afetivas, por

alguma razão a discriminação não permite que estabeleça relações afetivas.

Quando essa situação se generaliza, quando desigualdade e exclusão

social transcendem as facetas da vida em que se originaram e se reproduzem em

outros âmbitos, então é possível que se esteja naquela situação que Marcelo

Neves (1992) descreve como modernidade periférica. Para esse autor,

modernidade periférica é a situação de um país, de uma sociedade que reivindica

ter criado relações sociais modernas, mas tem uma estruturação deficiente das

suas relações sociais concretas, porque há uma anteposição que restringe ou que

facilita desproporcionalmente o acesso a recursos vitais e torna assim as

perspectivas de vida muito desiguais.

Para além da proposição de Luhmann, na qual a exclusão foi definida a

partir da interdição do acesso a recursos vitais de um sistema social do qual o

indivíduo depende, com base em Marcelo Neves pode-se falar de uma situação

dupla: uma anteposição que restringe ou que facilita desproporcionalmente o

acesso àqueles recursos vitais. Além da possibilidade de deficiência na

organização da sociedade de modo a produzir exclusão, porque as pessoas não

conseguem acesso a recursos extremamente importantes para elas, pode haver

uma anteposição de privilégios para outras pessoas de tal modo que tenham

acesso a todos os recursos vitais dos sistemas sociais sem dependerem deles;

elas podem beneficiar-se da riqueza socialmente produzida, dos bens culturais,

sociais e econômicos, sem contribuir para eles. Essas pessoas ficam acima da

responsabilidade e das restrições que a sociedade moderna cria para coordenar

as relações sociais dentro dela.

Uma sociedade em que estão institucionalizadas formas tão díspares de

acesso aos recursos vitais e a validade das normas é tão seletiva – e, por

Page 23: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

22 Emil A. Sobottka

conseguinte, a desigualdade de uma esfera da vida se transmite também às

outras –, não corresponde a uma sociedade moderna e democrática, ainda que

gravite na periferia de sociedades modernas, pelas quais se orienta. Neves

designa as pessoas com facilidades desproporcionais de sobreintegradas e

aquelas que padecem com as restrições desproporcionais de subintegradas.

Pode-se dizer, então, que uma modernidade periférica tem três segmentos sociais

muito distintos: pessoas que contribuem e participam da riqueza socialmente

produzida e se submetem às normas; aquelas pessoas sobreintegradas, que se

beneficiam da riqueza, frequentemente pouco contribuem para ela e não se

submetem às normas que estruturam as relações sociais; e aquelas pessoas que

dependem dessa riqueza, mas têm acesso restrito ou até interditado a ela,

pessoas que experimentam muito mais as restrições e punições previstas nas

normas do que a proteção e garantia de seus direitos.

Quando a interdição de acesso se expande para as diversas áreas da vida

e se configura a pobreza extrema, a política social de cunho mais liberal se

propõe a oferecer um prêmio de consolação, denominado gestão social da

pobreza. Uma distribuição limitada da riqueza social é incentivada para assegurar

que essas pessoas sobrevivam, e não sejam gerados focos de insatisfação social.

Na modernidade periférica, um grande contingente de pessoas não consegue ser

participante pleno de uma sociedade que se estrutura fundamentalmente a partir

do mundo do trabalho. Então pode ocorrer que parte importante das políticas

sociais não tem como fundamento o princípio da previdência nem é expressão de

direitos de cidadania – os dois princípios centrais de justiça social em sociedades

modernas – e, sim, fruto da transferência unilateral de renda do estado para o

cidadão. Programas como o Bolsa Família são, no limite, a reedição em grande

escala do princípio da ajuda apontado por Offe. Ao ser estruturado como ajuda e

não como direito de cidadania, torna-se possível que essa política social, ao

repartir a riqueza social com cidadãos em situação de necessidade, não leve a

que o cidadão reconheça nela sua inclusão social numa sociedade que se orienta

por princípios modernos de justiça social, mas seja simbolicamente apropriada e

transferida como uma benesse do governante para aquelas pessoas para quem

alegadamente quer fazer algum bem. Com isso, a política de transferência de

riqueza social na forma de ajuda tira das pessoas a possibilidade de sentirem-se

Page 24: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Justiça social e democracia na modernidade periférica 23

incluídos em sua sociedade, construtores de outras riquezas sociais, mesmo que

temporariamente estejam impossibilitados de gerarem riqueza econômica e

recriam dependência ao torná-las devedoras de favor.

Creio ser possível concluir dessas reflexões que em sociedades de

modernidade periférica há atualmente duas ameaças sérias à democracia. De um

lado, um conjunto pequeno de pessoas sobreintegradas, que podem participar da

riqueza socialmente produzida, apropriar-se, servir-se e abusar dela, transferi-la

inclusive para fora, sem terem uma vinculação orgânica com a produção e justa

distribuição dessa riqueza e sem assumirem como vinculantes para si as regras

que estruturam as relações sociais. E, no outro extremo, um conjunto crescente

de pessoas que não são plenamente reconhecidas como cidadãos, com acesso

restrito às possibilidades de produzir e usufruir da riqueza social, sendo

arregimentadas por favores; para essas pessoas é dificultado o acesso ao direito

de reivindicar aquilo que pelas leis lhes é assegurado e que, em tese, pelo

menos, é aceito como justo dentro da sociedade: que cada pessoa, na

eventualidade de alguma crise da vida, tenha supridas as suas necessidades pela

sociedade da qual participa. Em sociedades como a brasileira rompeu-se o

vínculo que a sociedade moderna estabelece entre aquilo que o indivíduo pode e

eticamente deve contribuir para o bem-estar de toda sociedade e aquilo que

justificadamente pode ter a expectativa de receber e de fato receber dela em

compensação. Restabelecer esse vínculo é uma necessidade e um desafio, não

apenas pela convicção de que seja uma exigência ética de justiça social, mas

porque essa seria uma contribuição para a estabilização e para o aprofundamento

da democracia.

Referências

CHAPLIN, Charles. Tempos modernos [Modern times], 1936. DURKHEIM, Emile. A divisão do trabalho social. 2 v. Lisboa: Presença, 1984. ESPING-ANDERSEN, Gosta. The three worlds of welfare capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990.

Page 25: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

24 Emil A. Sobottka

GEREMEK, Bronislaw. Geschichte der Armut: Elend und Barmherzigkeit in Europa. München: DTV, 1991. HAYEK, Friedrich A. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1987. HEGEL, Georg W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. HONNETH, Axel. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma definição. Civitas, v. 8, nº 1, p. 46-67. LUHMANN, Niklas. Zur Einführung. In: Neves, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien. Berlin: Duncker & Humblot, 1992, p. 1-4. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien. Berlin: Duncker & Humblot, 1992. OFFE, Claus. Princípios de justiça social e o futuro do estado de bem-estar social. In: SOUZA, Draiton G. ; PETERSEN, Nikolai. Globalização e justiça. v. 2. Porto Alegre: Edipucrs, 2005, p. 69-85. WORLD BANK. Inequality and economic development in Brazil. Report n. 24487-BR, 2003.

Page 26: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo1

1. O controle social e os processos de criminalização

O conceito de controle social já se encontra, pelo menos de forma indireta,

nas obras dos clássicos da filosofia política. Está presente, por exemplo, na teoria

do Estado de Hobbes, entendido como a limitação do agir individual exigida pela

vida em sociedade. Explicitamente, o conceito de controle social é formulado pela

primeira vez pelo sociólogo americano Edward A. Ross, no final do século XIX,

em uma série de artigos sob o título Social Control, publicada no American

Journal of Sociology, entre março e maio de 1898 (Ross, 1969, p. vii).

Embora já estivesse presente, portanto, desde os primórdios do

pensamento social moderno, o tema do controle social vai adquirir lugar de

destaque na teoria sociológica dentro da perspectiva do estrutural-funcionalismo.

Para Talcott Parsons, principal representante dessa corrente, continuidade e

consenso são as características mais evidentes das sociedades. Assim como um

corpo biológico consiste em várias partes especializadas, cada uma das quais

contribuindo para a sustentação da vida do organismo, Parsons, seguindo

Durkheim, considera que o mesmo ocorre na sociedade. Para que uma sociedade

tenha continuidade ao longo do tempo, ocorre uma especialização das instituições

(sistema político, religioso, familiar, educacional, econômico), que devem

trabalhar em harmonia. A continuidade da sociedade depende da cooperação,

que por sua vez presume um consenso geral entre seus membros a respeito de

certos valores fundamentais.

Parsons define a teoria do controle social como a análise dos processos do

sistema social que se confrontam com as tendências desviantes, e das condições

em que operam tais processos (Parsons, 1966, p. 305). O ponto de referência

teórico para essa análise é o equilíbrio estável do processo social interativo. Uma

vez que os fatores motivacionais desviantes estão atuando constantemente, os

1 Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e em Ciências Criminais da PUCRS.

Page 27: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

26 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

mecanismos de controle social não têm por objeto sua eliminação, apenas a

limitação de suas consequências, impedindo que se propaguem além de certos

limites (Parsons, 1966, p. 306). Existe grande relação, para Parsons, entre os

processos de socialização e de controle social. Ambos consistem em processos

de ajustamento a tensões.

A partir da década de 60, o conceito de controle social foi reinterpretado

pelo pensamento sociológico, no interior das novas teorias do conflito, para as

quais a sociedade passa a ser compreendida como um campo de forças

conflitual, em que se enfrentam diferentes grupos, com diversas estratégias de

poder. Mas foi o interacionismo simbólico que, ao concentrar sua atenção sobre

os aspectos definicionais da conduta humana e sobre a reação que provocam os

distintos gestos significantes, produziu uma verdadeira “revolução científica” no

âmbito dos estudos sociocriminológicos, provocando o deslocando do paradigma

etiológico pelo paradigma do controle ou da reação social (Bergalli, 1991).

Assumindo a perspectiva interacionista, Dias e Andrade (1991) sustentam

que o estudo da seleção da criminalidade operada pelos mecanismos formais de

controle social, e em particular pelos tribunais, deve privilegiar os conceitos e

teorias de índole interacionista, permitindo captar a estrutura de uma ação

eminentemente subjetiva como é a ação jurisdicional. Segundo estes autores,

(...) não será, por isso, de estranhar que as teorias sociológicas que mais recentemente têm ensaiado enquadrar a acção jurisdicional - entre as mais credenciadas: teoria do papel, do grupo, da interacção simbólica, do domínio, do sistema, da organização, da decisão - sejam, todas elas, directa ou indirectamente subsidiárias da aparelhagem conceitual básica do interaccionismo. (Dias e Andrade, 1991, p. 519)

O interesse dos estudos criminológicos, e em especial da sociologia

criminal, se desloca da criminalidade para os processos de criminalização. O

direcionamento da questão criminal para os processos de criminalização é

reforçado pela análise materialista dialética, que lançou mão do instrumental

metodológico marxista para compreender até que ponto a velha criminologia

positivista e seus distintos objetos de conhecimento transmitiam uma visão

ideologizada da criminalidade, e como o direito penal era o principal irradiador de

ideologias sobre todo o sistema de controle penal.

Page 28: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica 27

A partir de uma perspectiva conflitual da ordem social, o controle social

passa a ser conceituado como o conjunto de mecanismos tendentes a naturalizar

e normalizar uma determinada ordem social, construída pelas forças sociais

dominantes (Pavarini e Pegoraro, 1995, p. 82).

Essa concepção foi assumida por diversas correntes criminológicas,

orientadas ora no sentido da erradicação do sistema penal tal como hoje se

conhece, para voltar a formas privadas de solução dos conflitos, ora para uma

restrição do sistema, através de estratégias de descriminalização e

informalização, e outras ainda voltadas para a utilização do sistema para a

proteção dos setores sociais vulneráveis. Essas orientações são representadas,

respectivamente, pelo abolicionismo escandinavo (Mathiesen, Christie, Hulsman),

pelo garantismo jurídico-penal (Baratta, Ferrajoli, Pavarini), e pelo realismo de

esquerda britânico (Young, Lea, Matthews), que são as posições mais destacadas

da criminologia crítica, e coincidem com uma sociologia do controle penal na

revalorização de todos os níveis do sistema.

2. Níveis de realização do sistema de controle penal

Os níveis de atuação das instâncias de controle social são dois: o ativo ou

preventivo, mediante o processo de socialização; e o reativo ou estrito, quando

atuam para coibir as formas de comportamento não desejado ou desviado. O

nível reativo constitui o terreno concreto da sociologia do controle social, e se

expressa por meios informais e formais. Os meios informais são de natureza

psíquica (desaprovação, perda de status, etc.), física (violência privada), ou

econômica (privação de emprego ou de salário). Nesse caso, as normas jurídicas

atuam como limite para excluir alguns em determinadas circunstâncias.

Já os meios formais de controle social reativo são constituídos por

instâncias ou instituições especialmente voltadas para este fim (a lei penal, a

polícia, os tribunais, as prisões, os manicômios, etc.), caracterizando o uso da

coerção por instâncias centralizadas para manter a ordem social, legitimado pelo

discurso do direito. Teoricamente sua atuação está prévia e estritamente

estabelecida pelo direito positivo, nos códigos penais e leis processuais.

Page 29: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

28 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Em sociedades que possuem uma organização jurídico-constitucional e um

Estado de Direito, o controle penal é baseado na institucionalização normativa. O

direito penal é constituído pelo conjunto de normas a partir das quais a conduta

das pessoas pode ser tipificada e valorada em relação a certas pautas de dever.

Nesse sentido, não há dúvida que as normas penais materiais e processuais

configuram o sistema de controle jurídico-penal, embora sujeitas a

descontinuidades, interrupções ou interferências quanto à sua aplicação.

Para o exame das normas penais, é necessário esclarecer em que

consistem e quais são os elementos que as compõem, bem como a inserção

desse sistema normativo no conjunto de normas que integram uma estrutura ou

ordenamento jurídico. Desde a positivação ou formalização do direito penal, esse

nível constitui a preocupação central dos juristas, dando origem à teoria das

normas penais.

A chamada “ciência do direito penal” dedicou-se à análise lógico-formal das

normas e do ordenamento, procurando tornar previsível a conduta do juiz que

aplicará a norma e com isso alcançar o máximo de segurança jurídica,

fundamento do Estado de Direito. Não logrou, no entanto, dar respostas decisivas

sobre a origem ou gênese das normas penais, na medida em que a presença de

uma norma penal em um momento concreto de uma sociedade dada deve ser

buscada na individualização dos interesses e representações sociais que

impulsionaram a criação da norma, e continuam sustentando sua presença no

ordenamento jurídico respectivo.

Uma compreensão metanormativa do direito que vá além da dogmática

penal deve, portanto, partir da investigação sobre a gênese da norma e seu

impacto nas relações sociais, desvelando o conteúdo de incerteza e

imprevisibilidade por trás do ideal de segurança jurídica.

O segundo nível de realização de um sistema de controle penal é o que

envolve os momentos de aplicação concreta da legislação penal, isto é, sua

eficácia. Enquanto a legitimidade de um sistema normativo diz respeito à

correspondência das normas com os valores socialmente reconhecidos como

justos em uma dada sociedade, e a legalidade corresponde ao juízo de fato que

se emite sobre a existência formal das normas, segundo as formas e os

procedimentos legalmente previstos, a eficácia é a capacidade das normas em

Page 30: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica 29

encontrar uma efetiva aplicação na realidade, em relação a comportamentos

concretos dos sujeitos a quem elas se dirigem.

Para a análise da eficácia de determinada norma ou ordenamento jurídico,

e em particular das normas penais, é preciso levar em conta o complexo de

momentos em que se fragmenta o controle penal, articulado através da

intervenção da polícia, do Ministério Público, dos juízes e tribunais e dos cárceres,

que receberam da perspectiva interacionista a denominação de processos de

criminalização.

A superação do paradigma estático do estrutural-funcionalismo, promovida

pelo labeling approach, abriu a possibilidade de uma visão e abordagem dinâmica

e contínua do sistema penal, no qual é possível individualizar segmentos que vão

desde o legislador até os órgãos judiciais e prisionais. Nessa perspectiva, os

processos de criminalização promovidos pelo sistema penal se integram na

mecânica de um sistema mais amplo de controle social e de seleção das

condutas consideradas desviantes (Andrade, 1997, p. 210).

Para a sociologia, a análise desse nível envolve não apenas o

comportamento dos indivíduos cuja conduta está sujeita à aplicação das normas

penais, mas fundamentalmente o comportamento daqueles que devem fazer

cumprir os mandamentos e proibições penais, os operadores do sistema. Assim,

uma sociologia jurídico-penal de caráter empírico deve levar em conta os aportes

da sociologia das profissões e da sociologia das organizações, investigando a

fundo as instâncias de aplicação das normas penais, desvelando os mecanismos

que se movem no interior do aparato policial, judicial e penitenciário,

democratizando o conhecimento a respeito do seu funcionamento para toda a

sociedade (Bergalli, 1991, p. 36).

3. Direito e Controle Social no Estado Moderno

O processo de formação do Estado moderno teve como elemento

constitutivo característico o modo abstrato e formal que assumiu o discurso

jurídico. O direito passa a ser considerado como um conjunto de regras gerais e

abstratas, emanadas de um poder soberano, formando um sistema ou

ordenamento jurídico, e não mais como um conjunto de pretensões e

Page 31: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

30 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

reivindicações particularistas, baseadas na tradição e em prerrogativas

específicas.

Durante o período que se estendeu da Baixa Idade Média até a Revolução

Francesa, em que o Estado Moderno se consolidou, desenvolveu-se uma disputa

política entre vários grupos sociais. No processo judicial, destacaram-se duas

tendências: de um lado, a manutenção de jurisdições particularistas, de caráter

local (as justiças das aldeias, vilas e cidades) e de caráter funcional (justiças

especializadas de certas corporações); de outro lado, a par das disputas entre

juízes letrados e juízes leigos, entre funcionários ou delegados reais e

representantes de outros poderes locais ou senhoriais, desenvolveu-se uma

definição crescente de regras procedimentais, relativas, inclusive, a provas e

procedimentos de recurso, com o objetivo de racionalizar e uniformizar de tal

modo o sistema judicial que os tribunais centrais pudessem exercer um poder

centralizador (Lima Lopes, 1996, p. 247-248).

O passo seguinte foi dado pelo estabelecimento do Estado liberal, no

século XIX. Entre os séculos XVI e XVIII firmam-se os Estados nacionais, mas a

vida social ainda se configura em torno de estamentos e categorias que impedem

a universalização do direito de julgar uniformemente. O triunfo do Estado liberal

traz consigo a promessa de universalização da cidadania: todos são iguais

perante a lei, e a lei será uma só para todos. A partir daí, todos os conflitos podem

ser universalmente submetidos a um único sistema de tribunais, com um único

sistema de regras procedimentais desenvolvidas pouco a pouco. Do ponto de

vista das instituições, o direito de julgar adquirido pelo Estado desenvolveu a

profissionalização do direito, pela organização da burocracia estatal e

especializada e pelo estabelecimento da força pública (polícia).

O moderno Estado constitucional pode então ser visualizado como um

conjunto legalmente constituído de órgãos para a criação, aplicação e

cumprimento das leis. Ocorre a despersonalização do poder do Estado, que

passa a fundar sua legitimidade não mais no carisma ou na tradição, mas em uma

racionalidade legal, isto é, na crença na legalidade de ordenações estatuídas e no

direito de mando dos chamados por essas ordenações a exercerem a autoridade

(Weber, 1996, p. 172). Nesse tipo de Estado, a legitimidade deriva do fato de

terem as normas sido produzidas de modo formalmente válido, com a pretensão

Page 32: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica 31

de serem respeitadas por todos aqueles situados dentro do âmbito de poder

daquele Estado.

Entre as principais características desse tipo de Estado, está o controle

centralizado dos meios de coerção. O Estado moderno se apresenta, assim,

como um complexo institucional artificialmente planejado e deliberadamente

erigido, que tem como característica estrutural mais destacada o monopólio da

violência legítima, garantido pelo que Weber chama de um quadro coativo

(Weber, 1996, p.28). O controle centralizado dos meios de coerção é fortalecido

pela legitimidade que lhe confere a racionalidade jurídica, tornando a coerção

mais tecnicamente sofisticada e exercida por um setor especializado do Estado.

Essa característica constitui-se em um marco do que Elias denomina processo

civilizador, com a adoção de formas mais racionais e previsíveis de instauração

de processos e de punição pela prática de atos legalmente e previamente

previstos como crimes2

Embora reconheça que as relações de poder são sempre potenciais,

instáveis e moleculares, Foucault identifica, tal como Weber e Elias, os

mecanismos de racionalização que dão à máquina estatal a capacidade de

governo sobre a sociedade. Para ele, no entanto, esse processo se desenvolveu

através de dois polos interligados por um feixe intermediário de relações. O

primeiro deles é o que se concentra no adestramento do corpo como máquina, no

crescimento paralelo de sua docilidade e utilidade, na sua integração em sistemas

de controle eficazes e econômicos, através de procedimentos de poder que

caracterizam as disciplinas. O segundo centrou-se no corpo-espécie, na

natalidade e mortalidade, no nível de saúde, através de uma bio-política da

população, do seu controle demográfico e atuarial (Foucault, 1999, p. 285 e seg.).

.

Para Habermas, embora a compreensão formalista do direito, tomada

como base de orientação por Weber, nunca tenha expressado de forma exata a

realidade do fenômeno jurídico, a atualidade do diagnóstico weberiano não é fruto

do acaso, uma vez que

(...) a tese relativa à desformalização do direito comprovou-se como enunciado comparativo sobre uma tendência existente na

2 Sobre este tema, vide o Vol. 2 da obra O Processo Civilizador, de Norbert Elias, sobre a formação do Estado, em especial o capítulo II, “Sobre a sociogênese do Estado”, p. 87-190.

Page 33: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

32 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

autocompreensão e na prática dos especialistas em direito. (Habermas, 1997, p. 204)

Segundo ele, o debate atual sobre a "desformalização" do direito toma

Weber como ponto de partida,

(...) pois seu questionamento da racionalidade da forma do direito visava medidas para um direito ao mesmo tempo correto e funcional. Nesta medida, sua discussão ajuda a entender os problemas que envolvem a legitimidade decorrente da legalidade. (Habermas, 1997, p. 206).

Correspondendo, como paradigma teórico, aos modernos Estados liberais,

a doutrina do direito como conjunto orgânico e universalmente válido de normas

institucionalmente reconhecidas é progressivamente minada, com o avanço da

providência estatal, por tentativas de adequar a regulamentação legal e a sua

implementação pelas instâncias judiciais a um contexto no qual emergem

discursos normativos rivais e se exige do Estado a execução de funções

crescentemente político-administrativas.

A concentração de poder nas mãos do Estado, a complexificação da

sociedade e a regulamentação legal de setores cada vez mais amplos da vida

social, culminam, nas sociedades urbano-industriais contemporâneas, com a crise

de legitimidade de uma ordem baseada em um discurso jurídico esvaziado,

paralela e simultaneamente à crise fiscal do Estado-Providência. Começam a

aparecer as fissuras nesse aparato que ainda sustenta sua legitimidade em uma

legalidade abstrata, constituída de acordo com normas gerais e apropriadamente

promulgadas.

Isso ocorre porque algumas premissas da racionalidade legal começam a

ser minadas ou desgastadas (a divisão de poderes, a supremacia e generalidade

da lei, etc.), frente à concentração de expectativas no polo do Poder Executivo, e

dos recursos limitados de que dispõe para garantir a estabilidade social e a

acumulação de capital.

Além disso, na medida em que se desgasta a crença na naturalidade das

hierarquias de poder ou de distribuição de riqueza existentes, a atividade

governamental (inclusive a judicial) passa a depender cada vez mais de suas

consequências em termos da satisfação de interesses fracionários, e a linha

Page 34: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica 33

divisória entre Estado e sociedade civil começa a se tornar cada vez mais difusa,

aumentando a influência e a pressão sobre as políticas governamentais e as

decisões judiciais por diferentes grupos sociais, que se rebelam contra a estrita

observância de normas processuais e legais.

A renovação das fontes de legitimidade do Estado é, então, buscada na

sua capacidade em promover o desenvolvimento industrial e o crescimento

econômico, vistos como padrão necessário e suficiente para o desempenho de

cada Estado, e na garantia da efetividade dos mecanismos formais de controle

social para a manutenção da ordem, justificando com isso deslocamentos na linha

Estado/Sociedade Civil (Poggi, 1981, p.140). A busca de prosperidade interna,

como um fim em si mesmo, e a manutenção da ordem pública, tornam-se as

principais justificações para a existência do Estado, e a sua fonte de legitimidade,

sobrepondo-se à mera racionalidade jurídico-legal.

Depois de uma fase ininterrupta de prosperidade econômica, desde o final

da Segunda Guerra, que consolida o keynesianismo como política econômica de

governo nas democracias liberais do Ocidente, o choque do petróleo, nos anos

70, e a crise fiscal da maioria dos Estados industrializados, aprofundou o

predomínio da racionalidade instrumental sobre o ideário iluminista. Num primeiro

momento, a partir do final da década de 70, o Estado passa a ser totalmente

dominado pela força e os interesses da globalização capitalista. É a fase áurea do

neoliberalismo, representada pelos governos de Ronald Reagan e Margaret

Thatcher, na qual foi implementada uma ampla reestruturação produtiva nos

principais centros industriais do mundo capitalista. A partir desse momento, em

termos de política criminal, se fortalecem e disseminam as tendências

paleorepressivas de criminalização e encarceramento, que nos E.U.A. resultaram

em um crescimento geométrico da população submetida ao sistema prisional, que

era de 200.000 presos na década de 70 e 30 anos depois chega a quase 2

milhões de pessoas, correspondendo a 800 presos para cada 100 mil habitantes.

4. A situação da Segurança Pública no Brasil

Historicamente no Brasil as Universidades têm tido muita dificuldade para

estabelecer uma agenda de pesquisa sobre a temática da segurança pública e do

Page 35: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

34 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

controle de violência, por uma série de fatores que tem a ver com a distância que,

no Brasil, existe tanto entre os diferentes atores sociais que atuam nessa área –

policiais, integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público – , mas também

pelo fato de que a Universidade no Brasil, pela sua estrutura, pelos seus

objetivos, pelas suas finalidades, teve sempre uma dificuldade muito grande de

lidar com os problemas que afetam mais diretamente as populações de baixa

renda. Essa dificuldade vem sendo superada nos últimos anos pela iniciativa de

alguns pesquisadores da área da violência e da segurança pública, que ao

realizarem suas pesquisas não têm apenas uma preocupação acadêmica, têm

também uma preocupação em contribuir de alguma forma para o equacionamento

desse problema social, com o incremento de mecanismos de elaboração,

monitoramento e avaliação das políticas públicas de segurança.

Temos na área da segurança pública no Brasil uma situação bastante

paradoxal. Trata-se de uma combinação perversa entre elementos que vêm do

medievo – o sistema penitenciário – e elementos de pós-modernidade. Essa

combinação é perversa porque justamente o que caracteriza o que chamo de pós-

modernidade no âmbito penal são algumas propostas que se vinculam às

políticas de “tolerância zero” contra a criminalidade, maior intervenção punitiva

contra pequenos delitos, a utilização do direito penal como remédio e solução

para todos os problemas sociais, com a ampliação dessa intervenção pelo

legislativo, abarcando todas as áreas nas quais se manifestam problemas sociais:

meio ambiente, trânsito, conflitos interpessoais, relações de consumo, etc.

Outro elemento desse contexto de pós-modernidade penal é o chamado

“direito penal do inimigo”, a ideia de que para aumentar a eficiência dos

mecanismos de controle penal é preciso reduzir garantias dentro do processo

penal. Vale lembrar a velha máxima de que a “polícia prende e o judiciário solta”,

uma forma de questionar a intervenção do judiciário, porque se pretende que o

judiciário também adote uma forma de atuação mais repressiva e menos

preocupada com a garantia de direitos fundamentais do acusado.

Observando as taxas de encarceramento no Brasil, verificamos o enorme

crescimento ocorrido na última década, que faz com que tenhamos hoje nos

cárceres brasileiros 460 mil presos (no final dos anos 90 a população carcerária

no Brasil estava em torno de 150 mil presos). Levando em conta os dados gerais

Page 36: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica 35

do sistema carcerário, o que mais cresce é a utilização da prisão preventiva, ou

seja, pessoas que estão presas sem uma condenação criminal, e que

representam hoje 43% do total de presos no país.

Outro elemento da pós-modernidade penal é o modelo RDD (Regime

Disciplinar Diferenciado), ou seja, a ideia de que como a ressocialização não

acontece, como não se consegue reintegrar socialmente, embora seja esse o

propósito do encarceramento do ponto de vista das disposições legais e

constitucionais, o papel da prisão seria simplesmente de contenção e não mais a

recuperação ou a reinserção do indivíduo na vida social.

Todas essas características são novas. Se formos pensar há 10 ou 20

anos atrás, na mentalidade social e na mentalidade dos operadores do direito,

mesmo durante o período autoritário, estava ainda distante dessas características

elencadas aqui.

No entanto, é possível afirmar também que o Estado brasileiro não é um

bloco monolítico. E também não são monolíticas as instituições policiais, o

Ministério Público, a Magistratura. Em todas as corporações existem diferentes

formas de intervenção. O discurso dos direitos humanos, reiteradamente

apresentado, há mais de 10 anos, desde a Constituição de 88, enquanto discurso

oficial, e o fato de que ano após ano, são elaborados planos, programas, projetos

de segurança pública e direitos humanos incorporando todo o ideário presente na

Constituição, nos remetem à pergunta: por que a maioria dessas questões fica no

papel? Por que ano após ano, apesar do discurso oficial, continuam as chacinas,

os homicídios, continuam todos os problemas que afetam o campo da segurança

pública?

É inquestionável que isso tem relação com a nossa estrutura social, com a

situação de desigualdade social que ainda marca a sociedade brasileira. Sem

dúvida que essas questões estruturais têm um peso importante, mas quando se

fala em segurança pública é possível sustentar também que as coisas poderiam

ser diferentes, mesmo se tudo o que acontece em termos de estrutura social e de

educação não avançasse, nós poderíamos avançar um pouco mais na área de

segurança pública se algumas coisas fossem encaminhadas, se os mecanismos

de gerenciamento das agências envolvidas com a segurança fossem melhor

utilizados.

Page 37: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

36 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Mas, em primeiro lugar, o aperfeiçoamento gerencial e institucional não é

tão simples, porque há diferenças entre os juízes, entre os promotores, entre os

policiais, entre as pessoas que atuam nessa área: diferenças de concepção. Há

no interior das instituições uma visão que é mais vinculada a ideia de que para

haver segurança é preciso abrir mão de direitos, é preciso reduzir a margem de

garantias individuais. Está presente nas pesquisas que tem sido feitas com

operadores do direito e é perceptível no contato com policiais civis e militares, nos

cursos de especialização em segurança pública promovidos por diversas

universidades brasileiras em parceria com a SENASP.

Há na verdade uma divisão no interior das instâncias de poder do Estado

brasileiro e no interior dessas diferentes corporações, sendo que de um lado está

o discurso republicano da garantia dos direitos humanos com segurança pública,

mas de outro há ainda uma concepção que se conecta com parcelas importantes

da opinião pública no Brasil, no sentido do endurecimento penal, de mais prisões,

de presos em condições precárias, sem garantias individuais básicas. Discurso

que se manifesta muitas vezes pela defesa da pena de morte, da redução da

idade penal, dos direitos humanos só para “humanos direitos”.

Para que se coloquem em prática as declarações programáticas e as

previsões legais, é preciso enfrentar essa questão de que estamos lidando com

diferentes concepções, diferentes paradigmas. E que o paradigma hoje dominante

é o do endurecimento penal como resposta ao problema da violência, do crime e

da insegurança pública. Nunca como hoje houve tanta gente presa. Nunca como

hoje, no mundo, o sistema penal teve o papel que ele tem no sentido de que o

Estado recua no campo dos direitos sociais, mas avança no campo da

criminalização e do encarceramento.

É preciso construir outro modelo de enfrentamento da violência e da

criminalidade tanto no plano do debate teórico e normativo, quanto no dia a dia,

no cotidiano. É preciso construir experiências concretas. A desconstrução do

paradigma dominante ainda é uma tarefa necessária. Ainda é necessário mostrar

a cada dia que prender não resolve. Pelo contrário, prender cria novos problemas

e, portanto, é preciso afirmar isso. Mas é preciso ir além. É preciso apresentar

soluções. Esse é o grande desafio. É preciso pensar sobre as polícias. Não há

democracia sem polícia democrática. É preciso continuar a construção de uma

Page 38: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica 37

polícia para a democracia, que seja técnica e gerencialmente preparada, voltada

para a resolução de problemas, capaz de combater a truculência policial, de

combater a corrupção interna, porque só dessa forma a polícia será respeitada

pelo cidadão.

Por outro lado, precisamos avançar na discussão sobre a prevenção ao

delito. É preciso construir os mecanismos adequados para uma prevenção eficaz

da criminalidade. Isso passa pela inclusão social para a juventude, programas de

melhorias do ambiente urbano, políticas de redução das oportunidades para o

crime, recolhimento e controle de armas, discussão sobre o controle da bebida

alcoólica, tema polêmico, porque na verdade a forma como isso vai ser colocado

em prática deve ser sempre bem pensada e feita de acordo com um debate, um

processo político com a participação da comunidade, não como uma

determinação que vem de cima para baixo, imposta.

Precisamos pensar algumas coisas que vão tocar diretamente o sistema de

justiça, porque muitos conflitos chegam ao poder judiciário, e dentro do poder

judiciário precisarão ser equacionadas. As reformas da justiça, especialmente da

justiça penal, tem que ser bem avaliadas, porque o sistema penal tem que se

colocar enquanto mecanismo de pacificação social, de melhoria das condições de

vida e segurança da população, coisa que até hoje ele não foi. Ao contrário, o

sistema penal brasileiro, até hoje, foi um sistema criminógeno e voltado à sujeição

criminal dos setores sociais mais vulneráveis e tidos como perigosos.

Por fim, temos que pensar sobre o problema do encarceramento no Brasil.

É preciso pensar a prisão a partir da perspectiva da redução de dano, porque a

prisão causa dano. Temos hoje 460 mil presos, e mesmo que boa parte deles

seja composta por presos provisórios, ou presos que já teriam o direito de

progredir de regime, ainda assim não temos o poder de esvaziar as prisões

brasileiras. A tendência é, pelo contrário, aumentar a demanda de

encarceramento. Mas o Estado, caso pretenda exercer seu poder punitivo,

precisa garantir também as condições carcerárias estabelecidas em lei. Sem

dúvida é possível descartar a prisão como alternativa eficaz para o controle do

crime, na grande maioria dos casos. Mas no momento o que nós temos são 460

mil presos, e menos de 250 mil vagas no sistema. Isso não é aceitável. O Estado

Page 39: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

38 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Brasileiro precisa investir e garantir condições carcerárias até que se rediscuta o

modelo punitivo até hoje adotado.

Entra aí o debate da descarcerização. Quem está nas prisões brasileiras?

O sistema prisional brasileiro é composto por 40% de presos por tráfico e 40% por

roubo. Esta é a porta de entrada do sistema prisional: o pequeno vendedor de

drogas é que vai preso e a pessoa que está numa situação economicamente

vulnerável em meio urbano e que vai roubar e ser encarcerado. O pequeno

praticante desse tipo de delito vai preso e a primeira coisa que ele tem que fazer

na prisão é entrar para uma facção. Se até então ele não pertencia a facção

nenhuma, a partir dali passa a fazer parte de uma e vai estabelecer relações que

vão garantir sua verdadeira reinserção social, porque vão garantir uma renda e

uma aceitação que a sociedade não vai lhe oferecer. O pequeno traficante e o

assaltante eventual vão se tornar a mão de obra de que a criminalidade precisa

para a prática de crimes maiores.

Além disso, precisamos pensar num outro modelo para o tratamento das

questões que chegam ao sistema penal, como deveriam ser os Juizados

Especiais Criminais. Eles faliram, e a Lei Maria da Penha é a demonstração cabal

dessa falência. Os delitos contra a mulher e a violência doméstica, que chegavam

aos Juizados Especiais Criminais, agora não chegam mais. Na prática não se

conseguiu implantar, de fato, aquilo que era sustentado em 1995, quando a lei foi

criada. Essa falência se deu por problemas na lei e por problemas com os

operadores do direito, ao não se conseguir abrir espaço no âmbito do sistema de

justiça para a mediação de conflitos. A mediação não aconteceu porque os

operadores do direito não trabalharam no sentido de uma mediação penal. O que

poderia ter avançado não avançou e o que ocorre nos Juizados é um processo

muito mais formal do que real de enfrentamento dos conflitos sociais, o que

acabou levando ao descontentamento das vítimas, levando a uma série de

problemas que fizeram com que a experiência dos Juizados Especiais Criminais

esteja numa situação de impasse, a partir da entrada em vigor da lei Maria da

Penha.

Outra questão relevante diz respeito às penas alternativas, porque embora

nós estejamos no âmbito do sistema penal, é possível pensar nesses

mecanismos como mecanismos inclusivos e não de exclusão social. Incluir

Page 40: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica 39

dignamente pela prisão é um desafio na prática inalcançável. Incluir por meio de

uma pena alternativa sabemos que é possível, como demonstra a experiência da

Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, com

importantes resultados alcançados nessa perspectiva de incluir socialmente uma

população que é vulnerável e que tem dificuldade de se conectar socialmente.

Fato é que todos estes desafios dizem respeito a uma revolução

democrática da justiça no Brasil, que redirecione a estrutura e os esforços de

milhares de operadores do sistema de segurança pública e justiça criminal para

objetivos diversos do foco até agora direcionado para a “manutenção da ordem

pública”. Uma estrutura policial capaz de estabelecer vínculos com a comunidade

e atuar na resolução de conflitos cotidianos, e de realizar a repressão qualificada

da criminalidade violenta, e um sistema de justiça capaz de colocar-se perante a

sociedade enquanto um canal legítimo e adequado para a mediação dos conflitos

sociais são a exigência colocada para que possamos avançar no sentido da

redução da violência e da garantia de direitos no Brasil.

Referências Bibliográficas

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Page 41: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

40 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

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Page 42: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas

Hermílio Santos*

Introdução

As políticas públicas constituem um dos principais resultados da ação do

Estado. Contudo, algumas questões se impõem: por um lado, devemos nos

perguntar se o Estado possui a legitimidade necessária para produzir efeitos no

processo de políticas públicas. Com um mundo cada vez mais globalizado

economicamente, o que significa dizer com atores institucionais do mercado cada

vez mais potentes politicamente, e com uma sociedade civil que se diversifica

tanto na sua agenda quanto na quantidade de atores relevantes, é previsível que

esse cenário represente algum desafio adicional às tarefas estatais relacionadas

à formulação e implementação de políticas. Por outro lado, relacionado a esse

contexto, aumenta o interesse em saber como se dá a relação entre os agentes

estatais e demais atores não estatais, seja do mercado, seja da sociedade civil,

na produção dessas políticas. Assistimos, nas últimas décadas, em praticamente

todas as democracias contemporâneas, a um processo relativamente rápido de

transferência de ativos controlados pelo Estado para as mãos dos agentes do

mercado. Essa realidade deixou ainda mais evidente o fato de a autoridade

separar-se institucionalmente da propriedade, como já observou Przeworsky

(1995). Essa separação crescente provoca não apenas uma redução na

capacidade de intervenção do Estado, como também uma fonte adicional de

tensão entre as principais esferas da sociedade. Assim como o caminho não está

desimpedido para que os proprietários de capital definam os conteúdos das

políticas, tampouco o Estado está em condições de implementar as políticas que

mais lhe convém, sem qualquer pressão externa. A razão para isso, já bastante

explorada por Przeworky (op. cit.), é que, no capitalismo, a capacidade de

formular e implementar não necessariamente andam juntas, por dois motivos: por

um lado, os governantes podem contar com a capacidade institucional de

* Doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS.

Page 43: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

42 Hermílio Santos

estabelecer seus próprios objetivos, mas podem encontrar obstáculos na

implementação, devido à estrutura da economia, uma vez que a propriedade

privada do capital implica que o Estado não comanda sozinho o investimento. Por

outro lado, se o Estado possui a capacidade de intervir na economia, os agentes

econômicos têm motivos suficientes para tentar se envolver com as políticas do

Estado, já que serão afetados diretamente. Nesse sentido, quanto maior a

capacidade do Estado de implementar suas preferências, menor tende a ser sua

capacidade de formular políticas de forma independente.

Ao lado desse incremento da capacidade de atuação política dos atores

econômicos, tem-se verificado, no Brasil, a consolidação de atores sociais como

atores políticos relevantes, como bem expressam os trabalhos de Leonardo

Avritzer (1994) e Sérgio Costa (2002), dentre outros. Embora esses autores não

coloquem em primeiro plano a capacidade de atores da sociedade civil de intervir

diretamente na formulação de políticas públicas, as pesquisas empreendidas, por

ambos, ajudam a entender a pressão a que estão submetidos os agentes

estatais, de um lado para minimizar seu “insulamento”, de outro lado, para não se

tornarem reféns de interesses econômicos robustos. Não há dúvida, contudo, que

sempre haverá o risco desses interesses sociais se transformarem em mais um

“cliente” do orçamento público, por meio das políticas governamentais, quando

eles próprios se tornam objeto de tais políticas. O que importa aqui, no entanto, é

perceber que os atores governamentais estão expostos cada vez mais a variadas

frentes de negociação quando se trata de executar aquilo que, como foi dito,

constitui um dos principais resultados de sua ação, que são precisamente as

políticas públicas. A seguir, pretendo esboçar mais claramente os contornos

desse processo de complexificação e, em seguida, expor as implicações sociais

para a formulação e implementação de políticas públicas.

Contextos sociais complexos

Um dos aspectos centrais na interpretação das sociedades complexas

fornecida por Talcott Parsons (1959) é a importância que ocupa as instituições na

diferenciação dos contextos sociais, contribuindo assim para o equilíbrio e a

coesão sociais, o que, segundo Parsons, seria condição indispensável para o

Page 44: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 43

desenvolvimento das sociedades modernas. De acordo com Parsons, à medida

em que as sociedades se tornam mais complexas ocorre uma diferenciação e

especialização institucional, ou seja, as instituições existentes se tornam

responsáveis por determinadas “funções” necessárias à persistência de uma

determinada sociedade. Caso as instituições existentes em determinada

sociedade não sejam capazes de satisfazê-las verificar-se-ia o surgimento de

novas instituições, caso contrário, o equilíbrio e a sobrevivência dessa sociedade

estariam ameaçados. Essa abordagem sistêmica, bastante difundida e influente

até meados do século XX, está na origem de parte das abordagens

neoinstitucionalistas, que têm atraído a atenção de um número crescente de

estudiosos na sociologia, na ciência política e na economia.

Assim como na abordagem parsoniana (Parsons, 1967), a interpretação

neoinstitucionalista considera que as dinâmicas organizacionais não são

determinadas exclusivamente ou principalmente pelos processos internos ou por

sua estrutura formal. Ao lado dessas variáveis, o ambiente externo, ou seja, o

contexto social no qual está inserido uma organização, assim como as demais

organizações existentes, não importa quão distintas sejam, constitui um elemento

indispensável para se compreender o que ocorre no interior das organizações.

