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O DELFIM E O PÓS-MODERNISMO Seleste Michels da Rosa – UFRGS 1 Resumo: Esse trabalho se propõe a analisar os aspectos da pós-modernidade no romance “O Delfim” de José Cardoso Pires. O narrador polifônico que dá margem a diversas interpretações, o enredo que conta a história de pequena cidade em decadência como metáfora histórica de Portugal, a intertextualidade através dos pequenos recortes inseridos no texto, a paródia formal com livros de suspense são alguns dos aspectos abordados por esse ensaio. Palavras-chave: Pós-modernismo, Meta-ficção historiográfica, Paródia, Intertextualidade, Desintegração do sujeito pós-moderno, Decadência. Abstract: This study aims to examine the aspects of post-modernity in the novel "The Delfim" of Jose Cardoso Pires. The narrator polyphonic giving to interpretation, the plot which tells the story of small town in decline as historical metaphor of Portugal, the intertextuality through small clippings inserted in the text, with the formal parody of suspense books are some of the points raised by this test. Keywords: Post-modernism, Meta-fiction historiographic, Paródia, Intertextualidade, Disintegration of the subject post-modern, Decay. Publicado e republicado em 1968, O Delfim teve notoriedade imediata apesar da sofisticação de seu enredo. É a história de um escritor que retorna a uma aldeia, onde costumava caçar, e vê um mundo em completo declínio. Sabe que um antigo conhecido seu, Tomás Manuel da Palma Bravo, de origens fidalgas, desaparecera da aldeia desde o dia em que a mulher deste fora encontrada afogada na lagoa das proximidades, e sabe também que a própria Maria das Mercês assassinara, dias antes, o criado do casal, em circunstâncias praticamente desconhecidas. O mistério está posto. Ao final, o mistério não é elucidado – outros surgem. A matéria prima da construção da narrativa são recordações do escritor-narrador acerca de suas visitas ao Engenheiro, impressões e relatos sobre a aldeia e seus habitantes. A verdade, se é que ela existe, permanece nas brumas que envolvem a cidade, por que a própria população nega o fornecimento de substrato à investigação. O silêncio é uma metáfora do que a ditadura impõe e a conseqüência é a manutenção da imagem grandiosa de Portugal. 1 [email protected]

Delfim e o pós-modernismo

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Seleste Michels

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  • O DELFIM E O PS-MODERNISMO

    Seleste Michels da Rosa UFRGS1

    Resumo: Esse trabalho se prope a analisar os aspectos da ps-modernidade no romance O Delfim de Jos Cardoso Pires. O narrador polifnico que d margem a diversas interpretaes, o enredo que conta a histria de pequena cidade em decadncia como metfora histrica de Portugal, a intertextualidade atravs dos pequenos recortes inseridos no texto, a pardia formal com livros de suspense so alguns dos aspectos abordados por esse ensaio.

    Palavras-chave: Ps-modernismo, Meta-fico historiogrfica, Pardia, Intertextualidade, Desintegrao do sujeito ps-moderno, Decadncia.

    Abstract: This study aims to examine the aspects of post-modernity in the novel "The Delfim" of Jose Cardoso Pires. The narrator polyphonic giving to interpretation, the plot which tells the story of small town in decline as historical metaphor of Portugal, the intertextuality through small clippings inserted in the text, with the formal parody of suspense books are some of the points raised by this test.

    Keywords: Post-modernism, Meta-fiction historiographic, Pardia, Intertextualidade, Disintegration of the subject post-modern, Decay.

    Publicado e republicado em 1968, O Delfim teve notoriedade imediata apesar da sofisticao de seu enredo. a histria de um escritor que retorna a uma aldeia, onde costumava caar, e v um mundo em completo declnio. Sabe que um antigo conhecido seu, Toms Manuel da Palma Bravo, de origens fidalgas, desaparecera da aldeia desde o dia em que a mulher deste fora encontrada afogada na lagoa das proximidades, e sabe tambm que a prpria Maria das Mercs assassinara, dias antes, o criado do casal, em circunstncias praticamente desconhecidas. O mistrio est posto.

    Ao final, o mistrio no elucidado outros surgem. A matria prima da construo da narrativa so recordaes do escritor-narrador acerca de suas visitas ao Engenheiro, impresses e relatos sobre a aldeia e seus habitantes. A verdade, se que ela existe, permanece nas brumas que envolvem a cidade, por que a prpria populao nega o fornecimento de substrato investigao. O silncio uma metfora do que a ditadura impe e a conseqncia a manuteno da imagem grandiosa de Portugal.

