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DÉBORA BERTOLINI FERREIRA SIMONETTI DIREITO, PODER E VIOLÊNCIA A CRISE DE LEGITIMIDADE JURÍDICA NO CINEMA BRASILEIRO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO PROFESSORA ORIENTADORA: DOUTORA MARA REGINA DE OLIVEIRA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO SÃO PAULO 2013

Debora Simonetti Dissertacao Integral

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Direito, legitimidade, violência e poder no cinema brasileiro

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  • DBORA BERTOLINI FERREIRA SIMONETTI

    DIREITO, PODER E VIOLNCIA

    A CRISE DE LEGITIMIDADE JURDICA NO CINEMA BRASILEIRO

    DISSERTAO DE MESTRADO

    PROFESSORA ORIENTADORA: DOUTORA MARA REGINA DE OLIVEIRA

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO

    SO PAULO

    2013

  • DBORA BERTOLINI FERREIRA SIMONETTI

    DIREITO, PODER E VIOLNCIA

    A crise de legitimidade jurdica no cinema brasileiro

    Dissertao apresentada Faculdade de Direito

    da Universidade de So Paulo para obteno do

    ttulo de Mestre em Direito.

    rea de Concentrao: Filosofia e Teoria Geral

    do Direito

    Professora Orientadora: Doutora Mara Regina de

    Oliveira

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO

    SO PAULO

    2013

  • FOLHA DE APROVAO

    NOME: Dbora Bertolini Ferreira Simonetti

    TTULO: Direito, Poder e Violncia: A crise de legitimidade jurdica no cinema brasileiro

    Dissertao apresentada Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de

    Mestre em Direito.

    Aprovado em:________________________________

    BANCA EXAMINADORA

    Professora Doutora Mara Regina de Oliveira Instituio: Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo

    Julgamento:__________________________________ Assinatura:___________________

    Professor Doutor_______________________________ Instituio:___________________

    Julgamento:__________________________________ Assinatura:___________________

    Professor Doutor_______________________________ Instituio:___________________

    Julgamento:__________________________________ Assinatura:___________________

  • Ao meu esposo, RENATO ABREU BERTOLINI, por

    transformar sonhos em realidade.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo imensamente Professora Mara Regina de

    Oliveira que me ofertou a possibilidade de realizar este

    trabalho, alm de abrir meus olhos para novas formas

    de reflexes.

    Agradeo tambm queles que semearam a paixo pela

    Filosofia e Teoria Geral do Direito, Professor Alar

    Caff Alves e Professor Jos Antonio Siqueira Pontes,

    que, na graduao, com extrema dedicao, me

    encantaram com seus ensinamentos.

    Por fim, agradeo o apoio dos meus pais, Oscar e

    Jussara, e do meu esposo Renato, que acompanharam a

    rdua batalha.

  • A autoridade no pode abusar da lei, sem esbofetear-se

    a si prpria.

    (Machado de Assis, Quincas Borba)

  • RESUMO

    SIMONETTI, Dbora Bertolini Ferreira. Direito, Poder e Violncia: A crise de legitimidade

    jurdica no cinema brasileiro. 196 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    O poder, muitas vezes, utilizado como sinnimo de violncia, visto que identifica o Estado

    como possuidor do monoplio legtimo da fora, sendo esta a manifestao ltima do poder.

    Para o direito, a relao entre poder e violncia valorada na sano, servindo esta como

    diferenciao e identificao da norma jurdica. Apesar de muitos definirem poder e violncia

    como opostos, a crise de legitimidade jurdica que surge quando o exerccio da violncia

    simblica deixa de ser dissimulado e desconhecido por parte dos endereados sociais,

    desperta o uso da violncia contra a prpria violncia de modo no razovel e abusivo para se

    forar a obedincia ou mesmo manter as relaes de poder. No entanto, a substituio do

    poder pela violncia por parte da autoridade pode ter muitas consequncias, tais como o

    aniquilamento do sujeito, a desconfirmao da autoridade, bem como o surgimento dos

    poderes informais. Em virtude do abuso do poder pela violncia, surge o sentimento da

    injustia, pois a violncia no vai alm de uma justificao, pois sempre trar em si a

    arbitrariedade, e, por isso, apesar de poder ser percebida como eficaz e at vlida, no capaz

    de afastar o inconformismo humano contra a perda do sentido das coisas, pois, em ltima

    instncia, valeria a regra do mais forte sobre o mais fraco. De acordo com esta perspectiva,

    possvel analisar a relao entre direito, poder e violncia no Brasil exposta no cinema

    nacional, especialmente no que se refere ao trfico de drogas nas favelas e ao crime

    organizado.

    PALAVRAS-CHAVE: 1. Poder 2. Violncia 3. Crise de legitimidade 4. Desconfirmao da

    autoridade 5. Abuso de Poder 6. Poder informal 7. Cinema brasileiro.

  • ABSTRACT

    SIMONETTI, Dbora Bertolini Ferreira. Law, Power and Violence: The crisis of legal

    legitimacy in Brazilian cinema. 196 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    The power is often used as synonymous with violence, because it identifies the state as having

    the legitimate monopoly of force, which is the latest manifestation of power. To the law, the

    relationship between power and violence is valued in sanction, this serving as differentiation

    and identification of the legal norm. While many define power and violence as opposed to

    legal legitimacy crisis that arises when the exercise of symbolic violence ceases to be

    concealed and unknown by the social addressed, awakens the use of violence against violence

    so unreasonable and abusive to compel obedience or even maintain power relations. However,

    the replacement of power by violence by the authority may have many consequences, such as

    the annihilation of the subject, disconfirmation of authority as well as the emergence of

    informal powers. Under the abuse of power by violence, the sense of injustice arises, because

    violence does not go beyond a justification, as always bring itself arbitrariness, and therefore,

    although it may be perceived as effective and valid until no is able to fend off the human

    discontent against the loss of the sense of things, because, ultimately, would the rule of the

    strong over the weak. According to this perspective, it is possible to analyze the relationship

    between law, power and violence in Brazil exposed on national cinema, especially in relation

    to drug trafficking in the slums and organized crime.

    KEYWORDS: 1. Power 2. Violence 3. Legitimacy crisis 4. Disconfirmation of authority 5.

    Abuse of Power 6. Informal power 7. Brazilian cinema.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................. 10

    CAPTULO 1 DIREITO E CINEMA ......................................................................... 16

    1.1 A CRTICA FILOSFICA E O OLHAR CINEMATOGRFICO ......................... 17

    1.1.1 Complexidade humana e interdisciplinaridade ....................................................... 22

    1.1.2 O cinema como possibilidade artstica de percepo do humano .......................... 27

    1.2 O CINEMA BRASILEIRO ....................................................................................... 35

    1.2.1 Gneros: Documentrio e Fico ........................................................................... 42

    CAPTULO 2 - DIREITO, PODER E VIOLNCIA ................................................. 48

    2.1 DIREITO E PODER .................................................................................................. 49

    2.1.1 Positivao do direito ............................................................................................. 52

    2.1.2 Teorias da soberania do poder e ordenamento ....................................................... 55

    2.1.3 O direito como monoplio legtimo da fora ......................................................... 56

    2.2 PODER E VIOLNCIA ............................................................................................ 61

    2.2.1 Poder como justificativa para a violncia ............................................................... 64

    2.2.2 Violncia e desumanizao .................................................................................... 67

    2.3 DA DESUMANIZAO AO REDESCOBRIR DO HUMANISMO: NIBUS 174,

    LTIMA PARADA 174 E LINHA DE PASSE ......................................................... 77

    CAPTULO 3 - LEGITIMIDADE, VIOLNCIA E JUSTIA ................................ 96

    3.1 LEGITIMIDADE E VIOLNCIA ............................................................................ 97

    3.1.1 Poderes disciplinares ............................................................................................ 100

    3.1.2 Violncia simblica .............................................................................................. 102

    3.1.3 Violncia no razovel ......................................................................................... 106

    3.2 HIPERTROFIA LEGISLATIVA E LEGISLAO SIMBLICA ....................... 109

  • 3.3 DA TICA COMO FATOR DE SEGURANA E JUSTIA ............................... 115

    3.4 DO ABUSO ILEGITIMIDADE DAS RELAES DE PODER: SANTA MARTA:

    DUAS SEMANAS NO MORRO E FAVELA RISING ........................................... 121

    CAPTULO 4 - DESCONFIRMAO DA AUTORIDADE DA LEI ................... 132

    4.1 PODER COMO MEIO DE COMUNICAO ...................................................... 133

    4.2 A SITUAO COMUNICATIVA ......................................................................... 139

    4.3 A DESCONFIRMAO DA AUTORIDADE DA LEI ........................................ 144

    4.3.1 O problema do abuso de poder ............................................................................. 147

    4.3.2 Abuso na relao comunicativa ............................................................................ 150

    4.3.3 O sentido da justia............................................................................................... 152

    4.4 PODERES INFORMAIS ........................................................................................ 156

    4.5 DA DESCONFIRMAO AO SURGIMENTO DE PODERES INFORMAIS:

    TROPA DE ELITE I E TROPA DE ELITE II ........................................................ 160

    CONCLUSO .............................................................................................................. 184

    REFERNCIAS........................................................................................................... 187

    FILMES E DOCUMENTRIOS ............................................................................... 196

  • 10

    INTRODUO

    No final do ano de 2010, no Rio de Janeiro, foi iniciada a ocupao das comunidades

    tomadas pelo trfico de drogas por operao conjunta da polcia civil, militar e das foras

    armadas. A ocupao da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemo foi marcada por ataques a

    carros e nibus de transporte coletivo. Este episdio e os que vieram posteriormente foram

    marcados pelas expresses reconquista e pacificao nas notas oficiais, mostrando

    verdadeira reconquista do territrio brasileiro tomado pelo poder informal do trfico de

    drogas1.

    O problema do poder informal no Brasil, que est longe de acabar, independentemente

    dos esforos para segurana da Copa de 2014 que acontecer no Brasil, demonstra clara

    desconfirmao da autoridade e o surgimento de cadeias de poderes informais. O que est

    implcito nessas situaes a relao entre poder e violncia na tentativa de reconquistar o

    territrio com a finalidade de desconfirmar a desconfirmao, processo dificultoso, que teve

    incio em 2010 e ainda no foi concludo2.

