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DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS O ESTRANHO CORPO DA OBRA

DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS O ESTRANHO CORPO DA … de sala Martin Crimp x 2.pdf · de convocar todas as paisagens imagináveis que o verbo dá a “ouver” e todas as situações

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DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS O ESTRANHO CORPO DA OBRA

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Teatro Nacional São João4-6 dezembro 2014

Teatro Nacional São João11-13 dezembro 2014

DEFINITELY THE BAHAMAS (1986)DE MARTIN CRIMP

tradução Isabel Lopes

encenação Fernando Mora Ramoscenografia José Carlos Fariadesenho de som Carlos Alberto Augustodesenho de luz Carina Galante, Filipe Lopes

interpretação Inês Barros, Isabel Lopes, Carlos Borges

produção Teatro da Rainha

estreia 13Fev2014 Sala-Estúdio do Teatro da Rainha (Caldas da Rainha)dur. aprox. 1:20 M/12 anos

qui-sáb 21:30

Espetáculos em língua portuguesa, legendados em inglês

FOUR UNWELCOME THOUGHTS (2004) FACE TO THE WALL (2002) FEWER EMERGENCIES (2001)DE MARTIN CRIMP

tradução Isabel Lopes (Quatro Pensamentos Indesejados), Paulo Eduardo Carvalho (Contra a Parede + Menos Emergências)

encenação Fernando Mora Ramosdispositivo cénico e figurinos Teatro da Rainhamúsica Carlos Alberto Augustodesenho de luz Carina Galante

interpretação Isabel Lopes, Mariana Reis, Carlos Borges, Paulo Calatré e Carlos Alberto Augusto (interpretação do blues)

produção Teatro da Rainha

estreia 4Out2012 Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainhadur. aprox. 1:00 M/16 anos

qui-sáb 21:30

DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS

MARTIN CRIMP X 2

O ESTRANHO CORPO DA OBRA

O TNSJ É MEMBRO DA

Quatro Pensamentos IndesejadosContra a Parede Menos Emergências

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milly: O silêncio. Eu estou a dizer que foi por isso que viemos para aqui. Porque eu disse ao Frank, não foi Frank, eu disse que aqueles aviões estavam mesmo a dar connosco em doidos. E depois quando vimos o programa na televisão, não foi Frank, sobre as drogas, claro que aquilo fez-nos decidir.frank: Era sobre os ratos.milly: Sim, os ratos. (Ligeira pausa.) O que é que eu disse, Frank?frank: Droga. Tu disseste droga.milly: Ah foi? (Pausa.) Foi? (Pausa.) De maneira que quando chegámos aqui a primeira coisa que fizemos foi ir ao jardim. Eu tenho a certeza que disse ratos. Porque nessa altura tivemos um verão maravilhoso. E o Frank pegou-me no braço e ficámos debaixo da macieira por um instante para evitarmos o calor. Aquela fruta toda. Eu disse credo Frank o que é que vamos fazer com esta fruta toda, só nós dois. E ele disse não te rales com isso, escuta. Não foi Frank. E eu disse o que é que tu queres dizer Frank, escuta. E ele disse, nada, escuta apenas. (Longo silêncio.)

DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS

Os encenadores estão encurralados no canto do fundo à esquerda de um enorme quadrado negro de tinta. O texto explicativo diz “isto transmite a tensão do teatro” – mas esta massa negra rodeando as três cabeças humanas não será antes um dispositivo para iludir a insignificância do quadro e portanto do pintor?

O escritor fica muito satisfeito consigo próprio quando pensa nestas coisas. Começa a fazer mentalmente uma lista do que é impossível agora: o retrato pintado (como é óbvio), a peça bem-feita (hilariante), o gesto radical (oh, a sério?), empenhamento político (ah! ah! ah!). Quantos mais exemplos de impossibilidades e falhanços ele descobre, mais contente fica. Quanto mais sangue derramado, quanto mais morte (já agora, ele teve sempre razão acerca desta guerra), quanto mais caos, quanto mais terror. Quanto mais má-fé, quanto mais mau sexo, quanto pior a arte. Fantástico! E agora, a coroar tudo, este suposto “retrato” dos encenadores a serem despejados dos seus confortáveis teatros para o canto de um quadrado escuro. Isto só pode confirmar os seus piores receios – que foram sempre o que ele mais desejou na vida.

QUATRO PENSAMENTOS INDESEJADOS

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O teatro de CrimpFERNANDO MORA RAMOS

1. Um verdadeiro Cavalo de Tróia, crítico e cruelNo teatro de Crimp, procuramos a convenção e não a encontramos. Os instrumentos da sua leitura não são os mesmos, nem do teatro mais reconhecido como tal, nem das experiências do teatro de Beckett, do teatro testamentário da visão retrospectiva, a vida olhada do seu termo, nem do combate de Brecht pelo épico, revalorizando o narrativo e a interrupção da acção. Há, no entanto, no teatro de Crimp, influências de Beckett e mesmo a utilização de uma espécie de técnica do estranhamento, que lhe permite usar o narrativo num tipo de teatralidade que é descoberta sua e em que a herança de Brecht aflora. O que nos surpreende é que as categorias tradicionais da história, do desenvolvimento da acção, do desenlace e das personagens sejam completamente ignoradas. Não sabemos muito bem onde agarrar. É ele que faz a ironia acerca das coisas hoje impossíveis, falando exactamente da morte da peça bem-feita, morte aliás que vem de Woyzeck, morte antiga, portanto.

O que, depois, no trabalho de traduzir e pôr em cena, vamos descobrindo (porque à leitura a estranha crueldade deste teatro capturou-nos) é que se trata de uma escrita que deslocou o eixo enérgico para a relação cena-sala, numa espécie de diálogo que sobreleva a relação dos actores com espectadores, a que submete – sem subalternizar – as relações das vozes entre si na cena, vozes que são, por assim dizer, assumidas por números, por porta-vozes, digo eu. Esta operação é radical: Crimp escreve para este regime de tensão e não para o resultado que a tensão da acção dramática projecte na sala. É um escritor de teatro, mais que um dramaturgo, e o palco é um lugar de liberdade total, como aquela que é própria do romance. A narrativa tudo pode, pois as suas materializações dependem apenas da imaginação do autor e do leitor, como aqui do escritor de teatro e do espectador.