    1 [email protected]

  • O Delfim o romance de um mundo que terminou, e cujo anacronismo levou desintegrao de tudo, at do discurso do narrador. Esse ndice, a desintegrao, tambm uma caracterstica prpria do ps-modernismo, o momento ps-moderno pobre em unidades, em agrupamentos, sejam ptrios ou classistas essas unidades j esto vencidas, temos o sujeito solitrio, ainda por cima fragmentado, disseminado pelas diversas tendncias que se apresentam a cada segundo. O grande relato est extinto. Segundo Lyotard: Desta decomposio das grandes narrativas [...] decorre o que algumas pessoas analisam como dissoluo do vnculo social e a passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa composta de tomos individuais (1989, p.40)

    Mas o declnio da famlia , sobretudo, a pardia da histria de Portugal. Uma famlia que j foi grande e poderosa e agora no nada. Perdeu sua notoriedade, seu poder acabou por falta de sucessores, assim como Portugal atribui sua decadncia ausncia de D. Sebastio. Na falta de herdeiros, suas propriedades se tornaram da comunidade, especialmente dos operrios; o que pode ser lido tambm como metfora do socialismo, apesar desse livro ser conhecido como finalizador do Neo-realismo.

    Na obra de Pires, tudo remete dissoluo do medieval mundo interiorano portugus, estagnado e perplexo em meio industrializao crescente das grandes metrpoles europias e mundiais, e diante da evidncia de que as conquistas de hoje no se do mais por caravelas que chegam a continentes distantes, mas por foguetes americanos e russos que cruzam o espao e chegam lua.

    Toms Manuel o ltimo representante da linhagem dos Palma Bravo. O casal, o engenheiro e a Maria Mercs, no consegue ter filhos, e, fatalmente, a linhagem de fidalgos se extinguir. O Engenheiro o perdedor que a um s tempo abomina e tira proveito do produto do trabalho das foras que o venceram. Tem um Jaguar, no sculo do automvel, mas notcia da criao de bancos de esperma, reage com o desprezo dos nobres: Vo fazer pouco da raiz da av deles! (PIRES, 1988, p. 110). O rompimento com o mundo arcaico significa para esse narrador, o fim de uma amarra que fez Portugal se atrasar no tempo, que no permitiu a passagem da era medieval em todos seus estgios at o sculo XX. Assim s pode o narrador, no possuir tom melanclico para com essa famlia, justamente porque ele no cr que esse declnio seja negativo, antes pelo contrrio a liberdade que vem atravs disso. a propriedade da lagoa para seus verdadeiros donos.

    O narrador a conscincia que v e relata o apocalipse desse mundo j insignificante. Sob o ponto de vista do lisboeta; a meio caminho entre aquele mundo de medievos e a industrializao das

  • grandes naes europias; o que lhe resta ou assumir um tom de franca melancolia, com atraso que a restou, como j o fizeram muitos narradores, ou criar, atravs de um discurso fragmentado e inslito, um ambiente de resignao silenciosa, cortante, irrespirvel, como o de Pires faz. Nas palavras desse narrador, acenar com os padres dos nossos descobridores como resposta s faanhas de um cosmonauta o argumento dos esquecidos. (PIRES, 1988, p.110). Tornar eterno o que os esquecidos disseram, atravs de uma forma artstica legtima, foi a faanha que Pires alcanou.

    1. Meta-fico historiogrfica

    Escrever um movimento constante de destruio e de recriao. Nada se cria sem destruir e nada se exalta sem agredir.

    Jos Cardoso Pires

    Sabemos que os tempos de ditadura so onde a produo artstica mais cria metforas. Metforas a fim de fugir da censura para dizer o proibido. Sabemos que a ditadura no ambiente do ps-modernismo, mas no h dvidas de que esse texto desempenha os dois papis: uma pardia para burlar a censura e tambm um texto ps - moderno. Principalmente como esse termo entendido com Hutcheon (1991). As pardias censurveis podem ser muitas, mas as mais notveis so a da desintegrao da grandiosidade portuguesa, que falsamente pintada pela ditadura; o silncio causado pela ditadura e pela alienao que ela produz; e sem dvida, o final, que prope uma sada socialista para as faltas do sistema.

