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www.ts.ucr.ac.cr 1 DELINEAMENTO HISTÓRICO DO CONTROLE DAS PRÁTICAS DE PESCA NO RIO CUIABÁ, MATO GROSSO - BRASIL VERONE CRISTINA DA SILVA 1 1. INTRODUÇÃO Este texto é parte de uma Monografia de Especialização, intitulada “Da Legitimidade à Ilegalidade: um delineamento histórico do controle das práticas de pesca no Rio Cuiabá, Mato Grosso - séc. XIX e séc. XX”. Procuro realizar um trajeto a partir d o começo de uma história de controles sobre os ribeirinhos tradicionais do Rio Cuiabá e que viviam em lugares onde se estruturava o espaço urbano. A partir de uma pesquisa em documentos do século XIX, indico pistas sobre as disciplinas que foram sendo implantadas em torno das práticas de pesca, no espaço urbano do Município de Cuiabá, e nelas, controles das técnicas para a captura do peixe, do manejo dos quintais, das áreas alagáveis em torno do ambiente onde viviam os ribeirinhos e os pescadores em função de interesses políticos, econômicos e da estruturação das cidades. Os ribeirinhos tradicionais 2 enfocados neste estudo, ocuparam o Rio Cuiabá em um contexto de miscigenação, colonizadores e povos indígenas como os Bororo (Boku e Manoregê no Cerrado cuiabano), os Coxiponês e os Guaná (que vieram acompanhando as monções pelo rio Paraguai, ocupando a baixada Cuiabana) 3 . Há também indícios históricos e a partir de relatos orais dos próprios ribeirinhos, de que os lugares onde vivem são oriundos de sesmarias, de terras que foram posse de antigos proprietários de usinas e, ainda de terras que também foram utilizadas para engordas de gado. As práticas culturais dos ribeirinhos do Rio Cuiabá devem ser vistas em um conjunto social, articuladas aos usos e manejos dos recursos naturais do lugar, possibilitando, através das experiências com o ambiente, um conhecimento de captura, 1 Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso-Brasil e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas do Pantanal, Amazônia e Cerrado. 2 Essa denominação de ribeirinhos tradicionais, utilizada neste estudo, compreende os atores sociais, enquanto ocupantes antigos da beira do rio Cuiabá com descendentes há mais de dois séculos, possuindo entre si, laços de parentesco e através dos seus costumes, realizam atividades comuns como: manejo de roças, quintais, rio, para fins comerciais e de subsistência. 3 Museu Rondon da Universidade Federal de Mato Grosso, 1994, (Mimeo).

DELINEAMENTO HISTÓRICO DO CONTROLE DAS PRÁTICAS … · partir do começo de uma história de controles sobre os ribeirinhos ... Histórico do Uso da Biodiversidade em Mato Grosso,

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DELINEAMENTO HISTÓRICO DO CONTROLE DAS PRÁTICAS DE PESCA NO

RIO CUIABÁ, MATO GROSSO - BRASIL

VERONE CRISTINA DA SILVA1

1. INTRODUÇÃO

Este texto é parte de uma Monografia de Especialização, intitulada “Da

Legitimidade à Ilegalidade: um delineamento histórico do controle das práticas de

pesca no Rio Cuiabá, Mato Grosso - séc. XIX e séc. XX”. Procuro realizar um trajeto a

partir do começo de uma história de controles sobre os ribeirinhos tradicionais do Rio

Cuiabá e que viviam em lugares onde se estruturava o espaço urbano. A partir de uma

pesquisa em documentos do século XIX, indico pistas sobre as disciplinas que foram

sendo implantadas em torno das práticas de pesca, no espaço urbano do Município de

Cuiabá, e nelas, controles das técnicas para a captura do peixe, do manejo dos quintais,

das áreas alagáveis em torno do ambiente onde viviam os ribeirinhos e os pescadores

em função de interesses políticos, econômicos e da estruturação das cidades.

Os ribeirinhos tradicionais2 enfocados neste estudo, ocuparam o Rio Cuiabá em

um contexto de miscigenação, colonizadores e povos indígenas como os Bororo (Boku e

Manoregê no Cerrado cuiabano), os Coxiponês e os Guaná (que vieram acompanhando

as monções pelo rio Paraguai, ocupando a baixada Cuiabana)3. Há também indícios

históricos e a partir de relatos orais dos próprios ribeirinhos, de que os lugares onde

vivem são oriundos de sesmarias, de terras que foram posse de antigos proprietários de

usinas e, ainda de terras que também foram utilizadas para engordas de gado.

As práticas culturais dos ribeirinhos do Rio Cuiabá devem ser vistas em um

conjunto social, articuladas aos usos e manejos dos recursos naturais do lugar,

possibilitando, através das experiências com o ambiente, um conhecimento de captura,

1 Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso-Brasil e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas do Pantanal, Amazônia e Cerrado. 2 Essa denominação de ribeirinhos tradicionais, utilizada neste estudo, compreende os atores sociais, enquanto ocupantes antigos da beira do rio Cuiabá com descendentes há mais de dois séculos, possuindo entre si, laços de parentesco e através dos seus costumes, realizam atividades comuns como: manejo de roças, quintais, rio, para fins comerciais e de subsistência. 3 Museu Rondon da Universidade Federal de Mato Grosso, 1994, (Mimeo).

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coleta, utilização e transformação de tais recursos, em conseqüência das suas

necessidades sociais e culturais.

Entende-se aqui por práticas culturais as ações que cotidianamente são realizadas

e modificadas. Segundo Certeau (1994:47), práticas culturais é:

(...) uma combinação mais ou menos coerente, mais ou menos fluida de

elementos cotidianos concretos (menu-gastronômico) ou ideológico

(religiosos, políticos) ao mesmo tempo passados por uma tradição (de uma

família, de um grupo social) e realizados dia a dia através dos

comportamentos que traduzem em uma visibilidade social, fragmentos

desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciação traduz na

palavra fragmentos de discursos, e, prática é aquilo que é decisivo para a

identidade de um usuário ou de um grupo, na medida em que essa

identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede de relações sociais

inscritas no ambiente”.

