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RESENHAS Masculinidade, feminilidade e a reprodução das desigualdades * Guita Grin Debert ** Declarando que não teve muita sorte na loteria genética, Ilana Löwy abre L’ empire du genre com uma das descrições mais densas e penetrantes do que é a discriminação racial. Morena de olhos escuros e cabelos pretos e ondulados, ela conta, no prólogo do livro, com tiradas em que não falta senso de humor, que bastava haver um anti-semita num lugar público, na Polônia do pós-guerra, para que sua aparência, invariavelmente, atraísse observações discriminatórias sobre os judeus. Conhecemos bem a violência física, moral e psicológica que o racismo produz, levando desde o extermínio de diferentes grupos sociais até o deslocamento de populações por todo o planeta. Menos evidente é a forma pela qual a opressão pode ser interiorizada ou negada pelas vítimas do preconceito. Os relatos de suas experiências ao longo da infância somados à apresentação de uma bibliografia que indica o interesse recente pela história e cultura judaicas na Polônia oferecem uma nova dimensão à compreensão das dificuldades de ser membro de um grupo minoritário. Manter secreta a origem judaica é uma possibilidade que depende, em grande medida, da fisionomia e da aparência de cada um, mas é surpreendente a ineficácia das estratégias * Resenha do livro de Ilana Löwy, L’ emprise du genre – masculinité, féminité, inégalité. Paris, La Dispute/SNÉDIT, 2006. Recebida para publicação em janeiro de 2008, aceita em abril de 2008. ** Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, Unicamp, professora do Departamento de Antropologia do IFCH/UNICAMP e pesquisadora do CNPq. [email protected] cadernos pagu (30), janeiro-junho de 2008:409-414.

DEBERT, Guita Grin. Masculinidade, Feminilidade e a Reprodução Das Desigualdades

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Masculinidade, feminilidade e a reprodução das desigualdades

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  • RESENHAS

    Masculinidade, feminilidade e a reproduo das desigualdades*

    Guita Grin Debert**

    Declarando que no teve muita sorte na loteria gentica, Ilana Lwy abre L empire du genre com uma das descries mais densas e penetrantes do que a discriminao racial. Morena de olhos escuros e cabelos pretos e ondulados, ela conta, no prlogo do livro, com tiradas em que no falta senso de humor, que bastava haver um anti-semita num lugar pblico, na Polnia do ps-guerra, para que sua aparncia, invariavelmente, atrasse observaes discriminatrias sobre os judeus.

    Conhecemos bem a violncia fsica, moral e psicolgica que o racismo produz, levando desde o extermnio de diferentes grupos sociais at o deslocamento de populaes por todo o planeta. Menos evidente a forma pela qual a opresso pode ser interiorizada ou negada pelas vtimas do preconceito.

    Os relatos de suas experincias ao longo da infncia somados apresentao de uma bibliografia que indica o interesse recente pela histria e cultura judaicas na Polnia oferecem uma nova dimenso compreenso das dificuldades de ser membro de um grupo minoritrio.

    Manter secreta a origem judaica uma possibilidade que depende, em grande medida, da fisionomia e da aparncia de cada um, mas surpreendente a ineficcia das estratgias

    * Resenha do livro de Ilana Lwy, L emprise du genre masculinit, fminit, ingalit. Paris, La Dispute/SNDIT, 2006. Recebida para publicao em janeiro de 2008, aceita em abril de 2008. ** Coordenadora do Ncleo de Estudos de Gnero Pagu, Unicamp, professora do Departamento de Antropologia do IFCH/UNICAMP e pesquisadora do CNPq. [email protected]

    cadernos pagu (30), janeiro-junho de 2008:409-414.

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    elaboradas para minimizar os efeitos da discriminao. Mesmo depois da queda do regime comunista, denunciar as origens judaicas de um candidato era uma arma na luta poltica, que levava alguns deles a agitarem em suas campanhas eleitorais certificados de batismo ou fotos do enterro de suas mes para se defenderem dessas acusaes. A inutilidade das tentativas de negar ou minimizar a importncia de suas origens acabou por deixar os indivduos sem uma folha de parreira para cobrir uma dupla vergonha: vergonha de suas origens e da negao de suas origens.