    Na primeira visita o autor foi cidade e conheceu o engenheiro: Toms Manuel da Palma Bravo, dono da casa da lagoa, sua esposa Maria das Mercs e seu criado Domingos. Maria Mercs e Domingos agora mortos, e Toms Manual envolvido nesse crime, a morte de sua esposa, desaparecido tudo isso durante essa sua ausncia de um ano. No lanamento de hipteses para elucidar, ou no, o crime, o autor vai construindo raciocnios e mostrando possibilidades, caminhos por onde o texto pode seguir e o crime se desvendar; desta forma se aproximando de um enredo de romance policial e mostrando a caracterstica ps-moderna que enfatiza o processo, segundo Hutcheon, a nfase no processo que est no mago do ps-modernismo (1991, p. 13).

  • Ali, Cardoso Pires analisa os mecanismos de escolha e traos de estilo que marcam a sua narrativa. Ali, ser possvel conhecer instrumentos e artifcios raros, tcnicas difceis, recursos necessrios ao ofcio de narrar, mais especificamente narrar O Delfim obra cuja construo e carpintaria Jos Cardoso Pires, em sua didtica particular, disseca na condio de leitor-crtico. Comenta opes, prope hipteses, analisa os paradigmas dos personagens e marca posies com vigor e sutileza. (Montaury, 2002, s. p.)

    Para colaborar com a ilustrao da tcnica narrativa, podemos selecionar alguns trechos que mostram a construo ps-moderna do texto. O texto conta com um narrador que realmente vai conduzir a histria e com um outro narrador que apresenta o prprio narrador-autor, uma moldura que apresenta um outro narrador, um narrador distante da histria, no diretamente participante dela, nesse momento que o enredo vai comear, aps o narrador-externo situar o narrador-autor e mostrar sua relao com o ambiente em que a trama vai se desenrolar ou se enrolar mais ainda de agora em diante.

    Temos, pois, o Autor instalado numa janela de penso de caadores. Sente vida por baixo e volta dele, sim, pode senti-la, mas, por enquanto, fixa-se unicamente, e com inteno, no tal sopro de nuvens que a lagoa. [...] Depois, se quisesse escrever, passaria apenas o dedo na capa dura encarquilhada do livro que o acompanha e sulcaria o p com essa palavra: Delfim (PIRES, 1988, p.30).

    J surgem um elemento representativo: o sopro de nuvens que a lagoa; a lagoa representa a nobreza portuguesa, bem marcada pelo formato circular das nuvens que coroam a lagoa, como uma coroa monrquica; e portanto sua histria at ento, uma histria mal-contada, recheada de elipses e acontecimentos mal resolvidos, enfim coberta de brumas pelo interesse em manter certos assuntos longe da especulao popular. Assim como vai ser a histria do ltimo Palma Bravo. Assim como foi a histria do ltimo rei dos tempos de glria: D. Sebastio.

    No primeiro captulo, o narrador nos mostra o cenrio onde viu o engenheiro pela primeira vez: o largo. Vale a pena mostrar um pouco da descrio que feita, pois tambm uma pardia muito bem construda e nada tem de direta:

    Visto da janela onde me encontro, um terreiro nu, todo valas e p. Grande demais para a aldeia [...]. Intil, sem sentido, porque raramente algum o procura apesar de estar onde est, beira da estrada e em pleno corao da comunidade. [...] Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem que ser calcado por alguma coisa, ps humanos, trnsito, seja o que for, ao passo que esse aqui, salvo nas

  • horas de missa, percorrido unicamente pelo enorme paredo de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. [...]. A muralha, como uma lpide de uma vasta e destroada campa com vinte sculos de abandono. Ou simplesmente como cabea do largo. E, crucificada nela e na sua legenda de caracteres ibricos, digo, lusitanos, a igreja (PIRES, 1988, p.31).

    Na verdade o largo a representao de toda a aldeia, abandonada, s recebendo turismo na poca de caa, caa na lagoa, atividade ainda ligada a tempos de barbrie. uma revelao do abandono de Portugal. Que j foi rico e desenvolvido, j teve seus dias de glria e agora s um espectro do que passou. Morto como a lpide anuncia, sem sombra de movimento ou da utilidade que possuiu outrora. Apesar de sua posio privilegiada que j serviu de motivo para o desenvolvimento do passado; o largo, a beira da estrada; Portugal, a beira do mar na sada da Europa. Agora tomado pelas modas americanas, encantado com as conquistas do espao e vendo que frente a essas conquistas nem vale a pena mencionar as grandes conquistas portuguesas no sculo XV e XVI. a metfora de Portugal que no v o tempo passar, que permanece estagnado, que no evolui com o tempo, mas vai ficando cada vez mais anacrnico frente aos avanos da cincia e da tecnologia dos outros pases. Portugal que no se move; seja pelas amarras da ditadura, seja pelo saudosismo fomentado por essa nao a fim de manter o estado de coisas. a lagartixa parada no muro, ou seja, Portugal parada no tempo. Os tipos de personagem que se apresentam tambm so smbolos de um tempo que j passou: a hospedeira, o cauteleiro, funes que com o tempo e a modernidade, vo se extinguir, com as grandes redes de hotis e as loterias eletrnicas.