    O documentrio Notcias de uma Guerra Particular um retrato de uma realidade,

    no qual so apresentadas trs vises de um mesmo problema. Essas trs vises, ou verses,

    confundem-se com as personagens-protagonistas dessa guerra, quais sejam: a polcia, o

    traficante e o morador, e mostram a realidade das favelas do Rio de Janeiro, a eterna guerra

    entre policiais e traficantes e a vida de pessoas simples que convivem com a violncia e o

    preconceito por viverem marginalizadas da sociedade.

    Os moradores da favela contribuem com o Estado pagando seus impostos e seguindo

    as regras de convvio em sociedade, mas o Estado no supre, em troca, nem as necessidades

    mais bsicas como moradia, alimentao, sade ou saneamento bsico. Nesse contexto, o

    trfico de drogas forma um Estado dentro de outro Estado, j que os traficantes possuem

    regras de justia e punio prprias e, muitas vezes, substituem o Estado ao prestar assistncia

    social aos moradores da comunidade, ao mesmo tempo em que cuidam de no ter problemas

    1 A OCUPAO das Favelas do Alemo. 28/11/2010. Disponvel em Acesso em maio de 2012. 2 MARCO ANTNIO MARTINS. Ocupao de favelas do Rio custar R$ 360 milhes ao Exrcito. 2012.

    Disponvel em . Acesso em maio de 2012.

  • 11

    dentro da favela para que o fregus compre tranquilamente e para que a polcia no intervenha

    na comunidade.

    A polcia, por outro lado, o nico brao do Estado que entra nas comunidades, tendo

    muitos policiais marginalizados tanto quanto a sociedade que vive nos morros do Rio de

    Janeiro. Com uma profisso perigosa e salrios baixssimos, muitos policiais usam o Estado

    para viabilizar aes ilcitas, como corrupo, venda de armas e drogas para traficantes, etc. A

    polcia acaba se investindo de interesse pblico, porm seguindo interesses privados.

    Outro assunto tratado pelo documentrio o abuso de autoridade policial ao tentar

    manter a autoridade com violncia contra inocentes, j que a polcia no sabe entrar no morro

    e pegar apenas traficante, pega morador tambm. Alm disso, no h combate aos policiais

    corruptos, que ganham dinheiro dos traficantes com propina e venda de armas. A polcia, na

    viso dos moradores, corrupta e violenta, no querem saber se a televiso roubada ou

    comprada dignamente, entram preparados para bater em todo mundo, no quer saber se um

    trabalhador. Quando pegam algum, ao invs de levar para delegacia levam para cima do

    morro para torturar ou matar, e, se no fossem as mulheres irem atrs para eles no fazerem

    nada, haveria apenas mortes e no priso.

    O documentrio demonstra como as favelas - ilhas urbanas em que a influncia e

    controle do estado esto ausentes, abrindo lacunas que so preenchidas pela ordem privada do

    trfico ilcito de drogas - so territrios em que as normas que regem o restante da sociedade

    se encontram em absoluto estado de desobedincia, como se no existissem. Isto ocorre pela

    impossibilidade de incluir as favelas no sistema jurdico como um todo, a marginalizao da

    populao em relao ordem jurdica gera uma ineficcia generalizada de quaisquer

    determinaes do estado e manuteno da ordem no territrio sob domnio do trfico de

    drogas.

    Ora, as questes trazidas pelo documentrio o retrato de uma realidade, na qual se

    pode imaginar a concepo de uma ordem jurdica paralela instituda pelo estado brasileiro,

    em que o exerccio local da fora se sobrepe soberania do estado sobre o territrio

    nacional. Alm disso, ainda temos a corrupo por parte de agentes do Estado, colocando em

    xeque a validade e eficcia do ordenamento jurdico.

  • 12

    O documentrio mostra duas ordens normativas. De um lado, temos o Direito

    brasileiro presente nos morros cariocas, a constante presena de policiais combatendo o

    crime, apreendendo entorpecentes, armas e traficantes. Por outro lado, observamos tambm a

    existncia de outra ordem normativa, composta por normas bastante simples, no escritas,

    invlidas para o ordenamento jurdico brasileiro, as quais, se infringidas, geram graves

    sanes a seus infratores. Os chefes do trfico seriam uma espcie de autoridade local, tendo

    eles o poder de ditar regras comunidade de traficantes e decidir o que fazer em caso de seu

    descumprimento. Como regra estrutural, teramos: os chefes do crime so os responsveis por

    ditar regras e decidir quanto aplicao de sanes, impondo o cumprimento por fora do

    medo.

    O conflito da relao entre o ser e o dever-ser visvel no documentrio e ser

    desenvolvido no decorrer deste trabalho

    Constate-se que os homicdios aumentam na medida em que aumenta o trfico de

    drogas, e as mortes so tantas que os mortos se tornam annimos, so desumanizados. E

    mesmo morrendo centenas de traficantes, o trfico s ganha fora, porque h fila de jovens

    esperando para serem contratado por esta empresa. O fato que a polcia j est no morro

    h muito tempo e o problema no foi resolvido, pois o nico brao do Estado que entra nas

    favelas, mas tambm deve entrar educao, sade, saneamento, etc. Os traficantes tm

    armamento e comunicao de guerrilha, tornando-se cada vez mais fortes, e a sociedade est

    saturada, tornando-se indiferente aos problemas e violncia praticada.

    Adolescentes de 13 e 14 anos j ajudam o trfico, e no se importam de morrer cedo.

    O adolescente quer ser reconhecido, quer ser amado, e participar do trfico um status,

    significa poder, ter a mulher que quiser, andar com roupa de marca, o que no se tem na

    sociedade com um emprego formal. Em suma, querem viver bem, e no trabalhar para ganhar

    misria. Muitas vezes, no tm pais para orientar, no tm nenhuma educao, iniciam na

    criminalidade para comprar comida e sobreviver na sociedade que os massacra.

    O documentrio retrata a violncia ressentida do trfico, em que

    O essencial a questo do dinheiro auferido e da vaidade satisfeita como fator

    central de recrutamento de jovens que, em verdade, respondem aos imperativos da

    sociedade de consumo. No conjunto, coloca-se em debate uma corroso no espao

  • 13

    social, uma crise na construo da cidadania, evidenciando o loteamento das zonas

    de poder pelo crime organizado3.

    Para os moradores, h o lado positivo do trfico, j que depois que traficantes

    comearam a andar armados, eles cuidam do morro e os policiais no entram mais nas casas

    quebrando tudo, hoje eles tm medo, porque os traficantes so suicidas, no tm medo, eles

    querem defender a comunidade da polcia violenta. Policiais entram com cautela agora. O

    lado negativo a violncia, pois quando h uma dvida de droga os traficantes matam mesmo,

    no importando que sejam da comunidade ou no.

    Apesar da violncia e ilegalidade do trfico de drogas, ao obter certa credibilidade da

    populao em razo das ajudas sociais bsicas, ele consegue se institucionalizar, em oposio

    a um Estado que no oferece condies humanas mnimas de sobrevivncia. Assim, o trfico

    de drogas assume a posio de terceiro comunicador informal, impondo direitos e deveres aos

    moradores das comunidades.

    No documentrio ntido o problema de falta de eficcia em normas singulares, uma

    vez que na favela existe, praticamente, um governo paralelo, o qual estabelece as regras da

    regio. O documentrio nos mostra que, nas favelas, h uma espcie de ordenamento interno.

    O fato da possibilidade de uma coexistncia de dois sistemas normativos no mesmo

    local discutido quando o ex-secretrio da segurana pblica do Rio de Janeiro, Hlio Luz,

    em Notcias de uma guerra particular, fala que no existem condies para que os traficantes

    substituam o Estado nos morros. Porm, levando em conta que isso seja verdade em relao

    educao, sade e etc., no estaria o trfico substituindo o Estado no sentido jurdico?

    Os traficantes esto na mais alta classe no mbito da hierarquia criada na favela e

    agem para garantir o seu sustento, o que no seria possvel economicamente se optassem por

    seguir uma vida honesta como trabalhadores legtimos. Alm do sustento, os traficantes agem

    em prol da proteo comunidade, encontrando meios de garantir a ela moedas de troca e

    cumplicidade quando fornecem medicamentos, auxlio aos presos, alimentos, bem como

    segurana contra a violncia policial.

    3 XAVIER, Ismael. Da Violncia Justiceira violncia ressentida. Disponvel em:

    .. p. 56. Acesso em fevereiro/2012.

  • 14

    O estranho disto que os policiais seriam aqueles que mereceriam mais nossa

    confiana, j que foram designados constitucionalmente para proteger a populao. Mas, a

    realidade tratada nas pelculas mostra a violncia e o abuso de poder dos agentes estatais

    dentro das favelas, dentro das casas dos menos favorecidos, com crianas, idosos, jovens,

    adultos, sem nem mesmo saberem se esto ou no envolvidos com todo o trfico que almejam

    acabar.

    Rodrigo Pimentel afirma em Notcias de uma guerra particular: No vejo luz no fim

    do tnel. Os problemas vo alm da represso, j que existem muitos interesses envolvidos,

    muitas vezes, da prpria polcia para acabar com essa guerra.

    A guerra particular, ou seja, a guerra em que polcia mata traficante, este fica com dio

    da polcia, e o traficante mata polcia e vice-versa, se tornou uma guerra tendo apenas como

    personagens a polcia e o traficante, quando, na verdade, muito mais que uma guerra

    particular, rompendo com a separao maniquesta entre bandido e mocinho, restando apenas

    uma pergunta: Quem o inimigo?

    Notcias de uma guerra particular traz questes instigantes, bem como perplexidades

    da realidade que sero tratadas ao longo do trabalho, pois no so poucas as notcias de

    violncia, em especial a praticada pela prpria autoridade, o que ratifica a importncia da

    discusso do tema direito, poder e violncia.

    O tema do trabalho ser exposto de forma artstica, pois a situao do Brasil ser

    analisada por meio do cinema nacional, de modo a aproximar o jurista com o artista, assim

    como o senso de justia - o justo, e o gosto artstico - o belo. Desse modo, o final de cada

    captulo unir o pensamento crtico da filosofia do direito com as experincias e emoes da

    linguagem cinematogrfica, ultrapassando o raciocnio puramente lgico das teorias

    filosficas tradicionais, como proposto por Mara Regina de Oliveira.