Isso explica, em parte, o isomorfismo institucional, que tem origem seja na

regulamentação do Estado (isomorfismo coercitivo), seja na imitação de modelos

de sucesso (isomorfismo mimético), seja ainda na profissionalização (isomorfismo

normativo) (DiMaggio e Powell, 1991).1

Parsons (1974) concebe as sociedades complexas como sendo compostas

por quatro subsistemas (economia, político, socialização e comunidade

societária), sendo que cada um deles teria uma função a cumprir. A cada um dos

quatro subsistemas societários, Parsons (1959) identifica características e

funções específicas, assim como instituições correspondentes. A economia é

caracterizada pelas atividades de produção e circulação de bens de consumo;

dessa forma, sua função é precisamente a de dar à sociedade a capacidade de

adaptação, indispensável à sobrevivência e desenvolvimento de qualquer

coletividade. Ao mesmo tempo, as sociedades ocidentais fizeram com que a

1 O neoinstitucionalismo tem atraído cada vez mais a atenção também de pesquisadores brasileiros. Para uma ótima interpretação do sistema de inovação brasileiro a partir dessa abordagem teórica, ver Campos, 2003. Confira também Rocha, 2005.

Page 45: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

44 Hermílio Santos

complexificação dessa função se fizesse acompanhar pela consolidação, ou o

surgimento, de instituições próprias para o fim de realizar a adaptação exigida. É

o caso das empresas privadas e do surgimento das bolsas de valores, instituições

típicas do que se convencionou chamar “mercado”.

O mercado é uma esfera de socialização em que concorre uma pluralidade

de interessados na troca e nas possibilidades advindas dessa troca (Weber,

1999). Na formulação de Dahrendorf (1974), bastante próxima daquela de Weber,

o mercado é concebido como:

um lugar de troca e competição, onde todos os presentes fazem o possível para aumentar sua própria fortuna. (...) As decisões são tomadas, naturalmente, mas só com o propósito de salvaguardar o funcionamento do mercado, isto é, a definição e a imposição das regras do jogo (Dahrendorf, 1974, 247).

Convém fazer uma breve referência histórica à constituição desse espaço,

o mercado. Braudel (1987) resume o longo percurso evolutivo, entre os séculos

XV e XVIII, pelo qual passou a economia do Ocidente, em que as cidades

ganham maior destaque, as trocas de mercadorias no âmbito internacional vão

ocupando espaço, tomando um vulto ainda maior com a inclusão de produtos

vindos da América, até chegar ao século XVIII, o qual assiste a um

amadurecimento dos instrumentos de troca. A característica própria do mercado

seria estabelecer um vínculo estreito entre a produção e o consumo, não de um

único produtor ou de poucos que se conhecem e interagem a partir de seus

produtos, mas, sobretudo, entre produtores e consumidores que se localizam em

regiões distintas, produzindo bens distintos, estranhos uns aos outros. Essa

impessoalidade, própria da economia de mercado, ainda viria a se tornar a

maneira por excelência através da qual as pessoas interagem. Mas até o século

XVIII a economia de mercado, mesmo presente em várias regiões, ainda não

havia dominado toda a Europa; falta a ela, como afirma Braudel, espessura. Essa

espessura viria não apenas quando o mercado se alastrou geograficamente –

quando deixa de dominar apenas Cidades-Estado, criando mercados nacionais –,

mas, sobretudo, quando a elite daqueles que controlavam o mercado alcançou

visibilidade e poder político. Pela primeira vez, nos séculos XVIII e XIX, o mundo

Page 46: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 45

passou a estar integrado na coordenação e uso dos recursos existentes no

mundo.

Ao compreender o mercado como um local de encontro com o objetivo da

permuta ou da compra e venda, Polanyi (2000) afirma que as relações sociais

estão subordinadas ao sistema econômico de tal maneira que apenas numa

sociedade de mercado faz sentido a referência a uma economia de mercado. Mas

de que maneira as relações sociais estão subordinadas à economia de mercado?

É precisamente o mercado que propicia a socialização entre pessoas que antes

não estavam impelidas à interação. É precisamente essa a particularidade da

nossa época, ter no mercado o espaço de socialização entre estranhos em

sociedades que se tornaram mais complexas através da mobilidade social.

Se no mercado há uma incerteza baseada nas opções futuras dos

concorrentes, no planejamento, ao contrário, o funcionamento do processo de

alocação é previamente determinado. Para Hayek (1961), somente o mercado é

capaz de oferecer espaço à liberdade, entendendo a liberdade como a condição

do ser humano na qual a coerção de alguns sobre outros é reduzida tanto quanto

possível. A coerção seria aquilo que se sofre em função de outrem e implica não

apenas a possibilidade de provocar um dano, como também à intenção de induzir

uma determinada conduta. Um indivíduo sob coerção não é aquele desprovido de

suas faculdades mentais, mas sim aquele que se encontra privado da

possibilidade de utilizar seus conhecimentos e recursos para alcançar seus

próprios objetivos. Da mesma maneira, o controle dos elementos essenciais para

a ação de um indivíduo por outrem é demonstração clara da existência de

coerção. Hayek (1961) tem no sistema de mercado o ponto de partida para o

exercício da vida sem coerção. Porém, afirma Hayek,

em uma sociedade moderna, entretanto, o requisito essencial para a proteção do indivíduo contra a coerção não é a posse de propriedade, mas o fato de os meios materiais, que lhe permitem seguir qualquer plano de ação, não devem estar totalmente sob o controle exclusivo de outro agente (1961, 259).

Aqueles desprovidos de propriedade encontram no Estado o refúgio para a

garantia de sua vida; o Estado seria também proteção e alongamento do campo

de escolha livre do indivíduo. Porém, o Estado deve garantir tanto a propriedade

Page 47: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

46 Hermílio Santos

daqueles que a possuem quanto a vida e os bens básicos necessários à vida de

todos. O limite da coerção empregada pelo Estado estaria em manter esse

equilíbrio, de maneira a garantir aos indivíduos a possibilidade de desenvolver

suas atividades de forma “coerente e racional”. Hayek parece admitir com isso

que não existe uma sociedade ordenada pura e exclusivamente pela

racionalidade do mercado. Na mesma direção, Dahrendorf (1974) afirma que para

que as regras do jogo, próprias da racionalidade de mercado, sejam efetivamente

válidas, é fundamental a existência de algum mecanismo compensatório,

mecanismo este que não é outro senão as normas substantivas, próprias da

racionalidade do planejamento. Essa compensação pode ser ilustrada pela

introdução de direitos sociais como suplemento aos direitos civis e políticos.

Voltando à caracterização oferecida por Parsons, temos na socialização a

instância responsável pela interiorização da cultura, ou seja, todo e qualquer

espaço onde se processa atividades educadoras, como a família e a escola, mas

também os meios de comunicação. É nessa esfera que se dá a internalização dos

valores de uma determinada sociedade. Outra esfera (ou subsistema em termos

parsonianos), a comunidade societária, é responsável pela integração. Aqui

devem ser localizadas analiticamente as instituições que estabelecem e mantêm

as solidariedades, pois é “formada pelo conjunto dos laços que unem os atores de

uma sociedade, que os tornam solidários, dependentes uns dos outros e que

asseguram uma coesão pelo menos relativa do conjunto coletivo que eles

compõem” (Rocher, 1976: 30). Empiricamente, a comunidade societária deve ser

reconhecida nas “instituições, classes sociais, organizações, movimentos sociais,

grupos de pressão que reúnem e ligam os membros de uma sociedade e através

dos quais defendem seus interesses, satisfazem seus desejos, realizam seus

objetivos” (Rocher, 1976: idem). Por outro lado, o subsistema político procura

realizar os objetivos coletivos, bem como a mobilização de atores e recursos para

tais objetivos. As instituições próprias do Estado, como o governo, devem ser

entendidas como responsáveis por essa função, qual seja a consecução de

objetivos.

Segundo Parsons, os quatro subsistemas da sociedade economia, político,

socialização e comunidade societária estão vinculados por uma rede em que

circulam quatro meios de troca: moeda, poder, influência e compromisso. Para o

Page 48: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 47

equilíbrio de uma sociedade é imprescindível haver um fluxo contínuo nesse

sistema de trocas, em que todos os membros da sociedade possam contribuir,

mesmo que não necessariamente de maneira simétrica. O rompimento desse

fluxo ou seu mau funcionamento pode acarretar problemas sociais dos mais

graves. Por exemplo, comunidades locais marginalizadas, além de sofrer as já

conhecidas limitações de caráter material, estão igualmente afetadas por essa

limitação no processo do sistema de trocas. Uma consequência bastante

previsível é haver uma descontinuidade simbólica entre sociedade e comunidade,

em que os valores correntes na sociedade estão presentes na comunidade

apenas de maneira frágil, ou seja, sem que a própria comunidade possa contribuir

para seu desenvolvimento.

A partir dessa análise estrutural-funcionalista de Parsons, podemos agora

apresentar de maneira mais explícita o que corresponderia a um contexto social

complexo. Haveria aqui um equilíbrio entre os diferentes subsistemas, com

funções e instituições diferenciadas. Trata-se de um contexto bastante complexo,

caracterizado ao mesmo tempo pela diferenciação e integração de suas

estruturas e funções. Empiricamente, significa contar com um mercado

funcionando sem grandes restrições, ou pelo menos que tais restrições não

impliquem uma inaceitável intromissão do Estado. Esse equilíbrio implica, por

outro lado, que o papel do Estado não seja exercido com uma “contaminação”

excessiva por parte de interesses privados. Ao mesmo tempo, numa tal realidade

típico-ideal democrática, as instituições da comunidade societária e aquelas

responsáveis pela socialização terão liberdade de ação sem estarem

“colonizadas” nem pelo mercado nem pelo Estado. Como se vê, trata-se de um

equilíbrio improvável, mas que, para efeitos analíticos, pode ser útil para localizar

as sociedades existentes em algum ponto, seja se aproximando ou se

distanciando de tal equilíbrio.

A questão relevante que deve se colocar a essa altura é saber de que

maneira, diante de um contexto social tão diversificado, as políticas públicas são

formuladas e implementadas.

Page 49: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

48 Hermílio Santos

Políticas públicas em contextos sociais complexos

Diante da alta complexificação das sociedades contemporâneas, marcadas

por um contexto institucional cada vez mais diferenciado, ocorre não uma

dispersão ou fragmentação institucional. Ao contrário, tal diferenciação tem sido

acompanhada por um grau crescente de interação e intercâmbio entre as distintas

instituições. Essa interação tem provocado um novo tipo de atuação das

organizações, que tem sido conhecido como rede (Castells, 2000), que implica

numa flexibilização da organização vertical, combinando-a com uma atuação

horizontalizada, ou seja, em cooperação ou intercâmbio com outras organizações.

Alguns autores, como Marin e Mayntz (1991), ao analisarem um tipo

específico de rede, como as redes de políticas públicas, chamam a atenção para

o fato de que essas não podem ser definidas unicamente através de sua

interação interorganizacional, mas também pela sua função, a saber, a

formulação e implementação de medidas, na qual é identificada a presença de

redes – através da observação de atores que participam das negociações e

consultas antes que as decisões sejam tomadas –, essas se concentram em

temas setoriais ou específicos (como, por exemplo, no apoio ao desenvolvimento

de novas tecnologias), em que se observa uma relação de interdependência entre

elas. Por rede de políticas públicas entende-se a caracterização geral do

processo de formulação de políticas na qual membros de uma ou mais

comunidades de políticas estabelecem uma relação de interdependência.

Essa concepção do processo de formulação de políticas públicas tem como

pano de fundo uma compreensão da sociedade em que diferentes atores

interagem de uma maneira relativamente descentralizada. Isso significa que as

políticas públicas são o resultado de uma complexa interação entre agências

estatais e organizações não estatais. Rejeita-se com isso a abordagem que parte

do Estado como o único ator relevante nesse processo. A iniciativa para que um

tema seja objeto de política pública pode ser tomada não apenas pelo Estado,

mas também por agentes não estatais. Aqui se estabelece uma distinção

marcante entre a formulação de políticas através de rede de políticas públicas, de

um lado, e através de dirigismo estatal, por outro lado. A formulação via rede não

se baseia em comando e ordem, mas em negociação e intercâmbio. Esse

Page 50: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 49

intercâmbio não significa, contudo, que todos os atores se beneficiem igualmente

da relação daí decorrente ou que exista simetria quanto aos recursos (capital,

conhecimento, capilaridade social, legitimidade pública, etc.) acumulados por

cada um desses atores.

Ao contrário do que possa parecer, o Estado envolvido no processo de

políticas públicas através de rede não é um Estado prisioneiro e fragilizado em

sua ação. Trata-se de um Estado que perdeu suas pretensões de dirigismo, mas

que não abdicou de seu papel de formulador e implementador de políticas.

Entretanto, esse papel tradicional passa a ser combinado com uma nova maneira

de processar as demandas, a saber, quando atores não estatais passam a estar

incluídos, ex ante, na identificação de problemas e na proposição de soluções,

inclusive com alguns desses atores assumindo parcela da responsabilidade em

sua implementação.

A figura 1, abaixo, ilustra a constituição de redes de políticas públicas.

Note-se que a posição dos atores é determinada pela intensidade de contatos

estabelecidos por cada um deles. Aquelas instituições localizadas mais ao centro

são precisamente as que, nesse caso específico, ocuparam um papel mais

relevante (Schneider, 2005: 44). Cabe chamar a atenção para o fato de que o

posicionamento dos distintos atores relativamente aos demais atores

representados na figura não é fixo. Ao contrário, esse posicionamento é dinâmico,

determinado em razão do envolvimento dos atores em torno de temas

específicos, como é o caso da reforma do setor de telecomunicações na

Alemanha. Esse tipo de representação é bastante útil para tornar visível

precisamente a estrutura sistêmica de articulação de atores institucionais

posicionados em distintas esferas da sociedade. Além disso, permite concluir que

a posição de um ator específico, na rede, não depende exclusivamente do seu

acúmulo de recursos financeiros, mas em grande medida do seu interesse sobre

um tema específico que seja objeto de articulação dos atores em rede. A posição

de cada um dos atores depende, também, da capacidade de estabelecer contatos

com os demais atores relevantes.

Page 51: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

50 Hermílio Santos

Figura 1: A rede de políticas públicas na reforma das telecomunicações na Alemanha Fonte: Schneider, 2005: 48

Quando se trata de otimizar os processos de inovação, por exemplo, os

arranjos institucionais em rede parecem cumprir um papel fundamental. Ao

contrário de Schumpeter, para quem o empreendedor exerce um papel decisivo

nos processos de inovação pelo fato de assumir riscos (Hämäläinen e

Schienstock, 2000:3), diversos autores têm sustentado a tese de que as redes de

inovação ocupariam, hoje, esse lugar central no processo de inovação (Rammert,

2005). O argumento principal é de que no contexto das economias modernas, a

inovação dependeria, sobretudo, de coordenação e cooperação

intraorganizacional, além de um fluxo intenso de comunicação entre as

instituições envolvidas (Hämäläinen e Schienstock, 2000:6). Mas por que razão as

instituições buscariam a cooperação com outras instituições? Não se trataria, por

certo, num mundo competitivo, de altruísmo. Uma resposta “calculadora”

fornecida pelo neoinstitucionalismo seria de que “elas [as instituições] afetam os

comportamentos (...) ao oferecerem aos atores uma certeza mais ou menos

grande quanto ao comportamento presente e vindouro dos outros atores” (Hall e

Taylor, 2003: 197). Com isso, a atuação em rede tende a reduzir as incertezas

envolvidas nos processos de inovação. Nesse novo cenário, marcado pela

Governo e Administração

Sindicatos

Associações econômicas Grandes empresas

Partidos políticos

Page 52: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 51

constituição de redes, a posição do Estado como impulsionador da inovação

passa por severas transformações.

Rammert (2005) sustenta a tese de que o Estado perde...seu papel central

na política de inovação. A pluralidade dos participantes no processo de

desenvolvimento técnico exige uma estrutura descentralizada de `governança`.

Ele se vê crescentemente compelido ao simples papel de intermediário e

moderador (Rammert, 2005: 10).

Nesse sentido, a participação na rede implica, por um lado, na aceitação,

implícita ou explícita, da ideia de heterarquia, ou seja, a existência de uma

diversidade de interesses, atores e recursos, sem que exista entre eles o

estabelecimento, ex ante, da relevância e da proeminência de cada um deles.

Isso não significa, por outro lado, que exista simetria entre os distintos atores

envolvidos, mas tão somente que nenhum deles é capaz de alcançar, sozinho,

seus objetivos e de que existe, aí, uma dependência mútua (Kasza, 2004: 1).

Convém chamar a atenção para o fato de que esse tipo de arranjo

pressupõe algumas pré-condições, dentre elas a de que o contexto político seja

suficientemente despolarizado a fim de permitir que se crie um ambiente de

confiança mútua entre os distintos tipos de instituições relevantes. Além disso,

onde se observam tais arranjos há um contexto institucional bem desenvolvido e

diversificado, em que os recursos necessários não estão centralizados em poucos

atores. Ao contrário, onde se apresenta um ambiente institucional precarizado,

ocorre a presença do que poderíamos denominar de oligopólio dos recursos

relevantes (capital, conhecimento, capilaridade, capacidade de formação, etc.),

impedindo assim a constituição de redes. Esse novo formato de processamento e

alocação de recursos oferece um ambiente promissor para a formulação e

implementação de políticas públicas, em especial àquelas voltadas à criação de

ambientes inovadores.

No Brasil, ainda são escassas as análises do processo de constituição de

redes de políticas públicas. Diferentemente da grande maioria da literatura que

trata da temática – que concentra a análise por um lado na capacidade do Estado

de se articular com outros atores e, por outro lado, na incapacidade do Estado de

prover todos os recursos necessários à formulação e implementação de políticas

públicas –, no Brasil, não se poderia analisar essa realidade desconsiderando o

Page 53: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

52 Hermílio Santos

desenvolvimento recente das organizações da sociedade civil, assim como a

atuação dos grupos de interesse. De acordo com Avritzer (1994), o surgimento da

sociedade civil no Brasil associa-se a três fenômenos fundamentais: a) ao

surgimento de atores sociais modernos e democráticos; b) à retomada da idéia,

realizada por esses autores, de constituição de um espaço intermediário entre

estado e sociedade e c) à constituição de estruturas legais apropriadas para a

institucionalização das reivindicações da sociedade civil.

Os dois primeiros fenômenos estão vinculados ao surgimento de novos

atores sociais, decorrência do rápido processo de modernização pelo qual passou

a sociedade brasileira durante o regime militar. Nesse processo verifica-se não

apenas um crescimento quantitativo de novos atores, mas também que esses

novos atores constituíram-se social, cultural e politicamente de maneira

diferenciada, na medida em que a urbanização crescente provocou a introdução

de novos hábitos. Ao lado da constituição de um associativismo civil urbano,

outros dois movimentos exerceram um papel fundamental nesse processo, trata-

se do novo sindicalismo e do associativismo profissional de classe média.

Diferentemente das abordagens correntes sobre as redes de políticas

públicas, que focam a análise na capacidade ou mesmo na incapacidade do

Estado em dar conta, sozinho, da formulação e da implementação das políticas, é

preciso que ampliemos a configuração da análise a fim de incluir também a

capacidade dos atores não estatais em contribuir nesse processo. Não se trata de

estabelecer condições normativas para a cooperação de atores diversos na

execução de atividades públicas, mas tão somente alargar o escopo analítico

para dar conta de uma realidade que, em alguns contextos, vai se tornando mais

complexa. A maior complexidade aqui se refere ao fato de responsabilidades no

ciclo de políticas públicas estarem sendo, em muitos casos, compartilhadas entre

atores públicos, privados e da sociedade civil. Nesse caso, se por um lado a

execução das políticas tem a capacidade de, potencialmente, ganhar em

eficiência, por outro lado, tem o efeito de introduzir novos elementos a desafiar a

legitimação democrática da autoridade pública.

Como afirmado anteriormente, o ciclo de políticas públicas em sociedades

mais complexas são igualmente um campo de atuação de grupos de interesse.

Clive Thomas (1993a) sustenta haver uma tendência à homogeneização da

Page 54: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 53

atividade de grupos de interesse no processo de formulação de política industrial,

pelo menos nos países altamente industrializados ou, como ele prefere “pós-

industrializados”. Sua tese se baseia, sobretudo, na observação de grupos de

interesse econômicos, sem, no entanto, levar em consideração os grupos que

representam ramos da indústria, como a indústria automobilística ou têxtil, alguns

dos mais afetados pelo processo de globalização, dentre outros. É preciso que se

pergunte como os grupos de interesse setoriais agem e como eles contribuem

para o processo de formulação de políticas, quais os fatores específicos a

influenciar as formas de atuação dessas organizações e por quê. É preciso ir um

pouco adiante, colocando questões mais explícitas e investigar os canais de

acesso à disposição dos grupos setoriais para que possam exercer um papel

relevante na formulação de políticas. Quais são as estratégias e táticas dessas

organizações? Quais recursos estão à disposição delas? Há algum tipo de

interdependência entre os formuladores de políticas e os grupos de interesse

setoriais? Em uma abordagem comparativa, deve-se investigar as semelhanças e

diferenças entre grupos que representam setores industriais distintos em um

mesmo país.

Entre os cientistas políticos não há qualquer consenso em torno da

definição de grupos de interesse. Ao definir tais atores sociais, são empregadas

diferentes expressões para caracterizar as mesmas organizações, como grupos

de pressão e lobby. Mais que uma simples incompatibilidade de conceitos, trata-

se ou de uma apreensão diferenciada de um fenômeno sócio-político ou de uma

má-compreensão do problema investigado.

Grupos de interesse são organizações apartadas do governo – embora

muitas vezes em estreito contato ou parceria com órgãos governamentais –, cujo

objetivo é exercer influência sobre políticas públicas (Wilson 1990: 1; 1992: 80).

“Pressão” é empregada quando os canais de acesso para um grupo estiverem

obstruídos ou quando for ínfima a possibilidade do grupo ter seus interesses

levados em consideração pelos tomadores de decisão. O termo em inglês lobby é

uma metáfora do vestíbulo diante da sala de reunião dos parlamentares e refere-

se a uma atividade particular dos grupos de interesse, a tentativa de influenciar a

deliberação de novas leis (Beyme 1980: 11). Pressão e lobby indicam, portanto,

Page 55: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

54 Hermílio Santos

possíveis técnicas que podem ser empregadas pelos grupos para influenciar as

decisões, não possuindo qualquer caráter de definição.

Apesar de alguns autores concederem aos partidos políticos o mesmo

status dos grupos de interesse, há na verdade uma série de diferenças entre

ambos. Os grupos de interesse se diferenciam dos partidos, sobretudo, pelo fato

dos primeiros não terem a pretensão de administrar diretamente o aparelho

estatal (Hartmann 1985; Wilson 1992: 80).

Os grupos de interesse podem ser classificados de diversas maneiras,

como, por exemplo, pelo tipo de interesse representado, a intensidade de

organização do grupo e o campo de ação prioritário (J. Weber 1977: 75; Heinze

1981: 57). No processo de formulação de política industrial o critério mais

relevante é o primeiro deles, ou seja, o tipo de interesse, que pode ser dividido

entre econômicos e não econômicos ou promocionais. Entre os primeiros,

encontram-se aquelas organizações que colocam em primeiro plano questões

econômicas, como associações de empresários ou industriais e sindicatos de

trabalhadores. Organizações não econômicas são aquelas que aspiram a

objetivos culturais, religiosos, humanitários ou políticos (J. Weber 1977: 75),

embora possam eventualmente lidar com problemas econômicos.

Por destinatários entende-se os possíveis interlocutores de um grupo de

interesse. Um grupo pode tentar ganhar os mais importantes destinatários como

interlocutores, como o congresso, o chefe do executivo, a burocracia estatal, os

partidos e a opinião pública (figura 2). Nem todos os interlocutores têm,

entretanto, a mesma importância para um mesmo grupo. A relevância de um

destinatário depende de muitos fatores, como, por exemplo, do tipo de grupo de

interesse, da estrutura e do papel do destinatário em um sistema político

determinado e os objetivos gerais e específicos perseguidos pelo grupo.

Page 56: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 55

BurocraciaMinisterial

Partidos Políticos Opinião Pública

Congresso Nacional

InformaçõesPetiçõesContato Pessoal

Pacote de VotosDoaçõesContato Pessoal

PetiçõesApoio (ousabotagem)de Medidas

Contato PessoalConhecimentoespecializado

InformaçõesDemonstraçõesDeclaraçõesImprensa Própria

Grupos de Interesse

Influência Imediata

Influência Intermediária

Destinatários

Instrumentos

Chefe do Executivo

Figura 2: Destinatários e instrumentos dos grupos de interesse Fonte: Traduzido e modificado a partir de Rudzio 1983: 245

De que maneira os grupos de interesse econômicos contribuem para o

processo de formulação de medidas de políticas públicas? Por um lado, a

presença de grupos de interesse é percebida em geral somente quando tentam

sabotar medidas deliberadas. Por outro lado, muitas medidas podem ser

implementadas de maneira mais barata e mais eficiente caso os grupos de

interesse, cujos interesses estejam diretamente em questão, cooperem (Wilson

1992: 82). Parto do princípio de que em cenários de alta competitividade

econômica as medidas setoriais têm maior chance de serem implementadas se,

primeiro, as medidas não forem implementadas à revelia ou contra os planos dos

setores correspondentes e, segundo, se o setor industrial – seja através de sua

associação representativa, seja através das companhias mais importantes do

setor –tiver a possibilidade de pelo menos aceitar as medidas antes de elas

serem implementadas. Com isso podem tanto o Estado quanto os setores

industriais realizar seus projetos de maneira mais transparente, já que sua

participação é garantida de antemão, sem que o acesso seja “comprado”.

Page 57: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

56 Hermílio Santos

Na tentativa de cumprir suas funções de maneira a mais eficiente possível,

os grupos de interesse procuram transformar seus recursos – finanças, quota de

filiação e informações – em poder político, de modo que possam desenvolver

relações interpessoais com os diferentes participantes do processo político

(Thomas 1993b: 28). Uma questão central para o grupo é saber distinguir em

cada momento qual tipo de informação poderá elevar suas possibilidades de

acesso aos formuladores. Trata-se assim de uma questão empírica cujos critérios

devem ser estabelecidos de acordo com as circunstâncias. Responder a essa

questão hoje significaria ser capaz de reconhecer a questão em que está

centrada a atual competitividade industrial. A partir daí o grupo articula seus

recursos de maneira a otimizar sua ação, tanto para os seus membros quanto

para os formuladores de políticas. Isso se aplica caso o grupo se recuse a seguir

o caminho mais “fácil”, que seria conseguir do governo vantagens de curto prazo,

via lobby.

Com poucas exceções, grande parte das pesquisas que lidam com os

efeitos e significado de grupos de interesse se dedicam a investigar a ação das

chamadas federações (umbrella organizations, ou associações que abrigam

outras associações) sobre temas macroeconômicos. Entretanto, cada vez com

maior frequência as questões econômicas são tratadas de maneira segmentada,

isto é, percebe-se que a competição global atua diferentemente sobre os setores

produtivos de um país. Com isso, os diversos setores são tratados de maneira

diferenciada, quando e se medidas são implementadas. Uma das consequências

da globalização é o surgimento de desafios para setores específicos e firmas e

menos para a economia de um país como um todo. Daí que cada setor deva ser

tratado e analisado separadamente.

Cawson (1986 e 1985) soube reconhecer isso. Ele foi um dos primeiros

autores a introduzir a investigação de arranjos de interesse que se dão ao nível

médio (meso level) para o tratamento de problemas de determinados setores

industriais. Embora Cawson tenha apenas se dedicado a analisar as

intermediações de tipo neocorporatista, ele apontou para novas perspectivas

quando afirmou que as organizações de interesse não agregam “interesses de

classe”, mas sim as mais específicas preocupações de tipos particulares de

interesse (Cawson 1985: 2). Essa afirmação significa um desestímulo para

Page 58: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 57

aquelas abordagens que veem o fantasma dos grupos de interesse por todos os

lados como controladores monolíticos das questões econômicas mais relevantes.

Estudos recentes apontam para a tendência de se estudar todo o processo

de formulação de políticas. A principal preocupação está na tentativa de oferecer

uma visão geral da participação dos diferentes atores ou da investigação das

relações entre eles. Essa linha de pesquisa tem se tornado mais frequente desde

meados da década de 80 e é caracterizada pela análise das comunidades de

políticas (policy communities) e das redes de políticas (policy networks). Ambas

as expressões são definidas e empregadas de maneiras distintas.

Na definição de Wilks e Wright (1987), uma comunidade de política pública

(policy community) é um grupo de atores – ou de atores potenciais – a partir de

um mesmo universo de políticas públicas (policy universe). Os componentes de

um universo de políticas compreendem todos os atores com interesse direto ou

indireto em um mesmo foco de políticas (por exemplo, um produto específico, um

tipo de serviço ou tecnologia, um mercado determinado ou ainda tamanho da

empresa – multinacional, média ou microempresa). Dessa maneira é possível

identificar, descrever e comparar um “universo de política industrial”, um “universo

de política educacional” ou um “universo de política de saúde”, entre outros

(Wright 1988: 605). Em cada um desses universos, por exemplo, de política

industrial, podem ser identificados alguns setores, como químico,

telecomunicações, siderúrgico, etc. As medidas de política industrial, entretanto,

nem sempre são formuladas dentro ou para um único desses setores, mas

através da interação entre os atores de cada um desses campos. Em função

disso deve ser introduzido o conceito de redes de políticas públicas (policy

networks), para que possamos obter uma melhor compreensão desse processo.

Por rede de políticas públicas (policy network) entende-se a caracterização

geral do processo de formulação de políticas na qual membros de uma ou mais

comunidades de políticas estabelecem uma relação de interdependência (Wilks e

Wright 1987: 299; Wright 1988: 606 ss.; Coleman 1994: 276). Marin e Mayntz

chamam a atenção para o fato de que redes de políticas não podem ser definidas

unicamente através de sua interação interorganizacional, mas também através de

sua função, a saber, a formulação e implementação de medidas (Marin e Mayntz

1991: 16). Ambos os autores chamam igualmente a atenção para o fato de que

Page 59: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

58 Hermílio Santos

onde é identificada a presença de redes – através da observação de atores que

participam das negociações e consultas antes que as decisões sejam tomadas –,

essas se concentram em temas setoriais ou específicos (como, por exemplo, no

apoio ao desenvolvimento de novas tecnologias) e não em torno de controvérsias

macroeconômicas (Marin e Mayntz 1991: 19).

Quais seriam então as condições ideais para o surgimento de redes no

processo de formulação de políticas públicas ou mais precisamente de medidas

de política industrial? A condição mais evidente é a presença de questões de

políticas públicas (policy issues) (Wright 1988: 606), isto é, um tema deve se

tornar objeto de um tratamento diferenciado por parte do governo. Isso significa

que sua importância deve ser reconhecida e confirmada por diferentes atores. A

iniciativa para que um tema seja objeto de política pública pode ser tomada não

apenas pelo Estado, mas também por agentes não estatais. Aqui se estabelece

uma distinção marcante entre a formulação de políticas através de rede de

políticas, de um lado, e através de dirigismo estatal, por outro lado. A formulação

via rede de políticas não se baseia em comando e ordem, mas em negociação e

intercâmbio (Kenis 1991: 299). Esse intercâmbio não significa porém que todos os

atores se beneficiem igualmente da relação daí decorrente (Schneider 1990: 175)

ou que exista uma relação simétrica entre eles.

Três outros aspectos relevantes para a presença de rede de políticas

devem ser nomeados aqui. A saber, as variáveis gerais do país (country

variables), como, por exemplo, a orientação tradicional de política econômica, o

grau de politização de reestruturação industrial e o papel de agências estatais na

economia; as variáveis do setor em questão (como a interdependência e

integração pessoal e/ou organizacional numa indústria) assim como as condições

estruturais e conjunturais do setor (competição intraindustrial, existência e

atividade de associação de interesse) (Kenis 1991: 307). Isso deixa evidente que

na análise de redes de políticas os grupos de interesse são apenas um entre

possíveis participantes do processo de formulação de políticas públicas

(Lehmbruch 1991: 134).

Na literatura recente são identificados alguns tipos de redes de políticas. As

mais importantes dentre elas são as redes neopluralistas e as neocorporativistas.

Page 60: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 59

Rede de tipo neopluralista

Parte das definições disponíveis do processo neopluralista de formulação

de políticas é fornecida por seus críticos. O equívoco de leitura mais comum

dessa perspectiva, por parte dos seus críticos, é a afirmação de que no arranjo

neopluralista a possibilidade de influenciar o processo de formulação estaria

dividida entre diferentes grupos de forma equilibrada. Tal interpretação não é

dada pelos próprios neopluralistas. É possível que os autores neopluralistas não

sejam capazes de entender sempre a realidade a qual pretendem analisar, mas

não são ingênuos ao ponto de sustentar que as possibilidades estejam

igualmente distribuídas entre os diferentes atores envolvidos.

Para os neopluralistas, nem todos os grupos têm acesso semelhante ao

processo de formulação, em função, sobretudo, da qualidade e quantidade dos

recursos à disposição dos mesmos (Christiansen e Dowding 1994: 15). Além dos

recursos financeiros, de organização e de informação, um outro recurso ocupa um

lugar central, a saber, a legitimidade. Um grupo deve credenciar-se como legítimo

para que possa ganhar acesso ao processo de formulação. O fato de ser legítimo

concede ao grupo o status de insider. Essa legitimidade não é dada pelo Estado,

mas o grupo deve ser “amplamente aceito como tendo o direito de participar”

(Dahl 1986: 180, tradução minha). Dahl (1986), como ademais a maioria dos

pluralistas, não deixa evidente qual instância forneceria essa legitimidade.

Fundamental, contudo, não seria nomear uma instância legitimadora, mas

reconhecer que essa legitimidade não é dada apenas pelo Estado.

Na perspectiva neopluralista, o processo de formulação de políticas

públicas em uma sociedade democrática é caracterizado pela existência de uma

concorrência entre diferentes grupos (a analogia com a economia de mercado

não é coincidência). Nesse cenário competitivo disputam indivíduos, partidos

políticos e grupos de interesse antes que o governo formule e implemente suas

políticas (Thomas 1993a: 7). Grande parte dos autores neopluralistas concedem

aos grupos de interesse um papel central no processo político, pois esses

possuem um volume considerável de poder (Smith 1990: 302). Em função disso

os grupos de interesse assumem um papel relevante na definição de policy

outcomes. Diferentemente de algumas interpretações, os grupos de interesse são

Page 61: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

60 Hermílio Santos

encarados pelos neopluralistas enquanto um dentre outros atores importantes na

arena política. No fundo, coloca-se a concepção pluralista de divisão do poder na

sociedade, a saber, enquanto disperso entre distintos atores. Entretanto, os

atores que se filiam a essa corrente reconhecem que os empresários possuem

uma posição privilegiada nesse processo ou que pelo menos deveriam possuir

(Lindblom 1977: 175).

Dessa maneira de conceber a representação de interesse não se deve

concluir que não seja possível o surgimento de redes. Como poderia então ser

concebida uma rede de políticas de tipo neopluralista? Se lembrarmos da

legitimidade como elemento importante para a participação no processo de

formulação de políticas deveria ser concebida uma rede par excellence, ou seja,

uma estrutura em que distintos atores tomam parte sem que um deles exerça um

papel central. Isso significaria que mesmo quando os atores envolvidos não

possuam igualdade de acesso ao processo de formulação não haveria um ator

que assumiria o papel de legitimador da participação de atores interessados.

Essa maneira de conceber o processo de formulação de políticas provocou

e provoca ainda inúmeras críticas. A crítica mais frequente é que os pluralistas

fracassam em sua tentativa de análise em função de sua incompreensão do

processo político contemporâneo. Tais críticas são elaboradas, sobretudo, pela

abordagem neocorporatista.

Rede de tipo neocorporativista

A perspectiva neocorporatista surgiu quase como uma reação às

perspectivas “passadas”, em especial ao pluralismo e ao corporativismo estatal.

Embora o artigo de Schmitter Still the Century of Corporatism? (1979) seja um dos

artigos mais importantes para o debate neocorporativista, as contribuições de

Lehmbruch (1979a; 1979b) são mais apropriadas para representar a perspectiva

neocorporatista na discussão em torno do processo de formulação de políticas

públicas. Schmitter define neocorporatismo enquanto um sistema de

representação de interesses. Para Lehmbruch, mais que uma simples articulação

de interesses, o neocorporativismo é:

Page 62: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 61

um modelo institucionalizado de formulação de políticas, no qual grandes

organizações de interesse cooperam umas com as outras e com autoridades

públicas não apenas na articulação (ou mesmo ‘intermediação’) de interesses,

mas – em suas formas desenvolvidas – na ‘alocação autorizada de valores’ e na

implementação de tais políticas (Lehmbruch 1979a: 150, tradução minha).

O desacordo entre ambos os autores está menos no aspecto conceitual,

como pode parecer num primeiro momento, mas fundamentalmente na realidade

observada. Enquanto Schmitter lida com os arranjos políticos em torno do Estado,

Lehmbruch tenta apreender o processo de surgimento de políticas públicas. A

diferença entre ambas as perspectivas é de fato bastante sutil, para alguns

inexistente. Porém, o resultado das articulações em torno da administração do

Estado nem sempre pode ser transposto automaticamente para o processo de

formulação de políticas. Isso significa que ambas as abordagens não

representariam interpretações contrapostas de uma mesma realidade.

Diferentemente dos neopluralistas, o papel do Estado é especialmente

salientado pelos adeptos da corrente neocorporatista. Entre os autores

neocorporatistas, o Estado não é definido de maneira uniforme, mas sua

autonomia em relação aos grupos de interesse é um ponto convergente entre

suas diferentes abordagens. O Estado não é concebido simplesmente como uma

arena na qual competem interesses divergentes, senão que o Estado teria sua

própria iniciativa, interesses e políticas (Meier e Nedelman 1979). Isso não quer

significar que o Estado seja totalmente independente e autônomo e que os grupos

de interesse lhe estejam subordinados, mas que o Estado possui a autoridade de

definir os canais de acesso, assim como quais atores podem e devem participar.

Para Meier e Nedelman (1979), o papel a ser exercido pelos grupos de

interesse não estariam de maneira alguma estabelecidos de antemão. Isso

dependeria de duas condições, a saber, a maneira predominante através da qual

os atores definem a interação entre eles (entre grupos de interesse e Estado) e a

maneira dominante através da qual os atores definem a situação na qual essa

interação ocorre. Em arranjos setoriais de tipo neocorporatista os grupos são

capazes de mediar a relação Estado/membros dos grupos (Young, 1990). Assim,

é possível conceber a rede de políticas de tipo neocorporatista como um arranjo

em que participam atores em quantidade limitada e tendo o Estado como ponto

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62 Hermílio Santos

de convergência, isto é, como elemento central no processo de formulação de

políticas.

Quando se trata de analisar o papel dos grupos de interesse organizados

em ambos os tipos de redes, não é simplesmente uma divergência de conceitos

quando as teorias pluralistas acentuam a atividade de representação dos grupos

de interesses, em oposição à intermediação, acentuada pelos autores

neocorporatistas. Intermediação incorpora em seu significado – muito mais que o

conceito de representação – um processo complexo e dinâmico. As teorias

neocorporatistas reconhecem, assim, uma contribuição mais ativa dos grupos de

interesse na formulação de políticas, pois para essa corrente os interesses

coletivos não são dados, mas são “definidos” por instituições sociais (Streeck

1994). Em função disso é determinado o significado dos grupos organizados tanto

para os membros quanto para o processo de surgimento de redes. Aquelas

associações que conseguem fortalecer seu campo de ação através do

intercâmbio político com o Estado podem “governar” o interesse dos seus

membros ao contrário de simplesmente representá-lo (Streeck 1994). É

improvável que uma organização de interesse goze de um status permanente e

estável, tanto diante dos seus membros quanto diante dos seus destinatários.

Com isso fica claro que a controvérsia entre intermediação e representação é um

problema empírico e dinâmico.

Intermediação ou representação de interesses pode ocorrer em níveis

distintos, por exemplo, nos níveis macro, meso (médio) ou micro. Para a análise

de setores industriais específicos é relevante que a análise se concentre ao nível

meso da representação ou intermediação de interesse.

Por um lado, a abordagem de redes de políticas oferece uma visão

razoável de todo o processo de formulação de políticas públicas, tanto no que se

refere ao papel exercido pelos participantes da rede de políticas quanto no que se

refere à maneira em que eles interagem. Por outro lado, raramente é possível

obter uma compreensão precisa do papel de cada ator relevante envolvido nesse

processo, já que essa abordagem se limita à descrição da participação de

possíveis atores em uma rede.

É bastante plausível afirmar que os grupos de interesse tornaram-se ativos

em novas áreas, mas é também fato que o sucesso de tais organizações está

Page 64: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Sociedades complexas e políticas públicas 63

intimamente relacionado com a ausência de polos contrários organizados

(Petracca 1992). Resta saber, entretanto, até que ponto grupos de interesse

podem cumprir um papel relevante em um cenário cada vez mais competitivo –

inclusive entre os membros de cada grupo. Uma resposta satisfatória a esse tipo

de questão somente será possível a partir de investigação empírica da atividade

de associações setoriais e dos desafios contemporâneos com os quais

determinada indústria está confrontada.

Conclusão

Nosso empreendimento aqui foi oferecer uma análise da produção de

políticas públicas em sociedades consideradas “complexas”. O Estado

contemporâneo – mais que antes – está envolvido em um processo intenso de

trocas com as demais instâncias da sociedade. E assim tem sido cada vez mais;

não exatamente, ou pelo menos não exclusivamente, pela incapacidade do

Estado de responder sozinho às demandas lançadas à autoridade pública. Ao

contrário, essa forte interação do Estado com a sociedade civil e o mercado se

dá, por outro lado, também e principalmente pela maturidade dessas últimas

instâncias, que têm acumulado nas democracias contemporâneas – no Brasil

inclusive – conhecimento e capilaridade suficientes para intervir nesse processo

de produção de políticas públicas. Além disso, essa maturidade tem-se

demonstrado pela complexificação, pluralidade e solidez institucional apresentada

tanto pelo mercado quanto pela sociedade civil. O cenário com o qual estamos

confrontados não é de falência do Estado – como fazem crer algumas

interpretações –, mas, ao contrário, de um cenário em que instituições das

distintas esferas da sociedade assumem crescentemente papéis relevantes na

produção de políticas públicas.