    [...] o caminhante do espao permanece suspenso na primeira pgina de meu jornal. Se lhe descrevessem as fabulosas aventuras dos portugueses que foram antes dele, navegadores do impossvel, talvez no acreditasse. Tambm pouco adiantaria que acreditasse ou no. Acenar com os padres dos nossos descobridores como resposta s faanhas de um cosmonauta um argumento dos olvidados, e j enjoa. Estamos fartos de ouvir nos discursos de academia e nas crnicas oficiais (PIRES, 1988, p.109-110).

    notvel a melancolia, apesar da tentativa do narrador de manter-se crtico, dessas afirmaes, um portugus admitindo que seu povo j teve seus tempos de glria, mas que hoje eles no valem mais nada. primeira caracterstica ps-moderna marcada pelo texto, o retomar a histria de maneira crtica. a meta-fico historiogrfica. Segundo Hutcheon (1991), a mata-fico historiogrfica no o retorno nostlgico, uma reavaliao crtica, um dilogo (p.20).

  • Se nos sculos XV e XVI Portugal pde ser considerado a Europa moderna, fruto dos desenvolvimentos tcnicos elaborados pela Escola de Sagres, nos quatro sculos seguintes os caminhos de Portugal e Europa se separaram, em benefcio da parte mais continental da Europa (que enveredou pela modernidade) e em prejuzo de Portugal. (ORNELLAS, 2004, s. p.)

    2. Intertextualidade

    Nesse texto percebemos a intertextualidade como um fator primordial de sua construo, para Kristeva (apud Machado, s.d.), o texto um aparelho translingustico, como o lugar de encontro de outros textos. Todo o texto, explica ela, absoro de uma multiplicidade de outros textos, construindo-se como um mosaico de citaes. O escritor assimila outros textos e, quando produz, vai refletir essas influncias. A escrita literria no mais do que uma releitura do corpus j existente. Essa concepo muito til para a nossa leitura, pois conforme formos construindo o texto, ser notvel que o autor utilizou esse recurso seja por citao de outros textos reais, seja por intrincamento com outros textos fictcios. O presente livro , na fico, montado a partir de outros trs textos complementados e finalizados posteriormente com esse que temos em mos, aqui aparece a marca de um problema de criao e aparece um dos paradoxos do ps-modernismo. A tradio unida a ruptura, ele quer contar a histria de seu pas, mas j pode faz-lo como foi feito at agora, ento ele rompe no nvel estrutural.

    "Em O Delfim, despisto-me numa sucesso de planos dialticos (MONTAURY, s.d.. s.p)" afirma o prprio autor; assim podemos ver o narrador estilhaado pelo texto, aparente e obscuro, perdido entre os muitos textos trazidos a tona. Por conta dessas muitas vozes que aparecem na superfcie do texto poderamos considerar esse um romance polifnico, segundo a nomenclatura bakhtineana. Todavia muito presente um autor- curador; segundo Andreas Huyssen: Curar significa mobilizar colees, coloc-las em ao nas paredes dos museus particulares, em todo o mundo e, principalmente, na cabea dos espectadores (TABUCCHI, 1992, p. 122 e 123).

    Ento h diversas vozes no texto, mas so explcitas as selees feitas pelo narrador. Assim, o narrador impera sobre as demais falas, descontextualizando-as e recontextualizando-as a seu bel prazer. Seja visto que o romance tende mais a polifonia do que a monologia, sem ser um ou outro. As vozes que aparecem certamente no so criadas para chegar a um consenso, no h dialogia, no h soluo, as vozes se sobrepem e so mutuamente excludentes. Isso mostra como deve ser a nova narrativa

  • portuguesa, rompendo com os cnones e com a tradio histrica, dando um novo olhar sobre essa literatura histrica.

