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DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E - ligrare.com.br · heróis da busca pelo Cinturão de Deltora, precisam encontrar uma arma poderosa o bastante para combater a magia do Senhor

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DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E

MAGIA...

A perversa tirania do Senhor das Sombras sobre Deltora

terminou. Ele e as criaturas nascidas de sua feitiçaria foram expulsos

para o outro lado das montanhas. Mas milhares de deltoranos ainda

são mantidos escravos nas Terras das Sombras, o domínio assustador e

misterioso do inimigo. A fim de resgatá-los, Lief, Barda e Jasmine,

heróis da busca pelo Cinturão de Deltora, precisam encontrar uma

arma poderosa o bastante para combater a magia do Senhor das

Sombras em seu próprio território. Segundo a lenda, a única coisa

temida pelo Senhor das Sombras é a célebre Flauta de Pirra. Mas a

misteriosa flauta ainda existe? E, se existir, que perigos os

companheiros terão de enfrentar para encontrá-la?

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O LAMPIÃO BRUXULEANTE FORMOU UMA ILHA DE LUZ NA ESCURIDÃO. A

MÃO ENRUGADA MOVEU-SE LENTAMENTE PELA PÁGINA.

Lá fora, a cidade de Del estava mergulhada no silêncio, envolta em sono.

Mesmo aqueles que haviam permanecido acordados por longo tempo, sofrendo

pela perda de entes queridos, acabaram finalmente caindo num sono intranqüilo.

O lampião do escritor estava bem escondido. As únicas luzes visíveis em Del

brilhavam no palácio, no alto da colina. Luzes para confortar os guardas parados,

vigilantes, diante das escadarias. Luzes que guiavam duas sombras que deslizavam

pelo palácio e se esgueiravam para o interior de suas portas mais secretas.

Em breve amanheceria, mas o escritor prosseguia em seu trabalho. Ele

perdera totalmente a noção do tempo. Ficara só por tanto tempo que, para ele,

dia e noite quase haviam perdido o significado.

Ele comia apenas quando tinha fome e dormia quando a exaustão o

dominava. E nos longos períodos entre uma e outra ele escrevia, a mão

experiente raramente vacilava, o seu mundo resumido à sua secreta ilha de luz...

A tirania do Senhor das Sombras sobre nosso reino teve fim graças à magia e ao poder

do Cinturão de Deltora. Estamos livres, mais uma vez, e o nosso rei é o mesmo jovem herói

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que, com seus dois bravos companheiros, recolocou as pedras roubadas no Cinturão e o trouxe

para casa, em Del.

Pode-se bem imaginar a felicidade do povo. A minha própria alegria não é menor.

Contudo, após tudo o que vi durante os dezesseis anos de domínio do Senhor das Sombras e

muito antes disso, continuo atento.

O Inimigo foi derrotado, mas não destruído. Ele e as criaturas nascidas de sua

feitiçaria foram expulsos e retornaram para além das montanhas das Terras das Sombras, mas

temo que ele também tenha servos humanos que ainda estão entre nós.

Assim, devo permanecer oculto até ter certeza de que o tesouro que protegi por tanto

tempo possa ser levado em segurança ao palácio. Tento esperar pacientemente e continuar a

trabalhar como sempre, mas confesso que é difícil.

Como tenho estado só, pude fazer somente visitas rápidas ao mercado para saber das

novidades. Sinto falta do sol e estou me cansando desse longo e solitário período de espera.

Mas o tesouro deve ser protegido. Isso é o mais importante. Ainda haverá tempo

suficiente para o sol e as novidades quando o tesouro estiver nas mãos do rei Lief.

Receio ter-me desviado do assunto. Isso tem acontecido com freqüência cada vez maior,

ultimamente, e não pode continuar. Os meus sentimentos não importam. Preciso me dedicar ao

meu objetivo principal, que é descrever um panorama de Deltora neste momento de agitação.

O Senhor das Sombras foi banido, mas outra batalha teve início — a batalha contra

a fome, a miséria e a devastação que deixou atrás de si. De todos os males que enfrentamos, o

mais terrível é a crescente constatação de quantos dos nossos foram levados para as Terras das

Sombras na condição de escravos.

As fazendas do nordeste e do oeste foram esvaziadas. Os melhores lutadores de Mere e

das Planícies foram levados. Com apenas uma exceção, o mesmo ocorreu com todos os membros

da tribo das Jalis que não foram massacradas durante a invasão. Milhares foram levados da

própria Del.

A terra pode ser curada e os rios purificados. As plantações podem ser novamente

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semeadas. Casas e locais de trabalho podem ser reparados. O trabalho já começou em toda a

Deltora. Mas os prisioneiros nas Terras das Sombras estão fora de nosso alcance, e as suas

famílias e amigos não podem ser consolados.

O mercado fervilha de rumores. Há um clamor crescente de que haverá uma tentativa

de resgate. Ultimamente, ele tem se tornado tão forte que, com certeza, está sendo estimulado por

espiões do Senhor das Sombras. Conviria muito ao inimigo se Lief liderasse um exército através

da fronteira. Que melhor forma de pôr as mãos nele?

Até o momento, estou satisfeito em dizer que Lief se recusou a considerar uma invasão

às Terras das Sombras. Assim como eu, ele deve estar ciente de que sem uma arma poderosa

para combater a magia do Senhor das Sombras, tal tentativa vai ser uma inútil perda de vidas.

No entanto, o coração dele se confrange quando o povo lhe pede ajuda aos prantos e ele

tem de lançar por terra a esperança de seus súditos.

Se ao menos ele soubesse que posso ajudá-lo... Se ao menos soubesse de minha

existência...

Dizem que ele começou a se afastar das multidões e que está deixando as tarefas

cotidianas do reino para a mãe, Sharn. Passa muito tempo sozinho — trancado, dizem, na

biblioteca do palácio. Evita até mesmo os leais companheiros de busca — Barda, chefe da

guarda do palácio, e Jasmine, a garota rebelde das Florestas do Silêncio. O único com quem ele

passa algum tempo é o líder da Resistência — o carrancudo homem que todos ainda chamam

de Perdição.

Talvez ele esteja procurando alguma pista de como salvar os prisioneiros. Ou talvez se

refugie na biblioteca por ser um local seguro e por ter percebido que se encontra em constante

perigo.

Lembre, caro leitor: o Cinturão de Deltora foi criado por Adin, o primeiro rei de

Deltora, muito tempo atrás. Adin uniu as sete tribos de Deltora para enfrentar o Senhor das

Sombras, convencendo cada uma a acrescentar seu talismã, uma pedra preciosa de grande poder,

ao Cinturão.

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E, desde então, os herdeiros de sangue de Adin têm sido os únicos para quem o

Cinturão revela o seu brilho.

Lief é herdeiro de Adin. Ele mesmo, pouco mais do que um garoto, ainda não tem um

filho que possa usar o Cinturão em seu lugar, caso algum acidente ou traição o atinja.

Tampouco tem irmãos ou irmãs, e sua morte deixaria Deltora à mercê do inimigo.

Tenho certeza de que neste exato momento o Senhor das Sombras está planejando

como dominar o nosso reino mais uma vez. Os escravos nas Terras das Sombras são a isca para

uma de suas armadilhas. Mas ele nunca conta com apenas um ardil. Uma manobra simples

pode ter sucesso onde outra mais elaborada falha — e o que poderia ser mais simples ou rápido

do que o golpe de uma adaga?

Não devo pensar nisso. Devo manter o otimismo, como espero que o rei Lief esteja

fazendo. É essencial que ele não seja levado a agir tolamente devido à frustração. Muita coisa

depende de sua segurança.

Agora estou cansado e preciso dormir. A luz do lampião está vacilando e os meus

velhos olhos também. Talvez eu acorde e constate que a longa espera terminou.

Rezo para que seja assim, para o bem de todos nós. Preciso mostrar ao rei o que tenho

antes que seja tarde demais.

Preciso contar-lhe, finalmente, da existência da Flauta de Pirra.

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ASSIM QUE ENTROU EM SEUS APOSENTOS, LIEF PRESSENTIU O PERIGO

QUE O ESPREITAVA. ELE OLHOU PARA O CINTURÃO DE DELTORA. A LUZ DA VELA

QUE TINHA NAS MÃOS CINTILOU NAS PEDRAS INCRUSTADAS NOS MEDALHÕES DE

AÇO.

O vermelho vivo do grande rubi e o verde cintilante da esmeralda

estavam desbotados. O Cinturão o advertia de um perigo.

Lief sentiu um aperto no peito. Empunhou a espada e seus olhos

cansados perscrutaram as sombras.

Ele nada viu. O quarto parecia exatamente como quando o deixara pela

manhã. As janelas com barras não trazia cortinas e tampouco havia cortinado

sobre a cama. Tudo o que poderia ocultar um inimigo havia sido removido

semanas atrás.

No entanto, o perigo estava lá, ele podia senti-lo.

Ele se moveu com cautela, os ouvidos atentos ao menor som. A Lua,

mergulhando no céu à medida que a manhã se aproximava, lançava a sua luz no

quarto. As sombras das barras da janela se projetavam escuras sobre a cama.

Lief pousou a vela sobre a mesa de cabeceira. Estendeu a mão e, com um

movimento rápido, arrancou a coberta da cama. O travesseiro e os lençóis

brancos brilharam sob a luz do luar.

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— Apareça! — ele murmurou.

Nenhum movimento. Olhou ao redor do aposento mais uma vez, os

pensamentos acelerados. De que servia um rei que era prisioneiro dos próprios

medos? Que não conseguia fazer o que o seu povo mais desejava que fizesse?

O rapaz sentiu-se congelar quando um leve som sibilante, uma nota

apenas, penetrante e doce, encheu-lhe a mente. O som durou apenas um

momento e se calou.

Lief balançou a cabeça como que para desanuviá-la. Ele já ouvira o som

antes. Uma vez na biblioteca e outra em seus aposentos, uma ou duas semanas

antes.

Não mencionou o fato a ninguém, pois a mãe e os amigos já estavam

bastante preocupados com ele. Se ouvia sons, era porque precisava de descanso.

E ele não podia descansar. Não até...

Mas ele não poderia se esconder das pessoas por muito mais tempo. Os

apelos para resgatar os escravos das Terras das Sombras tornavam-se mais

insistentes. Em breve, o povo começaria a achar que o seu rei não se importava

nem um pouco com os seus. Lentamente, a confiança que nutriam por ele

diminuiria e acabaria desaparecendo por completo.

Lief sabia disso como sabia o próprio nome. Também seu pai, mantido

afastado do povo, havia perdido a confiança deles. Fora por essa estratégia que as

pedras haviam sido roubadas do Cinturão, e o Senhor das Sombras conseguira

triunfar.

Ele agarrou a espada com mais força. “Isso não vai acontecer comigo”,

disse a si mesmo. “Por que outro motivo tenho trabalhado dia e noite, a não ser

o de encontrar uma saída para esta armadilha? Amanhã...”

E, ao pensar no dia seguinte, olhou desejosamente para a cama. Talvez,

afinal, os seus nervos estivessem lhe pregando uma peça.

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Naquele exato momento, ouviu um leve arranhar, tão tênue que não

tinha certeza de que fosse real. O ruído parecia ter vindo exatamente do seu lado.

Devagar, ele deslizou a ponta da espada até a borda do travesseiro branco

e macio e, com delicadeza, ergueu-o.

E ali, encolhido, encontrava-se um escorpião-das-planícies, vermelho

com listras pretas e tão grande quanto o punho de um homem. Alertado pelo

movimento súbito, o escorpião se ergueu, a cauda mortal pronta para atacar.

Com um grito, Lief atirou o travesseiro para longe. Penas escaparam do

tecido rasgado quando ele atingiu a cama com a espada. O escorpião, semi-

esmagado, ainda procurava atacar. Ofegante e trêmulo, Lief atingiu-o repetidas

vezes, até que ele finalmente ficasse imóvel.

A porta foi aberta com um movimento súbito, e Perdição, de espada em

punho, invadiu o aposento. Ele parou, fitando a massa avermelhada e pegajosa

que manchava o lençol.

Lief se sentou pesadamente na beirada da cama. Penas flutuavam ao seu

redor e aterrissavam em sua cabeça e ombros. Ele tentou sorrir.

— Tive um visitante — ele disse.

— O que está acontecendo? — indagou Jasmine parada na soleira da

porta. Kree, o pássaro preto que sempre a acompanhava, esvoaçava atrás dela. A

pequena criatura peluda que ela chamava de Filli piscou sonolenta em seu ombro.

Os olhos verdes de Jasmine brilhavam tanto quanto a adaga que tinha na

mão. Ela entrou no quarto, examinando a situação com um rápido olhar.

— Um escorpião-das-planícies — constatou ela, a expressão sombria. —

Ele com certeza não chegou aqui sozinho. Mas como...

— Volte para a cama, Jasmine — Lief interrompeu. — Sinto tê-la

acordado. Está tudo bem.

— Está tudo bem? — ela protestou. — Lief, se você tivesse posto a

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cabeça nesse travesseiro...

— Felizmente, eu não pus — retrucou Lief, dando de ombros, sem

contar o quanto estivera perto de fazê-lo.

Jasmine foi até a janela e sacudiu as barras. Elas saíram em suas mãos.

— As barras foram serradas e depois substituídas! — ela constatou.

— Então foi assim que o assassino entrou. — Ela olhou para o céu e os

seus olhos se estreitaram.

Lief trocou um olhar com Perdição. Ambos sabiam o que Jasmine estava

pensando, agora que o susto passara. O que Lief estivera fazendo a noite toda

para ir ao quarto de dormir somente ao amanhecer?

— Eu estava com insônia, mas agora estou cansado — Lief contou.

“Pelo menos isso era verdade”, ele pensou tristemente. Queria muito dormir.

Puxou o lençol manchado da cama. Ele se deitaria diretamente sobre o colchão e

ficaria muito satisfeito.

— Então vamos deixá-lo sozinho — concordou Perdição, caminhando

até a porta.

Jasmine sabia que as palavras também eram destinadas a ela. O homem

que todos ainda chamavam de Perdição era seu pai, mas nas últimas semanas era

tão difícil conversar com ele como com o próprio Lief. Durante o dia, ele estava

cercado de pessoas. À noite, desaparecia para tratar de negócios misteriosos dos

quais Jasmine nada sabia.

Perdição deixou o quarto, mas Jasmine não fez nenhum movimento para

segui-lo. Aquela era a primeira vez que via Lief sozinho em semanas e estava

determinada a conversar com ele.

Ele, contudo, não olhou para ela e começou a desamarrar as botas.

— Preciso de algumas horas de descanso, Jasmine — disse ele com

determinação. — Vamos para Tora pela manhã.

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— Tora?! — Jasmine repetiu perplexa. — Lief, você não pode sair de Del

agora! As pessoas estão exigindo vê-lo. Você não pode fugir!

— Faço apenas o que preciso — Lief murmurou. — Se você prefere

pensar que estou fugindo, não posso impedi-la.

Tomada por uma raiva intensa, Jasmine disparou para fora do quarto. Ela

escutou a porta se fechar atrás dela e a chave virar na fechadura.

O corredor estava deserto. Perdição havia voltado ao seu quarto e

ninguém se levantara ainda.

De repente, Jasmine sentiu-se sufocada e desejou respirar ar fresco.

Dirigiu-se apressada para as amplas escadarias e desceu correndo, os pés

descalços silenciosos no mármore frio. Se ao menos tivesse alguém com quem

conversar... Mas estava só.

Barda levara algumas tropas para a cidade de Noradz a fim de libertar os

habitantes de seus líderes cruéis, os Ra-Kacharz, e buscar alimentos para os

famintos de Del. Jasmine teria ido com ele, mas o povo de Noradz tinha medo

de Filli e ela não podia deixá-lo para trás. Assim, decidiu ficar.

Sharn e Perdição estavam sempre ocupados, e Lief parecia ter perdido

toda a confiança nela. Ele guardava segredos que não queria partilhar e agora

estava fugindo de vez para Tora, a grande cidade do Oeste.

Certamente, ali ele ficaria em segurança. Nenhum mal conseguia

sobreviver em Tora, que era protegida por uma magia própria. Mas será que ele

acreditava que podia se esconder para sempre?

Talvez sim. Lief havia mudado. O velho Lief, o Lief que Jasmine

conhecera, era corajoso e ávido por ação. Ela não tinha certeza de que gostava do

novo Lief — misterioso, prudente, majestoso.

Ela chegou ao andar térreo. Os corpulentos guardas ao pé da escada

afastaram-se para deixá-la passar. Se estranharam o fato de ela ter acordado tão

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cedo, nada disseram. “Na verdade”, Jasmine pensou tristemente, “eles

provavelmente esperam que eu aja de modo estranho.”

Muitas histórias se contavam a seu respeito. Como ela era uma lutadora

destemida que havia crescido sozinha nas ameaçadoras Florestas do Silêncio e

podia falar com as árvores e os pássaros. Como sua mãe havia morrido nas

Terras das Sombras. Como seu pai fora gravemente ferido a ponto de perder a

memória, mas escapara para voltar a Deltora e se transformar em Perdição, o

temido líder da Resistência.

Desagradavelmente ciente dos olhares curiosos dos guardas sobre ela,

Jasmine abriu caminho entre os corpos aglomerados de centenas de pessoas que

dormiam no chão do amplo saguão de entrada.

As pessoas vinham em busca de ajuda e, acima de tudo, de esperança.

Todos os dias elas se enfileiravam pacientemente para ver Sharn e seus ajudantes.

Quando a noite chegava, elas dormiam onde se encontravam a fim de não perder

os seus lugares. Muitas estavam ali há semanas.

Jasmine se movia cautelosamente, esperando não acordar ninguém. Ela

temia encontrar o olhar daqueles cujos entes queridos se encontravam nas Terras

das Sombras. O que podia dizer a eles?

Sinto muito. O rei diz que não podemos fazer nada.

A lembrança dos escravos encheu Jasmine de um intenso terror. Para ela,

a perda da liberdade era pior do que a morte.

Com alívio, chegou às enormes portas da entrada e saiu para o dia que

estava amanhecendo. Um cavaleiro solitário se dirigia ao palácio a galope. À

medida que ele se aproximava, Jasmine constatou, para sua surpresa e alegria, que

se tratava de Barda.

Ela correu para cumprimentá-lo quando ele fez o cavalo estacar, mas

parou ao perceber as linhas sombrias que lhe marcavam o rosto cansado.

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— Barda, o que aconteceu? — ela exclamou.

— Trago más notícias — ele disse depressa. — Noradz está vazia. Os

alimentos foram destruídos e todas as pessoas foram levadas... para as Terras das

Sombras.

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LIEF ESTAVA SENTADO À GRANDE MESA, NUMA DAS COZINHAS DO

PALÁCIO, TENTANDO DOMINAR A RAIVA QUE SENTIA AO OUVIR O RELATO DE

BARDA. PERDIÇÃO, SENTADO À SUA FRENTE, NÃO DEMONSTRAVA NENHUMA

EMOÇÃO. COMO SEMPRE. AO LADO DE PERDIÇÃO, ESTAVA JASMINE, A CABEÇA

BAIXA.

Barda soubera do destino do povo de Noradz por Tom, o estranho

comerciante que ele, Lief e Jasmine haviam conhecido em sua jornada pelo

Norte.

— Quando encontrei a cidade deserta, fui procurar Tom. Sabia que, se

alguém podia nos dizer o que aconteceu, esse alguém era ele. Tom disse que os

Ra-Kacharz foram vistos conduzindo o povo na direção da fronteira apenas

alguns dias antes da derrota do Senhor das Sombras.

— Aquelas pessoas eram indefesas — disse Jasmine com amargura. —

Entre elas estava Tira, a garota que salvou nossas vidas. E mesmo assim não

fazemos nada! Ficamos aqui sentados e conversamos! Enquanto milhares de almas

em toda a Deltora estão dispostas e capazes de...

— Jasmine! — Lief interrompeu zangado. — Não podemos ir às Terras

das Sombras. A feitiçaria do Senhor das Sombras é poderosa demais para ser

derrotada no próprio território.

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— Mas o Cinturão... — Jasmine começou.

— O Cinturão foi feito visando à defesa, não ao ataque — Perdição

interrompeu. — As pedras não podem ser levadas para além das fronteiras de

Deltora. Você se esqueceu disso, Jasmine?

Ela tinha mesmo esquecido, mas depois de uma pequena pausa

prosseguiu teimosa:

— Então, precisamos invadir as Terras das Sombras sem o Cinturão. O

povo de Deltora está lá escravizado, sofrendo, talvez sendo torturado...

— Sei disso, Jasmine! Não se passa uma hora sem que eu pense nisso! —

gritou Lief, erguendo-se de um salto. — Mas para salvá-lo não posso enviar

milhares de deltoranos para a morte, numa missão impossível. Não posso fazer

nada até encontrar uma arma que possamos usar contra o Senhor das Sombras.

Não posso e não o farei! Entendeu bem?

— Entendo bem demais, Lief — Jasmine tornou com frieza, a expressão

dura. — Devemos desistir dos prisioneiros enquanto você vai se esconder em

Tora. Pois bem, não vou fazer parte disso!

Ela se virou e saiu do aposento quase correndo. Praguejando, Barda a

seguiu.

Lief deixou-se cair na cadeira outra vez.

— Ela não compreende. Perdição, eu preciso dizer a ela...

— Não, não precisa! — Perdição se inclinou para a frente, preocupado e

agarrou o braço de Lief. — Você deve seguir o plano em segredo absoluto. Isso é

muito importante. Aliás, é a coisa mais importante de todas. Você sabe disso!

Lief cerrou os dentes e então assentiu lentamente.

Enquanto isso, Jasmine já não conseguia ouvir os chamados de Barda.

Ele deixara o edifício, na certeza de que ela tinha saído em busca de ar fresco.

Jasmine ficou satisfeita de não ser encontrada, pois não queria ouvir palavras de

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consolo. Ela queria continuar zangada. Pelo menos, a raiva era um sentimento

que compreendia bem.

Jasmine se dirigiu ao grande salão de refeições, pois tinha certeza de que

àquela hora estaria vazio.

Ficou aborrecida ao constatar que se enganara. Curvada num dos lados

da enorme mesa estava a figura desajeitada e selvagem de seu velho inimigo,

Glock. Fitando-o, do outro lado, estava uma pessoa de quem ela gostava ainda

menos — Jinks, o maldoso homenzinho que antigamente fora acrobata do

palácio.

Ambos os homens usavam uma pesada luva em uma das mãos. Cada um

tinha diante de si uma pequena gaiola de madeira, uma caneca de cerveja e uma

pilha de moedas.

Entre os dois, lutando sobre a madeira polida, encontravam-se duas

aranhas imensas. Uma delas tinha manchas marrons e a outra era mais escura,

com uma mancha amarela no dorso.

Ao som da porta que se abria, Glock e Jinks viraram-se depressa, mas

relaxaram ao ver quem entrava.

— Ora, é a amiguinha rebelde do rei, herói da busca pelo Cinturão de

Deltora — Jinks zombou. — A que devemos a honra de sua visita, senhorita?

Enquanto ele falava, a aranha com as costas amarelas derrubou a

oponente e saltou sobre ela, pinças a postos.

— Vitória para Flash? — berrou Glock entusiasmado.

— Vitória para Flash — Jinks confirmou ressentido e empurrou a sua

pilha de moedas na direção de Glock.

Glock apanhou a aranha vencedora com a mão enluvada e atirou-a na

gaiola.

A aranha que acabara de escapar à morte ergueu-se de um salto e jogou-

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se contra as barras da gaiola.

— Quieta, Fury — ordenou Jinks, empurrando-a para longe com rudeza.

— Você vai poder se vingar em breve.

— Vocês não têm nada melhor a fazer do que apostar em aranhas-de-

briga? — indagou Jasmine enojada.

— Parece que você não tem nada melhor a fazer do que nos observar,

fracote — resmungou Glock. — Por que não sai daqui?

— Ouvi dizer que o rei vai para Tora — Jinks comentou, pigarreando,

com o olhar travesso. — Você vai acompanhá-lo, senhorita?

— Não vou, não! — Jasmine disparou.

Sorrindo, Jinks tirou um rolo de papel-pergaminho do casaco e fingiu

examiná-lo.

— Nessas circunstâncias, isso não me surpreende — ele murmurou.

Jasmine ardia de curiosidade para saber do que ele estava falando, mas

estava determinada a não perguntar.

— Lief não deveria ir a Tora — Glock murmurou, enchendo a caneca

com mais cerveja. — Ele deveria estar formando um exército para invadir as

Terras das Sombras e fazendo planos para resgatar o meu povo.

— Ah, bem, você é o último dos Jalis, meu amigo desajeitado, e os Jalis

sempre foram loucos por uma luta — Jinks acrescentou pensativo.

— Mas você quer mesmo juntar-se ao resto de sua tribo e virar um

escravo do outro lado das montanhas?

— Eu não seria capturado — Glock resmungou. — Eu sou Glock, o

maior lutador da tribo. Estou protegido por um talismã poderoso que está com

minha família há gerações.

— Ah, está certo — zombou Jinks.

Glock remexeu sob a camisa manchada e retirou uma pequena bolsa de

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pano desbotado pendurada num cordão ao redor do pescoço.

— Olhe aqui! — ele gritou, abrindo a bolsa e derramando na mão

enorme um pedaço de madeira esculpida, três pedras, alguns galhos minúsculos e

um pedaço de material roxo enrugado. — O talismã de um duende morto por

um de meus ancestrais. Uma pedra tirada do ventre de uma serpente-diamante, e

outras duas do ninho de um dragão. Ervas de grande poder e a flor de uma

planta carnívora.