Este teatro é muito exigente e, por assim dizer, dirige-se para um território de emancipação. E traz-nos à mente aquilo que diariamente “consumimos” de um modo que é permanentemente banalizado e irrelevante: um massacre numa escola primária (Contra a Parede), a revolta violenta das periferias que se sentem segregadas (Menos Emergências), as histórias nada edificantes da sociabilidade e autenticidade das vidas dos escritores (Quatro Pensamentos Indesejados). O que é enorme, monstruoso, trágico e inaceitável é trazido a cena de uma forma cruel, que ele constrói como uma espécie de indiferença a materializar no jogo dos actores como “estranhamento”. Crimp fala dos espectadores, e de todos nós, de si mesmo, no fundo, retratando a passividade conformista dominante, o contentamento de cada um nos ambientes que concretizam D

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o que apelida de uma “cultura do contentamento”, estreitamente ligada aos rituais de consumo. Quem é que aguenta que se conte a morte violenta e prematura, inexplicável, explicável como um entretém? Mas não será isso que os game-boys educam?

A sua escrita, a mais recente, é musical, as vozes são propriedade de instrumentos, corpos e inteligências, não são sujeitos/personagens, são momentos fragmentários e crispações, rotinas, posições previstas de casta e classe social. O teatro é aqui, portanto, um compromisso entre uma imagem que nunca é sugerida como cenografia, nem explicitada (isso é liberdade de quem faz, embora a indicação “espaço neutro” e “tempo neutro” sejam recorrentes), e uma partitura vocal que estabelece um primado acústico para este teatro. Como era entre os gregos, pouca variação na imagem visiva e liberdade total da palavra, essa sim, capaz de convocar todas as paisagens imagináveis que o verbo dá a “ouver” e todas as situações comportamentais.

O que mais surpreende é que Crimp constrói as suas casas (que são casas estranhas e não acabadas, cujas salas dão de repente para as salas de casas que não são a mesma e que são inacabadas) a partir do preconceito, da ideologia comum, das cabeças moldadas pelo consumo e pelo sistema mediático, daquilo que no fundo parece legitimar, para cada um, o seu reino, a sua segurança, o discurso da autocomplacência e o narcisismo como razão de ser. Neste território onde o indivíduo não olha a liberdade de todos como horizonte, cada um exerce o seu egocêntrico ser na renúncia de um gesto que seja realmente transformador, a transformação é um lugar de frustração, uma blague para cínicos, território para graças, humor negro, verrina.

Sem, por assim dizer, politizar estas questões, Crimp faz teatro político, explicitando com humor cruel o que é consequência de um sistema de impotência aceite. Fala do que somos, essa classe média generalizada, mas mostra também claramente que os verdadeiros terroristas, os donos do mundo são outros. A crítica do projecto europeu centrado nessa noção consumista da tal “qualidade de vida”, horizonte imediato a substituir-se a uma liberdade alargada a todos e a condições planetárias de vida digna para todos, é em Crimp devastadora. O teatro de Crimp é um verdadeiro Cavalo de Tróia crítico e cruel, cómico, no interior das consciências e do sistema burguês parlamentar “representativo” que serve o financismo.

2. Surdez recíproca, incomunicabilidade egocêntrica, tendência homicidaNa convenção teatral burguesa, um diálogo deve ser bem urdido, carpinteirado (que palavra), deve correr atrás da lógica sequencial, da silogística e da argumentação contrapontada, da complementaridade simétrica. Uma coisa segue-se a outra. Portanto: nem pensamento no sentido da sua potencialidade (em bruto, fora de sítio, emergindo), nem desrazão, surdez psicológica, menos ainda incapacidade expressiva, vulgaridade a explorar no que a realidade oferece, matérias-primas de escritas. Nesta tradição, o diálogo bem-feito da peça bem-feita sobrepõe-se às virtualidades do real, mais inventivas que qualquer regra ou bom gosto

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e fruto de condicionamento ideológico (ideias mais comportamentos) nos territórios em que agem os sujeitos reais cujas situações nos interessam reconstruir artisticamente, diagnosticar, tendo exercitado dramaturgicamente a compreensão da sua complexidade sem a intenção de dar lições a quem quer que seja, antes de suscitar interrogações, novos olhares, fazer luz sobre penumbras e escuros de um modo que só o teatro é capaz de fazer, em assembleia e prazer.

Revelar o escondido nos mundos próximos, expor a inumanidade feita rotina, é um objectivo do teatro desde o pós-guerra. Na sociedade do hipercontrolo massivo, a realidade é já outra, o poder omnipresente do consumismo engendra as monstruosidades que o quotidiano deita para fora, como o rio que transborda e expulsa do leito o que no seu devir imparável arrasta e sucumbe à força. O meu reino por umas sapatilhas de marca, diz um adolescente; a minha vida por um corte de cabelo na moda; o meu futuro é um carro; a minha cozinha, um céu; os duzentos canais televisivos, o próprio Olimpo.

Crimp diz que escreve sobre o que as pessoas falam, estrutura as coisas que ouve, observa e desenvolve experiências rítmicas e microestruturas dialogais que são recorrentes. Os diálogos tropeçam no mesmo e vão avançando por movimentos concêntricos, até que se fecha um círculo maior que os contém. Em Definitivamente as Bahamas, o casal volta ao mesmo momento enquistado de uma crispação dialogal; repete um assunto que é disputa competitiva – por exemplo, discutir se o filho esteve nas Bahamas ou nas Canárias (a memória esvai-se) – e avança no tempo parando sobre um vazio que os toma para, no fim da peça, regressar ao princípio: a descoberta nova-rica do valor do silêncio na casa nova (a antiga era sob uma rota de aviões). Um silêncio que para eles pode ter estrelas de qualidade hoteleira, mas que ameaça ser tumular à medida que nada de novo são capazes de dizer um ao outro. Um ao outro? Mas quem são e o que age neles senão um exterior que está muito para além do que nomeiam?