Em nossa análise acentuamos os aspectos institucionais no processo de

produção de conhecimento. Ainda que de forma preliminar, apontamos o papel

cada vez mais central que vai ocupando os arranjos institucionais em rede no

processo de inovação. Diferentemente do que defendem alguns autores, arranjos

institucionais em rede tornam-se cada vez mais determinantes no processo de

formulação e de implementação de políticas públicas em razão da sua

Page 65: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

64 Hermílio Santos

capacidade de, em um ambiente competitivo, reduzir as incertezas envolvidas

nesse processo. A redução das incertezas ocorre não apenas por propiciar uma

maior cooperação entre diferentes organizações, mas também por criar

constrangimentos para a ação das organizações engajadas no ciclo de políticas

públicas. Porém, esse processo não se dá sem a presença de desafios, para os

quais o debate em torno aos mecanismos democráticos de condução das

sociedades deve estar atento, tendo em vista que atores não estatais, embora

portadores de recursos relevantes e indispensáveis à solução de problemas

identificados como merecedores de atenção pública, não estão submetidos aos

mesmos mecanismos de legitimação democrática, como o é o caso de boa parte

das instituições estatais.

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Page 69: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições1

Marcia Ribeiro Dias

Introdução

Nos últimos vinte anos, a Comunicação Política vem se consolidando como

um campo de investigação interdisciplinar no Brasil, reunindo cientistas políticos e

estudiosos da comunicação social (Rubim & Azevedo, 1998). A institucionalização

desse campo também é evidente e pode ser comprovada através da criação de

associações e grupos de pesquisa, cujos membros interagem em congressos e

encontros nacionais e internacionais.

Considerada sob diversas perspectivas, a propaganda política na televisão

vem se constituindo em tema central de diversos trabalhos nesse campo. Alguns

têm como objeto a evolução da legislação eleitoral e seu impacto sobre as formas

de propaganda política (Duarte, 1980; Albuquerque, 1995; Miguel, 1997 E 2002);

outros consideram o problema à luz da sua dimensão ética (Gomes, 1994a) ou

retórica (Gomes, 1994b; Figueiredo, Aldé, Dias e Jorge, 1998). Alguns trabalhos

têm procurado desenvolver categorias analíticas acerca da gramática da

propaganda política na televisão (Fausto Neto, 1990; Albuquerque, 1999), ao

passo que outros têm se concentrado na análise da atuação dos consultores

profissionais no processo de produção da propaganda política na televisão.

Finalmente, há aqueles que se ocupam da relação que se estabelece, no Brasil,

entre os partidos políticos e a propaganda política na televisão (Schmitt, Carneiro

e Kushnir, 1999; Albuquerque e Dias, 2002; Dias, 2005; Dias, 2007). A

importância de se estudar tal relação é evidente, particularmente quando se

considera que, no Brasil, a tarefa de gerir a propaganda política na televisão é

destinada aos partidos e não diretamente aos candidatos.

Entre estudiosos da área de comunicação política, tornou-se consensual o

uso do “argumento da substituição” a fim de definir a relação entre os partidos

políticos e os meios de comunicação de massa no mundo democrático 1 Este capítulo é uma releitura de um paper apresentado em parceria com Afonso de Albuquerque no XXVIº Encontro Anual da Anpocs. Agradeço a Afonso as contribuições dadas na elaboração original deste texto.

Page 70: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 69

contemporâneo (Albuquerque e Dias, 2002). Esse seria um modelo explicativo

genérico cujo mote estaria no deslocamento de algumas das funções clássicas

dos partidos para a esfera de atuação dos meios de comunicação, especialmente

da televisão.

O “argumento da substituição” pode ser resumido como sendo o produto da

convergência de dois pressupostos distintos: o primeiro deles aponta para o

declínio do papel dos partidos políticos como protagonistas da representação

política, enquanto o segundo refere-se à crescente importância dos meios de

comunicação de massa como atores políticos. O principal problema que aqui se

identifica é o fato de que essa literatura tende a colocar esses dois pressupostos

em uma relação causal, isto é, atribui o declínio dos partidos políticos ao aumento

da importância dos meios de comunicação na dinâmica política. Entretanto,

partidos políticos e meios de comunicação não são instituições que se substituem

no tempo, mas que convivem, articulam e alteram dinamicamente seus padrões

de interação. Nesse sentido, argumentamos a favor da independência desses

dois pressupostos, eliminando a relação de causalidade entre ambos.

Acreditamos que as estratégias de cada um desses atores na construção de seus

padrões de interação irão variar de acordo com o contexto político-institucional, ou

seja, com o formato das regras que orientam suas ações. Sustentamos que,

embora útil para dar conta de alguns aspectos gerais da realidade política

contemporânea, o “argumento da substituição” perde em eficácia quando aplicado

à análise de fenômenos ou realidades políticas específicas, como seria o caso da

propaganda política televisiva no Brasil.

O caso brasileiro, especialmente no que se refere à propaganda política na

televisão, apresenta importantes limites à aplicação do “argumento da

substituição”. Por um lado, a solidez nunca foi um atributo do sistema partidário

brasileiro, porém, tampouco há evidências consistentes de um declínio da

importância dos partidos políticos nas últimas décadas. Por outro lado, no caso

específico da propaganda política na televisão, a legislação brasileira proporciona

aos partidos políticos acesso gratuito à mesma, espaço no qual, estes podem

construir suas estratégias livremente. Assim, apesar de se reconhecer a influência

crescente da televisão na vida política brasileira, não se pode considerá-la um

Page 71: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

70 Marcia Ribeiro Dias

agente autônomo, uma vez que formatos e conteúdos da propaganda são

construídos por agentes partidários.

Desse modo, analisar a propaganda política que é veiculada no Brasil

exige uma análise de seus sistemas eleitoral e partidário, tendo em vista o modo

como se conciliam exigências contraditórias de caráter coletivista e individualista

durante a campanha eleitoral. Se, por um lado, o sistema eleitoral brasileiro,

“centrado no candidato” (Samuels, 1997), fornece um forte estímulo para as

estratégias individualistas de campanha, por outro lado, o modelo de propaganda

política na televisão vigente obriga a que os interesses individuais dos candidatos

se subordinem às estratégias coletivas dos partidos, uma vez que o tempo na

televisão é destinado a estes. Assim, é possível que o formato brasileiro de

propaganda política na televisão funcione antes como um instrumento de reforço

do que de declínio do papel que os partidos políticos desempenham no processo

eleitoral.

Na primeira parte do texto discutimos o “argumento da substituição” e seus

limites de aplicabilidade ao caso brasileiro. Nesse sentido serão discutidos os

trabalhos que, no Brasil, buscam reproduzir o caráter generalizante desse

argumento a fim de compreender e explicar sua atual dinâmica político-eleitoral.

Em seguida, a apropriação do “argumento da substituição” será

problematizado, considerando os sistemas partidário e eleitoral brasileiros, assim

como seu modelo de propaganda política na televisão, que garante ao partido

político o poder de definir o uso mais apropriado desse instrumento para a

captação de votos.

Sobre os limites de aplicabilidade do argumento da substituição

Nas duas últimas décadas, diversos pesquisadores têm abordado um

mesmo fenômeno: a importância crescente do papel desempenhado pelos meios

de comunicação de massa como intermediários da relação entre os cidadãos e o

Estado, em detrimento dos partidos políticos. Em geral, o diagnóstico desses

autores a respeito da relação que se estabelece entre a mídia e os partidos

aponta para uma dinâmica de substituição, ou seja, os partidos estariam sendo

substituídos, em muitas de suas prerrogativas clássicas, pelos meios de

Page 72: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 71

comunicação. Assim, as tarefas de informação política, formação da opinião

pública, controle e fiscalização dos agentes políticos, entre outras, estariam sendo

incorporadas pela imprensa escrita e televisiva, especialmente em sua dimensão

jornalística. Partidos políticos, por sua vez, estariam em franco declínio como

intermediários na relação entre sociedade e Estado, como fiadores da ação de

representantes ou difusores de informação e formadores de opinião.

Um exemplo particularmente influente de generalização do argumento da

substituição, ao menos entre os pesquisadores brasileiros, é o estudo de Bernard

Manin (1995) sobre as metamorfoses do governo representativo, especialmente o

diagnóstico de transformação da “Democracia de Partidos” em uma “Democracia

de Público”.

O trabalho de Manin se esmera em construir uma tipologia das formas do

governo representativo. A fim de proceder a essa tarefa, o autor trata de

identificar quais seriam os princípios dessa forma de governo, percorrendo toda

uma literatura, produzida a partir do final do século XVIII, que se constituiria na

base ideológica de suas instituições.2

A partir de então, Manin constrói um modelo no qual identifica três tipos de

governo representativo: o governo parlamentar, a democracia de partidos e a

democracia de público. Cada uma dessas modalidades do governo representativo

obedece a uma série de condições históricas, a partir de uma perspectiva

evolutiva do mundo ocidental, sendo que o aparecimento de cada nova

modalidade implica necessariamente no fim da anterior. Em outras palavras,

segundo Manin, assim como a “democracia de partidos” substituiu o “governo

parlamentar”, a “democracia de público” substituiu a “democracia de partidos”.

Manin observa que o fim da era do governo dos “notáveis” foi marcado pela

Dessa literatura, Manin extrai quatro

princípios do governo representativo, ou seja, quatro condições para que um

governo seja considerado representativo: (1) a escolha dos governantes pelos

governados; (2) a independência parcial dos representantes com relação à

vontade dos representados; (3) a liberdade de opinião pública, seja ela favorável

ou contrária à condução do governo pelos representantes; (4) a utilização do

debate como mecanismo para a tomada de decisão coletiva.

2 Os principais autores contemplados no estudo de Manin são: Edmund Burke, John Stuart Mill, os Federalistas, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, e Emmanuel Siéyès.

Page 73: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

72 Marcia Ribeiro Dias

crescente importância dos partidos na arena representativa. De modo

equivalente, notou que o fim da era dos partidos, caracterizado pelo declínio na

importância dessas instituições como intermediárias da relação entre

representantes e representados, foi acompanhado pela ascensão da importância

dos meios de comunicação no exercício da mesma tarefa.

O “argumento da substituição”, discutido neste trabalho, apresenta-se no

texto de Manin em sua forma pura. O trabalho de Manin, sem dúvida alguma,

consiste em um esforço téorico-analítico importante e é capaz de explicar a

trajetória do formato do governo representativo em algumas realidades históricas

específicas; é o caso de boa parte dos países da Europa Ocidental e América do

Norte. Além disso, fornece uma agenda de discussões teóricas passíveis de

serem incorporadas, ao menos em parte, à investigação de outras realidades. O

que aqui se contesta é a aplicação integral do modelo para explicar as atuais

dinâmicas política e institucional brasileiras, como é o caso de Azevedo (2002) e

Veiga (2002), cujos trabalhos serão comentados a seguir.

Em sua análise da cobertura da imprensa paulistana sobre a campanha

eleitoral no município de São Paulo, Azevedo (2002) parte da premissa de que a

conjuntura brasileira atual pode ser descrita como uma “democracia de público”.

O autor menciona a debilidade histórica dos partidos políticos brasileiros

com muita propriedade, mas não explora a evidência de que essa debilidade não

é um fato novo e que, assim, não pode ser explicado pela centralidade da mídia

na dinâmica política atual. Além disso, ao analisar a propaganda eleitoral na

televisão, afirma que seu formato não favorece a imagem partidária e sim a

personalização da competição eleitoral, desconsiderando o fato de que a

legislação brasileira confere aos partidos políticos o espaço na TV e que estes,

portanto, têm autonomia para definir suas estratégias comunicativas: se

prioritariamente individualistas ou coletivistas. O tempo na TV pertence aos

partidos que, livres da “Lei Falcão”, podem conferir aos seus programas o formato

que sua criatividade e recursos financeiros permitirem. Não existe um formato

pré-estabelecido para a propaganda política no HGPE e os recursos audiovisuais

não se limitam a aproximar candidato e eleitor através de imagens “em close”: tais

recursos podem ser utilizados na propagação de ideias e programas de governo.

As campanhas presidenciais de 2002 e 2006 foram exemplares nesse sentido: os

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Propaganda Política, Partidos e Eleições 73

três candidatos mais bem-sucedidos eleitoralmente, Lula (2002 e 2006), Serra

(2002) e Alckmin (2006), exploraram prioritariamente o conteúdo programático em

suas campanhas na televisão. Além do fato de que as campanhas para cargos

legislativos, distribuídos na proporção dos votos obtidos pelos partidos,

apresentam uma série de estratégias que nada tem a ver com personalismo

político, como o investimento nos votos de legenda e a vinculação entre as ideias

do candidato “proporcional” às propostas de governo do candidato “majoritário”.

No segundo caso, no qual se analisa o papel dos partidos na atual

democracia brasileira, Luciana Veiga também associa o conceito de “democracia

de público” à nossa conjuntura política recente, afirmando que nos encontramos

em um momento de transição entre a “democracia de partidos” e a “democracia

de público”, razão pela qual “os partidos ainda influenciam as decisões políticas”.

Segundo a autora, no período anterior à década de 80, ou seja, durante a ditadura

militar, vivíamos no Brasil uma democracia de partidos, sem apresentar

evidências nesse sentido. As circunstâncias políticas do período militar contrariam

os fundamentos de uma democracia partidária, acima de tudo, pelo fato de que

não era uma democracia. Mesmo se considerando a sobrevivência de um sistema

representativo na manutenção de eleições para cargos legislativos, o sistema

bipartidário compulsório, no qual a livre organização de interesses através de

partidos políticos com o fim de influenciar as decisões do Estado estava vetada ou

comprimida em uma lógica dual, é o inverso do que caracteriza uma democracia

de partidos. Finalmente, do ponto de vista do comportamento eleitoral, verificar

que alguns eleitores votavam fielmente no MDB e transmitiam essa preferência a

seus descendentes, não nos parece o bastante para configurar uma democracia

de partidos. Seria preciso demonstrar que outros eleitores se identificavam

igualmente com a ARENA, e mesmo assim seria uma associação precária dada a

imobilidade do sistema partidário, representada pela admissão exclusiva de dois

partidos.

Por outro lado, Veiga apresenta dados significativos da influência dos

partidos na conjuntura eleitoral recente e em nenhum momento revela que tal

influência encontre-se em declínio. Nesse sentido, não há evidência em seu

trabalho que aponte para um diagnóstico de transição para uma “democracia de

público”, na qual os partidos possam ser descartados.

Page 75: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

74 Marcia Ribeiro Dias

O que pretendo com este capítulo é considerar as condições específicas

dos sistemas partidário e eleitoral brasileiros e de seu modelo de propaganda

política na televisão. A hipótese é de que é possível encontrar resultados

diferentes dos encontrados por Manin, na medida em que consideramos

circunstâncias históricas e institucionais distintas.

Considerações acerca dos sistemas partidário e eleitoral brasileiros

O sistema eleitoral brasileiro conjuga duas lógicas operacionais distintas: a

majoritária, que se aplica à disputa por cargos executivos (presidente,

governadores, prefeitos) e ao Senado; e a proporcional, que se aplica à disputa

aos cargos legislativos (deputados federais, deputados estaduais e vereadores).

Abordaremos as características gerais de cada uma dessas lógicas a fim de

discutir suas implicações sobre o sistema partidário brasileiro.

O sistema eleitoral majoritário funciona em dois turnos, com exceção para

as cidades com menos de 200 mil eleitores, operando, assim, em turno único. O

sistema de dois turnos tem como objetivo possibilitar a formação de uma maioria

absoluta (50% + 1) de preferências eleitorais em torno do candidato vitorioso.

Esse sistema tem como virtude maximizar a representação política, na medida em

que responde às preferências de mais da metade da população votante. Em um

sistema eleitoral de turno único, especialmente quando consideramos um sistema

multipartidário como o brasileiro, em que a maioria relativa (a maior das minorias)

garante a vitória a um dos candidatos, a representação política pode ficar

deficitária, pois um candidato vitorioso com 35% dos votos não corresponde à

vontade de 65% dos eleitores.

Maurice Duverger (1970) já demonstrou que um sistema majoritário de dois

turnos estimula a multiplicação do número de legendas partidárias, na medida em

que amplia as chances de vitória de uma candidatura inicialmente minoritária,

mas que em um segundo turno pode agregar as preferências destinadas a

candidaturas derrotadas no primeiro turno das eleições. Um sistema de dois

turnos, portanto, favorece a formação de alianças entre partidos, ampliando o

pluralismo de ideias e a representatividade dos eleitos.

Page 76: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 75

Teoricamente, são dadas aos eleitores duas chances de manifestar suas

preferências: no primeiro turno, o eleitor manifestaria a sua preferência por um

determinado candidato; no segundo turno, escolheria entre os dois mais votados

aquele que mais se aproxima das suas preferências. O que se tem visto no Brasil

nos últimos anos, entretanto, é uma distorção dessa lógica através do chamado

“voto útil”. Muitos eleitores manifestam ter abdicado de sua preferência inicial

para, estrategicamente, impedir a ida de um candidato, nefasto aos seus olhos,

para o segundo turno ou para enviar outro candidato que tenha mais chances de

vencer o adversário majoritário indesejável. Isso se deve, fundamentalmente, ao

crescimento dos institutos de opinião pública e da multiplicação de pesquisas de

intenção de voto, que permitem ao eleitor conhecer as tendências gerais do voto

antes das eleições.

Quem se beneficia com essa lógica? As maiores legendas partidárias

brasileiras, que nas duas últimas eleições para governador e presidente da

república controlaram a maioria das disputas de segundo turno, concentrando o

sistema partidário brasileiro. Desde 1994, PT e PSDB vêm disputando os

primeiros lugares na corrida presidencial. Em 1998, 13 estados levaram a eleição

para governador ao segundo turno; desses casos, apenas no Amapá verificou-se

a presença de um partido pequeno na disputa, o PSB. Em 2002, as grandes

legendas controlaram 12 das 14 disputas programadas para o segundo turno nos

estados. Em 2006, das 10 disputas para governos estaduais ocorridas em

segundo turno, apenas uma contou com a participação de um partido pequeno, o

PPS no Rio de Janeiro.

Importa ressaltar a vitória de pequenos partidos ainda no primeiro turno das

eleições estaduais. Em 1998, o PSB venceu as eleições em Alagoas. Em 2002, o

PPS venceu no Amazonas e no Mato Grosso; o PSB venceu em Alagoas, Espírito

Santo e Rio de Janeiro. Em 2006, o PPS venceu duas disputas eleitorais ainda no

primeiro turno: Mato Grosso e Rondônia. Finalmente, o PSB e o PPS foram duas

das legendas que mais cresceram no período, estando na legislatura de 2006

entre as legendas com maiores bancadas na Câmara Federal. O que isso

significa? Que considerando as características específicas de um determinado

sistema político podemos encontrar resultados contrários aos previstos em uma

teoria abrangente, como a de Duverger. No caso brasileiro, o sistema eleitoral de

Page 77: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

76 Marcia Ribeiro Dias

dois turnos tem concentrado o sistema partidário através do cálculo estratégico do

“voto útil”, favorecido pela valorização dos resultados de pesquisas de intenção de

voto nesse país.

O sistema majoritário que vigora para a constituição do Senado brasileiro

opera por maioria relativa, ou seja, não há segundo turno para o preenchimento

desses cargos. O mandato dos senadores é de oito anos, mas as eleições

ocorrem a cada quatro anos: um terço dos cargos é disputado em um ano e dois

terços nas eleições seguintes. Quando há duas vagas em disputa, o eleitor pode

escolher dois nomes para ocuparem essas vagas, estando vetada a possibilidade

de voto cumulativo, ou seja, de o eleitor votar duas vezes em um mesmo

candidato. O voto cumulativo tem a propriedade de mensurar a intensidade das

preferências eleitorais: um eleitor que prefere intensamente um candidato pode

destinar a ele seus dois votos, enquanto outro eleitor não tão intenso,

provavelmente, irá destinar seus votos a candidatos diferentes. O voto cumulativo

pode ser um instrumento para pequenos partidos que detenham poucos, mas

sinceros eleitores, podendo lançar apenas um candidato e nele concentrar seus

votos. Portanto, as eleições para o Senado brasileiro conjugam dois mecanismos

desfavoráveis à apresentação de candidatos pelos pequenos partidos: o sistema

de turno único e a impossibilidade de voto cumulativo.

Finalmente, os cargos legislativos são ocupados pela regra da

proporcionalidade, o que em linhas gerais significa dizer que cada partido ou

coligação obterá um número de cadeiras proporcional ao seu número de votos.

Isso, em linhas muito gerais, porque como bem apontou Jairo Nicolau, o sistema

representativo brasileiro apresenta distorções bastante significativas, como a

ocorrida nas eleições de 1994 em que PFL e PT obtiveram o mesmo percentual

de votos, mas o primeiro angariou 40 cadeiras a mais do que o segundo.3

O resultado da eleição de 2002 trouxe um fato estarrecedor para grande

parte da opinião pública, motivação para o artigo de Nicolau: a eleição de cinco

deputados do PRONA de São Paulo que obtiveram votações ínfimas se

comparadas a de muitos candidatos não eleitos no mesmo estado. Por que isso

aconteceu? Em virtude de uma das poucas regras do sistema eleitoral brasileiro

que fortalece o sistema partidário e inibe o personalismo político. Calculado o

3 Artigo publicado no Jornal O Globo, de 11 de outubro de 2002.

Page 78: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 77

quociente eleitoral, número de votos necessários para a obtenção de uma cadeira

no legislativo, os votos de cada partido ou coligação de partidos são somados a

fim de se calcular o número de cadeiras obtidas por cada um deles. Essas

cadeiras serão destinadas aos candidatos mais votados individualmente no

partido ou coligação, voltando a favorecer a lógica personalista. Enéas Carneiro

angariou sozinho mais de 1,6 milhões de votos do eleitorado paulistano,

quantidade suficiente para elegê-lo e a mais cinco candidatos. Em tese, não

houve qualquer distorção no sistema representativo nesse caso: os eleitores que

deram seus votos a Enéas e elegeram “ilustres desconhecidos” não teriam

perdido seus votos se imperasse a lógica partidária, ou seja, se todos os eleitos

agissem de forma concertada, seguindo a orientação do líder do partido e da

bancada: o próprio Enéas Carneiro.

É razoável pensar que, dados os distintos mecanismos eleitorais, as

estratégias comunicativas dos partidos políticos nos programas gratuitos na

televisão apresentem variações importantes entre as faixas destinadas a cada

cargo em disputa. Na próxima seção serão avaliadas as características do modelo

de propaganda política na televisão e suas implicações para a construção de um

modelo analítico da construção da imagem partidária na dinâmica eleitoral

brasileira.

A propaganda política na televisão brasileira

No Brasil, a concessão de horário gratuito para a propaganda política na

televisão teve sua origem ainda no início da década de 1960. Naquela época seu

impacto eleitoral não foi significativo, uma vez que a televisão ainda não se

encontrava disseminada na sociedade brasileira. A partir da instauração do

regime militar em 1964, teve início o processo de consolidação de uma

infraestrutura nacional de telecomunicações; entretanto, tal processo se deu em

um contexto de desvalorização das eleições na vida política nacional. Foi

somente a partir de 1985, com a redemocratização, que a propaganda política na

televisão passou a ser politicamente relevante.

Em linhas gerais, um conjunto de regras para a propaganda eleitoral na

televisão tem se mantido constante: o tempo para a propaganda política é

Page 79: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

78 Marcia Ribeiro Dias

concedido gratuitamente aos partidos políticos, em blocos situados à parte da

programação normal (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral ou HGPE), em

quantidades proporcionais às dimensões de suas bancadas parlamentares

federal, estadual e municipal. Desde 1996, um novo formato foi acrescentado à

propaganda política na televisão (spots): inserções curtas, de 30 ou 60 segundos,

veiculadas nos intervalos comerciais ao longo da programação normal.

O modelo brasileiro de propaganda política na televisão combina a

gratuidade do acesso à televisão com uma considerável eficácia comunicativa,

favorecida pela ampla liberdade no uso dos recursos comunicativos da

comunicação que, com algumas exceções4

O primeiro desafio diz respeito à inserção da propaganda política no fluxo

da programação televisiva. Diferentemente dos spots de 30 e 60 segundos, que

se inserem com naturalidade nos intervalos comerciais da programação normal, o

HGPE é exibido em um bloco à parte, podendo ser percebido como uma

interrupção da programação normal; percepção esta que é reforçada pelo

discurso de alguns canais de televisão que a definem para o público como

“propaganda obrigatória”

, tem sido contemplada pelas diversas

legislações eleitorais desde 1985. Tal eficácia comunicativa, entretanto, irá

depender da capacidade dos partidos de lidar com os desafios específicos

apresentados pelo HGPE e pelos spots políticos.

5

4 A Lei no 8.713, de 30 de setembro de 1993, proibiu o uso de trucagens, montagens, animações, imagens externas e a presença de outras pessoas que não os próprios candidatos e seus vices nos programas. A justificativa oficial para tais restrições foi que elas possibilitariam uma melhora no nível dos programas do HGPE. Na prática, elas implicaram em uma marginalização do HGPE na campanha eleitoral, o que favoreceu a candidatura de Fernando Henrique Cardoso, apresentado pela imprensa como o grande responsável pelo sucesso do Plano Real. (cf. Albuquerque; 1995 e Miguel, 1997).

. O que está em questão, nesse caso, é o fato de que a

propaganda política na televisão deve assumir o formato de um programa

televisivo, incorporando a estrutura comunicativa que lhe é própria. Cabe ao

agente político e a sua assessoria de comunicação encontrar soluções criativas

para, sem evidenciar uma ruptura em relação a um fluxo de programação, já

legitimado pelo hábito, transformar o telespectador em eleitor, sem destituí-lo de

sua condição primeira. Além disso, o fato de os programas do HGPE agregarem

5 Caracterizar a propaganda eleitoral na televisão como obrigatória é uma estratégia dos canais para associá-la a um componente autoritário, tentando deslegitimá-la junto à opinião pública. Fato é que a propaganda eleitoral é obrigatória para os canais de televisão aberta e não ao telespectador, que poderá ocupar aquele tempo com outra atividade qualquer.

Page 80: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 79

as alternativas eleitorais disponíveis em um bloco contínuo obriga cada uma delas

a lidar constantemente com a dimensão competitiva e a administrar problemas

relativos ao excesso de informação.

O segundo desafio que deve ser enfrentado na elaboração da propaganda

eleitoral refere-se ao fato de que seus quadros temporais são pré-definidos, assim

como a ordem de apresentação é determinada pela Justiça Eleitoral. Não se pode

esquecer ainda que a propaganda eleitoral deve ser dinâmica, observando e

incorporando pautas propostas por adversários ou pela própria mídia, e evoluir

em conformidade com a proximidade do pleito eleitoral. Nesse sentido, os

programas do HGPE desenvolveram uma gramática própria, baseada na

articulação de diversas mensagens em um mesmo programa. Geralmente, as

mensagens que compõem os programas do HGPE cumprem três funções

básicas, denominadas através das seguintes categorias: campanha,

metacampanha e auxiliar. As mensagens de campanha têm como objetivo

debater temas e apresentar a si próprio e aos candidatos positivamente e os

adversários negativamente. As mensagens de metacampanha têm como objetivo

fornecer relatos sobre a campanha eleitoral, bem como promover o engajamento

dos telespectadores no esforço de campanha. As mensagens auxiliares, por sua

vez, se destinam a estruturar a propaganda de partidos e candidatos como um

programa de televisão, bem como ajudam a fornecer uma unidade estilística a

esses programas (Albuquerque, 1999).

Para além desses desafios genéricos, os partidos políticos devem lidar

ainda com outros, relativos à natureza específica do pleito e dos cargos em

disputa. No primeiro caso, as condições de exposição dos candidatos são

melhores no caso de eleições “solteiras”, quando apenas um cargo está

disponível à concorrência entre candidatos. Entretanto, no Brasil, guardadas

algumas exceções pontuais6

6 Constituem-se exceções as eleições para prefeito em 1985 e para presidente em 1989.

, as eleições são “casadas”, ou seja, os cargos

executivos e legislativos correspondentes são disputados simultaneamente. O

problema apresenta maior complexidade no caso de eleições gerais, nas quais

têm lugar simultaneamente disputas para cargos executivos e legislativos em

âmbito nacional e estadual. Já no segundo turno das eleições ocorre uma

melhora significativa das condições de visibilidade dos candidatos, não apenas

Page 81: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

80 Marcia Ribeiro Dias

porque a disputa se resume aos cargos executivos, mas também porque o

número de candidatos se vê reduzido a dois por cargo.

No segundo caso, as condições de exposição dos candidatos são muito

superiores nas eleições majoritárias, especialmente para cargos executivos, do

que nas proporcionais, uma vez que, nestas, não apenas o número de candidatos

é muito maior, mas cada candidato concorre com todos os demais, inclusive com

os do próprio partido.

Diante das questões acima colocadas, uma análise das estratégias dos

partidos políticos na construção de suas imagens no HGPE não pode

desconsiderá-las. É o que se pretende na seção conclusiva deste trabalho.

Estratégias dos partidos no uso da televisão

A fim de maximizar suas chances eleitorais e revelar suas posições para a

sociedade, os partidos políticos podem recorrer a variadas estratégias eleitorais,

com diferentes consequências no que concerne à propaganda política na

televisão. Uma das decisões relevantes, nesse sentido, diz respeito às coligações

partidárias. São várias as razões que podem levar um partido a ingressar em uma

coligação partidária: articular acordos que garantam a governabilidade, em caso

de vitória; formar uma frente ampla a fim de enfrentar adversários poderosos;

ultrapassar o quociente eleitoral e eleger representantes, no caso de partidos

pequenos; ou vincular-se à imagem de um candidato popular. Entretanto, a

principal razão, que importa aos objetivos deste capítulo, relaciona-se ao fato de

que a conquista de tempo para a propaganda política na televisão tem se

constituído em fator de estímulo às coligações partidárias.

A decisão de coligar-se, no entanto, deve levar em conta alguns problemas

a ela associados. Em primeiro lugar, elas podem se constituir como um fator de

diluição da identidade dos partidos coligados, seja porque eles apresentem perfis

ideológicos muito distintos, seja porque partidos minoritários tendem a ter a sua

identidade partidária apagada em benefício da identidade do partido líder da

coligação, quando há razoável afinidade ideológica.

Ainda assim, os benefícios advindos da coligação podem ser capazes de

superar os referidos problemas. Uma chapa majoritária que coligue dois ou três

Page 82: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 81

grandes partidos, com diferenças ideológicas significativas, não necessariamente

assume a identidade do partido líder. A aliança PSDB – PFL foi exemplar nesse

sentido. Inicialmente os dois partidos posicionavam-se em campos opostos no

eixo ideológico, mas o conteúdo programático da aliança tendeu claramente para

a centro-direita, posição ocupada pelo PFL. Os benefícios deste último, em

termos de crescimento de bancada parlamentar, foram evidentes. Nesse caso

quem perdeu em identidade foi o PSDB; é possível dizer que esse partido é

identificado muito mais com a estabilidade econômica gerada pelo Plano Real,

pelas políticas implementadas durante a era FHC, do que com um conteúdo

programático específico ou com o tipo de interesses que representa.7

No caso dos pequenos partidos, algumas estratégias de preservação de

uma identidade própria frente ao partido líder da coligação podem ser adotadas.

O PC do B é um partido que pode ser citado como bem-sucedido na tarefa de

preservação da identidade e sobrevivência política. Há muitos anos esse partido

vem adotando estratégias de coligação nacional e regional, lançando um pequeno

número de candidatos e sempre os mesmos, ao ponto da imagem desses

candidatos se fundirem à imagem do próprio partido. Esse tipo de estratégia tem

sido eficaz na captação de votos, pois o PC do B, geralmente, concentra sua

votação em poucos candidatos com ampla visibilidade, colocando-os entre os

mais votados da coligação e, portanto, aptos a adquirirem cadeiras legislativas.

Podemos comparar esse caso ao do antigo PCB que primou, em suas

estratégias, em apresentar um amplo número de candidatos e não obteve

sucesso eleitoral. O PCB perdeu em identidade, mudou sua sigla para PPS e hoje

pouco resguarda da imagem do “partido mais antigo do Brasil”, slogan de antigas

campanhas.

Em

contrapartida, o PSDB manteve-se no poder central por oito anos consecutivos e

expandiu sua bancada parlamentar nesse período.

Sendo assim, do ponto de vista da propaganda política na televisão, a

determinação do número de candidatos que comporão a chapa dos partidos para

as eleições proporcionais é uma das questões mais relevantes. Essa questão

assume uma relevância ainda maior no caso das coligações partidárias, uma vez

7 Ver Veiga (2002), sobre a dificuldade do eleitor em definir uma identidade para o PSDB e a clareza com relação ao PFL.

Page 83: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

82 Marcia Ribeiro Dias

que nesse caso, à competição intrapartidária soma-se a competição entre os

partidos que compõem a coligação. Desse modo, a atomização dos votos entre

os candidatos de um mesmo partido pode levar a que nenhum deles seja eleito,

em benefício de outros partidos que compõem a coligação e que utilizem

estratégias de concentração em um pequeno número de candidatos.

As eleições constituem, nas sociedades democráticas, momentos

privilegiados da disputa interpartidária: nelas, os partidos se confrontam tendo

como objetivo a conquista do eleitorado. As eleições, no entanto, são momentos

cruciais também do ponto de vista da dimensão intrapartidária. Tão importante

para os partidos quanto conquistar terreno é assegurar a manutenção da unidade

partidária. As eleições colocam em questão também o problema do equilíbrio de

poder entre as correntes que constituem cada partido político.

Independentemente do resultado das urnas, o modo de atuação dos

partidos políticos, durante o processo eleitoral, pode ter consequências

importantes do ponto de vista da política intrapartidária. Escolhidos os candidatos,

pode ocorrer que alguns deles sejam considerados candidatos preferenciais do

partido e sejam privilegiados na alocação dos seus recursos. O acesso à

propaganda política na televisão constitui um parâmetro privilegiado para a

avaliação de tal escolha já que os candidatos não podem obter acesso à

propaganda política na televisão senão através dos partidos políticos. As escolhas

dos partidos se tornam ainda mais visíveis quando se considera a quantidade de

tempo disponibilizada para cada candidato, os apoios políticos e os recursos

comunicativos a eles destinados.

Os modos de alocação dos recursos do partido, especialmente o tempo

para a propaganda política na televisão, e seus impactos sobre a vida política

intrapartidária podem variar significativamente entre os partidos. É possível

afirmar que os diferentes tipos de arranjos institucionais intrapartidários (Lacerda,

2002) constituem um elemento importante a ser considerado na explicação do

fenômeno.

Como foi dito acima, as eleições no Brasil são “casadas”, ou seja, os

cargos Executivos e Legislativos correspondentes são disputados

simultaneamente: Presidente da República e Congresso Nacional; Governadores

e Assembleias Legislativas; Prefeitos e Câmaras Municipais. As eleições

Page 84: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 83

nacionais ocorrem simultaneamente às eleições estaduais, o que determina uma

mescla de estratégias nacionais e regionais que se influenciam mutuamente. As

eleições municipais têm uma natureza estritamente local, sendo que as

estratégias comunicativas regulam-se prioritariamente por atributos específicos de

cada localidade.

Nesse contexto, um primeiro aspeto deve ser ressaltado: o grau de fatores

nacionais e regionais que incidirão sobre a propaganda eleitoral para cada cargo

em disputa. Na faixa destinada ao cargo de Presidente da República, os fatores

utilizados pelos partidos em disputa terão caráter fundamentalmente nacional,

estando contemplados fatores regionais apenas na medida em que o candidato

ou partido menciona suas experiências governativas como exemplares do que

será feito em âmbito nacional. No outro extremo, localiza-se a faixa destinada ao

cargo de deputado estadual, sobre a qual incidirão quase que exclusivamente

fatores propriamente regionais. Nas faixas destinadas aos cargos de deputados

federais e senadores são encontrados os maiores índices de mescla entre fatores

nacionais e regionais: os fatores nacionais se justificam pela centralidade das

atribuições associadas a esses cargos; os fatores regionais pela representação

de interesses regionais no nível federal. A faixa destinada ao cargo de governador

é a que mais apresentará variação na utilização de fatores nacionais e regionais

de estado para estado; tudo dependerá da convergência ou divergência entre os

partidos que disputam o pleito regional e aqueles que disputam o pleito nacional.

Dificilmente uma campanha para governador deixará de mencionar em seus

programas o candidato nacional do mesmo partido, buscando afeiçoar suas

propostas em âmbito regional ao projeto nacional. Mas, quando o partido em

disputa pelo cargo de governador não possui candidato próprio para presidente,

mesmo que esteja na base de apoio de um candidato de outro partido, a

identificação entre as propostas nacional e regional será francamente atenuada.

O segundo aspecto que deve ser ressaltado em uma análise das

estratégias de propaganda dos partidos na televisão é o tipo de cargo em disputa

e a regra eleitoral a ele associada. A primeira diferença está entre os cargos

Executivos e Legislativos. A natureza do poder da Presidência da República e dos

Governos estaduais é individual, ou seja, as prerrogativas institucionais e a

responsabilidade política recaem exclusivamente sobre os ocupantes destes

Page 85: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

84 Marcia Ribeiro Dias

cargos. São eles que escolhem ministros e secretários para auxiliá-los na tarefa

governativa, podendo substituí-los a qualquer descontentamento com seu

desempenho. A natureza do poder legislativo, ao contrário, é coletiva. A tomada

de decisões, nesse caso, depende da construção de consensos majoritários em

torno de determinadas propostas; sendo assim, a responsabilidade política pelas

decisões tomadas não pode ser atribuída a nenhum de seus membros

individualmente. Da mesma forma, poucos são os benefícios privados, em termos

de capitalização de votos, que podem ser extraídos pelos legisladores das

decisões que foram tomadas coletivamente. Nesse sentido, teoricamente, as

estratégias discursivas no HGPE para cargos Executivos seriam mais permeáveis

à valorização de atributos individuais do candidato, enquanto que para cargos

Legislativos primariam pelas “vocações” partidárias.

Quanto ao tipo de regra eleitoral atribuída a cada cargo em disputa, a

principal diferença está no fato de que em candidaturas majoritárias cada partido

apresenta apenas um candidato, enquanto que em candidaturas proporcionais o

partido ou coligação poderá apresentar tantos candidatos quanto forem as vagas

disponíveis. No caso de haver duas vagas em concorrência pela regra majoritária,

como ocorre periodicamente para o Senado, o partido poderá apresentar até dois

candidatos. No caso da regra majoritária, que se configura em um “jogo de soma

zero”, as chances de vitória de cada partido são reduzidas, inibindo, muitas vezes,

a apresentação de candidatos próprios por partidos pequenos. Isso quer dizer que

um significativo número de partidos optará por apresentar candidatos apenas para

os cargos proporcionais, podendo ou não apoiar o candidato majoritário de outro

partido. Nas candidaturas proporcionais, dependendo do tamanho do partido, das

alianças que estabelece, do grau de coesão ou dispersão intrapartidária, o partido

montará sua estratégia de campanha, seja na seleção do número de candidatos,

seja na construção de seu discurso no HGPE.

Finalmente, um último aspecto deve ser ressaltado na construção de uma

metodologia de análise para as campanhas eleitorais na televisão: as estratégias

dos partidos podem variar significativamente do primeiro para o segundo turno

das eleições. A modificação de estratégia irá ocorrer em função da redução do

número de candidatos em disputa para o mesmo cargo, fortalecendo, muitas

vezes, a identidade política de cada candidatura.

Page 86: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 85

Vimos até aqui que o uso estratégico da televisão para a propaganda

política dos partidos é um problema complexo, que envolve um sem-número de

variáveis relativas às estratégias dos partidos políticos, aos problemas

decorrentes das características particulares do sistema eleitoral brasileiro e aos

desafios específicos que se apresentam no uso da televisão para a transmissão

de mensagens políticas. A tarefa que se apresenta à análise é identificar as

principais opções estratégicas que se apresentam aos partidos no tocante ao uso

da televisão, estabelecer parâmetros consistentes que permitam identificá-las e

relacioná-las de modo efetivo a essas variáveis.

As discussões empreendidas ao longo deste texto certamente não esgotam

a problemática do uso partidário da propaganda eleitoral na televisão. Colocaram-

se algumas questões como pontos de partida para a construção de uma

metodologia de análise adequada ao problema brasileiro. Menos do que delimitar

conclusões a respeito da temática referida, optou-se por discutir os critérios

analíticos que não podem ser descartados: uma análise da propaganda política

na televisão brasileira terá de se confrontar, necessariamente, com os desafios

impostos pelos seus sistemas partidário e eleitoral e, ainda, como o próprio

modelo de propaganda determinado pela legislação brasileira.

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Page 88: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Propaganda Política, Partidos e Eleições 87

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Page 89: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul

Maria Izabel Mallmann∗

Introdução

Até recentemente, mais precisamente até a última década do século XX, a

ideia de América do Sul como unidade identitária não existia. Essa região era

definida meramente em termos geográficos. A identidade regional era evocada a

partir da suposta latino-americanidade que uniria em torno de um destino comum

todos os países ao sul do Rio Grande com raízes históricas e culturais

semelhantes. A construção do discurso identitário sul-americano coincidiu, não

gratuitamente, com os desafios postos aos países da região, particularmente ao

Brasil, pelas transformações mundiais do pós Guerra Fria e pela globalização,

entre outros fatores.

Tratava-se, nos anos 90, de encontrar um modo de projeção internacional

que conciliasse desenvolvimento e abertura econômica, diferentemente do que

ocorrera nas décadas precedentes, quando vigoraram políticas mais

protecionistas. A década de 90, pelo menos em sua primeira metade, foi marcada

pelo entusiasmo quanto às potencialidades da integração econômica e comercial.

Discutiam-se as novas possíveis clivagens mundiais que não seriam,

logicamente, de natureza política e ideológica, já que o capitalismo perdera seu

maior oponente, o socialismo soviético. Formavam-se os chamados blocos

econômicos. Nas Américas, duas novas frentes de integração surgiram: o

Mercado Comum do Sul (Mercosul) e o North Free Trade Agreement (Nafta).

O México, um dos mais importantes países latino-americanos aderiu ao

Nafta, com cujos países membro, Estados Unidos e Canadá, mantinha fluxos

comerciais relevantes. Ao Brasil, não interessava percorrer o mesmo caminho

nem eventualmente “perder” outros parceiros para arranjos de integração

semelhantes. Isso fez com que o país adotasse uma estratégia de projeção

∗ Doutora em Ciência Política pela Sorbonne, Paris III. Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Membro do grupo de pesquisa Relações e Organizações Internacionais da PUCRS. E-mail: [email protected]

Page 90: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 89

regional mais ofensiva, buscando estabelecer e preservar seus interesses nos

países sul-americanos, formando uma espécie de anteparo para etapas futuras

de integração internacional. Em 1993, o Brasil propõe o alargamento do Mercosul

à Comunidade Andina (CAN), de forma a constituir um bloco sul-americano.

Embora essa proposta tenha sido assumida pelo Mercosul, em 1994, ela não

progrediu antes do final daquela década. Em 1998, quando se iniciavam as

negociações para a implantação da Associação de Livre Comércio das Américas

(ALCA), proposta pelos Estados Unidos alguns anos antes, foram retomadas pelo

Brasil as iniciativas para concretizar o projeto de integração sul-americana. Muito

foi realizado nesse sentido, como será visto no decorrer deste capítulo. Nos

últimos anos, não apenas as trocas comerciais, mas também projetos comuns de

infraestrutura e de exploração energética aprofundaram a interdependência entre

os países sul-americanos. Isso, contudo, não proscreveu o déficit interno de

integração social, econômica e política em cada um desses países, nem

tampouco suprimiu as desconfianças mútuas acerca das intenções de cada um,

particularmente das do Brasil em relação aos demais.