— Ah, entendi! — Os pequenos olhos de Jinks brilhavam divertidos.

— Então você estaria a salvo nas Terras das Sombras, não é mesmo?

Você poderia conduzir nosso exército à vitória?

— Mas claro! — afirmou Glock num tom mais calmo, colocando a pilha

de objetos de volta na bolsa, com cuidado. — E foi o que eu disse a Lief, várias

vezes. Mas ele não quer ouvir.

— Ah, ele tem coisas mais importantes em que pensar no momento

— Jinks retrucou, com um ar de quem sabe tudo.

— Você não sabe nada do que se passa na mente de Lief, Jinks!

— disparou Jasmine muito irritada.

— Pois você se engana, senhorita — o homenzinho devolveu, lançando-

me um olhar rancoroso. — Eu sei o que ouço.

— Você fala como um bobo! E pare de me chamar de “senhorita”!

Jinks apertou os lábios e voltou a examinar o rolo de papel-pergaminho.

O silêncio se prolongou e, finalmente, a curiosidade de Jasmine superou

o seu orgulho.

— E então? O que você ouviu? — ela indagou.

— Ora, todo mundo sabe que Lief está indo para Tora a fim de

encontrar uma esposa — disse ele, sorrindo com malícia.

Jasmine sentiu o rosto corar.

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— Isso é ridículo! — ela gritou. — Lief é novo demais para se casar.

Jinks fitou-a de cima a baixo, dos cabelos negros desgrenhados aos escuros pés

descalços.

— Sem dúvida, tal ignorância era de se esperar em alguém que, como

você, cresceu numa floresta, e não num palácio — disse ele zombeteiro. — Mas

pensei que você sabia, já que é tão amiga do rei. Ora, os boatos dizem que o seu

pai tem ajudado Lief a escolher a melhor das jóias reais para a noiva.

Glock resmungou algo em voz baixa e tomou um grande gole, embora já

tivesse bebido cerveja em excesso.

— Os reis e rainhas de Deltora sempre se casam jovens — Jinks

continuou em tom professoral. — É o seu dever. Lief precisa ter um herdeiro o

mais rápido possível, uma criança que ocupe o seu lugar, caso ele morra.

Jasmine não respondeu. O que Jinks dizia fazia sentido. Uma vida era

algo frágil para se colocar entre Deltora e o Senhor das Sombras. Mas casar? Por

que Lief não lhe contara?

Ciente do olhar astuto de Jinks, ela lutou para que a sua expressão não

revelasse os seus sentimentos.

Jinks empurrou o papel-pergaminho na direção dela.

— Veja aqui, se não me acredita — ele disse. — Esse é um dos antigos

documentos que o seu rei vem estudando. Dei um jeito de... hã... pegá-lo emprestado

da biblioteca nesta manhã. Gosto de estar a par dos negócios de Estado.

— Das fofocas, você quer dizer — grunhiu Glock, enterrando o nariz na

cerveja mais uma vez.

Jasmine deu uma olhada no papel. Ele estava coberto de nomes, linhas e

símbolos. No alto, havia um título escrito com caligrafia delicada.

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— Está vendo? — Jinks perguntou. — Lief vai escolher a sua rainha

entre uma das melhores famílias de Tora.

— Por que ir até Tora em busca de uma esposa? — Glock se espantou.

— Há muitas garotas bonitas em Del.

— Lief está obedecendo a costumes antigos — Jinks respondeu com

desdém. — O próprio Adin casou-se com uma torana e os seus filhos fizeram o

mesmo. Adin era um cara ardiloso. Ele sabia a importância de conservar laços

fortes entre o Leste e o Oeste.

— Os toranos dizem que Adin se casou por amor — Jasmine retrucou.

— Não há dúvidas de que a mulher torana em questão era bem-nascida,

instruída e muito bonita — Jinks devolveu abafando um riso.

— Ouso afirmar que Adin ficou muito satisfeito com sua escolha. Assim

como Lief ficará, quando chegar a sua vez.

Glock riu dentro da caneca, molhando a mesa com respingos de espuma.

Jasmine não conseguia mais suportar a companhia deles. Ela deixou o

aposento e dirigiu-se à cozinha.

Mas, antes de lá chegar, foi interrompida pelo som da voz de Sharn.

— Jasmine! Barda estava à sua procura — avisou Sharn, andando

apressada em sua direção. — Agora ele foi descansar, pois viajou a noite inteira.

E Lief e Perdição pediram para dizer adeus. Eles acabaram de partir para Tora.

Vendo a expressão carregada de Jasmine e presumindo o motivo, ela

sorriu gentilmente.

— Eles estarão a salvo, Jasmine. A magia torana fará com que a viagem

deles seja mais rápida. Talvez eles até já tenham chegado. Eles voltarão em um ou

dois dias.

— Trazendo alguém com eles, imagino — Jasmine respondeu com

frieza. — Uma jovem bem-nascida.

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— Quem lhe disse isso? — Sharn indagou, arregalando os olhos.

— Não me lembro. Mas é verdade, não é mesmo?

— Eu não posso lhe dizer nada — disse Sharn, depois de hesitar por um

momento. — Sinto muito.

Tal resposta bastou para Jasmine. Ela assentiu levemente e virou-se para

sair.

— Não se zangue com Lief, Jasmine — Sharn pediu, mordendo o lábio.

— Ele só está fazendo o que é preciso, o que é seu dever.

— Ah, eu entendo — Jasmine tornou com calma. — Eu entendo muito

bem.

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QUANDO JASMINE ATINGIU A GRANDE ESCADARIA, JÁ TINHA TOMADO

UMA DECISÃO. ELA NÃO PODERIA MAIS PERMANECER NO PALÁCIO.

— Vamos voltar às Florestas do Silêncio, que é nosso lugar — ela

murmurou para Filli e Kree. — Estou cansada de palácios, normas... e reis.

Sentia o peito apertado e dolorido quando começou a subir os degraus.

Algo a deteve e, ao olhar para baixo, viu uma grossa corda prateada

esticada de um lado a outro da escada. Ela estava de tal modo perdida em seus

pensamentos que ultrapassara o segundo andar onde ficavam os quartos de

dormir.

Mais adiante se encontrava a biblioteca, proibida a todos, com exceção de

Lief, Perdição e Sharn.

A simples visão da corda aborreceu Jasmine. Seguindo um impulso

repentino e desafiador, esgueirou-se por baixo dela. Se Jinks podia desobedecer à

regra, ela podia fazer o mesmo.

No alto dos degraus, havia um grande hall. Dois corpulentos guardas do

palácio encontravam-se sentados contra a parede dos fundos. Canecas de cerveja

pela metade estavam na mesa entre eles.

Jasmine deu meia-volta, pronta para se retirar, mas os homens não se

moviam nem falavam. Eles estavam dormindo.

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A moça sorriu com ironia. Sem dúvida, a cerveja tinha sido um presente

de Jinks. Foi assim que ele conseguiu “emprestar” o pergaminho de Lief.

Ela olhou à sua volta. À esquerda, havia uma alta porta em arco onde se

lia BIBLIOTECA. Mas, à direita, um corredor largo que conduzia aos fundos do

palácio estava bloqueado por outra corda prateada.

Então aquele andar encerrava mais segredos além da biblioteca. Quais

seriam?

Kree esvoaçava ansiosamente quando Jasmine passou pelos guardas,

esgueirando-se sob a corda e penetrou rapidamente na escuridão do corredor.

Ele nunca confiara naquele palácio sombrio onde não cresciam árvores e o céu

podia ser visto somente através das janelas. Ali se sentia especialmente

apreensivo.

A princípio, Jasmine ficou desapontada com o corredor. Havia alguns

depósitos do lado direito, todos repletos de livros e documentos, exceto o último,

que estava vazio e tinha as paredes enegrecidas. Estava claro que ali, há muito

tempo, havia ocorrido um incêndio.

“Tenho certeza de que não houve prejuízo”, Jasmine pensou com

amargura. “Ainda há livros velhos em quantidade mais do que suficiente neste

lugar.”

A parede à esquerda parecia totalmente vazia, e no final ela encontrou

algo estranho.

Uma passagem em arco se abria para um curto corredor, e este terminava

em uma parede rústica de tijolos sobre a qual havia um aviso. Jasmine sentiu um

estranho formigamento de excitação. Ela correu até a parede e lentamente leu as

palavras do aviso.

FECHADO POR ORDEM DO REI

Pois então ali se encontrava outro dos segredos reais de Lief.

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Obedecendo a um impulso irresistível que não conseguia explicar,

Jasmine colou o ouvido aos tijolos.

Tomp! Tomp!

O som vinha do outro lado da parede! Jasmine fechou os olhos e ouviu

com atenção.

O pulsar abafado se intensificou mais e mais, batendo como um coração

acelerado. Os tijolos ásperos ficaram quentes sob a face de Jasmine. O som

encheu-lhe a mente e vibrou por todo o seu corpo.

Tomp! Tomp! Tomp!

O aviso caiu. Pequenos pedaços de argamassa começaram a se soltar de

entre os tijolos, tamborilando no chão como granizo. Os tijolos estavam cada vez

mais quentes.

De repente, a necessidade de Jasmine de chegar à fonte do som tornou-se

insuportável. Esquecendo totalmente os guardas adormecidos e a necessidade de

ficar em silêncio, ela bateu na parede com os punhos.

Os tijolos pareceram tremer. A argamassa caía deles sobre os pés de

Jasmine.

Kree grasnava, advertindo-a. Filli guinchava assustado.

— Está tudo bem — Jasmine os tranqüilizou. Mas ela tremia ao

empunhar a adaga e raspar a argamassa, que se desfazia.

Tomp! Tomp! Tomp!

Os tijolos estremeceram e se moveram em seus lugares com sons fortes e

agudos. Jasmine pulou para trás quando um deles se soltou e caiu no chão. Por

trás do buraco aberto, havia uma pesada maçaneta de bronze.

Lief e o Cinturão se foram. Agora é a nossa chance. Venha até mim...

O pensamento foi muito claro, como uma voz. A intimação era insistente

e não podia ser ignorada.

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Mais pedaços de argamassa caíam a todo momento. Jasmine guardou a

adaga e começou a puxar os tijolos, um a um. Agora podia ver a madeira

entalhada que circundava a maçaneta. O espaço aberto na parede era grande o

bastante para que ela passasse.

Venha até mim...

Jasmine girou a maçaneta. A porta abriu-se com suavidade. Ignorando o

grito de Kree, ela deslizou pelo buraco e penetrou no aposento.

Jasmine parou, olhando ao redor.

Que lugar era aquele? Era totalmente diferente de tudo o que vira no

palácio. As paredes eram lisas, brancas e brilhantes, assim como o piso. Não

havia janelas e, mesmo assim, havia luz — uma luz forte e clara que lhe feria os

olhos.

De repente, teve certeza de que não deveria estar ali. Filli choramingava.

Kree grasnava avisos do corredor. Jasmine se voltou, mas a porta já se fechava

atrás dela. Antes que pudesse alcançá-la, ela se trancou com um leve clique.

Tomp! Tomp!

Jasmine ficou paralisada. O som era forte e repetitivo, tão alto que

expulsava todos os pensamentos. Devagar, ela se virou e se afastou da porta.

O som vinha do centro do aposento, de algo que estava envolto num

tecido negro e pesado. Atraída por uma força à qual não conseguia resistir,

Jasmine dirigiu-se aos tropeços na direção da forma escura, estendeu a mão e

puxou o tecido.

Tomp! Tomp! Tomp!

Debaixo do tecido, havia uma pequena mesa cuja superfície era de um

vidro grosso, ondulado como água. Jasmine olhou fixamente. O som apossou-se

de seu corpo e de sua mente. A superfície em movimento parecia chamá-la.

Jasmine se inclinou sobre ela, observando as suas profundezas transparentes.

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Lentamente, o som pulsante desapareceu. As ondas começaram a girar e

a ficar cinzentas como fumaça, com bordas vermelhas. No centro das ondas,

havia um círculo negro.

— Jasmine! É você!

A voz erguia-se da escuridão: jovial, doce e quente.

Jasmine prendeu a respiração.

— Quem é você? — sussurrou ela. — Como sabe o meu nome?

— Eu sabia que você me ouviria, Jasmine — suspirou a voz. — Eu a

chamei tantas vezes.

— Quem é você? Onde está você? — Jasmine se curvou sobre a mesa,

esforçando-se para enxergar além da escuridão.

— Estou onde eu nasci — a voz respondeu. — Os outros escravos

sofrem por Deltora, mas eu não conheci nenhum outro lar além deste.

Jasmine agarrou a borda da mesa para firmar o corpo.

— As Terras das Sombras — Jasmine murmurou.

— Sim, é verdade, mas eu preciso me apressar. Se eu for descoberta

usando o cristal...

Houve um som sufocado e então a voz recomeçou, embora mais

insegura do que antes.

— Não devo chorar. Preciso ser corajosa como você, Jasmine. Nossa

mãe nos disse isso. Ela disse que nas Florestas você não tinha medo de nada.

Você...

O coração de Jasmine pareceu parar.

— O que você disse? — ela perguntou atônita. — Nossa mãe?

A voz jovem prosseguiu, as palavras se misturando umas às outras.

— Mamãe disse que você nos ajudaria. Antes de morrer, ela me disse

que, de algum modo, eu deveria chegar ao cristal e chamar você. Ela disse que eu

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saberia quando a hora tivesse chegado. E foi o que eu fiz, Jasmine!

Jasmine estava ofegante como se tivesse corrido.

— E como você soube? — ela perguntou baixinho.

— Nuvens vermelhas formaram um turbilhão sobre as montanhas.

Houve trovões e uma ira terrível. As criaturas gemeram e rangeram os dentes.

— Espere... — Jasmine implorou impaciente. — Conte-me... Mas a voz

agora estava alvoroçada.

— Eu sabia o que a ira significava. Você derrotou o Senhor das Sombras,

não é, Jasmine? — Você... e o outro, o filho do amigo de seu pai. O que não me

escuta. O que guardou o cristal para que você não pudesse me ouvir...

— Lief — Jasmine murmurou com dificuldade.

— Sim. Ele não quer que você me conheça. Ele teme o Senhor das

Sombras. Mas eu não perdi as esperanças. Nossa mãe disse que você não sabe

que tem uma irmã, pois eu ainda me encontrava em seu ventre quando ela foi

levada das Florestas, mas eu deveria lhe contar...

Jasmine obrigou-se a recuar, a cabeça girando. Ela não conseguia

assimilar essas informações.

— Jasmine, você ainda está aí? — A voz jovem estava tomada pelo

pânico.

Jasmine respirou fundo, trêmula. Inclinou-se para a frente e olhou com

mais atenção a superfície enfumaçada e tumultuada da mesa.

Ela se concentrou com todas as suas forças, procurou e, então, nas

profundezas do centro negro, viu um rosto: o rosto de uma menina cercado por

uma massa de cabelos negros emaranhados. Queixo afilado, olhos verdes

arregalados e assustados... Era como olhar para um espelho, mas um espelho que

refletia a sua imagem de alguns anos atrás.

— Estou aqui — Jasmine respondeu, com voz rouca.

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— Você precisa se apressar — a menina sussurrou. — Vamos ser mortos

muito em breve, todos nós, por ordem do Senhor das Sombras. Essa é a

vingança pelo que você e os que chama de Lief e Barda fizeram a ele. Por favor...

aaah!

A imagem na escuridão ondulou e enfraqueceu.

— Preciso ir — disse a voz apressada. — Posso ouvi-los.

— Espere! Como você se chama? — Jasmine indagou.

— Faith. O meu nome é Faith. — A voz era muito fraca agora. A

imagem havia desaparecido, coberta por uma nuvem cinzenta e em movimento

que também sumia.

— Eu vou encontrá-la, Faith! — Jasmine gritou desesperada. — Não

perca as esperanças. Eu vou encontrá-la.

Jasmine ainda tremia ao correr escadas abaixo até o andar térreo e forçar

passagem entre a multidão.

As pessoas a olhavam fixamente ao passar. Algumas a chamaram, mas ela

não ouviu. Um homem moreno de expressão inteligente segurou-a pelo braço.

Ela se livrou de sua mão e continuou a correr.

Jasmine alcançou as portas e viu que a multidão havia se espalhado pelos

degraus e pelo jardim. Correu na direção dos portões e para a estrada adiante.

Ela tinha de encontrar um local tranqüilo onde pudesse pensar com

clareza. Mas, para onde poderia ir?

Então, uma idéia lhe veio à mente. A antiga casa de Lief... a ferraria. Não

ficava longe do palácio e lhe ofereceria a paz de que precisava.

Ela se pôs a caminho, movimentando-se com rapidez sobre a grama alta

da beira da estrada. Sua mente atordoada fervilhava com planos loucos e, por

esse motivo, não ouviu os passos furtivos atrás dela, tampouco sentiu o olhar de

quem a seguia.

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EM UM MARAVILHOSO APOSENTO BEM ILUMINADO DA CIDADE DE

MÁRMORE DE TORA, LIEF TOMOU A MÃO DA DELICADA JOVEM CUJOS GRANDES

OLHOS NEGROS ESTAVAM FIXOS NOS DELE. HAVIA TRÊS OUTRAS PESSOAS NO

APOSENTO, MAS LIEF FALAVA COM A MOÇA COMO SE ESTIVESSEM A SÓS.

— Está disposta, Marilen? — ele perguntou com suavidade. Mostrando

ansiedade e um certo receio, a garota olhou para o homem alto cuja mão

repousava protetoramente sobre seu ombro. Eram tão parecidos que certamente

se tratava de pai e filha. O homem hesitou.

— A magia torana não vai proteger Marilen num local distante como Del

— ele disse finalmente. — Ela é minha única filha e me é muito preciosa.

Perdição, que estivera ao lado de Lief, deu um passo à frente.

— Marilen é agora preciosa para toda a Deltora — ele disse com firmeza.

— Ela será bem protegida.

— Tudo que tenho será dela — Lief acrescentou, com mais calma. — E

minha mãe a tratará com se fosse filha dela.

— A mãe dela teria ficado muito orgulhosa deste dia — o homem

acrescentou, curvando a cabeça.

— Estou disposta — Marilen disse, voltando-se para Lief. — É uma

grande honra. Vou tentar ser merecedora dela.

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— Você não precisa tentar, Marilen.

Uma mulher de cabelos grisalhos postara-se ao lado da garota. Era

Zeean, a líder de Tora que quase perdera a vida no conflito final com o Senhor

das Sombras, em Del. A sua túnica escarlate brilhava como uma jóia sob a luz do

sol refletida das paredes brancas do aposento.

— Este dia é muito importante para desfazer parte dos males do passado

— ela afirmou. E, com um gesto, indicou os rolos de papel-pergaminho

espalhados numa mesa próxima.

— Guardar velhos documentos não é costume dos toranos. Deixamos

isso para os bibliotecários de Del. Um erro, talvez. Mas estudaremos estes com

cuidado, agora.

— É verdade — o pai de Marilen concordou com ardor.

— Obrigado — tornou Lief. — E há algo mais que...

— Talvez devamos permitir que Marilen se prepare para a viagem —

Perdição interrompeu com delicadeza.

Zeean sorriu. Curvando-se para Marilen e seu pai, ela se dirigiu para fora

da casa e para um pátio cercado de videiras, onde uma fonte cintilante jorrava

água para o alto.

— E então, Lief? — ela perguntou depois de se ajeitar na beirada da

fonte. — O que você queria me perguntar que nem mesmo Marilen deve saber?

Lief inclinou-se para a frente.

— Os prisioneiros nas Terras das Sombras, Zeean. Há alguma chance,

por menor que seja, de a magia de Tora nos ajudar a libertá-los?

A expressão de Zeean ficou séria quando ela sacudiu a cabeça.

— Sinto muito. Nosso poder dentro de Tora é grande, mas fora de

nossas fronteiras é muito limitado. Nossa magia não poderia ajudá-lo numa

jornada até as Terras das Sombras.

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Ela suspirou ao ver o rosto desanimado de Lief.

— Receio que você deva aceitar o fato de que não existe nada que possa

fazer, Lief. Segundo a lenda, a única coisa que o Senhor das Sombras teme em

seus próprios domínios é a música da Flauta de Pirra.

A mente de Lief foi repentinamente atingida por um som. Uma única

nota aguda, quase insuportavelmente doce. Lágrimas saltaram-lhe aos olhos.

Boquiaberto e incapaz de se mover ou fala, ele fitou Zeean.

O som desapareceu e ele se deu conta de que Perdição estava sacudindo

o seu braço e chamando-o pelo nome.

— Estou bem — conseguiu dizer. Ele fitou Zeean. — Essa Flauta de

Pirra... conte-me...

— Acho que a magia da Flauta não é uma história real, mas sim uma

lenda e sei pouco sobre ela — disse a velha mulher, a face perturbada.

— Mesmo assim, conte-me, por favor! — Lief implorou. Zeean fitou

Perdição e então assentiu indecisa.

— A Flauta de Pirra é, ou foi, um objeto dotado de grande magia e

poder. Dizem que ela existiu nas terras além das montanhas, há muito, muito

tempo. Antes de elas se transformarem nas Terras das Sombras.

— Então, essa Flauta de Pirra existiu antes do surgimento do Senhor das

Sombras? — Perdição indagou.

— Sim. Ouvi falar dela quando era criança por um viajante de Jalis que

conheci no rio. Era parte de uma história que ele me contou enquanto pescava

um peixe para o seu jantar. Mas a história era...

— Zeean ponderou com cuidado e finalmente balançou a cabeça.

— Sinto muito. Foi há muito tempo. Lembro-me apenas do que lhe

contei e da aparência estranha e rústica do homem e do seu modo de falar. Além

disso, ele disse... — ela sorriu — ele disse que a história foi contada pela primeira

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vez a uma menina de minha idade por um pássaro preto.

— Então foi uma das histórias dos Cantos de Pássaros de Tenna!

— Perdição exclamou. — Antigas histórias folclóricas. Ouvi Glock falar

delas.

— Eu não consideraria Glock uma fonte de informações confiável

— Zeean retrucou secamente. — Mas, se essas histórias de pássaros vêm

dos Jalis, você logo pode descobrir algo sobre a Flauta de Pirra. Os contos

folclóricos de todas as sete tribos se encontram no primeiro volume de Os Anais

de Deltora. Adin insistiu em que...

Ela se interrompeu quando Lief grunhiu frustrado.

— O que foi? — ela perguntou.

— Todos os volumes dos Anais de Deltora se queimaram na época do rei

Alton, o meu avô.

— Queimados? — O rosto de Zeean, geralmente calmo, se encheu de um

horror atônito. — Mas os Anais continham toda a história de Deltora! Eram o

único registro...

— De fato — Lief concordou — só que eles foram queimados por

ordem do conselheiro-chefe do rei Alton, Prandine. — O seu rosto se retorceu

ao pronunciar o nome odiado. — O bibliotecário do palácio que foi obrigado a

obedecer à ordem chamava-se Josef. Ele se atirou às chamas por não querer viver

sabendo o que tinha feito.

— Isso é terrível! — Zeean murmurou. — Por que queimar Os Anais?

— Porque um reino que não se lembra de sua história não pode aprender

as lições de seu passado — Perdição afirmou com seriedade.

— Acredito que aqueles velhos livros continham fatos que o Senhor das

Sombras queria ver esquecidos. Entre eles, talvez, estivessem as histórias dos

Cantos dos Pássaros de Tenna. Uma em especial...

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— A história da Flauta de Pirra? — perguntou Lief, erguendo os olhos.

— Por que não? Há quem alegue que muitos dos velhos contos

folclóricos são baseados em fatos verídicos — Perdição continuou. A sua face

magra e bronzeada estava tomada pelo entusiasmo.

— Vocês certamente não estão pensando em tentar encontrar a Flauta de

Pirra, não é mesmo? — Zeean balançou a cabeça incrédula.

— Isso seria loucura. Se a Flauta é mesmo verdadeira, provavelmente

não existe mais. Seu país de origem se transformou nas Terras das Sombras! E,

seja lá o que for o que o Senhor das Sombras temia, não o derrotou.

— Não sabemos de toda a história ainda — disse Lief. — Talvez tenha

havido uma razão...

— É mesmo — Perdição interrompeu. — Precisamos voltar a Del o

mais rápido possível, assim que Marilen estiver pronta. Precisamos falar com

Glock. Talvez ele não seja o contador de histórias mais confiável que existe, mas

é o único membro da tribo dos Jalis vivo em Deltora. O único que pode contar o

que precisamos saber.

Muito longe, na ferraria de Del, as sombras da manhã ainda se estendiam

sobre o chalé e o jardim de ervas coberto de vegetação.

Jasmine começou a sentir os músculos tensos relaxarem à medida que a

paz do lugar a envolvia.

Quando Lief foi coroado rei, ele havia declarado que não viveria no

palácio, mas, sim, que voltaria à ferraria onde passara a infância.

A mudança fora postergada repetidas vezes. E agora... bem, agora Lief ia

se casar com uma jovem de Tora e aquilo nunca aconteceria.

Jasmine vira o mármore, as fontes e os finos objetos de Tora. Ela não

conseguia imaginar uma moça daquele lugar vivendo numa casa humilde.

Portanto, a mudança para a ferraria fora um sonho e uma mentira. Assim

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como a fé que tinha em Lief.

Jasmine olhou sem ver a pintura da porta, já meio descascada. Como Lief

estava determinado a não invadir as Terras das Sombras, decidiu que ela não

devia saber da existência da irmã e trancou o aposento. Como ousara tomar tal

decisão?