A interação do ribeirinho com o ambiente possibilita uma prática provavelmente

menos agressiva e uma relação de reciprocidade, que pressupõe uma comunicação

simbólica com o meio ambiente4, constituindo um modo de vida, a princípio particular, em

relação aos outros moradores dos municípios em estudo.

O uso e o manejo dos recursos naturais pelos ribeirinhos tradicionais estão

fundamentados em um saber particular, acumulado pelas práticas realizadas

cotidianamente e pelas necessidades que se estabeleceram ao longo do tempo,

construindo formas similares de ocupação dos espaços e delimitando, ao que tudo

indica, o seu território.

A paisagem que ora visitamos, neste trabalho, traz a composição de um terreno

vivido e modificado por homens e mulheres que aprenderam e construíram suas

experiências ao longo do tempo e à beira de um rio, aqui identificado por ribeirinhos

tradicionais do Cuiabá.

4 Veja em CASTRO. Eduardo Viveiros. Cultura Indígena e Modernidade Ocidental. In A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus, org. Aracy lopes da Silva e Luís Donisete Benzi Grupioni, Brasília, MEC/MARI/UNECO, 1995.

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Compreender esta paisagem é adentrar em um ambiente que estabelece uma teia

de relações sociais e culturais, organizado por ribeirinhos tradicionais, a partir da sua

lógica, tornando este ambiente habitável e autorizando a produção de um espaço.

O espaço aqui é compreendido, segundo Certeau (1996:202)

como lugar praticado, efeito produzido pelas operações que orientam,

circunstanciam, temporalizam e que levam a funcionar em unidade de

polivalência de programas conflituais.

O espaço, portanto, para Certeau não se reduz ao ambiente geográfico natural,

mas a um conjunto de práticas e experiências realizadas num determinado lugar.

Os ribeirinhos tradicionais realizam um conjunto de ações e movimentos

cotidianos no rio Cuiabá e em seu entorno, acompanhando o ciclo hidrológico, numa

relação social e cultural. Nesse percurso, constroem fragmentos de histórias,

aprendizados individuais e coletivos, com itinerários selecionados a partir de códigos

particulares de comportamento, bem como de reações às diversas teias de poderes

circunstanciais que lhes possibilitam mudanças ou delimitações de outros espaços.

O Rio Cuiabá muito mais do que um fornecedor de recursos naturais para a

sustentabilidade econômica de diversas grupos, bem como para o consumo da água

pelos habitantes dos Municípios do entorno, é um lugar praticado culturalmente por

ribeirinhos tradicionais, onde o imaginário destes usuários depende materialmente da

relação com o rio, através das operações que nele realizam.

À beira deste rio, experiências coletivas são vividas, e seus usuários mais diretos

estabeleceram meios de fazer e praticar o ambiente de uma maneira particular. Para

Benjamin (1993), não há experiência individual sem experiência coletiva, que geralmente

vem carregada de mitos, mediando os homens com o mundo, dando força para a

valorização do seu lugar . Nesta mesma relação de convivência e experiências coletivas

se constrói a memória. Bosi (1994:55-114), a partir das análises de Habwachs indica

que a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, classe social,

escola, igreja, profissão, grupos de convívio e grupos de referência peculiares a este

indivíduo. O grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele. Viver num lugar,

onde as lembranças são comuns e nos ligam ao grupo, é viver uma teia de relações de

confiabilidade e identidade cultural. É praticar cotidianamente o ambiente como um

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espaço de histórias fragmentadas é compreender que a menor alteração do ambiente

atinge a qualidade íntima da memória. Por essa via, a memória da pessoa é amarrada à

memória do grupo.

Nesse ambiente de possíveis organizações do espaço cultural, com operações

cotidianas entrelaçam também as atividades econômicas e é sobre elas que o meu olhar

se aproximará. Farei um breve percurso histórico que possibilitará adentrar os

movimentos do começo de uma trama política que celebrou um processo de construção

de constantes controles sobre os usuários mais diretos do Cuiabá, definindo, inclusive,

disciplinas para as práticas de pesca e as maneiras de utilização dos recursos naturais e

das paisagens ribeirinhas.

O século XIX é o século que prevalece como o das construções de novos homens

civilizados e saudáveis para a produção. No contexto da revolução industrial iniciada aos

finais do séc. XVIII, verifica-se timidamente alguns registros sobre a exploração dos

recursos naturais voltada à comercialização5. A revolução industrial consolida o

desenvolvimento econômico e a idéia de progresso e civilização, alterando também toda

uma concepção de natureza. Esta passava a ser encarada sob a ótica do lucro e da

expansão capitalista, assumindo importância pelo valor econômico, de acordo com as

necessidades da indústria e do mercado (Castro & Galetti, 1994: 8)

Nesse mesmo período, a região do médio Cuiabá estava com suas atividades

econômicas voltadas para as usinas açucareiras, através das lavouras canavieiras

surgidas às margens do Rio Cuiabá. Estas abasteciam o mercado local com açúcar e

aguardente e coexistiam com outras atividades realizadas principalmente pelos

ribeirinhos, como engenho, roças, pesca e criação de animais.

Dentre todas essas atividades a pesca se constituía em principal base econômica

da “gente pobre”, moradora nas margens dos rios e nas povoações a elas próximas. A

pesca era feita de diferentes maneiras, mergulhando cestos e peneiras no rio, com redes

“feitas de fios de algodão e cordas de tucum”, com anzol, armadilhas (chiqueiros) nas

quais eram colocadas as iscas. (Castro & Galetti, 1994: 8)

Os ribeirinhos se relacionavam direta ou indiretamente com os espaços onde

estruturava a “cidade” através das relações comerciais, venda dos produtos, das regras e

5 CATRO, M. Inês M. e GALETTII, Lylia S. Guedes. Histórico do Uso da Biodiversidade em Mato Grosso, in Diagnóstico Florestal do Estado de Mato Grosso. CASTRO, Carlos (Org.). Brasília. IBAMA. ITTO-FUNATURA, 1994, p. 8.