    No segundo captulo deste trabalho, sero abordadas concepes do poder e como este

    foi relacionado com a violncia em razo das teorias da soberania, bem como a consequncia

    desta associao para o direito, em especial ao papel da sano no ordenamento e a

    diferenciao das normas jurdicas de outras normas.

    O tema da legitimidade da autoridade ser abordado no terceiro captulo para se

    discutir a necessidade ou no da fora no direito e como a violncia simblica mal construda

  • 15

    leva violncia no razovel por parte da autoridade. Em relao justia, o grande problema

    em relao a esta ser o mesmo da legislao simblica, ou seja, a relao entre o direito e a

    justia perdeu seu sentido, pois foi utilizada excessiva e levianamente. Do mesmo modo, a

    relao que se faz da lei como forma de se alcanar a justia social se tornou simblica.

    No ltimo captulo, verificar-se-o, sob a perspectiva da pragmtica jurdica, as

    consequncias da confuso por parte da autoridade do poder com a violncia e a crise de

    legitimidade quando se utiliza da violncia para forar a obedincia e, em ltimo caso, para

    manter o poder. Alm disso, sero analisadas as consequncias da substituio do poder pela

    violncia por parte da autoridade, e como a violncia sendo usada contra a prpria violncia

    possibilita o surgimento dos chamados poderes informais.

    Ainda no quarto captulo, o tema da justia ser tratado no que se refere violncia

    praticada, pois o que observamos uma crescente falta de compromisso com a tica em todos

    os setores do Estado, principalmente em relao aos abusos de poder praticados pelas

    autoridades. Ser desenvolvida a ideia da justia como cdigo doador de sentido por conferir

    ao direito e poltica um significado no sentido de razo para existir, ou seja, o direito deve

    ser justo, ou no tem sentido a obrigao de respeit-lo4.

    4 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito, reflexes sobre o poder, a liberdade, a justia

    e o direito. 3 ed. So Paulo: Atlas, 2002. p. 253.

  • 16

    CAPTULO 1 - DIREITO E CINEMA

  • 17

    1.1 A CRTICA FILOSFICA E O OLHAR CINEMATOGRFICO

    Acima da Verdade - Poema de Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

    Acima da verdade esto os deuses.

    A nossa cincia uma falhada cpia

    Da certeza com que eles

    Sabem que h o Universo.

    Tudo tudo, e mais alto esto os deuses,

    No pertence cincia conhec-los,

    Mas adorar devemos

    Seus vultos como s flores,

    Porque visveis nossa alta vista,

    So to reais como reais as flores

    E no seu calmo Olimpo

    So outra Natureza.

    A evoluo histrica do Direito Positivo mostra como o saber jurdico, de um saber

    eminentemente tico, se transformou em um saber tecnolgico, j que a cincia dogmtica,

    atualmente, cumpre as funes de uma tecnologia ao instrumentalizar-se a servio da ao

    sobre a sociedade5.

    A experincia romana foi sendo esquecida, e o excesso de racionalidade trouxe

    grandes problemas para o direito, tais como se esquecer do problema (ser) e pensar somente

    na norma (dever ser), alm de o direito, como instrumento de decidibilidade dos conflitos, ser

    usado, muitas vezes, como sistema e tcnica. E o grande problema disso que o pensamento

    tecnolgico fechado problematizao de seus pressupostos a fim de cumprir sua funo,

    ou seja, criar condies para a ao. Alm disso, a cincia jurdica, como qualquer cincia,

    no neutra, tendo influncia de todos os setores da sociedade capitalista. De acordo com

    Tercio Sampaio Ferraz Jnior, a tecnologia jurdica atual fora a vida social, ocultando-a, ao

    5 FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4 ed. So

    Paulo: Atlas, 2003. p. 55-75.

  • 18

    manipul-la, ao contrrio da cincia prtica da Antiguidade, que se prostrava, com humildade,

    diante da natureza das coisas6.

    Segundo o professor Tercio, utilizando uma terminologia de Theodor Viehweg, temos

    dois enfoques tericos do fenmeno jurdico, o zettico e o dogmtico. O primeiro desintegra,

    dissolve opinies, pondo-as em dvida; assim assume um carter especulativo explcito. O

    segundo revela o ato de opinar, com uma funo diretiva explcita, se preocupa em

    possibilitar uma deciso e orientar a ao7.

    A abordagem dogmtica possui um alcance mais preciso, delimitado, prtico. Da se

    explica a sua maior, e quase exclusiva, utilizao no que se entende por Direito. H uma

    procura pela resposta do problema concreto, direcionando uma ao, a procura pelo dever

    ser. Assim, o embasamento nas leis, como principal fonte para a orientao da ao,

    essencial. Segue-se estritamente o dever ser assinalado pela lei, o que pode gerar um

    distanciamento efetivo das resolues jurdicas e a realidade social, ou seja, do ser8.

    A decidibilidade de conflitos apresentada como problema central da cincia

    dogmtica do direito, visto que depende de uma srie de fatores apoiados nos valores

    socialmente aceitos, interesses dos grupos dominantes e questes polticas e econmicas.

    Assim, o direito no se preocupa exatamente com a verdade das questes e sim com a forma

    com que elas podem ser decididas com o mnimo de perturbao social. Ou seja, o direito

    passou a se ocupar da decidibilidade de conflitos, e desse modo, o aspecto resposta foi

    ressaltado, sendo a questo da verdade posta de lado9.

    No entanto, com a revoluo tecnolgica e a insero do mundo globalizado, a

    dogmtica necessita cada vez mais do auxlio zettico. H uma urgncia em se adequar as leis

    aos novos fatos sociais, com discusses sobre temas como a vida, a lei e justia. O regime

    ps-moderno trouxe uma democratizao do acesso informao e possibilitou o

    questionamento de ideias e de instituies antes consolidadas.

    6 FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4 ed. So

    Paulo: Atlas, 2003. p. 84 - 86. 7 Idem, ibidem. p. 41.

    8 Idem, ibidem. p. 39-41.

    9 Idem, ibidem. p. 41- 43.

  • 19

    Assim como sentenciou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurlio

    Mello, tempo de aproximar-se no o povo do Judicirio, mas este, daquele10, o jurista

    deve lembrar que as questes jurdicas no se reduzem s dogmticas. Deve revelar no s um

    especialista nestas questes, mas tambm em questes zetticas, que dissolve opinies,

    pondo-as em dvida, buscando especular, saber o que 11

    .

    O objetivo de Hans Kelsen em excluir da teoria (cincia) do direito os aspectos

    sociais, culturais, morais, polticos e religiosos para transform-la em uma teoria pura no

    mais sobrevive. O Direito ps-positivista considera cada vez mais esses aspectos excludos

    pela teoria pura, pois lhe d fundamento, mostrando que a cincia por si s no basta. O

    trabalho do filsofo e do cientista se complementam, no se excluem, pois no possvel

    decidir conflitos sem investigar questes de liberdade, justia, validade, legitimidade e fora.

    A filosofia, como saber crtico, possibilita uma viso holstica das cincias, permitindo

    compreender o todo12

    .

    De acordo com professora Mara Regina de Oliveira, a abordagem zettica demonstra

    uma preocupao existencialista (ser) que visa ampliao dos conhecimentos humanos,

    ficando a resoluo do conflito em segundo plano, j que o aspecto pergunta ressaltado,

    problematizando-se o fenmeno social, da verdadeira origem das coisas, do ser13.

    Nesse contexto, podemos refletir sobre o poema de Fernando Pessoa e perceber que a

    cincia, no caso, a dogmtica jurdica, nunca se bastar a si mesma sem o auxlio da filosofia,

    a zettica. Os dois enfoques so necessrios, pois a dogmtica, apenas, no passaria de uma

    cpia falha e a zettica, sozinha, seria apenas um retrato do Olimpo.

    O Direito visto apenas como razo tecnolgica deve ser afastado para que se inclua a

    arte, a filosofia e a sensibilidade para que acabe a omisso e a indiferena. O direito ps-

    moderno deseja ser livre do formalismo e do legalismo, pois valoriza seu contedo material.

    A cincia, por estar fundada no raciocnio lgico lenta, diferentemente da filosofia, que

    10

    GAMBOGI, Luis Carlos Balbino. Direito: Razo e Sensibilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 16. 11

    FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4 ed. So

    Paulo: Atlas, 2003. p. 90 e 91. 12

    GAMBOGI, Luis Carlos Balbino. Direito: Razo e Sensibilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 21 25. 13

    OLIVEIRA, Mara Regina de. Os enfoques tericos zettico jurdico e dogmtico jurdico em face da Filosofia

    do Direito. Um exemplo proposto no filme A Histria de Qiu Ju. 2007. Disponvel em

  • 20

    opera com a intuio e, por isso, veloz e direta, consistindo em uma forma de alcanar a

    plenitude do direito por um caminho diferente do que aquele indicado pela razo lgica14

    .

    Ao verificar que os juzes devem deixar sua anima revigorar e se integrar com o

    animus para atingir a alteridade e a justia, Ldia Reis de Almeida Prado15

    revela que o jurista,

    alm de tcnico, deve estar preparado para a funo de mediador na resoluo de conflitos,

    devendo ter um saber generalista.

    Uma conhecida regra de justia a cada um segundo seus mritos. No entanto, a

    aplicao de tal regra traz muitas dificuldades, pois se deve apreciar os mritos do sujeito

    merecedor, e a justeza do merecimento reconhecido exige a percepo daquilo que algum

    em sua inteireza. Os atos de justia no reconhecimento de mritos so parciais e relativos a

    momentos, a existncia s ganharia contorno definitivo no momento da morte, em que seria

    possvel dizer de um homem quem ele foi. Da os problemas do juzo histrico de ser justo

    com algum, ou seja, do justo reconhecimento de mritos do autor mediante as obras que

    produziu, pois neles est, afinal, a angstia paradoxal do escritor que se torna criatura de sua

    prpria criao16

    .

    A problemtica dessa relao autor/obra/vida mostra que o sentido justo dos

    julgamentos tem suas razes enterradas na percepo da existncia. As sentenas de um juiz,

    por exemplo, no mostram a sua essncia, apesar de manifestar a identidade da pessoa e sua

    autoria, suas sentenas no a interpreta como espelho da pessoa viva. Apenas a existncia

    humana releva o sentido da justia, e isto percebido no ato de julgar realizado pelo juiz17

    .