“Não é de surpreender que ele venha me evitando”, Jasmine pensou.

“Não é de surpreender que ele não consiga me olhar nos olhos.”

Por ordem do rei...

Sentindo a raiva invadi-la novamente, Jasmine voltou as costas para o

chalé e atravessou o quintal até a ferraria.

A moça espiou o local onde o grande fogo queimava antigamente. Os

pesados martelos, tenazes e foles encontravam-se ali, como que à espera da volta

dos donos. Era estranho pensar que Lief trabalhara ali um dia, ajudando o pai a

fazer ferraduras e lâminas de arado para o povo da cidade.

Mas havia outra coisa estranha e, finalmente, Jasmine se deu conta do

que era.

A ferraria ficara inativa por quase um ano. As ferramentas deveriam estar

cobertas de pó, mas não foi o que ela viu. E... seria a sua imaginação ou o metal

da forja estava mais quente do que seria de esperar?

Jasmine olhou ao redor. Ali perto havia uma velha cadeira. O encosto

estava empoeirado, mas o assento estava parcialmente limpo, como se, talvez,

uma jaqueta ou um casaco tivesse sido jogado sobre ela há pouco tempo.

No chão, atrás de uma das pernas da cadeira, havia um pedaço de papel

dobrado que não exibia a cor amarelada do envelhecimento. Isso indicava que

caíra ali há pouco tempo. Talvez tivesse escorregado do bolso da vestimenta que

fora jogada sobre a cadeira.

Jasmine o apanhou e leu:

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As letras e números não faziam nenhum sentido para Jasmine, mas ela

tinha certeza de uma coisa: fora Lief quem escrevera o bilhete. Ela vira a

caligrafia dele muitas vezes para estar enganada agora. Aquele era algum tipo de

código. Mais um segredo.

Ela atirou o bilhete no chão irritada.

— Parece que você está aborrecida — disse uma voz divertida atrás dela.

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TIRANDO A ADAGA DO CINTO, JASMINE VIROU-SE. DE PÉ, UM HOMEM A

FITAVA. ERA O HOMEM MORENO DE EXPRESSÃO INTELIGENTE QUE TENTARA

FALAR COM ELA NA ENTRADA DO CORREDOR DO PALÁCIO. “ELE DEVE TER SE

MOVIDO SILENCIOSAMENTE COMO UM GATO”, PENSOU JASMINE, POIS NEM ELA

NEM KREE SENTIRAM A SUA APROXIMAÇÃO.

O homem sorriu, os dentes brancos contrastando com a pele escura.

O sorriso fazia com que parecesse mais jovem do que Jasmine imaginara

a princípio. Na verdade, era difícil determinar a sua idade. O corpo era magro,

mas forte. O rosto não mostrava rugas, e os olhos castanhos eram claros e

divertidos. Os cabelos negros e lisos eram longos, amarrados com um elástico.

Ele deu um passo na direção dela.

— Afaste-se — advertiu Jasmine, segurando a adaga que rebrilhava sob

um raio de sol.

O homem parou e abriu os braços a fim de mostrar que estava

desarmado.

— Não quero lhe fazer mal — ele garantiu sem o menor sinal de medo.

— Quero lhe pedir um favor.

— Então, fale — Jasmine respondeu, admirando-lhe a calma.

— Tenho um amigo que possui algo de grande valor para dar ao rei — o

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homem contou. — Estou esperando para falar com ele há muitos dias. Eu a

segui na esperança de que você pudesse nos ajudar.

— Se acha que eu tenho alguma influência sobre Lief, está muito

enganado — Jasmine replicou, rindo com amargura. — Seria melhor você voltar

ao palácio e ficar na fila novamente.

— Estou cansado de ficar na fila — o homem retrucou, erguendo uma

sobrancelha.

Jasmine assentiu devagar. Ela reconheceu naquele homem uma alma

gêmea. Alguém a quem desagradavam as regras e que seguia o próprio caminho.

Contudo, a última coisa de que precisava naquele momento era se enredar em

outro problema ligado ao palácio. Ela tinha de planejar, preparar...

— Por favor, deixe-me levá-la para ver o meu amigo — o homem pediu.

— O tesouro que ele vem guardando não tem preço. Acredite em mim, o rei vai

ficar agradecido.

Jasmine não tinha vontade de obter a gratidão de Lief. Ela não queria vê-

lo outra vez. No entanto... se aquele homem dizia a verdade e o tesouro do

amigo era realmente valioso, ela causaria uma grande sensação no palácio.

E uma sensação era o que ela precisava nesse momento. Ela era

conhecida demais para viajar até a fronteira das Terras das Sombras sem ser

reconhecida. Se Sharn soubesse o que ela pretendia fazer, tentaria impedi-la. Mas

se a atenção de Sharn fosse desviada, mesmo que por um ou dois dias...

— Que tesouro é esse? — ela perguntou bruscamente.

— Isso o meu amigo vai contar — o estranho retrucou, balançando a

cabeça. — Ele sofreu muito para guardá-lo.

Jasmine observou-o atentamente. Estaria ele tentando atraí-la para uma

armadilha?

— Você não tem motivos para confiar em mim — o homem disse, como

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se tivesse lido os pensamentos dela. — E não lhe peço para fazê-lo.

Se preferir, ande atrás de mim com a adaga em minhas costas.

Jasmine tomou uma decisão e assentiu com um gesto enérgico.

— Vá na frente, então — ela ordenou. — Mas estou avisando. Um

movimento em falso e não vou hesitar em matá-lo. E, seja lá o que for esse

tesouro, é melhor que valha a pena.

À medida que o estranho conduzia Jasmine para o coração de Del, ela

dizia a si mesma que tinha agido bem em confiar nele. Quando, porém, ele parou

numa velha olaria incendiada, ela balançou a cabeça.

— Você acha mesmo que eu vou entrar nesse lugar com você? — ela

exclamou. — Não sou tão boba.

— Realmente, você tem razão em ficar desconfiada — o homem

concordou, suspirando. — Mas eu sou a última pessoa que poderia representar

uma ameaça para você. Lutas e armas não me atraem nem um pouco. O meu

amigo mora ali dentro.

— Diga-lhe para trazer o tesouro até aqui — Jasmine ordenou

bruscamente.

— Ele não vai fazer isso — o estranho afirmou. — Ele não acredita que

Del seja um lugar seguro.

Cansado da discussão, Kree soltou um grasnado forte, deixou o ombro

de Jasmine e voou para o alto.

— Kree vai seguir você — Jasmine declarou. — Eu vou esperar até que

ele venha me avisar que está tudo bem.

O homem olhou para o pássaro que voava em círculos e assobiou

baixinho.

— Então, as histórias são verdadeiras — ele murmurou. — Você fala

com os pássaros.

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Jasmine não respondeu. O estranho deu de ombros e entrou por um

buraco na parede destruída. Kree voejou atrás dele e rapidamente ambos

desapareceram da vista de Jasmine.

Os minutos se arrastaram. Repentinamente inquieta, Jasmine olhou atrás

de si, mas a rua estava deserta.

Então ela ouviu um grito agudo e viu um vulto negro voando apressado

em sua direção.

Filli chiou agitado e saiu correndo de debaixo da gola do casado de

Jasmine.

— Sim, Filli, parece que vamos mesmo ver esse tal tesouro — disse

Jasmine. Apesar de tudo, ela se sentiu um tanto alvoroçada.

Ela entrou na olaria e começou a andar sobre o entulho.

O estranho a esperava ao lado de um buraco no chão, perto do final do

edifício. Junto dele, sentado sobre um grande baú feito de bambu trançado,

encontrava-se um homem velho e frágil, de cabelos brancos. Ao perceber a

aproximação de Jasmine, ele se ergueu com esforço.

Quando Jasmine chegou perto dele e ele pôde vê-la com nitidez, pareceu

bastante surpreso.

— Tem certeza de que essa é a moça do palácio, meu rapaz? — ele

indagou com uma voz que era pouco mais que um sussurro.

O seu companheiro sorriu.

— Certeza absoluta. Essa é Jasmine, que ajudou o rei Lief a recuperar o

Cinturão de Deltora. Estamos muito honrados com a presença dela.

Jasmine demonstrou embaraço e lançou-lhe um olhar furioso, mas o

sorriso dele não desapareceu.

— Claro, os tempos mudaram — o homem respondeu, assentindo com

um leve gesto. — Não temos tempo para nos preocuparmos em trançar o cabelo,

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vestir roupas finas e usar jóias agora. Tanto melhor, talvez.

Com grande dignidade, ele se curvou para Jasmine.

— Obrigado por concordar em me ver, madame — ele agradeceu. — Eu

saí para recebê-la, pois acho que os degraus de nossa casa são muito íngremes.

Ele acenou com a mão para o buraco no chão, e Jasmine percebeu que se

tratava, na verdade, de um alçapão que conduzia a um porão.

Ela mal assimilara o que o homem dissera quando ele tornou a falar.

— Esperei muito tempo por este momento. Posso me apresentar? Sou

Josef, antigo bibliotecário do palácio na época do rei Alton. Quero... dar-lhe isto.

A mão dele tremia quando ergueu a tampa do baú sobre o qual estivera

sentado.

Jasmine olhou para o seu interior e sentiu o desalento tomar conta dela.

Ela imaginou várias coisas que poderiam compor o tesouro, mas não pensara

naquilo!

O baú estava cheio até a borda de velhos livros, todos encadernados com

o mesmo tecido azul-claro, todos do mesmo tamanho e com a mesma inscrição

em letras douradas na capa.

Ela ergueu a cabeça para fitar Josef. Ele se empertigara, claramente

aguardando uma reação.

— Os Anais de Deltora? — Jasmine indagou estupidamente.

Um sorriso transfigurou o rosto enrugado do velho homem, fazendo-o

brilhar.

— Entendo que esteja chocada — disse ele animadamente. — Você

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achava que os Anais haviam sido queimados há muitos anos no depósito. E eu

com eles. Mas, como você pode ver, eu consegui enganar Prandine. Ah, sim, eu

consegui.

O velho riu.

— Eu não podia desobedecer às ordens dele abertamente, mas tampouco

suportava a idéia de queimar a história de Deltora. Então, incendiei o depósito e

deixei um bilhete dizendo que tinha dado fim à minha vida. Em seguida, fugi do

palácio levando os Anais, me escondi e esperei por tempos mais felizes.

Os olhos dele brilhavam.

— E nós sobrevivemos, como pode ver, durante muitos anos com a

ajuda de Ranesh, meu aprendiz, que a trouxe até aqui. Não é maravilhoso? Não

acha que o jovem rei vai ficar exultante?

Jasmine forçou-se a sorrir e assentiu. Ela não queria desapontar o amável

e entusiasmado homem. Ela ajudaria Ranesh e ele a levar os velhos livros para o

palácio.

Mas ela tinha certeza absoluta de que ninguém daria importância a eles.

Principalmente Lief.

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JASMINE AFIRMARA COM FREQÜÊNCIA QUE JAMAIS ENTENDERIA OS

HÁBITOS DO PALÁCIO. ELA FICOU AINDA MAIS CERTA DISSO QUANDO VIU COMO

JOSEF FOI RECEBIDO.

Ao ver o que havia no baú de bambu, Sharn gritou assombrada e feliz. E

ela não foi a única. Em instantes, o grande saguão de entrada foi tomado pelo

som de vozes de pessoas alegres.

Jasmine ficou em silêncio, balançando a cabeça aturdida, esperando uma

oportunidade para escapar.

— Obrigado por nos ajudar — uma voz disse em seu ouvido. O homem

que agora sabia chamar-se Ranesh encontrava-se ao lado dela.

— Não foi nada — Jasmine respondeu, dando de ombros.

— Você não entendeu a importância dos Anais, não é mesmo? —

Ranesh insistiu. — Eu vi a surpresa em seu rosto quando Josef abriu o baú.

— É verdade que livros velhos não são o que eu chamaria de tesouro

— Jasmine explicou brevemente.

— Quando conheci Josef, anos atrás, eu teria concordado com você — o

rapaz tornou rindo. — Na época, eu era apenas um órfão maltrapilho que vivia

de roubos nas ruas de Del. Pensei que Josef era um velho tolo por ter

abandonado a vida do palácio por causa de alguns livros velhos. Agora eu penso

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diferente.

Os seus atentos olhos castanhos suavizaram-se ao olhar para o velho

homem que se curvava diante dos admiradores aglomerados ao seu redor.

— É bom ver Josef recebendo as honras que merece — ele murmurou.

— Eu devo muito a ele. Ele me ensinou a ler e a escrever, deu-me um lar e me

ensinou a viver sem roubar... bem, quase!

Os seus dentes brancos mostraram-se em mais um sorriso.

— Depois que a olaria foi atacada pelos Guardas Cinzentos, e as pessoas

bondosas que nos alimentavam foram levadas, passamos muita fome. Então,

convenci-me de que o que Josef não sabia não poderia magoá-lo e,

ocasionalmente, admito, voltei aos meus velhos hábitos para conseguir comida

para nós dois.

— Você teve sorte de sobreviver à batida — Jasmine disse. O sorriso de

Ranesh desapareceu.

— Os Guardas Cinzentos não encontraram o porão e tampouco o fogo

o atingiu. Mas ficou muito quente lá. Por um momento, pensei que Josef e eu

seríamos assados como patos no forno, e Os Anais de Deltora conosco.

— Teria mesmo feito diferença? — Jasmine suspirou. — Quanto aos

livros, quero dizer — ela acrescentou depressa, ao notar a expressão de surpresa

do rapaz.

— Acho que sim — ele respondeu. — Eles não são apenas livros de

história, mas um relato diário dos acontecimentos do reino por vários séculos.

Cada volume está repleto de contos, esboços, mapas...

— Mapas? — Jasmine indagou subitamente atenta.

— Claro — Ranesh confirmou, olhando-a com curiosidade. — Você está

interessada em mapas?

— Se eles mostrarem como chegar a lugares a que quero ir... — Jasmine

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respondeu com cautela — ... e se eu puder entendê-los.

— Então você pode dar uma olhada nos meus preferidos, no volume 5.

São apenas esboços simples, mas eu apostaria a minha vida neles. Eles foram

feitos por Doran, o amigo dos dragões.

Ele olhou para Jasmine para ver se o nome lhe dizia alguma coisa e, ao

perceber que nada significava, continuou:

— Doran foi um famoso viajante que explorou Deltora desde as costas

das Terras das Sombras. Ele escrevia nos Anais de próprio punho. Ele disse que

não podia confiar nos bibliotecários, pois eles introduziam erros ao dar um

cunho educado demais às palavras e caprichar demais no traçado dos mapas.

Doran era um tipo especial e um homem de muitos talentos que...

Jasmine não estava mais escutando. Ela começou a pensar depressa,

calculando a melhor forma de ficar algum tempo sozinha com os Anais. Os

mapas de Doran pareciam exatamente o que precisava, se quisesse encontrar o

caminho mais rápido e secreto para as Terras das Sombras.

— Jasmine? — Era a voz de Sharn. Jasmine olhou para ela.

— Jasmine, você faria a gentileza de levar os Anais à biblioteca e ficar

com eles por algum tempo? — Sharn pediu com delicadeza. — Eu gostaria que

nossos amigos comessem alguma coisa, mas Josef não quer descansar enquanto

os livros não estiverem em segurança sob os cuidados de alguém em quem ele

confia.

Um tanto surpresa por seu desejo ter sido satisfeito com tanta rapidez,

Jasmine concordou de boa vontade. Momentos depois, ela corria degraus acima

enquanto um guarda do palácio a seguia carregando o baú com os livros.

Sharn levou Josef e Ranesh à cozinha onde uma refeição havia sido

preparada para ambos. Ela voltou aos seus afazeres com o coração muito mais

leve do que quando os começara pela manhã. Lief ficaria muito feliz por saber da

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volta inesperada dos Anais!

Também era maravilhoso ver Jasmine contente. Pelo menos naquele

momento, a garota parecia livre do sofrimento que pensar no destino dos

prisioneiros das Terras das Sombras lhe causava.

“E isso significa”, Sharn pensou com gratidão, “que eu também posso

ficar livre, pelo menos por alguns momentos, do receio de que ela faça alguma

tolice.”

Assim que o guarda do palácio pousou o baú no chão e deixou a

biblioteca, Jasmine procurou rapidamente entres os livros até encontrar o volume

de número cinco.

Assim que o apanhou, ele se abriu numa página sem linhas e coberta de

uma escrita desordenada. Jasmine deduziu que ele tinha sido aberto ali várias

vezes antes. A página estava assinada por Doran.

Minha recente viagem às Colinas Os-Mine foi desastrosa. Fui até lá na esperança de

encontrar a cova de um dragão, depois que li o conto (a lenda)(a lenda)(a lenda)(a lenda) da Garota dos Cabelos Dourados,

que faz parte dos Cantos de pássaros de Tenna no volume 1 dos Anais. A minha (tola) (tola) (tola) (tola) busca

resultou apenas em um nariz machucado, uma dor de cabeça e uma febre causada por uma noite

dormida com as roupas encharcadas.

Não me recordo do que causou essas calamidades. Não posso ter caído presa de um

dragão, pois ainda estou vivo. Não deparei com um granous, pois ainda tenho todos os dedos das

mãos e dos pés. Certamente, apenas escorreguei e caí em algum riacho imundo e rachei o meu

crânio idiota.

Os versos abaixo estavam dançando em minha cabeça quando despertei de meu

atordoamento. Eles podem oferecer um indício ou ser meramente (são (são (são (são claramente)claramente)claramente)claramente) o produto de

uma mente abalada. Preciso descobrir.

CANÇÃO DOS MORTOS

“Acima de nossa terra (nossas cabeças)(nossas cabeças)(nossas cabeças)(nossas cabeças), reina a desordem

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As lutas ecoam através dos tempos

E assim a discórdia nunca cessará

Mas aqui embaixo vivemos (repousamos)(repousamos)(repousamos)(repousamos) em paz

Onde as eternas marés (marés dos tempos)(marés dos tempos)(marés dos tempos)(marés dos tempos) inundam as lembranças

Nossa prisão sem sol nos liberta.

AS luzes cintilantes como pedras preciosas

iluminam nossas paredes rochosas (terrenas)(terrenas)(terrenas)(terrenas)

E dragões vigiam nossos corredores cintilantes.”

NOTA: AGORA ESTOU

CONVENCIDO DE QUE AS

COLINAS OS-MINE SÃO

ALTAMENTE PERIGOSAS

E NÃO INTERESSAM AO

VIAJANTE.

DORAN

“Doran, o amigo dos dragões, deve ter sido um homem de muitos

talentos”, Jasmine pensou, “mas não era muito chegado ao capricho”. Ele havia

rabiscado suas descobertas e um poema, corrigindo-os numa data posterior com

uma pena diferente e uma tinta mais escura.

Lágrimas queimavam os olhos de Jasmine ao ler as últimas palavras do

poema e pensar na mãe, morta nas Terras das Sombras. No entanto... pareceu-lhe

que algo naqueles versos não era totalmente verdadeiro.

Franzindo o cenho, ela leu toda a página novamente. Quanto mais

observava as correções apressadas e as linhas acrescentadas por Doran, mais se

convencia de que elas tinham a intenção de ocultar algo. A curiosidade dançava-

lhe na mente como um inseto importuno.

Rapidamente, ela verificou os livros que havia colocado sobre a mesa da

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biblioteca e procurou o volume 1.

Uma hora depois, Josef entrou mancando na biblioteca apoiado no braço

de Ranesh. Ele não conteve uma exclamação de prazer ao rever o seu antigo local

de trabalho.

Josef ficou encantado em ver Jasmine sentada a uma mesa em que se

encontravam espalhados vários volumes dos Anais. Um volume estava aberto

diante dela e era evidente que ela copiara trechos dele.

— Posso ajudá-la, querida? — ele ofereceu, aproximando-se depressa.

— Obrigada, mas não é necessário — ela agradeceu, fechando o livro

apressadamente e enfiando no bolso o papel em que estivera escrevendo.

Jasmine empurrou a cadeira para trás e se levantou.

— Preciso deixar vocês — ela se desculpou. — Tenho umas coisas a

fazer.

— Mas claro! — Josef exclamou, dando-lhe tapinhas no braço. — Vá em

frente. Ranesh e eu também temos muito a fazer. Fomos convidados a ficar no

palácio e cuidar dos Anais e dos outros livros. Isso não é maravilhoso?

— Claro que é — Jasmine respondeu calorosa. Ela estava muito feliz de

ver a dedicação do velho homem sendo recompensada. Além do mais, tinha uma

grande dívida para com ele. Mal conseguia conter o entusiasmo ao pensar no

papel que guardara no bolso do casaco.

Ela se dirigiu apressada para a porta e, então, se voltou. Tinha quase

certeza de que o que havia planejado era o melhor a fazer, mas não custava se

certificar.

— Josef — ela começou, com toda a naturalidade de que era capaz -, se

os escritores dos Anais tivessem mudado de idéia sobre o que escreveram, eles

teriam permissão de arrancar a página?

— Ah, claro que não! — tornou Josef, chocado. — Era possível fazer

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pequenas correções supervisionadas. Mas isso era tudo. Por que pergunta?

— Ah, nenhum motivo em especial — Jasmine respondeu, aparentando

indiferença. O seu coração, contudo, batia acelerado no peito quando ela deixou

a biblioteca. Acenando animada para os guardas que substituíam aqueles pelos

quais passara pela manhã, ela desceu as escadas correndo e se dirigiu ao seu

quarto.

Não levaria mais que alguns instantes para reunir os seus pertences. A

trepadeira que crescia na parede do lado de fora da janela era resistente e a

sustentou facilmente quando saiu por ali e começou a descida.

Ela quase alcançara o solo quando Kree a advertiu com um grasnado.

Jasmine olhou para baixo e viu Glock, observando-a.

— O que pensa que está fazendo, senhorita? — ele rosnou.

ERA NOITE ESCURA QUANDO LIEF E PERDIÇÃO VOLTARAM A DEL COM

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MARILEN. COMO LADRÕES, OS TRÊS DESLIZARAM PARA O INTERIOR DO

SILENCIOSO PALÁCIO PELA PORTA DOS FUNDOS.

Sharn esperava-os sentada à mesa da cozinha e ergueu-se de um salto, o

rosto coberto de sorrisos de alívio.

— Vocês chegaram! Mal pude acreditar na mensagem que dizia que

voltariam em breve.

Ela se apressou a instalar Marilen perto do fogão com uma caneca de

sopa quente. Em seguida, puxou Lief para o lado.

— Tenho muitas coisas para lhe contar! — ela sussurrou. — Há boas e

más notícias.

A voz de Perdição os interrompeu.

— Vou acordar Glock — ele avisou da porta. — Devemos falar com ele

imediatamente.

— Por que Glock? — Sharn indagou. — O que ele tem a ver com...

— Vou lhe contar mais tarde, mãe — Lief disse em voz baixa, depois que

Perdição deixou o aposento. — Conte-me as novidades. As más, primeiro,

enquanto não podemos ser ouvidos.

Ele acenou com a cabeça na direção de Marilen, que se inclinava sobre o

fogão para aquecer as mãos enregeladas. A garota parecia frágil, indefesa e muito

cansada. Se ela ficasse assustada em sua primeira noite no palácio, poderia pedir

para voltar a Tora. Como tal pedido não podia ser recusado, era essencial que ele

nunca fosse feito.

— Os guardas que se apresentaram para o turno desta tarde, no 3.°

andar, descobriram que os dois homens que deveriam substituir estavam

dormindo e não puderam ser acordados — Sharn sussurrou. — Achamos que

lhes deram cerveja com um forte sonífero.

Lief sentiu o estremecimento que sempre o dominava quando pensava

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no 3.° andar.

— O quarto trancado! — ele sussurrou. — A parede foi...

Sharn assentiu como relutância ao ver as linhas de preocupação se

aprofundarem no rosto do filho.

— A argamassa se desfez e alguns dos tijolos caíram. Mas o buraco era

pequeno, e a porta além dela estava bem fechada. Talvez o intruso tenha sido

interrompido antes de conseguir entrar.

— Devemos esperar que seja assim — Lief murmurou. — A parede foi

restaurada?

— Claro que sim — a mãe respondeu.

Sharn olhou para a garota desanimada, sentada na cadeira.

— Pobre criança. Em que lugar ela veio parar! E é tão jovem... Lief sorriu

com tristeza.

— Ela não é mais jovem do que eu — ele lembrou. — Ou Jasmine.

— Ah, isso me faz lembrar! As boas notícias! Os Anais de Deltora nos

foram devolvidos. E foi Jasmine que os descobriu.

Ela havia esperado que o filho ficasse satisfeito. Mas até mesmo ela ficou

surpresa com a repentina e inacreditável alegria que lhe iluminou o rosto. Antes

que pudesse lhe pedir explicações, porém, Perdição voltou para a cozinha, a

expressão furiosa.

— Glock não está na cama dele! — ele murmurou. — Com certeza está

roncando debaixo de uma mesa em alguma taverna da cidade.

— Deixe-o roncar! — Lief sorriu. — Não precisamos mais dele.

Logo depois, Lief e Perdição foram animadamente recebidos por Josef.

Com os cabelos brancos desgrenhados, as dobras do roupão emprestado

balançando ao redor das pernas finas, ele apanhou um dos livros que se

encontravam sobre a mesa.

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— Eu não tinha idéia de que sua majestade voltaria tão cedo!