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normatizações legais que interferiam nas diferentes atividades econômicas. Mesmo

aqueles que se encontravam nos lugares mais distantes e menos acessíveis, a lei e as

normas adentravam como instrumentos civilizadores. A cidade se construía como o lugar

dos saberes e das verdades, regras e comportamentos a serem seguidos, códigos

sociais e culturais .

O moderno conceito de cidade desqualifica o valor das experiências e substitui as

resistências teimosas das tradições, procurando nivelar de todos os lados e em todos os

aspectos um sujeito anônimo sem identidade, que é a própria cidade na produção de um

espaço próprio, da estabilidade e da ordem.6

Sem dúvida, as intervenções no meio ambiente e mais especificamente no Rio

Cuiabá e sobre as populações ribeirinhas que ocupavam os espaços onde se

estruturavam as cidades de Cuiabá e Várzea Grande, estiveram articuladas ao processo

de formação dos seus espaços urbanos. Autores modernos trazem as visões e

concepções que discutem teoricamente a cidade, e uma delas é esta enquanto questão

técnica, criadora das regras de civilidade no meio ambiente. Nesta abordagem se

estabelece uma civilidade para a população pobre.7

A civilidade para o pobre, considerado pelo pensamento culto, um ser semi-

racional, implicou a noção de disciplina, algo que do exterior constrange as pessoas a um

comportamento previsível e formador de uma segunda natureza do homem sem o recurso

à inteligibilidade dos pressupostos ou à consciência de sua importância. Dessa maneira,

a cidade se utilizou de instrumentos que possibilitassem o pobre seguir regras formais

consideradas apropriadas para se viver em seus espaços.

Regras que possibilitariam a marginalização e desvalorização dos saberes e

práticas para a manutenção de uma ordem política econômica e civilizatória.

Há diversos tipos de controle que se diversificam desde o séc. XIX, através de

decretos, códigos de posturas, portarias municipais voltados a normatizar e disciplinar as

maneiras de utilização do rio.

Pode-se perceber claramente que a intervenção da Lei, no cotidiano dos

ribeirinhos tradicionais, buscava desorganizar os seus saberes, mecanismo próprio do

capitalismo, introduzindo um outro saber sob a linguagem técnica, forçando os ribeirinhos

6 CERTEAU, Michel. Op. cit., p 173. 7 BRESCIANI, Maria Stella. A difícil definição de um objeto in Permanência e Ruptura no Estudo das Cidades, p. 14.

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tradicionais à assimilação obrigatória de outros comportamentos e lógicas,

acompanhados por penas como multas e/ou reclusão presidiária, garantindo assim os

interesses políticos e econômicos mantenedores de uma ordem racional e urbanística.

1. O Uso do “Timbó” (Veneno Vegetal)

A atividade pesca influenciou muitos ribeirinhos na redefinição da sua própria

atividade econômica, estando presente como atividade de subsistência ou comercial e

ainda sendo atividade integrante nas festividades religiosas. O pescador, usuário

tradicional e personagem central deste trabalho, foi entre outros o que mais esteve

cercado pela legislação e pelo controle disciplinador neste espaço.

Assim que a abundância do recurso pesca oportunizou os colonizadores destas

terras para fonte de riquezas; ela passou a ser vista como uma atividade que era mal

aproveitada economicamente pelos habitantes do local, através do uso dos instrumentos

tradicionais e que impediam a entrada do progresso, trazendo o atraso e a estagnação.

A essa idéia articulou-se a ociosidade: obter, sem trabalhar, alimentos e artigos

úteis para a vida cotidiana. Isto era encarado como óbice à inserção dos indivíduos no

mundo do trabalho e das mercadorias, onde, na verdade, a abundância dos peixes, a

existência de um grande número de frutas e de pequenas roças permitiam a

sobrevivência de parte dos moradores locais, sem que estes se vissem forçados a

participar da economia formal e a trabalhar como assalariados ou mesmo prestadores de

serviços.8

Sob estes interesses, buscou-se limitar as práticas culturais dos ribeirinhos que

articuladas aos usos e manejos dos recursos naturais do lugar, possibilitaram através das

experiências com o ambiente, um conhecimento de captura, coleta, utilização e

transformação de tais recursos, em conseqüência das suas necessidades sociais e

culturais.

Por volta de 1831, fazia-se presente o código de proibição para a pesca com o

timbó:

Porque o peixe com o timbó he nocivo a saude, ficando além disso

infestada a agoa por muito tempo, fica prohibido todo o uzo de pesca com

timbó, ou com qualquer vegetal venenozo quer seja praticado em agoas

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correntes, e o que abusar desta prohibição pagará para as obras do conselho

40$000 res ou trinta dias de cadeia.9

Presente nas posturas de saúde pública, o código buscava em seu discurso

justificar os motivos da proibição da pesca com técnicas tradicionais, adquiridas através

dos saberes na prática do rio e das experiências repassadas pela teia da memória do

grupo familiar e da própria comunidade. Esse saber foi desvalorizado em função de um

outro. O código carregava nas entrelinhas, um saber revestido de poder, o saber que

impõe a não utilização de vegetais que poderão ocasionar danos físicos àqueles que

consumirem o pescado. Esse saber vem revestido com uma linguagem técnica, porém

sem comprovações concretas do discurso. O peso da linguagem técnica basta para

impor um poder de obediência. Esse saber vem da cidade, que sacraliza as verdades.

A uso do veneno vegetal (timbó), proibido no documento, é uma prática que

segundo Severi & Pereira10, é empregada por diversas sociedades indígenas da

América do Sul, uma prática muito antiga que varia de país para país, sendo que

algumas são nativas e outras já cultivadas pelo homem. Algumas espécies atuam como

veneno enquanto um grande número provoca a perda de equilíbrio, dormência ou

sufocação nos peixes, sem que sua carne sofra qualquer prejuízo como alimento.