As formas dialogadas de Crimp não significam troca individual, fluxo afectuoso, subjectivação, mas essa crueldade das relações humanas que desvenda subtilmente – nas entrelinhas da mente, no lapso de memória, no erro involuntário, na linguagem – uma espécie de fascismo quotidiano instalado nas relações e exercido por identidades cristalizadas. Não esqueçamos que o sistema é, no fundo e em plena fabricada efervescência do consumo, o mesmo que engendrou o nazi-fascismo.

Não são diálogos o que escreve, mas surdez recíproca, incomunicabilidade egocêntrica, agressão, tendência homicida. Em muitos casais, como na peça, o homicídio “involuntário” de longa duração é prática diária, a crueldade, um estado de alma recorrente.

Crimp diz que as pessoas reais dizem coisas incrivelmente cruéis. Em Definitivamente as Bahamas, existe um pólo sul e um pólo norte que se atraem: Milly e Frank. Atraem-se dos extremos em que estão, de uma distância inultrapassável mas irmanada. A caracterização polar também é de Crimp.

Milly e Frank são um casal nos sessentas, ficcionado por um autor de trinta. Crimp diz que lembram os pais mas não são os pais. Assim é a

ficção, um desvio, um afastamento do que é para lá se regressar, pensando que os espectadores têm um papel a desempenhar; o contrário do consumo, uma leitura, não um entretém, prazer real e não passatempo – o prazer é uma experiência interior, o charadismo entretenedor é um fora em que as pessoas projectam uma sociabilidade que é ritual, fingimento de comunidade, amontoado de pessoas.

E há a jovem Marijka, holandesa em Erasmus, o assunto do casal, do filho Mike e da nora Irene, que laqueou as trompas depois de um aborto pouco claro quanto às razões. Marijka tirou aquela família da sua rotina: o seu inglês é estranho, a racha na saia é um exagero de estilo, a sua informalidade, sem regra, o seu sex appeal parece motivar um estremecimento na família, presa num voyeurismo algo perverso e sem assunto vital, o futuro (um neto) necessitando de estímulo exterior, tal como quem está num coma de passividade conformada e confortável. Para Mike, Marijka é uma excitação, um caso fácil, um motivo de exacerbação do seu sexismo mal vivido. Irene parece longe do desejo, virada para a casa e os azulejos. Mesmo os pais de Mike projectam um suposto par Mike/Marijka, e Irene fotografa-os numa proximidade promissora.

Milly é uma máquina falante e Frank um complemento, a sua resistência passiva encontra nas ausências mentais uma forma de fuga. Quando Milly está incontinente verbal, ele está em nenhures, entorpecido por um vazio que o toma; nela, o vazio é gritante, presença vocal, torrente. Em outras ocasiões, ele tem qualquer coisa de Milly também, uma maldade contra o mundo unifica-os. São pólos opostos, mas o conservadorismo de ambos solda-se em torno de uma moderação defensiva de Frank, machista em território específico (dos “homens” em geral), e de um extremismo militantemente britânico de Milly, capaz de um racismo de apartheid.

O desejo dela é uma piscina, o dele, um fim-de-semana de visita aos bolbos na Holanda. Tanto a piscina como o fim-de-semana são em conta: ela arranja um homem barato para escavar um buraco e o fim-de-semana dele está em promoção. Há aqui uma divergência profunda... De resto, efabulam a sua vida através de terceiros: o filho, a nora, Mike e Joan, a amiga de Milly. São corpos desistentes, enfiados nos sofás. Ir à cozinha é uma épica. O reaccionarismo de ambos é um imobilismo, enterrados nos sofás, falam, falam, ela fala, fala pelos cotovelos, interminavelmente.

Para Milly, tudo o que é exterior, estrangeiro, é bárbaro, só no seu universo e na sua regra doméstica as coisas são elevadas; para Mike, as coisas são também assim: Marijka, a jovem holandesa, sabe certamente afrikaans (qualquer holandês o sabe) e é uma potencial mulher de montra nas Walletjes – na realidade, os que são outros são estereotipados por ele. Frank e Milly são reféns da sua pobreza cultural, parecidos com tudo o que nos vem cercando com a progressão da hegemonia americanizada dos modos de vida. Como em Menos Emergências, extraordinária peça curta, o lá fora é a barbárie, o mundo civilizado são eles fechados nos seus medíocres castelinhos domésticos, a olhar de longe a realidade e a olhar de perto a água parada de uma piscina. Giorgio Agamben define esta

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Afinal ficcionar é viver

Panica-se como se nos fosse cairem cima um andar

Já não se fazem casas a partir dosalicerces e os alicerces são telhados

O actor foge portanto portanto

Portanto a obra que não se alicerçaem nada certo, imperfeita, oestuque a cairOs encenadores num canto assimde castigo cercados de negro numcanto da extensa caixa negra

Desempregados e sem teatros

Uma pintura de lutos comprobabilidade forte num mundo aojeito caótico deles mandantes

Os de iates armados e do veraneioeterno

O autor que foge do maneta queafinal é como ele passageiro e nãopedinte muito menos assaltantesuspira de alívio

Afinal não exibe o coto pela esmola

O que raio tenho na cabeça pensa o autor

O sentido da radicalidade – issoexiste?

Da militância – bem embrulhadaem consumo, curtida, festivaleira,rotina, contraposição mecânica,sobrevivência burra esperta?

E não se trata de Que fazer? Serámesmo fazer e fazer ver enquantose faz

Por fim a morte do jovem autorque leva com ele o génio e que éuma extraordinária manobra deautopromoção

Pelos vistos a estrada está aberta

Só é pena que o branco a meio dojantar volante no copo esteja quente

Enfim: não há poentes

1 Escritos em 2004, Quatro Pensamentos Indesejados (“Quando o actor se põe a andar”, “Senti-me tão estúpido”, “Os encenadores estão encurralados” e “Quando o escritor se mata”) foram publicados como prefácio a Martin Crimp: Plays Two, livro publicado em 2005 pela Faber and Faber. (Nota do editor.)

Textos escritos de acordo com a antiga ortografia.

pequena burguesia planetária como a ausência total de identidade, essa capacidade de vestir constantemente a camisola de um outro qualquer cultural que vá preenchendo o seu fechamento chauvinista e globalizado. Ser americano é ser globalmente senhor do mundo, naquele sentido em que se tem o comando do planeta na mão como quem tem um comando de televisão.

