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DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E
MAGIA...
Lief, Barda e Jasmine estão com duas partes da lendária Flauta de Pirra.
Agora eles precisam encontrar a última parte na ilha de esmeralda de Keras.
A Flauta ajudará a salvar os milhares de deltoranos escravizados nas
Terras das Sombras, pois dizem que ela é a única coisa temida pelo Senhor das
Sombras em seus próprios domínios.
Mas será possível recuperá-la? E, se for, a sua magia antiga ainda poderá
triunfar sobre os feitiços do inimigo? Ou será que os companheiros estão se
dirigindo para uma armadilha? Cheios de dúvidas, eles avançam, sabendo que,
não importa o que acontecer, a sua busca irá terminar na escuridão e no horror
das Terras das Sombras.
O CANAL ESTREITO QUE ATRAVESSAVA A ROCHA DESAPARECEU NA
ESCURIDÃO PROFUNDA, ONDE ECOAVA O SOM DA ÁGUA BATENDO NAS PEDRAS.
UMA FAIXA LARGA DE ALGAS MARINHAS AMARELAS E COR-DE-ROSA FLUTUAVA
NA ENTRADA.
Lief não precisou consultar o pequeno mapa que segurava para saber que
aquele túnel sombrio era o Caminho Proibido — o único caminho para a ilha de
Keras e a terceira parte da Flauta de Pirra. Mas, mesmo assim, ele examinou o
mapa e a flecha desenhada pelo Flautista de Auron.
O mapa tinha sido molhado, marcado e rasgado, mas, apesar de todas as
dificuldades, tinha sobrevivido. “Como nós”, Lief pensou, olhando para Jasmine
e Barda.
Os dois amigos estavam sentados muito quietos, observando a fenda
escura na rocha. Eles não tinham mais que se esforçar para enxergar através da
luz ofuscante. Os guardas de Auron que rebocavam o barco haviam ordenado
que as enguias nadassem mais devagar.
Como os barcos de Auron eram estreitos e sem espaço para que duas
pessoas se sentassem lado a lado, Barda estava sozinho no banco do meio
levando o único remo. Jasmine ia na frente levando Kree, cuja asa machucada
ainda não tinha sarado completamente, no ombro, e Filli chilreando debaixo da
gola de sua jaqueta. Lief estava no fundo.
— Não vamos poder voltar depois de entrar nesse túnel — Barda
murmurou. — Vamos ter que prestar muita atenção.
Lief concordou. Certamente Doran, o amigo dos dragões, o primeiro
explorador do mundo subterrâneo de Deltora tinha passado pelo Caminho
Proibido. Mas isso tinha acontecido centenas de anos atrás, e muitas coisas
haviam mudado desde então.
Assim que a proa do barco encostou nas primeiras algas brilhantes, os
guardas soltaram o barco e se afastaram. Somente Penn, a preservadora da
história de Auron continuou perto do bote falando suavemente com a enguia
gigante, em cujo pescoço ela estava montada.
Os guardas, vestidos com roupas de pele de animais e carregando
estranhas lanças de osso, eram selvagens e assustadores, mas não cruzavam a
barreira de algas, o antigo aviso de perigo dos aurons, a menos que o seu líder, o
Flautista, mandasse. E essa ordem não foi dada.
— Vamos dar um barco a vocês e levá-los até a fronteira de nosso
território, mas essa é toda a ajuda que podemos dar — o Flautista tinha dito a
Lief, Barda e Jasmine quando comeram a sua última refeição na pequena cabana
de Penn. — Nenhum auron entra no Caminho Proibido.
— É a nossa lei mais antiga — Penn acrescentou, ansiosa para suavizar
as palavras frias do Flautista. — Se os aurons entrarem no mar dos kerons, eles
vão atacar.
— Os plumes dizem a mesma coisa de vocês — Jasmine observou.
— Eles disseram que vocês iriam nos matar assim que nos vissem.
— Os plumes são selvagens e mentirosos — o Flautista respondeu
irritado, os olhos faiscando de raiva no rosto enrugado.
Lief e Barda olharam um para o outro arrependidos. Eles sabiam que não
tinha sentido defender os plumes. O antigo ódio entre as tribos de Pirra era forte
demais para ser apagado com os argumentos de três estranhos.
Mas Jasmine estava observando as duas aranhas de briga que dormiam
pacificamente juntas em sua grande gaiola nova. Unidas pelo medo do inimigo
comum, Flash e Fury tinham esquecido a amarga rivalidade e agora brigavam
somente de brincadeira. Como resultado, elas iam ficar com Penn, que tinha
começado a gostar muito delas, apesar de seu aspecto assustador.
— Até Flash e Fury descobriram que têm muitas coisas em comum
— Jasmine disse. — Mas os plumes, os aurons e os kerons insistem em
brigar. É difícil acreditar que antes todos moravam em Pirra.
— Isso foi há muito tempo — o Flautista murmurou. — Pirra hoje é A
Terra das Sombras, e os plumes e os kerons são os culpados. Se eles tivessem
aceitado a flautista de Auron como líder, a Flauta de Pirra nunca teria sido
dividida, e o Senhor das Sombras não teria roubado as nossas terras.
O rosto de Penn ficou sério. Ela, pelo menos, tinha o bom senso para
admitir que os seguidores de Auron tinham sido tão teimosos quanto os rivais.
Os três grupos tinham se dividido igualmente na precipitada decisão de dividir a
Flauta de Pirra.
Agora, enquanto o barco balançava suavemente nas ondas provocadas
pelo movimento das enormes enguias, Lief olhou para o rosto ansioso de Penn.