Tudo indica que a prática de pesca com venenos vegetais era comum no rio

Cuiabá e muito realizada pelos pescadores, a tal ponto que incomodou o poder

dominante local que criou um código para controlá-la. Provavelmente os ribeirinhos

conheciam as espécies dos venenos vegetais utilizadas a partir da influência dos saberes

indígenas que ocupavam essas localidades.

O discurso que cerca este documento é o da preocupação com a saúde pública.

Ela está presente enquanto foco de interesse das intervenções técnicas na cidade, que

participa de um movimento do conhecimento que partiu da circunscrição da doença e da

observação dos corpos doentes para a modificação do meio físico onde a doença

aparece.

8 CASTRO, Maria Inês M. e GALETTI, Lylia S. Guedes. Op cit., p.19 e 21. 9 Posturas Policiais de Cuiaba; APM/ Lata. Ano: 1831. Posturas Policiais da Câmara Municipal da Cidade de Cuiabá. Saúde Pública. Titulo 1º, § 9º. 10 SEVERI, Willian & PEREIRA, Marleth Miltes. A Pesca com Venenos Vegetais na Sociedade Indígena Enawene-Nawe e seu Impacto sobre a Comunidade de Peixes. In Relatório do Projeto de Pesquisa BRA0006/94 PNUD Subsistência e Alternativas Econômicas na Sociedade Indígena Enawene-Nawe.

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A questão urbana, por essa mesma razão, nasce junto com a questão sanitária –

preocupações simultâneas com o meio ambiente formador do corpo físico e da moral do

pobre, que poderia contaminar a população rica e reverter as expectativas dos benefícios

do trabalho.11

Os médicos e engenheiros que planejavam e desenhavam a cidade, tratavam a

população marginalizada e pobre como possíveis focos de doença, que precisava ser

tratada, e seu comportamento modificado.

Neste mesmo contexto, em alguns países como França e Inglaterra, eram

realizadas pesquisas que buscavam diagnosticar as causas das epidemias, como por

exemplo o cólera de 1830. Esses estudos, segundo Bresciani (1997)12, foram um

argumento decisivo para relacionar os mais atingidos pela doença (o pobre) como

causadores da epidemia. Era preciso estabelecer normas técnicas para o meio

ambiente, a fim de evitar contaminações e doenças como fixar lugares, regulamentar

práticas nocivas, assegurar captação de águas usadas, destruir águas estagnadas e

córregos poluídos, destruir o costume de amontoar homens e animais. Mato Grosso não

estava muito longe destes pensamentos, pois nos mais longínquos lugares do mundo o

conceito e a estruturação da cidade moderna se constituíam.

2. O Manejo dos Quintais e Terrenos Pantanosos

A casa, os quintais e seu entorno, inclusive os trajetos percorridos pelos

ribeirinhos, eram foco de observações e controles, principalmente se os movimentos

eram realizados nos espaços das cidades. Fazia-se necessário, portanto, a intervenção

das Leis.

A maneira como estavam organizados os espaços e o ambiente onde vivia o

ribeirinho, deveria ser modificada.

A lei provincial de 1861 regulamenta os espaços, propondo ações sobre o meio

ambiente :

Aquele que tiver algum terreno pantanoso onde se estagnem agoas, sera

obrigado a aterral-o dentro do prazo que ordenar o fiscal em consequência

do exame do pantano que o mesmo fiscal deverá fazer com dous pentos

OPAN/GERA-UFMT. Cuiabá, agosto de 1995, p. 35. 11 BRESCIANI, Maria Stella M.Op. cit , p.14.

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endo-se desse exame lavrado auto circunstanciado, findo o prazo, não

estando concluido o aterro, será condenado na multa de 10 a 20#000 reis e

se lhe prorrogará mais o tempo que o fiscal julgar necessária para conclui-lo

finda a qual prorrogação, se julgará ter reincidido na contravenção e pagará

de multa 30#000 reis e então manda-lo-há acabar de aterrar a custa do

possuidor. 13

Estudos recentes que se voltaram a pesquisar ambientes e vidas dos ribeirinhos

nos espaços das cidades, descrevem as diferentes paisagens onde se constroem o seu

cotidiano. Os ambientes habitados pelo ribeirinhos são áreas alagáveis14. Estas

áreas são periodicamente inundadas pelo sobrefluxo dos rios e lagos, ou pela

precipitação direta ou subterrânea, com adaptações características para este sistema.

São altamente produtivas com disponibilidade de recursos alimentares para várias

espécies de peixes, sendo que nesses locais, devido a uma abundância cíclica de

alimento, há um acúmulo de reservas de gorduras para investir em processos

reprodutivos e migratórios que se realizam no rio durante a estiagem, quando os recursos

alimentares para os peixes herbívoros escasseiam.

É sabidamente comprovado que as chamadas várzeas funcionam como “criadoras

naturais” de peixes após a piracema. Esse ambiente é, portanto, uma unidade de

recurso15 importante para a sobrevivência econômica do ribeirinho, um vez que entre

outras questões, está intimamente ligada à manutenção do estoque pesqueiro.