Hoje, transcorridos apenas alguns anos desde a opção sul-americanista do

Brasil e quando afloram preocupantes conflitos capazes de questionar seriamente

as relações regionais, cabe perguntar acerca da capacidade das políticas de

integração e de aprofundamento da interdependência para evitar os piores

desdobramentos de tais eventos. Neste capítulo, caracteriza-se a América do Sul,

tal como delimitada pela política externa brasileira; listam-se e classificam-se as

iniciativas de integração e os conflitos em curso, e, finalmente, recorre-se às

teorias liberais da integração regional e da interdependência para explorar a

potencialidade dos mecanismos de cooperação e de institucionalização das

relações para prevenir conflitos.

1. Projeto sul-americano

Como foi mencionado acima, a América do Sul como uma unidade de

referência, com algum caráter identitário, começou a ser esboçada

discursivamente pelo Brasil no início dos anos 90 e, em termos práticos, a partir

do final daquela década.

Page 91: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

90 Maria Izabel Mallmann

Os acontecimentos que marcam essa trajetória foram iniciados durante a

VII Cúpula do Grupo do Rio1

O acordo quadro firmado entre Mercosul e CAN, em 1998, foi um esforço

no sentido de projetar uma via de integração atenta às características e

potencialidades sul-americanas.

realizada em Santiago, em 1993. Na ocasião,

Fernando Henrique Cardoso, então ministro do governo Itamar Franco, lançou a

ideia de uma área de livre comércio que abrangesse todos os países sul-

americanos. Essa proposta, encampada pelo Mercosul no ano seguinte, passou a

materializar-se anos mais tarde em resposta a crescentes pressões externas,

especialmente advindas do processo de negociação da Área de Livre Comércio

das Américas (ALCA).

A partir de 2000, inicia-se uma sequência de reuniões de presidentes sul-

americanos com a intenção de constituir um espaço sul-americano que incluísse

Chile, Suriname e Guiana, além dos países membros do Mercosul e da CAN

(Almeida, 2002, p. 100). A I Cúpula de Presidentes Sul-Americanos foi realizada

naquele ano, em Brasília, por iniciativa do já então presidente do Brasil, Fernando

Henrique Cardoso, e aprovou, juntamente com o Comunicado de Brasília, um

Plano de Ação, base para a criação da Iniciativa para a Integração da

Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA)2

Com a mudança de governo no Brasil, em 2003, a via sul-americana de

integração foi confirmada e novos canais facilitadores foram criados. A III Cúpula

. Com isso, iniciava-se uma

ofensiva coordenada para superar problemas endêmicos regionais. Em julho de

2002, foi realizada em Guayaquil, Equador, a II Cúpula de Presidentes Sul-

Americanos. Na ocasião, já era possível identificar claramente, no discurso

diplomático do Brasil, o escopo da América do Sul. Ela incluía todos os países

com os quais o Brasil tem fronteiras, mais Chile e Equador (Santos, 2005, p. 102).

1 O Grupo do Rio é uma instância diplomática latino-americana que reúne atualmente Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai, Venezuela e CARICOM (http//pt.wikipedia.og/wiki/Grupo- do-Rio). O Grupo do Rio originou-se do Grupo de Contadora (México, Colômbia, Venezuela e Panamá) e do Grupo de Apoio a Contadora (Argentina, Brasil, Peru e Uruguai) criados respectivamente em 1983 e 1985 para tratar da crise centro-americana deflagrada pela situação política na Nicarágua. Sobre esse assunto, ver MALLMANN, 2008. 2 A IIRSA é um programa de integração que busca viabilizar a comunicação e os fluxos intra e extrarregionais. Conforme informações oficiais (www.iirsa.org), a Iniciativa contempla projetos em infraestrutura, transportes, energia e comunicações. A Agenda de Implementação Consensuada 2005-2010 é constituída por 31 projetos de integração aprovados pelos países em 2004.

Page 92: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 91

que teve lugar em Cuzco, Peru, em 2004, respalda a Iniciativa para a Integração

da Infraestrutura Sul-americana (IIRSA), mas introduz modificações que tornam o

Estado mais presente na definição e no financiamento dos projetos. Naquela

ocasião, foi lançada a Comunidade de Nações Sul-americanas (CASA) com vistas

a dotar o processo de integração de um espaço político apropriado a sua

coordenação. Esse espaço teve, contudo, vida curta. Em abril de 2007, durante a

I Cúpula Energética da América Latina, realizada em Ilha Margarita, Venezuela,

foi criada a União de Nações Sul-americanas (UNASUL), em substituição a

CASA. Essa mudança reflete a correlação de forças regional de meados da desta

da década marcada pela ascensão da Venezuela de Hugo Chávez.

2. Assimetrias sul-americanas

Em termos agregados, os principais indicadores socioeconômicos da

região impressionam: os doze países3

Assimetrias de recursos de poder constituem, por si mesmas, grandes

obstáculos à integração na medida em que interpõem aos típicos e complexos

processos de alienação de soberania, problemas adicionais relativos a desigual

geração e distribuição de benefícios. Cabe lembrar que acentuadas assimetrias

que constituem a América do Sul possuem

uma extensão de 17 milhões de Km2, população de mais 380 milhões de pessoas,

e PIB superior a 1 trilhão e meio de dólares. Contudo, se vistos mais de perto,

percebe-se que sua distribuição é muito assimétrica. Em conjunto, Argentina,

Brasil e Venezuela, detêm 70% da superfície total, 67% da população e 78% do

PIB. Sozinho, o Brasil detém 40% da superfície total, 50% população e 45% do

PIB. A quase totalidade dos países sul-americanos é agroexportadora, com

baixos índices de industrialização e diversificação econômica. De todos, o Brasil é

o único em que os manufaturados superam pouco mais de 50% do total das

exportações. Nos países andinos, em cujas exportações pesam significativamente

os bens energéticos e os minérios, o percentual de bens primários chega a atingir

entre 80 e 90% das exportações. Essas assimetrias são, em grande medida,

responsáveis pelas dificuldades interpostas ao processo de integração regional.

3 Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.

Page 93: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

92 Maria Izabel Mallmann

potencializam as já esperadas desconfianças a respeito do uso que

eventualmente possa ser feito dos diferenciais de poder. A preocupação com a

maximização do poder de alguns pode inviabilizar processos que suponham

ampla distribuição de benefícios. No caso da América do Sul, a posição

privilegiada do Brasil em praticamente todas as rubricas de poder, leva a que

seus ganhos relativos se afigurem como desproporcionais e ameaçadores ao

equilíbrio regional. Para o progresso da integração, essa situação recomenda que

o Brasil exerça uma liderança branda, como, aliás, vem fazendo, contribuindo

para minimizar as disparidades mesmo que isso implique em sacrifício de

posições em termos absolutos. Além disso, seria desejável que instâncias

supranacionais fossem criadas de modo a diluir o peso das partes. Contudo,

antes disso, seria preciso vencer o sentimento soberanista que permeia as elites

nacionais de modo a que se formasse algum consenso em torno da ideia regional.

3. Situação política sul-americana

Como os demais países da América Latina, também os sul-americanos

apresentam um quadro político apenas recentemente estabilizado, pelo menos do

ponto de vista procedimental. Com muitas limitações no que diz respeito a

qualquer ideal de democracia, os países sul-americanos ingressaram na onda de

democratização iniciada nos anos 70 na Europa com as transições em Portugal,

Espanha e Grécia. Primeiro foi o caso do Equador com a eleição de Jaime Rodóz

em 1979; no ano seguinte, Jaime Balaúnde Terry foi eleito no Peru; em 1982,

Hernán Silez Suazo foi eleito na Bolívia; em 1983, após a Guerra das Malvinas,

Raúl Alfonsín foi eleito na Argentina; em 1985, Brasil e Uruguai elegeram

respectivamente José Sarney e Julio Maria Sanguinetti; em 1989, Patrício Aylwin

foi eleito no Chile e, no mesmo ano, Andrés Rodrigues chega ao poder no

Paraguai mediante um golpe de Estado. Isso não foi pouco tendo em vista um

passado regional dominado por regimes de exceção (Dabène, 2003, p. 208,

Coutinho, 2008, p. 75).

Na década de 60 ocorreram, em toda América Latina, os golpes de Estado

preventivos com o intuito de evitar a propagação da experiência cubana. Na

América do Sul, tais golpes iniciaram-se na Argentina e no Peru, em 1962, e se

Page 94: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 93

repetiram nesses países em 1966 e 1968 respectivamente; no Brasil e na Bolívia

os golpes ocorreram em 1964. Na década subsequente, ocorreram os golpes

terroristas, assim denominados pela excepcionalidade da repressão que

exerceram em nome de uma desejada purificação política (Dabène, 2003, p. 208).

A sequência de golpes de Estado foi a seguinte: na Bolívia em 1971, no Chile e

no Uruguai em 1973, no Peru em 1975, na Argentina e no Equador em 1976. O

recorrente apelo a esse expediente, para a resolução dos impasses políticos,

valoriza sua relativa ausência nos últimos anos apesar de, conforme salienta

Coutinho, ele ainda ser aparentemente operacional a certos interesses em alguns

países, notadamente no Paraguai e na Venezuela. Esse último país curiosamente

fora, juntamente com a Colômbia, o paradigma de estabilidade política nos

períodos de exceção acima evocados. Atualmente, os dois situam-se como os

mais instáveis segundo a classificação de Coutinho (2008, p. 75). Nota-se,

contudo, que desde as transições à democracia acima arroladas e apesar dos

percalços, as instituições democráticas têm sido sistematicamente confirmadas na

América do Sul4

4. Os conflitos sul-americanos

.

A relativa estabilidade política é perturbada por conflitos historicamente mal

resolvidos, oriundos, em parte, da precária integração interna das sociedades sul-

americanas, mas, também, das assimetrias regionais. Isso tem vindo fortemente à

tona devido à ascensão de forças políticas até então apenas marginalmente

integradas à vida política. Em alguns países, notadamente na Venezuela, na

Bolívia, no Equador e no Paraguai, essa mudança política gerou importantes

embates internos, em alguns casos devido à maneira como ocorre essa inclusão.

Em todos os casos, vigora a via eleitoral. Porém, o teor das políticas

emancipatórias assim como a forma com que são implementadas tem gerado

conflitos. Deixada de lado a discussão acerca do perfil ideológico desses

governos (Cruz Jr., 2008), o que convém reter é que eles expressam demandas

4 Aguarda-se para 2009-2010 uma rodada de quatorze pleitos eleitorais na região.

Page 95: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

94 Maria Izabel Mallmann

historicamente reprimidas que, para serem contempladas, mudam

significativamente as prioridades nacionais.

Os países mais assolados por crises institucionais, conforme identificados

acima, são também os que apresentam retórica mais à esquerda (socialismo do

século XXI na Venezuela) e também, em certa medida, de acordo com Cruz Jr.,

realizam mudanças mais coerentes com o que seria uma plataforma de esquerda

(Bolívia). Além disso, esses países têm apresentado as performances externas

mais hostis, notadamente em relação ao Brasil. Da perspectiva do Brasil, essas

performances colocam em xeque compromissos assumidos e estreitamente

vinculados à estratégia de integração regional do país.

A aposta havida em torno do aprofundamento da interdependência sul-

americana nas áreas de infraestrutura e energética sofre limitações face às

mudanças políticas ocorridas na região. Governos fortemente nacionalistas e

dependentes de uma retórica e de formas de ação espetaculares inauguraram,

nesta primeira década do século XXI, um período de hostilidades nas relações

regionais cujos desfechos só não são mais catastróficos devido ao equilíbrio com

que a diplomacia dos demais países, notadamente a do Brasil e a do Chile, é

conduzida.

No que concerne os interesses diretos do Brasil, os focos de tensão

emanam das performances da Bolívia, do Paraguai, do Equador e da Venezuela.

Os esforços de projeção regional da Venezuela, combinados com o perfil político

do governo Chávez, introduziram uma clivagem política na América do Sul que,

na melhor das hipóteses, incidem negativamente sobre a política de integração do

Brasil, na medida em que a questionam como sendo essencialmente

comercialista, econômica e pouco solidária. Hugo Chávez propõe a Alternativa

Bolivariana para as Américas (ALBA), cujo teor é basicamente político e de ajuda

bilateral e, em torno desse projeto, reúne os governos da Bolívia e do Equador de

forma mais direta, mas também o do Paraguai. O governo boliviano de Evo

Morales, por sua vez, busca introduzir, além de mudanças políticas que

contemplem a inclusão dos povos indígenas daquele país, a reapropriação dos

recursos naturais por parte do Estado. Essa política incidiu diretamente sobre as

atividades da Petrobrás naquele país e a forma como a orientação governamental

foi implementada, com ocupação militar das instalações da empresa brasileira e

Page 96: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 95

com uma retórica hostil, maculou a confiança mútua necessária às parcerias

internacionais. Da mesma forma, o mau desempenho da empreiteira brasileira

Odebrecht no Equador foi tratado de forma exageradamente hostil, assim como

as atividades da Petrobrás naquele país. O Equador ameaçou suspender os

pagamentos ao BNDES contraídos para financiamento da obra realizada pela

Odebrecht. Finalmente, o Paraguai exige a renegociação do Tratado de Assunção

que estabelece os termos da exploração dos recursos da hidrelétrica de Itaipu

contrariamente ao que defende o Brasil que se dispõe a cooperar com o

desenvolvimento do Paraguai em outras frentes como ampliação das redes de

transmissão de energia, desenvolvimento agrícola, entre outras.

Face a esses contenciosos, o Brasil tem reconhecido o direito desses

países em reaver a propriedade sobre seus recursos naturais e tem manifestado

o entendimento de que o teor agressivo e hostil dos discursos e ações atende a

necessidades políticas internas relacionadas a momentos eleitorais. Por outro

lado, o governo brasileiro tem sido irredutível quanto a seus direitos juridicamente

respaldados tanto pelo Tratado de Assunção no que se refere às demandas do

Paraguai, como pelo Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR)5 no

que diz respeito ao contencioso com o Equador acerca do empréstimo do BNDES

aquele país6

. No entanto, as consequências desses episódios ultrapassam a

dimensão binacional e pontual em torno de questões específicas. Elas incidem

sobre a credibilidade dos países envolvidos, sobre sua capacidade para cumprir

compromissos e acordos, o que compromete a confiança regional necessária à

progressão da integração.

5 O CCR é um sistema de compensação de pagamentos criado em 1982 para contornar os problemas de liquidez de divisas na região. Os Bancos Centrais são os signatários do Convênio que reúne 12 países da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI): Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana (http://www.bcb.gov.br). 6 O Equador contraiu dívida junto ao BNDES para a construção da usina hidrelétrica de San Francisco pela empresa brasileira Odebrecht. Houve graves problemas técnicos na obra entregue, o governo Equatoriano ameaçou suspender os pagamentos ao banco brasileiro e recorreu à arbitragem internacional.

Page 97: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

96 Maria Izabel Mallmann

5. A dimensão socioeconômica

Muito da instabilidade política que semeia incertezas quanto ao

desempenho externo dos países sul-americanos diz respeito aos históricos

índices de desigualdade presentes em todos os países da região. Observa-se que

ao longo dos anos 90, o desemprego, as desigualdades e a violência seguiram

aumentando ininterruptamente, apesar da recuperação econômica nos primeiros

anos da década, não tendo sido possível reaver os índices do final dos anos 70

(Dabène, 2003). Dados recentes da Cepal indicam que há países na América do

Sul em que mais de 30% (Bolívia) da população vive em situação de pobreza e

até 15% em situação de indigência. Nesses quesitos, Chile (6.3% e 1.7%) e

Uruguai (6.0% e 1.0%) são os que apresentam menores índices, Bolívia e

Paraguai (29.5% e 13.1%) são os casos mais preocupantes. O percentual de

pessoas cujo consumo energético alimentar situa-se abaixo dos níveis

internacionalmente aceitos é particularmente elevado na Bolívia (23%), Venezuela

(18%), Colômbia (13%), Paraguai (15%) e Peru (12%). Da mesma forma, o

analfabetismo urbano é muito elevado em todos os países, apresentando índices

medianamente aceitáveis apenas na Argentina (1.4%) e no Chile (2.8%).

Segundo a Cepal, quatriênio compreendido entre 2003 e 2006 foi o de melhor

desempenho econômico e social da América Latina nos últimos 25 anos, com isso

os índices sociais tendem a apresentar alguma recuperação. Mesmo assim, os

números absolutos são alarmantes. Tendencialmente, em 2006, o número de

pobres e indigentes deveria situar-se em torno de 205 e 79 milhões de pessoas,

respectivamente (Cepal, Anuário Estatístico 2006).

Frente a esses índices, entende-se que a agenda interna dos países seja

sobrecarregada por problemas de ordem social e política. Somam-se aos

problemas estruturais, as sucessivas crises internacionais e os efeitos perversos

dos modelos econômicos implantados, de modo que os esforços dos governos

para fazer frente às demandas sociais não têm sido suficientes sequer para

recuperar o padrão perdido nas últimas décadas. Essa pesada agenda interna

reduz a capacidade de proposição externa e de engajamento regional

comprometedor de autonomia por parte dos Estados para quem os ganhos

Page 98: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 97

imediatos, por menores que sejam, são mais importantes diante da possibilidade

de maiores ganhos futuros.

Acrescente-se a isso o fato de que, uma estrutura socioeconômica desigual

debilita as capacidades individuais, fragiliza os direitos políticos, propicia relações

autoritárias generalizadas e, com isso, distorce o exercício da cidadania e da

accountability, próprios de uma democracia estável (O’Donnell 2000, p. 359).

Diante disso, é compreensível o permanente estado de ebulição e instabilidade

política na maioria dos países da região, apesar da regularidade eleitoral. De

1979 a 1990, ocorreram treze transições para a democracia e entre meados de

2005 e final de 2006, quatorze processos eleitorais foram realizados na América

Latina, destes, nove ocorreram na América do Sul onde houve avanço

significativo de diferentes versões de esquerda em resposta às frustrantes

experiências liberais da década anterior. Mesmo assim, permanece como um dos

maiores desafios dos países sul-americanos, a consolidação de suas

democracias, o que supõe ir além das garantias institucionais formais e perpassar

a sociedade com políticas adequadas de inclusão social e econômica que habilite

os indivíduos ao exercício da cidadania.

Portanto, acompanham os desafios de natureza econômica e social

aqueles propriamente políticos e institucionais que repousam sobre a

necessidade de suprimir os chamados “campos negativos” (sociedade incivil e

sociedade política pouco submetida) que a redemocratização, por si só, não

consegue remover (Mendez, 2000, p. 12). Para tanto, é necessário “Um Estado

legal democrático forte que estenda seu poder regulatório sobre a totalidade de

seu território e por todos os setores sociais” (O’Donnell, 2000, p. 358).

Ocorre que os países sul-americanos carecem desse Estado legal

democrático forte, no sentido de que age através da sociedade e configura um

poder infraestrutural capaz de implementar decisões em todo o seu território,

independentemente de quem as tome, ou seja, um Estado eficiente (Mann, 2006).

Além disso, segundo Mann, aos problemas estruturais decorrentes do déficit

histórico de eficiência do Estado, refletido na carência de alcance e de

infraestrutura, sobrepõem-se os problemas de situação, tais como a produção de

drogas e a questão da dívida externa (Mann, 2006). Sobrepõem-se também

outros desafios como os oriundos da violência urbana, das transformações do

Page 99: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

98 Maria Izabel Mallmann

espaço público e significativamente, sobretudo na região andina, do novo

despertar das etnias7

Esses fatores tornam o processo político mais instável e subtraem

garantias quanto à continuidade dos compromissos. Em alguns países da

América do Sul a inclusão política de segmentos historicamente excluídos dos

processos decisórios tem introduzido variáveis cujos desdobramentos são

bastante imprevisíveis ou, pelo menos, reorientam as expectativas quanto à

condução das relações regionais. Se isso, em si, não significa necessariamente o

total abandono dos compromissos assumidos, pelo menos, reduz a confiança

mútua regional, tão cara aos processos de integração e imprescindível para a

resolução não violenta de conflitos em situações de interdependência complexa.

Mais uma vez, sob certo ponto de vista, instituições regionais legítimas se fazem

desejar.

.

6. Teorias da integração

Os processos de integração regional podem ser analisados pelas principais

teorias das relações internacionais. Os enfoques realistas enfatizam o potencial

estratégico de tais iniciativas, ao passo que as abordagens liberais, cujas

contribuições são aqui privilegiadas, preocupam-se particularmente com as

condições e mecanismos institucionais que favorecem ou não a progressão de

arranjos cooperativos.

De modo geral, entre os analistas da integração regional, pertencentes à

matriz liberal, há uma difundida compreensão de que processos desse tipo

dependem da existência de alguns fatores identificados a partir de estudos

clássicos desenvolvidos sobre a realidade europeia. Como será visto neste tópico,

alguns desses fatores são a existência de interesses ou objetivos compartilhados,

7 O Panorama Social da América Latina 2006, produzido pela Cepal, destaca a irrupção dos povos indígenas como ativos atores sociais e políticos e o processo de consolidação de normativa internacional sobre seus direitos e suas conseqüências no que diz respeito a políticas públicas. O documento aponta para a “complexidade e heterogeneidade das dinâmicas da população indígena”, para a “persistente desigualdade que os afeta” e para o desafio das democracias do século XXI “em matéria de reformas estatais e de políticas tendentes a superar as brechas de aplicação dos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas” (Cepal, 2006). A redemocratização favoreceu a ascensão política desses segmentos surgidos antes da democratização da década de 1980 e da liberalização dos anos 1990 (Trejo, 2006, p. 265).

Page 100: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 99

a adesão a valores similares e o desenvolvimento de normas e regras comuns.

Ou ainda, de acordo com Karl Deutsch, maturidade institucional, disposição para

superar diferenças, percepção comum das ameaças externas, previsibilidade de

comportamento, responsabilização mútua e regulação política.

Tanto Ernest Haas como David Mitrany identificaram como importante para

a integração a existência de partidos políticos, grupos de interesse, elites políticas

e burocráticas interessadas em seu sucesso. Haas também alertou para a

necessidade de mecanismos legitimadores da transferência das lealdades do

plano nacional para o supranacional. Quanto aos mecanismos do processo

integrador, importante contribuição foi dada com o desenvolvimento por Mitrany e

Haas dos conceitos de “ramificação”, “respingamento” ou spillover. A partir dos

anos 70, foi desenvolvido por Joseph Nye e Robert Keohane o conceito de

interdependência complexa que daria sequência às reflexões acerca da

integração não apenas em âmbito regional, mas mundial. Abaixo, esses conceitos

serão brevemente abordados.

Os interesses e objetivos estratégicos da Europa após a II Guerra Mundial

estiveram voltados para a busca da paz e da segurança. Os entendimentos

iniciais que marcaram a primeira fase da integração europeia buscavam encontrar

um arranjo institucional que assegurasse o convívio pacífico entre os países e, ao

mesmo tempo, neutralizasse as ameaças externas vindas tanto do expansionismo

soviético quanto da hegemonia dos Estados Unidos. Com isso, foi possível

assegurar o longo período de estabilidade e prosperidade que se prolonga aos

dias de hoje.

Karl Deutsch, um dos pensadores mais proeminentes sobre o assunto,

defendeu a formação de uma comunidade de segurança, capaz simultaneamente

de assegurar, por meios diplomáticos, a paz entre seus membros e de debelar,

por meio militar, as ameaças externas. As condições necessárias para tanto,

seriam a existência de maturidade institucional, disposição dos membros para

superar diferenças e percepção comum das ameaças externas (Deutsch, 1984,

Griffitz, 2004, p. 260; Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 648). Embora nem a Europa

destroçada pela Guerra apresentasse as condições para tanto, haja vista a

derrota do projeto de constituição de uma Comunidade Europeia de Defesa, fica

claro que, dessa perspectiva, a adesão a valores similares, a percepção de

Page 101: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

100 Maria Izabel Mallmann

constrangimentos externos comuns e a superação de desconfianças mútuas

favorece o avanço da integração. Os estudos de Deutsch levaram à identificação de dois tipos de

comunidades de segurança: as amalgamadas seriam aquelas nas quais houve a

supressão das unidades previamente independentes e a criação de um governo

comum, seriam os Estados-nação; as comunidades de segurança pluralistas

seriam aquelas em que as partes manteriam a independência jurídica (Dougherty

e Pfalzgraff, 2003, p. 660-1). A formação de comunidades de segurança

pluralistas exige, segundo ele, três condições essenciais: compatibilidade de

valores, previsibilidade mútua dos comportamentos das unidades e

responsabilização mútua – capacidade de trabalhar em estreita colaboração de

forma a responder aos assuntos mais urgentes. Essas condições, como veremos,

se mostrarão relevantes para a análise das experiências atuais de integração.

Deutsch também teve a clara percepção, que a partir dos anos 70 se fará

presente no pensamento interdependentista, de que o mero aumento das trocas

não conduz obrigatoriamente à integração. Ao contrário, segundo ele, transações

mais intensas aumentam as possibilidades de conflito. Para Deutsch a regulação

política seria imprescindível na medida em que facilitaria a resolução de tais

conflitos. Ela decorreria do aumento das pressões oriundas do crescimento das

trocas entre populações de diferentes áreas geográficas sobre as instituições

existentes. Essas tenderiam a integrar-se na regulação das áreas de interesse

comum. Em outros termos, a intensificação das transações políticas, culturais e

econômicas aumentaria as pressões para que as instituições se adaptassem

(Griffitz, 2004, p. 259). Mais tarde, teóricos da interdependência retomarão essa

ideia para ressaltar a importância das instituições na conformação de uma ordem

internacional mutuamente confiável.

As teses de Deutsch quanto à necessidade de regulação política

avançaram em grande medida em reação ao que se propugnava para a Europa

nos anos 40. As teses funcionalistas de David Mitrany, desenvolvidas naqueles

anos, preconizavam a minimização da esfera política em benefício da esfera

técnica uma vez que aquele autor identificava as causas das guerras na ambição

dos Estados pelo poder. Isso, segundo ele, poderia ser contornado pela sujeição

da esfera política à esfera técnica. Mitrany considerava que havia no mundo mais

Page 102: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 101

assuntos técnicos do que políticos e que a solução dos mesmos seria

necessariamente cooperativa e superaria os limites das fronteiras estatais. Tais

assuntos seriam melhor resolvidos por funcionários técnicos especializados do

que por políticos. Para ele, a paz não seria assegurada por tratados ou acordos

que meramente definissem as relações entre os Estados; para assegurá-la, seria

necessário fundi-los, através da conexão de interesses comuns em diversos

domínios técnicos, ou áreas temáticas que teriam o mérito de, ao multiplicarem-

se, reduzir o poder do Estado. Desenvolvendo-se por etapas, as atividades

tecnicamente organizadas acabariam por constituir instâncias de paz

crescentemente profundas e extensas que decorreriam não de alianças que

tornam a paz provisória, mas de atividades que tornariam os compromissos

irreversíveis8

Segundo Dougherty e Pfaltzgraff, para Mitrany a cooperação seria o meio

adequado para atender a necessidades específicas e, através delas, estariam

criadas as bases para a formação e consolidação de regimes e instituições

internacionais. Haveria uma espécie de “aprendizado cooperativo”, no qual a

cooperação em uma determinada área levaria à cooperação em outra e diminuiria

a possibilidade de guerra. Em outros termos, “Da cooperação funcional resultaria

o fundamento para as instituições do tipo das organizações e regimes

internacionais baseados no multilateralismo e que deveriam reduzir a importância

do Estado” (Dougherty e Pfaltzgraff, 2003, p. 651).

. Para o autor, o processo integrador incluiria inicialmente tarefas

funcionais específicas e disporia de potencial para se expandir para outros

setores (ramificação) podendo conduzir à união política. Nesse processo, seria de

fundamental importância o papel dos partidos políticos e grupos de interesse e o

grau em que as elites políticas dariam ou não seu apoio à integração.

Embora tivesse como horizonte os ideais da supranacionalidade, Ernest

Haas identificou na dimensão política o fator essencial da integração, uma vez

que, para ele, ela é “um processo pelo qual os atores políticos em diversos

cenários nacionais distintos são persuadidos a trocar suas lealdades, expectativas

e atividades políticas por um novo centro mais amplo, cujas instituições possuem

ou demandam jurisdição sobre os Estados nacionais pré-existentes” (Haas apud 8 A paz o e desenvolvimento funcional da organização internacional, originalmente publicado nos números 5, 6 e 7 de L’avenir, em 1944. Trechos desse texto são reproduzidos em BRAILLARD, Philippe. 1990, p. 566-584.

Page 103: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

102 Maria Izabel Mallmann

Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 648). Haas identificava na própria dinâmica da

integração os fatores que fragilizariam as resistências nacionalistas à integração.

Na medida em que o processo avançasse, através do “respingamento” ou

“ramificação”9

Outro aspecto relevante ao estudo da integração foi apontado por Haas a

partir da análise do processo de criação da Comunidade Europeia do Carvão e do

Aço (CECA). Ele identificou que a decisão de prosseguir ou não a integração a

partir daquela experiência dependeu em grande medida das expectativas de

grupos de interesse envolvidos. Haas, assim como Mitrany, deu importância às

elites e aos especialistas das burocracias nacionais para a execução da

integração. Segundo Dougherty e Pfaltzgraff, “Haas assumiu que a integração

prosseguia como resultado do trabalho das elites relevantes nos setores

governamentais e privado por razões pragmáticas como a expectativa de que a

eliminação das barreiras comerciais aumenta mercados e lucro” (Haas apud

Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 651-2), daí a importância dos bons resultados e

dos ganhos concretos para balisar as decisões quanto ao aprofundamento e à

ampliação ou não da integração. Esse aspecto ressalta a importância das críticas

quanto à condução de tais processos exclusivamente por segmentos

governamentais, como tem sido recorrente no Brasil.

de um domínio a outro, geraria mais e mais interesses compartidos,

mais demandas por regulação e mais confiança nas novas estruturas

institucionais. Essas eram por ele consideradas fundamentais para mediar os

inevitáveis conflitos advindos da repartição dos benefícios. Tais instituições

deveriam gozar de relativa autonomia e repousariam sobre o compromisso mútuo

dos Estados de respeitar as regras consensualmente aceitas (Dougherty,

Pfaltzgraff, 2003). Essa preocupação de Haas remete à de Deutsch quanto á

dimensão regulatória necessária ao sucesso da integração.

Adicionalmente, Haas registrou que o interesse baseado em considerações

pragmáticas pode ser efêmero se não for acompanhado de empenho ideológico e

filosófico similar ao nacionalismo e à identidade nacional dentro dos Estados

(Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 654). Também essa ideia pode ser 9 A partir do conceito de ramificação de Mitrany, Haas desenvolveu o de spillover querendo, com ele, dizer que “as decisões iniciais ramificam para novos contextos funcionais, envolvem sempre mais pessoas, exigem sempre mais contatos e consultas entre burocracias que procuram dar solução aos novos problemas que derivam dos compromissos anteriores” (Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 653).

Page 104: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 103

especialmente útil para a análise do processo sul-americano de integração, uma

vez que algumas iniciativas podem ser arroladas como esforços nesse sentido.

Como foi mencionado acima, a partir dos anos 70, foram desenvolvidas

novas reflexões acerca da integração, dessa vez já com preocupações relativas

ao escopo internacional do fenômeno. Joseph Nye e Robert Keohane (1984)

desenvolveram o conceito de interdependência complexa para analisar as

situações então crescentemente perceptíveis em que “atores e acontecimentos

situados em diferentes partes de um sistema se afetam mutuamente” (Nye, 2002,

p. 225). A interdependência complexa é, segundo Nye, um tipo ideal que possui

três características básicas. Em primeiro lugar, as sociedades são conectadas por

múltiplos canais que podem ser agrupados em categorias de relações:

interestatais, transgovernamentais e transnacionais. Em segundo lugar, a variada

agenda internacional que decorre das conexões acima citadas carece de uma

hierarquia definida a priori, que estipule prioridades em termos de assuntos

militares ou econômicos, por exemplo. Em terceiro lugar, a possibilidade do uso

da força militar é minimizada em tais situações justamente porque não só muda a

natureza do conflito como sua possibilidade de articulação sob a rubrica da

soberania nacional (Nye, 2002, p. 236-7).

Contrariamente ao que se poderia supor, em situações de

interdependência complexa, aumentam as possibilidades e a complexidade dos

conflitos, uma vez que envolvem variadas formas de poder. As situações de

interdependência complexa, por decorrerem da combinação de dependências

mútuas em diferentes áreas temáticas, dificilmente fazem coincidir as fragilidades

e as fortalezas em cada uma delas, gerando equilíbrios instáveis. Além disso,

segundo os autores, esse tipo de interdependência, por misturar questões

nacionais e estrangeiras, “dá origem a coligações muito mais complexas, padrões

de conflito mais intrincados e uma forma diferente de distribuição dos ganhos em

relação à que existia no passado” (Nye, 2002, p. 228). Aos Estados nessa

situação podem interessar os ganhos absolutos e relativos de seus pares. Esse é

o caso de Estados comprometidos com estratégias de integração regional, em

que desproporcionais ganhos individuais dificilmente redundam em benefícios

para o andamento do processo como um todo.

Page 105: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

104 Maria Izabel Mallmann

Portanto, o conceito alude a situações em que variados e mais numerosos

agentes atuam em diferentes contextos cuja relevância não é definida a priori,

mas em função dos interesses de tais agentes e, em que tal riqueza de conexões,

gera compromissos mútuos desautorizando crescentemente o uso da força para a

resolução dos conflitos. Isso por várias razões, entre elas pelo fato de os conflitos

serem de natureza específica, não agrupáveis sob a rubrica da soberania

nacional, e exigirem tratamento compatível. Nesses termos, o aumento da

interdependência favorece a integração na medida em que exige numerosos e

variados canais de comunicação aptos à gestão dos interesses e à resolução não

violenta dos conflitos.

O conceito de interdependência complexa permite apreender as situações

de interdependência em função de quatro atributos básicos: origem, benefícios,

custos relativos e simetria (Nye, 2002, p. 225). Quanto à origem, ela pode ser

ambiental econômica e militar, entre outras. A interdependência militar decorre da

competição que conta com a existência objetiva dos arsenais e com a

dependência mútua das políticas de segurança, armamento e defesa. Nesse

domínio, a interdependência pode ser danosa à paz se favorecer a escalada

armamentista. A dependência econômica é necessariamente mais diversificada

dado o variado número de agentes e interesses que envolve, mas incide também

sobre as escolhas de políticas internas de desenvolvimento. Ambas são

vulneráveis a fatores que influenciam a percepção dos agentes. Ou seja, a

percepção da diplomacia quanto às ameaças reais pode tanto aumentar quanto

reduzir a interdependência militar. Da mesma forma, a percepção dos decisores

quanto às ameaças e oportunidades econômicas afeta o grau de

interdependência na medida em que pode induzi-los a providenciar ou não a

redução de suas vulnerabilidades, entre ouros fatores.

Esse aspecto da percepção é muito relevante em casos em que se iniciam

processos de aproximação e de aprofundamento da interdependência quando a

confiança mútua é importante para encorajar a troca dos ganhos certos das

estratégias individuais pelas incertezas de um cenário de maior interdependência

como é o da integração regional. É justamente sobre essa dimensão perceptiva

que incidem as estratégias de dissuasão implementadas por potenciais

perdedores em alguma situação de interdependência. O sucesso nas

Page 106: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 105

manipulações de assimetrias, práticas recorrentes em situações de

interdependência, depende de percepções bem informadas a respeito das

possibilidades de sucesso de tais ações que, quando inseridas em uma estratégia

de integração, deverão ser balizadas por limites, cuja transgressão pode

comprometer de forma indesejada o processo.

Os benefícios da interdependência podem ser tanto de soma zero como de

soma não nula. No primeiro caso, a perda de uma parte é o ganho de outra. No

segundo, quando se trata de uma soma positiva, ambas as partes ganham e,

quando se trata de uma soma negativa, ambas perdem. A interdependência

engendra tanto situações competitivas de soma zero, como situações

cooperativas de soma positiva (Nye, 2002, p. 227-8), para cujo desfecho a

intenção dos agentes é decisiva. Em situações de integração regional, o

compromisso das partes em relação aos objetivos e metas comuns deveria, em

princípio, balizar as decisões dos agentes levando em consideração os resultados

desejados em uma perspectiva de longo prazo, uma vez que, conforme Nye

(2002, p. 226), é nesse prazo dilatado que os efeitos das escolhas sociais se

fazem sentir. Nesses termos, pode-se estimar as dificuldades que países menos

favorecidos enfrentam para realizar suas escolhas, uma vez que as necessidades

presentes podem fazer com que os menores ganhos imediatos imponham-se às

vantagens futuras.

É importante observar que as situações de interdependência não geram

necessariamente benefícios de modo a melhorar a posição de todos os

envolvidos. Os aspectos políticos da interdependência consistem justamente na

incerteza acerca de sua distribuição. “O não prestar atenção à desigualdade dos

benefícios e dos conflitos que surgem acerca da distribuição de ganhos relativos,

leva a que (se omitam) os aspectos políticos da interdependência” (Nye, 2002, p.

227). Tais aspectos são relevantes precisamente porque os benefícios gerados

conjuntamente tendem a desencorajar os conflitos, embora não necessariamente

o façam. O conflito pode advir do fato de que nem sempre os Estados estão mais

interessados nos ganhos absolutos da interdependência. Com frequência,

preocupa-os mais a sua vulnerabilidade em relação ao uso que os rivais farão de

seus ganhos relativamente mais elevados. Porém, mesmo que seja impossível

suprimir essa desconfiança, quando há adesão das partes a um projeto comum

Page 107: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

106 Maria Izabel Mallmann

de integração, ela tende a ser minimizada face a garantias mútuas quanto ao uso

das vantagens relativas.

Quanto aos custos da interdependência, eles estão relacionados à

sensibilidade a curto prazo e à vulnerabilidade a longo prazo dos envolvidos. A

sensibilidade diz respeito à importância e à rapidez com que se propagam os

efeitos da dependência. A vulnerabilidade está relacionada aos custos relativos

de um país para alterar a estrutura de um sistema de interdependência, saindo do

sistema ou alterando as regras do jogo. O mais vulnerável é o que incorreria em

custos mais elevados nessa operação. O mais sensível não é necessariamente o

mais vulnerável e vice-versa. A vulnerabilidade é uma questão de grau, depende

da capacidade de uma sociedade para responder rapidamente à mudança e

também da disponibilidade de substitutos e/ou de fontes alternativas de

abastecimento (Nye, 2002, p. 229). Uma situação de interdependência desejável

para o sucesso de um processo de integração seria a que combina alto grau de

sensibilidade, com baixa vulnerabilidade das partes. A alta sensibilidade

generalizada, decorrente de elevados índices de interdependência, tenderia a

aumentar a responsabilidade de cada um em relação aos demais. Por sua vez, a

baixa vulnerabilidade de cada um suporia a existência de importantes

capacidades individuais o que tornaria sustentável a situação de

interdependência.

Quanto à simetria da interdependência, diz respeito aos graus de

dependência mútua. Quanto mais simétrica a interdependência, mais raras são as

ocorrências de extremos, características das situações assimétricas. Segundo

Nye, a dimensão política da interdependência supõe a prática frequente de

manipulação das assimetrias o que se constitui em fonte de poder. Em casos de

interdependência envolvendo várias áreas, a manipulação é comumente realizada

relacionando as questões, o que pode produzir efeitos significativos dependendo

da intensidade do conflito. Nesse âmbito, as instituições internacionais são

frequentemente usadas pelos Estados para estabelecer regras que influenciem o

relacionamento das questões (Nye, 2002). Havendo regimes diferenciados para o

tratamento das principais questões – capital, comércio, meio ambiente, etc – as

partes militarmente mais fortes podem atuar no sentido de prejudicar as

negociações nesses regimes caso venham a ser derrotadas contundentemente

Page 108: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 107

em um deles. Contudo, a rede de interdependência também pode contê-las.

Portanto, a manipulação da interdependência econômica nem sempre é vencida

pelo maior Estado. Esse é o caso, por exemplo, de quando um Estado menor

possui interesse maior em relação a uma questão que o dispõe a ir até as últimas

consequências na negociação (Nye, 2000,). Uma iniciativa de integração que

envolva importantes e numerosas assimetrias desigualmente distribuídas entre as

partes é de difícil consecução, sendo necessário, nesses casos, que as normas e

regras sejam estabelecidas de modo a minimizar tais disparidades. Se poucos

delas se beneficiam e se são mínimas as vantagens de reverter esse quadro, a

tendência é que a integração não ocorra.

Os estudos relativos à interdependência complexa levaram ao

desenvolvimento de um conceito correlato extremamente relevante para a análise

de processos de integração, o de regime internacional. Esse conceito foi

consolidado nos anos 80 a partir da definição formulada por Krasner para quem

um regime internacional consiste num conjunto de princípios, normas e regras, e

procedimentos de tomada de decisões em torno dos quais convergem as

expectativas dos atores em determinada área das relações internacionais. O autor

define os princípios como sendo as crenças, convicções que orientam a ação; as

normas como alusivas aos direitos e obrigações que conformam os padrões de

comportamento; as regras como prescrições ou proscrições específicas para a

ação, e os procedimentos de tomada de decisões como práticas de fazer e

implementar escolhas coletivas (Krasner, 1983, p. 2).

O conceito foi desenvolvido como recurso analítico para explicar os

mecanismos responsáveis pela convergência das expectativas dos agentes em

áreas específicas das relações internacionais em um momento histórico em que

as condições técnicas permitem a multiplicação de agentes e temas e o

aprofundamento da interdependência. Para cada área temática (comércio, meio

ambiente, finanças, entre outras) há agentes, normas, regras e procedimentos

específicos que vinculam as realidades interna e internacional. Os regimes

contribuiriam para entender a operacionalização da interdependência, ou seja,

para “analisar a extensão e o modo como são aproximadas ocorrências internas e

externas e como (o fenômeno) contribui para ampliar a porosidade das fronteiras

no atual contexto internacional” (Rocha, 2006, p. 88 e 91). Por isso, é útil trabalhar

Page 109: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

108 Maria Izabel Mallmann

com o conceito de regimes internacionais do ângulo da intermediação, senão da

síntese, entre o ambiente externo e o doméstico de um país. O conceito se presta

também para entender os atuais processos de integração regional extraeuropeus

que respondem mais a estímulos descentralizados do que a comandos políticos

centrais.