    As sentenas so um testemunho, mostram os princpios que informam o pensamento

    jurdico do juiz. O ato de julgar no frio e neutro, mas se relaciona com o sentimento de

    injustia, que transforma a dor muda e inarticulada em algo comunicativo. Quem julga

    transfere para o mundo algo muito intenso e veementemente que estava aprisionado em seu

    14

    OLIVEIRA, Mara Regina de. Os enfoques tericos zettico jurdico e dogmtico jurdico em face da Filosofia

    do Direito. Um exemplo proposto no filme A Histria de Qiu Ju. 2007. Disponvel em

  • 21

    ser. Da a sua comparao com a obra de arte: o curso da vida humana faz com que tudo

    perea, mas no justo julgamento como se at a morte pudesse irromper em vida18

    .

    Diante de tais consideraes, possvel ver o direito como uma arte. O processo de

    julgar, em si mesmo, no estaria na capacidade de produzir sentenas, do mesmo modo que o

    esprito artstico no capaz de produzir coisas tangveis. Tanto o direito como a arte exige

    uma transformao reificada no mundo. Esta proximidade entre o direito e a arte deixa

    transparecer o modo pelo qual o jurista julga e reflete e vice-versa. O juiz no uma mquina,

    h uma escolha que pautada por subjetividade e utilidade, tanto o julgador como o artista

    observa o mundo das coisas como algo comum a todos, ao qual no nega exuberncia da

    inteligncia e da personalidade.

    Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior compara e aproxima o jurista com o

    artista, sendo visvel a aproximao entre o senso de justia, o justo, e o gosto artstico, o

    belo, pois este discrimina, decide entre qualidades e talentos, como aquele examina e decide

    entre provas trazidas no contraditrio. No entanto, tanto ao artista como ao jurista impem-se

    a moderao e a prudncia para no serem sucumbidos pela arrebatao do belo ou pela

    tirania do verdadeiro. Prudncia ou moderao no significam, porm, ausncia de paixo,

    pois ambos, o jurista e o artista, introduzem, no mbito da verdade ou da qualidade e do

    talento, o fato pessoal, ou seja, confere-lhe significao humana19.

    A verdade tambm ocupa posio peculiar na arte e no julgamento, pois no h arte

    sem fico, como tambm nem sempre a verdade das coisas corresponde justia dos

    julgamentos20

    . Sobre o assunto possvel lembrar a diferena que Kelsen faz entre o fato em

    si e o fato processualmente verificado, ou seja, este pode no corresponder verdade, apesar

    de ocupar o lugar do fato em si21

    .

    A verdade, a justia e a arte nos parecem ideais difceis de serem atingidos, porm a

    questo que sem essas ideias no possvel sobreviver, como alertado por Tercio Sampaio

    Ferraz Junior, muitas vezes tanto a arte como a justia so ideias, ideais que parecem

    inatingveis, porm, a raridade de ambas no lhes retira a consistncia real, a realidade do

    sentido da existncia humana. Afinal, onde no h arte, a vida se afunda na mesmice do

    18

    PRADO, Ldia Reis de Almeida. O juiz e a emoo. Campinas: Millennium, 2003. p. 252 254. 19

    Idem, ibidem. p. 257. 20

    Idem, ibidem. p. 274 e 275. 21

    KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 267.

  • 22

    cotidiano e onde no h justia, a existncia perde significado. Da o sabor insosso do

    repetitivo, que mata a espontaneidade. Da a amargura das injustias que nunca se

    transfiguram22.

    O desafio colocar a arte e a justia como objeto cognoscitivo, pois o gosto como uma

    varivel subjetiva, depende dos padres histricos, e o senso de justia, como varivel

    subjetiva, depende das regras. A alternativa est em buscar o sentido, sendo que o senso de

    justia tem a ver com o sentido da prpria morte e, pois, com a angstia da liberdade no viver

    comum. Ora, o mundo sem arte sobrevive como indiferente, j o mundo sem justia perece

    como o sem sentido da prpria morte23.

    Michel Villey chama ateno para o fato de que os intelectuais se contentam com

    informaes particulares, teis s necessidades prticas, que so proporcionadas pela cincia,

    ou seja, falta a filosofia para que se tenha a viso total, pelo menos da estrutura do todo24

    .

    Ora, nada melhor do que unir o pensamento crtico da filosofia do direito com as experincias

    e emoes da linguagem cinematogrfica, que ultrapassa o raciocnio puramente lgico das

    teorias filosficas tradicionais, como proposto por Mara Regina de Oliveira, com objetivo de

    buscar um pensamento mais holstico.

    1.1.1 Complexidade humana e interdisciplinaridade25

    A realidade sempre mais rica do que qualquer esquema. (Norberto Bobbio)

    22

    FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito, reflexes sobre o poder, a liberdade, a justia

    e o direito. 3 ed. So Paulo: Atlas, 2002. p. 258. 23

    Idem, ibidem. p. 259 261. 24

    VILLEY, Michel. Filosofia do direito: definies e fins do direito. Alcidema Franco Bueno Torres (Trad). So

    Paulo: Atlas, 1977. p. 26 29. 25

    O termo ser utilizado nos moldes propostos por Hilton Japiassu, nesse sentido, a

    interdisciplinaridade no se confunde com a pluri nem com a multidisciplinaridade, ou seja, no a

    simples reunio, adio ou coleo de vrias especialidades. O multidisciplinar apenas exige

    informaes tomadas de emprstimo a duas ou mais especialidades sem que as disciplinas levadas a

    contriburem por aquela que as utiliza sejam modificadas ou enriquecidas, ou seja, apenas seria um

    estudo de um objeto por diversos ngulos. O interdisciplinar se caracteriza pela intensidade de trocas

    entre os especialistas e pelo grau de integrao real das disciplinas, de tal forma que no final do

    processo interativo cada disciplina saia enriquecida (JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia

    do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976). p. 51.

  • 23

    A dualidade humana no tema recente, mas parece estar esquecida, ainda que

    naturalmente inerente aos homens; porm, esse esquecimento no parece ser resqucio de

    sabedoria, pois necessrio recordar que o homo sapiens no sapiens, somente, por assim

    dizer. E essa relevncia est no fato de que a formao humana, em sua plenitude, demanda

    uma compreenso global do prprio ser humano.

    Desde o perodo helnico, a formao humana era concebida em sua plenitude. A

    concepo de Paideia encerrava justamente uma formao global, universal do ponto de vista

    das capacidades humanas, abrangendo a doutrina das habilidades fsicas, racionais e afetivas.

    Paideia a formao cultural de determinados indivduos que no se limitava a alfarrbios, mas

    tambm vida social, cultural e artstica da plis26

    .

    Com o advento da Idade Moderna, o saber unitrio sofre um processo de desintegrao

    crescente27

    . O grande corte, ou mutao, situa-se a partir da Renascena, sendo tambm neste

    perodo que a concepo de sistema consagrada, o que ocorre com o surgimento do Estado

    Moderno e o desenvolvimento do capitalismo com as noes de organizao, clculo e

    burocratizao28

    .

    Apesar das tentativas de estudiosos do sculo XVII e XVIII de consagrar num nico

    corpo os elementos dispersos do domnio da cincia, o sculo XIX colocou um fim nessas

    esperanas em razo do surgimento das especializaes que, de acordo com Hilton Japiassu,

    seriam cancerizaes epistemolgicas29.

    A especializao exagerada e sem limites das disciplinas cientficas se deu a partir do

    sculo XIX, e culmina cada vez mais numa fragmentao crescente do horizonte

    epistemolgico. H um aumento progressivo de grupos e equipes interdisciplinares que se

    substituem s simples pesquisas individuais, parecendo at um reflexo, no plano cientfico, da

    produo de massa no campo industrial30

    .

    26

    JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. p. 45 47. xx 27

    Idem, ibidem. p. 47. 28

    FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 4 ed. So

    Paulo: Atlas, 2003. p. 179 e 180. 29

    JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. p. 48. 30

    JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. p. 40 e

    41.

  • 24

    Edgar Morin explica a questo da educao e da formao plena do ser humano na

    medida em que as experincias da vida humana, que verdadeiramente complexa, so

    passveis de apreenso por meios diversos que, de certa forma, transmitem o carter quase

    universal e comum da natureza humana. Universal porque comum, em verdade. E comum

    porque intrnseco natureza humana. Esses meios diversos podem, sem prejuzo de uma

    anlise mais acurada, ser considerados espcies do gnero a que denominamos Arte31

    .

    O autor francs se refere literatura, poesia e cinema, precipuamente, explicitando que

    esses meios de conhecimento so mesmo complexos porque passveis de anlise em

    diferentes esferas: gramatical, sinttica, semitica e, nas palavras dele, escolas de vida, em

    seus mltiplos sentidos. Como ignorar a riqueza suprema das obras de Shakespeare ou

    Dostoievski, que refletem as paixes e razes da vida humana? E como ignorar a importncia

    do conhecimento pleno, que abarca no s a luz racional do Homem, mas a prpria escurido

    irracional que lhe to natural?32

    .

    Afinal de contas, h mesmo racionalizaes alucinatrias, manifestaes humanas

    baseada na luz, somente, que se analisadas de perto, interpretadas coerentemente,

    transformam-se em verdadeiros horrores basta citar o exemplo do holocausto ou, melhor

    ainda, o Malleus Malleficarum33

    redundante da conjugao de f e razo. inegvel, pois, a

    dualidade humana. E a educao, a formao verdadeira, honestamente plena s pode ser

    aquela que do Homem para o Homem, concebendo-o e catalisando suas potencialidades em

    sua integralidade.

    Edgar Morin no se atm relevncia da plenitude do saber verdadeiro. Ele perscruta

    as faces da natureza humana, sublinhando que seria irracional, louco e delirante ocultar o

    componente irracional, louco e delirante do humano34. De fato, h um homo sapiens e um

    homo demens. Ambos habitam as entranhas da alma humana, ora preponderando um sobre o

    outro, ora ajustando-se harmonicamente um ao outro.

    Esse lado obscuro, passional, emotivo, instintivo do ser humano no objeto de

    anlise recente ou, melhor dizendo, no foi considerado somente nos ltimos sculos, como se

    31

    MORIN, Edgar. A cabea bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand

    Brasil, 2000. p. 48. 32

    Idem, ibidem. p. 49. 33

    Tratado teolgico alemo da Alta Idade Mdia que procura explicar racionalmente como localizar, caar e

    exterminar bruxas. 34

    MORIN, Edgar. O Mtodo 5, a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 117.