— exclamou ele, virando páginas rapidamente. — Há algo que preciso

lhe mostrar. Algo muito importante.

— Gostaria de ver tudo em seu devido tempo, Josef— Lief respondeu

apressado. — Mas agora há uma pesquisa que gostaria de...

Ele ouviu um leve som atrás dele, virou-se e encontrou o olhar de um

homem moreno com uma expressão divertida no rosto.

Aquele, Lief imaginou, devia ser Ranesh, o aprendiz de Josef. Como ele

se aproximara silenciosamente! Ao contrário de Josef, ele tivera a preocupação de

se vestir antes de deixar o quarto nos fundos da biblioteca. Talvez esse detalhe

esclarecesse algo sobre a diferença das duas personalidades.

Ranesh não se apressava em atender a qualquer pessoa. Ele era um

homem que ponderava suas decisões com cuidado e cujo verdadeiro caráter seria

difícil de conhecer.

“Um homem como Perdição”, Lief pensou, fitando o amigo.

Perdição estava observando o recém-chegado. Lief sabia que ele tentava

descobrir se Ranesh era uma pessoa confiável.

— Sei que deveríamos ter arrumado esta mesa antes de ir dormir

— Josef tagarelava, ainda procurando o livro -, mas eu quis limpar as

prateleiras antes de organizar os Anais. Receio que a biblioteca tenha sido

tristemente negligenciada. Então fiquei muito cansado e...

— Claro! — Lief disse ansioso para ficar sozinho com os preciosos

livros. — Sinto que tenhamos acordado vocês com nossa chegada. Por favor,

voltem a dormir. Somos perfeitamente capazes de...

— Ah, aqui está! — Josef gritou. Ele colocou o livro aberto sobre a mesa

e puxou uma cadeira. — Leia, majestade — ele pediu. — E aqui... — disse,

entregando-lhe papel e lápis -... o senhor pode tomar nota com isto, se desejar,

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assim como Jasmine fez esta tarde.

— Jasmine? — Lief exclamou. — Ela estava lendo?

— Ah, sim — Josef assentiu. — Ela estava anotando trechos dos Anais.

— Do volume 1 — Ranesh acrescentou. — Pude perceber isso antes que

ela o fechasse.

“Ah, sim, você perceberia mesmo, Ranesh”, pensou Lief. “Imagino que

esses olhos atentos não percam muita coisa.” Ele fitou o rosto inexpressivo de

Perdição sabendo que o amigo estava se perguntando, assim como ele, se

Jasmine também tinha ouvido falar da Flauta de Pirra.

— Então, majestade — Josef insistiu, acenando para o livro. — O

senhor vai ler...?

— Claro que sim, mas somente se você e Ranesh nos deixarem

— Lief retrucou, tentando com todas as forças falar devagar e de modo

descontraído. — Não vou conseguir me concentrar se continuar mantendo vocês

acordados.

Josef hesitou, o olhar passando do livro aberto para o rosto de Lief.

— Prometo que nos falaremos em breve — Lief acrescentou, forçando-

se por sorrir.

Finalmente, Josef assentiu. Puxando a manga de Ranesh, a fim de se

certificar de que o assistente o acompanharia, ele fez uma reverência e se afastou,

arrastando os pés.

Não demorou para que Lief e Perdição ouvissem os cumprimentos de

boa-noite e portas se fechando no fundo da biblioteca.

— Finalmente! — disse Lief em voz baixa. -Agora... vamos procurar a

história.

Ele deu a volta à mesa. O livro estava aberto na página que o

bibliotecário estava tão ansioso por lhe mostrar.

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Lief deu uma olhada impaciente nas páginas amareladas, na escrita miúda,

elegante e caprichada. Um nome chamou-lhe a atenção. Ele abafou um grito e

olhou com atenção.

— Perdição! — ele sussurrou. — Veja!

O CONTO DA FLAUTA DE PIRRA

Há muito, muito tempo, além das Montanhas, havia um pais verdejante chamado

Pirra, onde a brisa espalhava magia. Sombras da inveja espreitaram as suas fronteiras, mas o

país estava protegido por uma flauta misteriosa que tocava notas de tal beleza que nenhum mal

conseguia se instalar até onde seu som alcançava.

A flauta era tocada pela manhã, ao meio-dia e a noite pela flautista-chefe do povoado,

a melhor flautista da região.

Numa noite escura de inverno, a flautista faleceu durante o sono. NO dia seguinte, três

excelentes musicistas ofereceram-se para substituí-la. Elas eram Plume, a Corajosa; Auron, a

justa; e Keras, a desconhecida.

As três se revezaram para tocar para o povo, como era costume. A música de Plume

era tão estimulante que as pessoas aplaudiam. A música de Auron era tão maravilhosa que o

seu público chorava. Keras criava sons tão envolventes que todos que a ouviam ficavam

maravilhados.

Quando o povo votou para escolher a sua favorita, as três receberam igual número de

votos. As três tocaram, repetidas vezes, mas o resultado era sempre o mesmo.

A noite caiu, e o teste continuou. O povo, agora separado em três grupos de acordo com

suas preferências, ficou cansado e zangado. Contudo, cada pessoa queria que a sua candidata se

tornasse a nova flautista e recusava-se a votar em outra candidata.

Finalmente, muito depois da meia-noite, quando a votação apresentou resultados

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iguais pela décima terceira vez, os três grupos voltaram-se furiosamente uns contra os outros

usando a magia para insultar e ferir.

Um homem com uma capa e capuz adiantou-se. Ele era alto, mas curvado pela

fraqueza, como se o longo dia e noite de música quase tivessem ultrapassado as suas forças.

Cada seção da multidão pensou que ele era integrante do próprio grupo, pois ele passara algum

tempo com todos, insistindo para que se mantivessem firmes em sua escolha.

— Tenho a solução, meus amigos! — ele gritou. — deixem as concorrentes dividir a

honra de ser a Flautista. A flauta é feita de três partes que se encaixam. Deixem Plume,

Auron e Keras ficar com uma parte cada uma.

E assim, cansado e zangado, o povo concordou. Eles deram a Plume o bocal da

Flauta; a Auron, a haste central; e a Keras, a ponta. Então, como ainda nutriam mágoa uns

pelos outros, os grupos seguiram caminhos separados, cada qual acompanhando a sua favorita.

O homem encapuzado esfregou as mãos, muito satisfeito, e desapareceu como uma

sombra antes do nascer do sol.

O dia rompeu sem música e as longas horas passaram em silêncio, pois os três grupos

rivais estavam separados e nenhuma das partes da Flauta de Pirra podia ser tocada sozinha.

Sombras instalaram-se furtivamente em Pirra. As árvores murcharam e as flores

definharam. Pouco a pouco, as sombras engoliram os campos verdejantes e as agradáveis vilas,

enquanto, a cada momento, aumentava o medo oculto em seu interior.

Os três grupos perceberam tarde demais o perigo em que se encontravam. As sombras

agora se moviam escuras entre eles e os impediam de aproximar-se um do outro a fim de

restaurar a flauta mágica. Finalmente, ao constatar que as suas terras estavam perdidas, eles

foram forçados a usar a magia que lhes restava para escapar e se salvar.

E foi assim que Pirra se transformou nas Terras das Sombras. Os seus habitantes,

ainda culpando uns aos outros por essa perda tão antiga, vivem até hoje em três ilhas separadas,

em um mar estranho e secreto.

E a Flauta de Pirra, dividida para sempre, nunca mais foi ouvida.

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PERDIÇÃO AFASTOU-SE DA MESA.

— Então, o senhor das sombras usou em Pirra o mesmo truque que

usou em Deltora. Ele dividiu as pessoas, inutilizou a proteção do reino e então a

invadiu.

— O povo de Pirra permitiu que ele fizesse isso — Lief murmurou,

esfregando os olhos com a mão. — Assim como nós também fizemos em

Deltora. Ele usou a raiva deles, a teimosia, a ambição, a fraqueza...

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— Majestade!

Um vulto branco aproximava-se devagar, vindo do fundo da biblioteca.

Era Josef.

— Perdoe-me, majestade — o velho homem murmurou ao se aproximar.

— Mas eu esqueci...

Lief ergueu-se e estendeu a mão.

— Eu é que devo pedir perdão, Josef. — Você estava tentando me

contar a história da Flauta de Pirra e eu não lhe dei atenção.

O rosto de Josef iluminou-se com um sorriso ansioso ao segurar a mão

que lhe era oferecida.

— Então, o senhor leu o conto? — ele sussurrou. — O senhor acredita

que ele tenha um fundo de verdade?

Quando Lief assentiu, ele prosseguiu depressa.

— Tenho certeza de que cada uma das tribos de Pirra guardou e manteve

a sua parte da Flauta em segurança. Assim, se esse povo ainda vive, as três partes

da Flauta também devem existir.

— Tenho tanta certeza disso quanto você — Lief retrucou. — E eu sei

que a Flauta pode nos ajudar, pois tenho ouvido o seu som.

Josef o fitou aturdido.

— O senhor deve entender, majestade — ele arriscou, afinal -, que o

poder que o inimigo tem sobre as Terras das Sombras agora é tão forte que nem

mesmo a Flauta de Pirra pode libertá-las. Acho que ela só conseguiria

enfraquecê-lo.

— Eu compreendo — tornou Lief com firmeza. — Não tenha medo,

Josef. Tudo o que esperamos é ter tempo para resgatar os nossos prisioneiros.

Mas primeiros precisamos encontrar as ilhas de Pirra.

— Sim! — Josef exclamou. — Foi isso que me esqueci de lhe contar. —

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Rapidamente, ele apanhou o volume 5 dos Anais e com habilidade folheou as

últimas páginas. Não demorou muito para que encontrasse o que estava

procurando: uma série de mapas.

Ele apontou para um pequeno desenho sobre outro mapa, muito maior,

do mar do oeste.

— Não há assinatura, mas tenho quase certeza de que esse desenho foi

feito por Doran, nosso maior explorador — Josef afirmou. — Certamente, foi

ele quem desenhou o mapa maior abaixo. Reconheço a caligrafia dele.

— Obrigado, Josef. — Lief estava por demais perturbado para dizer

qualquer outra coisa. O mapa era tão simples que era praticamente inútil, porém

provava pelo menos um fato: as ilhas de Pirra não eram uma lenda. Elas existiam

e isso significava que poderiam ser encontradas.

Josef parecia radiante.

— É um prazer poder ser útil — ele disse. Josef curvou-se e voltou

mancando para o seu quarto.

Lief apanhou o papel e o lápis.

— Vou copiar o mapa — ele decidiu. — Talvez encontremos outros

com os quais possamos compará-lo.

Ele observou a folha de papel à sua frente. Agora, sob uma luz melhor,

ele podia ver que a página de cima apresentava marcas deixadas pelas anotações

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de Jasmine.

Ele passou levemente a ponta do lápis sobre a superfície branca. Como

esperava, os sulcos na superfície começaram a revelar as palavras.

— O que será que isso significa? — ele murmurou.

— Você pode perguntar a Jasmine — Perdição retrucou, mal olhando a

página. — Vou acordá-la e a Barda também. Se eles quiserem me acompanhar

nesta viagem...

— Nos acompanhar, você quer dizer — Lief acrescentou depressa.

— Eu vou com você. Você acha mesmo que o povo de Pirra vai entregar

o seu maior tesouro a alguém que não seja o rei de Deltora?

— Você tem razão — Perdição concordou, enfim, a expressão grave.

— Deve ser o rei a pedir esse favor. Mas você deve concordar com uma

coisa, Lief: Barda e Jasmine e eu seremos os que correrão riscos, se eles existirem.

Lief assentiu com relutância. Perdição tocou levemente o seu ombro e

deixou-o.

Sozinho, Lief analisou outra vez as estranhas palavras escritas por

Jasmine. Elas o deixavam intranqüilo. “Colinas O-M” deveriam se referir às

perigosas Colinas Os-Mine, ao norte de Del. Mas ele não fazia idéia do que as

demais poderiam significar.

Ranesh disse que Jasmine estivera lendo o volume 1 dos Anais,

exatamente o livro que se encontrava à sua frente naquele momento. Lief

começou a folheá-lo e encontrou mais contos de Cantos de Pássaros de Tenna. O

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conto dos três cavaleiros, Os sete duendes, O ovo do dragão...

Então, Lief encontrou algo diferente. Entre duas páginas, havia uma

pequena pena preta.

Kree! Lief imaginou o grande pássaro preto sentado no livro enquanto

Jasmine lia. Ele o imaginou voando para trás quando Jasmine fechou o livro

apressada, ao notar a aproximação de Josef, e uma pena caindo e sendo presa

entre as páginas.

Ele leu a história nas duas páginas abertas com uma crescente sensação

de pavor.

A GAROTA DE CABELOS DOURADOS

Houve, certa vez, uma donzela chamada Alyss, cuja única beleza eram os longos

cabelos dourados, brilhantes como O sol. Embora os seus olhos fossem pequenos, o nariz muito

comprido e as orelhas grandes como asas de morcego, as suas tranças douradas eram tão lindas

que ela tinha muitos admiradores. Ela encorajava a todos, exceto um jovem chamado Rosnan,

que era tão comum quanto ela.

Um dia, Alyss penteava os cabelos para o deleite de todos que a observavam, quando

um imenso dragão dourado surgiu do céu e a levou embora.

Todos os bonitos admiradores choraram e a deram como perdida, mas Rosnan

apanhou uma espada e seguiu o dragão até a sua caverna em um vale das colinas Os-Mine. Ao

vê-lo, o dragão rosnou e cuspiu fogo, mas o jovem manteve-se firme.

— Liberte Alyss, grande dragão! — ele ordenou. — Fique comigo em seu lugar.

O dragão riu. Um som realmente terrível que fez silenciar até os pássaros que se

encontravam nas árvores que os rodeavam.

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— Não farei isso! — o monstro respondeu. — Você tem cabelos dourados para

revestir o meu ninho? Eu acho que não.

Assim, ele desferiu um golpe com a cauda e atingiu Rosnan, cuja espada caiu inútil no

chão.

— Corra, Alyss! — Rosnan gritou preparado para morrer. — Salve-se! Mas Alyss

apanhou, a espada e com um só golpe cortou os cabelos.

— Tome! — ela gritou para o dragão, estendendo os cabelos sedosos tão longos e

espessos que lhe enchiam os braços. — Mas deixe-o viver!

O dragão desviou a atenção de Rosnan e os seus olhos brilharam de prazer ao

apanhar os cabelos,.

— Obrigado — ele respondeu. — Vou deixá-lo viver.

E então Alyss viu-se no espelho dos olhos do dragão e ficou de tai modo horrorizada

diante da própria feiúra que gritou e correu para o fundo da caverna do dragão, embrenhando-se

nas profundezas da terra onde vivem os duendes. Chamando seu nome, Rosnan a seguiu, mas

Alyss não parou, pois uma luz dourada brilhava nas paredes da caverna, atormentando-a e

lembrando-a do que tinha perdido.

Eles fugiram, Alyss na frente, Rosnan logo atrás, pelo mundo sem sol debaixo da

terra, onde fervilham os mares do esquecimento. Eles fugiram, para tão longe que esqueceram

por que estavam fugindo, mas nenhum mal lhes aconteceu, pois eram tão feios que os duendes os

confundiram com alguém de seu povo.

A luz dourada ficou vermelha e brilhava como o sol quando se põe. Em seguida,

vieram os arco-íris cintilantes e o verde das florestas após a chuva. E ainda assim a fuga

continuou.

Entretanto, quando a cor esmaeceu e ficou cinzenta como o pó, e a escuridão da mais

escura das noites os esperava, Alyss teve medo de seguir adiante e parou. Então Rosnan a

alcançou e a tomou nos braços, dizendo que para ele ela era a mais linda moça do mundo, o que

não era nada além da verdade, pois ele a amava de todo o coração.

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Alyss o olhou e viu uma alma honesta, corajosa e sincera. E dentro dela o seu coração

se enterneceu.

Os duendes viram o amor dos dois e ficaram maravilhados diante de sua força. Alguns

viajaram para o mundo exterior à procura da mesma felicidade para si, embora nunca a

encontrassem. Os amantes, contudo, nunca foram vistos sob o sol novamente, e apenas os

pássaros sabem que, nas profundezas do mundo subterrâneo, eles viveram felizes para sempre.

Lief sentou-se por alguns instantes mergulhado em pensamentos. Então,

ouviu um barulho vindo da porta. Perdição e Barda caminhavam em sua direção,

a expressão sombria. Ele sabia o que vinham lhe contar antes mesmo que

falassem.

— Jasmine se foi, não é mesmo? — ele indagou.

Eles pareceram surpresos, mas não perguntaram como adivinhara.

— A cama dela não foi desfeita. — Barda esfregou a testa zangado. —

Ela escapou ontem, com certeza, enquanto eu dormia. Eu devia ter adivinhado.

Agora, ela já deve estar nas Florestas. E sozinha!

Lief sacudiu a cabeça.

— Sozinha, não — ele retrucou. — Se eu não estiver errado, Glock está

com ela. E eles não foram às Florestas, mas às Colinas Os-Mine. Eu tenho

certeza de que Jasmine acredita ter encontrado um caminho secreto para as

Terras das Sombras. Um caminho subterrâneo.

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ARILEN ESTREMECEU E AJEITOU MELHOR O CASACO EM VOLTA DO

CORPO. AINDA NÃO AMANHECERA, MAS LIEF SABIA QUE ELA TREMIA, NÃO DE

FRIO, PORÉM DA ANSIEDADE QUE TENTAVA DESESPERADAMENTE DISFARÇAR.

— Não tenha medo, Marilen — ele disse com suavidade. — Você só

precisa esperar. Perdição vai ficar aqui e se preparar para a jornada. Ele vai tomar

conta de você. Barda e eu voltaremos em breve.

Ele desejou que ela não lhe perguntasse para onde ia. Mesmo em Tora,

ela pode ter ouvido histórias assustadoras sobre as Colinas Os-Mine. Ele ocultou

um suspiro de alívio quando ela assentiu em silêncio.

— Eu não planejava partir tão cedo — prosseguiu Lief, com cautela. —

Mas não acho que Jasmine voltaria com outra pessoa, mesmo porque fui eu

quem a magoou.

— Eu entendo, Lief — Marilen garantiu em voz baixa. — E não pense

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que sou covarde e que sempre entro em pânico quando você não está perto de

mim.

Dividido entre a fúria pela teimosia de Jasmine e um terrível temor por

sua segurança, Lief estava impaciente para partir. Contudo, restava ainda uma

pergunta a fazer.

— Marilen, muito poucas pessoas sabem que voltamos na noite passada

com Perdição. — A maioria pensa que ainda estamos em Tora. É mais seguro

que continuem a pensar assim, por enquanto. Você concorda em ficar escondida

enquanto eu estiver fora? Minha mãe vai cuidar de suas refeições.

Marilen ergueu os olhos e encontrou a expressão ansiosa de Lief.

— Não se preocupe comigo, Lief — ela respondeu com calma. — Vou

me ocupar na biblioteca.

Lief sorriu, ocultando as suas preocupações. Ele não se lembrara da

biblioteca, porém não teve coragem de proibi-la a Marilen.

Quando a deixou, disse a si mesmo que tudo ficaria bem. Os guardas não

permitiriam que Marilen chegasse ao saguão proibido. E certamente poderia

confiar em Josef para manter a presença dela em segredo.

E, quanto a Ranesh? Novas dúvidas o invadiram, mas Lief se obrigou a

expulsá-las e desceu apressadamente as escadas.

Ele se aproximava da cozinha onde combinara encontrar Barda, quando

ouviu um grito abafado. Apressou o passo e, quando abriu a porta, uma visão

atordoante o esperava.

Barda segurava Jinks pelo colarinho e o sacudia. O homenzinho, vestindo

uma camisola vermelha, a boca lambuzada de geléia, uivava e tentava chutar as

pernas do homenzarrão.

— Você sabia que eles haviam partido, seu verme miserável! — Barda

trovejava. — E mesmo assim não disse nada!

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— Por acaso, sou o vigia de Glock? — guinchou Jinks. — Ele é velho e

feio o suficiente para cuidar de si mesmo. E quanto à criatura de olhos verdes

com quem ele saiu...

O tom de sua voz transformou-se num grito agudo quando Barda o

ergueu com um gesto violento, quase o estrangulando.

— Barda, ponha-o no chão! — Lief implorou. — Ele vai acordar todo o

palácio!

Barda virou-se com um movimento súbito, carregando Jinks com ele. Os

olhos de Jinks se arregalaram.

— Eu não sabia que estava em casa, majestade! — o homenzinho

disparou. — Mande esse monstro parar, eu lhe imploro! Ele enlouqueceu!

— Posso ficar ainda mais louco que isso, Jinks! — Barda grunhiu. —

Não me tente. Você gostaria de explicar “a sua majestade” por que estava

roubando comida enquanto o restante de nós apertamos os cintos e comemos

somente a nossa justa porção?

— A minha saúde está numa situação delicada — Jinks choramingou. —

Preciso de refeições freqüentes e saborosas para manter o corpo e a alma em

ordem.

— É mesmo? — Lief indagou com frieza.

— Eu o encontrei roubando geléia — contou Barda, fitando Jinks com

desprezo. — Para se livrar dos problemas, ele acusou Glock e Jasmine de

traidores.

— Foi um grande erro da parte deles partirem para as Terras das

Sombras depois que sua majestade proibiu — Jinks choramingou para Lief. —

Ora, dividido como eu estava entre a lealdade para com eles e para com o senhor,

não é de surpreender que eu tenha ficado tonto e precisasse de um pouco de

doce.

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Barda resmungou. Lief aproximou-se de Jinks.

— Glock e Jasmine têm liberdade de ir para onde desejarem — ele

afirmou. — Só estamos preocupados com a segurança deles. Você sabe que

caminho eles tomaram?

— Eles não se preocuparam em me informar — Jinks tornou irônico,

esquecendo que deveria parecer doente.

O rosto dele se encrespou numa zombaria furiosa.

— Glock, aquele animal, não se importa com os outros! A minha aranha-

de-briga perdeu para a dele em nossa última competição e está doida por uma

revanche. Ela me manteve acordado a noite toda batendo na gaiola. Isso é

mesmo tudo de que preciso...

— Jinks! — Lief começou exasperado. Mas a voz de Barda, tensa de

ansiedade, o interrompeu.

— Glock levou a aranha com ele? — ele indagou.

— Sim. E se ele ficar fora durante semanas ou se nem voltar? O que eu...

Ele soltou um grito agudo quando Barda começou a empurrá-lo na

direção da porta.

— Para onde estamos indo? — ele gritou apavorado. — Não é para as

masmorras, certo? Foram só algumas Colheres de geléia! Majestade! Faça-o parar!

Tenha piedade!

— Fique quieto! — Barda grunhiu. — Não vou levá-lo para as

masmorras, seu idiota. Você vai se vestir e colocar a corrente em sua aranha.

Depois, vai nos acompanhar.

A jornada para as Colinas Os-Mine foi a mais estranha de que Lief

participou.

Barda segurava o lamuriento Jinks à sua frente, na sela. Jinks segurava a

ponta de uma longa e fina corrente. Na outra extremidade, correndo adiante dos

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cavalos, estava a imensa aranha de manchas marrons chamada Fury.

— Aranhas-de-briga não suportam derrotas — Barda explicou a Lief

enquanto cavalgavam. — Uma aranha derrotada não descansa enquanto não

encontrar seu oponente e o obrigar a lutar novamente. Se puder, Fury vai seguir

o cheiro da aranha de Glock até o fim do mundo. Ela é a nossa melhor chance de

rapidamente encontrar Glock... e Jasmine.

Logo ficou claro que Lief estava certo ao julgar que Jasmine se dirigia às

Colinas Os-Mine. Sem hesitação, Fury os conduzia para os picos recortados que

todos em Del temiam.

Ela caminhava tão depressa que os cavalos mal conseguiam acompanhar-

lhe o ritmo. Quando foi obrigada a parar, lutou furiosamente para prosseguir.

Durante a noite, ela batia incessantemente nas laterais da gaiola na qual

Jinks a mantinha presa enquanto dormia. Não que ele ou os companheiros

conseguissem dormir. Era realmente espantoso como uma aranha apenas,

mesmo daquele tamanho, era capaz de fazer tanto barulho.

O segundo dia levou-os às primeiras colinas baixas e rochosas. O

caminho ficou ainda mais difícil para os cavalos, e Fury puxava a corrente

quando o passo dos que a seguiam desacelerava.

— Acho melhor continuarmos a pé — sugeriu Barda quando o seu

cavalo tropeçou pela terceira vez.

— Não! — protestou Jinks. Ele se retorceu na sela, uma expressão de

temor no rosto. — Estamos em território dos Granous. Vocês não ouviram as

histórias?

— Claro! — tornou Barda sombrio. — Assim como todo mundo. É por

isso que não há trilhas nessas matas. A pé, poderemos seguir Fury com mais

segurança.

Jinks abriu a boca para protestar, mas as palavras não chegaram a ser

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proferidas. Repentinamente, um vulto cinzento com dentes pontiagudos e

amarelos à mostra surgiu de entre os arbustos diante deles, e os cavalos recuaram,

guinchando de dor e medo, lançando os atônitos cavaleiros ao chão.

Quando, lentamente, Lief voltou a si, viu que estava sentado no chão,

amarrado a uma árvore à beira de uma clareira. Algo arfava em seu rosto, o hálito

quente e malcheiroso.

Lief abriu os olhos e viu as mandíbulas sorridentes, o pêlo cinzento

manchado e o nariz negro e úmido. Desalentado, percebeu que aquele devia ser

um Granous. E havia mais deles, muitos mais, pelos sussurros e risos que ouvia

ao fundo.