Através de processos sociais, culturais e econômicos as normas, regras e

procedimentos emanadas dos regimes são internalizadas e, com isso, generaliza-

se a expectativa de que os agentes tenderão a reproduzi-las dotando o processo

como um todo de estabilidade e previsibilidade (Rocha, 2006, p. 90). Contudo,

essa relação não é estática, entre agente e estrutura existem determinações

mútuas. Conforme Rocha, as normas não são apenas variáveis intervenientes,

elas são constitutivas de estruturas e também de agentes internacionais. Com

isso, “... as estruturas vão se transformando para acomodar interesses da maioria

dos agentes [...] e os agentes também são forçados a redefinir o modo como eles

se inserem na comunidade internacional” (Rocha, 2006, p. 84). Por isso, estima-

se que o envolvimento de um número crescente de agentes em áreas temáticas

variadas (comércio, meio ambiente, infraestrutura, energia, entre outros) tende a

institucionalizar situações de interdependência conformando espaços que

demandam regulação no âmbito propriamente político, ou seja, na esfera de

estruturação dos Estados. Essa situação tenderia, em tese, a impelir os agentes

políticos – Estados – a aderirem, por sua vez, a regimes políticos regionais

crescentemente alienantes de soberania, ou seja, a aprofundarem a integração.

Na América do Sul, esse movimento rumo à criação e consolidação de estruturas

mutuamente comprometedoras da soberania encontra importantes obstáculos. À

frágil identidade regional, às históricas desconfianças mútuas somam-se fatores

de ordem interna aos Estados e comuns à região e também fatores dissuasivos

externos que retardam a criação de instituições supranacionais.

Considerações finais

O período que se estende de 1993, quando o Brasil lança a ideia de uma

integração sul-americana, a 2007, quando a iniciativa brasileira sofre alguns

reveses, é relevante para entender o processo de integração a partir das

Page 110: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Política e integração na América do Sul 109

vicissitudes do cenário político regional. Ao lado de importantes condicionantes

externos, aspectos da realidade regional, em maior ou menor grau comuns a

todos os Estados, sobrecarregam as agendas nacionais e dificultam os processos

de regionalização. As assimetrias regionais que revelam significativas

disparidades na distribuição de recursos de poder, o déficit democrático

responsável pela permanente instabilidade política e a fragilidade infraestrutural

dos Estados que deixa à deriva importantes segmentos sociais são ordens de

problemas que dificultam a formação e consensos nacionais a favor da integração

regional.

Nesse contexto, as condições necessárias para o sucesso da integração

encontram-se debilitadas na América do Sul. Em decorrência das assimetrias

regionais, da competição por liderança e das agendas sociais internas

multiplicam-se e diversificam-se os focos de conflito e os obstáculos à integração.

Os fatores acima evocados como sendo fundamentais a um processo de

integração como a existência de interesses ou objetivos compartilhados, a adesão

a valores similares, o desenvolvimento de normas e regras comuns, a maturidade

institucional, a disposição para superar diferenças, a percepção comum das

ameaças externas, a previsibilidade de comportamento, a responsabilização

mútua e a regulação política, se encontram severamente ameaçados pelas crises

políticas e rivalidades regionais. A crise que se abateu sobre as finanças e a

economia mundial pode, por um lado, subtrair recursos a estratégias políticas

aventureiras, mas, por outro lado, tende a exacerbar os já agudos problemas

sociais da região. Nesses termos, apesar de ser forçoso reconhecer que a

integração sul-americana progrediu muito nas últimas décadas e que a política

externa do Brasil parece irreversivelmente propensa a manter a região como

prioridade, deve-se admitir que é possível que se ingresse em um período de

estagnação desse processo.

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Page 111: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

110 Maria Izabel Mallmann

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Page 113: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil: do apolitismo ao ativismo corporativista

Ricardo Mariano (PUCRS)1

O capítulo aborda o ativismo político dos pentecostais no Brasil, conferindo

destaque à sua inserção e participação na política partidária no Congresso

Nacional, a atuação corporativista das igrejas Assembleia de Deus e Universal do

Reino de Deus, a criação e atuação da Frente Parlamentar Evangélica e a nova

bancada evangélica, fragilizada pelo escândalo das sanguessugas. Antes disso,

discorre sumariamente sobre esse movimento religioso no país, realçando sua

expansão demográfica e sua diversidade interna.

Nascido nos Estados Unidos no começo do século XX, o pentecostalismo

distingue-se teologicamente do protestantismo histórico por seu firme propósito de

resgatar e reviver crenças e práticas do cristianismo primitivo relatadas na Bíblia.

Para tanto, prega a contemporaneidade da manifestação dos dons do Espírito

Santo, entre os quais destaca os dons de línguas, cura e discernimento de

espíritos. Avessos à erudição e ao liberalismo teológico, os pentecostais creem

que Deus continua curando enfermos, expulsando demônios, realizando milagres,

concedendo bênçãos e dons espirituais a seus leais servos.

De cunho popular, taumatúrgico e mágico, essa religião cristã encontrou

solo fértil no Brasil, em que completará um século de existência em 2010 e no

qual cresce aceleradamente desde os anos 50. Sua expansão acelera-se mais

ainda a partir da década de 80, momento em que esses religiosos passaram a

conquistar, em parte como efeito do próprio recrudescimento de seu avanço

demográfico, crescente visibilidade pública, espaço na mídia eletrônica e, para

surpresa geral, poder político e partidário.

Os pentecostais somavam 3,9 milhões em 1980; 8,8 milhões em 1991 e 18

milhões em 2000, conforme os Censos Demográficos do IBGE. Desde 1980,

dobram de tamanho a cada década. Em 2007, o Instituto Datafolha divulgou os

seguintes dados de um survey que realizou sobre religião no Brasil com

brasileiros acima de 16 anos: os católicos caíram para 64% da população; os

1 Doutor em sociologia pela USP e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS.

Page 114: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 113

evangélicos2

Presente em todo o território nacional, o pentecostalismo cresce

majoritariamente nos bairros e periferias pobres das regiões metropolitanas.

Cresce na pobreza, mas nem por isso deixa de dispor de uma parcela de

seguidores de classe média e mesmo média alta. Comparados à média da

população brasileira, os pentecostais congregam mais mulheres que homens,

mais crianças e adolescentes que adultos, mais negros, pardos e indígenas do

que brancos, detêm maior proporção de pessoas com cursos de alfabetização de

adultos, antigo primário e primeiro grau; ocupam mais empregos domésticos com

e sem carteira de trabalho e, em sua maioria, auferem até três salários mínimos

de renda mensal (Jacob, 2003: 39-69).

subiram para 22%, dos quais 17% eram pentecostais e 5%

protestantes. Atualmente, portanto, são mais de 40 milhões de evangélicos no

país, sendo quase 80% deles pentecostais. 17% da população brasileira

representam cerca de 32 milhões de pessoas, o que faz do Brasil o maior país

pentecostal do planeta em números absolutos. A título de comparação, segundo

pesquisa do Pew Research Center, os EUA, berço desse movimento religioso,

tinham apenas 5,8 milhões de pentecostais em 2006.

Existem centenas de igrejas pentecostais no país. Contudo, não obstante a

fragmentação institucional, seus adeptos não estão dispersos, pulverizados por

uma infinidade de igrejas. Conforme o Censo Demográfico de 2000, cinco

denominações pentecostais concentram aproximadamente 85% de seus fiéis:

Assembleia de Deus (8.418.154 adeptos), Congregação Cristã no Brasil,

(2.489.079), Universal do Reino de Deus (2.101.884), Evangelho Quadrangular

(1.318.812) e Deus é Amor (774.827). Tal concentração, porém, não resulta em

qualquer tipo de homogeneidade, dado que esse movimento religioso apresenta

elevada diversidade interna nos planos doutrinário, organizacional e

comportamental. Isso, por sua vez, resulta em variegadas estratégias

proselitistas, diferentes públicos-alvo, distintas relações com os poderes públicos,

com a política partidária e com os meios de comunicação de massa.

2 Na América Latina, o termo evangélico abrange as igrejas cristãs oriundas da Reforma Protestante europeia do século XVI e de suas cisões e correntes posteriores. No Brasil, o termo designa, conjuntamente, as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) e todas as pentecostais, destacando-se Congregação Cristã no Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor e Universal do Reino de Deus.

Page 115: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

114 Ricardo Mariano

Atuação política

O declínio católico, a expansão evangélica, a relação distinta que esses

grupos religiosos mantiveram com a ditadura militar e a política de segurança

nacional e, em seguida, com o movimento pela redemocratização do país

contribuíram para alterar as relações destes grupos religiosos entre si e com o

Estado. Nesse período, a Igreja Católica, ao opor-se à ditadura militar e defender

os direitos humanos a partir de 1968, perdeu, como ator religioso, a exclusividade

na relação e no estabelecimento de diálogo e negociação com os dirigentes

políticos e estatais. Os militares aproximaram-se dos evangélicos, sendo que

muitos de seus pastores realizaram cursos na Escola Superior de Guerra. Mesmo

no auge da repressão, os governos militares, já privados do apoio católico,

continuaram logrando manter o apoio – com exceção da cúpula luterana – de

líderes protestantes e pentecostais. Em parte, isso ocorreu em razão de que

esses religiosos, em sua maioria, eram visceralmente anticomunistas e, na

condição de minoria discriminada, almejavam reconhecimento social, apoio

governamental e recursos públicos.

Até o final dos anos 70, os espaços legítimos de atuação dos crentes,

segundo a visão predominante nesse meio religioso, restringiam-se, em boa

medida, à igreja, à casa e ao trabalho (Brandão, 1980). Para combater a

corrupção mundana e manter-se passo a passo no caminho estreito da salvação,

apregoava o lema “crente não se mete em política”, já que percebia a política

como diabólica e corruptora. Em suma, o pentecostalismo mantinha um

comportamento já tradicional de não participação na política partidária. Em razão

disso, a literatura acadêmica da época considerava-o passivo, alienado, alienante

e conservador no campo político (D’Epinay, 1970; Camargo, 1973). Classificação

que levava em conta igualmente sua oposição religiosa ao comunismo (por receio

de perseguição religiosa), seu apoio ao regime militar e sua tendência a votar nos

candidatos do governo. E, em contraste, muitos pesquisadores consideravam a

resistência da esquerda católica à ditadura como modelo exemplar de atuação

política para os demais grupos religiosos, os quais, cumpre observar, naquele

contexto detinham menor condição de opor-se ao regime militar por não contar

com a tradição, com o poder eclesiástico, com o peso demográfico, com a

Page 116: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 115

legitimidade institucional e religiosa da Igreja Católica e nem muito menos com o

apoio que esta angariava no exterior.

Algumas iniciativas individuais, avulsas e isoladas, dão início à participação

de pentecostais na política partidária nas eleições de 1978, momento em que

ainda prevaleciam análises e avaliações acadêmicas enfatizando sua alienação

política (Alves, 1978). Aos poucos esse grupo religioso foi abrindo-se à

participação política. Em maio de 1981, o Mensageiro da Paz, jornal oficial da

Assembleia de Deus, por exemplo, permitiu aos pastores candidatarem-se desde

que se licenciassem do pastorado (Baptista, 2009). Nas eleições municipais de

1982, observa-se a ampliação do número de candidaturas de pentecostais,

fenômeno registrado pontualmente por pesquisas empíricas realizadas por

Soares (1983; 1985), Stoll (1983) e Kliewer (1982), que contestaram a pecha de

alienados atribuída preconceituosamente a esses religiosos pela literatura

acadêmica anterior. Até o início dos anos 80, portanto, os pentecostais brasileiros

se autoexcluíram deliberada e majoritariamente da política partidária. Foram

poucas as exceções, sendo a principal delas a eleição de dois parlamentares

apoiados oficialmente pela Igreja O Brasil para Cristo nos anos 60. No pleito de

1982, a participação política pentecostal não foi dirigida por lideranças

denominacionais e nem contou com seu apoio oficial.

Surpreendentemente, em meados da década de 80 grandes igrejas

pentecostais brasileiras romperam com sua tradição quietista, ingressando de

modo organizado no jogo político partidário nacional em defesa de seus

interesses corporativos e de seus ideais e valores religiosos. Adotaram um novo

lema para mobilizar os fiéis: “irmão vota em irmão”. Lema que intitulou livro do

evangélico Josué Sylvestre (1986), escrito com o objetivo de propor e defender a

guinada ideológica e política de seus irmãos de fé na Constituinte. O marco dessa

mudança ocorreu justamente na Assembleia Constituinte, quando a cúpula

eclesiástica da Assembleia de Deus, temendo que a nova Carta Magna

restringisse sua liberdade religiosa e restabelecesse a Igreja Católica como

religião oficial do Estado – boatos alarmistas e persecutórios que seus próprios

dirigentes e membros contribuíram para disseminar por todo o país –, mobilizou

suas bases pastorais para apoiar o lançamento de candidaturas oficiais na

maioria dos estados brasileiros, estratégia que conseguiu eleger 13 deputados

Page 117: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

116 Ricardo Mariano

federais (Mariano e Pierucci, 1992). Em razão do esforço eleitoral da Assembleia

de Deus e de outras denominações, da legislatura de 1982 para a de 1986 o

número de deputados federais pentecostais saltou de dois para 18, crescimento

de 900% de sua representação no Congresso Nacional, que, somados aos 14

deputados protestantes eleitos, resultou numa bancada de 32 evangélicos,

fenômeno que chamou a atenção da imprensa e de sociólogos da religião

(Pierucci, 1989).

Para dimensionar o sucesso pentecostal no pleito de 1986, cumpre

observar que, entre 1910 e 1982, esses religiosos haviam eleito apenas cinco

deputados federais. A representação política dos evangélicos no Congresso

Nacional até então fora efetuada por presbiterianos (36 deputados federais),

batistas (25), luteranos (15), congregacionais (9) e metodistas (9), concentrados

nas regiões Sudeste e Sul, em especial nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro

e Rio Grande do Sul (Freston, 1994, p. 30). Na legislatura de 1987 a 1990,

ocorreu, portanto, uma mudança radical na representação política dos

evangélicos na Câmara Federal: os parlamentares pentecostais tornaram-se

maioria, assumindo, de forma inédita e inesperada, o protagonismo político no

campo evangélico. Protagonismo que se manteve nas legislaturas seguintes, sob

a liderança das igrejas Assembleia de Deus e Universal do Reino de Deus.

Mudança tão brusca demandou, por parte de seus responsáveis,

considerável esforço para justificá-la. Pastores e parlamentares pentecostais

justificaram o ingresso na política partidária por ocasião da Constituinte, alegando,

além do propósito de assegurar sua liberdade religiosa e de impedir que a Igreja

Católica voltasse à condição de religião oficial do Estado, que grupos adversários,

como homossexuais, feministas, macumbeiros e católicos entre outros,

defenderiam seus interesses por ocasião da elaboração da nova Carta Magna do

país (Sylvestre, 1986). Por isso, sua presença e participação na Constituinte era

crucial, para combater, sobretudo, a descriminalização do aborto e do consumo

de drogas, a união civil de homossexuais e a imoralidade, defender a moral cristã,

a família, os bons costumes, a liberdade religiosa e de culto e inserir símbolos

religiosos (Bíblia) na nova Constituição. Tratava-se, portanto, de ingressar na

política partidária para defender sua liberdade religiosa e a moralidade cristã

tradicional e para fazer oposição direta a seus adversários religiosos e laicos.

Page 118: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 117

Apesar de sua ênfase discursiva na moralização da política, vários

parlamentares evangélicos, unidos ao bloco conservador denominado Centrão,

protagonizaram escândalos variados de fisiologismo e malversação de recursos

públicos, entre os quais a venda de votos para assegurar mandato de cinco anos

a José Sarney, em troca de emissoras de rádio e recursos financeiros a fundo

perdido (Pierucci, 1989). Apesar de majoritariamente associada ao Centrão, a

bancada evangélica contava com uma minoria de parlamentares politicamente

progressista, vinculada, em sua maior parte, a denominações protestantes

tradicionais.

Quanto ao perfil dos políticos pentecostais no Congresso Nacional nas

últimas duas décadas, observa-se que parte considerável deles é composta por

proprietários de veículos de comunicação, pastores e bispos, filhos e genros de

pastores, cantores gospel, radialistas, televangelistas e empresários (Freston,

1994; Baptista, 2007). Cerca de metade deles é candidato oficial das igrejas, a

maioria dos quais da Assembleia de Deus, da Universal do Reino de Deus e da

Evangelho Quadrangular, cujos candidatos são escolhidos e apoiados pela

denominação. Isto contribui para reforçar o caráter corporativista de sua atuação

parlamentar e para diminuir sua autonomia política em relação às lideranças

eclesiásticas, que, assim, podem exigir a defesa de seus interesses institucionais

e exercer influência e tutela sobre seus mandatos.

Apesar do crescente empenho eleitoral desses religiosos, cabe observar

que a Congregação Cristã no Brasil e Deus é Amor, duas das maiores

denominações pentecostais do país, mantêm-se afastadas da política partidária.

Não apoiam candidaturas ao legislativo e aos cargos do executivo nem permitem

que seus adeptos se lancem como candidatos. De modo semelhante, muitos

pastores e fiéis da Assembleia de Deus e de outras igrejas pentecostais mantêm-

se avessos à mobilização política de suas cúpulas eclesiásticas, seja por princípio

religioso ou ético, seja por opção política, seja por temerem eventuais efeitos

deletérios da participação na política partidária sobre sua denominação (Burity,

2005). Os vários casos de corrupção denunciados nas últimas duas décadas

envolvendo parlamentares evangélicos, majoritariamente pentecostais, reforçam,

para muitos crentes, o acerto da posição pentecostal tradicional de separar

rigorosamente as fronteiras entre igreja e política. Por essas razões, revela-se

Page 119: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

118 Ricardo Mariano

superestimada a suposta obediência eleitoral do rebanho pentecostal. Isto é, há

muito de mistificação na ideia de que o rebanho pentecostal converte-se

automaticamente a cada eleição em rebanho eleitoral. Ideia disseminada por

líderes pentecostais quando negociam o apoio eleitoral de suas denominações a

políticos e partidos diversos, e reproduzida frequentemente por órgãos da

imprensa. Mas o fato é que muitos fiéis e pastores continuam resistindo a aderir

às orientações eleitorais das lideranças pastorais. Tanto que, vinte anos depois

do ingresso da Assembleia de Deus na política partidária, uma das tarefas

principais do Conselho Político Nacional da Convenção Geral das Assembleias de

Deus no Brasil (CGADB) continua sendo a de “promover a conscientização

política dos membros das Assembleias de Deus” sobre a necessidade de eleger

parlamentares assembleianos.

Não obstante o apolitismo de certas igrejas e da resistência de muitos

pastores e fiéis de acatar as orientações políticas e eleitorais de suas lideranças,

a acentuada expansão demográfica dos pentecostais, seu recente ativismo

político, seu relativo sucesso eleitoral e sua notória disposição de participar nos

poderes públicos acabaram por tornar esses religiosos atores relevantes no jogo

político local e nacional nas últimas duas décadas. De modo que já não é mais

possível compreender a vida política e a democracia brasileira sem considerar a

atuação política dos evangélicos, especialmente dos pentecostais, não somente

por seu peso demográfico e eleitoral, mas, sobretudo, porque algumas grandes

igrejas pentecostais, como Assembleia de Deus e Universal do Reino de Deus,

participam ativamente das eleições majoritárias desde a redemocratização do

país. Para tanto, apoiam ou rejeitam candidatos e, às vezes, com candidaturas

próprias, caso, por exemplo, de Marcelo Crivella (PRB/RJ) ao governo do Estado

e à prefeitura do Rio de Janeiro. A atuação na esfera legislativa se dá inclusive

por meio da constituição de frentes parlamentares e de partidos políticos

evangélicos, como o Partido Republicano Brasileiro (PRB), criado e liderado por

membros e políticos da Igreja Universal e o Partido Social Cristão (PSC), que,

desde 2005, estabeleceu parceria com as Assembleias de Deus no Brasil.

Diverso do que ocorreu nas eleições para a Constituinte duas décadas

atrás, hoje não causam maiores surpresas a quem quer que seja a mobilização

política pentecostal, os invariáveis apoios eleitorais que concedem a candidatos à

Page 120: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 119

presidência da República e a governos estaduais e municipais, nem suas alianças

e barganhas com autoridades governamentais. A cada pleito, sua atividade

eleitoral é tida como certa, evidente, inescapável. Por sua onipresença e

crescente relevância, tornou-se pauta obrigatória da grande imprensa. No

conjunto, não é mais vista necessariamente como algo insólito, surpreendente,

“folclórico”, inócuo, ilegítimo. Embora seja objeto de preconceitos, cause certos

temores (de irrupção deletéria, por exemplo, de um fundamentalismo evangélico

na democracia brasileira) e desagrade abertamente a muitos, especialmente aos

defensores mais radicais da laicidade estatal, para os quais toda e qualquer

religião deve ficar confinada à vida privada ou à particularidade das consciências

individuais, a participação pentecostal na política partidária já foi, pode-se dizer,

“naturalizada” na opinião pública. É cada vez mais encarada, portanto, como algo

que faz parte da dinâmica da democracia brasileira e como recurso que compõe

parte da ação estratégica desse grupo religioso minoritário em solo nacional em

busca de poder, recursos, privilégios, reconhecimento e legitimidade, frente a um

mercado religioso competitivo e dominado por uma religião hegemônica.

A cultura política brasileira tem contribuído decisivamente para naturalizar

e, o que é ainda mais importante, reforçar o ativismo político pentecostal. Basta

observar a enorme receptividade que esses religiosos, em seus distintos

desígnios e projetos políticos, encontram por parte dos candidatos, partidos e

governantes de todas as colorações ideológicas. A cada eleição, o apoio eleitoral

do rebanho evangélico é disputado avidamente por candidatos a cargos

legislativos e executivos, incluindo, invariavelmente, a maioria dos que concorrem

à presidência da República, fenômeno notório desde o início da

redemocratização, isto é, desde as eleições presidenciais de 1989 (Mariano e

Pierucci, 1992). Os governantes, por sua vez, cobram apoio político a seus

mandatos em troca da concessão de recursos públicos para emendas de

parlamentares evangélicos, da implementação de políticas públicas em parceria

com igrejas, da modificação da legislação para beneficiá-las, como no caso do

novo Código Civil. Assim, o crescente ativismo político pentecostal não enfrenta

maiores obstáculos no cotidiano da democracia nacional. Pelo contrário, é

sistematicamente requerido, estimulado, cobrado e barganhado por considerável

parte da classe política brasileira, o que tem como efeito imediato reforçar,

Page 121: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

120 Ricardo Mariano

incrementar e legitimar a presença, a participação, a influência, o poder de

pressão e de barganha desses religiosos na esfera pública, espaço no qual

também atuam intensamente por meio de suas emissoras e redes de rádio e tevê,

de jornais, revistas, gravadoras e mercado editorial. A desprivatização política

desse movimento religioso, portanto, não conta tão somente com a forte

disposição de líderes eclesiásticos pentecostais para participar da política. Vale-

se também do denodado empenho de candidatos, partidos e governantes para

enredá-los no jogo político-partidário, nas relações de clientelismo, enfim, no

sistema de representação político brasileiro.

Um exemplo disso foi a campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores à

presidência da República em 2006 estabelecer como uma de suas “prioridades” a

conquista do voto evangélico, eleitorado religioso que foi assediado também por

outros candidatos, como Geraldo Alckmin (PSDB/SP), mas com pouca eficácia

(Mariano, Hoff, Dantas, 2006). Empenhada na realização de tal objetivo, a

campanha petista não poupou esforços: Luiz Inácio Lula da Silva participou de

reuniões e eventos públicos com evangélicos, contou com comitês de campanha

destinados exclusivamente a esse segmento religioso, pediu votos e orações

desses religiosos e prometeu estabelecer um “canal direto” com a comunidade

evangélica. Em carta enviada aos evangélicos, Lula prometeu ampliar ainda as

parcerias na área social do governo federal com suas denominações.3 Durante

encontro com 30 cantores evangélicos no Palácio Alvorada já no segundo turno –

evento organizado pelo bispo e senador Marcello Crivella (PRB/RJ), sobrinho do

líder da Igreja Universal do Reino de Deus, para manifestar apoio à sua reeleição

–, Lula afirmou: “Quis Deus que fosse esse, que era chamado de demônio, que

fosse lá sancionar o Código Civil que permite total liberdade de religião neste

país”.4

3 http://politica.dgabc.com.br/materia.asp?materia=546212

Conforme a propaganda eleitoral do site do Partido dos Trabalhadores, o

Governo Lula “sancionou a lei que garante a liberdade de culto no país”, em

referência direta à alteração do Código Civil – proposta e defendida pela Frente

Parlamentar Evangélica –, que alterou a personalidade jurídica das organizações

religiosas, deixando de classificá-las como associações e, assim, livrando-as da

4 Folha de S. Paulo, 10/10/2006.

Page 122: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 121

imposição de novas exigências legais5

A campanha petista visava igualmente superar de vez as resistências e

forte oposição manifestas pelos pentecostais ao PT e a seu “eterno” candidato

presidencial em eleições passadas, sobretudo nos pleitos de 1989, 1994 e 1998,

ocasiões em que o Partido dos Trabalhadores e Lula foram severamente

demonizados e objeto de preconceitos, discriminações e temores diversos por

parte desse grupo religioso. Em 2006, a campanha petista surtiu efeito e venceu

tais resistências, ampliando sua base de apoio político nos meios pentecostais. O

percentual de evangélicos com intenção de votar no petista no primeiro turno

cresceu 59% entre setembro de 2002 e julho de 2006, segundo o Datafolha.

(Mariano, 2006). Ao longo da campanha

eleitoral de 2006, a sanção presidencial do Projeto de Lei que alterou o Código

Civil foi acionada sistematicamente por Lula para persuadir lideranças

evangélicas sobre os benefícios que auferiram em seu primeiro mandato e, com

isso, convencê-las do potencial proveito de seu segundo mandato para elas.

Entre tais benefícios auferidos, reportagem do jornal Folha de S. Paulo, de 18 de

junho de 2006, revela que o Governo Lula, tal como vários governos anteriores,

concedeu emissoras de rádio e tevê para igrejas e parlamentares evangélicos.

6

Entre os pentecostais, a intenção de voto em Lula saltou de 27% para 43%,

subindo para 52% com o início do horário eleitoral gratuito no rádio e na tevê7

Num Estado democrático de direito, uma das formas de resolver problemas

legais e mediar conflitos consiste em apelar para o judiciário. No Brasil, os cultos

afro-brasileiros, por exemplo, recorrem cada vez com mais frequência ao

judiciário para denunciar pessoas e igrejas pentecostais que os caluniam,

demonizam e, em certos casos, invadem seus terreiros. Além de recorrer ao

judiciário, num contexto pluralista e de acirrada concorrência, os grupos religiosos

dependem, muitas vezes, de sua atuação política – seja por meio da pressão e do

lobby, seja mediante a realização de alianças, de compromissos, da participação

direta na política partidária e até de confrontos com representantes do legislativo

(Mariano, Hoff, Dantas, 2006).

5 http://www.lulapresidente.org.br/noticia.php?codico=504 6 Folha de S. Paulo, 18/8/2006. 7http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/primeirocaderno/politica/Orfaos+de+Garotinho+evangelicos+dividem-se+entre+Lula+e+Alckmin, 60,3891265.html

Page 123: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

122 Ricardo Mariano

e do executivo – para defender seus interesses institucionais e religiosos, seus

valores morais, suas práticas rituais, seus direitos e sua liberdade religiosa.

Para os grupos evangélicos, a atuação política se torna mais premente à

medida que a regulação jurídico-política ou estatal tem avançado célere sobre

áreas da esfera privada, áreas sobre as quais pretendem evangelizar e

homogeneizar moralmente segundo os ditames bíblicos, mas que, à sua revelia e

contra sua vontade, podem assumir configurações completamente distintas de

suas doutrinas. Isso ocorre toda vez que o executivo e o legislativo propõem a

adoção de políticas públicas ou a alteração da legislação referente, por exemplo,

à distribuição de métodos anticoncepcionais (inclusive nas escolas), ao controle

da natalidade, à descriminalização e legalização do aborto, à união civil de

pessoas do mesmo sexo, ao combate à homofobia, à permissão do uso de

células embrionárias em pesquisas científicas, à aprovação da pena de morte etc.

Atualmente, grande parte dos dirigentes evangélicos parece ter adquirido plena

consciência da importância do uso do poder político como instrumento na defesa

de seus interesses, valores e moralidade. Tal compreensão de como se

processam as relações de poder numa democracia tem servido igualmente para

induzir e justificar seu paulatino enraizamento, sua permanência e seu ativismo no

jogo político e na vida pública. Daí que, a despeito do desgaste de imagem das

igrejas pentecostais decorrente de denúncias e escândalos8

Avanços e tropeços

envolvendo seus

representantes políticos desde a Constituinte, é improvável que propostas

apolíticas, quietistas e de privatização do religioso readquiram a supremacia

ideológica nas cúpulas das denominações pentecostais e revertam seu crescente

ativismo político.

Nas duas décadas seguintes à Constituinte, o conjunto dos evangélicos,

sob a liderança dos pentecostais, ampliou sua representação política no

Congresso Nacional, mas não de forma linear, já que tiveram altos e baixos no 8 Ocorreram escândalos envolvendo parlamentares evangélicos na Constituinte, na CPI dos Anões do Orçamento e, mais recentemente, na CPMI das Sanguessugas, que denunciou 26 deputados e um senador evangélicos como participantes da máfia das sanguessugas, atingindo quase a metade da bancada evangélica no Congresso Nacional.

Page 124: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 123

período, em razão principalmente da irrupção de casos de corrupção. Em 1990,

por conta dos escândalos de fisiologismo e corrupção envolvendo diversos

parlamentares evangélicos durante a Constituinte e pela menor arregimentação e

mobilização pré-eleitoral da Assembleia de Deus, a bancada evangélica caiu para

23 deputados federais. Em 1994, elegeram-se 30, sendo 26 deputados e 4

senadores. Em 1998, foram 49 parlamentares. Em 2002, alcançaram 59

deputados federais e quatro senadores, a maior bancada evangélica formada até

então, dobrando o número de parlamentares eleitos na Constituinte de 1988.

Em 2006, a expectativa geral dos evangélicos era a de ampliar ainda mais

o número de seus representantes na Câmara dos Deputados. Mas o escândalo

das sanguessugas – denúncias de superfaturamento e distribuição de propinas na

compra de ambulâncias por prefeituras –, eclodido em plena campanha política,

prejudicou fortemente seu desempenho eleitoral. Em 10 de agosto de 2006, a

CPMI das Sanguessugas aprovou o relatório recomendando a abertura de

processo de cassação de 26 deputados e um senador evangélicos, o que

representava quase a metade da Frente Parlamentar Evangélica (Mariano, Hoff e

Dantas, 2006a). Para dilapidar ainda mais sua reputação política e religiosa nesse

episódio, alguns parlamentares evangélicos foram denunciados como os

principais artífices da máfia das sanguessugas.

Esse grave incidente feriu o elevado orgulho moral desse grupo religioso

minoritário no país, que se julga detentor de uma ética superior porque derivada,

a seu ver, de sua união exclusiva ou monopólica com o Deus verdadeiro. Tal

autoavaliação moral sempre constituiu poderosa bandeira eleitoral brandida por

candidatos evangélicos para legitimar seu ingresso e participação na política

partidária e para conquistar a preferência eleitoral de seus irmãos de fé, uma vez

que seu projeto político consiste justamente em evangelizar e moralizar a política

partidária mediante a eleição de seus “homens de Deus”. Diante do escândalo,

tamanha autoestima sectária resultou numa espécie de ressaca moral nesse meio

religioso e, no plano eleitoral, num impacto negativo para as pretensões políticas

de candidatos e algumas cúpulas eclesiásticas nas eleições de 2006.

Os fiéis não perdoaram seus representantes políticos denunciados. Dos 60

membros da Frente Parlamentar Evangélica, somente 15 foram reeleitos.

Nenhum dos acusados pela CPMI conseguiu reeleger-se. As igrejas mais

Page 125: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

124 Ricardo Mariano

atingidas pelo escândalo foram justamente aquelas dotadas de ativismo político

mais destacado e maior êxito eleitoral: Assembleia de Deus e Universal do Reino

de Deus. Dos 22 deputados federais da Assembleia de Deus, 10 foram acusados

de participar da máfia das sanguessugas. Dos 16 deputados da Universal, 14

foram denunciados. Como resultado, a Assembleia caiu de 22 para 16 deputados.

A Universal declinou de 16 para 7 deputados.9

Universal do Reino de Deus e Assembleia de Deus reagiram de formas

distintas para lidar com a crise desencadeada pelas denúncias. A Universal,

escaldada por vasta série de escândalos políticos, empresariais e religiosos

pregressos, afastou imediatamente os parlamentares denunciados e retirou-lhes

seu apoio eleitoral. Já a Assembleia de Deus, apesar de instaurar sindicância

interna para apurar os fatos, insistiu em apoiar oficialmente vários políticos

No cômputo final, o tamanho da

bancada caiu de 60 para 49 deputados federais, número que inclui os suplentes

que posteriormente assumiram mandatos. Com isso, foram eleitos 16 deputados

da Assembleia de Deus, 11 batistas, sete da Universal, três luteranos (um dos

quais, o gaúcho Júlio Redecker, morreu num acidente aéreo), dois da Maranata,

dois da Sara Nossa Terra, dois da Internacional da Graça de Deus, um da

Comunidade do Carisma, um da Renascer em Cristo, um presbiteriano e um da

Cristã Evangélica. Nesta legislatura, ao todo a bancada evangélica no Congresso

Nacional é composta por 34 parlamentares pentecostais e 14 protestantes,

vinculados a 13 denominações e a 12 partidos políticos, sendo maior a

participação do PMDB, com nove integrantes, seguido pelo PR, com sete, pelo

DEM, com seis, pelo PSC, com cinco, e pelo PT, PRB e PTB, com três cada,

entre outras agremiações partidárias. Dos 49 eleitos, cinco são do sexo feminino.

Quanto a seu perfil social e profissional, cerca de 80% deles possuem curso

superior completo e seis superior incompleto, sendo que 12 formaram-se em

teologia e nove efetuaram mais de um curso superior. Quinze são empresários e

doze trabalham com mídia eletrônica como apresentadores de programas de

rádio e televisão, cantores e compositores e funcionários de emissoras

evangélicas.

9 A derrocada eleitoral da Universal em 2006 sob o impacto do escândalo das sanguessugas constitui forte inflexão em sua meteórica ascensão política. Em 1986, elegeu um deputado federal. Em 1990, foram três. Quatro anos depois, seis. Em 1998, 17 deputados federais, sendo 14 da própria igreja. Em 2002, elegeu 16 deputados federais e um senador (Oro, 2003, p. 53-54).

Page 126: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 125

acusados pela CPMI. O presidente do Conselho Político Nacional da CGADB,

pastor Ronaldo Fonseca, afirmou que sete denunciados da igreja eram inocentes

e julgou que sua acusação constituía uma jogada de seus adversários políticos,

visando reduzir o tamanho da bancada evangélica para facilitar a aprovação de

projetos polêmicos, como a descriminalização do aborto.10

O escândalo suscitou críticas atrozes nos meios evangélicos, como as do

pastor Ricardo Gondim, líder da Assembleia de Deus Betesda, segundo o qual “o

Brasil descobriu que tem lobos vestidos de pastores”.

A solução adotada

pelo comando político assembleiano, portanto, foi lançar mão de uma tese

conspiratória e persecutória para lidar com o problema e tentar abafar o caso no

interior da denominação. A decisão tomada, além de pôr sob suspeita a própria

autoridade moral da liderança política da denominação e de demonstrar sua

inabilidade para atuar como relações públicas e proteger a imagem da igreja, não

surtiu os efeitos desejados, uma vez que o eleitorado assembleiano decidiu punir

nas urnas os candidatos da igreja denunciados pela CMPI. Coube aos fiéis e

eleitores assembleianos estabelecerem uma barreira ética aos candidatos

denunciados da denominação.

11

Frente Parlamentar Evangélica

No artigo, Gondim

defendeu ser preciso realizar uma “reforma ética entre os evangélicos”. Nesse

intento, admoestou os líderes evangélicos a não “permanecerem de braços

cruzados, corporativamente defendendo meliantes fantasiados de sacerdotes”.

Como estratégia para minimizar os efeitos deletérios sobre seus

representantes parlamentares e suas denominações em decorrência das

gravíssimas denúncias da CPMI contra metade da bancada evangélica, bispo

Robson Rodovalho (DEM/DF), líder da Sara Nossa Terra, logo após sua eleição a

deputado federal em 2006 ventilou a proposta de substituir a Frente Parlamentar

Evangélica pela criação de uma frente parlamentar cristã, incluindo os políticos

católicos, proposta que não vingou.12

10 http://www.congressoemfoco.com.br/Noticia.aspx?id=10539

A Frente Parlamentar Evangélica foi

11 http://www.alcnoticias.org/articulo.asp?artCode=4669&lanCode=3 12 http://congressoemfoco.ig.com.br/Noticia.aspx?id=10542

Page 127: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

126 Ricardo Mariano

mantida na atual legislatura, sendo sua diretoria substituída completamente, já

que seu presidente anterior (Adelor Vieira) e três vice-presidentes não

conseguiram se reeleger, sugados ralo abaixo pelas acusações da CPMI. A

Frente Parlamentar saiu fragilizada do escândalo das sanguessugas. Para sua

presidência no biênio 2007/2008, foi eleito, por unanimidade, o bispo Manoel

Ferreira, líder da Convenção Nacional de Madureira das Assembleias de Deus

(Conamad), em 14 de março de 2007. Na gestão seguinte, o vice de Manoel

Ferreira, o deputado assembleiano João Campos (PSDB/GO), assumiu a

presidência da Frente.

Manoel Ferreira (PTB/RJ) e João Campos (PSDB/GO) não perderam

tempo na defesa dos interesses institucionais e corporativos das igrejas

evangélicas. Já no início do mandato afirmaram ter conseguido “junto ao líder do

Governo na Câmara dos Deputados, deputado José Múcio Monteiro (PTB/PE),

negociar acordo para inclusão do Artigo 24 na MPV 335/2006, possibilitando a

regularização dos templos religiosos edificados em áreas públicas da União”.13

A Frente Parlamentar Evangélica, criada em 18 de setembro de 2003, de

caráter suprapartidário e supradenominacional e presente nos estados, celebra

um culto semanal às quartas-feiras e realiza reuniões mensais, nas quais parte de

seus membros discute temas de interesse de suas igrejas, recebe orientação e

articula estratégias coletivas de ação. Para assessorá-la e monitorar os assuntos

do interesse das denominações, a Frente Parlamentar Evangélica criou o Grupo

de Assessoria Parlamentar Evangélica (GAPE), composto por assessores de

deputados evangélicos.

14 Na legislatura passada, o GAPE, que deixou de

funcionar posteriormente, monitorava propostas do governo e projetos de lei, por

exemplo, sobre a união civil de pessoas de mesmo sexo, a descriminalização do

aborto, a lei da biossegurança, o Estatuto da Cidade, os meios de comunicação,

visando orientar a reação e atuação parlamentar dos deputados evangélicos.

Como afirma o deputado João Campos, a Frente tem “como missão influenciar as

políticas públicas do governo, defendendo a sociedade e a família no que diz

respeito à moral e aos bons costumes”.15 Em entrevista16

13 http://joaocampos.com.br/site?pg=materia.php&id=130.

, o Deputado Federal

14 Sobre a Frente Parlamentar Evangélica e o GAPE, ver Baptista (2007). 15 http://www.joaocampos.com.br/site?pg=materia.php&id=111 16 Concedida a meu ex-bolsista de iniciação científica Toty Ypiranga de Souza Dantas.

Page 128: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 127

Adelor Vieira (PMDB/SC), ex-presidente da Frente, enfatiza o papel da entidade:

“Hoje, nenhum projeto de maior envergadura que tenha qualquer indício de

polêmica é levado ao Plenário sem que a Frente Parlamentar Evangélica também

passe a discutir o projeto com as próprias lideranças (partidárias) e com a própria

Mesa Diretora”.

A Frente Parlamentar Evangélica constituía a terceira maior frente

parlamentar do Congresso Nacional na legislatura passada, situação que lhe

conferiu o privilégio até de sabatinar os sete candidatos à presidência da Câmara

dos Deputados, em 27 de setembro de 2005, véspera da eleição de Aldo Rebelo,

sobre temas do aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo e o Estatuto das

Cidades.17

A Frente Parlamentar Evangélica, contudo, não detém o poder de obrigar

seus membros a votar uniformemente e nem se propõe a isso. Na verdade, os

deputados evangélicos tendem a votar de forma relativamente homogênea,

superando sua diversidade partidária e concorrência denominacional, apenas em

votações relativas à defesa da moral cristã e aos interesses corporativos de suas

igrejas. Nos demais casos, seus membros seguem prioritariamente orientação

partidária, as dinâmicas do processo legislativo e acordos políticos, ou razões de

foro íntimo. Apesar de não serem tolhidos pela Frente a votar uniformemente, os

deputados evangélicos são monitorados pelos coordenadores políticos das

denominações (em especial, Assembleia de Deus, Igreja Universal e Evangelho

Quadrangular) e pelas lideranças da Frente Parlamentar. Os que foram eleitos

como representantes oficiais de igrejas, sofrem pressão de suas lideranças

eclesiásticas para exercer mandatos em estrita fidelidade às crenças e aos

valores religiosos e interesses institucionais de suas denominações. Eles,

portanto, não seguem apenas seus princípios religiosos quando está em pauta a

votação de projetos que envolvam a moralidade cristã tradicional e os interesses

corporativos de suas igrejas. Nesses casos, além da orientação de seus partidos,

das injunções do Governo Federal e da pressão de grupos rivais (como

feministas, homossexuais, das áreas da saúde, ciência, educação, que se

Tamanho poder da Frente Parlamentar facilitou à sua liderança

também o acesso a ministros e ao próprio presidente da República.

17 http://www.adelorvieira.com.br/index.php?pag=ver_noticia&codigo=220. Em 21 de março de 2007, o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arlindo Chinaglia, participou de culto da Frente Parlamentar Evangélica.

Page 129: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

128 Ricardo Mariano

orientam por argumentos e valores laicistas), eles são invariavelmente

submetidos a forte monitoramento e controle por parte dos dirigentes eclesiásticos

que os selecionaram e apoiaram como candidatos oficiais e dos membros da

Frente Parlamentar Evangélica ou dos que compartilham de sua identidade

religiosa no parlamento. Mais que isso. Para tentar reassegurar futuramente o

apoio oficial da denominação e a própria reeleição, precisam fazer jus à confiança

neles depositada e à autoridade que lhes foi delegada, necessitando, portanto,

mostrar serviço a seus padrinhos políticos e cabos eleitorais e comprovar sua

intransigência na defesa do Evangelho, da família, da moral e dos bons costumes.

Decorre disso, em parte, o elevado conservadorismo moral e a radicalidade de

alguns deputados evangélicos na defesa de certas bandeiras corporativas.

Seguem, abaixo, os dois principais exemplos denominacionais de atuação política

corporativista.