  • 25

    disse a princpio. Edgar Morin aponta - e os alfarrbios ratificam que os gregos j

    aventavam uma hubris, uma demncia desmedida que, como ele mesmo explica, pode ser

    oriunda da prpria racionalidade exacerbada. Num jogo de palavras e numa anlise dual tal

    qual a natureza humana, o francs explica que a racionalidade demasiada, ou melhor, o homo

    demasiado sapiens torna-se, ipso facto, homo demens35.

    Desse modo, a formao plena do ser humano reside na compreenso do seu prprio

    carter humano, entendido no demens e no sapiens, que, de modo dialtico e complementar,

    circundam o elemento de trnsito que a afetividade. Da que a formao cultural verdadeira

    no pode mesmo se encerrar na dogmatizao e no racionalismo cientfico puro, e a prpria

    Filosofia exige uma compreenso universal do objeto sobre o qual se debrua. A compreenso

    deste ou daquele objeto demanda uma apreenso verdadeiramente cultural, destrinchando-o

    da maneira que melhor possa salientar o reflexo da prpria natureza humana.

    Na verdade, o conhecer cada vez mais sobre um objeto cada vez menos extenso, acaba

    por saber tudo sobre o nada. H um esmigalhamento do saber. Nada mais h que obrigue a

    fragmentao do real em compartimento estanques, o que leva a uma pesquisa das

    aproximaes, interaes e dos mtodos comuns. Achar que a interdisciplinaridade est na

    moda um erro, pois ela est longe de constituir progresso real, j que seria, na verdade, um

    sintoma da situao patolgica em que se encontra hoje o saber. A exigncia interdisciplinar

    no passa da manifestao, no domnio do conhecimento, de um estado de carncia36

    .

    Pode-se verificar como um impasse fundamental das cincias humanas o fato de

    parecerem, em nossos dias, desvinculadas do mundo, ou seja, mostram-se desvinculadas do

    homem, e assim, incapazes de compreender o mundo dos objetos naturais e tcnicos. Se se

    deve, de um lado, comparar e congregar os conhecimentos, do outro, preciso no esquecer

    que o conhecimento e a ao, longe de se exclurem, se conjugam. Porque o homem em

    situao, e no o homem atemporal, a-histrico, desenraizado culturalmente, que introduz e

    instaura o pluridisciplinar e, por conseguinte, o interdisciplinar37

    .

    35

    MORIN, Edgar. O Mtodo 5, a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 118 e 119. 36

    JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. p. 40 e

    41. 37

    JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. p. 45 e

    58.

  • 26

    No que tange ao Direito, bvio que, por si s, sua anlise cientfica e mesmo

    Filosfica ser pobre e realmente rida se restringida aos alfarrbios tcnico-jurdicos e aos

    manuais glidos que no fazem outra coisa seno repisar teses desvinculadas do humano. No

    que se repreenda os clssicos, mas que a interdisciplinaridade o meio pelo qual a cincia e

    a Filosofia jurdica podem se expandir, completando o sapiens, resvalando no demens por

    meio da afetividade, lidando com um mtodo logoptico que afie a sensibilidade do jurista e o

    atinja em sua plenitude, em sua humanidade. A o conhecimento ser pleno, na medida das

    limitaes humanas.

    Carlos Mara Crcova hbil em explicar que o Direito tem se enriquecido no sentido

    de agregar diferentes concepes oriundas de diferentes reas, sendo a linguagem uma delas,

    a ponto mesmo de ser concebido no seio da filosofia da linguagem, semitica e hermenutica

    jurdica, conceitos oriundos dessa feliz conjugao. A ideia fica mais fcil de ser concebida ao

    se frisar que nos ordenamentos de eixo legislado romnico, a palavra escrita prepondera. Da

    que a aproximao entre Direito e Arte fica mais fcil do ponto de vista metodolgico se a

    anlise se operar levando-se em conta a literatura. certo que Crcova conclui que

    relevante uma teoria da linguagem e uma semitica do Direito para expandir o campo

    investigativo terico deste, livrando o jurista pesquisador das vises que reduzem a cincia ou

    a Filosofia do Direito, a fim de compreend-lo de modo pleno, em sua complexidade

    estrutural e em sua dimenso social.38

    .

    A proposta louvvel e ganha fora com a concatenao do aduzido por Edgar Morin

    e Hilton Japiassu, porque essa "compreenso plena" no ser somente do prprio Direito, mas

    do indivduo que o perscruta. Haver, pois, um refinamento do esprito do conhecedor e do

    conhecimento produzido, ambos complementares e naturalmente indissociveis se a vontade

    do jurista/pesquisador for, de fato, o conhecimento potencializado, verdadeiro e

    indubitavelmente rico.

    Donald R. Kelley prope um conceito positivo de jurista, que se referiria ao modelo

    intelectual, ou seja, pluridisciplinar, no bastando ao jurista saber apenas sobre o direito, mas

    tambm outros conhecimentos, tais como histria, para o autor, esse modelo positivo perdura

    38

    CARCOVA, Carlos Maria. Derecho y Narracin. In: TRINDADE, Andr Karam (org). Direito & Literatura,

    ensaios crticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 11-13.

  • 27

    at a Renascena39

    . Do mesmo modo que Kelley alerta sobre a importncia da histria e de se

    ler os juristas das pocas, a Filosofia nesse caso tem a mesma importncia, apesar da

    manipulao sofrida pela cincia jurdica.

    Para o Direito, portanto, os meios elementares para uma pesquisa interdisciplinar j

    foram dados, podendo o jurista perscrutar e refinar sua prpria intelectualidade aninhando-se

    sob a gide riqussima da Arte.

    1.1.2 O cinema como possibilidade artstica de percepo do humano

    O que sente repugnncia pelo vagabundo que encontra na rua simpatiza de todo o corao com o vagabundo Carlitos, no

    cinema. Enquanto, na vida quotidiana, somos quase

    indiferentes s misrias fsicas e morais, sentimos a

    comiserao, a piedade e a bondade, ao ler um romance ou

    ver um filme. (Edgar Morin)40.

    A primeira exibio pblica do cinema aconteceu no dia 28 de dezembro de 1895, em

    Paris, e a impresso da realidade se manifestou de uma maneira to efetiva que as pessoas

    reagiram como se o filme fosse sair da tela, ou melhor, como se o trem o fosse. No princpio,

    o cinematgrafo era apenas um instrumento para reproduzir o movimento, no entanto, o

    cinema reproduziu o movimento, mas fez muito mais que isso, representou a realidade41.

    O filme representado por meio de uma linguagem imagintica, resultado de uma

    montagem de imagens, escolha, selees, ngulos, foco, planos e cenas. A cmera o olho do

    espectador, leva este para dentro do filme, nossos olhos se tornam o olhar dos personagens, e

    neste fato que se d o ato psicolgico da identificao. A identificao to intensa que o

    espectador se coloca no lugar da personagem, e essa identificao pode se dar com um

    39

    KELLEY, Donald R. Jurisconsultus Perfectus: The Lawyer as Renaissance Man. Journal of the Warburg and

    Courtauld Institutes, v. 51, p. 84, 1988. 40

    MORIN, Edgar. A cabea bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand

    Brasil, 2000. p. 50 e 51; FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso,

    dominao. 4 ed. So Paulo: Atlas, 2003. p. 86. 40

    Idem, ibidem. 50 e 51. 41

    BERNARDET, Jean Claude. O que cinema? 18 reimpr. So Paulo: Brasiliense, 2006. p. 11 13. (Coleo Primeiros Passos).

  • 28

    semelhante ou mesmo com um estranho, como ressaltado na frase inicial de Edgar Morin,

    podendo o espectador se identificar com o vagabundo42

    .

    Retratar emoes seria o principal objetivo do cinema e esta pode ser avivada com o

    close-up, o que se faria com binculos no teatro feito com a cmera no cinema. A cmera e

    o modo de filmar so de grande valor para a expresso das emoes, mesmo sem palavras

    possvel despertar diferentes emoes no espectador. As emoes tambm so comunicadas

    pelo ambiente. Um ambiente perfeito reflete paixes da mente43

    .

    No entanto, no existem apenas as emoes dos personagens do filme, mas tambm

    ato de ateno e de memria do espectador, e os estmulos mentais deste se projetam no filme,

    desse modo, pode-se dizer que h emoes em que os sentimentos dos personagens no filme

    se comunicam com os espectadores, e tambm emoes que as cenas do filme suscitam dentro

    destes44

    .

    No apenas a mobilidade da cmera que proporciona novas formas de expresso,

    mais que isso. Na verdade, a cmera o olho do espectador, leva este para dentro do filme,

    nossos olhos se tornam o olhar dos personagens e neste fato que se d o ato psicolgico da

    identificao. Alm disso, a montagem do filme deve ser feita de maneira que o espectador

    sinta a continuidade da cena45

    .

    O som tambm muito importante, e diferentemente dos objetos, no pode ser

    fragmentado, mas pode ser mais alto ou mais baixo alm de acompanhar a emoo do

    personagem. No filme, o som est sempre presente, sempre h msica ao fundo. O som

    tambm identifica lugares, bem como alarga a participao da alma e tende a orientar a

    participao46

    .

    A linguagem imagintica est intimamente relacionada com o poder, a manipulao,

    no entanto, deve-se ressaltar que esta sempre ambgua, sendo que pode ser utilizada para

    produzir pensamento e no apenas como indstria. Quanto ao cinema em si, possvel

    verificar que, do ponto de vista objetivo, as pessoas vo para buscar distrao, entretenimento,

    42

    MORIN, Edgar. A cabea bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand

    Brasil, 2000. p. 50 e 51. 43

    MUNSTERBERG, Hugo. As emoes e Ns estamos no filme. In: XAVIER, Ismael (Org.). A experincia do

    cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edies Gerais Graal/Embrafilmes, 1983. p. 48 e 49. 44

    Idem, ibidem. p. 51 e 85. 45

    Idem, ibidem. p. 84 e 85. 46

    Idem, ibidem. p. 88 e 89.