    Para minimizar os efeitos da discriminao racial, o poder comunista tambm declarou que o problema judeu deixara de existir na Polnia e que restavam apenas relquias de anti-semitismo propagadas pelos adversrios do regime ou por pessoas incultas. Impediu-se, assim, o debate das relaes entre judeus e poloneses no sculo XX, do significado do Shoah e da violncia contra os judeus que se seguiu no ps-guerra polons, favorecendo a manuteno dos piores esteretipos anti-semitas, mesmo entre os setores mais jovens da populao.

    Essa ausncia de debates e o papel ativo do silncio na reproduo das desigualdades marcam o tratamento que ser dado questo de gnero neste livro.

    Essa volta dominao masculina ousada, particularmente no caso da leitora encarregada da resenha ser, como eu sou, antroploga e feminista. praticamente um instinto profissional dos antroplogos se precaverem de estranhamentos fceis e identificaes apressadas. Aprendemos que gnero no sinnimo de diferena sexual, nem de valores e comportamentos que se constituem numa base tida como biologicamente natural. Antes, uma noo que ganha fora quando chama a ateno para as formas especficas que a dominao assume em contextos muito bem determinados. Falar assim da opresso da mulher, mesmo se a referncia for as mulheres nas sociedades ocidentais contemporneas, educadas e vivendo acima do nvel

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    de pobreza, como afirmado neste livro, estar atenta uma generalizao excessiva.

    A ousadia de Lwy , no entanto, bem vinda, porque tratar da dominao masculina no reiterar o discurso da vitimizao da mulher que a noo de gnero obrigou as feministas a reverem. O desafio do livro descrever uma mistura particularmente opressiva que envolve a existncia de atitudes discriminatrias e sua negao. ela que permite a passagem do modo como o anti-semitismo foi vivido na Polnia do ps-guerra discriminao da mulher, posto que, cada vez mais, torna-se raro encontrarmos pessoas que se dizem, com todas as letras, racistas ou homofbicas.

    O livro prope, assim, uma reflexo sobre as formas de reproduo da discriminao das mulheres nas sociedades que proclamam forte e em bom som a igualdade entre os sexos.

    O modo como o mito da igualdade dos sexos se constri nas sociedades ocidentais contemporneas tratado no primeiro captulo Evidncias Invisveis , combinando uma quantidade significativa de dados sobre a desigualdade entre os sexos com a anlise de discursos empenhados em mostrar que as mulheres adquiriram um nvel de liberdade sem precedentes na histria.

    O segundo captulo trata do poder invisvel da atrao heterossexual na transformao de diferenas biolgicas, potencialmente neutras, em instrumentos da dominao. As mudanas nos processos educativos que pregam a igualdade entre os sexos, bem como a liberao sexual dos jovens, mantm ainda uma assimetria radical, reproduzindo a erotizao da dominao masculina e as hierarquias de gnero.

    Essa tnica perpassa os dois captulos finais sobre o mundo profissional e o casal heterossexual: apesar das mudanas em direo a posies que at muito recentemente estiveram barradas s mulheres, a desigualdade entre os sexos no apenas se reproduz, mas tende a ser fortemente negada pelas mulheres ou pelo casal, tornando-se imediatamente visvel quando se d sua separao.

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    O livro , no entanto, mais instigante e provocador ao tratar das desigualdades estticas, do papel das cincias biomdicas na identificao das mulheres e do modo como feita a produo e a comercializao dos hormnios sexuais.

    O mito da beleza ou a tirania dos ideais de beleza na sujeio das mulheres foi explorado por muitas feministas nos anos 70. A novidade a maneira pela qual a luta das mulheres para melhorar sua aparncia passou a ser legitimada. A preocupao com a aparncia e o uso das tecnologias de embelezamento tm sido, atualmente, reinterpretadas como uma vitria do feminismo. O novo discurso sobre a beleza considera que as mulheres modernas rejeitam o papel tradicional fundado no sacrifcio e no sofrimento, substituindo-o por um egosmo sadio e pelo prazer do cuidado de si, e passam, ento, a ter orgulho de exibir em pblico seus corpos objeto de desejos. Portanto, longe de serem vtimas passivas de presses culturais intolerveis, provam uma capacidade admirvel de remodelar sua vida e controlar seus destinos.

    para esse otimismo imprudente com as possibilidades libertrias do uso das tecnologias de intervenes corporais que os captulos se voltam. A persistncia da desigualdade dos papis estticos entre os sexos ilustrada por Lowy atravs de um levantamento detalhado e crtico da bibliografia sobre trs ordens de manifestaes que, se aparentemente envolvem a todos, ganham uma trama especfica com as mulheres a cirurgia esttica, o controle do peso e as atitudes em relao aos sinais de envelhecimento.