O aterramento dos espaços, a que se propõe o Código, implicava uma

reorganização do espaço, desalojando o ribeirinho e principalmente o pescador de seu

ambiente. Este projeto reproduzia a lógica de uma cidade técnica que não reconhecia a

diversidade de usuários do rio Cuiabá, muito menos a diversificação das paisagens. Os

12 BRESCIANI, Maria Stella M. Op cit., p.15 e 16. 13 IMPL. Leis Provinciais (original) Ano: 1861. Documento Avulso. Registrado à F. 165 v. do livro 4 de Leis. Secretaria do Governo de Mato Grosso, em Cuiabá 2 de julho de 1861. Título 1. Saúde Pública. Art. 3. 14 Estratégias de Sobrevivência de Comunidades Tradicionais no Pantanal Mato-grossense. Coord: SILVA, Carolina Joana da. Projeto do PPCAUB, financiado pelo IDRC-Internacional Development Research Center- Canadá Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pesquisa e Conservação de Áreas Úmidas no Brasil. Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo. Cuiabá, março de 1992. 15 COSTA Jr. Revisão da Proposta Preliminar de Estudos de Levantamento Ambiental. Brasília, setembro de 1997, p. 27. Se levarmos em consideração a variação dos ciclos ecológicos e os limites e possibilidades reconhecidos pelo grupo, pode existir nas unidade de paisagens, locais que em determinadas épocas, há maior maior disponibilidade e concentração de recursos, e que podem ser definidos como unidades de recursos. Assim, determinadas fruteiras podem ser utilizadas como unidades de recursos na caça, pesca,

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aterros consistiam em edificar os espaços alagados com construções, estradas, bem

como limpar o ambiente para urbanizá-lo.

No ano de 1893 outro código de posturas sobre terrenos pantanosos é mais

explícito em suas determinações:

Os possuidores de terrenos pantanosos dentro da capital e outras

povoações da cidade, são obrigados a atterral-os de modo que tornem

seccos e com o necessário declive para não conservar paradas aguas da

chuva, podendo para mais perfeito secamento fazer plantações própria. 16

Aqui o documento menciona o aterramento dos terrenos da capital e outras

povoações da cidade. Adentra mais especificamente nos espaços de interesse dos

dirigentes que os controlavam. Ele estabelece demarcações explícitas de espaço . Pode-

se supor que as práticas e as exigências da lei não estavam sendo cumpridas pelos

ribeirinhos, daí a iniciativa de uma regulamentação mais precisa sob o mesmo conteúdo,

porém mais expressiva quanto aos interesses de organização das cidades.

O terreno pantanoso que para o ribeirinho é conjunto de unidades de recurso, para

os técnicos e administradores da cidade não passava de um espaço de aglomeração de

bichos, mosquitos e de possíveis focos de doenças e contaminação; sendo assim,

precisava ser aterrado, para tornar-se um lugar limpo, de fácil acesso de utilidade pública.

O discurso do público está presente em todos os regulamentos, tomando para si o

controle e as responsabilidades da esfera individual e privada. Os quintais, espaço de

convergência de diversas práticas econômicas e festivas, onde se encontram unidades

de recursos e experiências, são importantes ambientes para a compreensão do espaço

do ribeirinho. Este espaço deixava de ser particular para se tornar público, sendo

administrado através de Decretos normativos.

O Decreto de 1832 já trazia essas normatizações:

Que todas as pessoas que tiverem lagos, chacos e tanques em seus

quintais, os tampem no perfixo tempo de dois mezes, e quando os não

entre outros. 16 Código de Posturas da Câmara Municipal de Cuyaba 1893. Resolução n 3. Livro de Resoluções da Câmara Municipal de Cuiabá. Ano 1893 a 1905. Título V. Art. 75. Pag. 30 a 63 IMPL. Cuyaba 14/09/1893.Registrada no livro competente da Secretaria da Câamara Municipal de Cuyaba em 26/09/1893.

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façam sejam multados em quatro mil reis, dois para o denunciante, e o mais

aplicados para as mesmas obras públicas e que só passarão ter seus poços

para serventia de casa, poderem que serem que sejam guarnecidos de

pedra canga, e na falta da multa refenda dez dias de cadêa sem onuz de

carceragem.17

A vigilância sobre as práticas e os ambientes já se fazia presente nesse período

através de fiscalizações. Os ribeirinhos já utilizavam de tanques nos quintais para

armazenamento dos peixes e também de poços com finalidade de armazenamento da

água para o consumo, ou atividades domésticas.

Chamou-me muito a atenção este documento, na medida em que atualmente nos

quintais de alguns pescadores, ribeirinhos tradicionais, é possível encontrar tanques

utilizados para armazenamento e comercialização de peixes.

Comumente esses tanques têm assegurado o estoque dos peixes para serem

comercializados no período da Semana Santa. Esta data corresponde também ao

período da proibição da pesca no Estado de Mato Grosso (Piracema) ou logo após o seu

término.

São tanques considerados ilegais pelo poder público, e oficialmente devem

passar por uma licença institucional, e serem acompanhados por uma fiscalização

regular das instituições públicas responsáveis; obriga-se ainda o proprietário efetuar

pagamento de tributos para a sua implantação. Essas exigências foram implantadas por

volta da década de 70, pela SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca)

que estimulou a implantação de tanques de piscicultura com finalidade comercial.

É claro que a finalidade dos tanques construídos pelos ribeirinhos tradicionais em

seus quintais, para o depósito e estoque pesqueiro, sofreram mudanças em relação ao

século anterior; porém é importante perceber que esses tanques não tiveram início nesta

década e por outro lado, os controles sobre essas práticas ainda permanecem.

Em cada casa tem um tanque onde são armazenados os peixes. Este

tanque é feito da seguinte forma: cava-se com um trator ou outra maneira,

bate-se com barro. A água não é minada mas o tanque enche com a chuva.

Transcrição: Dulcinéia Martins. 17 Códigos de Posturas de 1832 da cidade de Mato Grosso. Documento Avulso IMPL. Secretário: Francisco

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Ele serve para armazenar o peixe na época da semana santa, já que é um

período em que é proibida a pesca, assim há peixe para ser comercializado.

Os peixes nesses tanques se alimentam de goiaba, manga, milho, mandioca

e no período da seca não seca tudo.18.

O quintal para os pescadores é um espaço de convergência de diversas atividade

sociais realizadas e vividas na comunidade e na relação com as cidades. É a porta de

entrada para se entender a relação do ribeirinho com o meio ambiente , não só enquanto

unidade de recursos como também espaços onde se insinuam as “ilegalidades”, as

práticas que efetivamente se constituem como proibidas.