3. Afinal ficcionar é viver

O autor mete o prefácio na obra eDesobra1

Foi-lhe imposto

Contrafaz humoradamente nolugar do prefácio o que umprefaciador encartado faria

Um tijolo fora da construçãoprevisível, não explica o que não seexplica, introduz mas fá-lo como seentrasse na obra por portas deficção a sua tarefa éDesconstruir obreiro artesão deescritas a obra de um modo quevoe

Estou-me nas tintas paraacademismos isso é para eles lá nasuniversidades entretenham-se a esterilizar o que se cria compremesse sal que traz citações enlaçadascomo salsichas alemãs e semeiemcom ele a terra de que seapoderaram – são proprietários decátedras e borlas e capelos e – elogo verão o que sai

São aquela coisa dos cadáveres a procriar

Vai no meio do trânsito a pensarnas peças curtas que escreveu,duas, uma sobre um massacrenuma escola primária – queexplicará esta banalização da mortedo próprio futuro – e outra sobreum veleiro veraneando na orla do

mundo enquanto Bobby é atingidona anca Bobby a criança emsegurança o hiperprotegido

Ao lado carros esventradosacendem a noite com chamas demetal reluzente

O actor recusa dizer o texto einventa uma desculpa para fugir à francesa

O autor meteu na cabeça que aobra é uma merda não tem solidez

As réplicas são impossíveis de dizer

Soletradas parecem ruído informes

O edifício tem agora quatrohistórias e duas peças

O Estranho Corpo da Obra

Os direitos de autor de umaterceira peça que perfazia as trêsanteriores chegaram chumbados

Pior que custarem ouro têm trela

Nas quatro histórias temos: osencenadores estão encurralados quando o actor se põe a andar senti-me tão estúpidoquando o escritor se mata

A mesma vertigem e as mesmasincoerências da estrutura

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“Pode dizer-se que permiti o banal na minha obra”ENTREVISTA A MARTIN CRIMP. POR ALEKS SIERZ.*

aleks sierz Estamos aqui no Orange Tree Theatre, onde começou a sua carreira. Sente isto como um regresso a casa?martin crimp Embora seja verdade que o diretor artístico Sam Walters montou seis das minhas peças durante os anos 1980, há que lembrar que este teatro mudou radicalmente desde então. Quando a minha primeira peça, Living Remains, foi aqui encenada em 1982, o teatro era no sótão de um bar em frente ao sítio onde está agora. Pode ver alguns cartazes nas paredes do rés-do-chão que publicitam essas minhas peças iniciais, mas isso realmente foi há muito tempo. Portanto, esta experiência é mais uma aventura de descoberta de um novo espaço do que um regresso.

Que importância teve Sam Walters e o Orange Tree na sua vida de dramaturgo?Oh, uma enorme importância. Sam montou toda a minha obra na década de 1980 e um compromisso desse género é incrivelmente valioso. Hoje em dia, os escritores que sejam apoiados por um teatro para uma peça, ou talvez duas, podem dar por si rejeitados, sem espaço para desenvolvimentos. O enorme sucesso da nossa cultura, assente na nova escrita, significa que existem inúmeros escritores, que inevitavelmente há um grande número de pessoas a competir por um pequeno número de oportunidades. E, claro, a nossa cultura teatral enfatiza a novidade em prejuízo do compromisso.

Foi encorajado para continuar a escrever?Não exatamente. Nunca ninguém precisou de me encorajar a escrever nessa época. Embora o façam agora. [Risos.] Mas quando estava a começar, Sam foi muito recetivo em relação ao meu trabalho – e acolheu-o. Na altura, provavelmente tomei isso como um dado adquirido. Só em retrospetiva vejo a grande dádiva que foi.

Este espetáculo tem um programa duplo: para além de Play House, uma nova obra, inclui Definitivamente as Bahamas, uma peça curta dos anos 1980. Como é que surgiu este programa duplo?No início, Sam queria uma peça de dimensão normal completamente nova, mas eu disse-lhe que não me sentia capaz de escrever uma peça nova num curto espaço de tempo, porque acho isso cada vez mais difícil. E a peça Definitivamente as Bahamas, que escrevi em 1986, tinha sido recriada há pouco tempo em Paris. Portanto, eu propus-lhe essa

* Excertos de

“Q&A: Playwright

Martin Crimp”.

www.theartsdesk.com

(10 March 2012).

peça e sugeri que talvez pudesse escrever uma nova peça curta para a acompanhar. Foi assim que Play House surgiu.

Definitivamente as Bahamas foi inicialmente escrita como peça radiofónica…É verdade. Ganhou o prémio Radio Times Drama e foi transmitida pela BBC em 1987. Definitivamente as Bahamas demora cerca de uma hora e para mim é um pouco curta – se bem que as peças estejam a ficar mais pequenas. Por isso, decidi escrever outra peça curta para a acompanhar. Primeiro, para tornar a sessão mais longa e depois porque eu gosto dum desafio formal, o que era o caso: como é que crio material novo para emparelhar com material antigo? Ora, Definitivamente as Bahamas é sobre a vida de um casal nos seus cinquenta e tais/sessentas, e foi escrita quando eu tinha apenas trinta anos. Então, o meu conceito foi partir dum ângulo inverso, e da perspetiva dos meus cinquenta e tais escrever sobre um par muito mais novo.

E está a encenar…Sim, não só isto é um teatro totalmente novo para mim como é uma experiência nova, porque estou a dirigir um trabalho meu pela primeira vez. À partida, não me estava a ver como encenador e pensei que talvez pudesse trabalhar com um dos jovens encenadores que conheci através dos workshops que fiz no Royal Court, mas como isso não funcionou decidi propor-me a mim próprio. E o Sam aceitou. Ele deu-me a primeira oportunidade como escritor e agora deu-me a primeira oportunidade como encenador.