A criatura que lhe enchia a visão recuou e raspou o chão. Agora, Lief

podia ver os demais, quatro deles. Todos exibiam os mesmos sorrisos malvados.

De tempos em tempos, um deles mostrava os dentes de modo desagradável.

Lief lutou para se libertar, porém logo percebeu que seria impossível.

Seus tornozelos estavam amarrados a pinos fincados no chão. Seus pulsos

estavam presos a dois pesados troncos de madeira, um de cada lado. Sua espada

ainda se encontrava na cintura, mas ele não podia alcançá-la.

Ao virar a cabeça, ele viu que Barda e Jinks estavam amarrados

exatamente da mesma maneira. Barda ainda gritava furioso. A boca de Jinks se

encontrava aberta, os olhos com uma expressão de pavor, e o que restava da

corrente de Fury pendia de seu pulso.

“A corrente da aranha certamente quebrou quando Jinks caiu”, pensou

Lief. “Ela vai alcançar Jasmine e Glock sem nós. Talvez já tenha conseguido”.

Mais uma vez, ele lutou em vão para se soltar das amarras. Eram apenas cipós,

mas tão fortes quanto uma boa corda.

— Libertem-nos, Granous, ou vai ser pior para vocês — Barda rugiu.

Os captores riram ruidosamente.

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— Vai ser pior para vocês! — imitou um deles. — Ah, estou com tanto

medo!

— Esse é o rei de Deltora! — Barda avisou, fazendo um gesto de cabeça

na direção de Lief. — Não ousem feri-lo.

— Não ligamos para reis — resmungou o primeiro Granous, que parecia

ser o líder. — Os dragões se foram. Essas colinas agora são nossas!

Ele sorriu para Lief e curvou-se zombeteiro.

— Mas, se você é um rei, você pode jogar o jogo das Vinte Perguntas

conosco. Nunca comparamos nossa inteligência com a de um rei antes.

Seus companheiros peludos sorriram, ressonaram e mostraram os dentes.

Um calafrio percorreu o corpo de Lief.

O primeiro Granous se aproximou esfregando as mãos, cujo dorso era

coberto por tufos de pêlos cinzentos. Os dedos eram finos como arame e em

suas pontas havia unhas longas, amarelas e sujas.

Lief olhava fixamente para ele com um horror fascinado. Os próprios

dedos formigavam ao imaginar aquelas mãos a agarrá-lo, os dentes pontiagudos

se aproximando...

— As regras são simples, caro rei — disse o chefe com um sorriso

horrível. — Nós fazemos a pergunta, você responde. Se a resposta estiver errada,

você paga o preço. Um dedo seu e um de cada um dos seus amigos. Certo?

Jinks começou a choramingar de modo lamentável.

Esforçando-se para manter a calma, Lief se concentrou nos pássaros que

chilreavam nas árvores que circundavam a clareira. Sem dúvida, aqueles eram os

pássaros tecelões de Os-Mine, de que ouvira falar quando criança. Os seus

famosos ninhos em forma de rede enfeitavam a copa de várias árvores.

Ele respirou fundo e sentiu o olhar de Barda sobre ele. Lief sabia que o

amigo esperava, apesar de todas as chances em contrário, que as pedras de

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Deltora pudessem ajudá-los naquele momento. O topázio que aguçava a mente, a

ametista que acalmava, o diamante que conferia força...

Ele procurava desesperadamente uma saída.

— E se eu não jogar? — Lief perguntou.

— Se você não responder depois de eu contar até vinte, você perde —

respondeu o Granous, dando de ombros — e cada um de vocês perde um dedo.

Depois, fazemos outra pergunta e assim por diante. Entendeu?

Lief entendia bem demais.

— E se eu acertar?

— Então, nenhum dedo será cortado — o monstro replicou. — E

faremos outra pergunta. Ao final de vinte questões, vocês estarão livres para

partir. — O rosto dele se abriu em outro sorriso terrível. — Se vocês puderem

— acrescentou -, pois, quando os dedos da mão acabam, passamos para os dos

pés.

Os uivos de Jinks tornaram-se ainda mais altos.

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O CHEFE DOS GRANOUS COLOCOU UMA PEQUENA TÁBUA DE MADEIRA

NO COLO DE LIEF. A TÁBUA ERA MUITO ANTIGA E MARAVILHOSAMENTE

TRABALHADA. VÁRIOS QUADRADOS DE MADEIRA, CADA QUAL EXIBINDO UMA

LETRA PINTADA, HAVIAM SIDO ARRUMADOS EM FILEIRAS.

— Onde você conseguiu isso? — Lief perguntou espantado.

— Tivemos vários visitantes antes de você, rei — o Granous riu. —

Agora, a sua primeira pergunta: quais são as únicas coisas úteis em você? A

resposta está oculta na tábua. Ela pode estar na vertical, na horizontal, da direita

para a esquerda ou vice-versa. Comece!

No mesmo instante, os demais Granous começaram a bater palmas e a

cantar.

— Vinte, dezenove, dezoito...

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Lief examinou a tábua. As letras pareciam nadar ante seus olhos. Ele

piscou, numa tentativa de aclarar a mente, à procura desesperada de um ponto de

partida.

As palavras pareciam saltar em sua direção. GÁS, DEUS, MULA, BEM.

Mas elas não conduziam a lugar algum.

Para cima, para baixo, para os lados ou todos os três...

— ...quatorze, treze, doze... — As vozes dos Granous ficavam cada vez

mais fortes.

Lief olhou para Barda desesperado. Barda, que observava a tábua e

tentava enxergar as letras a distância, balançou a cabeça. Atrás dele, Jinks, a

expressão concentrada e o rosto brilhante de suor, estava olhando algum ponto à

frente dele. Então, Lief notou uma das mãos do acrobata que se abria e fechava

rapidamente.

Jinks tentava fazer um de seus velhos truques. E, dessa vez, não era para

entreter estranhos ou para ganhar uma aposta, mas para salvar a própria vida. Ele

tentava libertar-se do que o prendia enquanto os Granous não o observavam.

Lief voltou depressa a atenção para a tábua, o coração batendo forte.

O chefe das criaturas fingiu esconder um bocejo, tapando a boca aberta

com a mão. Os dentes de aspecto maligno eram afiados como uma navalha...

afiados o bastante para cortar carne e esmigalhar ossos.

As únicas coisas úteis em você...

Uma idéia surgiu na mente de Lief. Ansiosamente, ele procurou no

quadro.

— Seis, cinco, quatro...

E, de repente, lá estava a resposta, oculta entre o grupo de letras,

enroscada como uma serpente.

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— Os dez dedos das mãos e dos pés! — Lief gritou.

A cantoria parou, transformando-se num coro de grunhidos de

desapontamento.

Lief arriscou outra olhadela para Jinks. O homenzinho conseguira libertar

a mão e, com cautela, procurava a adaga presa ao cinto.

— Você certamente se acha muito esperto, rei — disse o primeiro

Granous mal-humorado. — Veremos. Aqui está a segunda pergunta. Ouça com

atenção.

Ele cruzou as mãos sobre a barriga e recitou:

Um rei jantou com a irmã,

Um amigo e a esposa desse amigo.

Todos eram bestas ávidas

Que amavam mais a comida do que a vida.

No final restaram somente três tortas.

E nenhuma faca.

Como eles as dividiram em partes iguais

Sem brigar?

A cantoria dos números recomeçou. Lief tentou esquecer Jinks e se

concentrar nos versos.

Três tortas. Nenhuma faca. Partes iguais para quatro pessoas. Parecia

impossível! Mas ele sabia que charadas aparentemente insolúveis sempre

encerravam uma resposta simples.

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A cantoria dos Granous ficou mais intensa.

— ...DOZE, ONZE, DEZ...

— Lief! — Barda sussurrou ansioso. — Talvez um dos quatro tenha sido

morto pelos outros. O verso diz que eles gostavam de comida mais do que da

vida.

Lief sacudiu a cabeça.

— E diz também que todos receberam partes iguais — ele sussurrou em

resposta. — Todos eles. O rei, a irmã, o amigo e...

Um pensamento se formava no fundo de sua mente.

— ...CINCO, QUATRO... Barda praguejou baixinho. -...TRÈS! DOIS...

— A irmã do rei era casada com o amigo dele! — Lief gritou. — Assim

as três tortas foram distribuídas igualmente. Havia só três pessoas à mesa o

tempo todo!

Dessa vez, a cantoria foi interrompida com uivos de frustração. O chefe

dos Granous fechou a carranca quando os demais começaram a gritar para ele,

criticando a sua escolha de perguntas.

Lief deixou-se cair sentado para trás, fingindo alívio e espiou Jinks entre

as pálpebras semicerradas.

O acrobata havia sumido! Os cipós com os quais ele tinha sido amarrado

encontravam-se soltos no chão. Ele, certamente, estava rastejando entre os

arbustos atrás de Lief e Barda, a adaga pronta para cortar-lhes as cordas.

“Depressa, Jinks!”, Lief pensou. Os Granous ainda discutiam, sem

prestar atenção aos prisioneiros. Jinks nunca teria melhor oportunidade do que

aquela.

Barda respirou fundo e emitiu um som agudo. O seu olhar estava fixo

numa colina rochosa que mal podia ser vista acima das árvores do outro lado da

clareira. Lief acompanhou-lhe o olhar.

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Um pequeno vulto subia a colina com esforço. Jinks!

Longe de ficar para salvar os companheiros, o acrobata fugia o mais

depressa que podia.

De repente, um dos Granous berrou e apontou.

— Prisioneiro escapou! — ele uivou. No mesmo instante, todo o grupo

pulou para dentro dos arbustos, seguindo o cheiro do acrobata.

— Espero que o apanhem, aquele vermezinho maldito! — Barda

balbuciou, lutando com todas as forças para se livrar das cordas que o

amarravam. — Como ele pôde nos deixar aqui?

Um pássaro tecelão desceu voando da árvore sobre Barda e pousou no

tronco ao qual sua mão direita estava presa. Ele inclinou a cabeça para o lado e

olhou-o com os olhinhos negros brilhantes.

O pássaro fez um movimento com a cabeça, parecendo satisfeito, então

pulou no pulso de Barda e começou a bicar o cipó.

— Lief! — Barda sussurrou atônito. — Olhe!

Os nós estavam se soltando! O bico comprido e hábil do pássaro fazia

tudo o que Barda, com toda a sua força, não conseguira.

Em instantes, a mão direita do homem estava livre. O pássaro começou a

bicar os nós que prendiam Barda à árvore enquanto este cortava as demais cordas

com a espada.

Ele se ergueu com o corpo dolorido e cambaleou até onde Lief se

encontrava a fim de libertá-lo. Em seguida, com o tecelão esvoaçando sobre eles,

ambos deixaram a clareira aos tropeções e se embrenharam entre os arbustos.

O pássaro continuou a voar depressa, claramente esperando que os

homens o seguissem. Mesmo quando o caminho se transformou numa subida

íngreme, ele não diminuiu o ritmo e assobiava impaciente sempre que os

companheiros paravam para respirar melhor.

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Finalmente, eles chegaram ao topo da colina e desabaram no chão

ofegantes. O ar estava tomado pelo canto dos pássaros e, quando Lief ergueu a

cabeça, deu-se conta do motivo.

Mais abaixo, não muito longe, havia um espesso grupo de copas de

árvores cercadas pelos picos de outras colinas cinzentas. Milhares de pássaros

teciam ativamente seus ninhos ou alimentavam-se das frutas silvestres amarelas

que cobriam as árvores.

O guia de Lief e Barda disparou ao redor de suas cabeças, chamando-os

com insistência.

“É tolice pensar que o pássaro está nos guiando até Jasmine”, Lief disse a

si mesmo quando o acompanharam para o outro lado da colina. “Jasmine está à

procura de um vale, não de uma floresta no alto de uma montanha.”

Mas a esperança ainda estava viva quando ele seguiu Barda por entre as

árvores, os pés mergulhando fundo no espesso tapete formado pelas folhas em

decomposição que cobriam o solo.

Então ele viu, imediatamente à frente, dúzias de pássaros esvoaçando ao

redor de um pequeno arbusto que balançava com violência de um lado a outro

sem razão aparente. O tecelão voou rapidamente para o local.

E ali, a corrente presa aos galhos, estava Fury.

A aranha furiosa se retorcia e puxava, enquanto tentava picar quem se

aproximasse. A corrente que a prendia enredara-se no arbusto e prendia-lhe os

movimentos.

Lief disfarçou o seu desapontamento. Parecia que o tecelão acreditava

que uma boa ação merecia outra. Ele os havia libertado e agora queria que eles

livrassem a sua floresta do visitante indesejado.

Em pouco tempo, Barda conseguiu soltar a corrente. No instante em que

Fury sentiu-a afrouxar, fez um movimento violento para a frente e quase o

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derrubou. Lief sentiu a esperança renascer.

— Ela ainda está seguindo o cheiro! — berrou Lief, para ser ouvido

apesar dos gritos animados dos pássaros. — A aranha de Glock deve ter passado

por aqui.

Com palavras de agradecimento para o feliz tecelão, eles mergulharam na

floresta atrás de Fury.

À medida que se embrenhavam entre as árvores, a floresta ficava mais

escura e silenciosa. As únicas criaturas vivas que encontravam eram mariposas

gordas e douradas que esvoaçavam às cegas na luz difusa, como raios de sol

perdidos.

Durante um longo tempo, Fury correu sem vacilar e, então, parou

bruscamente. Ergueu-se nas patas traseiras, as pinças batendo uma contra a

outra, as patas dianteiras paradas no ar.

— O que ela está fazendo? — sussurrou Lief.

Ele e Barda avançaram cautelosamente. Muitas das imensas mariposas

amarelas esvoaçavam junto do chão imediatamente à frente de Fury.

— Ela deve estar com fome — Barda arriscou.

Fury pousou as patas dianteiras e começou a rastejar na direção dos

insetos. Ela quase as alcançara quando Lief notou algo estranho.

Havia mais mariposas do que antes e, no entanto, nenhuma das recém-

chegadas pousara para reunir-se às demais.

Então, ele se deu conta do que estava acontecendo. As mariposas

flutuavam ao redor de um buraco no chão. Mais mariposas saíam dele a cada

instante.

— Elas devem estar pondo ovos ali — Barda murmurou. Logo em

seguida, ele gritou aborrecido quando Fury repentinamente deu um salto para a

frente e entrou no buraco, desaparecendo em suas profundezas.

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As mariposas se espalharam, saindo do caminho. Barda puxou a corrente

da aranha em vão, praguejando e ordenando que voltasse. Mas o coração de Lief

saltava acelerado, quando ele se jogou no chão, afastou as pilhas de folhas que se

encontravam ao redor do buraco e espiou para dentro.

Quando ergueu a cabeça, os seus olhos brilhavam.

— Barda! — ele exclamou. — Barda, você não vai acreditar nisso! E, sem

mais palavras, ele atirou as pernas no buraco e seguiu

Fury.

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BARDA SE INCLINOU SOBRE O BURACO, RESMUNGANDO FURIOSO. MAS

LIEF, QUE DESAPARECIA RAPIDAMENTE NA ESCURIDÃO, MAL TEVE TEMPO DE

GRITAR PARA QUE O SEGUISSE. ESTAVA CLARO QUE FURY NÃO TINHA A

INTENÇÃO DE VOLTAR PARA A SUPERFÍCIE, E A CORRENTE PRESA NO PULSO DE

BARDA ERA PUXADA COM VIOLÊNCIA.

Havia somente uma coisa a fazer. Barda entrou no buraco, praguejando.

O que o garoto estava fazendo? O que ele vira naquela cova malcheirosa?

Terra e folhas em estado de decomposição cobriam o rosto de Barda

enquanto ele se embrenhava no buraco, segurando-se às raízes das árvores que

formavam uma rede nas paredes da cavidade. As suas mãos doíam e, ao olhar

para cima, pôde ver somente uma leve réstia de luz.

— Cuidado! — Barda ouviu a voz abafada de Lief.

— Até parece que você tem condições de me dar conselhos — Barda

replicou.

Logo em seguida, um dos pés de Barda atingiu o espaço vazio e ele

esperneou à procura de apoio. Algo lhe agarrou os tornozelos, e ele gritou.

— Eu peguei você! — Lief avisou. — Espere!

Com alívio, Barda sentiu os pés sendo guiados para uma superfície firme.

Lentamente, ele se abaixou e saiu do túnel.

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A primeira coisa que viu foi o rosto de Lief tomado pelo entusiasmo e

sujo de terra. Em seguida, olhou para baixo e o que viu o espantou.

Diante dele, abria-se um amplo espaço cheio de milhares de enormes

troncos cinzentos que se estendiam do chão ao teto. Um riacho gorgolejante

cercado de samambaias claras abria caminho entre eles e desaparecia na

escuridão.

Quando se deu conta do que via, o seu espanto foi ainda maior.

— Ora, são árvores gigantes! — ele murmurou. — Estamos numa

floresta. Uma floresta debaixo de outra floresta. Como pode ser?

— Acho que isso é culpa dos pássaros tecelões — Lief conjeturou,

tocando a rede entrelaçada de galhos e trepadeiras acima de sua cabeça.

— Antes eles viviam nas copas destas árvores, tecendo seus ninhos e se

alimentando de frutas silvestres. Com o passar do tempo, a cobertura ficou tão

espessa e emaranhada que ficou quase compacta. As frutas que os pássaros

deixavam cair não chegavam até o chão e ficavam presas nos velhos ninhos e nos

galhos.

— E então as sementes brotaram regadas pela chuva, e novas árvores

cresceram em cima das antigas — Barda concluiu. — E depois de centenas de

anos...

— Depois de centenas de anos... — Lief terminou por ele — ... não

restou mais sinal da velha floresta. Nenhum sinal do vale em que crescera.

Somente as árvores, as mariposas e os pássaros lá fora conheciam o segredo.

Barda sentiu que Fury puxava novamente a corrente. Ela desceu por uma

árvore até onde pôde e agora estava agitada e frustrada por não poder prosseguir.

— Ainda não sabemos se Jasmine e Glock estão aqui ou se é somente a

aranha de Glock.

— O que pássaros e árvores sabem Jasmine descobre bem depressa —

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tornou Lief sorrindo. — Ela e Glock encontraram este lugar, não tenho dúvidas.

Venha!

Ele apontou e ali, amarrada ao tronco de uma árvore e pendendo quase

até o chão, estava uma corda.

Não demorou muito para que Lief e Barda chegassem ao chão com a

ajuda da corda, mas até mesmo essa pequena demora fez com que se distraíssem,

e Fury, assim que sentiu que estava livre, correu ao longo do córrego.

Dessa vez, Lief e Barda mal precisaram que ela lhes mostrasse o

caminho. O chão estava quase que totalmente coberto por frágeis cogumelos

brancos e samambaias quebradiças. Os rastros de duas pessoas eram bem

visíveis: um par de pegadas grandes e pesadas e outro de pegadas menores e mais

leves.

O ar estava dominado pelo cheiro de terra e húmus. Não se ouvia

nenhum som exceto o gorgolejar do córrego. As árvores se erguiam silenciosas e

assustadoras ao redor deles, os troncos cobertos de línguas de cogumelos

amarelos dos quais pendiam amontoados de gordas lagartas que se contorciam.

Era evidente que as mariposas da floresta acima usavam o vale oculto como um

lugar seguro para a reprodução.

Vez ou outra, Lief ou Barda chamava o nome de Jasmine, mas nenhum

grito de resposta chegou aos ouvidos deles. Lentamente, uma sensação de pavor

começou a se formar dentro de Lief. Teriam chegado tarde demais? Palavras da

A garota dos cabelos dourados ecoavam-lhe na mente.

Ela correu para o fundo da caverna do dragão e para as profundezas da terra, para as

cavernas onde viviam os duendes...

— Os dragões foram extintos em Deltora há centenas de anos — Barda

afirmou, como que lendo a mente de Lief. — Se existe uma toca de dragão neste

vale, está vazia. De outro modo, a floresta nunca teria sido coberta. O dragão

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teria mantido a cobertura aberta ao sair voando todos os dias para caçar.

— E os duendes? — Lief balbuciou. — Eles também foram extintos?

— Se é que existiram — Barda retrucou. — Minha mãe costumava

contar a história de sete duendes que viviam nos campos ao norte de Del. Mas

ela sempre começava com “Era uma vez”, como nos contos de fadas.

— Ouvi Glock dizer que um de seus ancestrais lutou e matou um duende

— Lief contou.

— Glock diz muitas coisas — Barda replicou.

Eles contornaram uma curva do riacho e viram adiante um penhasco que

se erguia entre as árvores, como uma parede. O riacho terminava num pequeno

lago profundo aos seus pés.

— Chegamos à borda da floresta — Barda sussurrou. — Esta deve ser a

base de uma das colinas que vimos quando olhamos para baixo pelo outro lado.

Lief assentiu, a pele formigando quando viu que as pegadas se afastavam

do córrego e conduziam para dentro de uma caverna ampla e escura no

penhasco.

Fury disparou adiante deles enquanto eles se esgueiraram para a entrada

da caverna rodeada por muitas samambaias, o que a fazia parecer uma enorme

boca aberta e sem dentes. Em seu interior, estava escuro como a noite e

silencioso como um túmulo.

— Lief — Barda sussurrou. — O rubi...

Com relutância, Lief puxou a capa para o lado e descobriu o cinturão

com as pedras preciosas. O vermelho-vivo do rubi parecia só um pouco mais

fraco.

— Se houver perigo, não é grande — Barda disse visivelmente relaxado.

— Mesmo assim, acho que devemos tomar cuidado — Lief retrucou,

molhando os lábios. — Talvez o cinturão não seja tão poderoso aqui quanto na

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superfície. E olhe para Fury.

Barda olhou para baixo. A imensa aranha estava parada, imóvel e

desconfiada a seus pés.

Eles acenderam uma tocha. Então, lado a lado, segurando as espadas, eles

entraram na caverna.

A tocha iluminava o chão à frente deles, mas uma espessa escuridão

cercava a chama quente e bruxuleante. Era como se eles flutuassem num mar

negro dentro de uma pequena bolha de luz.

Lief teve a impressão de que se movimentava num sonho. O ar era

pesado e morno. E, muito lentamente, um cheiro almiscarado se fazia sentir com

maior intensidade.

— Há algo vivo aqui dentro — ele sussurrou.

Quando ele falou, a luz iluminou algo acima deles. Algo muito grande.

Escamas de um brilho dourado em meio às sombras dançantes... dentes e

garras brancos... cauda espessa enrolada e coberta de espinhos afiados como

agulhas... asas fechadas que pareciam de couro, cobertas de teias de aranha,

arrastando-se na poeira.

Um dragão!

Um pavor profundo e antigo tomou conta de Lief, fazendo as suas

pernas tremerem. Ele ouviu Barda respirar fundo.

O dragão ficou imóvel. Apenas a tocha que bruxuleava sobre o seu corpo

enorme se movia.

— Os olhos dele estão fechados. Ele está dormindo... ou está morto —

Barda sussurrou.

— Não acho que esteja morto — Lief retrucou, lutando para se acalmar.

— Mas também não está dormindo ou teria percebido a nossa presença e

acordado. Acho que ele está sob algum tipo de feitiço.

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Fury começou a se esgueirar para a esquerda. Quando Lief e Barda a

seguiram, a luz da tocha começou a tremeluzir na parede rochosa da caverna.

Logo, eles puderam ver que havia um espaço estreito entre a parede e a cabeça

do dragão.

Então, aquele era o caminho que deveriam seguir. Fury já rastejava

obstinadamente pela passagem. Barda respirou fundo e a seguiu, olhando sempre

para a frente.

Lief começou a acompanhá-lo. Ele sabia que também deveria manter os

olhos voltados para a frente, mas não conseguiu. Ele se virou e olhou fascinado

para a cabeça terrível tão próxima que bastaria estender a mão para tocá-la. E,

enquanto os seus olhos se encontravam pregados no monstro, um grande olho

dourado se abriu.

Lief sentiu-se paralisar e a sua mente ficou vazia. Não havia medo,

esperança ou pensamentos. Havia somente o olho do dragão e a própria face

refletida na superfície espelhada — pálida, fraca e pequena, flutuando em um mar

frio e plano, dourado como o topázio do Cinturão de Deltora, repleto de

lembranças antigas.

Por um longo momento, o olho pareceu prendê-lo. Então, lentamente,

ele se fechou outra vez.

Libertado e quase desfalecendo de susto, Lief prosseguiu com dificuldade

até onde Barda esperava por ele.

— Por que parou? — Barda indagou em voz baixa. — Você está louco,

Lief, a ponto de arriscar...

Lief passou por Barda como se não o visse. A escuridão o esperava

adiante, mas era melhor do que o que havia atrás dele. Um ar frio lhe soprava no

rosto, enregelando o suor que cobria a sua testa. Tudo em que conseguia pensar

era numa forma de sair dali e de se esconder.

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Ele ouviu Barda correndo atrás dele, sentiu o amigo tentando puxá-lo

para trás. Houve outra lufada de ar frio. A tocha estremeceu e se apagou.

Lief tropeçou, endireitou o corpo e... caiu no vazio. Houve um momento

de incredulidade, seguido pela percepção de que estava caindo e que arrastava

Barda com ele, mergulhando cada vez mais fundo na escuridão.

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ÁGUA FRIA E FUNDA PUXANDO-O PARA BAIXO. SUBA! SUBA! RESPIRA!