O Estado tem aberto possibilidades, através de alguns de seus programas

ambientais,19 para que os ribeirinhos tradicionais realizem projetos de sustentabilidade

econômica, incluindo, entre eles, a construção de tanques de piscicultura legalizados. Os

tanques tradicionais dos ribeirinhos, ao invés de, aos olhos do Estado, serem mais uma

possibilidade de atividade econômica principalmente no período da piracema,

contraditoriamente ainda são proibidos.

3. Os Percursos dos Ribeirinhos na Cidade

Assim como, o manejo dos quintais dos ribeirinhos recebeu um forte policiamento,

o movimento de homens e mulheres ribeirinhas pelos espaços urbanos que se

estruturavam também. Em 1897,o código de postura municipal, já se referia aos

ribeirinhos que se movimentavam pelas ruas com fins comerciais:

Proibido vender pelas ruas peixe, carne e outros gêneros próprios de mercado.

Multa 10$000.20.

Os pescadores levavam para as cidades os peixes para serem comercializados.

Geralmente caminhavam pelas ruas com carrinhos de mão, buscando a atenção através

Severino de Castillo. Tradução: Yumiko Takamoto Suzuki. 18 Pesquisa de campo, entrevista realizada com ribeirinho em 25/01/94.In Relatório de Pesquisa Exploratória do projeto “Implicações Sócioambientais do Desenvolvimento Urbano sobre as Populações Ribeirinhas dos Municípios de Cuiabá e Várzea Gande”. GERA/ICHS/UFMT.Cuiabá, 1994. 19 Refiro-me ao PADIC- Programa de Desenvolvimento às iniciativas Comunitárias, em que diversos projetos vêm incorporando a idéia da criação de tanques de piscicultura como sustentabilidade econômica para o período da piracema. 20 Códigos de Posturas da Câmara Municipal de Cuiabá. Resolução nº 29 de 11 de setembro de 1897. Editado em 1909, p. 23. Título VII- Matadouro, Açougues e Venda de Gêneros Alimentícios. Art. 110.

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de cânticos e chamadas aos consumidores. Perambular pelas ruas era símbolo do

homem visto como um inútil, sujeito a não suportar o trabalho disciplinado21. O trabalho

que se exigia era o organizado, onde se têm horas reguladas para acordar e produzir,

incorporando o tempo a ser gasto em função do trabalho assalariado. Era preciso que se

criassem espaços próprios para atuar com a venda dos produtos e esse lugar era o

mercado.

Todos os gêneros que entrarem para o consumo na cidade e povoações

serão conduzidos ao mercado ou lugares designados, onde serão expostos

a venda por espaço de vinte e quatro horas e só depois serão vendidas por

atacado. Os infratores serão punidos com a multa de vinte mil réis cada um

ou oito dias de prisão22.

Homens pobres que perambulavam pelas ruas serviam de motivo para se

estabelecer regras específicas para esta atividade. O trabalho livre não era visto como

trabalho. A mão-de-obra valorizada era a que se vendia e subordinava-se a um patrão, a

um dirigente, só assim o trabalho era visto como produtivo.

Nesse período, as usinas mato-grossenses tinham uma importância grande como

catalisadora de mão-de-obra disponível na região. Elas surgiram no momento da

abolição da escravatura e propunham “aos ociosos” uma ocupação: produzir cana para

fornecer às usinas, pescar para consumo dos trabalhadores das usinas que trabalhavam

em regime de semi-escravidão, altamente dominados pela vigilância policial. As usinas

constituíram-se em importantes meios para a conquista do mercado interno e de fronteira

viabilizando o projeto de construção de uma elite regional que dominou Mato Grosso

durante as três primeiras décadas do século XX.23

Como se percebe, a legislação foi um dos instrumentos estrategicamente criado

para a organização de um espaço ordenado, limpo, civilizado para o trabalho,

possibilitando aos administradores locais adentrar nos espaços que se encontravam fora

do seu controle. Muito mais que impedir a instauração de uma prática, a legislação inibe

as existentes e disciplina outras.

21 ALEIXO, Lúcia Helena Gaeta. Subordinação, Resistência e Trabalho em Mato Grosso (1888- 1930), p. 179. 22 Posturas Municipais de Cuiabá. Decreto Nº 577. Data: 30/11/1880. Capítulo 12º - Do Mercado Público- Art. 47º . 23 ALEIXO, Lúcia Helena Gaeta. Subordinação, Resistência e Trabalho em Mato Grosso (1888- 1930), p.168- 179.

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O pescador que utilizava os recursos naturais e utilizava o rio Cuiabá, aprendeu

também a desenvolver práticas de pesca com instrumentos voltados não só à

subsistência mas também para a comercialização.

O contexto sócio-político da época estava voltado para o estímulo da exploração

dos recursos naturais onde o peixe era um produto que poderia ser rentável

financeiramente. A pesca com rede de arrastão possibilitava a captura de um número

maior de peixes viabilizando o abastecimento regional para as usinas e ainda prestava-

se à iluminação pública das cidades, através do uso de azeite de peixe.

Ainda no séc. XIX, parte do produto das pescarias era utilizado para a fabricação

de azeite, consumido na alimentação e como fonte de iluminação. O azeite de peixe, junto

com o de mamona, figurava na relação dos produtos comercializados nos mercados

públicos de Cuiabá e constituía um importante recurso econômico da população

ribeirinha. Somente em 1874, o querosene substituiu o azeite de peixe e/ou mamona na

iluminação pública . 24

4. O Uso da Malha: A Rede de Arrastão

O uso da rede de arrastão25 na primeira metade do século XIX, tinha a

participação de um número de 12 homens cuja relação de trabalho entre o dono da rede

e os outros pescadores era de assalariamento, e cada pescador realizava uma atividade

específica. O comprimento da rede variava de 80 a 120 braças, e o número de redes

existentes no rio Cuiabá era mínimo; primeiro, porque os donos das redes eram pessoas

com poder econômico elevado para investir nessa prática. Segundo, porque havia

poucos locais apropriados no rio onde eram lançadas as redes.