  • 29

    mas do ponto de vista subjetivo h a mudana psicolgica da conscincia. A situao cinema,

    isto , o isolamento do mundo exterior, demonstra a fuga da realidade e gera alguns efeitos,

    tais como alterao da sensao de tempo e de espao, estado passivo do espectador e

    anonimato deste. Tais efeitos so as bases da psicologia da experincia cinematogrfica, e um

    dos elementos da situao cinema a sua funo psicoteraputica, pois torna confortvel a

    vida das pessoas, distribui migalhas de sonhos irrealizveis, mas tambm pode levar

    reflexo47

    .

    A imagem um smbolo muito prximo da realidade, diferente da palavra, smbolo

    indireto, elaborada pela razo e por isso afastada do objeto. Diante de tais caractersticas, a

    imagem se dirige diretamente emotividade do telespectador, diferente da palavra que deve

    passar pela razo. Um filme no requer do espectador esforo mental para seu entendimento,

    diferente de um texto, no qual a razo funciona como um filtro, controlando as ideias. As

    influncias de um texto e de um filme so diversas, e com certeza, a influncia do filme

    muito maior, j que vai diretamente ao inconsciente sem ter tempo para a crtica, alm de se

    dirigir a uma plateia muito mais numerosa e diversificada48

    .

    Diante disso, possvel entender porque o cinema o mais poderoso e eficaz

    instrumento de propaganda. Fala-se que, dentre as artes, o cinema o que mais pode ser

    vulgarizado, j que se raciocina e se critica pouco, o laboratrio que o Diabo usa para seus

    venenos e devaneios para conduzir o pensamento a seu modo. A arte que veio combater a

    racionalizao a fbrica de sonhos, o cinema sendo utilizado como analgsico; o

    intelectualismo, ou seja, o livro encontrou seu antdoto no cinema49

    .

    Enfim, o cinema visto pelo naturalismo como algo neutro que mostrava como eram as

    coisas mostra agora o que h de mais subjetivo, um sentimento, uma emoo. A emoo

    infiltrou-se na cmera e fez do cinema um instrumento de satisfao afetiva, oferecendo fuga

    e encontros, ou seja, adaptou-se a todas as necessidades subjetivas.

    Realmente, o cinema reproduziu o movimento representando a realidade, mas fez

    muito mais que isso, produziu a realidade, j que a evoluo do cinema teve como seu

    47

    MUNSTERBERG, Hugo. A psicologia da experincia cinematogrfica. In: XAVIER, Ismael (Org.). A

    experincia do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edies Gerais Graal/Embrafilmes, 1983. p. 51, 85 e 375-380. 48

    Idem. O cinema do diabo-excertos. In: XAVIER, Ismael (Org.). A experincia do cinema: antologia. Rio de

    Janeiro: Edies Gerais Graal/Embrafilmes, 1983.p. 293. 49

    Idem,ibidem. p. 295 e 298.

  • 30

    investidor a burguesia, que utilizou o instrumento para facilitar seu processo de dominao

    produzindo a vida como ela 50

    . Pode-se falar que o sistema estabelecido, principalmente

    pelos Estados Unidos, era, e ainda , de efeito naturalista, tudo parece verdadeiro, imita-se a

    vida e com isso respeita-se a verdade, ou seja, alm de uma reproduo fiel das aparncias

    do mundo do ser, surgiu outra iluso de ser o cinema uma arte neutra, j que no teria o

    homem como intermedirio, mas sim uma mquina51

    .

    O fato que o cinema no mostra as coisas como elas so, e sim como uma classe

    dominante queira que elas paream ser, alm disso, no existe neutralidade nem na cincia,

    quem diria no cinema. No entanto, a classe dominante no pode mostrar que a tela no mostra

    a verdade, disfara seu instrumento dominador, manipulando tudo e todos que no esto com

    os olhos crticos bem abertos.

    Alm da impresso da realidade e da neutralidade, o cinema se fortaleceu como a

    arte dominante, diga-se, a arte da burguesia, com a sua transformao em mercadoria, a

    facilidade de sua multiplicao em cpias e com isso sua chegada em todos os cantos da terra,

    inclusive no Brasil52

    .

    No entanto, a realidade e a complexidade humana so bem maiores que a imagem em

    um cinema. No haveria uma viso natural na tela, mas sim um ponto de vista de um diretor,

    seus patrocinadores, etc. A ideologia da classe dominante se apresenta nos filmes, sem

    dvida, e sempre o que se passar a viso de algum grupo, porm, o problema no este. No

    fundo, a grande preocupao que tal ideologia vem mascarada em forma de realidade, ou

    seja, esconde-se a realidade como forma de dominao para manuteno do status quo53

    .

    Com esse grande sucesso do cinema de Hollywood, questionam-se quais seriam os

    fatores responsveis por esta eficincia. Kulechov apresenta dois fatores: ritmo da montagem

    50

    BERNARDET, Jean Claude. O que cinema? 18 reimpr. So Paulo: Brasiliense, 2006. p. 14 16. (Coleo Primeiros Passos). 51

    XAVIER, Ismael. Do naturalismo ao realismo crtico. In: ____. O discurso cinematogrfico, a opacidade e a

    transparncia. 3 ed. rev. e ampl. So Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 41 43. 52

    BERNARDET, Jean Claude. O que cinema? 18 reimpr. So Paulo: Brasiliense, 2006. p. 23. (Coleo

    Primeiros Passos). 53

    Idem, ibidem. p. 20.

  • 31

    e a compatibilidade existente entre a montagem americana e o tipo de fico desenvolvida em

    seus filmes54

    .

    O cinema acontece por meio de uma linguagem, e esta pode acontecer de vrios

    modos - velocidade dos quadros, posio da cmera, o que resulta na montagem, ou seja,

    reunio das imagens. Frise-se que o cinema clssico tenta esconder seu carter de linguagem e

    se mostra como realidade, o que mera iluso. Por meio de todo tipo de linguagem

    transmitida uma informao, ora, esse o objetivo da linguagem, troca de informaes. Mas

    quais seriam os valores que so transmitidos por meio do cinema hollywoodiano? Adquirir

    uma fortuna individual, prover seu aluguel, tornar-se um feliz proprietrio55.

    A mercadoria que se tornou o cinema preocupa no sentido de veicular princpios e

    valores. E visvel o modo de produo capitalista nesse sistema cinematogrfico que virou

    mercadoria e que est nas mos dos dominantes. O interessante que as pesquisas e o

    desenvolvimento de tcnicas se deram justamente de forma a manter a massa alienada e

    bitolada. Basicamente os filmes se resumem em heris e um roteiro muito previsvel, que no

    correspondem com a realidade da maioria, mas que parece real; o ritmo, a montagem, as

    msicas, tudo acontece de forma a que o espectador entenda rapidamente o que se passa, e no

    fim, o que importa o efeito da realidade obtido. De acordo com Jean-Claude Bernardet:

    O exemplo brasileiro significativo. O espectador, para acompanhar o enredo do

    filme no dublado, tem de ler legendas. Isso obriga seus olhos a percorrer muito

    rapidamente a imagem, antes de baixar para a legenda, que ele l rapidamente, para

    depois voltar imagem, de ter tempo, e recomear o processo no aparecimento da

    legenda seguinte. O resultado disso que ele se torna um espectador que no tem

    tempo de se deter nas imagens, ele mal as v. Pouco treinado visualmente,

    tambm pouco treinado auditivamente, porque no tem que acompanhar o dilogo

    pelo ouvido, mas lendo. A nossa prpria formao como espectador est

    profundamente marcada pela presena de um cinema legendado. E isto repercute

    sobre nossa relao com o cinema, bem como, por exemplo, sobre as salas de

    cinema: por que uma boa acstica, se o cinema lido e no ouvido?56

    .

    Desse modo, possvel refletir sobre a frase de Rousseau: O que ser da virtude,

    quando for preciso enriquecer a qualquer custo? Os antigos polticos falavam incessantemente

    54

    XAVIER, Ismael. Do naturalismo ao realismo crtico. In: ____. O discurso cinematogrfico, a opacidade e a

    transparncia. 3 ed. rev. e ampl. So Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 46. 55

    Idem, ibidem. p. 52. 56

    BERNARDET, Jean Claude. O que cinema? 18 reimpr. So Paulo: Brasiliense, 2006. p. 28. (Coleo

    Primeiros Passos).

  • 32

    de costumes e de virtude; os nossos s falam de comrcio e de dinheiro57. As excluses

    sociais so produto da cultura de consumo, das empresas monopolistas, e o pior que,

    principalmente no Brasil, tudo recebido de braos abertos, no se oferece resistncia a nada

    e a dominao cinematogrfica quase total.

    Neste contexto, as reflexes de Adorno fazem sentido quanto ao papel do cinema na

    indstria cultural capitalista, tornando-se uma mercadoria abstrata que serve como meio de

    alienao58

    . Na maioria das vezes, o cinema industrial quer se mostrar como verdadeira

    impresso da realidade, camuflando sua manipulao, sendo que no passa de fuga da

    realidade. No entanto, nas palavras de Walter Salles: O cinema, como todas as artes, deve

    ser, antes de mais nada, transgressor. Ele pode ser um fantstico instrumento de compreenso

    do mundo e no de banalizao59.

    Enfim, o cinema se transformou em um criador de iluses que so transmitidas como

    se fossem realidade e, muitas vezes, instrumento de dominao e opresso. No entanto, ao

    lado desse tipo de cinema, h outros, preocupados com um realismo crtico e com o

    esclarecimento de seus espectadores. No Brasil60

    , a partir de 1960, temos o Cinema Novo, tal

    como o Neo-Realismo italiano e a Nouvelle Vague francesa, como relao justa entre os

    fenmenos e no uma relao mascarada, mostrando os excludos da sociedade e suas lutas,

    um verdadeiro realismo com o fim de tomada de conscincia humana; a linguagem, nesse tipo

    de cinema, no construda para agradar a todos, mas sim queles que se interessam pelas

    informaes fornecidas61

    .

    Desse modo, apesar de o cinema ser usado muitas vezes como forma de banalizao

    da realidade, na linha de pensamento de Mara Regina de Oliveira, ao assumir uma postura

    menos radial e maniquesta, o cinema ainda pode ser visto como arte, possibilitando a

    proposta filosfica ora apresentada, j que nos filmes que pretendemos analisar, mesmo que a

    manipulao ocorra, ela ou explcita ou gera uma reflexo, estimula e produz o pensar, j

    que:

    57

    ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre as cincias e as artes.In: Discurso sobre a origem e os fundamentos da

    desigualdade entre os homens. Maria Ermantina Galvo (Trad.). 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 28. 58

    ADORNO, Theodor W. Indstria Cultural e Sociedade. So Paulo: Paz e Terra, 2001. 59

    OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito: um estudo sobre a crise de legitimidade jurdica

    brasileira. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006. p. 09. 60

    O cinema brasileiro moderno ser analisado mais detidamente no subitem seguinte. 61

    Idem, ibidem. p. 93 e XAVIER, Ismael. Do naturalismo ao realismo crtico. In: ____. O discurso

    cinematogrfico, a opacidade e a transparncia. 3 ed. rev. e ampl. So Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 44.