    A cirurgia esttica permite a aquisio de propriedades e capacidades novas e se inscreve na busca dos humanos para ultrapassar seus limites naturais. A obesidade tem sido descrita como um problema maior de sade pblica e substitui o tabagismo como causa principal da mortalidade prematura nos pases industrializados. O medo do envelhecimento e da morte prprio dos seres humanos, independentemente do sexo, origem e status social. Mas, em todos os casos, o empenho do livro

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    mostrar que o uso das novas tecnologias tem um efeito muito mais perverso para as mulheres e que ocultar esses efeitos diferenciais promover a reproduo das desigualdades.

    A anorexia discutida de modo bastante interessante, na medida em que a autora contrape as explicaes ancoradas no culto contemporneo magreza a anorexia mental como expresso de um sofrimento psquico de adolescentes frgeis, numa sociedade que transforma a magreza numa virtude suprema e, portanto, um smbolo poderoso do controle social do corpo da mulher , idia da anorexia como recusa da feminilidade a tomada de conscincia do valor diferencial dos sexos e expresso forte do desejo de uma identidade assexuada, uma das formas mais insidiosas de inscrever a hierarquia de gnero na carne.

    Da mesma forma, a autora discute o modo como as diferenas entre os sexos foram estabelecidas ao longo da histria das cincias biomdicas. Historiadora das cincias, Lowy, com erudio, mostra que elementos cada vez mais numerosos do corpo humano foram progressivamente sexualizados. Na renascena eram somente os rgos reprodutivos. Com os desenvolvimentos da zoologia e da anatomia comparativa nos sculos XIX e XX, a sexualizao atingiu partes do corpo que aparentemente nada tinham a ver com a sexualidade, como o esqueleto, o sangue e o crebro. No sculo XX, a diferena entre os sexos transportada s molculas que circulam no sangue, aos cromossomos (com a distino entre a frmula cromossomtica masculina XY e a feminina XX) e, mais recentemente, com os genes. Todas as tentativas de bicategorizao pelo sexo se defrontaram com a impossibilidade de encontrar categorias exclusivas e essa uma das razes que levam as pesquisadoras feministas a concluram que as prticas cientficas no lanavam luz s diferenas sexuais, mas as fabricavam, sexuando o biolgico de modo dicotmico e segundo as oposies tradicionais de gnero.

    A importncia atribuda s glndulas sexuais no desenvolvimento da personalidade, a emergncia da ginecologia

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    como especialidade mdica, a colaborao estreita entre pesquisadores e a indstria farmacutica no desenvolvimento dos hormnios sexuais, que se transformam em substncia disponveis no mercado, e a possibilidade de modificar caractersticas sexuais secundrias atravs da administrao de doses elevadas desses hormnios no levaram ao questionamento da natureza das diferenas entre os sexos. Da mesma forma, o tratamento dado s crianas interssexuais e transexualidade, antes de abrir um espao para o reconhecimento da multiplicidade das formas anatmicas e traos comportamentais, reproduzem a rgida dicotomia entre homens e mulheres.

    Lowy, com razo, considera que as crticas feministas raramente chamaram a ateno para o papel central da atribuio dos hormnios sexuais na vida das mulheres e para a ausncia de um papel equivalente aos hormnios sexuais masculinos. Pelo contrrio, ela mostra como as feministas tendem a aplaudir as cincias biolgicas vendo indcios de libertao na contracepo hormonal, no tratamento da sndrome pr-menstrual, na assistncia mdica procriao e nas terapias substitutivas da menopausa. Esse conjunto de prticas acaba, novamente, por naturalizar a diferena sexual, reproduzindo hierarquias e promovendo a construo do corpo da mulher como um corpo deficiente, em constante declnio e vtima de um envelhecimento muito mais veloz do que o corpo masculino.

    Para Lwy, o mito da igualdade dos sexos tem, portanto, uma capacidade enorme de regenerao da dominao masculina. Essa uma concluso que tende a fazer tbula rasa das clivagens tnicas, de idade e gerao, entre outras, marcando de maneira incisiva as experincias das mulheres e de qualquer outro grupo social nas sociedades contemporneas. Uma concluso que acaba, novamente, sexuando o biolgico de modo dicotmico e que, de maneira enftica, o livro postula tantos elementos instigantes para sua reviso.

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