Corporativismo

É conhecida a disciplina eleitoral e política dos pastores da Igreja

Universal. A denominação realiza campanha para que seus membros jovens

obtenham título de eleitor a partir dos 16 anos; faz recenseamento eleitoral de

seus membros; a partir desses dados e da avaliação do quociente eleitoral dos

partidos, os dirigentes políticos regionais e nacionais estabelecem quantos

candidatos ao legislativo a denominação pode lançar em cada município ou

estado; distribui seus candidatos por mais de um partido; publiciza os candidatos

escolhidos nos cultos, nos meios de comunicação da igreja, em seus eventos de

massa e também por meio da distribuição de “santinhos” e da fixação de banners

nos templos; treina os fiéis a votarem em seus candidatos durante os cultos por

meio do uso de urnas eletrônicas disponibilizadas pelo Tribunal Regional Eleitoral

(Oro, 2003). Além disso, emprega artifícios discursivos, santificando os

candidatos oficiais da igreja e demonizando os adversários políticos. Durante

culto ocorrido na sede da Igreja Universal, em Porto Alegre, em 26 de julho de

2006, por exemplo, um pastor, que realizava campanha eleitoral para o bispo

Paulo Roberto (PTB/RS), alertou os fiéis: “Se derem votos aos incrédulos, um

deputado endemoniado vai prejudicar você”. O alerta maniqueísta não dá margem

Page 130: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 129

a dúvidas: votar no candidato da igreja significa apoiar Deus na luta contra o

Diabo. Caso contrário, os fiéis colaboram com o Diabo, o que implica que eles

terão de arcar com o ônus de contribuir com a eleição de um endemoniado.

A férrea e eficaz disciplina político-partidária da Universal vigorou incólume

enquanto sua coordenação política esteve sob o comando do bispo e deputado

federal Carlos Rodrigues (PL/RJ). Rodrigues mandava e desmandava. Detinha

enorme poder sobre a escolha dos candidatos e sobre os deputados da igreja,

chegando a definir seus partidos, sua votação no parlamento, suas posições

políticas e até os funcionários de seus gabinetes (Baptista, 2009). Ele coordenava

e liderava a bancada com mão de ferro. Dificilmente algo do gênero será

reproduzido por outra igreja pentecostal, e mesmo pela própria Universal depois

da exclusão de Rodrigues da denominação.

De todo modo, a criação, em agosto de 2001, do projeto Cidadania AD

Brasil pela Comissão Política Nacional da CGADB demonstra cabalmente a

tentativa das lideranças eclesiásticas e políticas da denominação de controlar a

atividade parlamentar de seus representantes políticos, medida que tende a

reforçar ainda mais seu corporativismo.18

O documento do projeto Cidadania AD Brasil apresenta justificativas para

sua criação, entre elas, “a crise moral porque passa a nação brasileira,

evidenciada principalmente na programação, quase sempre de baixo nível, da tv

brasileira e demais meios de comunicação”; e a necessidade de “manter a

vigilância na defesa da liberdade religiosa” e a de “neutralizar, enquanto

evangélicos, leis nocivas que venham agredir essa liberdade”. Entre suas

competências, o Conselho Político Nacional trata de: “fornecer uma estrutura de

A tentativa de exercer tal controle e

tutela sobre o mandato de seus representantes políticos não se dá de forma

personalizada, como ocorria na Universal, mas por meio da institucionalização de

um projeto político corporativo. O projeto Cidadania AD Brasil foi criado com o

propósito de ampliar, monitorar e controlar a bancada parlamentar da

denominação. Sua estrutura organizacional é composta pelo Conselho Político

Nacional, pelos Conselhos Políticos das Convenções e Ministérios estaduais e do

Distrito Federal ligados à CGADB, gradação de instâncias que, de certa forma,

dilui um pouco o poder político do Conselho Nacional.

18 Sobre o projeto Cidadania AD Brasil, ver Soares Filho (2006).

Page 131: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

130 Ricardo Mariano

campanha para os candidatos” (oficiais da denominação), “assessorar o

candidato eleito durante o desempenho do seu mandato”, “organizar o Fórum

Nacional de Políticos das Assembleias de Deus”, “coordenar a escolha de um

líder da bancada na Câmara Federal”.

O documento estabelece os “critérios de escolha dos candidatos”. O

candidato oficial da igreja deve “assinar o Termo de Compromisso em que se

explicitarão as obrigações e direitos do interessado”, deve declarar o

“compromisso de posicionar-se intransigentemente contra a prática do aborto, a

legalização da união dita conjugal de pessoas do mesmo sexo e a corrupção de

qualquer natureza” e declarar que “defenderá, constantemente, a liberdade de

culto e outros interesses das Assembleias de Deus e demais igrejas”. O “manual

de orientação para candidatos” é peremptório quanto ao objetivo corporativista do

mandato parlamentar dos políticos assembleianos também, ao estabelecer que

eles devem “defender a igreja e os evangélicos, prioritariamente, tendo em mente

a discriminação com que sempre foram tratados pelos governantes”.

O processo de escolha dos candidatos, reza o documento, deve ser

conduzido da seguinte forma. O pastor deve criar uma comissão local

representativa da igreja, com a incumbência de ouvir os candidatos e, em

seguida, indicar os de sua preferência ao pastor, a quem, por sua vez, cabe

encaminhar os nomes selecionados à Comissão Política Municipal ou à Comissão

Política Estadual. Na prática, as bases de fiéis e pastores detêm pouco poder

decisório, não somente em razão do caciquismo assembleiano, mas também

porque os políticos da denominação levam vantagem sobre os candidatos sem

experiência parlamentar, por conta do critério que considera “candidato nato o

político detentor de mandato” cuja atuação estiver em conformidade com os

critérios de escolha definidos pelos conselhos políticos da CGADB. Da mesma

forma, os filhos e genros de pastores presidentes de ministérios da Assembleia de

Deus, bem como cantores, radialistas, televangelistas e empresários, costumam

ter a preferência para receber a bênção hierárquica da candidatura oficial.

Na campanha eleitoral, os pastores devem seguir as orientações das

comissões políticas estadual e municipal, que, em princípio, os proíbem de usar o

púlpito e os cultos para apresentar propostas eleitorais e os ameaçam de punição

pela Convenção Estadual e pela CGADB em caso de desonrarem o compromisso

Page 132: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 131

com o candidato oficial. Isso significa que os pastores estão proibidos de apoiar

candidaturas avulsas, não oficiais. Nesse quesito, a Assembleia de Deus procura

seguir os passos da Universal, visando reservar, embora com eficácia muito

inferior, o apoio eleitoral de seus pastores exclusivamente aos candidatos oficiais

da igreja.

Seguem, abaixo, alguns exemplos da atuação política corporativista de

parlamentares pentecostais no Congresso Nacional. Antes, porém, cumpre

observar que corporativismo e clientelismo (para não dizer patrimonialismo e

fisiologismo) são práticas políticas tradicionais na cultura política brasileira, e não

prerrogativas dos políticos pentecostais (Machado, 2006, p. 46). Contudo,

corporativismo e clientelismo tendem a ser reforçados pela adoção, por parte da

Assembleia de Deus, da Universal e de outras igrejas, de representação política

acentuadamente corporativista no campo político partidário. Modelo de atuação

política que, como vimos, não é consensual e enfrenta certa rejeição nesse meio

religioso.

O pastor assembleiano e deputado federal Milton Cardias (PTB/RS) apresentou o Projeto de Lei 1794/03, estabelecendo a obrigatoriedade das redes abertas de televisão de veicularem programas religiosos cristãos em horário nobre, por no mínimo três horas diárias.19

Em 5 de maio de 2005, Cardias apresentou a indicação 5078/2005 sugerindo ao Ministério da Educação a inclusão da teoria do criacionismo no currículo (nas aulas de ciências e de história) das escolas de ensino fundamental e médio. Já o deputado pastor Reinaldo (PTB/RS), em 9 de maio de 2006, sugeriu ao Poder Executivo, através da indicação 8897/2006, a distribuição de obras do Novo Testamento nas escolas públicas.

Em entrevista, o ex-deputado federal assembleiano Neuton Lima (PTB/SP), asseverou: “Nós alteramos a lei (do silêncio). O projeto já foi aprovado na Câmara e está (em tramitação) no Senado, incluído aí a permissão do uso da corneta externa para divulgação das atividades religiosas de todas as denominações. Aqui na Câmara já foi aprovada a alteração da lei do silêncio, e eu sou o autor do projeto.” O senador Marcelo Crivella (PRB/RJ) propôs projeto, aprovado no Senado, que dispensa a exigência prévia de Estudo de Impacto de Vizinhança para imóveis destinados a igrejas e templos religiosos, visando mudar a Lei nº 10.257, de 2001, do Estatuto da Cidade. O projeto nº 7.649 de 2006, em tramitação na Câmara

19 http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp270120049993.htm

Page 133: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

132 Ricardo Mariano

dos Deputados, foi rejeitado na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

O projeto Cidadania AD Brasil, além de demonstrar o corporativismo

denominacional e o empenho assembleiano para controlar o mandato de seus

representantes políticos, revela que as motivações e justificativas apresentadas

pela liderança da Assembleia de Deus para participar na política partidária

continuam praticamente as mesmas da época da Constituinte. Isto é,

permanecem insistindo na necessidade de irmão votar em irmão para proteger os

interesses corporativos da igreja, defendê-la das ameaças à liberdade religiosa, à

família e à moral cristã e para moralizar a vida pública. Nos últimos anos, porém,

a ênfase sobre os perigos à sua liberdade cada vez mais tem recaído sobre a

ação do Estado ou sobre mudanças provenientes do ordenamento jurídico e

político. Exemplo emblemático disso foi a reação assembleiana e evangélica à

entrada em vigor do novo Código Civil em janeiro de 2003.

Liberdade religiosa e laicidade

As observações do advogado batista Gilberto Garcia, conselheiro estadual

da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro, nos permitem

compreender, em parte, os insistentes reclamos pentecostais sobre as ameaças à

sua liberdade religiosa levadas a cabo pelo próprio Estado brasileiro:

Há um grande número de líderes evangélicos que gostaria que a Igreja fosse totalmente imune a qualquer interferência do Estado, não estando a organização religiosa submissa a qualquer regramento legal, numa perspectiva de que o Estado não deveria intervir em questões envolvendo a Igreja. Mas também existe um número expressivo de igrejas que não têm conhecimento sobre as questões organizacionais que atinem a Instituição de Fé, e, por isso, necessitamos atuar na conscientização de que, nas questões associativas, tributárias, trabalhistas, criminais, civis, patrimoniais, administrativas, financeiras etc., a Igreja está submissa ao Estado devendo cumprir as regras legais.20

Os pentecostais frequentemente percebem sua liberdade religiosa sob

constante ameaça por parte de iniciativas políticas oriundas dos agentes estatais, 20 http://www.institutojetro.com.br/lendoentrevista.asp

Page 134: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 133

entre outras razões, de um lado, por certo desconhecimento das relações

jurídicas e hierárquicas entre igreja e Estado e suas implicações, de outro, pela

tendência irrefreável de absolutizar o princípio da liberdade religiosa

desconsiderando que toda liberdade numa democracia é necessariamente

regrada pelo direito positivo e, portanto, juridicamente limitada (Blancarte, 2003).

Em parte, por conta de certo desconhecimento jurídico, da absolutização da

liberdade religiosa (uma vez que é ela que permite à igreja realizar os desígnios

divinos) e por colocar seus interesses institucionais acima de quaisquer medidas

estatais e políticas públicas, muitos desses religiosos interpretam como ameaça

direta à sua liberdade religiosa o Estatuto das Cidades (no caso, a lei de Estudo

de Impacto de Vizinhança), o novo Código Civil, a Lei do Silêncio, as políticas de

direitos humanos do Governo Federal para criminalizar a homofobia e certos

dispositivos contidos nas leis de edificação dos templos.

O temor mais recente dos evangélicos em relação à perda de sua liberdade

religiosa – e, no caso em questão, à ampliação de privilégios estatais à Igreja

Católica, o que significa discriminação estatal – envolveu o acordo (contendo 20

artigos) entre a República brasileira e a Santa Sé, assinado pelo presidente Lula

em 13 de novembro de 2008 em audiência no palácio apostólico do Vaticano e,

posteriormente, submetido à tramitação no Congresso Nacional. O texto atende à

velha demanda da CNBB e, mais recentemente, do papa Bento XVI. Entre outros

tópicos, trata do estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, do ensino religioso

nas escolas públicas e da destinação de espaços para templos no território, da

proteção estatal de lugares de culto católicos. Deputados da Frente Parlamentar

Evangélica, contando com o apoio de militantes e grupos laicistas nessa batalha,

manifestaram franca oposição ao acordo. O pastor assembleiano e deputado

Pedro Ribeiro (PMDB-CE), membro da Frente Parlamentar Evangélica, defende

que “o acordo fere a laicidade, a isonomia e a soberania nacional, além da

liberdade religiosa. Com ele, se explicita o reconhecimento do ensino católico nas

salas de aula”, denuncia Ribeiro.21

Apesar de ser vinculado à Frente Parlamentar Evangélica e membro de

uma denominação cuja atuação política corporativista parece ter por objetivos

confessionalizar a política partidária e conquistar o Estado para Cristo, o deputado

21 http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/03/31/e310329131.asp

Page 135: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

134 Ricardo Mariano

pentecostal defende a laicidade estatal. Diante do caso específico em pauta, a

razão de sua manifestação em prol da laicidade é óbvia: impedir o acordo entre

Estado brasileiro e Vaticano em benefício da Igreja Católica. A oportuna

conversão laicista do referido deputado não causa maiores surpresas, já que a

laicidade estatal apregoa o tratamento isonômico do Estado aos diferentes grupos

religiosos sob sua jurisdição, preceito que interessa sobremaneira às religiões

minoritárias, que tentam por todos os meios evitar sua discriminação, sobretudo

recorrendo aos recursos legais à disposição. Por outro lado, porém, o ideal do

Estado laico, oriundo do velho liberalismo político que tanto mobilizou e ainda

mobiliza diversos grupos laicistas, especialmente acadêmicos, não é neutro em

relação a outros valores e interesses, uma vez que a laicidade estatal está ligada

“aos valores da República, da democracia, da tolerância, da liberdade e da

pluralidade” (Blancarte, 2000). De modo que a defesa e afirmação da laicidade

estatal e de seu corolário volta e meia opõe-se frontalmente a diversos valores,

princípios e interesses dos grupos religiosos, sobretudo daqueles agressivamente

proselitistas, antiecumênicos e dotados de pretensões universalistas. Com efeito,

opõe-se radicalmente à confessionalização da política partidária e da esfera

pública. O caráter agonístico do processo de secularização e, em particular da

laicização jurídico-política, em diferentes contextos históricos por si só demonstra

a inexistência de neutralidade axiológica na constituição do Estado laico e na

implementação de políticas públicas laicistas, que ocorrem geralmente às custas

do declínio do poder eclesiástico na esfera pública e, em especial, no ensino

público.

Num Estado democrático de direito, as diferentes agremiações religiosas

detêm, formalmente, o pleno direito a divulgar suas doutrinas religiosas e seus

valores morais, a defender seus interesses institucionais, a vocalizar suas

preferências políticas e a desempenhar certos papéis na esfera pública, entre os

quais sobressai o tradicional papel assistencial. A separação jurídica entre Estado

e Igreja, portanto, não implica necessariamente a privatização do religioso ou a

sua circunscrição à particularidade das consciências privadas nem resulta

automaticamente no impedimento de que ambos colaborem no interesse do bem

comum. Por outro lado, porém, cabe aos agentes do Estado democrático zelar

pelo respeito à tolerância, à liberdade, ao pluralismo, à isonomia no tratamento

Page 136: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 135

governamental concedido aos diferentes grupos religiosos. Para tanto, muitas

vezes ao Estado cumpre evitar que a religião dominante em especial, mas não

somente ela, abuse de seu poder religioso, econômico, midiático e político para

discriminar e perseguir seus concorrentes religiosos ou minorias sexuais, ou,

como ocorre de forma atávica com grupos dotados de pendores fundamentalistas,

integristas e sectários, para tentar impor suas práticas particulares e sua

moralidade estrita e restritiva ao conjunto dos cidadãos. A laicidade estatal visa,

portanto, assegurar a efetividade de práticas e valores democráticos, como a

liberdade, a tolerância e a isonomia no tratamento dos diferentes grupos

religiosos, sem interferir em suas disputas por mercado religioso, a não ser

quando suas ações ultrapassam os limites legais. De modo que o zelo estatal

pelo respeito à tolerância, à liberdade e ao pluralismo – quando exercido

legitimamente em conformidade com os instrumentos jurídico-políticos à sua

disposição – constitui o instrumento central dos Estados democráticos de direito

para assegurar a própria efetividade dessas práticas, valores e preceitos

democráticos.

Na prática, nenhum Estado nacional é neutro em matéria religiosa, muito

menos o brasileiro. Como se sabe, o Estado brasileiro tradicionalmente

apresentou uma série de vínculos com a Igreja Católica, que foi braço religioso e

ideológico do colonialismo português nas terras do Pau-Brasil e religião oficial do

Império, antes de sua separação do Estado com o advento da República. Mesmo

com a separação laicista, nosso Estado jamais promoveu a privatização do

religioso, e ainda perseguiu e discriminou religiões minoritárias, especialmente as

afro-brasileiras. A Constituição de 1934, expressando o fortalecimento

institucional e político da Igreja Católica na República velha e a fragilidade política

do governo Vargas, estabeleceu a “colaboração de interesse público” entre igreja

e Estado no país. Tal dispositivo jurídico fez retroceder a laicidade estatal e

fortaleceu os laços do Estado com a Igreja no período republicano, laço que se

esgarçou somente com o recrudescimento da ditadura militar em 1968.

As relações entre política e religião, da mesma forma, grassaram em

diferentes fases e contextos da vida política nacional. Com o avanço numérico

dos pentecostais e seu ingresso no jogo político partidário, eles, além de

formarem sua própria representação parlamentar, tornaram-se interlocutores,

Page 137: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

136 Ricardo Mariano

aliados, parceiros e cabos eleitorais de políticos profissionais e de governantes de

plantão. A partir da Constituinte de 1988, as alianças e disputas dos

representantes parlamentares desse movimento religioso com os agentes

públicos estatais passaram a ocorrer no próprio interior das instituições políticas

brasileiras, sobretudo legislativas. Eles se unem volta e meia aos representantes

católicos no Congresso Nacional contra projetos de lei que contrariam a moral

cristã tradicional. Frequentemente, ambos enfrentam juntos os grupos, bandeiras,

projetos e políticas públicas laicistas na esfera pública.

O Acordo bilateral e internacional do governo Lula com o Vaticano

assinado em 13 de novembro de 2008, porém, colocou evangélicos e católicos

em lados diametralmente opostos no parlamento. Num primeiro momento, para

tentar impedir a aprovação do Acordo no Congresso Nacional, parlamentares

pentecostais, ironicamente, se lançaram como ardorosos defensores da laicidade.

Laicidade que, várias décadas atrás foi defendida genuinamente por seus

antepassados protestantes em solo nacional, tanto em razão de seu liberalismo

político como, estrategicamente, por seu diminuto tamanho numérico numa nação

então quase inteiramente católica. Em seguida, diante da força política do pleito

católico e de sua provável aprovação no Congresso Nacional, surgiu a iniciativa,

tomada por um parlamentar da Igreja Universal, de recorrer a outro expediente:

lançar um projeto de lei copiando o teor do Acordo católico com o Estado para

beneficiar os evangélicos e, de quebra, demais grupos religiosos. Nomeado Lei

Geral das Religiões, o projeto fia-se na defesa de tratamento isonômico que o

Estado brasileiro, por ser laico, deve conceder aos diferentes grupos religiosos e

na crença de que deputados federais e senadores não teriam coragem política de

discriminar negativamente evangélicos e demais grupos religiosos, opondo-se à

aprovação de seu projeto de lei, cujo conteúdo assemelha-se ao acordado pela

Santa Sé com o governo brasileiro.

Nesta matéria não é a liberdade religiosa dos evangélicos que está sendo

colocada em xeque. A aprovação do Acordo somente com a Igreja Católica

representa uma discriminação estatal, isto é, a concessão de um tratamento

privilegiado pelo Estado ao grupo religioso hegemônico em detrimento dos

demais. O que se verifica neste episódio é que a consolidada situação de

pluralismo religioso no país, de um lado, e a crescente representação política dos

Page 138: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Pentecostais e política no Brasil 137

evangélicos, de outro, colocam sérios obstáculos à continuidade e à consecução

de tratamento discriminatório por parte dos agentes públicos. Pressionados, eles

se vêem constrangidos a rejeitá-lo ou, em caso de aprová-lo, a efetuar medidas

compensatórias. Portanto, é ao princípio da laicidade que recorrem os grupos

religiosos minoritários no Brasil, incluídos os que procuram confessinalizar a

política e a esfera pública, quando se vêem discriminados pelo Estado ou na

iminência de sê-lo. Assim, por vias tortas, colaboram para fortalecer a laicidade

estatal. Por outro lado, seus pleitos (e seu projeto político corporativista) e os da

religião hegemônica neste caso específico contribuem para minimizar a laicidade

estatal ao proporem, por exemplo, a confessionalização da disciplina de ensino

religioso (disciplina que já confronta a laicidade do ensino público). A atuação

política dos pentecostais pode contribuir tanto para favorecer como para

prejudicar a laicidade estatal no Brasil. De modo geral, porém, as igrejas e

políticos pentecostais (ao lado da Igreja Católica), por conta de suas orientações

e propostas tradicionalistas em questões de ordem moral, estão entre os

principais adversários dos grupos laicistas do país.

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Page 140: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil

Airton Luiz Jungblut

No Brasil só é possível notar a configuração daquilo que antropólogos e

sociólogos da religião chamam de uma “situação de mercado” ou de “situação

pluralista e concorrencial” da religião em meados do século XX (Mariano,

2003:115). Com a modernização tecnológica dos meios de comunicação de

massa, esse processo visivelmente se acelerou e ganhou novas dinâmicas. Já

está bem documentado na literatura especializada o uso que diversos grupos

religiosos fizeram nas últimas décadas dos meios de comunicação de massa para

posicionarem-se mercadologicamente nesse novo nicho que surgiu. Contudo, em

relação ao impacto mercadológico que o uso religioso da comunicação mediada

por computador (Internet), ainda se nota uma grande carência de pesquisas e

análises. A intenção neste capítulo é abordar esse tema a luz de algumas

reflexões preliminares sobre a noção de “mercado religioso” proposta por Peter

Berger e de análises das lógicas que animam os usos da Internet, em geral, e o

uso que indivíduos e grupos religiosos vêm fazendo dessa mídia, em particular.

1. Secularização, mercado religioso e individualismo

Segundo Berger, um dos autores que mais se notabilizou por postular que

a secularização e o desencantamento do mundo têm explicações no próprio

processo de desenvolvimento da religião ocidental, seria a tradição judaico-cristã

que traria consigo o gérmem desencadeador desses processos. Isso teria

ocorrido em parte pela “transcendentalização de Deus” operada por essa tradição

desde o Antigo Testamento. Ao propor um Deus que “está fora do cosmos”, o

Antigo Testamento teria criado condições para o desencantamento do mundo e

isso traria consequências para a valorização do indivíduo como sujeito histórico.

Conforme diz Berger:

Pode-se dizer que a transcendentalização de Deus e o concomitante ”desencantamento do mundo” abriram um “espaço” para a história, como arena das ações divinas e humanas.

Page 141: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

140 Airton Luiz Jungblut

Aquelas são realizadas por um Deus que está inteiramente fora do mundo; estas pressupõem uma considerável individuação na concepção do homem. O homem aparece como ator histórico diante da face de Deus (o que é muito diferente, diga-se de passagem, do homem como ator diante do destino, como na tragédia grega). Assim, os homens são vistos cada vez menos como representantes de coletividades concebidas mitologicamente, como era típico do pensamento arcaico. Mas, são vistos como indivíduos únicos e distintos que desempenham atos importantes como indivíduos. (Berger, 1985:131)

O autor, no entanto, ressalva que não se trata de afirmar que o Antigo

Testamento manifeste antecipadamente aquilo que conhecemos como

individualismo moderno, mas, antes sim, que com ele “cria-se um quadro de

referência religioso para a concepção do indivíduo, sua dignidade e sua liberdade

de ação” e que isso tem inegável importância para a “história do mundo” (op. cit.

p. 131/2).

Além da “transcendentalização de Deus” e da consequente “historicização”

da ação individual no mundo a ela associada, Berger também vê no Antigo

Testamento um “traço de racionalização ética”. Esses escritos sagrados trariam

em si ensinamentos éticos capazes de impor racionalidade à vida e isso, junto

com os fatores anteriores, seria como que o tripé que permitiria afirmar que o

desencantamento e a secularização do mundo encontram-se em estado germinal

na própria tradição judaico-cristã. Falando desse terceiro traço, Berger afirma:

Um elemento de racionalização estava presente desde o início, sobretudo por causa do caráter antimágico do javismo. Esse elemento foi ‘mantido’ tanto pelo grupo sacerdotal quanto pelo profético. A ética sacerdotal (como se vê no Deuteronômio, na sua expressão monumental) era racionalizante ao excluir do culto qualquer elemento mágico ou orgiástico e também ao desenvolver a lei religiosa (torah) como a disciplina fundamental da vida cotidiana. A ética profética era racionalizante ao insistir na totalidade da vida como serviço de Deus, impondo, assim, uma estrutura coesa e, ipso facto, racional a todo o espectro das atividades cotidianas. (Berger, 1985:132/3)

Berger sugere, então, que esse traço de racionalização da vida cotidiana

do qual o Antigo Testamento teria fornecido os princípios tenha se tornado “eficaz

na formação do Ocidente moderno por meio de sua transmissão pelo

cristianismo” (op. cit. p. 133). Contudo, adverte para o fato de que o catolicismo

Page 142: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil 141

durante o período que dominou monopolisticamente a cristandade ocidental teria

representado “um passo atrás em termos de secularização da religião do Antigo

Testamento”. Isso teria ocorrido porque o catolicismo com sua doutrina trinitarista

e com seu “encarnacionismo” teria repovoado o espaço entre o homem e Deus

por uma série de mediadores (anjos, santos, Maria, etc.) que teriam alterado

significativamente o modelo judaico de transcendentalização de Deus e com isso

“reencantado” ou “remitologizado” o mundo (op. cit. p. 134). Além disso, segundo

esse autor, o catolicismo teria barrado o processo de racionalização ética

presente no judaísmo:

Na verdade, o catolicismo latino absorveu um legalismo altamente racional herdado de Roma, mas seu penetrante sistema sacramental proporcionou inúmeras ”saídas” da total racionalização da vida postulada pelo profetismo do Antigo Testamento ou pelo judaísmo rabínico. O absolutismo ético do tipo profético foi segregado de modo mais ou menos seguro nas instituições monásticas e, assim, evitou-se que ”contaminasse” o corpo da cristandade como um todo. Novamente, modificou-se e abrandou-se a rigidez das concepções religiosas israelitas, exceto para aqueles poucos que escolheram a vida ascética. A nível teórico, pode-se dizer que a visão católica da lei natural representa uma ”renaturalização” da ética; num certo sentido, seria um retorno à continuidade divino-humana do ma’at egípcio do qual Israel saiu para o deserto de Iahweh. A nível prático, a piedade e a moral católicas proporcionavam um tipo de vida que tornava desnecessária qualquer racionalização radical do mundo. (Berger, 1985:135)

Por outro lado, o catolicismo, conforme coloca o autor, teria permanecido

“inteiramente histórico em sua visão de mundo” ao manter operante a teodiceia

bíblica, o que teria contribuído para conservar, ao menos de forma latente, seu

“ímpeto revolucionário” potencialmente secularizante, permitindo, ao menos

teoricamente, a ação transformadora na história (op. cit. p. 135). Além disso,

segundo Berger, o catolicismo contribuiu involuntariamente com a secularização

ao instituir-se – e isso de forma inédita na história da religião – segundo um

modelo de “especialização institucional de religião”, ou seja, estruturando-se

como “uma instituição especificamente relacionada à religião em contraposição a

todas as outras instituições da sociedade” (op. cit. p. 135-6).

Mas, segundo Berger, é com a Reforma protestante que efetivamente o

cristianismo, ou uma parte importante dele, retoma “aquelas forças secularizantes

Page 143: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

142 Airton Luiz Jungblut

que tinham sido ‘contidas’ pelo catolicismo, não apenas voltando ao Antigo

Testamento nesse processo, mas indo além dele” (op. cit. p. 137). Se Berger não

chega a explicar detalhadamente, no texto que aqui está se utilizando, como isso

veio a ocorrer, muito provavelmente é porque deve ter tido em mente todo o

quadro construído por Weber, no qual o protestantismo aparece como o instituidor

de uma ética religiosa de relacionamento com o mundo que teria contribuído

profundamente para a instituição da racionalidade moderna, particularmente

aquela requerida pela empresa capitalista.

O que Berger acrescenta de original à compreensão do papel do

protestantismo no processo de secularização está relacionado fundamentalmente

à importância do pluralismo provocado pela emergência desse movimento no seio

da religião ocidental. Segundo Berger, existiria na tradição cristã ocidental um

“potencial pluralístico” que só encontra sua possibilidade de emergência quando

se rompe o monopólio religioso da Igreja Católica sobre o cristianismo e quebra-

se a sua unidade com o advento da Reforma protestante. Essa situação irrompe,

segundo o autor, a partir das Guerras de Religião. Estas, apesar de serem

guerras pelo “controle monopolístico sobre seus territórios”, entre protestantes e

católicos, têm o mérito histórico de romper definitivamente com a unidade da

cristandade ocidental. Assim, houve condições para que tivesse início “um

processo que facilitou muito futuras fragmentações e que, mais por razões

práticas que por razões ideológicas, levou a uma crescente tolerância a grupos

religiosos divergentes, quer entre os católicos, quer entre os protestantes” (op. cit.

p. 148).

Esse pluralismo surgido com a Reforma protestante desenvolve-se,

contudo, mais eficientemente nos Estados Unidos, resultando, segundo Berger,

“no estabelecimento de um sistema de denominações mutuamente tolerantes que

persistiu até hoje” e, dado o sucesso deste sistema em organizar a pluralidade

religiosa, acabou por virar “um produto de exportação com atração internacional”

(op. cit. p. 148-9). Mas, o que torna o sistema denominacionalista de interesse

para se compreender a secularização é a natureza competitiva que o caracteriza:

No tipo americano de denominacionalismo (…), diferentes grupos religiosos, todos com o mesmo status legal, competem uns com os outros. O pluralismo, todavia, não se limita a esse tipo de

Page 144: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil 143

competição intra-religiosa. Como resultado da secularização, os grupos religiosos também são levados a competir com vários rivais não-religiosos na tarefa de definir o mundo, alguns dos quais altamente organizados (como os sistemas de valores modernos do ‘individualismo’ ou da emancipação sexual). (Berger, 1985:149)

Mas essa situação tendeu a se consolidar, segundo Berger, para além das

sociedades cujo denominacionalismo é o sistema de relacionamento entre os

diversos grupos religiosos existentes. Ela seria operante em qualquer lugar onde

“ex-monopólios religiosos são forçados a lidar na definição da realidade com rivais

socialmente poderosos e legalmente tolerados” (op. cit. p. 149). O que, em outras

palavras, significa dizer que ocorre onde tenha se consolidado um Estado laico,

ou seja, onde a religião tenha se transformado numa esfera social autônoma em

relação a outras que compõem a sociedade. O importante dessa situação em que

o pluralismo torna-se uma realidade a ser administrada pelos diversos grupos

religiosos é que ela passa a se fundamentar numa lógica de mercado como

demonstra Berger:

A característica-chave de todas as situações pluralistas, quaisquer que sejam os detalhes de seu pano de fundo histórico, é que os ex-monopólios religiosos não podem mais contar com a submissão de suas populações. A submissão é voluntária e, assim, por definição, não é segura. Resulta daí que a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser “vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a “comprar”. A situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de mercado. Nela, as instituições religiosas tornam-se agências de mercado e as tradições religiosas tornam-se comodidades de consumo. E, de qualquer forma, grande parte da atividade religiosa nessa situação vem a ser dominada pela lógica da economia de mercado. (Berger, 1985:149)

Essa situação, segundo o que mostra Berger, torna a existência dos grupos

religiosos sujeita a uma série de cálculos mercadológicos. Uma vez que é preciso

disputar fiéis, torna-se necessário, entre outras coisas, uma certa racionalização

burocrática para fazer frente às necessidades de manutenção e expansão dos

grupos religiosos. É preciso, por exemplo, estar atento às tendências do mercado

e, nesse exercício, até mesmo as influências mundanas tendem a modificar os

conteúdos dos apelos dos grupos religiosos, pois, em última análise, o que está

Page 145: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

144 Airton Luiz Jungblut

em jogo é “a dinâmica da preferência do consumidor” (op. cit. p. 156). Outrossim,

nesse processo em que os conteúdos religiosos passam a ser relativizados como

meros produtos de consumo, a religião parece efetivamente ter sua existência

orientada para a interioridade do indivíduo:

A situação pluralista multiplica o número de estruturas de plausibilidade concorrentes. Ipso facto, relativisa seus conteúdos religiosos. Mais especificamente, os conteúdos religiosos são ”desobjetivados”, isto é, são desprovidos de seu status como realidade objetiva e evidente na consciência. Tornaram-se ‘subjetivados’ num duplo sentido: sua ‘realidade’ torna-se um assunto ‘privado’ dos indivíduos, isto é, perde a qualidade de plausibilidade intersubjetiva evidente por si mesma (‘não se pode mais conversar’ sobre religião, portanto); por outro lado, na medida em que ela ainda é mantida pelo indivíduo, ela é apreendida como sendo enraizada na consciência deste e não em facticidades do mundo exterior – a religião não se refere mais ao cosmos ou à história, mas à Existenz individual ou à psicologia. (Berger, 1985:162)

Retomando os pontos levantados até aqui, tem-se, então, um quadro que

mostra que em escala considerável a tradição judaico-cristã a partir de certos

aspectos contidos em sua cosmovisão, e dentro dela, mais efetivamente o

protestantismo, contribuíram com processos que direta ou indiretamente

favoreceram o desenvolvimento do individualismo ocidental. Como se viu, o

Antigo Testamento carrega em si os gérmens da uma visão de mundo que

postula que o indivíduo é concebido como sujeito ativo na história, já que Deus

estaria fora do Mundo (transcendentalizado) e que não existiria nenhum tipo de

mediações entre ele e os homens, nem práticas rituais que pudessem interferir

magicamente nos destinos humanos. Além disso, o conteúdo ético dessas

escrituras sagradas postula uma ação racionalizante na vida cotidiana, o que em

si favorece a secularização e o desencantamento do mundo e, além disso, como

demonstra Weber no caso específico do protestantismo, conduz ao

individualismo, já que ao racionalizar a ação do homem no mundo este tende a

privilegiar relações do tipo individualistas-empresariais em detrimento as de tipo

familiar comunal.

Embora, como demonstra Berger, o catolicismo tenha, durante os vários

séculos em que monopolizou a cristandade no ocidente, agido como um inibidor

dessas tendências secularizantes, desencantadoras e individualizantes na

Page 146: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil 145

tradição judaico-cristã ocidental, elas irromperam com toda a energia com a

Reforma protestante. Esse movimento, além de ter retomado e desencadeado a

efetiva consolidação dessas tendências, fez ainda quebrar a unidade

monopolística da cristandade ocidental da qual o catolicismo era o gerenciador.

Com isso emergiu o pluralismo na religião ocidental o que levou posteriormente a

que os diversos grupos dispersos na pluralidade tivessem que se valer de uma

lógica de mercado. Ocorre, então, que mais uma vez o individualismo moderno se

beneficia dessa transformação, pois como demonstra Berger, o pluralismo, ao

transformar as pessoas em consumidores de “produtos” religiosos oferecidos

pelas diversas agências do sagrado disponíveis no mercado, multiplica as

“estruturas de plausibilidade”, as possibilidades de crença a partir de conteúdos

religiosos variados, ao gosto do consumidor. Por consequência, a religião se

transforma numa crença experimentada muito mais individualmente do que

coletivamente, já que é o indivíduo que, em última instância, é que detém o poder

de arbitrar o que é ou não passível de ser aceito como plausível em relação à

religião. Mesmo fazendo parte de coletividades religiosas – o que, diga-se de

passagem, para muitos não é nem mais necessário – é o indivíduo quem decide

quais traços religiosos expressos na coletividade são os que devem ser

enfatizados, relegados em segundo plano ou ignorados. O indivíduo, em última

instância, transforma-se no gestor quase absoluto da cosmovisão de que se diz

crente. Trata-se, portanto, de um poder adquirido pelo indivíduo, de autonomia

individual frente às tradições religiosas.

2. Comunicação mediada por computador e mercado religioso

Religião e comunicação costumam andar juntas. A história da humanidade

está repleta de exemplos dessa articulação, principalmente quando resulta bem

sucedida. As grandes religiões que mais se disseminaram pelo planeta são casos

exemplares a atestar os benefícios do uso de estratégias comunicativas na

difusão de mensagens salvacionistas. Basta lembrar o sucesso que “religiões do

livro” como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo tiveram. No cristianismo,

impossível não lembrar também dos proveitos que o protestantismo soube tirar no

século XVI da Revolução Gutemberguiana – fato que Lutero considerou “a maior

Page 147: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

146 Airton Luiz Jungblut

graça de Deus” (Briggs & Burke, 2004:38) – e também da expansão do

pentecostalismo norte-americano através do televangelismo (rádio e televisão) no

século XX (Cf. Gurtwirth, 1998).

Nos dias atuais, quando assistimos aos Meios de Comunicação de Massa

(MCM) cederem espaço à Comunicação Mediada por Computador (CMC) torna-

se bastante pertinente indagar do uso que os grupos religiosos estão fazendo,

principalmente, da Internet.

Análises realizadas anteriormente (Jungblut, 2002 e 2008), dos usos que

os grupos religiosos têm feito da Internet no Brasil, apontam para uma utilização

desajeitada e pouco eficiente dos recursos possibilitados pela Internet, por parte

de grupos religiosos institucionalizados e tradicionais, ao passo que é visível uma

utilização mais eficiente desses recursos por parte de indivíduos autônomos,

sejam eles vinculados ou não a grupos e tradições consolidadas. Até onde nos é

possível verificar essa é uma realidade internacional. O que se quer dizer com

isso é que o uso religioso eficiente da Internet tem sido mundialmente muito mais

individual do que institucional. Mais do que isso, se desconfia que essa mídia não

se presta a “grandes eventos” religiosos que congreguem, apesar das facilidades

tecnológicas favoráveis, um número elevado de participantes simultâneos. Por

essa razão, não se prestando a realizar aquilo que Durkheim considerava de

fundamental importância para a existência da religião: o culto público que permite

a sociedade sentir seus efeitos quando indivíduos que a compõem estão reunidos

e agem em comum (Durkheim 1989:495). Até alguns meses atrás, não se tinha

notícia de nenhum evento religioso na Internet de grande procura e repercussão

que pudéssemos enquadrar nessa categoria. Quando se indaga sobre as razões

dessa situação, torna-se oportuno atentar para algumas lógicas que imperam

nesse novo território criado pela CMC, o chamado “ciberespaço”.

3. Algumas das lógicas do ciberespaço que devem ser lembradas aqui

Nos últimos anos, têm se acumulado uma série de diagnósticos

sociológicos e antropológicos a respeito das lógicas culturais, sociais e

comunicacionais que imperam nesse ambiente denominado ciberespaço surgido

através da emergente comunicação mediada por computador. Alguns desses

Page 148: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil 147

diagnósticos, de lembrança oportuna para a análise aqui pretendida, apontam

para o fato de que o ciberespaço tornou-se um território livre para manifestações -

com uma radicalidade nunca antes experimentada - de todas as alteridades

existentes no mundo globalizado; um espaço em que qualquer pessoa dotada de

um mínimo de recursos consegue disponibilizar a centenas de milhões de

pessoas informações que considera relevantes a qualquer causa ou finalidade.

Isso ocorre devido ao fato de que todo o indivíduo na Internet tem o poder de se

transformar facilmente em publicador eficiente de textos seus ou de outras

pessoas. Para alguns analistas, isso torna finalmente realizável uma antiga

ambição das democracias modernas de tornar todo indivíduo efetivamente livre

para manifestar suas ideias, sejam lá quais forem. Essa característica do

ciberespaço deve-se ao fato de que, ao contrário dos MCM (Meios de

Comunicação de Massa), que possui uma arquitetura unidirecional um-para-

muitos (um emissor / muitos receptores), a CMC (Comunicação Mediada por

Computador) possui uma arquitetura preponderantemente bidirecional muitos-

para-muitos (quase sempre todos são, simultaneamente, emissores e receptores).

A consequência mais notável disso, conforme observa W. Daniel Hillis, é o

surgimento de uma energética e democratizante polifonia comunicacional:

… ao contrário do que acontece nos meios de transmissão [Meios de Comunicação de Massa], talvez haja mais bocas do que orelhas na Internet. Isso é possível porque a Internet reduz o limiar de publicação, o limiar de extração de informações. As pessoas desconfiam das instituições. Não gostam de ter sua voz limitada pelas instituições. A idéia de que podem ter o poder nas próprias mãos e divulgar algo na Net se adapta ao clima desses tempos, que exige autoconfiança. A energia da Web não vem das pessoas que estão buscando informações. Vem das pessoas que têm informações que desejam enviar ou que oferecem mecanismos para fornecer essas informações a outras pessoas. (Hillis, 1997:109)

Por ser, então, o ciberespaço um território tão favorecedor dessa polifonia

democratizante de que se fala, há, também, quem o perceba como recurso

tecnológico a serviço das intensas reflexividades identitárias que seriam

experimentadas pelo indivíduo contemporâneo. Verdadeira “tecnologia do eu”, o

ciberespaço, ao disponibilizar uma interminável fonte de material de confrontação

identitária, onde qualquer posicionamento pode ser defendido e/ou contestado,

Page 149: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

148 Airton Luiz Jungblut

seria o espaço mais apropriado possível na atualidade para as permanentes

experiências construções e reconstruções do eu contemporâneo. Esses

exercícios acabam por potencializar, em função do meio, atitudes reflexivas que

tendem para arranjos identitários conjuntivos “idiossinscréticos” (Sanchis,

1997:104-105) e permanentemente provisórios. Segundo Luis Baggioline:

O nomadismo da rede e o modo de construir subjetividades no ciberespaço, se parecem mais a uma identidade baseada na possibilidade, no poder ser, que na diferença e no dever ser. A ‘construção de si’ deixa de ser opositiva e disjuntiva (este ou aquele), e se funda nas possíveis conjunções (este e aquele), o que permite a constituição de identidades simultâneas, em contínuo movimento de reconstrução.” (Baggiolini, 1997)

É preciso lembrar, contudo, que um território com essas características

favorece muito mais os cotejamentos identitários individuais do que as

formulações identitárias mais tradicionais e sancionadas por consensos

coletivamente institucionalizados. O ciberespaço, paraíso da permanente

reformulação identitária individual, seria, assim, lugar fecundo para processos

destradicionalizantes e desinstitucionalizantes como aqueles que assistimos no

global mercado religioso dos dias atuais.

Vejamos agora, então, como indivíduos e grupos religiosos brasileiros têm

se servido dessas lógicas ciberespaciais para ostentarem mercadologicamente

suas identidades.