Enquanto encenador, como é que vê a encenação de Definitivamente as Bahamas?Decidimos pô-la em cena como uma emissão radiofónica ao vivo. A ideia era que o público estivesse a assistir a uma transmissão direta da peça de 1986 a ter lugar agora, em 2012, no Orange Tree Theatre. Assim, o palco está cheio de equipamento de som – como quando se vai a um concerto que está a ser transmitido. Isto presta homenagem quer ao Orange Tree quer à BBC Radio 3, que foram coautores do começo da minha carreira.

Quando revisitei Definitivamente as Bahamas, foi muito claro para mim que acontece num momento histórico particular. Milly, por exemplo, fala sobre “todas essas reformas” – uma referência à revogação final do famigerado “Immorality Act”1 na África do Sul. Uma das coisas que trouxemos para a sala de ensaios foi um exemplar do Daily Telegraph de agosto de 1986, espantosamente próximo do mundo da peça. Mas, embora a peça tenha lugar nesse ano, não quis recriar aquela era no palco usando figurinos ou música dos anos 1980. Em vez disso, quis que o público imaginasse pela peça, pela linguagem, o mundo de 1986 que as personagens recriam em cena.

Evidentemente, o que é interessante ao olhar uma peça como encenador é dar-me conta de certas passagens a que estou ligado enquanto escritor mas que, como encenador, posso tranquilamente

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cortar. Também reparei que naquela altura tinha carregado demais nas pausas. É mais uma coisa a ser calmamente repensada. [Risos.]

Ao encenar o texto, é para mim bem claro, de uma forma que de facto não o era quando escrevi a peça, que de alguma maneira estava a pensar nos meus pais. Como é óbvio, Frank e Milly não são tal qual os meus pais, mas o seu comportamento alude de certo modo a eles – e talvez ao comportamento de todos os casais de uma certa idade, não acha? [Risos.] Penso que a tarefa com que me tinha comprometido era captar alguma coisa da maneira como as pessoas realmente falam. E esta é a primeira das minhas peças em que senti que tinha feito isso de uma forma inteiramente adequada.

Na nova peça, Play House, temos um jovem casal, Simon e Katrina. Como é que a peça surgiu?Como disse, gosto da ideia de ter um elemento concreto e depois utilizá-lo para fazer uma nova obra. Queria escrever sobre dois jovens e também fazer algo que nunca tinha feito antes, ou seja, escrever umas quantas cenas muito curtas e rápidas. Foi a primeira vez que o fiz e é muito exigente, mas divertido.

Definitivamente as Bahamas tem uma estrutura circular – parte do silêncio e volta ao silêncio – e Play House alude a essa circularidade porque a primeira cena e a cena final são ambas declarações de amor. Mas Play House tem um final mais aberto – talvez mais apropriado para um jovem casal que não possui nenhuma das certezas válidas para a geração de Frank e Milly. O que eu estou – estarei? – a tentar explorar em Play House é a fragilidade e sobretudo a volatilidade de uma relação. E perceber até que ponto, no mundo de hoje, os indivíduos estão preparados para se adaptarem uns aos outros em nome do amor.

Usei a imagem dos ímanes para apresentar as peças aos atores. Em Definitivamente as Bahamas, Milly e Frank são como os polos positivo e negativo – aproximamos os dois e, aconteça o que acontecer, eles ficam colados. Simon e Katrina, o casal de Play House, são mais como dois polos idênticos – quanto mais próximos, mais eles vibram e resistem. Repelem-se no final? Ou mudam de direção e acabam por ligar-se?

Voltemos ao princípio. Quando deixou a Universidade de Cambridge, decidiu obviamente tornar-se escritor. Pode falar um pouco sobre como abordou o Orange Tree?Primeiro, vamos só esclarecer essa ideia do “decidiu tornar-se”. Não envolveu uma decisão porque escrever não era para mim um dado adquirido. Mesmo a palavra “escritor” me parece contestável porque pressupõe uma profissão ou carreira, ou estrutura, ou algo de igualmente mundano, e essa maneira de encarar a escrita como se fosse uma opção de carreira como outra qualquer – investimentos bancários – teria sido um anátema para mim nesse tempo, e numa certa dimensão ainda é. Portanto, não é surpreendente que eu não tivesse a mínima ideia de como abordar os teatros, não tinha noção do que estava a acontecer; eu não sabia o que eram agentes literários. Assim, tomei a iniciativa de enviar manuscritos das minhas peças para diversos teatros. Um deles era o Orange Tree que, por sorte, era perto do sítio onde eu vivia. Então, já que vivia ao pé da porta, fui chamado.

Quais são as suas influências?[Pausa.] Para mim, olhando para trás, é óbvio que fui profundamente influenciado por Beckett. Claro que é uma influência perigosa, mas de certa forma não é propriamente uma má influência. É melhor do que influência nenhuma. [Pausa.] Ao mesmo tempo, penso que já estava presente algo de mais pessoal – ia chamar-lhe sátira. Mas talvez não seja a palavra certa. Jonathan Swift é, com certeza, outro escritor irlandês que sempre admirei e continuo a ler. Na adolescência, era um grande admirador de Ionesco, e devo ter montado algumas das suas estranhas peças na escola: A Lição, O Novo Inquilino e uma peça sobre a personagem Macbeth. Mas era completamente desconhecedor da nova vaga de…

Kitchen-sink?2

Não, Kitchen-sink não. Peças do género das do [Edward] Bond, peças cheias de raiva. Peças políticas. O que eu só descobri muito mais tarde. D

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Ora, eu vinha de um sítio que agora me parece um pouco estranho e isolado. Nessa época, a viver em Yorkshire, li Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, livros que encontrei no York Book and Record Exchange. Nem sempre faziam sentido para mim. Mas deixaram uma marca subliminar. No que diz respeito à dramaturgia britânica, havia definitivamente um desfasamento de uns dez anos entre mim e todos os outros.