    2. 1. A Monografia

    O primeiro texto imbricado a monografia do Termo da Gafeira de Abade Agostinho Saraiva, que conta a histria da cidade desde o tempo da dominao romana, e assim alcana os primeiros proprietrios da lagoa, os ancestrais de Toms Manuel. A tal monografia nunca existiu, segundo Jos Leon Machado, pelo menos no nas enciclopdias e ficheiros de bibliotecas consultados. Disso conclumos que a inveno dessa monografia serve para explicar e dar veracidade aos antecedentes dessa famlia e dessa aldeia e de parodiar o estilo da escrita e a ideologia protagonizadas em obras da poca.

    Eis a pardia do realismo, smbolo de estagnao, um documento realista trazido a esse contexto mltiplo mostra suas limitaes. Sua parcialidade em relao Histria, sua posio perante a luta de classes, suas omisses. Segundo Hutcheon, o ps-modernismo descobre que os problemas da escrita da histria so semelhantes ao da escrita da fico (1991, p. 144). Aqui est trazida a discusso esttica, uma opo a do prprio texto apresentado, frente a essa narrao originria e os problemas decorrentes dessa forma de narrar, dessa univocidade, afinal uma monografia, ali explicitado, como narrar sem incorrer nos mesmos erros? Eis a primeira pardia, criticando as concepes do abade, como o prprio narrador explicita:

    No deixarei de ter um momento de ternura para as ingenuidades desse zelador de antiquitates lusitanae ( assim que se diz?), instalado na sua prosa cuidada, no seu elzevir oitocentista que volto a saborear com as licenas necessrias e o privilgio real (PIRES, 1988, p.55).

    Esse livro serve como uma espcie de mito de origem daquela aldeia sob o imprio daquela famlia, de l so retiradas as referncias pseudo-histricas que so todo o tempo questionadas e desmascaradas de forma bem prpria ao gosto ps-modernista. O ps-modernismo usa e abusa das convenes do realismo e do modernismo, e o faz com o objetivo de contestar a transparncia dessas convenes (HUTCHEON, 1988, p. 19). No texto de Cardoso Pires esse paradigma do realismo est

  • presentificado na monografia, ele um texto com o narrador dialoga e explicitamente o questiona, seja na sua concepo de mundo, no caso a religiosidade; seja nas verdades apresentadas. Aqui comea a se elucidar o cunho crtico com relao a Portugal, sua religiosidade carola e sua vida de aparncia.

    O mito que o povo quer de um heri perfeito, sem crime nem defeitos, algo idlico. o mito do jardim criado pela ditadura: no h desenvolvimento, mas no isso que deve nos preocupar, somos os descobridores do novo mundo, a porta da Europa, o jardim da Europa, afinal para qu um jardim precisa de tecnologia e desenvolvimento? Basta ser imaculado e de belssima aparncia. Em um determinado momento a dona da penso explicita esses valores do povo salientados pelo autor, afirma que at ento a famlia no tinha nenhum escndalo em seu histrico e se o tivesse certamente o abade no o teria escrito. Isso gera uma questo: ser que verdade sua reputao ilibada? Ser s mais uma criao do autor de origem? Vale conferir no texto:

    Ela: Nunca naquela famlia tinha havido at a data o menor escndalo. No me acredita? Outra vez eu: Acredito. Ou antes, estou a pensar no que escreveria o homenzinho se fosse vivo Ela: O autor do livro? Eu: Sim. Tenho a certeza que se calava, minha hospedeira. Mais que certo (PIRES, 1988, p. 49).

    O povo no quer a verdade. Prefere uma mentira bonita e bem construda verdade crua, embora a veja, faz de conta que no viu e se algum o forar a ver, esse condenado. Essa condenao se d com o cauteleiro, pois ousou macular a imagem do Infante, contou ao narrador a histria da lagoa. Em passagem consecutiva a anterior:

    Eu, lembrando-me do Velho-dum-s Dente: A menos, hospedeira recatada, que o abade tivesse o arrojo, o brilho, a alegria, a justia, e etc. e tal, que teve o cauteleiro quando me contou os crimes, e metesse na histria os ces, as almas penadas e as legendas populares Ela, de mos na cabea: O cauteleiro, Me santssima. Eu: E ento? De agora em diante essas coisas fazem parte da lagoa. Ela: Ora. um ingrato o cauteleiro. Um mafarrico que se alguma vez trincar a lngua morre envenenado... (PIRES, 1988, p. 49-50).

  • Assim o autor pode revelar que o povo gosta de mascarar a realidade e s a aceita dessa forma, apesar do autor da monografia ser um padre, ele no zela pela verdade, ele no condena a moral de seus personagens, so fidalgos, ento simplesmente tem seus erros omitidos. Dessa passagem podemos ler uma grave crtica social a esse mundo feudal que est terminando com o Delfim.