COM OS PULMÕES QUASE EXPLODINDO, LIEF LUTOU PARA VOLTAR À SUPERFÍCIE.

ALI, ELE SE DEBATEU, ENCHENDO O PULMÃO DE AR E OLHANDO CEGAMENTE AO

REDOR ATRAVÉS DE UMA CORTINA DE ÁGUA TURVA.

— Barda! — ele gritou desesperado.

Barda... Barda... Barda... Ecos lhe respondiam, milhares de ecos chamando

e sussurrando de todos os lados.

Ele sentiu um espadanar perto dele. Tonto e aliviado, Lief ouviu Barda

ofegar e tossir.

— Barda! Estou aqui! — ele chamou, lutando para se aproximar do som.

Aqui... aqui... aqui...

Quando a vista começou a se aclarar, Lief percebeu o contorno da cabeça

de Barda, uma forma escura contra a água que se movia, como um claro líquido

dourado. Ele viu o suave brilho amarelado ao seu redor, reverberando nas

paredes de uma ampla caverna que parecia não ter começo nem fim.

Dourado, como o olho do dragão e as suas escamas. Dourado, como o

grande topázio.

Aquela era a caverna pela qual Alyss fugira séculos antes. Aquele era o

lugar que Jasmine procurava. O começo do caminho subterrâneo para as Terras

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das Sombras.

Mas o velho conto não mencionou um detalhe importante. A caverna

estava inundada e... Lief foi tomado pelo desânimo.

Jasmine não sabia nadar.

Através da confusão provocada pelo sofrimento, ele viu o braço de Barda

se estender e apanhar algo que flutuava na água ao lado dele. Por um momento

assustador, Lief imaginou ser um corpo, mas logo percebeu não passar de um

tronco de madeira.

Ele olhou para cima. O teto cintilante da caverna curvava-se bem acima

dele como um céu dourado. O buraco pelo qual ele e Barda haviam caído era

somente uma mancha escura pequena e embaçada que ele mal conseguia divisar.

Não havia como ele e Barda pudessem alcançá-la.

Barda aproximava-se dele nadando, apoiando parte do corpo no tronco.

— Isso vai nos manter flutuando pelo menos por algum tempo

— disse ele ofegante. — Até que encontremos outra saída ou...

“Ou o quê?”, Lief pensou, quando a voz do companheiro hesitou. “Até

que finalmente a madeira fique encharcada e afunde? Até que fiquemos exaustos

demais para nos segurarmos nela?”

— Talvez seja mais raso ali adiante — ele sugeriu com voz rouca.

— Vamos tentar.

Enquanto falava, Lief percebeu um movimento com o canto do olho.

Algo pequeno e escuro serpeava na direção deles na água agitada. Ele mal pôde

acreditar em seus olhos quando reconheceu o emaranhado de pernas que se

agitavam violentamente e os olhos vermelhos e zangados.

— Fury! — ele exclamou, quando a aranha alcançou o tronco. Fury saiu

da água com dificuldade, ainda carregando um pequeno pedaço de corrente. Ela

atingiu o topo da madeira e ali ficou agachada, cintilante, o retrato fiel da ira.

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Barda sacudiu a cabeça sem acreditar.

— Pensei que pelo menos tivesse me livrado de você, aranha — ele

resmungou.

Ao mesmo tempo, o aparecimento de Fury os tinha animado. Apoiados

no tronco, eles começaram a avançar lentamente.

Primeiro, eles conversaram maravilhados diante da misteriosa beleza do

lugar e até brincaram sobre o constante mau humor de Fury. Contudo, à medida

que as horas passavam, as palavras foram diminuindo até que ficaram em total

silêncio.

Era o silêncio provocado pelo frio, pela exaustão e pelo gradativo

desaparecimento da esperança. As pernas de Lief estavam dormentes. Ele não

tinha mais forças para nadar e pousou a cabeça no tronco, sentindo uma estranha

maciez esponjosa sob o rosto.

— Lief, agüente firme! Você não pode morrer...

A voz de Barda parecia vir de muito longe. Lief não conseguiu responder.

A sua mente vagava, flutuava... assim como ele flutuava naquela água cintilante.

Como o seu reflexo havia flutuado na superfície do olho do dragão...

Aos poucos, Lief saiu das profundezas de um estado de semiconsciência,

sem ter idéia de quanto tempo se passara. Ele abriu os olhos e piscou.

A luz dourada agora estava escarlate. Até o ar parecia tingido de

vermelho. Ele podia ouvir o espadanar de água e teve a sensação de estar se

movendo rapidamente.

Então, ele se deu conta de que se encontrava no fundo de um barco.

Barda estava deitado ao lado dele. E, sentadas no centro do bote, mergulhando

remos na água num ritmo acelerado, estavam duas criaturas de aspecto estranho.

Seus corpos eram pequenos, mas humanos. Provavelmente, quando se

levantassem, não seriam mais altos do que gnomos, embora fossem bem menos

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atarracados. Pareciam não ter cabelos, e as cabeças e rostos eram semelhantes aos

de cães, com longos focinhos e grandes orelhas pontudas.

A princípio, Lief imaginou que estivessem vestindo trajes vermelhos e

que a pele também fosse vermelha. Depois, percebeu que era somente uma ilusão

provocada pelo brilho escarlate. Na verdade, a pele das criaturas tinha uma

palidez mortal e uma maciez comum às criaturas rastejantes que vivem debaixo

da terra.

Lief estremeceu. Esses devem ser os duendes, as feias e maldosas

criaturas dos velhos contos, embora não tivessem a aparência que ele imaginara.

Relutante em revelar que tinha acordado, Lief observava por entre

pálpebras semicerradas, enquanto os duendes remavam em silêncio, os olhos

claros atentos à frente.

Ocorreu-lhe que eles estavam com pressa. Havia urgência em seus

movimentos e nos rostos graves. Devem ter levado algum tempo para colocar

Lief e Barda no barco. Parecia que agora eles estavam atrasados ou em algum

tipo de perigo.

Ele sempre ouvira que duendes eram criaturas malignas e, no entanto,

aqueles dois os haviam salvado de morrer afogados, mesmo que a demora viesse

a causar-lhes problemas.

Talvez a reputação dos duendes fosse falsa. Talvez os poucos deltoranos

que os tinham visto no passado tivessem ficado com medo simplesmente por

causa de sua aparência estranha.

Mas, enquanto esses pensamentos lhe invadiam a mente, Lief procurou a

espada. Ela lhe fora tomada. Virou a cabeça e constatou que a arma de Barda

também não estava na cintura dele. Esforçando-se para enxergar através da luz

avermelhada, ele percebeu o cintilar de metal aos pés das criaturas.

Ele e Barda haviam sido desarmados. Seria somente uma precaução dos

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duendes? Ou isso significava algo mais sinistro?

Um som baixo e irritante, como o de pedra raspando sobre pedra, ecoou

na caverna. Os dois duendes pararam, as orelhas estremecendo, o olhar atento.

Um deles murmurou algo para o outro e, então, os dois recomeçaram a

remar ainda mais depressa. O bater da água contra o barco ficava mais forte à

medida que a velocidade da embarcação aumentava.

O som irritante se fez ouvir novamente, seguido de um forte estrondo a

distância e, de repente, para o pavor de todos, o nariz do bote ergueu-se

violentamente e tornou a cair na água. Lief sufocou um grito quando a água fria

ergueu-se sobre as bordas e se derramou sobre ele. Barda se mexeu e gemeu.

Os duendes lançaram um olhar para eles, mas não pararam de remar um

segundo sequer. O barco subiu e caiu assustadoramente mais uma vez. E agora

Lief conseguiu ver enormes ondas de água vermelha erguendo-se ao redor deles,

claramente visíveis nos lados da embarcação e maiores a cada momento.

Era como se eles tivessem sido apanhados por uma tormenta, apesar de

não haver vento. Havia somente o som irritante e ameaçador e o ribombar surdo

cuja intensidade aumentava e que Lief agora reconhecia como sendo o som de

ondas batendo em terra firme.

Terra firme!

Ele tentou sentar-se, mas caiu para trás outra vez no momento exato em

que o barco passou por outra onda e escorregou para o outro lado. Debatendo-se

na água fria e espumante, ele se esforçou para levantar-se.

— Não se mexa! — gritou um dos duendes zangado.

Ele e o companheiro já estavam com água quase pelos joelhos, mas ainda

remavam com a mesma ferrenha concentração de antes. Enormes ondas

vermelhas elevavam-se sobre o bote por todos os lados, mas os duendes só

olhavam adiante, os longos narizes se contorcendo, os olhos claros esforçando-se

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por enxergar.

Então, quase de repente, seguiram-se um som e uma sensação que

fizeram Lief gritar de alívio. O fundo do barco raspava em terra firme.

Os duendes largaram os remos, saltaram na água e começaram a arrastar

a embarcação para longe das ondas, enquanto chamavam por ajuda.

Machucados, atordoados e trêmulos, Lief e Barda arrastaram-se e ficaram

de joelhos. Os duendes puxavam o barco para o solo enlameado, longe da água

agitada. Outros botes estavam próximos, amarrados ao que pareceram, a

princípio, árvores de formas estranhas, mas que Lief logo percebeu serem

imensos cogumelos vermelhos.

Aturdido, o rapaz olhou ao redor tentando assimilar o que via. Colinas

formadas por cogumelos vermelhos e marrons, alguns mais perto da água

quebrados ou com as raízes arrancadas pela força das ondas. Campos bem

arrumados, em que fileiras de algum tipo de plantação surgiam mais ao longe. E,

além da lama da praia, uma vila. Ondas haviam quebrado por cima do muro

baixo que a cercava, e as ruas estavam inundadas.

Vários duendes acorreram da vila, gritando aliviados e felizes. Era

evidente que os salvadores de Lief e Barda, cujos nomes pareciam ser Clef e

Azan, haviam sido ansiosamente aguardados.

Contudo, ao verem Lief e Barda, a alegria foi ainda maior, e mãos ávidas

ajudaram-nos a sair do barco.

— Levem-nos para um lugar seguro, depressa — recomendou Azan,

curvando-se para apanhar as espadas de detrás do banco.

Apertados no centro do grupo, Lief e Barda foram rapidamente levados

em direção ao vilarejo. Ao se aproximarem do muro, o som estridente se fez

ouvir novamente. Dessa vez, atingindo uma nota alta e irritante que feria os

ouvidos.

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Para surpresa de Lief, os duendes desaceleraram e os seus rostos tensos

relaxaram um pouco. Após um momento, ele percebeu que as ondas não batiam

mais contra os muros. A crise, ao que tudo indicava, havia passado. Pelo menos,

por enquanto.

Eles entraram na vila e começaram a chapinhar pelas ruas vazias e

inundadas cercadas de moradias.

As casas eram todas vermelho-escuras ou marrons. Muitas tinham sido

danificadas pela tormenta. Em alguns casos, as portas tinham sido abertas com

violência, permitindo que a água invadisse os aposentos.

Tigelas e potes pintados de cores vivas, pequenos móveis, até camas e

roupas flutuavam na água.

Clef espiava com expressão zangada de um lado e de outro, enquanto

percorriam as ruas.

— Isso é pior do que jamais vi! — ele grunhiu afinal. — Por que Worron

não deu início à Oferenda?

— Não houve tempo — o duende ao seu lado respondeu nervosamente.

— Tínhamos de recomeçar a cerimônia de preparação para o novo Presente e ela

ainda não foi completada.

— O que isso importa? — retrucou Azan. — Aquele último chamado foi

o aviso final. Cerimônias são mais importantes do que nossas vidas?

Barda soltou uma exclamação abafada e Lief olhou para ele rapidamente.

Mas Barda não estivera ouvindo. Ele estava olhando acima das cabeças

dos demais duendes para um espaço aberto na extremidade da vila, onde uma

multidão havia se reunido.

No centro do espaço, claramente visível quando a multidão se adiantou

para cumprimentar os recém-chegados, havia uma jaula sustentada por uma

parede alta e cercada por um complicado arranjo de pedras vermelhas.

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E, presos em seu interior, as mãos amarradas nas costas, estavam Glock e

Jasmine.

COM UM RUGIDO, BARDA DERRUBOU OS DUENDES PRÓXIMOS A ELE E SE

VIROU BRUSCAMENTE, COM A INTENÇÃO DE ABRIR CAMINHO NA DIREÇÃO DE

AZAN E AS ESPADAS. LIEF SALTOU A FIM DE AJUDÁ-LO, MAS ANTES QUE TIVESSE

DADO DOIS PASSOS, VIU-SE UM CLARÃO BRILHANTE E ELE FICOU PARALISADO

ONDE ESTAVA.

No mesmo instante, a caverna ficou mergulhada na escuridão. Trêmulo e

sem enxergar, braços e pernas recusando-se a obedecer ao seu comando, Lief

ficou indefeso enquanto a confusão reinava ao seu redor. O ambiente foi tomado

por gritos e gemidos.

Devagar, muito devagar, uma luz suave se acendeu, um leve cintilar

rubro, como a promessa do nascer do sol.

Lief começou a perceber formas e movimentos. Barda encontrava-se

rigidamente parado ao seu lado, tão imóvel quanto ele. Os duendes que haviam

sido derrubados ao chão esforçavam-se para levantar, ajudados pelos

companheiros.

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— Amarrem as criaturas depressa! — ordenou uma nova voz. — Não

posso imobilizá-los e manter a luz ao mesmo tempo.

Desalentado, Lief sentiu os braços serem puxados para trás e os pulsos,

amarrados. Os seus tornozelos também foram atados, mas frouxamente, para

que pudesse andar. Ele viu que Barda recebia o mesmo tratamento.

— Por que eles não foram amarrados antes, Clef? — indagou a nova voz

irritada. — Vocês deveriam ter imaginado que os Cabelos Longos lutariam ao ver

o Presente.

— Como eles puderam vê-lo a uma distância tão grande? — Clef

resmungou. — Eles têm olhos mágicos?

— Se você tivesse ouvido quando as velhas histórias foram contadas,

garoto, saberia que Cabelos Longos possui uma visão excelente — respondeu o

outro zangado. — Você colocou a todos nós em perigo com o seu descuido.

— E você, Worron, nos colocou em perigo com o seu atraso! — Clef

retorquiu furioso. — A Oferenda deveria ter ocorrido há muito tempo. Azan e

eu lutamos por nossas vidas no mar enquanto você ficou aqui sem fazer nada,

desafiando a ira do Medo e permitindo que a vila fosse...

— Não tente desviar a atenção de sua falha! — interrompeu o duende de

nome Worron. — E se você não me respeita, Clef, pelo menos respeite minha

posição e meu título.

Clef manteve-se num silêncio mal-humorado, mas na escuridão Lief viu

os lábios dele se retorcerem numa expressão de desprezo.

Worron aguardou um momento e, então, ergueu a voz novamente.

— Agora vou libertar os Cabelos Compridos para que possamos ter mais

luz — ele avisou. — Segurem-nos com firmeza.

Lentamente, a caverna se iluminou e Lief sentiu os braços e pernas

formigarem à medida que recuperava os movimentos. Alguém o agarrou por trás

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pelos ombros e o virou. Barda foi colocado ao seu lado.

Parado diante deles, encontrava-se um duende muito enrugado, que

vestia uma longa túnica escarlate e um chapéu alto cravejado de pedras

vermelhas. Ao que tudo indicava, aquele era Worron.

Worron inclinou-se para a frente a fim de ver melhor os prisioneiros e,

então, se retraiu de repente, tremendo levemente e franzindo o nariz. Estava

claro que ele tinha achado Lief e Barda extremamente feios e de cheiro

desagradável.

— Traga-os para a Baía das Oferendas — ele ordenou. -A cerimônia

deve continuar imediatamente. O Medo está ficando impaciente.

Com um farfalhar da túnica, ele se virou e começou a voltar mancando

para o espaço aberto.

Empurrados pelas costas, os braços agarrados com força, Lief e Barda

caminharam atrás dele com dificuldade.

Parecendo minúscula ao lado da imensa figura de Glock, que se

encontrava atrás dela, Jasmine pressionou o rosto contra as barras da jaula. O

coração de Lief pareceu dar voltas em seu peito.

Kree estava pousado no ombro de Jasmine, enquanto Filli gemia

escondido em sua gola. Os cabelos de Jasmine estavam úmidos e emaranhados.

A sua aparência era a mesma de quando Lief a vira pela primeira vez nas

Florestas do Silêncio.

Mas naquela época ela era livre. Era doloroso vê-la aprisionada.

Jasmine lançou-lhes um olhar exasperado quando eles alcançaram a jaula.

Era evidente que ela mal conseguia acreditar no que via.

— Lief! Barda! O que estão fazendo aqui? — ela disparou. -Como...

— Silêncio! — berrou Worron. Ele abriu a porta da jaula e acenou com

impaciência para que Lief e Barda fossem empurrados para dentro.

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— O que está fazendo? — gritou Clef zangado quando a ordem foi

obedecida. — Certamente, você não pretende usar todos os Cabelos Compridos

em uma Oferenda!

— Mas claro que sim — Worron respondeu. Ele olhou para baixo,

estalou a língua numa demonstração de aborrecimento e curvou-se para

substituir algumas das pedras vermelhas que haviam saído do lugar.

— Mas isso é loucura! — Azan grunhiu, abrindo caminho entre a

multidão a fim de ficar ao lado de Clef. — O Medo exige apenas um Presente

por ano. Se guardarmos três dessas criaturas para o futuro, o nosso povo não vai

ter de tirar a sorte por mais três oferendas.

Muitos duendes assentiram e murmuraram em concordância. Worron

balançou a cabeça com desdém.

— Não podemos manter Cabelos Compridos com segurança. Eles são

tão malvados quanto feios. Além disso, se o Medo ficar satisfeito, talvez ele não

exija outra Oferenda por um bom tempo.

— É mais provável que no futuro ele queira quatro presentes em vez de

um! — Clef gritou.

Murmúrios de descontentamento começaram, enquanto Worron

continuava a ajeitar as pedras, sem se incomodar em responder.

— Do que eles estão falando? — Lief sussurrou. — O que é o Medo?

— É a morte — Glock grunhiu.

Sem nada dizer, Jasmine se virou e acenou com a cabeça na direção de

um painel na parede que se divisava por trás da jaula. Lief sentiu um calafrio

quando viu o que estava entalhado ali.

Era a imagem de um terrível monstro do mar, com dez tentáculos

retorcidos. A besta agarrava um duende aos gritos e rasgava-o em pedaços.

— O Medo está numa caverna perto daqui, chamada A Luz — Jasmine

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murmurou. — Todos os anos, ele exige um sacrifício vivo. Se os duendes se

atrasam, ele agita a água e cria enormes ondas que inundam a ilha e destroem a

vila. Eles não ousam desafiá-lo.

Lief virou-se e horrorizado observou a multidão que murmurava reunida

em torno da jaula. Ele viu Worron endireitar o corpo, erguer as mãos e depois

pressioná-las contra os lábios. O povo fez silêncio imediatamente.

Movendo as mãos lentamente para a frente, para que as pontas dos dedos

se tocassem, Worron iniciou em voz alta uma cantoria curiosa e sem palavras.

Não demorou para que os demais duendes o acompanhassem. O som se

intensificou e ganhou força, estranhamente poderoso e vibrante.

— O mais velho tira a sorte para ver quem vai ser o Presente — Glock

murmurou. — Este ano foi aquela mulher ali.

Ele apontou para uma mulher velha, curvada e enrugada que agarrava o

braço de Clef, incentivando-o a participar da cantoria. Clef franziu o cenho,

afastou-se dela e se aproximou da jaula. Balançando a cabeça, ela o seguiu.

— Ela se chama Nols. Eles a estavam preparando para a Oferenda

quando Glock e eu chegamos aqui — Jasmine acrescentou desanimada.

— Quase afogados, fomos tirados da água por um dos barcos de pesca

deles. Se Glock não tivesse arriscado a própria vida para me manter à tona, há

muito que eu teria morrido.

— Arriscar minha vida? — ele zombou. — Ora, eu poderia ter segurado

vinte iguais a você, fracote! O meu talismã não deixa que eu me afogue.

— É claro! — Jasmine retrucou secamente. — Ele vai proteger você do

Medo também?

Glock molhou os lábios e ficou em silêncio.

— Eles ficaram felizes quando nos viram — Jasmine continuou,

observando a multidão. — Pensamos que éramos bem-vindos, mas eles só

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estavam animados porque Nols é muito amada e eles encontraram dois intrusos

para tomar o lugar dela.

Ela soltou um gemido.

— Tentamos assustá-los para que nos libertassem dizendo que não

estávamos sozinhos. Não tínhamos idéia de que era verdade! Ah, por que vocês

nos seguiram?

— O que mais poderíamos fazer? — Lief respondeu bruscamente, a fim

de ocultar a dor que sentia no peito. — Você correu direto para o perigo e

arrastou Glock com você!

— Glock me obrigou a trazê-lo! — Jasmine se defendeu. — Ele ameaçou

impedir a viagem se eu não o trouxesse.

— Pensei que você sabia o que estava fazendo — Glock disparou.

— Esse foi o meu erro. Eu caí na água, a minha aranha-de-briga, que

custou cinco moedas de ouro, escapou. E agora estou para ser oferecido em

sacrifício para um monstro.

— Por que quis correr esse risco, Jasmine? — Lief suspirou. — A garota

dos cabelos dourados falava de duendes nos subterrâneos e deixou claro que eles

devem ser temidos.

Jasmine balançou a cabeça com teimosia.

— Um homem chamado Doran, o amigo dos dragões, veio até aqui pelo

menos duas vezes e para ele este era um lugar tranqüilo e maravilhoso.

— Como você pode saber disso? — Lief indagou.

— Eu li as histórias nos Anais — Jasmine esclareceu. — Depois da

primeira visita, Doran escreveu um poema sobre este povo. Depois da segunda,

ele mudou os versos para disfarçar o significado do que tinha escrito.

— Por quê? — Barda perguntou secamente.

— Você não percebe? — Jasmine exclamou. — Doran queria que o lugar

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ficasse em segredo. Ele achava que nós somos uma ameaça para os duendes, e

não o contrário.

— Então Doran era um idiota — Barda resmungou.

— Você não pode dizer isso!

Os companheiros viram a velha mulher, Nols, olhando para eles através

das barras da jaula.

— Você não deve falar mal de Doran neste lugar — ela repetiu em voz

mais baixa. — Ele foi nosso amigo em tempos passados. Antes de o Medo

aparecer.

— Saia daí, vovó — Clef murmurou, puxando-a para trás.

— Eles falaram mal de Doran — Nols reclamou. — Eu não podia deixar

isso passar.

— Doran não passa de um personagem de uma lenda — Clef disse com

impaciência. — Não importa o que eles dizem dele.

— Doran não foi uma lenda! — Nols exclamou. — Não foi Doran quem

nos disse para termos cuidado com os Cabelos Compridos e outras criaturas da

superfície? Não foi Doran quem disse que alguns deles eram servos do Senhor

das Sombras? Como soubemos disso?

— Doran era bastante real e estava certo em avisar vocês — Jasmine

disparou depressa. — Mas nós somos inimigos do Senhor das Sombras, e não

seus amigos.

Surpresos, o jovem e a velha viraram-se para olhar para ela.

— Estamos aqui somente para encontrar o caminho secreto para as

Terras das Sombras — Jasmine continuou apressada. — Muitos de nosso povo,

nossos entes queridos, foram aprisionados pelo Senhor das Sombras. Precisamos

chegar até eles e salvá-los. Precisamos! Antes que seja tarde demais. — A voz de

Jasmine tremeu quando ela disse as últimas palavras.

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Lief e Barda olharam para ela, rapidamente, surpresos pelo desespero em

sua voz. Jasmine sempre fora determinada em libertar escravos, mas esse forte

sentimento parecia muito mais pessoal. E por que ela tinha dito “antes que seja

tarde demais”?

A expressão no rosto enrugado de Nols havia mudado de raiva para algo

semelhante à compaixão.

— Se isso for verdade, a sua jornada foi totalmente em vão — ela disse,

balançando a cabeça com tristeza. — A Luz é a única saída para os mares

distantes e ela foi fechada pelo Medo.

Jasmine curvou a cabeça e mordeu o lábio. Nesse mesmo instante, a

cantoria ao fundo atingiu o seu ponto culminante e em seguida desapareceu aos

poucos.

— Clef! Nols! — Worron chamou com rispidez. -Voltem! A Oferenda já

vai começar.

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CLEF TOMOU O BRAÇO DA AVÓ E PUXOU-A COM DELICADEZA. NO MESMO

INSTANTE, O PAINEL ENTALHADO ATRÁS DA JAULA COMEÇOU A DESLIZAR PARA O

LADO, SEM FAZER RUÍDO.

Pela fresta, os prisioneiros puderam ver uma estreita faixa de areia e um

trecho de água escarlate. Do outro lado da água, a caverna terminava numa

parede natural de rocha alta e inclinada que exibia um brilho avermelhado. Na

rocha, exatamente na direção da jaula, abria-se a entrada para uma gruta.

Cordas presas ao topo da gruta estendiam-se ao longo da água e levavam

diretamente à jaula. Lief viu horrorizado que vários integrantes da multidão

seguravam uma das cordas. A jaula balançou e começou a se mover na água.

— Parem! — Lief gritou. — Podemos ajudar vocês! Usem-nos para

destruir o Medo, e não para alimentá-lo.

Os duendes que puxavam a corda hesitaram.

— Não dêem ouvidos ao que Cabelos Compridos está dizendo! —

Worron vociferou. — A cerimônia precisa continuar!