Desde o início, em todas as peças iniciais não publicadas, tais como Four Attempted Acts e Variety of Death-Defying Acts, há um interesse pela crueldade e domínio. Até que ponto estava consciente disso?Não penso que estivesse especialmente consciente. A crueldade é instintiva, se quiser. [Risos.] Para mim, o diálogo é intrinsecamente cruel. Há algo de intrinsecamente cruel nas pessoas a falar umas com as outras. E eu não sei o que é. As constantes discussões dos meus pais quando era criança têm possivelmente alguma coisa a ver com isso. Nos anos 1980, quando estávamos a gravar uma das minhas primeiras peças radiofónicas malucas ou, se preferir, autistas, conheci o ator Alec McCowen, e ele disse-me: “Martin, David Mamet é alguém que devias ler, e penso que vais gostar”. Então eu pensei, “OK, vou ler algum Mamet”. Fiz isso, li Glengarry Glen Ross e, claro, foi um grande estímulo. De súbito, descobri este modo de escrever diferente, veloz, que de imediato me arrastou para longe dos antecedentes absurdos – se quiser, para o mundo real. Se eu estivesse a escrever uma tese sobre a minha obra – a propósito, o meu pior pesadelo –, diria que em Dealing with Clair [1988] o velho estilo conflui no novo estilo. E o velho estilo é tipificado por James, que é a personagem ligeiramente barroca, emocionalmente vazia, habitando um mundo abstrato, que encontra as novas personagens que eu tinha acabado de descobrir, os moradores dos subúrbios, cujo diálogo tem um “combustível” completamente diferente. Pode dizer-se que permiti o banal na minha obra. E o banal é extraordinariamente revigorante.

[…] Ficou bloqueado após The Treatment [1993], que foi um êxito no palco principal do Royal Court, porque não queria repetir a mesma fórmula? Estava consciente disso?Sim, bem consciente. Eu não lhe chamaria fórmula. [Pausa.] O facto é que não temos nenhuma herança formal nas artes digna de confiança; portanto, temos sempre de encontrar maneira de começar do nada.

[…] Regressemos a essa ideia de estar bloqueado…Eu disse isso? Às vezes penso que “bloqueado” é uma dessas palavras, como “rascunho”, que dão à escrita um jargão profissional que, de facto, é estranho ao ato de escrever como eu o vejo. Porém, é verdade que parte da aprendizagem de ser escritor passa por assumir que existem hiatos. A não ser que tenhamos a sorte suficiente de ser um génio. Não há regras para a criatividade. Escrever está associado à nossa identidade e não é tanto o não poder escrever que é frustrante, mas sim o sentimento de desaparecer quando não se consegue escrever. É como estar ausente, que é uma coisa sobre a qual eu escrevo – quer dizer, onde está Anne?3

É uma boa ligação. Pode dizer-me qual foi a origem de Attempts on Her Life [1997]?No intervalo entre The Treatment e Attempts on Her Life, cheguei a um ponto de saturação com aquilo a que poderíamos chamar o processo normal de escrita, estava completamente saturado com os diálogos do tipo “ele diz” e “ela diz”. Estava frustrado com o drama psicológico e aborrecido com o chamado teatro experimental. Escrever não é bom senão quando há prazer nisso. E durante um período após The Treatment, tive prazer em escrever pequenas histórias sob a forma de diálogo. Senti mesmo necessidade de escrever desta forma. Foi assim que surgiu Attempts on Her Life. Continuei a escrever peças assim e depois olhei para elas e disse: “Desculpa, Martin, mas isto não é uma peça”. Então, por fim, pensei: “Claro que é”. Eu estava satisfeito com a escrita – sentia-a inteiramente como minha, e funcionou.

Sim, concordo. Mas algumas outras peças o influenciaram na altura?Lembro-me de falar com um crítico alemão em Amesterdão, quando por lá estreou Attempts on Her Life, e ele pôs-me esta questão irritante sobre os autores que me influenciaram. E eu disse: “Bem, eu li muito James Joyce na universidade, mas acho que isso agora não tem nada a ver com o meu trabalho”. E o tipo disse-me: “Ah, sim, eu consigo perceber o que é que isso tem a ver com o seu trabalho: é o facto de ao construir uma peça usar os temas como uma forma de ligar as coisas”, e eu dei-me conta de que ele estava absolutamente certo. Portanto, apesar de eu já não estar interessado nessas experiências formalistas do Joyce, alguma coisa delas se filtrou no meu trabalho. E é muito mais fácil para as outras pessoas ver essas coisas do que para mim.

Mas houve um ponto em que percebeu que forma e conteúdo se tinham unido?Oh, sim. O momento em que Anne ou Anny se torna num carro. É um desses momentos em que estás ali sentado, sorrindo para ti próprio, e percebes que, embora tenhas inventado esta estrutura à primeira vista limitativa, ela é na realidade ilimitada. Abre-se em todas as direções. Se Anny pode ser um carro, ela pode ser tudo. E sou livre! [Risos.] Tim Albery, o encenador da peça, incentivou essa liberdade. Sempre me senti confiante com o que ele estava a fazer e, nas nossas conversas antes de fazer um texto final para os ensaios, encorajou-me a ir tão longe quanto quisesse. Ele foi sempre muito profissional com o que entregava ao público. Foi a primeira estreia de que gostei desde há muito tempo.

A sua versão de O Pequeno e o Grande de Botho Strauss é uma das suas muitas traduções e adaptações. Essas peças ajudaram-no a desenvolver a sua escrita?Não penso que traduzir seja em si muito útil em relação à linguagem. Comparo isso a uma espécie de – se calhar estou sempre a fazê-lo – exercício em que se fletem os músculos que normalmente não se usam; ou pode-se também comparar a ser purgado – é um pouco como ser

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linguisticamente expulso. Não estou certo da sua utilidade. Interagir com um texto – de Sófocles, ou Tchékhov, ou Strauss – é bastante diferente porque é desafiante, porque nos leva para áreas que no nosso trabalho podemos ter considerado tabu. Isto deve-se ao facto, claro, de que adquirimos hábitos quando trabalhamos e, como acontece com todo o género de artistas, uma parte do querer evoluir está no quebrar velhos hábitos, quebrar velhos modelos de trabalho.