    Vale trazer tambm a definio de delfim. DELFIM: Ttulo dos soberanos no Delfinado e na Auvria, e, depois, do herdeiro presuntivo da coroa da Frana (KOOGAN, 1979). Essa designao vem apontar desde o ttulo que os Palma Bravo esto no fim, no haver sucesso hereditria para o seu patrimnio e sua honra. Haver usurpadores? Haver a modernidade-socializao? No h respostas, no se sabe como sero designados seus novos proprietrios. Qualquer denominao para os operrios-herdeiros estaria embuida de ideologia, seria o fim da multiplicidade; ento permanece inominado. Mas h outro significado: ave prenunciadora de desgraas e catstrofes. A catstrofe que se efetiva no romance. Seria trgico o final? Essa leitura denunciaria um narrador que considera a socializao uma desgraa? Outra vez no h resposta. Se o romance simplesmente se chamasse catstrofe, estaria posta a posio do narrador, mas no o , por isso tudo permanece suspenso.

    2. 2. Caderno de anotaes:

    O segundo texto o caderno de anotaes feito pelo narrador na primeira visita. O caderno guarda suas anotaes da visita anterior, seus dilogos com o engenheiro, seus dilogos com os demais personagens, suas consideraes pessoais e citaes de livros. Isso torna o caderno totalmente fragmentado, e assim ele transferido para o romance, como j foi dito anteriormente no h dialogia o romance se mostra inacabado (obviamente, no sentido tradicional do termo), sem solues, no h dialogia.

    Numa linguagem mais tcnica, poderamos dizer que aquilo que costumamos considerar como as funes narrativas (momentos privilegiados em que qualquer coisa se decide, e em que a deciso tomada faz que nada volte a ser como dantes) est praticamente ausente da criao romanesca de Cardoso Pires, e o que fica so indcios, proliferao de elementos e factores (sic) que se articulam com "sinais de um mundo" que preciso decifrar (COELHO, s.d., s.p).

  • Muitas falas so postas como citao, pelo uso das aspas e tambm pela sua funo dentro do texto. Geralmente so includas em meio s divagaes do narrador como argumento. Um exemplo do intermdio do narrador a discusso entre a dona de penso e o cauteleiro. A dona da penso diz que a monografia fala sobre a histria de oito fidalgos de bom corao, que, segundo ela, seriam os Palma Bravos, mas o autor logo a contesta afirmando que no os encontra descritos dessa forma. Como mostra a seguinte citao:

    [...] eu percorri linha a linha toda a Monografia do Abade Domingos Saraiva [...] garanto com a mo na mesma piedosa obra que jamais encontrei nela o menor trao de qualquer fidalgo de bom corao (PIRES, 1988, p. 46).

    Seguindo esse dilogo vemos que o autor coloca em contraponto as idias da Dona da Penso em relao s do cauteleiro, mas sob sua retomada, indiretamente, sem a presena do prprio. Assim acontece com a maioria das falas do texto, ou elas so relembradas pelo narrador, ou j so citaes do caderno de anotaes, assim o autor evidencia o trabalho do narrador e mostra que essa histria dele, apesar das diversas vozes, um questionamento de credibilidade, da credibilidade do narrador.

    Ainda poderamos questionar o uso das falas de personagens como citaes j que so partes intrnsecas da prpria fico. Acontece que nesse texto elas tm um tratamento totalmente diferenciado. Ou elas so usadas por citao evidente do caderno, ou quando aparecem em forma de discurso direto, tem tratamento formal distinto. Como fala Machado no seguinte trecho selecionado:

    O prprio discurso das personagens funciona tambm como uma espcie de citao. A tcnica dos dois pontos- pargrafo- travesso substituda pelas aspas. Todos os dilogos em discurso direto esto delimitados pelas aspas. No discurso indireto o autor tem o cuidado de distinguir as palavras do narrador das palavras dos personagens atravs do itlico ou do sublinhado (MACHADO, s.d., s. p.).

    Essa tese ainda reafirmada com uma viso um pouco modificada, os personagens so s representantes de suas verses, esse seu papel na fico j que no fazem parte diretamente da histria narrada, servem para o narrador discutir as verses consigo mesmo.

    Os papis das testemunhas tinham sido, no rigoroso sentido literal do termo, decorados e repetidos at saciedade, de modo que nos debates quem comparecia no eram as pessoas reais, mas a representao que elas tinham construdo de si mesmas e das teses por que si batiam (COELHO, s.d, s. p.).