  • 33

    Quando o cinema de arte associado a um trabalho acadmico srio, pode simular

    uma vivncia, pode abrir nossos olhos para uma realidade difcil, que deve ser

    enfrentada com coragem. Ele uma forma de produo artstica contempornea que

    engloba todas as demais, de uma forma nica. Agrega a msica, a fotografia, teatro,

    literatura e outras mais. Quando a imagem bem montada, em termos dramticos,

    ela produz o chamado efeito real, to bem explicado pela psicanlise e adquire um alto poder de penetrao mental, facilitando a reflexo crtica dos temas de

    forma completa, pois mescla manifestao emocional com reflexo racional. (...)

    Ela faz com que o espectador embarque numa viagem transformadora de sua viso

    sobre a realidade (...)62

    . (grifos do autor).

    A filosofia atingida por tudo que o homem faz, e no deixou de ter a influncia do

    cinema. No entanto, essa se desenvolveu por textos e no por imagens, mas isso no quer

    dizer que exista uma ligao necessria da escrita com a problematizao filosfica, esta

    compatvel com a apresentao imagintica. Tanto a imagem quanto o texto so formas de

    linguagem, so manifestaes diversas de um pensamento; sendo assim, as duas formas de

    linguagem poderiam fazer filosofia. A questo saber qual o impacto gerado por uma e outra

    forma de linguagem63

    .

    De acordo com filsofo argentino Julio Cabrera, visto filosoficamente, o cinema

    constri conceitos-imagem, que funciona no contexto de uma experincia, uma linguagem

    instauradora que precisa passar por uma experincia para ser plenamente consolidada. No

    basta ver o filme para fazer filosofia com este, deve haver interao com o conceito

    transmitido com a imagem, ou seja, precisamos interagir com seus elementos lgicos,

    entender que h uma ideia ou um conceito transmitido pela imagem em movimento64.

    Os conceitos-imagem visam causar impacto emocional, tm uma abordagem

    logoptica, ou seja, a afetividade gerada pelo filme. Alm disso, afirmam algo sobre o

    mundo com pretenses de verdade e universalidade, ou seja, o cinema no elimina estas, mas

    as redefine dentro de sua linguagem prpria65

    .

    Mesmo que o cinema seja simulao, isso no o coloca contra sua pretenso de

    verdade, preciso ver se pode existir um uso filosfico da simulao do cinema. Neste a

    62

    OLIVEIRA, Mara Regina de. Cinema e Filosofia do Direito: um estudo sobre a crise de legitimidade jurdica

    brasileira. Rio de Janeiro: Corifeu, 2006. p. 13 e 14. 63

    CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introduo filosofia atravs dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco,

    2006. p. 17. 64

    Idem, ibidem. p. 21 e 22. 65

    CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introduo filosofia atravs dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco,

    2006. p. 22.

  • 34

    pretenso de verdade e universalidade se d por meio de um impacto emocional, vai direto ao

    ponto, e esse o problema do cinema do Diabo alertado por Hugo Munsterberg, um filme s

    vezes um golpe baixo. O recurso da mediao emocional tem a ver com a apresentao da

    ideia filosfica e no com sua aceitao impositiva, deve haver emoo no entendimento e

    no no aceitar66

    .

    Conforme os ensinamentos de Mara Regina de Oliveira, a relao entre um filme -

    linguagem imagintica - com a filosofia no apenas de exemplificar a teoria, mas expandir o

    pensamento terico-filosfico. O pensamento por meio de imagens se faz com o elemento

    ptico associado racionalidade lgica. O cinema potencializa a experincia emocional, as

    questes filosficas podem ser apresentadas no s racionalmente, mas sensivelmente. O

    conceito imagem possibilita a produo de um impacto emocional, e para que haja

    compreenso mister vivenciar o lado humano, pois no se compreende apenas por um

    conceito racional, que dado pelos textos tericos. As questes humanas, e principalmente da

    Filosofia do Direito, tais como poder, fora e justia, so mais bem compreendidas de modo

    ptico67

    .

    Desse modo, o cinema associado a uma anlise pragmtica do discurso normativo,

    apesar de esta ser a descrio de um modelo e no de uma realidade emprica, possibilitam um

    esquema analtico capaz de tornar transparente uma das mltiplas facetas da dimenso

    emprica68

    .

    66

    CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introduo filosofia atravs dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco,

    2006. p. 38. 67

    OLIVEIRA, Mara Regina de. O mercador de Veneza e o problema da justia. In: Revista Brasileira de

    Filosofia, ano 58, volume 232, p. 294, 295 e 316, janeiro-junho de 2009. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    2009. 68

    FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica: ensaio de pragmtica da comunicao normativa. 4

    ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 39.

  • 35

    1.2 O CINEMA BRASILEIRO

    O cinema moderno aborda inmeras discusses de carter crtico, alm de contar

    histrias focadas nos problemas sociais e polticos, denuncia as mazelas da sociedade

    brasileira, como fome, religio, violncia, corrupo, a questo da identidade, conscincia do

    oprimido, etc. Para Ismael Xavier:

    Falar em cinema moderno remete a uma pluralidade de tendncias, mas tomo aqui

    como baliza as experincias que podem, primeiro, ser referidas formao do estilo

    moderno no sentido de Andr Bazin este que envolve a referncia a Renoir, a Welles e ao neo-realismo. E podem ser referidas, em segundo lugar, a Antonioni,

    Pasolini e Rossi, Nouvelle-Vague e Resnais, a Cassavetes e Gutierrez Alea, entre

    outras figuras de tal cinema em seu momento mais cannico. Falo, portanto, da

    sintonia e contemporaneidade do Cinema Novo e do Cinema Marginal com os

    debates da crtica e com os filmes dos realizadores que, tomando a prtica do

    cinema como instncia de reflexo e crtica, empenharam-se, em diferentes regies

    do mundo, na criao de estilos originais que tensionaram e vitalizaram a cultura69

    .

    Nos anos 1960, o cinema retrabalhou o que o modernismo de 1920 criou, ou seja, a

    articulao entre nacionalismo cultural e experimentao esttica. Foram estas as

    preocupaes modernistas que definiram o melhor estilo do cinema de autor, o que resultou

    na realizao de filmes complexos demais para quem pedia uma arte pedaggica. Ou seja, no

    Cinema Novo e, em especial, no Cinema Marginal, por ser radical na ironia quando esvazia a

    prpria ordem das narrativas, a tendncia a um cinema de poesia favorecia a dimenso

    expressiva que, sem prejuzo da poltica e adensando o campo de debate, colocava no centro

    as determinaes subjetivas, a performance do autor, este que Glauber desenhava com a

    anttese da indstria70

    .

    O Cinema Novo surge em um Brasil pr-ditadura, e neste contexto, impelido por uma

    industrializao que condena o brasileiro comum marginalizao e desigualdade social,

    alimentando, pois, uma fora poltica em favor do oprimido, a figura do intelectual, como

    define Xavier age como mediador social. Vale ressaltar, contudo, que no universo de Glauber,

    as qualidades do intelectual no esto na disciplina do organizador ou na pacincia do

    69

    XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 14-15. 70

    Idem, ibidem. p. 23-24 e 32.

  • 36

    pedagogo sempre disposto a esclarecer pelo verbo. Esto na coragem da agresso que gera

    catarse pela violncia, que trabalha o inconsciente71.

    Neste momento, falou a voz do intelectual militante mais do que a do profissional

    de cinema foi o momento de questionar o mito da tcnica e da burocracia da produo em nome da liberdade de criao e do mergulho na atualidade. Iderio

    que se traduziu na esttica da fome, em que a escassez de recursos se transformou em fora expressiva e o cinema encontrou a linguagem capaz de elaborar com fora

    dramtica os seus temas sociais, injetando a categoria do nacional no iderio do

    cinema moderno (...)72

    . (grifo do autor).

    Com a finalidade de transformar a sociedade, alterando-a de seu estado conformista,

    que objetiva romper com o estabelecido, com o que oprime o homem, o Cinema Novo explora

    fortemente a significao em seus filmes, a incorporao da cmera na mo no cinema de

    fico, trao tcnico-estilstico fundamental para a constituio da dramaturgia do cinema

    moderno latino-americano, os movimentos da msica ou mesmo dos atores, representam por

    si s a sociedade73

    .

    Se a questo do realismo foi central no cinema de um Leon Hirzman ou de um Luiz

    Srgio Person, a alegoria e a descontinuidade marcaram o cinema de Glauber, autor

    que inventou o seu prprio cinema feito de instabilidades, tateios de cmera e falas

    solenes, com sua mise-en-scne composta de rituais observados por um olhar de

    filme documentrio. Por diferentes caminhos, o cinema brasileiro trabalhou as

    tenses entre a ordem narrativa e uma rica plstica das imagens, fazendo sentir a cmera como era prprio a um estilo que questionava a transparncia das imagens e o equilbrio da decupagem clssica

    74.

    Ao fugir do naturalismo, o Cinema Novo projeta o cinema brasileiro no plano

    internacional. Ao descrever o processo que envolveu o Cinema Novo entre o final da dcada

    de 1950 e meados dos anos 1970, Ismael Xavier afirma ter sido, o perodo esttica e

    intelectualmente mais denso do cinema brasileiro, pois se criou uma convergncia entre a

    poltica dos autores, os filmes de baixo oramento e a renovao da linguagem, traos que

    marcam o cinema moderno, por oposio ao clssico e mais plenamente industrial. O cinema

    dos anos 1960 e 1970 pensou a memria como mediao, trabalhando a ideia de uma nova

    conscincia nacional a construir.