1 “Immorality Act” foi uma lei promulgada pelo regime de apartheid da África do Sul que, entre outras coisas, proibia “atos indecentes ou imorais” e relações sexuais entre brancos e gente de outras “raças”, conceito que se sobrepunha à verdadeira etnicidade dos acusados. As condenações, que podiam ir até aos sete anos de prisão, estiveram em vigor desde 1927, só sendo eliminadas em 1985.2 Kitchen-sink (à letra, lava-louça). O termo teve origem numa pintura de John Bratby e corresponde a uma expressão concebida para descrever o movimento cultural britânico que se desenvolveu no final dos anos 1950, início dos anos 1960, no teatro, arte, literatura, cinema e televisão. Para expor uma visão política de temas sociais, recorria a um estilo de realismo social que frequentemente retratava situações domésticas do proletariado urbano, vivendo em casas degradadas, falando calão e gastando as suas horas livres a beber. Este realismo social debruçava-se sobre a banalidade do quotidiano e a feia realidade da vida contemporânea, manifestando simpatias pela classe trabalhadora e pelos pobres.3 Personagem de (A)tentados, tradução portuguesa de Paulo Eduardo Carvalho, que só existe através da referência de terceiros. Ela é uma ausência e a sua identidade flutua, na voz dos outros, pelo modo como cada um a refere.

Tradução e notas José Carlos Faria.

“Um novo teatro da crueldade”PAULO EDUARDO CARVALHO*

O percurso de Martin Crimp é, a diversos níveis, o característico resultado das muitas oportunidades criadas pelo sistema teatral inglês, apostado na criação dramatúrgica original. No seu caso, tudo começou com as oficinas e seminários de escrita e os pequenos espetáculos em um ato, apresentados à hora do almoço, promovidos pelo Orange Tree Theatre, em Richmond; seguiram-se as experiências de “residência” artística, primeiro em Nova Iorque, em 1991 (já no âmbito de um programa de intercâmbio com o Royal Court Theatre para novos dramaturgos), e depois (1997) em Londres, no próprio Royal Court. Este tipo de experiência parece ter como vantagens inegáveis a aproximação do dramaturgo à realidade quotidiana da criação teatral, integrando-o na dinâmica, exigências e preocupações que lhe são próprias, potenciando a natureza (desejavelmente) coletiva do gesto teatral.

Depois de ter concluído os seus estudos em Literatura Inglesa em Cambridge, em 1978, Martin Crimp surge como dramaturgo intimamente associado à atividade do pequeno Orange Tree Theatre, em Richmond, onde, entre 1982 e 1989, estreou as suas primeiras seis peças: Living Remains, Four Attempted Acts, A Variety of Death-Defying Acts, Definitely the Bahamas, Dealing with Clair e Play with Repeats [Peça com Repetições]. Pelo meio, escreve duas peças radiofónicas, com as quais conquista dois prémios. A partir de 1990, o seu destino como dramaturgo surge associado à atividade do Royal Court, onde estreia mais cinco peças: No One Sees the Video, Getting Attention, The Treatment, Attemps on Her Life [(A)tentados] e The Country.

O conjunto de peças publicadas, produzidas entre 1988 e 2000, permite a identificação de uma coerência temática e formal só parcialmente rompida (talvez seja mais correto dizer “expandida”) em 1997 com a estreia de (A)tentados. Até essa data, a carreira de Martin Crimp surge uniformemente caracterizada por uma sistemática, ainda que peculiar, exploração combinada da comédia de maneiras e do teatro de ideias, uma tradição complexa com cultores muito diversos no panorama da dramaturgia britânica do século XX. O ambiente e as personagens são de classe média, a superfície do texto surge povoada por reproduções de tipos e tiques reconhecíveis, a intriga obedece a uma lógica interna, a peça é (requintadamente) “bem-feita”. Outra inscrição pacífica de Crimp na tradição dramática britânica recente resulta da temática das suas peças, nunca muito distante das preocupações do realismo social, simbolicamente consagrado a partir de 1956 com a estreia de Look Back in Anger, de John Osborne.

* Excertos de

“Martin Crimp:

Um Universo

Dramatúrgico

em Expansão”.

In Martin Crimp –

Peça com Repetições;

(A)tentados.

Trad. Paulo Eduardo

Carvalho. Porto:

Campo das Letras,

2000.

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No One Sees the Video (1990) é uma peça fria, dura e ferozmente divertida sobre a nossa era consumista, desenvolvendo uma intriga em torno das pesquisas de mercado, em que a personagem central se vê, forçada pelas circunstâncias, a defender tudo aquilo que mais detesta; na introdução à publicação da peça, o próprio Crimp define-a como “uma peça pós-consumista”, isto é, descrevendo “um mundo no qual a identificação entre consumo e felicidade já não é debatida, tendo-se tornado tão simplesmente axiomática para a vida de todos os dias como a mecânica newtoniana”.1 Getting Attention (1991), por seu lado, “tenta cartografar”, também nas palavras do autor, as “passagens de negação, brutalidade e profunda confusão humana – o labirinto emocional que rodeia as crianças vítimas de maus tratos e de abusos”;2 as suas características estratégicas elípticas servem uma estranha cadeia de acontecimentos, que começam com a mais tranquila exibição de normalidade, evoluindo para o domínio do pesadelo. De pesadelo é a visão dominante na última peça deste ciclo, The Treatment (1993), que encena a história de Anne (homónima da ausente protagonista de (A)tentados), em fuga do marido que a mantinha fechada no seu apartamento, encontrando refúgio em Manhattan, onde dois produtores cinematográficos se oferecem para comprar a sua história, acabando por comprar também o seu corpo e o seu espírito; o universo diretamente retratado é o do funcionamento implacável de Nova Iorque, com uma sátira feroz ao mundo do espetáculo, mas associada a uma exploração da natureza (involuntariamente) fáustica da relação entre artista e objeto.