  • 2. 3. Citao de outros autores:

    Como no poderia deixar de ser num romance ps-modernista, as citaes de outros textos reais de vrios autores. Uma das mais presentes a bblia, de maneira direta ou indireta, real ou fictcia. Esse material especfico tratado de forma bem peculiar. Ora em citaes reais, ora em citaes criadas pelo autor, como o caso da passagem do Jardim fechado, que tem como referncia o livro de Salomo, inexistente na bblia. Creio que com esse recurso o autor quer salientar uma criao muito exercida pelo povo que dar referncia textual a uma fala sua a fim de ganhar credibilidade. Como ocorre com aquele ditado No d o peixe, ensine a pescar que muitas vezes includo na bblia sem que esteja l na realidade.

    As demais citaes bblicas so indiretas, uma das mais salientes a criaes do servo pelo seu senhor, numa relao direta com gnesis. Deus, que o senhor, cria o homem, a sua imagem e semelhana; o Engenheiro, senhor, cria Domingos, para o seu servio. O autor com essa equivalncia parece estar salientando a relao desigualdade da nobreza, com ascendncia divina, como se dizia na era medieval, com relao s classes subjugadas. Nessa deteriorao do mundo medieval, portugus, Deus tambm morre. Acaba o mundo portugus arcaico, o Deus em torno do qual tudo girava, no existe mais.

    Tambm h outra citao importante que a de Shakespeare, a comparao com a tragdia de Oflia com a de Maria Mercs, mas outra vez crtico e corrosivo. Afirma que esses montes no so dignos da escrita de Shakespeare. Compara Portugal a outros pases europeus, como a Inglaterra e a Dinamarca, esses hoje desenvolvidos e ainda mantenedores da grandeza dos lordes. Mas Maria real, no pessoa de livros; talvez seja essa concesso feita pelo autor a seu pas, a de ser gente, portanto falha. Apesar dos defeitos real, humana.

    2. 4. Outras citaes:

    Alm de todas essas citaes antes mostradas, temos muito mais, a narrao est a todo o momento trazendo textos para dentro de si. So jornais, revistas, canes, provrbios, cartazes, inscries e publicidade. Segundo Hutcheon no so apenas a literatura e a histria que formam os

  • discursos do ps-modernismo. Tudodesde os quadrinhos e os contos de fada at os almanaques e os jornais fornece intertextos culturalmente importantes para metafico historiogrfica (HUTCHEON, 1991, p. 173).

    Pequenas informaes sobre o tempo e a meteorologia importante para as caadas que so informadas pelo jornal, alm de citaes que so centrais para o texto como a citao trazida de incio no nosso trabalho a respeito das conquistas espaciais parte integrante do jornal que o narrador est lendo.

    Outra interessante referncia a seguinte UM LAVRADOR FESTEJOU O NASCIMENTO

    DE UM FILHO VARO (PIRES, 1988, p. 108); eis uma referncia importante no texto, Toms Manuel no consegue ter filhos, no consegue dar continuidade a sua linha de sucesso, depois dele no haver mais ningum a lagoa no ter dono, o que o nome do romance quer dizer; Delfim era o ttulo dado aos antigos soberanos do Delfinado, e que, com a cesso desse feudo coroa francesa, passou para os herdeiros do Rei da Frana. Assim perdeu sua sucesso, como Toms Manuel perder a sua.

    Mas pelo que aponta o jornal, outros ainda tem uma sucesso e a festejam. Nessa leitura se insere outro contraditrio relacionado citao de Shakespeare. A Inglaterra se desenvolveu porque se livrou de suas estruturas arcaicas, porque industrial e no medieval, mas eles mantm sua sucesso, eles tm trono e um herdeiro para ele. Talvez essa uma leitura possvel para essa notcia. Tambm pode ser uma leitura para o prprio ps-modernismo, manter o passado presentificado, talvez at pelo estranhamento que uma estrutura monrquica cause no mundo atual, mas o passado ali para ser visto, lembrado e relido.

    H tambm as canes que so trazidas ao texto, uma de natal que lembrada pelo engenheiro de origem inglesa, outra francesa que afirma que ele um esnobe. Estas ligadas diferenciao do infante, sua classe. No pelas canes em si, que so populares, mas pela sua importao pelo

    narrador e pelo infante. Os ditados populares so citaes sempre presentes. Segundo Hutcheon, a mistura de formas

    artsticas populares e elevadas caracterstica do ps-modernismo. Sem dvida o ditado mais presente Vinho por medida, rdea curta e porrada na garupa (PIRES, 1988, p. 174), esse dito e repetido por Toms Manuel. E considerado um ditado familiar j que o tio o instituiu dessa forma. Outros menores

  • so pobre quando come galinha, no h luxo nem desgoverno: um dos dois est doente (PIRES, 1988, p. 56); No por muito estar no rio que um pau se faz cobra de gua (PIRES, 1988, p. 161).