A jaula deu um solavanco e começou a deslizar outra vez.

— Somos guerreiros! — Lief gritou. — Juntos derrotamos muitos

monstros, alguns deles, servos do Senhor das Sombras. Libertem-nos, devolvam

as nossas armas e livraremos vocês do Medo para sempre!

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A jaula parou novamente de se mover. Os duendes que a estavam

puxando começaram a discutir em voz baixa.

— Acho que devemos deixá-los tentar! — opinou Azan em meio à

multidão. — Eles são Cabelos Compridos... altos, fortes e habilidosos lutadores.

As armas deles são de aço. Se eles puderem destruir o Medo... pensem no que

isso significaria para nós.

— Não! — O rosto de Worron estava retorcido pela raiva. — Você está

louco? Se libertarmos os Cabelos Compridos, eles vão se voltar contra nós, e o

poder não é forte o bastante para imobilizar todos eles.

— Não vamos ferir vocês, nós prometemos! — Barda garantiu e apontou

para Lief. — Este é o rei de Deltora. O cinturão mágico que ele usa é a prova

disso. Doran não lhes contou histórias sobre o seu poder?

Muitos na multidão adiantaram-se curiosos quando Lief afastou a capa a

fim de mostrar o cinturão. Era evidente que eles tinham ouvido falar do Cinturão

de Deltora.

Os olhos de Worron se estreitaram com desconfiança quando ele

também espiou pelas barras da jaula.

— Parece com o cinturão das histórias — ele disse devagar. — Mas não

vejo nenhuma magia nele.

— Talvez os seus olhos fracos não mereçam ver, duende! — Glock

grunhiu, ignorando os esforços de Barda para fazer com que ficasse quieto.

Lief foi invadido pelo desânimo ao ver Worron se afastar com a

expressão dura.

— Vocês viram? — Worron gritou, voltando-se para a multidão. —

Cabelos Compridos mentem e enganam com a mesma facilidade com que

respiram. Vocês ouviram o que um deles disse a meu respeito? Isso não lembra a

vocês quando Cabelos Compridos mataram os traidores que vieram em busca do

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sol há muito tempo, chamando-os de “duendes” para justificar a matança?

— Se vocês não são duendes, o que são então? — Glock retrucou em

tom zombeteiro.

— Não somos mentirosos, Worron! — Jasmine bradou desesperada para

desfazer os danos causados por Glock. — Vamos cumprir a nossa palavra.

Temos um bom motivo para fazer isso. Precisamos passar pela Luz. Precisamos

chegar ao outro lado. E, para isso, precisamos enfrentar o Medo de qualquer

maneira.

— Acho que ela está falando a verdade — argumentou Nols. Quando as

cabeças se voltaram em sua direção, ela ergueu o queixo e continuou com mais

veemência. — Não importa o que você diga, Worron, não podemos dar as costas

à oportunidade de nos livrar do Medo. Talvez nunca mais tenhamos essa chance.

— E se os Cabelos Compridos nos traírem? — resmungou Worron.

— Se eles correrem, roubarem nossos barcos e partirem para o mar? E a

Oferenda? Já recebemos o aviso final.

Nols olhou para ele com orgulho.

— Eu fui o Presente escolhido antes de os estranhos chegarem. Se eles

nos falharem, tomarei o lugar deles na jaula.

— Se Nols está disposta a confiar neles, eu vou fazer o mesmo! —

bradou uma voz aguda na multidão. Muitas outras vozes a seguiram.

Mas Worron balançou a cabeça, a expressão preocupada.

— O Medo não pode ser destruído — ele afirmou, cruzando as mãos.

— O sacrifício que ele exige é injusto, mas o sofrimento faz parte da

vida. E, se A Luz está fechada, tanto melhor. Não queremos saber quem vive do

outro lado.

— Agora chegamos ao ponto! — gritou Clef de modo apaixonado.

— Uma morte ou uma centena não faz diferença para você, Worron.

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Contanto que nada mude.

Ele correu para a jaula e começou a abrir a tranca.

— Pare! — Worron bradou irado. — Ele ergueu a mão. Houve um

clarão, a luz diminuiu e Clef foi imobilizado.

Seguiu-se um momento de silêncio tenso. Então, Nols caminhou devagar

para o lado do neto.

— Liberte-o, Worron — ela pediu com calma. — Ou vamos tirar o

poder que demos a você.

— Vocês não podem... — Worron retrucou furioso.

— Podemos — Nols retrucou. — Podemos e é o que vamos fazer.

Emudecido pela raiva, os olhos de Worron percorreram a multidão.

Ele não notou ali nenhum sinal de apoio. Ao contrário, ele viu raiva,

determinação e... esperança.

Zangado, ergueu a mão novamente. A luz voltou ao normal, Clef

cambaleou um pouco, mexeu o corpo e sem dizer palavra começou a dar atenção

à fechadura da porta da jaula.

Momentos depois a porta estava aberta. Um por um, Lief, Barda, Jasmine

e Glock saíram para a liberdade. Eles estenderam as mãos e as pernas aliviados,

quando Clef e Azan cortaram as cordas que os prendiam. Outros duendes lhes

trouxeram as armas.

— Agora, veremos — resmungou Worron bem afastado.

— Acho que vou aquecer a minha espada nele antes de partirmos —

Glock murmurou, flexionando as mãos enrijecidas.

— Guarde a espada para a besta! — Jasmine disparou. Ela avaliou a

distância para a gruta com um golpe de vista. — Como podemos chegar lá?

— Tenho um plano — Lief começou. — A jaula...

— Sei o que está pensando e concordo — Barda interrompeu. — Mas

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você não vai participar, Lief. Você vai ter de esperar.

— Não posso e não vou fazer isso — Lief replicou. O pensamento de

Marilen esperando ansiosamente em casa invadiu a sua mente, mas ele o afastou.

— Faça o que Barda disse, Lief — Jasmine ajuntou. — Você não tem

escolha.

— Ou você fica em lugar seguro, ou vamos levá-lo para lá — Glock

grunhiu. — Você precisa ficar protegido.

— É tarde demais para isso! — Lief exclamou. — Agora, ninguém está

seguro aqui. Se não conseguirmos matar o Medo, ele vai destruir a vila. E não há

como sair desta caverna.

Clef, Nols e Azan os fitavam ansiosos e se aproximaram.

— Por favor, não esperem mais — Clef murmurou. — O Medo vai se

cansar de esperar a qualquer momento.

Ainda assim, os companheiros hesitaram. Lief os olhava desafiador.

Kree grasnou e bateu as asas. Jasmine olhou para cima atenta.

— A coisa na caverna está se mexendo — ela avisou.

Os duendes, porém, já tinham percebido o movimento. Eles estavam

todos tremendo e se afastando. Algumas das crianças haviam começado a chorar.

Lief saltou à frente de Barda e se atirou sobre o alto da jaula.

— Vamos, depressa! — ele ordenou.

Ao perceber que ele resolvera assumir o controle da situação, Glock,

Jasmine e Barda o seguiram.

— Peguem as cordas! — Lief gritou para Clef e Azan. — Puxem-nos até

a gruta.

Enquanto Clef e Azan corriam para cumprir sua tarefa, um som irritante

e forte se fez ouvir acima da água. Era um som baixo e cheio de ameaças. Ondas

pintalgadas de espuma começaram a surgir, vindas da gruta. A água batia contra o

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muro, entrava pelo painel aberto e atravessava a jaula.

— Estão vendo? — Worron sussurrou para Clef. — A sua rebeldia e a

insensatez de sua mãe vão ser a nossa morte.

Clef não respondeu. Com Azan, ele puxava a corda. A jaula deslizou pela

praia e atingiu a água. Alguns duendes deram vivas.

— Perdemos as nossas tochas e a gruta está às escuras — Lief gritou. —

Você pode iluminá-la?

— Worron pode — Clef informou. — Se ele quiser. Ele tem todo o

nosso poder nas mãos dele. — O duende voltou a cabeça na direção de Worron,

que estava imóvel e com um olhar furioso. — Você vai iluminar a gruta,

Worron? Se for isso o que o povo quiser?

— Não, não vou! — ele bradou com voz aguda numa demonstração de

raiva. — Como ousa me pedir isso? Vocês decidiram contrariar as minhas

ordens. Todos vocês vão morrer por causa de sua loucura. E eu não vou mexer

um dedo para ajudar vocês!

Outro grito assustador veio da gruta. A multidão se afastou aterrorizada.

Até Clef e Azan tropeçaram para trás, deixando a corda afrouxar.

— Continuem a puxar! — Nols ordenou determinada.

Clef e Azan agarraram a corda e puxaram com força. A jaula que

balançava com violência, carregando os quatro companheiros que se seguravam

às barras foi erguida acima das ondas e começou a se afastar da praia.

Lief olhou para trás. A espuma se agitava ao redor dos tornozelos de

Nols enquanto ela olhava para Worron com desprezo. A voz dela flutuou

claramente sobre a água.

— Eu o obedeci fielmente desde que foi escolhido, Worron, apesar de

minhas dúvidas. Mas agora você está mostrando quem realmente é. Você é um

tirano e um covarde! Você...

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— A língua da velha senhora é tão afiada quanto a sua, fracote — Glock

brincou com Jasmine.

— Cale a boca, Glock, ou eu vou cortá-la e jogá-la aos peixes! — Jasmine

disparou. Satisfeito por ter conseguido despertar a raiva dela, Glock soltou uma

risada e se calou.

E assim, as palavras finais de Nols chegaram aos seus ouvidos

claramente. Palavras que atingiram Lief e Barda como raios.

— Não confio mais em você, Worron — Nols bradou. — Você não

serve para liderar os Plumes. Você não tem condição de ser o Flautista.

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PERPLEXO, LIEF OLHOU EM DIREÇÃO À PRAIA E PARA A MULTIDÃO

REUNIDA ALI. DE REPENTE, ELE VIU O LOCAL COMO ERA REALMENTE: UMA ILHA.

— O mar secreto! — ele murmurou. — Nós o encontramos e não

sabíamos! E a ilha, o povo...

— Duendes — resmungou Glock.

— Não! — Lief exclamou com a voz rouca. — O povo de Pirra. Os

descendentes dos pirranos que seguiram Plume. Os proprietários do bocal da

Flauta de Pirra!

— Nunca imaginei que as ilhas ficassem em outro lugar que não o mar

aberto — Barda comentou.

— Nenhum de nós imaginou — Lief concordou. — Doran disfarçou

bem o mapa quando desenhou outro, do mar do oeste, debaixo dele. No entanto,

se tivéssemos refletido com cuidado sobre a história, poderíamos ter descoberto

a verdade.

— Do que vocês estão falando? Que verdade? — Jasmine indagou. Mas,

para seu desapontamento, nem Lief, nem Barda pareceram ouvi-la.

— Os pirranos não tinham tempo para pensar — Lief murmurou. — O

Senhor das Sombras os perseguia. Eles tinham de se esconder, desaparecer de

suas vistas, imediatamente! Assim, eles simplesmente ordenaram à terra que os

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engolisse. E, no subsolo, eles encontraram outro mundo. Um mundo de que até

mesmo o Senhor das Sombras nada sabia.

Segurando-se com uma das mãos à jaula, Lief tirou a sua cópia do mapa e

a abriu.

— As linhas não marcam as correntes marítimas, mas sim os muros das

cavernas!

— E, se isso for verdade, nós estamos... aqui — Barda mostrou um

ponto entre a ilha de Plume e um espaço no traçado que a cercava. — E o

espaço é A Luz. Se bem que não sei por que tem esse nome, já que é escuro

como a noite.

Lief enfiou o mapa de novo no bolso.

— Se tivermos êxito aqui, uma parte da Flauta de Pirra será nossa. O

povo de Plume não vai poder nos recusar isso. E o caminho estará aberto para

chegarmos às outras ilhas.

— Eu não tenho idéia do que você está falando — Jasmine interferiu

com irritação. — Mas sei que, se não tivermos êxito, vamos todos morrer.

Ela se virou para olhar a gruta que se abria diante deles. A água estava

mais calma e agora batia pacificamente contra a parede de pedra.

— O Medo ouviu ou sentiu a aproximação da jaula — ela disse. — Ele

está esperando calmamente por seu Presente.

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— Pois então vai ter uma surpresa desagradável — Glock ameaçou,

sorrindo de modo selvagem e empunhando a pesada espada.

— Talvez nós tenhamos uma surpresa — retorquiu Jasmine.

— Esse monstro pode assustar esses duendes insignificantes, mas não vai

ser páreo para um guerreiro Jalis — Glock se gabou, enchendo o peito. — Vou

cortá-lo ao meio com uma só mão.

— Acho melhor planejarmos alguma coisa, no caso de você precisar de

ajuda — Jasmine sugeriu secamente. — Barda?

— O Medo espera que o Presente venha na jaula e vai se aproximar sem

receio — Barda conjeturou. — Podemos pegá-lo de surpresa. Glock, Lief e eu

temos espadas, portanto, vamos atacar os tentáculos. Enquanto a besta estiver

distraída, você, Jasmine, vai atacar o corpo dele por trás, entendeu?

Lief e Jasmine olharam um para o outro e assentiram. Glock resmungou

impaciente.

— O Medo vive no subsolo, por isso, deve caçar com o tato, a audição

ou até com o faro, e não com a visão — Jasmine afirmou. — Mas nós

precisamos enxergar. Nós precisamos de luz.

Lief olhou para a praia por sobre o ombro. Nols e Worron ainda

discutiam. A multidão hesitava e olhava nervosamente para a gruta.

— Se Nols não conseguir convencer o povo a apoiá-la, não haverá luz —

ele disse. — Não podemos depender disso.

A gruta já se abria à frente deles. Quando a jaula entrou devagar pela

abertura, Lief sentiu uma corrente de ar no rosto: uma brisa fria e desagradável

que fez a sua pele arrepiar.

Em instantes, a luz do exterior era apenas um leve brilho. E, finalmente,

se apagou de vez. A jaula parou com um rangido na escuridão espessa e de cheiro

acre. A água rasa batia suavemente no fundo.

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O local estava muito quieto, muito calmo, muito escuro. E, na escuridão,

algo se mexeu.

— Preparar! — Barda sussurrou.

Lief prendeu a respiração. A espada em sua mão estava escorregadia de

suor.

Ouviu-se um som deslizante, como o de uma grande serpente arrastando-

se sobre as pedras, e um delicado ondular, como o de uma enguia gigante

deslizando pela água.

Mas os sons pareciam vir de todos os lados. Eles ecoavam nas paredes e

no teto da caverna, de modo que era impossível dizer de onde tinham se

originado. A escuridão estava viva com ruídos de algo que deslizava e

espadanava.

Os companheiros viraram-se para a direita e depois para a esquerda,

chocando-se uns contra os outros confusos.

— Onde está a coisa? — Glock sussurrou. — Maldita escuridão!

A jaula deu um solavanco quando algo atingiu as barras em um dos lados.

— Ali! — Barda sussurrou. Quase que imediatamente, houve uma

segunda colisão, dessa vez do outro lado.

— Ele se move depressa — grunhiu Glock. — Vamos ter de nos separar.

Eu vou...

— Não! — A voz de Jasmine parecia muito calma, mas algo em seu tom

fez com que Lief sentisse um calafrio. Ele a escutou respirar fundo.

— Acho... — ela começou.

Mas ela não conseguiu terminar o que pretendia dizer, pois nesse instante

uma luz vermelha começou a brilhar nas paredes da caverna. E, à medida que a

luz ficava mais forte, os companheiros viram o Medo.

Lief escutou Glock praguejando baixinho, viu os olhos de Jasmine

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mostrando preocupação, sentiu o corpo de Barda enrijecer e lutou contra o

próprio terror.

O Medo não estava em um dos lados da jaula. Ele não estava em cima,

nem embaixo.

Ele estava em todas as partes.

Tentáculos gigantescos, como troncos retorcidos de enormes árvores,

enchiam a caverna de uma parede a outra, do chão ao teto. De repente, a jaula

pareceu minúscula ao lado dos tentáculos manchados que se enroscavam acima e

ao redor dela.

Na ponta de cada tentáculo, viam-se montes sinuosos de fios brancos e

pegajosos armados de ganchos terríveis. Alguns deles já deslizavam suavemente

pela barras da jaula. Outros escorregavam, como vermes, sobre as paredes

gotejantes da caverna, enquanto os tentáculos dos quais saíam se retorciam e

procuravam uma posição.

E, na parede mais afastada da caverna, visível somente em lampejos,

quando os tentáculos se moviam, estava o centro do terror. Uma montanha

inchada de carne encrespada e limosa agigantava-se ali, derramando-se de uma

concha tão antiga, grossa e coberta de crostas que parecia fazer parte da própria

rocha.

Os pequenos olhos da criatura eram invisíveis. O seu hediondo bico

curvo abria-se ávido enquanto os tentáculos exploravam seus domínios. Talvez

ela já tivesse percebido que a jaula estava vazia, mas sentia que a presa estava

próxima.

Ela não tinha pressa, pois sabia que não havia como escapar.

— O plano! — Glock murmurou. — O que vamos...?

Lief sentiu uma incontrolável vontade de rir. Plano? O plano era uma

piada. O plano havia sido baseado em informações tão inadequadas que era

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totalmente inútil.

A gravura no painel... há quanto tempo tinha sido feita? Há duzentos

anos? Quinhentos? Mais?

Como não tinham previsto isso? Durante séculos, o Medo nunca fora

desafiado. Ele não fora visto, nem mesmo por suas vítimas. Ele tinha sido

conhecido somente por seus gritos assustadores e as ondas com que inundava a

terra firme.

E, na escuridão, ele cresceu.

Lief se deu conta de que Glock estava de pé e ia com dificuldade até o

tentáculo mais próximo, a espada erguida bem acima da cabeça.

— Glock, não! — Barda bradou.

Mas era tarde demais. Com um grito selvagem, Glock desceu a espada

com toda a força. A lâmina poderosa atingiu o tentáculo com o som de uma

enxada sobre a pedra e partiu-se em dois.

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GLOCK OLHOU PARA A ESPADA QUEBRADA PERPLEXO. ELE PARECIA

INCAPAZ DE ACREDITAR NO QUE HAVIA ACONTECIDO E NÃO REAGIU AO RUGIDO

TENEBROSO QUE ECOOU NA CAVERNA, TAMPOUCO SE MOVEU.

— Glock! Cuidado! — Jasmine gritou.

A ponta do tentáculo subiu feito um raio, contorcendo-se como uma

serpente. Fios brancos pegajosos agarraram Glock pelo pescoço, os ganchos

enterrando-se profundamente em sua carne. Ele caiu de joelhos, gritando de dor.

Em questão de segundos, o tentáculo enrolou-se em seu corpo e ergueu-o no ar.

Jasmine disparou para a frente.

— Não, Jasmine! — Lief gritou.

Mas Jasmine não ouviu ou não quis ouvir. Com Kree grasnando sobre

sua cabeça, ela saltou para o tentáculo que se erguia, como costumava saltar de

uma árvore para outra nas Florestas do Silêncio. Imóvel, agarrou-se ao monstro

por um instante, mas logo começou a escalar, a adaga entre os dentes, os dedos

mergulhando na superfície dura e pegajosa.

— A sua adaga vai ser inútil contra ele, Jasmine! — Barda gritou. —

Glock está perdido. Salve-se!

Mas Jasmine já passava por cima do corpo inerte de Glock e se dirigia à

ponta do tentáculo que estava curvada, os fios brancos esticados enquanto

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continuava a apertar a garganta de sua presa.

Jasmine apanhou a adaga da boca e investiu contra as raízes dos fios

brancos. Um a um, eles caíram espessos, enquanto um líquido esverdeado

borbulhava dos ferimentos.

O Medo urrou furioso. O tentáculo ferido se encrespou e Glock caiu

como uma pedra. Jasmine saltou depois dele, gritando para Kree.

Apavorados, Lief e Barda olharam para baixo e viram Jasmine surgir na

água e em seguida cambalear entre os tentáculos agitados do monstro. Ela

arrastava Glock pelo ombro, mantendo a cabeça dele fora da água.

Grasnando, Kree voou sobre a ponta do tentáculo ferido, bicando-o e

disparando para o lado quando o monstro tentava agarrá-lo. Ele não podia ter

esperanças de salvar Jasmine. Tudo o que podia fazer era tentar distrair a besta e

dar à sua dona tempo para se salvar.

Glock ainda estaria vivo? Lief não sabia dizer, mas sentiu o coração

subir-lhe à boca quando viu um pedaço de metal recortado na água agitada.

A enorme mão de Glock ainda segurava a espada, como se, vivo ou

morto, ele nunca quisesse soltá-la.

Os terríveis rugidos do Medo ecoavam pela caverna. O monstro bateu na

água, e Glock e Jasmine desapareceram num redemoinho de espuma. Ondas

enormes se ergueram e rolaram para a entrada da caverna, o que fez Lief lembrar-

se dos Plumes aguardando na praia.

Os tentáculos que cercavam a jaula apertaram-na com firmeza e as barras

se quebraram como se fossem galhos. Os que se encontravam acima de Lief e

Barda começaram a se desenrolar e deslizar para baixo, a parte interna riscada

como a barriga de uma serpente.

A luz tremeluziu e se apagou.

— Salte! — Barda ordenou.

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Lief pulou para salvar a vida enquanto a jaula se desfazia debaixo dele.

Ele atingiu a água espumante, afundou e se debateu inutilmente na água gelada, a

boca e o nariz tomados pelo gosto e pelo cheiro da besta. Pedaços da jaula

estraçalhada e os ossos de vítimas mortas há muito tempo giravam com ele na

espuma mal-cheirosa.

O ombro direito de Lief bateu contra um objeto sólido e uma dor

lancinante percorreu o seu braço. Cegamente, ele estendeu a outra mão, sentiu

uma rocha sob os dedos e conseguiu erguer-se.

Ele tinha sido atirado contra a parede da caverna. Trêmulo e ofegante, a

água chegando-lhe à cintura, ele se segurou na rocha. Os seus olhos estavam bem

fechados, mas lentamente ele percebeu uma luz inconstante brilhando contra as

suas pálpebras. De alguma forma, enquanto as ondas atingiam a sua ilha, um

pequeno grupo de Plumes havia conseguido reunir seu poder mais uma vez.

Lief obrigou-se a abrir os olhos doloridos e, através de uma névoa

vermelha tremeluzente, viu uma cena de pesadelo.

Imensos tentáculos agitados enchiam a caverna. A água se erguia e

parecia ferver. Um dos tentáculos, o que Jasmine havia atingido, torcia-se mais

violentamente que os demais, a ponta ferida movendo-se aos solavancos,

salpicando as paredes e o teto com grossas gotas de um lodo esverdeado.

Lief se retraiu e somente então percebeu que estava agarrado a uma

saliência na rocha que se projetava da parede ao nível da água.

Devagar, sentindo muita dor, ele deslizou para a saliência, levantou-se,

encostou-se à parede e começou a procurar desesperadamente algum sinal de

Jasmine, Barda ou Kree.

Lief não conseguiu ver nada além dos tentáculos furiosos que agora se

aquietavam, começando a tatear com mais paciência, mais atenção. Os fios nas

pontas dos nove braços feridos se retorciam, esticavam e pulsavam como vermes

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assustadores enquanto examinavam as paredes rochosas, vasculhavam a água

vermelho-escura. Procurando, procurando...

Quantos corpos esmagados estariam flutuando debaixo daquela

superfície coberta de espuma, esperando para ser encontrados? Glock estaria ali?

E Jasmine e Barda?

Lief fechou os olhos, lutando contra o desespero que ameaçava tomar

conta dele. Tentou afastar da mente todos os pensamentos, exceto o da

necessidade de sobreviver. Com cautela, estremecendo de dor, ele moveu o braço

ferido.

Nesse momento apenas, ele percebeu que a sua mão não estava só

adormecida, mas vazia também. Ele perdera a espada.

Tentando afastar o pânico, ele se obrigou a pensar. Estava certo de que

segurava a espada quando caiu na água. Ele conseguiu lembrar a sensação do

cabo em sua mão quando rolava na espuma.

Mas então ele se chocou contra a rocha, contra a saliência na qual estava

descansando naquele momento. Espiou a água escura manchada de espuma que

batia a seus pés. Foi tomado por náuseas quando viu a carne pálida e estriada que

girava lentamente.

Um dos tentáculos do monstro estava se retorcendo exatamente abaixo

da saliência. Se ele ainda estivesse ali...

A ponta do tentáculo subiu à superfície da água. Lief o observou com um

pavor fascinado enquanto os dedos semelhantes a vermes se esticaram na direção

da saliência, tocaram-na e começaram a deslizar para a frente.

Lief se manteve imóvel, mal ousando respirar. Se tentasse recuar, os

dedos sentiriam o movimento e atacariam, como haviam feito com Glock. No

entanto, se ele ficasse onde estava, eles logo alcançariam os seus pés, subiriam

por seus tornozelos e, assim que sentisse a carne quente...

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— Fique totalmente imóvel.

A voz era só um sussurro. Rígido, Lief virou a cabeça para a direita e viu

Barda saindo de um buraco raso na parede a somente meio metro de distância.

Barda estava molhado e enlameado. O rosto e os cabelos dele estavam

cobertos de sangue, mas a sua espada brilhou quando ele a ergueu para o alto.

Lief olhou para baixo outra vez. As pontas de suas botas estavam

cobertas por uma massa de fios que se retorciam. Um suor frio cobriu-lhe a testa.

Seu estômago revirava repugnado.