A breve apresentação deste conjunto de peças de Crimp sugere já aquilo que pode distinguir o universo das suas preocupações temáticas e explorações formais. Existe, contudo, uma reconhecível “influência”, modelo ou paradigma dramatúrgico próximo, isto é, britânico, ao qual a produção de Crimp foi desde cedo comparada. Ainda recentemente, as críticas à estreia de The Country foram unânimes na denúncia das semelhanças com o marcante universo de Harold Pinter. Apesar desta insistência numa relação de recorte epigonal, o próprio Crimp parece assumir descomplexadamente essa afinidade criativa: convidado em 1999, pelo Royal Court, a dirigir uma leitura encenada de uma peça sua favorita, o dramaturgo escolheu precisamente Old Times, de 1971.Não obstante a sensibilidade de Pinter às questões de poder, traduzida num comentário social “obscurecido” pela ilogicidade e pelo reconhecimento do poder manipulativo da linguagem, características das suas peças dos anos 50 e 60, a abertura a temas de natureza política mais imediata é relativamente tardia, impondo-se sobretudo a partir dos anos 80, com peças como One for the Road (1984), Mountain Language (1988) e Party Time (1991), dominadas por preocupações concretas ligadas à guerra nuclear, ao desrespeito pelos direitos humanos e à crueldade governamental. Se este tipo de topicalidade surge como próxima de alguns dos objectos da crítica social presente nas referidas peças de Crimp, as principais razões para a legítima aproximação dos dois universos são, sobretudo, de ordem técnica e formal. Os textos de Crimp mostram-se claramente seduzidos pela extrema sofisticação da

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natureza elíptica dos diálogos “pinterescos”, num equilíbrio tecnicamente muito controlado entre o natural e o estranho, ou oblíquo, sendo notória a dívida formal na utilização musical e dramática das pausas. Na sua primeira peça publicada, Dealing with Clair, Crimp inclui, a abrir o texto, a seguinte nota de abertura: “As indicações já muito estafadas de ‘pausa’, ‘pequena pausa’, etc., surgem substituídas por uma simples vírgula numa linha separada. A duração exata de cada hiato deverá ser determinada pelo contexto”; em Peça com Repetições, o texto seguinte, a nota é simultaneamente mais breve e mais contundente: “É sugerida uma pausa através da colocação de uma vírgula numa linha separada. Esta indicação deve ser tão respeitada como uma pausa numa partitura musical”. Numa evolução peculiar, o texto abre-se assim a uma notação musical, assinalada por pausas, dramaticamente exploráveis como momentos de hesitação, pontos de crise ou espaços a serem preenchidos pelo não-dito. António Durães, encenador português de Peça com Repetições, mostrou--se sensível à importância desta idiossincrática notação crimpiana: “As vírgulas impostas pelo autor são espaços para crescer. São pequenas clareiras abertas no texto, sítios para se encher o peito e crescer para a emoção seguinte, depois de ter sido vagamente anunciada nas deixas anteriores”.3

Neste esforço cartográfico de situar a obra de Martin Crimp no contexto da produção dramatúrgica britânica contemporânea, falta uma referência à variedade e vitalidade de dramaturgos que, ao contrário de Pinter, surgiram nesta última década, também eles revelados sobretudo por esse verdadeiro “viveiro dramatúrgico” que é o Royal Court (sob direção, a partir de 1995, de Stephen Daldry), mas também por outros teatros como o Bush, o Hampstead, o Tricycle, e companhias como a Out of Joint (dirigida por Max Stafford-Clark, que entre 1979 e 1993 foi diretor do Royal Court) e o próprio National Theatre, em Londres, o Birmingham Repertory Theatre, ou o Traverse, em Edimburgo. Muitos destes autores são já conhecidos do público português, mercê da sua presença recorrente nas temporadas do Teatro Aberto ou da curiosidade e iniciativa de outras companhias: é o caso, respetivamente, de Jim Cartwright, Nick Grosso, Kevin Elyot, Patrick Marber, Conor McPherson, e de Martin McDonagh, Mark Ravenhill… Outros nomes ainda menos conhecidos entre nós são os de Jez Butterworth, Joe Penhall, David Eldridge, Peter Whelan, Sarah Kane (revelada entre nós pelos Artistas Unidos), Ayub Khan-Din, Anthony Neilson, Jonathan Harvey, etc. Muito do sucesso internacional destas peças deve-se em parte à centralidade das questões (e das situações sexuais) que tematizam e configuram, frequentemente acompanhadas de uma extrema violência que parece traduzir uma raiva sincera e visceralmente poderosa contra a sociedade herdada do thatcherismo. Num jogo nem sempre claro de atualização de “raivas” já antigas e de renovação da capacidade interpelativa da expressão teatral, as frentes de combate são o materialismo, a decadência social, a falta de idealismo, a ausência de valores morais, o racismo, a xenofobia, a homofobia, numa mistura ainda pouco clara de, na formulação de Michael Billington,

“cólera, consternação e desilusão”.4 Sarah Kane e Mark Ravenhill são talvez os melhores exemplos daquilo a que já alguém chamou uma “estética alucinada”,5 associada a um realismo de situação, que parece apostada em tocar o público na carne através de eletrochoques cénicos, numa concretização possível de um novo teatro da crueldade.6

1 Martin Crimp, Introdução a Getting Attention: Two Plays and a Fiction. Londres: Nick Hern Books, 1991.2 Idem, ibidem.3 António Durães, “Um mundo em declínio: o espelho e o eco em obras”, in Programa de Peça com Repetições. Porto. ASSéDIO, 1999.4 Cf. Michael Billington, “Grande-Bretagne: L’engagement des jeunes dramaturges”, in 1er Forum du Théâtre Européen 1996, Du Théâtre, fora de série, n.º 6, fevereiro de 1997.5 Cf. Nicole Boireau, “Le paysage dramatique en Angleterre: consensus et transgression”, in Alternatives Théâtrales, n.º 61, Écrire le théâtre aujourd’hui. Dossier coordenado por Joseph Danan e Julie Birmant, julho de 1999.6 A violência não é, aliás, propriamente uma novidade no teatro britânico das últimas décadas: basta lembrarmo-nos de Saved de Edward Bond (1965) ou de The Romans in Britain de Howard Brenton (1980).

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FICHA TÉCNICA TNSJcoordenação de produção Maria João Teixeiraassistência de produção Maria do Céu Soares, Mónica Rochadireção de palco Rui Simãodireção de cena Pedro Guimarães, Ana Fernandesluz Filipe Pinheiro (coordenação), Abílio Vinhas, Adão Gonçalves, José Rodrigues, Nuno Gonçalvesmaquinaria Lídio Pontes, Paulo Ferreirasom António Bicaoperação de legendagem Cristina Carvalho

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