    H ainda uma outra informao interessante, as anotaes do av encontradas dentro do tratado das aves que mostram como era tratamento dos empregados nos tempos idos. Quanto a eles, o narrador conclui: no h diferena. Novamente temos uma spera crtica social, os empregados de hoje so como os servos de antes, os servos medievais que deviam total obedincia a seu senhor e ainda o pagamento dos mais absurdos tributos. Podemos relacionar o tributo de mariage, a primeira noite da noiva, com o comportamento do antepassado de Toms Manuel que dormia com todas as mulheres da vila, certamente por influncia de seu poder e ainda as marcava com um leno vermelho para saber com quem j havia se deitado.

    3. Pardias estruturais ... as citaes e referncias[...]

    surgem parodiadas, com uma distoro a cair

    ora no cmico ora no escarninho. Machado

    Para Hutcheon (1991, p. 20), a pardia no a destruio do passado; a sacralizao do passado e seu questionamento ao mesmo tempo, a pardia ressignificada, agora no tem como objetivo a purificao pelo riso e sim o questionamento pelo prprio questionamento. O texto prope diversas pardias, pois estabelece paralelismo com muitos tipos de texto.

    A primeira pardia a j citada monografia da qual o autor escarnece, o realismo e a veracidade. A segunda facilmente identificvel tendo em vista o enredo da narrativa. Estamos a primeira vista esclarecendo um crime. A morte de Maria Mercs e de Domingos. Do ponto-de-vista estrutural do romance, Cardoso Pires tambm confronta as tcnicas do romance policial e do moderno romance psicolgico, sem se deixar levar pela trama matemtica do primeiro e sem mergulhar nas elucidaes exaustivas do segundo (CALLADO, 1971. s. p.).

    O autor parodia Sherlock em seus dilogos com Watson, relembrando suas conversas com o engenheiro, nessa parte do texto fica dbio se o autor est reproduzindo seus dilogos; ou se os est

  • recapitulando j investigativamente, ou seja, buscando respostas para o crime nas falas do prprio engenheiro no momento atual.

    O narrador um investigador, mas no sentido estrito do termo j que no pretende condenar ou absolver ningum, tanto que ele conclui o livro sem decifrar o mistrio, o investigar mais importante que o descobrir, nesse sentido a narrativa toma forma de investigao cientfica, de ganhar conhecimento nos processos, no nos resultados.

    Outra pardia a narrativa de viagem, o narrador est naquele ambiente de passagem, ele no dali, um turista, um caador com os demais; construindo um narrador-personagem que fala em primeira pessoa e que sofre, portanto, por sua insero no mundo narrado, uma limitao de conhecimento e de poder (PEREIRA, 2002, s. p.). Ento tambm podemos dizer que o texto uma pardia das narrativas de viagem. Onde o narrador conta uma aventura em terras distantes. Essa seria uma alegoria muito interessante de ser analisada j que uma inverso do que at o presente momento tem feito. Portugal deslocado de metrpole a periferia. A terra estranha e diversa no mais a frica ou a Amrica, mas Portugal. J no existem mais colnias, os lusitanos tm de contar suas histrias de seus prprios territrios. No h mais para onde fugir, eles esto presos dentro de seu pequeno espao geogrfico.

    Esse romance uma pardia da histria de Portugal, de sua decadncia, de sua perda constante de prestgio e posio social. O largo que a Gafeira e a Gafeira que Portugal esto parados no tempo, vivendo das antigas glrias. Toms Manuel, tambm chamado de Engenheiro, Infante e Delfim, vive na Idade Mdia, como o undcimo de uma srie de fidalgos que se repetem no tempo. Essa Idade Mdia se perpetua atravs de senhores e servos. Relaes postas diferentemente em cada citao, mas querendo dizer s isso: Portugal acabou junto com sua estrutura feudal, religiosa e aristocrtica. No tem mais nenhuma importncia tecnolgica, social ou poltica.

  • Referncias bibliogrficas:

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    COELHO, Eduardo Prado. O crculo dos crculos. www.mandragoasfilmes.pt-odelfim

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