Os fios continuavam a avançar. A ponta do tentáculo de onde eles saíam

ergueu-se mais ainda da água, movendo-se ameaçadoramente...

— Vá! — Barda ordenou e atacou, a lâmina cortando os fios brancos

perto de suas raízes.

Lief arrastou-se para o lado, escorregando e deslizando na base irregular

na parede. A água debaixo da saliência começou a subir e a borbulhar como se

estivesse fervendo.

— Vá para trás da concha! — Barda gritou.

Lief olhou por sobre o ombro. Imensos rolos do tentáculo ferido

estavam se levantando, saltando da água violentamente. Aponta ferida e agitada,

espalhando limo se atirava contra a saliência onde ele estivera de pé.

Barda voltou apressado para o seu esconderijo na parede, mas ele não

estaria seguro ali por muito tempo. Nenhum lugar seria seguro dali em diante.

O monstro urrava ferozmente, seus tentáculos batendo na água mais uma

vez. A luz voltou a tremeluzir. Uma onda bateu contra Lief, fazendo-o cair de

joelhos, sacudindo o seu braço ferido, que latejava de um modo insuportável.

Ofegante, ele continuou a rastejar, metade do corpo coberto pela água.

Ele não podia voltar. Ele não podia ficar onde estava. Ele só podia seguir

em frente.

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Durante longos e agonizantes minutos ele rastejou, esperando a cada

momento ser erguido no ar. Contudo, finalmente ele percebeu que a água

debaixo de seus pés se aquietava. A saliência na rocha se alargara. Descorados,

ossos brancos formavam pilhas ao redor dele. Finalmente, ele teve coragem de

olhar para cima.

Ele chegara ao fim da caverna, o coração do Medo.

Agora ele podia ver claramente o que havia atrás da imensa massa de

tentáculos. Ele podia ver o bico cruel e cortante. Ele até podia ver os pequenos

olhos claros olhando vagamente para a frente. Ele podia ver o corpo feio e a

imensa concha semelhante a uma pedra que se erguia até perto do teto da

caverna, de um azul-claro, margeada com matéria acumulada durante séculos.

A concha havia se tornado parte da parede da caverna. O Medo não

podia se mover, mas tampouco precisava. Os seus braços poderosos eram mais

do que suficientemente compridos para alcançar todos os cantos de seu domínio.

Nenhuma presa podia escapar.

Um leve movimento na concha chamou a atenção de Lief. Ele olhou e

mal conteve um grito.

Quem fez o movimento foi Jasmine! Ela escalava os sulcos azulados de

pedra com a adaga na mão.

Como que sentindo o olhar de Lief, ela olhou para baixo. Os olhos de

ambos se encontraram e o rosto dela se iluminou num amplo sorriso.

Talvez ela tenha visto a alegria do companheiro ao constatar que estava

viva. Talvez ela tenha ficado contente por ver que ele estava bem. Mas ela não

falou: simplesmente apontou para baixo, ergueu a mão para Lief e continuou a

subir.

Com o coração aos pulos, Lief olhou para onde ela tinha apontado. Ele

viu Glock caído na concha, a espada quebrada ainda em sua mão.

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Glock respirava com dificuldade, e grandes equimoses vermelhas

marcavam o seu pescoço e o rosto. Kree encontrava-se imóvel ao lado dele,

como que a vigiá-lo.

Quando Lief ergueu os olhos outra vez, notou que Jasmine chegara ao

topo da concha. Enquanto ele observava aterrorizado, ela saltou com leveza

sobre a carne serpeante que saía dela, virou o corpo para baixo e começou a

rastejar para a frente.

Os pequenos olhos do Medo não deram sinal de que tinham percebido a

presença dela. Talvez a criatura imaginasse que ela não passava de um simples

inseto rastejando sobre seu corpo.

Às vezes deslizando, outras rastejando, Jasmine continuou até ficar

imediatamente atrás dos olhos do monstro. Com cautela, ela ergueu a adaga. Lief

ergueu-se paralisado, indefeso, incapaz de fazer qualquer coisa além de assistir à

cena.

O coração dele pareceu falhar quando Jasmine investiu com todas as suas

forças e enterrou a arma até o cabo entre os olhos da criatura. Entretanto, com

um estremecimento de pavor, ele viu os olhos vagos e claros rolarem para trás e

se fixarem no rosto de Jasmine. Ele viu a amiga olhar o monstro fixamente, sem

acreditar, quando a adaga saltou de volta à sua mão, rejeitada pela carne

borrachenta que deveria perfurar.

Então, com um movimento rápido como um raio, um tentáculo saltou

para trás, enrolou-se ao redor do corpo de Jasmine e a ergueu no ar, aos gritos.

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UM VULTO NEGRO RISCOU O AR. ERA KREE, OS OLHOS DOURADOS

DETERMINADOS E SELVAGENS. ELE NÃO TENTOU ATACAR A IMENSA ESPIRAL QUE

AGARRAVA JASMINE, MAS VOOU CORAJOSAMENTE ATÉ A PONTA DO TENTÁCULO,

INVESTINDO E RASGANDO OS DEDOS BRANCOS MUNIDOS DE GANCHOS QUE ALI

SE RETORCIAM.

Dessa vez, porém, o Medo não diminuiu a pressão e mais tentáculos

viraram-se, as pontas batendo como chicotes no ar, investindo contra o pássaro

veloz e tentando agarrar os pés pendentes de Jasmine.

Num gesto impetuoso, Lief mergulhou para a frente ciente apenas do

perigo que a amiga corria. Ele apanhou um osso da pilha sobre a rocha e, com a

mão esquerda, atirou-o com toda a força na confusão de tentáculos acima de sua

cabeça.

O osso atingiu a ponta de um dos tentáculos. Este se retorceu e se

retraiu. Com um grito selvagem, Lief atirou outro osso e mais outro.

Com o canto dos olhos, ele percebeu um vulto se movendo perto dele no

chão. Ele não podia parar para verificar quem era, pois um tentáculo dirigia-se

sinuoso, diretamente para ele. Lief jogou um osso que o atingiu na ponta. Alguns

dos fios brancos se enrolaram para trás, retorcendo-se e soltando limo.

Lief gritou triunfante. Mas o som morreu em seus lábios quando outro

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tentáculo se ergueu da água agitada e o atacou com tal rapidez que ele mal o viu

antes de ser agarrado. A cabeça de Lief girou ao ser erguido para o alto, lutando e

chutando.

A ponta do tentáculo ferido que o segurava pendia ao lado de seu ombro.

Pontas brancas agitavam-se na extremidade e soltavam um líquido viscoso.

Apesar do ferimento, conseguia segurar Lief com força. Ele podia sentir a

pressão aumentando ao redor do peito, esmagando as suas costelas, apertando e

extraindo a vida de dentro dele.

Lutando para respirar, Lief foi erguido para o centro da massa contorcida

de tentáculos e foi então que ele ouviu um grito vindo de baixo.

Lief viu, em meio ao lugar em que os tentáculos começavam, diretamente

na frente da boca aberta do monstro, a figura imensa e oscilante de Glock.

Glock arrastara-se para fora do esconderijo, ignorando a dor e o medo e

fora para o centro do terror.

Agora, curvado e cambaleando, ele erguia a espada partida.

— Então você nos faz em pedaços e joga fora os ossos! — ele rugiu. —

Você gosta de carne macia, não é mesmo? Pois, então, vamos ver o que acha

disto!

E tombou para a frente, mergulhando o braço e o que restava de sua

grande lâmina diretamente na garganta do monstro.

Um rugido borbulhante e assustador ecoou por toda a caverna. O

tentáculo que prendia Lief pareceu congelar no ar e logo começou a estremecer e

a se contorcer. Lief ouviu Kree grasnar, sentiu a pressão sobre seu corpo

afrouxar e escorregou. Seus dedos rasparam na pele enrugada e pegajosa da parte

inferior do tentáculo enquanto ele mergulhava em direção à água.

Lief voltou à superfície se debatendo e virou-se, freneticamente, tentando

ver Jasmine entre a espuma e as espirais retorcidas da besta.

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— Lief, aqui! Depressa!

Barda nadava em sua direção, segurou-o pela cintura e o puxou

descuidadamente sobre os tentáculos em direção à rocha. Lief enfraquecido mal

conseguia se mover.

— Jasmine! — ele chamou, asfixiando.

— Ela está bem! Ali, está vendo? Perto da concha.

Lief voltou a cabeça, piscando através da névoa formada pela água. Ele

viu Jasmine ajoelhada ao lado do corpo agonizante do monstro.

Os cabelos de Jasmine estavam molhados de água e sangue, mas ela

estava viva!

Filli estava encolhido em seus braços, e Kree pousado em seu ombro.

Enquanto Lief a observava, ela levantou a cabeça, fitou-o e depois olhou para

cima.

A expressão dela mudou. Ela se ergueu cambaleante.

— Lief! — ela gritou. Lief olhou para cima e, de repente, compreendeu.

Acima de sua cabeça, grandes tentáculos se curvavam para dentro e

oscilavam como grandes árvores prestes a cair.

Os tentáculos iam cair sobre eles!

Lief libertou-se de Barda com um movimento brusco e começou a nadar

pela água, apesar da dor no braço. Juntos, ele e Barda lutaram para se afastar.

Juntos, alcançaram a rocha e rastejaram para um local seguro no exato momento

em que os gigantescos tentáculos começaram a despencar, abrindo grandes

sulcos na água que batia no teto e descia novamente, atingindo a rocha e o corpo

agonizante e trêmulo do Medo.

Então, de repente, tudo ficou em silêncio.

Lief, Barda e Jasmine levantaram-se com dificuldade. Na caverna, só a

água se movia batendo de encontro às pedras. Uma luz vermelha tremeluzia

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fracamente. Os tentáculos, assumindo um tom cinza-claro, estavam semi-

submersos, como os troncos de uma imensa árvore.

Glock estava imóvel, de olhos fechados, esmagado sob a massa de carne

manchada do peito do monstro. Apenas a cabeça e os ombros estavam livres.

Os companheiros foram até ele e se ajoelharam ao seu lado.

— Glock — Lief chamou com suavidade.

Os olhos de Glock se abriram. Eles estavam enevoados, mas uma leve

chama brilhava em seu interior.

— Então ele morreu? — ele perguntou.

— Sim — Barda tornou devagar. — Você o derrotou, Glock. Com uma

só mão. Como você sempre disse que faria.

Glock assentiu lentamente.

— Isso é bom — ele respondeu. — Eu pensei... há um lugar em que a

besta não tem proteção. Um lugar. Se você puder atingi-lo... se você...

A luz da caverna aumentou lentamente. Um brilho cintilante caiu sobre o

rosto de Glock.

— Estou morrendo — ele murmurou quase admirado. — Mas isso

também é bom. Afinal, para que serve um Jalis sem o braço com que segura a

espada?

— Você vai lutar outra vez, Glock — Lief garantiu.

— Não nesta vida — ele retrucou com um sorriso zombeteiro. O olhar

dele passou para o rosto de Jasmine. — A garota sabe. Ela não mente para mim

ou para si mesma. Ela sabe que estou acabado.

Jasmine olhou para Glock. Os olhos dela queimavam com lágrimas não

derramadas, mas ela assentiu levemente com a cabeça.

— Eu a chamei de fracote mais de uma vez, garota. Mas isso... foi só

brincadeira — disse o homem agonizante com voz rouca. — Você tem o coração

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de um Jalis. Pegue o talismã do meu pescoço. Agora ele é seu. Talvez ele ajude

você.

Os olhos de Jasmine se arregalaram, mas ela não se moveu. Uma chama

de impaciência cruzou a expressão de Glock.

— Pegue! — ele balbuciou. — Pegue agora, para que eu possa vê-lo em

suas mãos.

Jasmine estendeu a mão e obedeceu.

Glock olhou para a pequena bolsa desbotada e mais uma vez a sua boca

se retorceu num sorriso.

— Talvez você pense que ele não me ajudou nem um pouco... mas

lembre-se disto: o maior desejo de um Jalis é morrer lutando por uma grande

causa. E foi o que aconteceu.

A luz na caverna ficou cada vez mais brilhante e, de repente, pareceu a

Lief que vários arco-íris começavam a dançar no interior dela. Piscando,

atordoado, ele olhou para cima.

Os seus olhos não o enganavam. Finalmente visível, atrás do corpo do

Medo, que caía lentamente, estava a boca de um túnel. Nele brilhava a luz de um

arco-íris que se misturava ao vermelho da caverna e fazia com que o próprio ar

parecesse cintilar.

— A Luz — Jasmine murmurou.

Um som fraco chegou aos ouvidos dos companheiros. O som dos

Plumes festejando animados na praia. Eles haviam visto a luz.

— Lief! — A voz de Glock estava muito baixa, e Lief se inclinou sobre

ele.

Arco-íris brincavam no rosto abatido de Glock.

— O caminho para as Terras das Sombras está aberto — ele murmurou.

— Agora... você pode encontrar o meu povo. Você pode trazê-los para casa.

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Lief assentiu. O coração dele estava tão apertado que ele não foi capaz de

falar.

— Quando os encontrar — disse o homem agonizante -, eu gostaria que

você lhes contasse a meu respeito.

— Vou contar, Glock — Lief conseguiu dizer finalmente. — Pode ter

certeza.

Glock assentiu de leve satisfeito. Então os seus olhos se fecharam e ele se

calou.

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A ILHA TINHA SIDO IMPIEDOSAMENTE ASSOLADA PELA IRA DO MEDO,

MAS OS PLUMES CANTAVAM AO LEVAR LIEF, BARDA, JASMINE E GLOCK EM SEUS

BARCOS ATÉ A PRAIA, FLUTUANDO SOBRE A ÁGUA COMO FOLHAS SECAS VARRIDAS

PELO VENTO.

E, quando os barcos aportaram, a canção ficou mais forte até que

pareceu dominar toda a caverna. As palavras ecoavam das paredes cintilantes e

rolavam em ondas de beleza sobre o mar escarlate.

Nossa terra é assolada pela desordem

Lutas ecoam através dos tempos

E as guerras podem nunca terminar

Mas aqui embaixo vivemos em paz.

Onde marés intermináveis inundam as lembranças,

A nossa prisão sem sol nos liberta.

As luzes cintilantes iluminam nossas paredes rochosas.

E dragões guardam nossos brilhantes saguões.

— Não é uma canção de morte, mas de vida — disse Jasmine com

suavidade quando as últimas notas desapareceram no ar. — Eu sabia que seria

assim.

Lief e Barda a olharam com curiosidade, mas nada disseram. O olhar dela

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estava fixo no barco que a própria Nols havia dirigido, o barco em que jazia o

corpo de Glock, envolto num tecido escarlate.

— Então, Glock vai ficar aqui — Jasmine suspirou. — Parece estranho...

— O seu amigo será reverenciado por nós — Nols garantiu, dando um

passo à frente e pousando a pequena mão no braço de Jasmine. — Ele vai ficar

com os Flautistas de Plume e nunca será esquecido.

Jasmine refletiu por um instante e então sorriu levemente.

— Glock gostaria disso — ela disse. — Ele gostaria de repousar junto

dos líderes.

— Nunca poderemos pagar a dívida que temos com ele e com vocês.

Não temos muito para oferecer, mas o que tivermos é de vocês. Barcos para a

sua jornada, comida, luz, até onde pudermos fornecê-la... — Ela parou e esperou.

Lief respirou fundo. Aquela era a oportunidade pela qual ele esperara,

mas, agora que ela se apresentava, quase temia tocar no assunto.

— Há uma coisa que somente vocês podem nos dar — ele começou

devagar. — É um tesouro de que precisamos muito... embora apenas por algum

tempo. O bocal da Flauta de Pirra.

Nols deu um passo para trás, um olhar espantado no rosto. As pessoas

atrás dela murmuraram e sussurraram.

Desalentado, Lief olhou rapidamente para Barda e Jasmine. Barda

fechara o semblante numa atitude de irada incredulidade. Jasmine, que ainda nada

sabia sobre a Flauta de Pirra, estava confusa.

— Sei que estamos pedindo muito — Lief disse, mantendo a voz firme

com dificuldade -, mas eu lhe imploro para que considerem o nosso pedido. Se

quisermos salvar o nosso povo do Senhor das Sombras, precisamos montar a

Flauta outra vez. É a única coisa que o Senhor das Sombras teme. A única coisa

que poderá nos dar tempo para...

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Nols ergueu a mão para que ele parasse de falar.

— Você não entende — ela começou, a voz trêmula. — Não é que não

queiramos lhes dar o bocal da Flauta. É que não podemos. Ele se perdeu há

muito tempo.

A explicação teve o efeito de um soco no estômago de Lief. Incapaz de

falar, ele olhou para Nols.

— Ela não se perdeu, mas foi roubada! — Worron interferiu com voz

aguda. Ele se adiantou, uma figura imponente na longa túnica vermelha e com o

chapéu escarlate que ainda não tirara. — O símbolo da liderança do Flautista foi

roubado do povo pelos Sete Traidores... os malvados que deixaram a segurança

de nossos mares pelo mundo exterior.

— Isso foi há muito tempo, quando os Plumes estavam há pouco tempo

no mundo subterrâneo — contou Nols, mais calma. — O povo naquele tempo

não estava acostumado às cavernas, como nós. Está escrito que os rebeldes

planejaram encontrar um local seguro para depois retornar e conduzir os Plumes

de volta ao sol. Mas eles nunca retornaram.

Ela suspirou.

— Doran, o amigo dos dragões, disse aos nossos ancestrais que todos

eles tinham morrido. Ele conhecia uma história antiga muitas vezes contada,

segundo ele, pelos membros de uma tribo selvagem de Cabelos Compridos

chamados Jalis, cujos ancestrais foram responsáveis pelas mortes.

— Sim. — Os olhos de Worron se estreitaram com hostilidade. — Não

há dúvidas de que os Sete Traidores foram destruídos e, com eles, o bocal da

Flauta. Assim, se a Flauta é o que vocês vieram procurar, Cabelos Compridos, a

sua jornada, o seu tempo e a vida de seu amigo foram desperdiçados.

A imagem de Glock sorrindo diante de uma caneca de cerveja veio à

mente de Lief. Glock, o último dos Jalis. De repente, os seus olhos arderam

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marejados de lágrimas, e ele rapidamente desviou o olhar.

Ele viu que Jasmine havia retirado a pequena bolsa de tecido do pescoço

e a abria. Era evidente que ela também pensava em Glock.

Lief virou-se para Worron.

— Certamente, é uma grande perda para nós que as três peças da Flauta

não possam mais ser reunidas — disse ele, esforçando-se para manter a voz

firme. — Mas o Medo está morto, Worron. Os Plumes estão livres dele.

Portanto, nada foi desperdiçado.

— É mesmo, não foi — Clef ajuntou em voz alta. — Nós...

Ele parou, olhando fixamente para algum lugar. Lief percebeu que Nols,

Worron e todos os Plumes reunidos atrás deles também não conseguiam desviar

o olhar.

Eles, porém, não estavam olhando para ele, mas, sim, para Jasmine. Ou

melhor, para o pedaço de madeira empoeirada de formato estranho que ela

segurava na palma da mão estendida.

Houve um momento de silêncio eletrizante. Então, Nols estendeu a mão

e apanhou o objeto de madeira com respeito. Devagar, ela se agachou e

mergulhou-o na água. A poeira de séculos se soltou formando uma pequena

nuvem e, quando ela se levantou, a peça em sua mão parecia brilhar: um pequeno

milagre de madeira brilhante e com estranhos desenhos entalhados.

— O bocal da Flauta de Pirra! — ela sussurrou.

A boca de Worron se abria e se fechava, como a de um peixe.

— Onde... onde...? — ele gaguejou.

— Estava com Glock o tempo todo — Jasmine afirmou com calma. —

Era parte de um talismã passado para ele pela família. Ele não tinha idéia de que

era algo mais do que um amuleto da sorte. Eu também não, até alguns momentos

atrás. E, mesmo assim, eu só suspeitava da verdade.

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Sabiamente, ela se calou. Ela queria que Glock fosse enterrado junto dos

Flautistas de Plume. Ela sabia que era melhor não admitir como os ancestrais

dele haviam se apoderado do objeto que a multidão estava ansiosa para ver.

O rosto de Nols era o retrato da alegria.

— É um milagre! — ela gritou. — O nosso tesouro nos foi devolvido.

Agora podemos pagar a nossa dívida com vocês.

Lief, observando o rosto radiante de Nols e as expressões alegres que o

rodeavam, perguntou-se como conseguira achar esse povo feio. Ele pensou

também no acaso que havia devolvido o bocal da Flauta de Pirra aos seus

verdadeiros donos.

E, finalmente, ele se perguntou se tinha sido mesmo um acaso, e não algo

diferente.

Ele se voltou para Barda, que perplexo ainda olhava fixamente para o

bocal reluzente.

— Alcançamos a nossa primeira meta, Barda — ele murmurou. — E o

caminho está aberto para a segunda. De acordo com o mapa, a ilha de Auron é

nosso próximo desafio.

Barda balançou a cabeça devagar.

— Primeiro, precisamos voltar a Del. Perdição está à nossa espera com

suprimentos, lutadores...

— Não! — Jasmine gritou furiosa. — Não podemos nos demorar mais!

O tempo está se acabando! Precisamos...

Ela se interrompeu quando Lief e Barda se voltaram para ela.

— Por que está dizendo isso, Jasmine? — Barda quis saber. Jasmine

molhou os lábios.

— Eu ouvi... eu ouvi dizer que o Senhor das Sombras vai matar os

prisioneiros. Logo.

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— Foram os pássaros que lhe contaram isso? — Lief perguntou ansioso.

Jasmine hesitou. Não gostava de mentir, mas ela não queria que Lief

soubesse que havia entrado no aposento proibido, que tinha falado com a irmã

que ele procurara manter afastada dela.

Ela sabia que não conseguiria suportar a expressão do rosto dele quando

tentasse negar ou explicar a sua manobra e a traição da confiança. Ela preferia

esquecer esse fato para poder se concentrar na tarefa que a esperava; preferia

afastar esses pensamentos agindo.

Assim, ela apertou os lábios e assentiu.

— Então, precisamos continuar... todos os três — Lief disse de imediato.

— Não! — Barda protestou. — Você, pelo menos, não pode...

— Posso, sim — Lief retrucou com firmeza. — E acho que sempre

esteve escrito que eu deveria.

— Mas você é o rei de Deltora! — Jasmine gritou. Lief estava apenas

dizendo o que ela queria que dissesse. No entanto, de repente, ela se viu tomada

pela dúvida.

Lief encontrou o olhar ansioso de Jasmine.

— Tenho pensado muito nisso — ele disse. — Eu sou o rei, mas ainda

sou Lief. Tenho de fazer o que é preciso.

— Não! — Barda discordou, mas Lief negou com a cabeça.

— Não posso ser um prisioneiro — ele justificou. — Foi isso que

aconteceu com reis e rainhas do passado, e foi a ruína deles. Não foi isso que

Adin pretendia quando criou o Cinturão de Deltora. Ele...

Ao sentir um leve toque no braço, ele se virou e viu Nols, que o fitava.

— Pedi a Azan para arrumar acomodações para vocês dormirem nas

terras altas, onde ainda está seco — Nols avisou. — O seu ferimento precisa de

cuidados e você precisa descansar. Ah, Azan! — o sorriso dela recebeu o jovem

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Plume que corria ofegante na direção dela. — Está tudo bem?

Azan balançou a cabeça, a expressão dominada pela ansiedade.

— Não! Receio que não esteja tudo bem — ele disparou. — Os únicos

aposentos secos foram tomados por dois monstros terríveis, de um tipo que

nunca vi antes.

Nols pareceu alarmada. Azan olhou tristemente para Lief, Barda e

Jasmine.

— Eles são assustadores... têm o tamanho de minha cabeça, presas

enormes, oito pernas e olhos vermelhos. E estão lutando ferozmente, como se

não quisessem parar!

Os companheiros se entreolharam.

— Acho que conhecemos esses monstros — Barda disse com relutância.

— Deixe-os conosco.

O rosto de Azan abriu-se num sorriso de alívio.

— Vou levar vocês até a casa — disse ele ansioso, partindo em disparada.

— Ah, como é bom ter heróis em nosso meio! — Nols comentou

radiante.

— De fato — Lief retrucou mal-humorado, enquanto ele, Barda e

Jasmine, com Kree esvoaçando sobre sua cabeça, seguiam Azan. — E, se

podemos derrotar o Medo, certamente podemos controlar Fury e Flash.

— Eu não teria tanta certeza — Barda balbuciou.

— O que você estava nos dizendo quando Nols nos interrompeu? —

Jasmine indagou, voltando-se para Lief.

Lief hesitou. Ele pensara novamente no que, em meio ao seu entusiasmo,

estivera prestes a dizer.

— Seja lá o que for, não importa mais — ele mentiu. — Se nós três

sobrevivemos à busca das pedras para recuperar o Cinturão de Deltora, por que

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não iríamos sobreviver a isto?

— Isto vai terminar nas Terras das Sombras — Barda tornou com

seriedade. — E tudo depende da Flauta de Pirra. Conseguimos a primeira peça

por milagre. E a segunda, e a terceira?

Lief virou-se para observar A Luz, que lançava o seu brilho sobre o mar

escarlate. Que perigos existiriam além daquela misteriosa entrada? Essa era uma

pergunta que ele não sabia responder. Mas, enquanto olhava, ouviu novamente o

chamado daquela música suave e doce.

— Elas estão esperando por nós — ele disse simplesmente. — Eu sei.

Tudo que precisamos fazer é encontrá-las.