4. O uso religioso da Internet no Brasil

O propósito, mais específico, neste subitem, é socializar algumas

observações e análises produzidas nestes últimos dez anos a respeito da

utilização que indivíduos, grupos e instituições têm feito da Internet para tornar

públicas no Brasil suas crenças e traços identitários religiosos. Com isso

pretende-se contribuir para a compreensão do, até certo ponto, recente mercado

religioso brasileiro, observando mais atentamente o impacto dessa nova mídia

nesse processo.

É oportuno, inicialmente, apresentar o cenário observado há dez anos,

quando a Internet começa a se popularizar no Brasil. O conhecimento desse

Page 150: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil 149

cenário permite compreender melhor o processo de utilização religiosa dessa

mídia até os dias atuais.

Naquele momento a maioria dos neófitos em Internet que estavam a se

apropriar dessa tecnologia o faziam quase que exclusivamente através de uma

utilização simplificada da Web. Assim, além da consulta e/ou publicação de

informações apropriadas às interfaces fornecidas pelas páginas da Web, também

os recursos de interação comunicativa síncrona (chats) ou assíncronas (listas de

discussão ou grupos de notícias) – que possuem desde o início da internet

plataformas próprias – ganhavam suas versões adaptadas e simplificadas na

Web: os “web-chats” e os “web-fóruns”, respectivamente. Estes se mostravam

mais amigáveis e populares.

Naquele período a utilização de espaços evangélicos de publicação e a

presença de seus representantes em interação na Internet brasileira eram bem

mais visíveis do que a de qualquer outro grupo religioso. Vinham depois, nesse

ranking, distantes, os espíritas e, bem mais longínquos ainda, os católicos e

grupos esotéricos. Grupos afro-brasileiros eram praticamente invisíveis nesse

momento. Nas páginas da Web a forma de visibilidade mais comum das

identidades religiosas ocorria através de páginas institucionais e, em menor grau,

páginas pessoais. No caso dos espíritas eram, quase sempre, páginas

institucionais. Nos web-chats religiosos, que não eram até então segmentados

confessionalmente e estavam alojados em portais de grandes provedores, a

presença evangélica era, de longe, a mais marcante. Na maior parte do tempo, o

debate era entre crentes evangélicos, de um lado e descrentes, ateus, agnósticos,

etc., de outro. A mesma situação se repetia em relação aos chamados “fóruns de

debate” alojados em portais da web. Além disso, outros recursos que não a web –

tais como canais de chat do tipo IRC, grupos de notícia e listas de discussão via

e-mail – também eram, de longe, nesse período, mais eficazmente utilizados por

grupos ou indivíduos evangélicos, sendo seguidos, também nesse caso, por

grupos e indivíduos espíritas. Note-se que se interessavam mais pela Internet, um

ambiente comunicativo baseado principalmente em mensagens escritas, grupos

religiosos – evangélicos e espíritas – que possuem uma tradição de valorização

da cultura escrita e, eis ai talvez o porquê de se sentirem tão mais vontade nesse

ambiente.

Page 151: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

150 Airton Luiz Jungblut

Eram eles que mais avidamente se lançavam à exploração do ciberespaço

brasileiro. Passado cerca de dez anos tem-se uma situação um tanto distinta. Em

primeiro lugar assiste-se ao ingresso cada vez mais perceptível de uma infinidade

de outros grupos religiosos antes invisíveis. Páginas católicas, esotéricas e,

também, afro-brasileiras, gradativamente, vão se disseminando por todos os

lados desse ciberespaço brasileiro ao ponto de ser bastante temerário na

atualidade afirmar quem, entre indivíduos e grupos religiosos em questão,

demonstra estar melhor se utilizando das possibilidades de publicação da web no

Brasil.

É preciso destacar também que nestes dez anos – em que houve um

substancial crescimento do ciberespaço brasileiro e do número de seus

frequentadores – nota-se também um crescente interesse dos chamados portais

comerciais de acesso a conteúdos pelo que poderíamos chamar de “filão

religioso”. De um primeiro momento em que uns pouquíssimos portais

disponibilizavam uma ou duas salas de chat ou algum fórum para assuntos

religiosos (geralmente genérico, não segmentado confessionalmente) se passou

para uma situação na qual é dada especial e privilegiada atenção a esse tipo de

interesse. Isso pode ser notado principalmente pela proliferação de chats e fóruns

de debates de assuntos religiosos em vários portais de conteúdo que antes não

atendiam a essa demanda e pela crescente oferta segmentada aos públicos

interessados nesse assunto (antes uma única opção genérica tal como “religião”;

agora cada vez mais uma segmentação confessional no qual “evangélicos”,

“católicos”, “espíritas”, etc. têm seus próprios espaços).

Bastante interessante também é o repentino uso que as casas de religião

afro-brasileiras passaram a fazer da Web. De uma situação de quase que total

invisibilidade, há cerca de dez anos atrás, o número de páginas pessoais ou

institucionais deste segmento religioso cresceu surpreendentemente. Observando

as características dessas páginas (que, geralmente, são muito simples e têm

como intenção básica a mera publicidade dos serviços oferecidos nessas casas

de religião) percebe-se que se trata de uma utilização ainda bastante acanhada

dessa mídia. A impressão que passam muitas dessas páginas é que foram

criadas apenas para satisfazer os fetiches tecnológicos que o uso da Internet

Page 152: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil 151

parece provocar na subcultura afro-brasileira como item atribuidor de prestigio

social para quem dela faz uso.

Mas algumas coisas também se mantiveram substancialmente inalteradas

nestes últimos dez anos. Para citar apenas aquilo que considero mais importante

menciono a forma com que espíritas e evangélicos – os dois grupos religiosos

que, muito provavelmente, mais se utilizam da Internet no Brasil – utilizam-se dos

recursos virtuais-comunitários possibilitados no ciberespaço. Refiro-me a

formação das chamadas “comunidades virtuais” através de comunicação mediada

por computador de características síncronas (chats, second life, etc.) ou

assíncronas (grupos de notícia, listas de discussão via e-mail, web-fóruns e sites

de relacionamentos tipo Orkut). Esses tipos de utilização da Internet são, de

longe, melhor potencializados por grupos ou indivíduos pertencentes a esses dois

segmentos religiosos. Através desses recursos de interatividade e sociabilidade

no ciberespaço lida-se com uma forma – bem mais dinâmica e atraente do que a

mera publicação de textos em páginas da Web – de ostentação e de negociação

identitária de cunho religioso. Mas é preciso dizer que embora façam uma

utilização muito parecida desses recursos, evangélicos e espíritas têm padrões de

comportamento diferentes em suas respectivas comunidades virtuais.

Em se tratando de evangélicos, tenho notado que aqueles indivíduos e

grupos próximos às modalidades pentecostais ou renovadas e que estão numa

faixa etária que vai dos 15 aos 25 anos, demonstram maior interesse por

comunidades virtuais possibilitadas através de recursos síncronos de

comunicação (chats). Já os evangélicos ligados a modalidades mais tradicionais e

de faixas etárias mais elevadas do que a anterior tendem a preferir as

comunidades que se formam através de formas assíncronas de comunicação

(grupos de notícias e listas de discussão, web-fóruns e sites de relacionamentos

tipo Orkut). No primeiro caso, tratam-se de interações comunicativas muito mais

extramuros (debates e interlocuções com intenções proselitistas com indivíduos

de outras crenças ou descrentes) e, no segundo, interações intramuros (debates

entre evangélicos a cerca de questões doutrinárias, principalmente). Em termos

de visibilidade é o primeiro tipo de atitude interativa que mais se destaca no

ciberespaço brasileiro. Cabe comentar que a imensa maioria dos evangélicos que

se tornam visíveis na internet, quer seja em suas próprias comunidades virtuais,

Page 153: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

152 Airton Luiz Jungblut

quer seja em espaços alheio, parecem fazê-lo com o intuito muito mais de

divulgarem sua fé do que de discutirem intramuros seus fundamentos teológicos,

litúrgicos, etc.

Os espíritas, por sua vez, que aparentemente se situam numa faixa etária

que vai dos 20 aos 40 anos, normalmente não manifestam comportamentos

distintos entre o uso que fazem de chats, listas de discussão e sites de

relacionamento (ou, também, web-fóruns e grupos de notícias). Procuram manter

debates disciplinados com alto nível de exigência intelectual dos participantes.

São, mormente, debates orientados, quase que exclusivamente, para questões

referentes às interpretações dos livros espíritas. É comum não demonstrarem

interesse por polêmicas com integrantes de outras religiões ou cosmovisões

(ateus, por exemplo). Nos poucos casos em que é possível vê-los utilizando-se de

chats – veículo em que, em princípio, é mais difícil manter debates disciplinados –

o fazem usando plataformas que permitem a imposição de atos disciplinadores

(Messenger Groups, por exemplo).

Se fossemos classificar e/ou qualificar de maneira esquemática as formas

como as principais modalidades religiosas aparecem na Internet brasileira

teríamos algo como: Católicos: presença preponderantemente institucional

(páginas de dioceses, organizações católicas, serviços de acesso a Internet, etc.);

pouca interatividade individual e de relacionamentos extramuros (é difícil

encontrar pessoas identificadas com o catolicismo em chats ou listas de

discussão, por exemplo). Afro-brasileiros: visibilidade publicitária (a maioria das

páginas na web têm como intenção, por exemplo, informar local e horário de

atendimento dos médiuns, mostrar fotos dos estabelecimentos e dos médiuns,

etc.); comercial (há um bom número de páginas de lojas de artigos religiosos afro-

brasileiros, também editoras e livrarias); praticamente nenhuma interatividade

individual (não se notou nenhuma lista de discussão nem chat importante deste

segmento; a presença de indivíduos identificados com essas religiões de um

modo geral é bastante rara); Espíritas: presença institucional bastante marcante

(possuem uma considerável rede de páginas, algumas entre as quais bastante

complexas onde se disponibilizam, por exemplo, livros espíritas completos em

formato digitalizado); muita interatividade individual de relacionamentos

preponderantemente intramuros (os espíritas tem um bom número de listas de

Page 154: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Mercado Religioso e a Internet no Brasil 153

discussão e chats e mostram-se bastante apaixonados por debates mediados por

redes de computares); Evangélicos: formas bastante diversificadas de

visibilidade; institucional (muitas páginas de igrejas locais, regionais, nacionais ou

mesmos internacionais; um grande número também de páginas de organizações

ecumênicas, para-eclesiásticas, interdenominacionais, etc.); publicitária e/ou

comercial (um número considerável de páginas na web com publicidade de

livrarias e lojas de discos evangélicos, por exemplo); pessoal (um grande número

de páginas pessoais visando a divulgação da fé evangélica); intensa

interatividade individual de relacionamentos extra e intramuros (grupo religioso

que, seguramente, mais se lança a interatividade comunicativa via internet,

buscando não só a formação de comunidades de crentes como também o

trabalho conversionista); Esotérica: oracular (um número cada vez maior de

sites, oferecendo serviços de oráculo tais como, tarô, astrologia, numerologia,

etc.); pessoal (as páginas divulgando assuntos esotéricos na web são geralmente

pessoais); média interatividade individual intra e extramuros (possuem listas de

discussão e chats que não chegam a atrair muita atenção e são, muitas vezes,

vedadas a estranhos).

* * * A título de conclusão cabem aqui algumas rápidas considerações. O

monitoramento que o autor vem fazendo, há cerca de dez anos, do uso da

Internet por indivíduos e grupos religiosos brasileiros tem levado a percepção de

que são mais eficientes no uso dessa mídia aquelas modalidades que,

primeiramente, têm uma tradição de uso da cultura escrita na forma de

vivenciarem sua fé (caso dos espíritas, evangélicos e, mais recentemente,

esotéricos). Em segundo lugar, destacam-se aqueles grupos e indivíduos que

tomam como obrigação religiosa o proselitismo militante. Nesse caso, os

evangélicos estão sozinhos na dianteira, pois, no Brasil atual, empenham-se,

como ninguém mais, numa gigantesca mobilização pela expansão de seu

rebanho e a Internet, como já havia acontecido com o rádio e a TV, se tornou um

front no qual esses religiosos gastam muito de sua energia conversionista.

Diferentemente de outros grupos, eles agem escancaradamente segundo a lógica

do mercado, fazendo com que cada grupo ou indivíduo evangélico potencialize,

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154 Airton Luiz Jungblut

ao máximo, na Internet, os apelos salvacionistas dessa modalidade de

cristianismo.

Referências bibliográficas:

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Page 156: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas

Lúcia Helena Alves Müller

Atualmente, podemos encontrar um número cada vez maior de

pesquisadores, grupos de trabalho, livros e artigos dedicados à abordagem

antropológica de temas relacionados com o mundo empresarial, com os

mercados, com o dinheiro em suas mais diversas formas, com o consumo e com

as diversas modalidades de crédito. Mas o que uma disciplina como a

antropologia, tradicionalmente associada ao estudo das sociedades tribais, das

sociedades tradicionais, dos grupos sociais situados à margem do sistema

econômico global; uma disciplina que costuma tratar das diferenças culturais e

dos processos identitários, tem a dizer sobre temas como esses, que conformam

o que costumamos identificar como sendo “a economia”?

Na verdade, são assuntos tão importantes que não deveriam ser deixados

ao cargo exclusivo de economistas e administradores. Mas, com certeza, o

interesse dos antropólogos por esses temas está relacionado com mudanças que

ocorreram no âmbito da própria antropologia, bem como com transformações

sofridas pelos objetos de estudo que tradicionalmente definiam essa disciplina.

Paradoxal parece ser o fato da maior parte dos grupos de pesquisadores

que hoje trabalha sobre as temáticas citadas não localizar seus estudos como

integrantes do campo nomeado pela expressão “antropologia econômica”. Além

disso, embora a temática econômica tenha sido objeto de reflexão por parte de

autores considerados clássicos da antropologia (Malinowski, 1984; Mauss, 1974)

e, ao menos no Brasil, tenha sido um conteúdo obrigatório na formação dos

antropólogos até o final dos anos 70, ao longo das últimas décadas, ela

praticamente sumiu dos currículos acadêmicos.

Este texto tem com objetivo refletir sobre essas mudanças e seus

aparentes paradoxos, além de traçar um rápido panorama do que a antropologia

contemporânea vem produzindo sobre as instituições, organizações, práticas e

representações relacionadas ao que a nossa sociedade classifica como

“economia”.

Page 157: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

156 Lúcia Helena Alves Müller

A antropologia econômica

Na antropologia, a constituição da temática econômica como um campo de

estudos específico se deu através de um debate historicamente situado, que teve

seu momento mais intenso na década de 60. A expressão “antropologia

econômica” ficou de tal modo associada a esse debate, a ponto de Puillon

(1978:12) poder mesmo afirmar: “falar seriamente de Antropologia Econômica é,

pois, em nossa opinião, analisar um momento de uma investigação em Ciência

Social que se desenvolveu nos anos sessenta (...)”.

Analisar a investigação em Ciência Social que se desenvolveu nos anos 60

é deparar-se inevitavelmente com o debate formalistas X substantivistas.

Podemos deduzir, portanto, que a expressão antropologia econômica nomeia o

debate que colocou frente a frente diferentes perspectivas teóricas, embora as

trajetórias dessas perspectivas não estejam circunscritas a ele. Para

compreendermos plenamente esse debate seria necessário localizar as questões

que lhe deram forma e relacioná-las com as perspectivas teóricas que nele

estiveram envolvidas. Sendo essa uma tarefa ambiciosa demais para um ensaio

como esse, limitar-me-ei a considerar as questões gerais que o animaram a fim

de refletir sobre sua pertinência para a abordagem da "economia" na sociedade

contemporânea.

O que pode nos surpreender na leitura da bibliografia referente ao período

áureo dos debates formadores desse campo é que ela nos induz a pensar que, no

âmbito da antropologia, o embate envolvendo a perspectiva formalista e a

substantivista deu-se, na realidade, a partir de polêmicas desenvolvidas entre

antropólogos de orientação teórica marxista (em geral, franceses) e antropólogos

anglo-saxões (ingleses e norte-americanos), inspirados pela teoria dominante na

ciência econômica (chamada de neoclássica ou liberal), os quais, a partir da

década de 50, passaram a dirigir suas atenções para temas classificados como

econômicos na vida das sociedades ditas primitivas e tradicionais.

Os antropólogos chamados de formalistas (talvez devêssemos dizer

“acusados de”) eram aqueles que definiram seu tema de estudo baseados nos

pressupostos teóricos estabelecidos pela ciência econômica, como fez Raymond

Firth, ao definir a tarefa do antropólogo como sendo a de “(...) dar assistência na

Page 158: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 157

tradução de proposições gerais da teoria econômica em termos que se apliquem

aos tipos particulares de sociedade por que se interessa e que comumente não

aparecem na observação do economista.” E como premissas fundamentais da

teoria econômica, “a natureza variada e extensível de objetivos da conduta

humana a multiplicidade de fins; a limitação de meios para satisfazê-los o fato

da escassez; e a necessidade de escolher entre eles o exercício da

preferência.” (Firth, 1974)

Em suas críticas aos antropólogos formalistas, os antropólogos de

orientação marxistas lançaram mão de proposições substantivistas. A perspectiva

substantivista não se confunde, no entanto, com a marxista. O que elas têm em

comum é o questionamento das premissas teóricas da economia neoclássica, ou

seja, a crítica à naturalização dos princípios que regem a sociedade capitalista

ocidental. Para ambas, a relativização histórica e cultural desses princípios é o

passo inicial e fundamental, tanto para a compreensão de outras sociedades,

quanto para o questionamento da própria organização social capitalista.

Os substantivistas, ou institucionalistas, são assim chamados por

questionarem a definição "formal" de economia, vendo nela uma generalização

imprópria de princípios que regem apenas um tipo específico de sociedade: a

sociedade de mercado capitalista. Em contrapartida, eles propõem uma definição

"substantiva" de economia: “(...) um processo institucionalizado de interações

entre o homem e seu meio, que se traduzem pelo fornecimento contínuo dos

meios materiais que permitem a satisfação das suas necessidades.” (Polanyi

apud Pouillon, 1978:53).

A principal diferença entre essas perspectivas está na abordagem que os

marxistas dão aos fenômenos econômicos das sociedades não capitalistas. O

conceito fundamental da teoria marxista, que é o de "modo de produção",

condicionou os estudos empreendidos por esses antropólogos a concentrarem

seu foco em fenômenos diretamente ligados à esfera da produção material, por

considerá-la a esfera determinante, em última instância, da vida social. Assim,

sua preocupação fundamental foi a de identificar os mecanismos de reprodução e

de transformação dos diferentes modos de produção:

É este conceito de modo de produção que constitui o conceito maior da antropologia econômica. A missão desta é determinar os

Page 159: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

158 Lúcia Helena Alves Müller

tipos de modo de produção que subsistem nas sociedades que estuda e que se transformam ao contacto e sob a dominação da economia mundial capitalista. Mas o conceito de modo de produção implica mais do que um estudo da economia dessas sociedades. Na sua ambição teórica última, a antropologia visa a descoberta das leis de determinação da vida social pela economia. (Godelier, 1974:245)

A aplicação de conceitos que foram produzidos a partir do estudo da

sociedade capitalista ao estudo das chamadas sociedades primitivas, cujos

resultados teóricos não nos cabe aqui avaliar, não deixou de provocar, também, a

relativização dos próprios conceitos marxistas. Assim, por exemplo, o conceito de

infraestrutura teve de ser alargado para incluir as relações de parentesco,

fundamentais para a ordenação da produção nas sociedades tribais (Godelier).

Os conceitos de classe social e de exploração tiveram que ser adaptados para

dar conta de fenômenos tais como os das chamadas sociedades de linhagem

(Meillasoux).

A perspectiva substantivista desenvolveu-se a partir das obras de Karl

Polanyi, que não era economista nem antropólogo. Essas foram publicadas a

partir da década de 40, tendo como base seus estudos de história econômica e

sua ferrenha crítica ao pensamento econômico liberal, dominante na Europa até a

primeira guerra mundial. Apesar de também privilegiar o estudo de temas

econômicos, Polanyi não o fez a partir do que seria uma lógica econômica e sim,

social. Dessa forma, sua abordagem opõe-se claramente à perspectiva formalista,

por negar os princípios postulados pela teoria econômica neoclássica:

A economia do homem está submersa em suas relações sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse dos bens materiais. Ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu patrimônio social. (Polanyi, 1980:61).

Por outro lado, a ênfase na dimensão institucional da sociedade, também a

distingue claramente da perspectiva marxista:

Existe a doutrina igualmente equívoca da natureza essencialmente econômica dos interesses de classe. Embora a sociedade humana seja naturalmente condicionada por fatores econômicos, as motivações dos indivíduos humanos só excepcionalmente são determinadas pelas necessidades do

Page 160: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 159

desejo de auto-satisfação material. O fato da sociedade do século dezenove ser organizada a partir do pressuposto de que tal motivação poderia tornar-se universal foi uma peculiaridade da época. (Polanyi, 1980:157)

Segundo Polanyi, as práticas de mercado sempre existiram, mas quase

sempre de forma marginal, e submetidas a outros tipos de relações sociais.

Sendo assim, para esse autor, os princípios da economia condensados na noção

de homo economicus, não podem ser tomados como princípios universais. Por

outro lado, o autor questiona a teoria marxista por centrar-se exclusivamente em

fenômenos ligados aos processos de produção. Contrapondo-se a essas

perspectivas, ele propõe a concepção substantiva de economia, que englobaria

todos os fenômenos sociais que dizem respeito à produção, à distribuição e ao

consumo de bens, e que, em cada sociedade, são organizados de formas

institucionalmente diversas. A partir dessa concepção “institucionalista”, Polanyi

propôs uma tipologia das formas de integração social que informam os sistemas

econômicos em diferentes sociedades: reciprocidade, distribuição e mercado.

Assim, o debate que envolveu as diferentes perspectivas que conformaram

o campo de estudos que ficou conhecido como “antropologia econômica” girou

em torno das divergências quanto à própria definição do objeto "fenômenos

econômicos". Essas divergências não impediram, no entanto, que as pesquisas

levadas a cabo pelos antropólogos, a partir das diferentes correntes teóricas

envolvidas no debate, produzissem um grande volume de estudos que, ao nível

empírico, foram produzidos a partir dos mesmos campos de pesquisa e trataram

dos mesmos temas, isto é: a produção, a distribuição e o consumo de bens

materiais, em sociedades não capitalistas.

O fato de vivermos em uma sociedade cada vez mais interconectada, em

que não há mais grupos sociais isolados, uma vez que estamos, todos, de alguma

forma, vinculados à sociedade de mercado ou, ao menos, sob sua influência,

torna compreensível a perda de espaço que a antropologia econômica sofreu no

campo acadêmico ao longo dos anos, na medida em que seu campo de estudos,

as sociedades ditas primitivas e tradicionais, deixaram de ser percebidas como

tal. Temáticas relacionadas a práticas e instituições econômicas continuaram a

ser abordadas pelos antropólogos, mas deixaram de ser o foco principal de suas

Page 161: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

160 Lúcia Helena Alves Müller

análises, à exceção, talvez única, dos estudos sobre comunidades camponesas,

sobretudo aquelas envolvidas em processos identitários de caráter étnico.

O fato de não se poder mais definir e classificar as sociedades

contemporâneas com base na oposição primitivas/simples/tradicionais X

modernas/complexas/dinâmicas fez com que os antropólogos passassem a

considerar todas as sociedades, inclusiva a sua própria, como campo de

pesquisa. Essas mudanças colocaram em xeque as formas tradicionais de se

fazer antropologia e impedem que se pense a relação com as outras ciências

sociais em termos de fronteiras absolutas, na medida em que não há mais tema

ou campo de estudos específicos.

O que continua, com certeza, a definir a abordagem antropológica é a

hipótese da “alteridade”, elemento constituinte de todos os objetos de pesquisa

dessa área do conhecimento, o que, em termos de abordagem, se traduz em

compromisso do pesquisador com o exercício da relativização e com a busca de

formas de compreensão que englobem o ponto de vista do “outro” (Oliveira,

1996). Assim, mesmo quando estudam a sua própria sociedade, os antropólogos

procuram colocá-la em perspectiva, através da comparação, caso contrário, não

estarão fazendo antropologia.

O processo de mudanças na definição do campo e nas práticas de

pesquisa antropológica não abarcou de forma homogênea todos os campos

temáticos. Além disso, a hegemonia das novas correntes teóricas, como o

estruturalismo e a antropologia interpretativa ou hermenêutica, que colocavam o

foco na dimensão simbólica da vida social, e o crescimento do interesse por

temas definidos a partir de outras problemáticas sociais, como o processo de

urbanização e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, por

exemplo, também contribuíram para que, ao longo das últimas décadas do século

XX, as temáticas pertencentes ao campo da antropologia econômica perdessem

espaço na pesquisa acadêmica. Não por acaso, foi ao longo desse período, que

os cursos de ciências sociais excluíram de seus currículos a obrigatoriedade das

disciplinas dedicadas a conteúdos relativos à ciência econômica.

Page 162: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 161

A “nova” sociologia econômica

Enquanto o interesse por temas econômicos saia da cena principal da

antropologia, na sociologia, iniciava-se o processo de retomada desse interesse.

Uma das vertentes desse processo teve origem nos Estados Unidos na década

de 80, e acabou por conformar o campo de estudos que hoje é conhecido como

“nova sociologia econômica”.

A “nova sociologia econômica” também se desenvolveu a partir da crítica

ao predomínio de premissas e concepções teóricas de inspiração neoclássica

(individualismo metodológico, teoria da escolha racional), que vinham se tornando

dominantes não apenas na análise de fenômenos tradicionalmente considerados

como pertencentes à esfera econômica (os mercados), mas também na

abordagem de temas tradicionalmente vistos como objetos específicos das

ciências sociais: política, religião, relações matrimoniais, etc.

Os estudos que são identificados como pertencentes à “nova sociologia

econômica” são bastante diversificados em termos de temas, objetos e

abordagens. O que eles têm em comum é o fato de atribuírem às sociedades

capitalistas a mesma característica que Polanyi atribuiu às sociedades ditas

primitivas ou tradicionais, isto é, a de que, nelas, a economia está “imersa”

(embebedness) na vida social (Granovetter, 2007).

O crescimento dessa corrente e sua capacidade de revalorizar temáticas

econômicas no âmbito da sociologia acabou por interpelar pesquisadores que,

embora também tivessem um grande interesse por temas econômicos e já

tivessem formulado teorias sociológicas que contemplassem esses temas, não se

identificavam como pertencentes a um campo de estudos dessa forma definido.

Foi o que aconteceu com Pierre Bourdieu (2000; 2005), com sua teoria dos

campos, e com Luc Boltanski (1991; 2002), em seus trabalhos sobre os princípios

de coordenação constitutivos da sociedade capitalista na história recente. Sem

falar na corrente que se formou em torno do M.A.U.S.S. (Moviment Anti-utilitariste

dans les Sciences Sociales), cuja principal proposta é a construção do “paradigma

do dom”, em oposição aos paradigmas classificados como utilitaristas, que

estariam dominando o senso comum e as ciências sociais. Desde 1988, a Revue

du MAUS publica trabalhos que buscam valorizar as contribuições de Mauss e

Page 163: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

162 Lúcia Helena Alves Müller

Polanyi, que criticam a noção de desenvolvimento e que tratam de formas

alternativas de organização da economia (renda mínima, economia solidária,

etc.).

Não se pode dizer que essas diferentes correntes dialoguem aberta e

diretamente entre si, mas seus integrantes se interpelam mutuamente e já se

reconhecem como participantes de um campo comum, voltado para o estudo

sociológico dos fenômenos, instituições, práticas e representações econômicos,

vividos na sociedade contemporânea. Como apontaram Kirchner e Monteiro

(2002), citando Lévesque et al. (1997), a principal diferença entre a corrente

norte-americana e as correntes francesas está no fato de que a “nova sociologia

econômica” está mais próxima da ciência econômica, disciplina da qual ela busca

se distinguir e com a qual procura, ao mesmo tempo, dialogar. Já as correntes

sociológicas francesas que abordam temas econômicos têm como principal

interlocutor a própria sociologia em suas vertentes teóricas estruturalistas e

marxistas, e como projeto, a crítica ou, até mesmo, substituição da ciência

econômica por uma “economia sociológica”, segundo a leitura que Raud (2007)

faz de Lebaron (2001).

Na área da sociologia, da década de 80 para cá, houve um claro processo

de institucionalização da sociologia econômica como campo de pesquisa. Isso

aconteceu de forma mais intensa nos Estados Unidos (Swedberg, 2004), mas

também está acontecendo em outros países, como no Brasil, onde a sociologia

econômica vem se tornando um campo de estudos cada vez mais importante e

renovador em termos de temáticas e abordagens. Não nos cabe fazer uma

revisão ou avaliação dessa produção, apenas ressaltar que esse processo está

acontecendo sem excluir o intercâmbio com outros campos de pesquisa, como o

da sociologia do trabalho, o da sociologia de empresas (Kirchner e Monteiro

2002), mas também com outras disciplinas, como a antropologia e a própria

ciência econômica.

Entre os autores tidos como pertencentes ao campo da “nova sociologia

econômica” norte-americana, Viviana Zelizer é uma das que mais tem inspirado

os pesquisadores brasileiros. Seus trabalhos também estão desempenhando um

papel muito importante na interlocução entre esse campo de pesquisa e a

antropologia.

Page 164: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 163

Conhecendo um pouco da obra dessa pesquisadora, torna-se fácil

identificar as razões dessa aproximação. Em seu livro intitulado The social

meaning of money, Zelizer (1994) aborda a economia doméstica dos norte-

americanos, e demonstra como, em uma sociedade capitalista totalmente

monetarizada, o dinheiro é pensado, nomeado, valorizado e usado de formas

muito distintas. As pessoas atribuem diferentes sentidos e valores ao dinheiro,

dependendo de como ele é obtido e em quê vai ser gasto (comida, doações,

poupança, etc.)

Zelizer critica radicalmente a separação a apriori entre o que seria o

“mundo econômico” e as outras dimensões da vida social. Ela questiona,

inclusive, certas concepções vigentes na antropologia que percebem as práticas

econômicas como subordinadas a lógicas culturais. Para essa pesquisadora, é

preciso levar a ideia de que “a economia” é socialmente construída até suas

últimas consequências, o que significa supor que os mercados são tão

diferenciados quanto as sociedades que os constituem. Zelizer realizou diversos

estudos voltados para essas questões. Em um deles (Zelizer 1992), a autora

mostra como, ao longo da história norte-americana, ocorreram mudanças nas

concepções e práticas relacionadas à adoção de crianças, práticas essas que

acabaram por conformar um mercado em que é negociado algo que, segundo

nosso senso comum, não pode ser tratado como mercadoria: os bebês. O

trabalho demonstra que, no final do século XIX, os pais biológicos é que tinham

que pagar para que outras pessoas cuidassem de seus filhos. E a quantia paga

era menor, caso se tratasse de meninos, já que eles poderiam ser mais facilmente

utilizados como mão de obra. Pela mesma razão, os mais velhos eram os

preferidos pelos candidatos a pais adotivos. Ao longo do século XX, aconteceram

diversas transformações nas formas de se perceber o papel das crianças na

família e, consequentemente, no sentido atribuído à adoção. Hoje, quem paga

pelas crianças são aqueles que querem adotá-las, para poderem usufruir

afetivamente de sua companhia. Nesse caso, quanto mais jovens forem elas,

maior o valor a ser pago. Além disso, as meninas são mais desejadas em função

das representações dominantes a respeito de sua maior adaptabilidade e

docilidade.

Page 165: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

164 Lúcia Helena Alves Müller

Mais recentemente, Zelizer (2005) produziu uma interessante reflexão

sobre como são construídas e negociadas as fronteiras entre as relações

monetarizadas e as relações consideradas como pertencentes ao plano da

intimidade. Para desenvolver suas ideias, a autora acompanhou o andamento das

negociações relativas a um fundo, que foi criado pelo governo norte-americano

com o objetivo de indenizar os familiares das vítimas do atentado ao World Trade

Center, ocorrido em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001. Zelizer analisou as

reivindicações feitas a esse fundo, por pessoas que se viam como possíveis

contemplados, e mostra que as demandas eram denominadas e legitimadas de

forma diversas, conforme eram concebidos os laços pessoais sobre os quais se

apoiavam. A mesma coisa acontecia com as formas de nomear as próprias

indenizações e de calcular o seu valor. Por exemplo, uma mulher que perdera o

marido no atentado, demandava uma compensação relativa à participação que o

salário do marido falecido tinha nos gastos domésticos; alguém que tinha um filho

com uma pessoa que morreu, reivindicava um valor que cobrisse os gastos

necessários à educação da criança até a sua formatura. Entre as demandas,

também havia quem reivindicasse o custeio do cuidado de um parente idoso ou

doente que estava aos cuidados da pessoa falecida; outros que reivindicavam

uma compensação pelo sofrimento gerado pela perda de uma pessoa com quem

tinha uma relação afetivamente importante. Enfim, os candidatos apresentavam

diferentes concepções de dano, às quais correspondiam diferentes concepções

de demandas, diferentes formas de cálculo e diferentes meios de pagamento, a

adequação entre esses elementos é o que podia, ou não, tornar legítimas as

reivindicações feitas.

As análises de Zelizer problematizam a ideia dominante, tanto no senso

comum quanto no pensamento acadêmico, da existência de uma fronteira fixa

entre as relações sociais e as relações econômicas, sobretudo aquelas mediadas

pelo dinheiro, sendo que as ultrapassagens dessa fronteira seriam, por princípio,

ilegítimas porque deturpadoras dos processos econômicos, ou profanadoras das

relações de caráter íntimo. Assim, Zelizer nos faz ver que essas fronteiras são

socialmente construídas em processos simbólicos historicamente

contextualizados.

Page 166: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 165

A “nova sociologia econômica” trouxe para o centro do debate

contemporâneo temas, conceitos e instrumentos analíticos que, até pouco tempo

atrás, eram de uso quase que exclusivos dos antropólogos (a dimensão simbólica

da vida social, as relações informais, as redes, o parentesco, a reciprocidade, a

abordagem etnográfica). Mas onde ficaram eles ao longo desse processo?

A antropologia e a sociedade contemporânea

Como já foi dito anteriormente, ao tomar a sociedade contemporânea como

campo de estudos, a antropologia organizou-se em novas áreas temáticas nas

quais os fenômenos econômicos estavam certamente presentes, mas não

constituíam mais a problemática principal. Só mais recentemente os antropólogos

começaram perceber que, assim como aconteceu com outros campos temáticos

clássicos (Monteiro, 1991), os conceitos, instrumentos e dados produzidos a partir

do estudo das sociedades “primitivas” ou tradicionais também podiam ser muito

úteis na abordagem dos fenômenos que, em nossa sociedade, são classificados

como econômicos, e que estão no centro da vida social contemporânea.

Mas para compreendermos até que ponto a “antropologia econômica”, isto

é, as questões envolvidas no debate que constituiu esse campo de pesquisa nas

décadas de 50-60 (formalistas X substantivistas e marxistas) podem contribuir

para a abordagem antropológica de temas econômicos da sociedade

contemporânea, temos que refletir sobre qual o significado de se propor essa

sociedade como objeto de estudos antropológicos, para cada uma das

perspectivas envolvidas.

Se ao falarmos em "sociedade contemporânea" estamos nos referindo a

uma multiplicidade de formações sociais articuladas fundamentalmente por

relações de caráter econômico – o chamado sistema capitalista global – para a

perspectiva formalista, a proposta não faria sentido, já que a ciência econômica,

disciplina na qual se originaram os pressupostos teóricos que orientam essa

perspectiva, seria o campo científico apropriado para o estudo dos fenômenos

econômicos que se desenvolvem nessa sociedade.

Apesar das diferenças radicais que a opõe à corrente formalista, a

perspectiva marxista também definiria a especificidade do estudo antropológico a

Page 167: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

166 Lúcia Helena Alves Müller

partir de seu campo de estudo: as sociedades “primitivas”. Sendo assim, um

estudo sobre fenômenos econômicos da sociedade contemporânea não se

distinguiria por ser, ou não, antropológico, mas por ter, ou não, uma orientação

teórica marxista.

Não há dúvidas de que essa teoria produziu um instrumental muito

eficiente para a compreensão do processo de expansão e reprodução do sistema

capitalista, o qual não pode, de maneira alguma, ser ignorado se quisermos

compreender a formação do que chamamos de sociedade contemporânea,

sobretudo em relação à incorporação e articulação de sociedades ao sistema

global1

Entretanto, se partirmos do princípio de que a especificidade da

antropologia não está no fato dela se dedicar a um determinado campo de estudo

(sociedades “primitivas” ou grupos periféricos em relação à sociedade capitalista),

mas na ótica através da qual os antropólogos constroem seus objetos de

pesquisa em qualquer tipo de sociedade (inclusive a nossa); se tivermos sempre

em mente que a especificidade da abordagem antropológica está no exercício de

colocar diferentes sociedades ou universos simbólicos em perspectiva recíproca,

podemos dizer que, entre as correntes participantes do debate chamado de

“antropologia econômica”, a chamada substantivista seria a mais claramente

afinada com a abordagem antropológica, pois, não tendo como pressuposto o

primado universal da economia (seja como esfera social específica e/ou

determinante, seja como princípio universal das práticas: o chamado homo

economicus) para a compreensão da sociedade, ela encaminha necessariamente

à relativização das próprias categorias e noções com as quais se pode abordar os

fenômenos que classificamos como econômicos.

. Por outro lado, para abordarmos os fenômenos econômicos que definem

a especificidade dessa sociedade, temos, necessariamente, que considerar os

conhecimentos produzidos a partir dos pressupostos teóricos que fundamentam a

ciência econômica, na medida em que eles dão conta de aspectos importantes de

seu funcionamento (Godelier, s.d. p.40), mesmo se interpretarmos esses

conhecimentos como a auto-concepção do sistema capitalista (Sahlins, 1979).

Na antropologia, essa perspectiva inspirou abordagens que colocaram o

foco da análise sobre a dimensão social do que chamamos de "fenômenos 1 Sobre esse tema, ver entrevista com Eric Wolf, em Ribeiro (1985).

Page 168: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 167

econômicos". De forma mais radical, ela está na base das abordagens que veem

a noção de economia, ela própria, como sistema de representações, como em

Dumont (2000) ou, ainda, como conformando um sistema cultural passível de

uma análise simbólica, como em Sahlins (1979).

Levada às últimas consequências, a perspectiva substantivista colocou em

xeque a possibilidade de se pensar em "antropologia econômica" como um

campo específico, na medida em que dilui o seu objeto em problemáticas mais

amplas e diversificadas, mesmo que esses objetos se situem numa sociedade

que se estrutura material e simbolicamente a partir do que chamamos de

“economia”.

Antropologia da economia

A partir do que foi exposto até aqui, torna-se mais compreensível que os

cada vez mais numerosos antropólogos que estudam instituições, organizações,

práticas e representações relacionadas com o que chamamos de “economia”

tenham certa dificuldade ou, até mesmo, resistência em identificar seu campo de

pesquisa através da expressão “antropologia econômica”. Em geral, eles buscam

definir suas temáticas de forma mais restrita, utilizando expressões como: “os

usos do dinheiro” (Bloch, 1994), “temas econômicos” (Bazin 2001), “etnografia

econômica” (Dufy e Weber, 2007). Não é à toa que essa temática só reapareceu

de forma mais autônoma nos eventos acadêmicos brasileiros da área da

antropologia muito recentemente e, mesmo assim, definida através de expressões

tais como “etnografias do capitalismo” ou “antropologia da economia”.

E sobre o que tratam os trabalhos desses antropólogos,

independentemente dos termos utilizados para nomear seu campo temático?

Tratam de temas como os mercados, a vida empresarial, questões relativas à

propriedade, ao trabalho, ao dinheiro, ao crédito, ao consumo, enfim, tudo àquilo

que também interessa aos economistas, aos pesquisadores filiados à sociologia

econômica, sem falar nas outras disciplinas, como a psicologia, a administração,

a comunicação e, porque não?, a ciência econômica.

As diferenças, que não são absolutas, podem ser identificadas, como já foi

dito, na definição do objeto e nas formas de abordagem de cada área do

Page 169: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

168 Lúcia Helena Alves Müller

conhecimento. Embora as publicações ainda não sejam muito numerosas, os

anais dos principais eventos acadêmicos de antropologia ocorridos no Brasil e em

outros países da América Latina estão cada vez mais repletos de trabalhos sobre

mercados formais e informais, legais e ilegais; locais e globais, mercados ou

outros tipos de transações em que se troca aquilo que, de acordo com o senso

comum, “não tem preço” (sexo, confiança, cuidados pessoais, poderes mágicos,

etc.); práticas e representações acerca do dinheiro; dimensões simbólicas da vida

empresarial (conflitos, processos de construção e desconstrução de identidades,

de ideologias, etc.), práticas de consumo, as relações entre economia e religião,

entre economia e parentesco, entre economia e concepções da natureza,

economia e gênero, economia e identidade étnica, etc.

Não sendo possível descrever todos esses temas num texto como esse,

limito-me a exemplificar algumas possibilidades de abordagem de temas

econômicos a partir da antropologia, através da exposição de alguns resultados

de um projeto de pesquisa que se encontra em andamento. O tema geral desse

projeto é o processo, que teve início recentemente no Brasil, de crescimento da

oferta de crédito ao consumidor de baixa renda. O objetivo é buscar compreender

de que maneira determinados grupos da sociedade brasileira estão sendo

incorporados ao mercado de consumo, via a oferta de crédito, sendo que esse

processo é acompanhado de uma incorporação desses grupos ao chamado

sistema financeiro, isto é, do crescimento do uso de instrumentos como contas

bancárias, cartões de crédito, etc.2

Esse processo foi estimulado por uma política de governo que visava

alavancar o crescimento econômico, via estímulo ao consumo de massa e,

também, promover a chamada “inclusão financeira”, que agentes internacionais

de fomento ao desenvolvimento veem como um indicador de avaliação do grau de

inclusão social. Essas políticas, aliadas ao interesse comercial de instituições

financeiras e de empresas de varejo pelo público de baixa renda, produziram uma

mudança no perfil dos consumidores e induziram a financeirização da vida

econômica de grupos sociais que não estavam, até então, habituados ao uso

desses instrumentos para geri-la.

.

2 O projeto tem o título de “Me dá um dinheiro ai? Crédito e inclusão financeira sob a ótica de grupos populares”. Essa pesquisa contou com financiamento do CNPq.

Page 170: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 169

Para a realização dessa pesquisa, escolhemos enfocar primeiramente

algumas das diversas formas de crédito que se encontravam disponíveis para os

grupos de baixa renda. Uma dessas formas foi o penhor, modalidade de crédito

muito tradicional, mas cujo uso vem crescendo enormemente no Brasil, tendo

batido recordes em termos número de usuários e de volume de empréstimos nos

anos de 2007 e 2008 (Müller e Vicente, 2007). O penhor pode cobrar juros mais

baixos do que outras modalidades de crédito porque garante o valor fornecido

com ouro e pedras preciosas que ficam sob sua custódia. Já foi possível penhorar

objetos e eletrodomésticos, mas essa modalidade de penhor foi desativada em

função do ritmo cada vez mais veloz da obsolescência tecnológica, que fazia com

que os aparelhos penhorados se desvalorizem muito rapidamente.