O documento de 1831 da Câmara Municipal de Cuiabá, retrata um contexto de

disciplinas criadas sobre a pesca com a rede de arrastão:

Tendo mostrado a experiência que as grandes redes que travessão os rios

tem feito a falta daquela abundancia que nesta cidade tinha de peixe, e que

já mais o peixe pode subir para fertilizar os povos do rio acima e que sendo

pescado em cada lance hum muito grande número de peixe que metendo-se

24 CASTRO, Maria Inês M. e GALETTI, Lylia S. Guedes. Op. cit.,p. 14. 25 Para maiores informações sobre a técnica da rede de arrastão e seu funcionamento, veja COSTA Jr.

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em serca denominada chiqueiro levão seis e mais dias a vendê-lo ao povo,

sendo que quando se chega a ultimar a venda se acha amassado e corrupto

alterando por isso a saúde pública he portanto que a camara prohibe redes

grandes que atravessam os rios, e só convém que se pesquem com redes

pequenas cujas terão trinta braças e que os chiqueiros terão 20 palmos em

quadra, e que todos que baterem agora no rio para correr com o peixe, serão

multados por cada ves em trinta mil reis ou 20 dias de cadeia e todas as

redes mais da marca serão multados em dose mil reis o dose dias de cadeia

tornando os fiscais e juizes de Paz de tudo Conhecimento para seguir a

marcha da Ley26.

O tamanho e a medida da rede, instrumento de pesca, passavam a ser

delimitados; só as redes pequenas de 30 braças (que corresponde a 66 m.)27 poderiam

ser utilizadas, as de maior medida estavam a partir desta lei proibidas, assim também os

chiqueiros que deveriam passar a 20 palmos em quadra (que corresponde a 440 cm.).

A marcha da LEI direcionava a estruturação dos espaços das cidades. Adentrava

no cotidiano e desarticulava saberes e práticas através de um policiamento altamente

disciplinador. A prática de pesca com rede de arrastão dava uma imagem de usurpação

da propriedade pública, e o que é público deve ser fiscalizado, controlado, para dar

visibilidade aos administradores locais. A abundância do peixe que estava sendo

explorado no rio Cuiabá, era foco de interesse dos administradores, pois a

comercialização era praticada sem arrecadação fiscal, sem retorno propriamente

econômico, daí a imposição de se estabelecer limites através das medidas para as

redes, e medidas para os espaços de armazenamento do pescado como os

chiqueiros28.

Em 1854, promulga-se uma lei para o controle da pesca na capital,

regulamentando cobrança de impostos sobre cada rede que fosse lançada ao rio.

Dito de 10#000 reis sobre cada uma rede de pescar que for lançada no rio

1993, p. 92 a 95. 26 Posturas Policiais da Camara Municipal de Cuyaba. Título 14. Parágrafo 48. APM/Lata. Ano 1831. 27 Segundo o dicionário Aurélio, cada braça corresponde a 2,20m. e cada palmo corresponde a 22cm. 28 Os chiqueiros são técnicas de armazenamento dos peixes, fabricados com pedras que são alicerçadas dentro do rio, próximo às margens numa altura que não possibilita a fuga do peixe.

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Cuiabá do porto da chácara de João de Louza Ozório para cima e da chácara

do tenente Antônio Joaquim Ferreira Ramos para baixo.

Dito de 30#000 reis por cada vez sobre as que forem lançadas no mesmo rio

no espaço compreendido entre os portos das duas chácaras mensionadas

no parágrafo antecedente. Do 1º de outubro em diante será o imposto de

100#000 reis e cobrado indistintamente de todos os proprietários de redes,

por cada uma vez que as lançarem29.

O perigo de um “ilegalismo popular”, de possíveis manifestações contrárias às

condutas legalmente estabelecidas, identificam as penalidades que assinalam nos

documentos como as maneiras de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância. A

Lei postula uma gestão diferencial, ou seja, abre possibilidades para alguns, faz pressão

sobre outros, exclui uma parte, torna útil outras.30

Em 1801, a fuga de um pescador, declarada na carta do então oficial Monsenhor

Pedro Antônio para o Senhor Tenente Coronel Ricardo Franco, ressalta a participação de

um personagem que operava com a atividade de pesca, presente na história dos

conflitos. Sem descrever as razões que poderiam ter levado ao aprisionamento desse

pescador, este documento aponta indícios que reforçam a presença deste personagem

no contexto das fortalezas, das fugas e das prisões.

Carta de 12 de Fevereiro me avisou por oficial ter havido fuga de dois

indivíduos dessa Fortaleza, um mulato cativo e um pescador, pelo que faço

presente as assinaturas que a esta parte testemunha. O sargento encarregou

aos índios para que em caso de alguma notícia deles procurassem mantê-

los e despachá-los com os oficiais 31.

Fixados não só nos códigos de saúde pública, mas também nos códigos policiais,

os códigos de proibição da pesca vêm carregados de um conjunto de roupagens da

29 Da receita Sancionada e Promulgados no ano de 1854 - Lei nº 8 Cap. 02. Coleção de leis provinciais de Mato Grosso- Capítulo 2º . Augusto Leverger, capitão do Mar e Guerra da Armada Nacional e Imperial Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro Official da Rosa e presidente da província de Mato Grosso. Documentação do Instituto Memória do Poder Legislativo de Mato Grosso. Transcrições de Leis e Decretos e Resoluções 1870-1888. Org. profª Elisabeth Madureira Siqueira. 30 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 240. 31 Lata 1801 A. Ap . Carta do Monsenhor Pedro Antônio do Forte de Bourbon ao Senhor Tenente Coronel

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autoridade e de um poder que pretendia inibir possíveis ações com possibilidades de

usurpar os recursos que poderiam ser fonte de lucro para a região.