    71

    XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 136. 72

    Idem, ibidem. p. 27 73

    Idem, ibidem. 74

    Idem, ibidem. p. 16-17

  • 37

    Ao humor da ironia de 1968, o Cinema Marginal ope a sua dose amarga de

    sarcasmo e, no final da dcada, a esttica da fome do Cinema Novo encontra seu desdobramento radical e desencantado na chamada esttica do lixo, na qual cmera na mo e descontinuidade se aliam a uma textura mais spera do preto-e-

    branco que expulsa a higiene industrial da imagem e gera desconforto75

    .

    Antes de 1964, o Cinema Novo via no nacional-populismo uma alternativa vivel para

    fazer as reformas estruturais no pas, ligado fielmente s outras artes e a militncia sindical de

    esquerda. Aps o golpe militar, os vnculos com a tradio literria so fortalecidos e so

    lanados filmes com crticas diretas ao regime militar, mas se preocupa com a continuidade

    do ciclo do cinema moderno. Assim, aquela iluso de proximidade do intelectual com as

    classes populares entra em questo e o populismo j no mais vivel.

    A dcada de 70 foi uma poca de grande produo do cinema brasileiro, diferente das

    previses para o fim do cinema moderno. Houve muita poltica de incentivo a certas obras,

    como filmes de contexto histrico e de artistas que haviam morrido, tiveram um

    financiamento e no foram censurados pela ditadura militar. O cinema novo teve

    comunicao com o mercado, de formas distintas, tal como a chanchada nos anos 40/50,

    apesar do atraso econmico, sendo que a ruptura deste ciclo, segundo Ismael Xavier, dar-se-

    no final dos anos 80, quando o cinema moderno perde sua fora e uma nova ordem do

    audiovisual se inicia.

    Desse modo, passado o perodo de ditadura, surge, mais fortemente em So Paulo, um

    cinema bem diferente do cinema novo, denominado por Pucci76

    de ps-moderno. A dcada de

    1980, neste sentido, marcou a histria da cinematografia pelo processo de dissoluo do

    moderno com a Nova Repblica que enterra de vez uma matriz para pensar o cinema e o pas,

    por apresentar um contraponto no apenas esttico produo audiovisual nacional at ento,

    mas pelo distanciamento que se propunha em relao s discusses polticas do perodo e ser

    um cinema menos ansioso por uma Revoluo77

    .

    75

    XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 17 76

    PUCCI. Renato Luiz. Cinema Brasileiro Ps-Moderno: O Neo-Realismo. Porto Alegre: Sulina, 2008. 77

    XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 32

  • 38

    Para Ismail Xavier os filmes ps-modernos comearam a surgir no acaso do cinema

    brasileiro moderno, ou seja, quando a constelao moderna se desvitaliza e o novo cinema

    dos anos oitenta rejeita a esttica da fome78. (grifo do autor).

    Nos anos 80 reformulado o dilogo com os gneros da indstria e so descartadas as

    resistncias aos dados de artifcio e simulao implicados na linguagem do cinema,

    descartando-se de vez o primado do real, o perfil sociolgico das preocupaes. A

    constituio de uma continuidade vigorosa no plano do cinema se prejudicou diante de

    diferentes conjunturas desfavorveis ao longo do sculo79

    .

    Em verdade, no houve condies para um forte cinema clssico brasileiro no

    momento em que este foi procurado e tinha sentido enquanto proposta. Sua esttica

    exigia, em 1930, 1940 ou 1950, um aparato de produo e distribuio fora do

    alcance, o que tornou instveis, rarefeitas, problemticas ao extremo, as tentativas

    de um estilo hollywoodiano no Brasil80

    .

    O cinema ps-moderno foi denominado pelos crticos como um cinema de escapismo

    em relao aos problemas da sociedade contempornea, Para os defensores do cinema ps-

    moderno esse tipo de crtica teria como parmetro de julgamento o modelo de arte moderna,

    desqualificando politicamente qualquer tipo de arte que fuja a estes padres, consequncia do

    pressuposto de que na arte seria vlida apenas a tradio do novo, e politizado apenas o que

    est de acordo com a poltica da esquerda que entroniza a luta de classes e a revoluo, e

    exclui todo o resto81

    .

    Um filme mais que uma escolha esttica, uma escolha poltica, ou seja, vrios

    elementos so organizados de forma a proporcionar uma viso esttica de uma realidade, o

    que o faz trazer significados atravs do dilogo entre imagem e leitura. O cinema ps-

    moderno dialoga com diferentes gneros e formatos cinematogrficos, no apenas revisita os

    cdigos e convenes do cinema novo brasileiro, mas permeia a narrativa clssica

    hollywoodiana, as desconstrues flmicas da Nouvelle Vague francesa, assim como a

    tradio neorrealista italiana. Enquanto o cinema novo costumava fazer uso de locaes, para

    promover uma aproximao do espectador com a realidade abordada, dando um ar

    78

    XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 40. 79

    Idem, ibidem. p. 38 80

    Idem, ibidem. p. 40. 81

    PUCCI. Renato Luiz. Cinema Brasileiro Ps-Moderno: O Neo-Realismo. Porto Alegre: Sulina, 2008. p.158.

  • 39

    documental ao filme, em razo da influncia com o neorrealismo italiano, o jovem cinema

    paulista regressava ao passado resgatando a cultura das filmagens em estdio82

    .

    O rompimento do cinema ps-moderno com as narrativas clssicas em suas estruturas

    narrativas e sua narrativa mais branda politicamente, para seus defensores, no teriam como

    motivo exclusivo o aspecto comercial, mas sim atrair o pblico, j que com o cinema

    moderno Cinema Novo e Cinema Marginal , somado concorrncia das produes norte-

    americanas, bem como o advento e popularizao da televiso, houve um distanciamento do

    pblico e um desinteresse em relao produo nacional83

    .

    A postura do cineasta, ou seja, o mediador social, com o valor social do filme o que

    marca a ausncia de contedo crtico ou permite que o filme promova a reflexo do

    espectador frente s questes abordadas84

    . Muitos filmes brasileiros contemporneos se

    voltam para pensar a prpria realidade, representando as dificuldades de seu povo, as

    desigualdades sociais de um pas com tamanho continental, a diversidade cultural e tnica que

    d cara e cor ao Brasil. No entanto, para Ismael Xavier:

    Digamos que [o cineasta brasileiro contemporneo] perdeu a inocncia, que conduz

    seu trabalho j no mais to convicto da legitimidade natural de seu encontro com o homem comum, com o oprimido. Perdeu as certezas tpicas daquela poca em

    que a cinefilia continha, em si mesma, uma forte dimenso utpica, de projeo

    para um futuro melhor da arte e da sociedade. No reitera, pelo menos com o

    mesmo vigor, aquela f na vocao emancipadora de uma prtica que, uma vez

    inspirada numa postura contestadora a Hollywood, desencadearia um processo de

    desalienao85

    .

    O cinema contemporneo brasileiro, considerando o atual perodo da ps-retomada do

    cinema nacional, tem a liberdade lingustica a favor de um mergulho cultural na sociedade

    brasileira, sem que isso signifique em uma construo lingustica metafrica nem implique em

    uma bandeira em favor da revoluo. A revoluo, no caso, estaria na prpria tcnica que,

    melhor desenvolvida, presta-se criao de uma narrativa que pode, a um s tempo, recriar

    uma atmosfera realista, bem como romp-la com um elemento ou personagem antinatural. A

    insero do espectador no se daria mais, portanto, com uma catarse aos moldes da narrativa

    clssica, mas por meio do vislumbramento do espetculo em funo do ldico.

    82

    BETTON, Grard. Esttica do Cinema. So Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 01. 83

    PUCCI. Renato Luiz. Cinema Brasileiro Ps-Moderno: O Neo-Realismo. Porto Alegre: Sulina, 2008. 84

    Idem, ibidem. p. 63. 85

    XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 43.

  • 40

    O cinema brasileiro ps-moderno deu lugar a uma sociedade globalizada, ps-

    industrial, fragmentada e individualizada, e que, por isso mesmo, deu margem a uma

    construo to multifacetada e rica de produes nacionais, produes estas que podem servir

    para reflexo ou apenas para ganho comercial.

    Apesar das crticas em relao ao objetivo do cinema brasileiro contemporneo, cabe

    ressaltar que no presente trabalho se busca a anlise de uma arte potencializadora da atividade

    crtica e reflexes filosficas, seja no cinema moderno, seja no cinema brasileiro ps-

    moderno, desde que estes no sejam no polticos e alienados.

    Nessa perspectiva, o cinema nacional ora analisado debate a corroso do espao social

    e da cidadania, bem como a fora do crime organizado, tornando visvel a crise de

    legitimidade do Estado Brasileiro, como visto na introduo deste trabalho com o

    documentrio Notcias de uma guerra particular. O Cinema Novo sempre pensou no todo,

    encarou a grande ambio do diagnstico nacional, enfrentando os problemas estticos que o

    discurso totalizante implica86

    , mostrou o Brasil informal que existia nos espaos rurais na

    figura do cangaceiro, mostrando o coronelismo e o latifndio, a fome, os beatos, temas que

    ainda so explorados pelo cinema brasileiro, mas com outro foco87

    .

    O cenrio mudou do serto para a esfera urbana, territrios controlados pelos

    traficantes que tonam sua comunidade em pequenos feudos. As armas so os personagens

    secundrios, pois o mtodo de intimidao usado por quem detm o poder, tanto o bandido,

    quanto a autoridade. O cinema retrata a inverso quanto a quem possui o poder, o trfico de

    armas e a feudalizao da segurana deixam a verdadeiras vtimas entre o fogo cruzado, pois

    o Estado parece perder o monoplio da violncia no mais para o cangaceiro, adversrio de

    classe como antes era definido pelos dramas poltico-revolucionrios, mas para o traficante

    que apenas possui interesses egostas, alheio a solidariedades populares ou a qualquer projeto

    de transformao88

    .

    Desde 1935, com Humberto Mauro, o morador das favelas sempre teve destaque no

    cinema nacional. Na dcada de 60, o marginalizado foi o principal representante das

    aspiraes cinematogrficas brasileiras, contribuindo para desviar a ateno das temticas

    86

    XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. So Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 129. 87

    XAVIER, Ismael. Da Violncia Justiceira violncia ressentida. Disponvel em:

    . p. 56. Fevereiro de 2002. 88

    Idem, ibidem. p. 60 e 61.

  • 41

    relativas s lutas operrias, assunto temido pela classe mdia, pois os problemas eram

    mascarados de forma a controlar os dominado89

    .

    Mostrar favelas promove o nmero de produes cinematogrfic