Por pressupor a posse de joias, tendemos a pensar que o penhor está

disponível somente para quem tem alto poder aquisitivo. No entanto, a média do

valor dos empréstimos realizados através dessa modalidade de crédito é bastante

baixa, sendo que, em algumas agências da Caixa Econômica Federal, instituição

financeira que tem exclusividade na prestação desse serviço, ela não

ultrapassava R$ 150,00, no ano de 2007. Já na modalidade chamada de “micro-

penhor”, o valor máximo emprestado era de R$ 600,00, e esse tipo de

empréstimo só estava disponível para quem possuísse conta bancária com saldo

inferior a R$ 1.000,00. Trata-se, portanto, de pessoas com pouca renda e que,

eventualmente, só têm uma aliança ou anel para penhorar. Ou, então, de pessoas

pertencentes a certos segmentos da classe média que se encontram em claro

processo de perda de poder aquisitivo ou, mesmo, de franco empobrecimento

(funcionários públicos, aposentados, desempregados). O fato da grande maioria

dos contratos do penhor (70%) ser feita para o pagamento de dívidas, e não para

a aquisição de bens ou para responder a outro tipo de necessidade de crédito,

também reforça essas ideias.

O estudo do penhor nos obrigou a ver como as questões relacionadas com

as fronteiras entre o espaço das relações monetarizadas e o espaço da intimidade

(Zelizer, 2005) podem estar inseridas no centro da economia capitalista. Trata-se

de um instrumento de crédito que faz parte dos instrumentos financeiros, e que

está sendo valorizado pelo governo como uma forma de diminuir os juros e de

fornecer mais crédito à população. Seu funcionamento está vinculado à dinâmica

Page 171: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

170 Lúcia Helena Alves Müller

de circuitos globais, como o do mercado de ouro e de pedras preciosas, que são

produtos negociados e cotados em bolsas de commodities.

O funcionamento do penhor também está ligado à dinâmica de sistemas

mundializados, como o que dita os modelos das joias, num processo que inicia

junto aos grandes designers, as grandes marcas, passando pela reprodução legal

ou ilegalmente feitas pelas griffes locais, por pequenos joalheiros e por

vendedores ambulantes que oferecem joias e “semi-joias” aos funcionários de

empresas e repartições públicas, chegando aos compradores de “ouro usado”

(muitas vezes frutos de roubos e extorsão) que circulam pelas nas esquinas das

grandes cidades.

Outro dado muito importante que esse estudo traz para a reflexão é o de

que, segundo a própria Caixa, 80% das pessoas que frequentam o penhor são

mulheres. Estamos falando, portanto, de uma instituição cujo funcionamento tem

um viés de gênero muito marcado. São quase sempre as mulheres que ganham,

compram ou detêm as joias. Elas formam um patrimônio que passa de geração

em geração, através das mulheres. Assim, as mulheres não podem ser vistas

necessariamente como proprietárias das joias, mas como suas guardiãs, pois não

se pode simplesmente vender o anel de casamento “da vovó” sem correr o risco

de sofrer cobranças dos demais membros da família. A herança das joias também

é um assunto de âmbito familiar. As joias “da vovó” não passam para qualquer

mulher e, sobretudo, não ultrapassam as fronteiras da consanguinidade (se não

há filhas ou irmãs, as joias passam diretamente para as netas ou até para

sobrinhas, mas dificilmente vão ser transferidas para noras ou cunhadas).

Os homens compram as joias para ofertar às mulheres. Nessas

circunstâncias, as joias podem simbolizar seus sentimentos e o valor que eles

atribuem às mulheres e à sua relação com elas. Ao usar a joia, as mulheres

exibem publicamente essas avaliações. Quando uma mulher mostra um anel que

ganhou do namorado, na verdade, ela está querendo demonstrar o valor que ele

lhe atribui. Esse tipo de compreensão gera discordâncias e decepções nas

ocasiões em que as pessoas vão ao penhor pensando que suas joias têm muito

valor e o avaliador da Caixa conclui que ela tem pouca ou nenhuma quantidade

de ouro ou, ainda, que a pedra incrustada na joia não é um diamante.

Page 172: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 171

Como modalidade de crédito, o penhor só existe porque as pessoas

compram joias. E, como vimos, as pessoas não compram, presenteiam, vendem

ou penhoram joias pautadas pela lógica financeira ou pela dinâmica do mercado,

mas por outros códigos. Como exemplo, podemos tomar o caso de mulheres que

penhoram suas joias quando se separam dos maridos, e não as resgatam,

deixando que elas sejam leiloadas por falta de pagamento. Através desse ato,

essas mulheres transformam em “apenas” dinheiro aquilo que simbolizava uma

relação que afetivamente não vale mais nada. Outro exemplo são as mulheres

que penhoram joias que, segundo elas, lhes foram ofertadas justamente porque

seus maridos não as amam mais. Elas aceitam trocar sua tolerância em relação

às infidelidades do marido por joias que são penhoradas para que elas possam

usar o dinheiro, sem culpa.

Vemos, então, que as operações de crédito através do penhor envolvem

questões muito complexas: Quem tem o direito de levar as joias da família para o

penhor? Quem é o herdeiro natural das joias da família? Sabemos que não é

qualquer um, que é preciso respeitar as linhagens, as hierarquias, e que esse tipo

de herança está submetido a um controle coletivo, familiar. Quem não respeitar os

códigos estará criando um problema, pois, a longo prazo, alguém pode

legitimamente perguntar: – Onde foi parar aquelas joias que eram “da vovó”?

Assim, através do caso do penhor, é possível levantar alguns exemplos de

como as lógicas afetivas, os papéis sociais de gênero e de natureza familiar, os

códigos de honra e outros que são comumente pensados como separados ou

totalmente subordinados às leis da economia, podem estar intimamente

imbricados nas práticas relativas à compra, à circulação, à posse, ao uso, à

avaliação e à penhora de joias. Não é à toa que os avaliadores do penhor da

Caixa têm um grande conhecimento sobre a vida social. Eles lidam diariamente

com a negociação entre os códigos que entram em jogo na hora da avaliação, um

momento em que as pessoas costumam se encontrar em crise ou em conflito,

não sendo incomum que os usuários do penhor expliquem detalhadamente aos

avaliadores as razões para estarem procurando penhorar as joias de família ou

alianças de noivado, por exemplo. Trata-se de assuntos muito sérios e, por vezes,

traumáticos.

Page 173: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

172 Lúcia Helena Alves Müller

Outra forma de crédito mapeada no âmbito do projeto foi a do crédito

consignado (Candido, 2007). O estudo enfocou especificamente a categoria dos

aposentados, e demonstrou que, embora as instituições levem em conta as

condições financeiras individuais de seus clientes para avaliar sua capacidade de

endividamento, o mecanismo do crédito consignado é acionado para responder a

necessidades de diversos membros do grupo familiar. O fato desses aposentados

(em geral, idosos), não raro os únicos membros das famílias a terem renda fixa,

disporem, também, de acesso privilegiado ao crédito pode resultar no aumento de

seu poder no espaço doméstico. Também pode ter como efeito a diminuição da

autonomia do aposentado, em função do comprometimento de sua renda no

abatimento dos empréstimos feitos para cobrir a necessidade dos demais

familiares, que são assumidas como obrigações suas e avalizadoras de seu

desempenho no papel de pai, mãe, avós, etc.

Nesse projeto também estamos enfocando os jovens universitários, que

vêm sendo alvo de uma investida massiva por parte das instituições financeiras,

que os veem como clientes muito interessantes3

O acesso aos mecanismos financeiros e o crédito que lhes é oferecido pela

simples razão de estarem na universidade fazem com que esses jovens ganhem

um grau de autonomia financeira que não corresponde necessariamente ao grau

de autonomia que eles dispõem em termos econômicos, na medida em que

grande parte dos estudantes não é capaz de se autossustentar, embora muitos

trabalhem e tenham uma parcela considerável de sua renda comprometida com o

orçamento familiar. Nossas investigações procuram compreender como esses

. Os universitários recebem

constantes propostas de abertura de contas bancárias que incluem um

determinado valor em crédito pré-aprovado, o acesso ao uso de cartão de crédito,

etc. Com o crescimento das vagas nas universidades públicas e com a

implementação de programas de bolsas em universidades privadas (Prouni), são

numerosos os casos de jovens que representam a primeira geração de seu grupo

familiar a ter acesso ao ensino superior, o que significa que pertencem a grupos

em plena trajetória de ascensão social.

3 Essa pesquisa está sendo desenvolvida com o auxílio da bolsista de iniciação científica da FAPERGS, Eleonora França Teixeira.

Page 174: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Antropologia das instituições e organizações econômicas 173

jovens são percebidos pelas instituições financeiras e como eles incorporam os

instrumentos e conhecimentos financeiros em sua vida cotidiana.

Conclusão

O objetivo desse texto foi o de localizar o espaço da antropologia no atual

movimento de revalorização das temáticas econômicas por parte das ciências

sociais. Tendo presente que uma leitura como essa é sempre parcial e traz

marcas da inserção do autor no campo abordado, espero que ele tenha sido

capaz de mostrar como essa disciplina vem participando da construção, que se

encontra em pleno andamento, de um novo campo de estudos. Se o que move os

participantes desse novo campo é continuar no esforço de compreensão da

economia como dimensão social e simbolicamente construída da sociedade, a

antropologia terá sempre muito a contribuir, independentemente do nome que se

dê a esse esforço, que interessa a todos nós.

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174 Lúcia Helena Alves Müller

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Page 177: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?

Léo Peixoto Rodrigues1

1. Introdução

O presente capítulo tem por finalidade contribuir teoricamente para o

debate que tem se construído nas últimas décadas, e que faz parte de reflexões

no âmbito das ciências sociais brasileira e internacional, no que diz respeito à

chamada sociedade do conhecimento, modernidade, pós-modernidade, ciência e

racionalidade. A partir de contribuições substanciais, já vistas como clássicas,

como as de Daniel Bell, Jean-François Lyotard, Michel Foucault e Thomas Kuhn,

examinam-se aspectos teóricos, sejam de natureza preditiva, como no caso de

Bell e Lyotard, sejam de natureza essencialmente teórica – Kuhn e Foucault –,

buscando-se pontuar alguns aspectos do debate que, de certa forma, fujam da

tônica mais comum, cujos posicionamentos colocam-se ao lado ou de uma

perspectiva que privilegia a chamada modernidade ou, antagonicamente, de uma

perspectiva pós-modernidade.

Argumenta-se que a noção de sociedade do conhecimento está presente

em distintos conceitos que se esforçam por caracterizar as drásticas e aceleradas

transformações ocorridas, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX.

Conceitos tais como: pós-fordismo, pós-industrialismo, neomodernidade, alta

modernidade, contemporaneidade, pós-modernidade e outros, mesmos que

apresentem certas diferenças entre si, de algum modo, são utilizados com o

mesmo objetivo de distinguir estados de ordem social, cultural, política,

econômica e tecnológica distintas. Essa necessidade de apontar as diferenças

entre os diferentes momentos da organização social, bem como a dificuldade de

se construir consensos teóricos, busca-se aqui explorar.

1 Licenciado em Ciências Físicas e Biológicas pela Faculdade Porto Alegrense de Ciência e Letras (FAPA); Licenciado e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Mestre e Doutor em Sociologia (UFRGS). Atualmente é Professor da Universidade Federal de Pelotas - UFPel.

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Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”? 177

Destaca-se a necessidade de que sejam examinadas as razões que

motivaram a chamada descontinuidade, o fim dos metarrelatos, ou crise da

modernidade, como possibilidade de representação dos ideais humanos em suas

diferentes formas de conhecimento. Nesse aspecto, aponta-se a própria Ciência,

como forma hegemônica de produção de conhecimento durante toda a

modernidade, que através de um processo analítico de diferenciação e de

produção de novos conhecimentos, tem propiciado, cada vez mais o

desenvolvimento de dissensos, gerando a atual teia de complexidade.

Por fim, argumenta-se sobre a necessidade de o conhecimento moderno,

através de seus principais eixos, ir em busca de determinadas sínteses (junções),

contrariamente ao processo de análise (separação) gerado pela Ciência, para que

a modernidade retome determinados consensos fundamenteis para a consecução

de seu principal objetivo: emancipação/reconhecimento..

A partir dessa perspectiva, é necessário que tais questões sejam

enfrentadas, partindo de uma sociologia do conhecimento. Em nenhum outro

momento da era moderna o conhecimento teve uma centralidade tão importante;

a revitalização de uma sociologia que se detenha sobre o conhecimento, no

sentido lato, nessa contemporaneidade, é de fundamental importância para o

maior entendimento de questões que têm transbordado os diferentes campos

disciplinares. Muito já se tem dito sobre o fato de a sociedade contemporânea constituir-

se numa sociedade do conhecimento. Entretanto, a noção de sociedade do

conhecimento suscita, de imediato, um questionamento central: qual sociedade e

em que momento se tornou uma sociedade do conhecimento, visto que a espécie

humana, de alguma forma, muito antes da polis grega já teria produzido algum

tipo de conhecimento. O marco referencial da discussão de uma sociedade de

conhecimento, porém, tem sido aquilo que se passou a denominar de

conhecimento moderno, isto é, o conhecimento que emerge a partir da crise do

sistema feudal e da retomada do logos grego, com as releituras de Platão e

Aristóteles, propiciando a emergência de uma episteme renascentista que vai

assentar as bases da Ciência Moderna.

Quando falamos em sociedade do conhecimento, então, a discussão que

se coloca está vinculada ao conhecimento chamado de conhecimento científico,

Page 179: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

178 Léo Peixoto Rodrigues

desenvolvido a partir de uma intrincada confluência de novos saberes que fazem

vir à tona importantes noções como: razão, indivíduo, natureza, verdade,

regularidade, certeza, etc; noções, estas, quase que completamente inexistentes

antes do século XVII e, quando existente, como as de natureza e verdade,

estavam regidas por uma episteme distinta daquela que passa a viger na

chamada modernidade e, portanto, com um sistema de significação

completamente distinto.

Assim, o termo “sociedade do conhecimento” traz em si a necessidade de

maior reflexão – e de diferenciação – tanto das noções de sociedade, como de

conhecimento e de ciência, além de várias outras noções colorarias, forjadas em

diferentes momentos da modernidade, tais como: capital/trabalho, sociedade

industrial, sociedade patriarcal, sociedade burguesa, industrialismo, etc. Nesse

sentido, é a própria “modernidade” do século XX, principalmente a partir da

segunda metade, quem passa a travar um diálogo – melhor seria dizer debate –

com a sua tradição. Tal diálogo passa a não se constituir como meramente crítico,

numa costura permeada por teses e antíteses, sempre mediada pela razão, nos

termos da construção de quase todo o conhecimento Iluminista. O debate que se

tem feito nas últimas décadas – na chamada contemporaneidade – parece

constituir-se mais propriamente numa ruptura de diversos pressupostos

modernos, que num diálogo crítico. Essa ruptura, essa descontinuidade, ou esse

dissenso que se disseminou por diferentes áreas do conhecimento moderno, tem

sido amplamente debatido em diferentes setores da sociedade, por diferentes

mídias e recebido, por parte dos intelectuais, diferentes conceituações. É nesse

sentido que se busca, a seguir, identificar a emergências contemporâneas desse

debate, propondo alguns elementos de natureza epistemológica e sociológica à

sua reflexão.

2. Sociologia e conhecimento, episteme e paradigma

O agora clássico livro de Daniel Bell, The Coming of Post-industrial Society,

publicado em 19732

2 Neste artigo utilizaremos a tradução brasileira intitulada O Advento da Sociedade Pós-industrial: uma tentativa de previsão social, de 1977.

, é um importante marco no debate entre a chamada

Page 180: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”? 179

contemporaneidade e os diferentes momentos da tradição moderna3

, ao anunciar

alguns indicadores de descontinuidade na forma como o conhecimento e a

sociedade estavam sendo produzidos. Segundo Bell,

O conceito de sociedade pós-industrial é uma generalização muito ampla. Seu significado será mais facilmente compreendido se especificarmos cinco dimensões ou componente do termo: 1. Setor Econômico: a mudança de uma economia de bens para uma economia de serviços; 2. Distribuição ocupacional: a preeminência da classe ocupacional e técnica; 3. Princípio axial: a centralidade do conhecimento teórico como fonte de inovação e de formulação política para a sociedade; 4. Orientação futura: controle da tecnologia e a distribuição tecnológica; 5. Tomada de decisão: a criação de uma nova “tecnologia intelectual” (Bell, 1977, p.27-28).

Daniel Bell antevê com bastante acuidade aquilo que anos mais tarde

passaria a ser chamado de sociedade do conhecimento, por diferentes autores. É

importante levar em conta que a sua predição é anterior à massificação da

utilização do computador pessoal, o chamado PC (personal computer), mesmo

nos Estados Unidos4

3 Quando falamos em diferentes momentos da tradição moderna, é porque estamos contemplando as diferenciações que existiram nos saberes e fazeres ao longo da modernidade; por exemplo: os diferentes momentos do modo de produção capitalista; as diferentes etapas do industrialismo; o deslocamento da mão de obra dos setores – classicamente criados por Colin Clark – primário, secundário e terciário, ao longo dos séculos XIX e XX; os diferentes sistemas de produção gestão e processos de trabalho. Entretanto, tais diferenciações, na minha opinião, não chegaram a se constituir numa ruptura epistêmica ou paradigmática.

. As tecnologias informacionais desenvolvidas a partir de

1970 aceleraram de forma surpreendente a mudança de uma economia de bens

para uma economia de serviços, embora essa mudança já acontecesse,

principalmente nos Estados Unidos, mesmo antes da década de 50. Esse

deslocamento da economia de bens exigiu, igualmente, o deslocamento

ocupacional, mudando de forma estrutural o mundo do trabalho, tornando-o mais

complexo, menos repetitivo (no caso do humano), exigindo, por consequência,

maior qualificação dos trabalhadores. De fato, com o desenvolvimento da

cibernética, que deu origem a uma bem formalizada teoria da informação e da

comunicação, cuja informática é apenas uma de suas variantes, as possibilidades

de interconexões teóricas e práticas, isto é, o desenvolvimento de tecnologias –

tecnologia como “o uso do conhecimento científico para especificar as maneiras

4 Sobre o tema ver Castells, 1999.

Page 181: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

180 Léo Peixoto Rodrigues

de fazer as coisas de um modo reprodutível”5

As transformações apresentadas por Bell, em 1973 – e que de certa forma

têm se confirmado e em muitos aspectos surpreendido, dada a sua radicalidade –

, quando vistas de uma perspectiva do debate moderno/contemporâneo, não

parece tratar-se simplesmente da adoção de um ou de outro enfoque crítico sobre

teorias concorrentes, métodos de abordagens, ou da escolha ou não de um

determinado objeto empírico. Trata-se, mais adequadamente, de esgotamento de

uma epistèmê, no sentido foucaultiano, ou da mudança de um paradigma no

sentido kuhniano. Com essa mudança paradigmática, assiste-se a impossibilidade

de teorias universalizantes em darem conta in totum da realidade social, como

aquelas propostas pelos clássicos da sociologia – com Marx, a possibilidade

emancipatória, via proletariado, e o fim do sistema capitalista; com Durkheim, a

coalescência, pela via do consenso; e, com Weber, a igualdade e racionalidade

organizacional e social, através do processo de burocratização.

– deslocaram boa parte do saber-

fazer de uma dimensão meramente prática, para uma dimensão teórica, de

inovação, de criatividade. Essa é a centralidade do conhecimento teórico como

fonte (stock), de inovação e de formulação política para a sociedade a que se

refere Bell (1977, p. 31-32), quando afirma que a “sociedade industrial representa

a coordenação das máquinas e dos homens para a produção dos bens. A

Sociedade pós-industrial organiza-se em torno do conhecimento, a fim de exercer

o controle social e a direção das inovações e mudanças.”

A noção de sociedade do conhecimento está presente em diferentes

nomenclaturas que se esforçam por caracterizar as marcantes e aceleradas

transformações que se seguiram principalmente a partir dos anos 60 do século

XX. Essas nomenclaturas, tais como pós-fordismo, pós-industrialismo,

neomodernidade, alta modernidade, contemporaneidade, pós-modernidade, como

já mencionamos, embora possam ter sutilezas ou buscarem focar aspectos

diferentes de uma mesma realidade, todas têm em comum um mesmo fio

condutor, qual seja: a necessidade de distinguir alguma faceta de transformação

de um estado de ordem anterior – com um certo nível de consenso – para um

novo e singular estado, cujas percepções, olhares, focos e decorrentes esforços

5 Nesse sentido reproduzo a definição de tecnologia proposta por Harvey Brooks (1971), utilizada e citada tanto por Daniel Bell (1977, p. 44), como por Manuel Castells (1999, p.49).

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Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”? 181

explicativos não apresentam suficiente consenso. Portanto, é essa necessidade

de pautar as distinções, bem como a dificuldade – mesmo numa perspectiva

crítica – de consenso, ou pelo menos de pontuar os elementos constitutivos do

dissenso que caracteriza o que se pode chamar de descontinuidade.

Na chamada modernidade, principalmente no Iluminismo, o conhecimento

parecia avançar, tendo como mola propulsora a crítica que se colocava de forma

dialógica (dialogal) e quase sempre dual. O conhecimento também parecia

avançar, desenvolver-se numa dimensão dialética, com teses, antíteses e

decorrentes sínteses suficientemente bem caracterizadas. Os diferentes

momentos do debate filosófico e científico, na modernidade, pareciam apresentar

estruturas argumentativas que ofereciam, na maior parte das vezes, a

possibilidade de identificação de consenso ou de dissenso, quando à

plausibilidade de teses e de antíteses e consequentes sínteses.

A ideia de crise ou de descontinuidade do conhecimento, que tem dado

sustentação à noção de pós-moderno, passa necessariamente pela dificuldade ou

impossibilidade de realização de sínteses a partir de diferenciações duais.

Contemporaneamente, os objetos do mundo6

É a diferenciação dos modos de ser, saber, fazer e estar, que perpassa os

diferentes planos (social, político, econômico, cultural) das sociedades

contemporâneas, sejam elas ocidentais ou orientais, provocando, uma ruptura de

caráter epistemológico com relação ao conhecimento desenvolvido nas

sociedades modernas. Isso coloca em questão aspectos fundamentais

relacionados ao conhecimento: aspectos de caráter epistemológico, isto é, sobre

os próprios fundamentos do que é verdadeiro e falso; aspectos de caráter

heurísticos, ou seja, a partir de que conjunto de regras podemos conhecer com

segurança os fenômenos em contínua transformação; e aspectos de caráter

– pertencentes a diferentes

categorias da cognição, isto é, sejam eles reais, virtuais ou simbólicos, passíveis

de abordagens teóricas ou empíricas – são resultados de um acelerado processo

de diferenciação, cujas sínteses, quando possíveis, não geram necessariamente

“um novo”, um “resultado”, uma “solução”, senão mais e mais diferenciações.

6 Chamamos aqui de “objetos do mundo” tudo aquilo que é produzido pelo conhecimento, seja ele de que natureza for: filosófico, científico, literário, artístico, tecnológico, religioso, ou de senso comum. A natureza desses objetos também pode ser real concreta, real abstrata, real virtual. Chamo, aqui, de “real” toda e qualquer experiência compartilhada por grupos sociais, independentes do tempo e do espaço.

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182 Léo Peixoto Rodrigues

teórico: de que forma é possível construir um modelo – teorias são modelos

descritivos e/ou explicativos do real – que descreva, represente, ilumine a

realidade fática se, por um lado, esse modelo carece de uma fundamentação, de

um conjunto de regras e de métodos que lhe permita acessar o “objeto” a ser

conhecido e, por outro lado, como construir um modelo que explique uma

realidade que se diferencia a todo instante. Nessa mesma direção, Stein, afirma

que:

O fim da modernidade é o momento em que não foi mais possível sustentarmos que é possível, através de um único sistema filosófico, dar explicação que tenha eficácia em todos os domínios do saber humano: em nível cognitivo, em nível de conhecimento, em nível prático, em nível moral e também em nível subjetivo, em nível artístico, etc.(Stein, 2001, p. 21).

As vozes que se colocam contrárias ao argumento do “fim da

modernidade”, oriundas de diferentes correntes, fundamenta-se basicamente em

três pontos corolários, quais sejam: a) a modernidade não se constituiu num

processo linear e tem apresentado diversos momentos de importantes

transformações, portanto, essa contemporaneidade, é mais um desses

momentos; b) a modernidade ainda não se realizou na plenitude de seus ideais

basilares, e as transformações contemporâneas constituem-se no contínuo

esforço para a consecução desses ideais; e, c) a existência de uma “nova ordem”

é um produto da modernidade, representa a continuidade de algo pré-existente e,

portanto, não é um “pós”; não pode ser vista como uma ruptura, tampouco como

um fim.

Os pontos elencados e defendidos por correntes de pensamento, quer

sejam filosóficas, sociológicas ou históricas não deixam de ter alguma razão. De

fato, na superfície dos acontecimentos, no desenrolar das transformações

cotidianas, é possível o estabelecimento de uma linearidade de acontecimentos

que levam a outros acontecimentos, sucessivamente, sem que se perceba

qualquer corte, ruptura ou fim. Entretanto, a partir de um olhar menos horizontal e

mais verticalizado, no que diz respeito às transformações contemporâneas, e que

busque comparar os fundamentos que dão sustentação ao estado de ordem

moderna e as transformações (diferenciações) das últimas décadas, é possível

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Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”? 183

perceber as descontinuidades, rupturas ou finalizações no que diz respeito aos

fundamentos epistêmicos, heurísticos e teóricos entre um estado de ordem e

outro. Esse mergulho aos fundamentos e a descontinuidade dos mesmos foi o

que Foucault chamou epistèmê, em As Palavras e as Coisas, publicado em 1966.

Para Foucault a epistèmê de uma determinada época pode ser vista pelos

condicionantes de uma ordem intrínseca, por uma espécie de logos, que constitui

um substrato fértil que permite e limita, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de

um determinado tipo de conhecimentos e saberes em detrimento de outros. Na

suas palavras, epistèmê significa a identificação,

Segundo qual o espaço de ordem se constitui o saber; na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades (...) Não se tratará, portanto de conhecimento descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse, em fim se reconhecer (...) trata-se de trazer à luz o campo epistemológico, a epistèmê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou suas formas objetivas, enraízam sua positividade (Foucault, 1999, p.xviii).

Epistèmê, em Foucault, não quer dizer sinônimo de conhecimento ou de

saber, significa, sim, a existência, de um princípio de ordenação histórica dos

saberes e daquilo que se entende por conhecimento anterior à ordenação do

discurso estabelecida pelos critérios de cientificidade e dela independente. A

epistèmê é a ordem específica do saber; é a configuração, a disposição que o

saber assume em determinada época e que lhe confere uma positividade

enquanto saber (Foucault, 1990). Em outras palavras, a epistèmê é constituída

pelo conjunto de pressupostos, preceitos e possibilidades que estruturam o

pensamento e as práticas – discurso, nos termos de Foucault – de uma

determinada época. Isso significa que seria a própria epistèmê quem determinaria

as fronteiras, os limites de possibilidade de conhecimento e de experiência de um

determinado momento histórico, controlando, inclusive os graus, os níveis e as

formas do próprio processo de diferenciação de uma sociedade.

Como já mencionei em outro lugar (Rodrigues, 2005), as teses levantadas

por Thomas Kuhn, principalmente com os seus conceitos de ciência normal,

revolução científica e paradigma, publicadas em A Estrutura das Revoluções

Page 185: Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea

184 Léo Peixoto Rodrigues

Científicas, em 1962, reacendeu o debate epistemológico clássico sobre a

positividade da Ciência moderna, no sentido do consenso, da certeza, da

verdade, da previsibilidade e, principalmente, da linearidade e da acumulatividade

da Ciência e de suas descobertas. É interessante salientar que aquilo que Kuhn

(1996, p. 45) definia como paradigma, para ciência, isto é: “toda a constelação de

crenças, valores, técnica, etc..., partilhadas pelos membros de uma determinada

comunidade”, Foucault empregava ao termo epistèmê, um sentido muito mais

abrangente, de forma que abarcasse toda a dimensão cultural e

consequentemente seus diferentes tipos de conhecimento e saberes, de uma

determinada sociedade.

Para que se possa conhecer como se compõe esse substrato que se

constitui na chamada epistèmê, isto é, o subsolo que possibilita a sua

emergência, restringindo e incentivando, conhecimentos e práticas (discursos),

Michel Foucault (1997) propõe mais que um método, uma heurística, mas, sim,

uma arqueologia do saber. Na realidade, come diz Strathern (2003, p 36) ele

propõe “a exumação das estruturas de conhecimento ocultas que dizem respeito

a um período histórico particular. Isto consiste dos pressupostos e preconceitos,

em geral inconscientes, que organizam e delimitam objetivamente o pensamento

de qualquer época”. A noção de paradigma, proposta por Kuhn, embora

circunscrita à Ciência, não tem outra finalidade senão chamar a atenção para o

fato de que a ciência que se faz, a sua inflorescência, o seu resultado, estão

condicionados às regras de um determinado consenso (paradigma) que se forjou

historicamente. Da mesma forma, a noção de episteme, proposta por Foucault, de

modo muito mais abrangente que a noção de paradigma que fora proposta

exclusivamente para o discurso científico, indica que as práticas sociais, culturais

e mesmo históricas emergem a partir de determinadas regras (um princípio

ordenador). Em ambos os termos, paradigma e epistèmê, está implícita – e por

vezes suficientemente explicita em diferentes momentos do trabalho desses

autores – a ideia de que é necessário transcender a superfície das práticas para

de fato conhecê-las. Em outras palavras, tanto a noção de paradigma como de

epistèmê, reivindicam pela necessidade de uma arqueologia do saber, seja ele

científico ou cultural. Entretanto, por que não uma sociologia do Conhecimento,

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Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”? 185

uma vez que as fronteiras entre cultura, ciência e tecnologia e sociedade

encontram-se totalmente borradas?

3. A perda da unidade de um sistema

A indicação de uma crise – por vezes mais que isso, um fim – para a

modernidade, nos termos em que tem sido proposta por alguns teóricos, não

pode nem deve ser buscada na superfície dos acontecimentos sociais, culturais,

ou científicos, no olhar de “senso comum”. A noção de crise, descontinuidade ou

até mesmo fim, deve ser buscada, centralmente, em nível de uma episteme, ou

axiomático, ou paradigmático; em níveis que dão sustentação às diferentes

práticas discursivas dessa contemporaneidade. Mesmo porque as próprias

práticas discursivas emergentes nessa contemporaneidade indicam que

importantes transformações estão ocorrendo no substrato que lhe dão

sustentação.

A pressuposição de uma crise, de uma transformação nos fundamentos da

modernidade, entretanto, não pode acarretar o ônus imediato em demonstrar,

esquadrinhar qual é a episteme que está se constituindo nessa

contemporaneidade, como desejam alguns críticos da pós-modernidade. Isso

seria impossível, uma vez que não há perspectiva, distanciamento temporal,

tempo suficiente para que se vislumbre a composição a formação dessa nova

ordem; talvez ela mesma não se tenha dado a conhecer. É por esse motivo que

trabalhos como os de Daniel Bell, de 1973, e de Jean-François Lyotard, de 1979,

e alguns outros, são vistos – e declarado pelos próprios autores – como trabalhos

que falam mais de uma ordem futura, uma previsão, que propriamente sobre

presente. Portanto, aqueles que defendem a emergência de uma nova ordem, a

chamada pós-modernidade, ou qualquer outro conceito que equivalha, estão

olhando mais para um esfarelamento do substrato que tem dado sustentação aos

cânones da modernidade, que propriamente apresentando. Especificando, os

axiomas de uma nova ordem que, com certeza, está em gestação e ainda é

impossível conhecermos o rosto, apenas identificamos tênues traços. Lyotard

(1986) em sua obra intitulada O Pós-moderno, faz a seguinte advertência

introdutória:

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186 Léo Peixoto Rodrigues

Este estudo tem por objeto a posição do saber nas sociedades mais desenvolvidas. Decidiu-se chamá-las de “pós-moderna”. A palavra é usada, no continente americano, por sociólogos e críticos. Designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX. Aqui, essas transformações serão situadas em relação à crise dos relatos (...) Simplificando ao extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências; mas este progresso, por sua vez, a supõe (Lyotard, 1986, p. xv-xvi).

Esses relatos e metarrelatos (relatos universalizantes), sejam eles de

caráter filosófico ou científico7

De modo suficientemente estreito, o fim, o esgotamento, ou crise da

episteme moderna se confunde com a “crise dos relatos” ou a “incredulidade dos

metarrelatos”, nos termos de Lyotard. É nesse mesmo sentido que Stein (2001, p.

21) aponta que: “no momento em que perdemos esta unidade de um sistema, ou

possibilidade de haver sistema filosófico que explique as diversas regiões

fundamentais do saber e do convívio humano, neste momento, chegamos ao fim

no decorrer período que se passou a chamar

consensualmente de moderno, na maior parte das vezes tiveram a pretensão – ou

foram aceitos como tal – de se constituírem numa arquitetura epistêmico-teórico-

conceitual definitiva aos diferentes tipos de saberes humanos. Eles passaram

então a nortear o movimento humano em diversas (e diferentes) sociedades,

legitimam-se como verdadeiros, certos. Toda a crítica que lhes foi feita, na maior

parte das vezes, não foi suficiente para desconstruí-los; contrariamente, quase

sempre contribuíam para o seu aprimoramento, avanço, legitimação, conferindo-

lhes uma dimensão de princípio, de fundamento, de conhecimento clássico. Essa

perspectiva contribuiu – não apenas à filosofia e à ciência, mas também à arte e à

literatura, sobretudo – para o estabelecimento da noção de evolução, de

progresso, de avanço, e continuidade, de ascendência, de verdade e de

emancipação.

7Os grandes relatos estão presentes em diferentes momentos e áreas do conhecimento moderno. A título de exemplificação, nas ciências humanas, a noção de contrato social desenvolvida – evidentemente com diferenças inclusive significativas – por Hobbes, Locke e Rousseau; do mesmo modo a teoria marxiana, cuja crítica realizada por mais de um século, pelos chamados marxistas, teve como objetivo o seu aprimoramento. Nas chamadas ciências da natureza a física de Newton, bem como a teoria da evolução de Darwin, constituíram-se temas de debate, desde a sua concepção; o mesmo se pode dizer da teoria psicanalítica de Freud, embora mais tardia, inspirou o desenvolvimento de muitas outras correntes no âmbito das ciências do comportamento.

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Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”? 187

da modernidade”. A perda da unidade de um sistema a que se refere o autor, não

significa que essa unidade não fora ou não deveria ter sido criticada. Ao contrário,

era justamente a crítica a essa unidade que lhe conferia e garantia a centralidade,

a universalidade a dimensão de fundamento. A modernidade fora, o tempo todo,

crítica. É justamente o abandono, o desinteresse pela crítica dos chamados

metarrelatos e consequentemente a busca de novas paisagens, novos horizontes

de saberes, que denota a perda de unidade, apontada por Stein (2001), dos

diferentes sistemas que davam sustentação axiomática à modernidade.

É necessário, pois, que também a sociologia examine, quais foram os

motivos que desencadearam a incredulidade, a descontinuidade, o fim dos

metarrelatos como possibilidade de representação das manifestações humanas

em suas diferentes formas de saberes. Nesse sentido, Lyotard (1986, p. xv-xvi)

tem uma aguçada percepção quando vincula a incredulidade com relação aos

metarrelatos a um efeito do progresso das ciências; afirmando, por outro lado que

esse progresso, por sua vez, a supõe. De fato a Ciência, desenvolvida de forma

pujante no decorrer de toda a modernidade, parece ter sido o tipo de

conhecimento que mais logrou sucesso durante toda a história da humanidade,

nas mais diferentes sociedades, desde os conhecimentos mítico, alquímico e

religioso.

O conhecimento científico na sua obstinada busca por pontuar todas as leis

da natureza, na tentativa de construir o quadro geral de todo o conhecimento e

assim dominar os fenômenos ditos naturais e humanos, transbordou a si próprio,

deparando-se com os limites do continente que o continha. Como conteúdo, o

conhecimento científico, parece ter se esparramado no mar das descobertas

geradas por si próprio; descobertas, estas, que, se por um lado, transformaram as

paisagens social, cultural, política, econômica, artística e tecnológica, por outro

lado, diferenciaram tanto os objetos do mundo a ponto de transformá-los na atual

teia de complexidade.

A “realidade”, seja humana ou natural – dicotomia, esta, que faz parte de

uma episteme de caráter cartesiano –, não obstante a todo esforço (e porque não

dizer sucesso) da Ciência, mostrou claramente que não se dá a conhecer tão

facilmente. O avanço da Ciência fez com que o conhecimento representasse não

a verdade universal, mas a seletividade de incontáveis possibilidades

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188 Léo Peixoto Rodrigues

combinatória entre os diferentes objetos do mundo, nos seus distintos níveis (ou

dimensões) de “apreensão” cognitiva. A Ciência – que buscava uma realidade

finita e estável – foi lançada num mar de infinitas realidades (possibilidades) que

podem ser acessadas circunstancialmente, contingencialmente e, na maior parte

das vezes, de forma precária. Dessa forma, o conhecimento, como um mero

processo de diferenciação entre os múltiplos objetos do mundo, ocorre de forma

exponencial: quanto maior o conhecimento, maior é a diferença dos objetos

postos no mundo, portanto, mais diferenciação é produzida, e assim por diante.

Como esse processo ocorre não apenas de forma quantitativa, mas qualitativa e

como a contingência e a precariedade fazem-se sempre presentes,

impossibilitando a aspiração iluminista de estabelecimento de leis gerais, ficam,

assim, estabelecidas as bases sobre a qual se erige a complexidade.

A unidade perdida, como bem tem apontado Stein (2001, p. 21), não é

somente a unidade do sistema filosófico, do metarrelato, é concomitantemente a

perda da unidade do “objeto” – o objeto do mundo – sobre o qual o sistema

filosófico se reportava, uma vez que esse “objeto” diferenciou-se em todas as

direções (ou dimensões), adquirindo a capacidade de falar de si através de

diferentes linguagens, com diferentes interlocutores, por vezes ao mesmo tempo.

É dessa forma que devemos buscar compreender os termos diferenciação e

fragmentação, atualmente tão empregados para descrever um novo estado de

ordem que se constitui.

A Filosofia moderna e a Ciência, não apenas se desenvolveram,

potencializando-se mutuamente desde os prenúncios da modernidade, como

também se entrelaçaram de maneira profundamente simbiótica. A Ciência,

durante toda a concepção de modernidade, desenvolvia-se vigorosa, guarnecida

pela filosofia que, de certa forma, lhe guiava os passos, por entre o corredor bem

iluminado pela luz do logos, evitando, assim, as contradições de um mundo quase

dual. Entretanto, o rastro de transformações que a Ciência tem deixado por onde

passava, isto é, ao fazer emergir novos, e novos objetos no mundo, resultantes de

sua interação cada vez mais aguda com objetos-preexistentes, tem se constituído

em fatores determinantes na construção da sua própria crise, da ruptura e, porque

não dizer, do fim da modernidade. Não apenas da unidade constitutiva do sistema

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Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”? 189

filosófico moderno ruiu; ruiu também a unidade constitutiva dos principais axiomas

da ciência moderna, a unidade do seu método. Então, o que restou?

A resistência a uma noção pós-moderna compara-se a inconformidade

frente ao sentimento de orfandade: parece ter restado muito pouco além de

espumas. O corredor bem iluminado pela luz do logos agora tem suas paredes

arredadas, transformou-se num grande átrio com numerosos objetos, fazendo

com que a luz que outrora iluminadora provoque apenas penumbra. Essa é a

complexidade quando enfocada de um ponto de vista epistemológico, teórico

heurístico e metodológico no que se refere ao conhecimento contemporâneo. A

ruptura, a descontinuidade, objeto de tantas disputas acadêmicas, quando o tema

é a modernidade/pós-modernidade, está no fato de não dispormos mais da

eficiência das ferramentas que antes dispúnhamos para a apreensão da

totalidade, para a construção da certeza para a fundamentação da verdade.

4. Considerações

Conhecer o conhecimento como dimensão e parte fundamental da cultura

humana e ir em busca dos diferentes fatores que o determinam, o condicionam, o

direcionam, o estimulam e o limitam, já fazia parte da proposta apresentada por

Karl Mannheim, em seu livro, lançado pela primeira vez em 1929, denominado

Ideologie und Utopie. Quase um século se passou e as ciências sociais em geral

e, em particular, a sociologia poucos esforços têm dedicado, sobretudo no Brasil,

para conhecer com maior profundidade a produção de conhecimento, um dos

fazeres centrais da cultura contemporânea.

É evidente que os esforços para a compreensão das diferentes dimensões

de conhecimento que a sociedade contemporânea tem desenvolvido não devem

(e tampouco poderiam) ficar circunscritas a alguns poucos preceitos teóricos e

metodológicos levantados por Mannheim. Entretanto, ele teve o mérito de

perceber no início do século XX, a velocidade das transformações sociais

propiciadas pelo desenvolvimento multidisciplinar do conhecimento, e alertar para

o fato de que a sociologia, como disciplina do conhecimento científico, deveria

ficar atenta a tais transformações.

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190 Léo Peixoto Rodrigues

É bem verdade que nos dias de hoje temos múltiplos esforços

(transdisciplinares) para lidar com o conhecimento no sentido lato. Porém, nunca

antes na história da modernidade, o conhecimento (sobretudo, o conhecimento

científico-tecnológico) tem transformado de modo tão radical a sociedade nas

suas principais esferas, isto é, no plano social – das relações sociais – no plano

cultural, político e econômico, além dos desdobramentos que daí decorrem.

A sociologia, de certo modo, continua ainda tímida no avanço de pesquisas

que se referem ao conhecimento científico, isto é, às produções oriundas das

diferentes ciências (disciplinas científicas) e que, de algum modo, afetam as

relações sociais, sejam essas relações entre Estado e Sociedade civil, no seio da

própria sociedade civil (hábitos de consumo, lazer, estilo de vida; comportamento

de massa, violência; ocupação de espaços e territorialidade; envelhecimento

longevidade, etc) e, sobretudo, as transformações de caráter mais profundo que

têm relação com uma socioecologia numa perspectiva mais ampla. Fato é que as

transformações são drásticas e a Ciência, no sentido da sua propositura

iluminista, moderna, não tem conseguido dar conta, mesmo minimamente, das

velozes transformações. Daí uma sociologia do conhecimento que pode e deve

ser ilimitada na sua contribuição para o conhecimento do conhecimento.

5. Referências

BELL, Daniel. O Advento da Sociedade Pós-industrial. São Paulo: Cultrix, 1977. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. LYOTARD, Jean-François. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1996. RODRIGUES, Léo P. Introdução à Sociologia do Conhecimento, da Ciência e do Conhecimento Científico. Passo Fundo: UPF Editora, 2005. STEIN, Ernildo. Epistemologia e Crítica da Modernidade. Ijuí: Editora Unijuí, 2001 STRATHERN, Paul. Foucault em 90 Minutos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.