A criação de um policiamento e vigilância na pesca passava a se fortalecer no

imaginário do pescador influenciando o seu comportamento para posturas corretas,

caráter civilizado e nas maneiras de pescar, definindo espaços, instrumentos, e uma

maneira de ver o meio ambiente.

A dimensão do rio como parte do espaço público passa a se instalar cada vez

mais no mundo das cidades, normatizado por outras instituições como a escola pública, a

praça pública, as ruas, os hospitais entre outros. Tudo o que é público é relegado ao

poder do Estado para administrar e controlar.

A pena de reclusão aparece em vários documentos do séc. XIX, voltada ao

controle da pesca no rio Cuiabá. Ele surge segundo Foucault no século XIX, tendo em

vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral

das atitudes e do comportamento dos indivíduos 32.

O controle dos indivíduos e de suas periculosidades passa a ser exercido também

por outros poderes, como a polícia, e por uma rede de instituições de vigilância e de

correção: a polícia, para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, médicas,

pedagógicas, para a correção.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A caminho de um começo dos controles, procurei fazer uma leitura, através de

documentos do século XIX e de fontes orais de pescadores, sobre as intervenções nas

práticas de pesca no rio Cuiabá. Estes controles trouxeram a evidência de uma

preocupação com o ordenamento urbano, na busca da implantação de um modelo de

cidade.

Em favor dos homens ricos e donos de grandes propriedades, os códigos de

posturas foram utilizados, administrando a segurança dos bens e dos recursos que

poderiam gerar riquezas futuras. Estes códigos adentraram nas esferas mais íntimas e

Dr.Ricardo Fanco de Almeida Serra. Tradução: Dijanir Américo Brasiliense. 32 FOUCAULT Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. PUC/ Rio. Departamento de Letras. NAU. Rio de Janeiro, 1996, pag. 86 e 87.

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particulares dos ribeirinhos, procurando moldar e alterar suas práticas.

Para este fim, foram utilizados instrumentos formais, a lei e outros poderes: a

polícia, a prisão, o mercado, as multas, enfim a penalidade cerceou os movimentos e

operações dos ribeirinhos tradicionais nos espaços da cidade, buscando submeter e

fragilizar o pescador ao novo ordenamento espacial, absorvendo o seu conhecimento em

razão de um saber técnico e racional.

6. FONTES PRIMÁRIAS

A) LEIS, DECRETOS, CÓDIGOS, PORTARIAS.

1. Lata 1801 A. Ap . Carta do Monsenhor Pedro Antônio do Forte de Bourbon ao

Senhor Tenente Coronel Dr.Ricardo Fanco de Almeida Serra. Tradução: Dijanir Américo

Brasiliense.

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Fonte Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso. Livro de registro das Atas das

sessões de1919 a 1920. 1ª parte. P. 137

2. Posturas Policiais da Camara Municipal de Cuyaba. Título 14. Parágrafo 48.

APM/Lata. Ano 1831.

3. Códigos de Posturas de 1832 da cidade de Mato Grosso. Documento Avulso

IMPL. Secretário: Francisco Severino de Castillo. Tradução: Yumiko Takamoto Suzuki.

4. Posturas Policiais de Cuiaba; APM/ Lata. Ano: 1831. Posturas Policiais da

Câmara Municipal da Cidade de Cuiabá. Saúde Pública. Titulo 1º, § 9º.

5. Da receita Sancionada e Promulgados no ano de 1854 - Lei nº 8 Cap. 02.

Coleção de leis provinciais de Mato Grosso- Capítulo 2º . Augusto Leverger, capitão do

Mar e Guerra da Armada Nacional e Imperial Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro

Official da Rosa e presidente da província de Mato Grosso. Documentação do Instituto

Memória do Poder Legislativo de Mato Grosso. Transcrições de Leis e Decretos e

Resoluções 1870-1888. Org. profª Elisabeth Madureira Siqueira.

6. IMPL. Leis Provinciais (original) Ano: 1861. Documento Avulso. Registrado à F.

165 v. do livro 4 de Leis. Secretaria do Governo de Mato Grosso, em Cuiabá 2 de julho de

1861. Título 1. Saúde Pública. Art. 3.

7. Posturas Municipais de Cuiabá. Decreto Nº 577. Data: 30/11/1880. Capítulo 12º

- Do Mercado Público- Art. 47º .

8. Código de Posturas da Câmara Municipal de Cuyaba 1893. Resolução n 3.

Livro de Resoluções da Câmara Municipal de Cuiabá. Ano 1893 a 1905. Título V. Art. 75.

Pag. 30 a 63

9. IMPL. Cuyaba 14/09/1893.Registrada no livro competente da Secretaria da

Câmara Municipal de Cuyaba em 26/09/1893. Transcrição: Dulcinéia Martins.

10. Códigos de Posturas da Câmara Municipal de Cuiabá. Resolução nº 29 de 11

de setembro de 1897. Editado em 1909, p. 23. Título VII- Matadouro, Açougues e Venda

de Gêneros Alimentícios. Art. 110.

11. Lei orçamentária nº 896 de 16/07/1923. Cf Indicador das Leis e Decretos...S/d

(Cf. Silva e Silva) citadas por CASTRO, Maria Inês M. e GALETTI, Lylia S. Guedes, p.61-

62.

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12. Decreto Lei nº 221- de 28 de fevereiro de 1967- Dispõe sobre a proteção e

estímulos à pesca e dá outras providências, p. 210 e 211, in COSTA, Maria Diana e

RAMOS, Ondon Costa Braga.

13. Portaria nº 662 de 17 de novembro de 1970. SUDEPE. Ministério da

Agricultura.

14. Decreto 1984 de 05/08 de 1982.

15. Lei de Pesca nº 6672 de 22-10-95. FEMA-MT.

16. Instituto Estadual de Florestas. Proposta que dispõe sobre a criação do

Código Estadual de defesa e proteção à fauna ictiológica e Capítulo I, Título I, Art. 5º.

17. Lei 9433/97 da Política Nacional de Recursos Hídricos.

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