A preservadora da história tinha insistido em acompanhar o grupo até o
Caminho Proibido e levar o fogo que acenderia as suas tochas. Ela tinha estado
feliz durante a viagem pelo do mar do arco-íris, mas agora o medo estava visível
em seus olhos.
Segurando a chama para o alto, ela incentivou a sua enguia a ir até a
frente do barco e acendeu a tocha de Jasmine. Então, em silêncio, virou-se e foi
até junto de Lief.
— Até logo, Penn — Lief se despediu. — Obrigado por tudo o que fez
por nós.
— Eu não fiz nada — Penn respondeu, encostando a chama na tocha
que Lief estendia para ela. — Mas nunca vamos poder pagar o que vocês fizeram
por nós. Vou rezar por vocês... — ela curvou a cabeça, sem conseguir continuar.
— Não tenha medo — Barda disse com entusiasmo. — Nós vamos viver
para comer mais empadas de peixe com você, Penn.
— Espero que sim — ela sussurrou. — Que Auron os proteja.
Ela sussurrou uma ordem para a enguia, que nadou para trás do barco
obediente e o empurrou para a frente. O bote deslizou por cima da faixa de algas
e entrou na boca do túnel.
Imediatamente, a mente de Lief se encheu com a música suave e
insistente da Flauta de Pirra. O som era tão alto e forte que ele imaginou que
Barda e Jasmine também o escutavam. Mas a expressão do rosto deles não
revelava nada.
Ele olhou fixamente para a escuridão à sua frente. A boca dele estava
seca, e a cabeça, dominada pela música. Lief percebeu vagamente que segurava
com força a bolsa de pano que estava pendurada em seu pescoço debaixo da
camisa, onde estavam escondidos o bocal e a haste da Flauta.
O último pedaço da Flauta os chamava da escuridão...
Pare com isso! Você precisa estar atento, preparado...
Lief se obrigou a apanhar um pouco de água e jogou-a no rosto. Ele
abafou um grito quando o líquido gelado espirrou em sua pele quente.
O feitiço foi quebrado. A música desapareceu e deixou um vazio
estranho e triste em seu lugar. Lief piscou rapidamente e voltou a enxergar
melhor.
A luz diminuía rapidamente. Eles passavam depressa pelas paredes da
passagem. Lief se virou para olhar para trás e ficou surpreso ao perceber que a
entrada o túnel era apenas um pequeno ponto de luz na distância.
— O que está acontecendo? — Jasmine exclamou. — Por que estamos
indo tão depressa?
— Alguma corrente está nos puxando — Barda respondeu inquieto. —
Eu quase não estou remando e mesmo assim...
— É a Flauta — Lief conseguiu dizer. — Eu sinto...
E o barco avançou pela escuridão onde as paredes eram iluminadas
somente pela luz amarela tremeluzente das tochas.
As paredes faiscavam com as cores do arco-íris, que logo se
transformaram num verde vivo. Porém, onde as luzes das tochas não chegavam,
havia somente uma profunda penumbra.
De repente, Kree grasnou quando Jasmine se retorceu no banco e bateu
com a mão no pescoço.
— Alguma coisa caiu em cima de mim — ela exclamou.
— Pode ser uma mariposa — Barda sugeriu, concentrado em dirigir o
bote que corria pela água. — Vi algumas por aí.
Então ele também bateu no pescoço. Algo tinha caído em sua pele e
ficou grudado ali.
Lief sentiu cócegas na mão. Ele olhou para baixo e viu uma criatura
parecida com uma lesma se retorcendo sobre sua pele. Lief sacudiu a mão, mas a
criatura não se desprendeu. Assustado, percebeu que o bicho o mordia e
enterrava a cabeça em sua carne.
E estava crescendo. O seu corpo inchava enquanto Lief o observava
cheio de seu sangue.
— Sanguessugas! — ele gritou, sacudindo a mão de novo enojado. Ele
viu Kree voando do ombro de Jasmine quando ela remexia na gola da jaqueta,
tentando arrancar duas sanguessugas que estavam penduradas em seu pescoço.
Com horror, Lief notou que mais criaturas asquerosas já tinham caído nas mãos
da amiga.
— Cuidado! Em cima! — Barda gritou.
Lief olhou e congelou. O espaço acima deles estava cheio de
sanguessugas voadoras, que se aproximavam formando nuvens grossas e agitadas
na escuridão.
Desesperado, ele agitou a tocha sobre a cabeça. Dezenas de corpos
alados e pegajosos queimaram na chama, mas, mesmo assim, muitas das criaturas
conseguiram se desviar da barreira de fogo e chegar até os seus braços e mãos
para se alimentar.
E aquelas eram apenas as primeiras e foram seguidas por outras centenas
que voavam para baixo, vindas da escuridão.
— Jasmine, Barda! Abaixem-se! — Lief gritou, jogando a sua tocha na
água sem pensar. Ele tirou a capa e atirou-a sobre o bote para formar uma
cobertura.
Em instantes, os companheiros estavam deitados de bruços debaixo da
capa. A primeira nuvem de sanguessugas aterrissou na capa, atraída pelo calor
dos corpos ali escondidos e provocou um ruído semelhante ao da chuva. O ruído
aumentou e se transformou num golpear incessante, e a capa começou a afundar.
Os braços e pernas de Lief tremiam com o esforço de manter a capa no
lugar. As sanguessugas que tinham se colado nele antes de se esconder e as
poucas que conseguiram entrar no abrigo estavam penduradas como bexigas
inchadas nos pulsos e nas costas de suas mãos. Ele cerrou os dentes, lutando
contra a vontade irresistível de arrancá-las.
A capa pesada começou escorregar da beira do barco. Apavorado, Lief
puxava o tecido e tentava recolocá-la no lugar, mas algumas sanguessugas já
entravam pela pequena fresta e se colavam às suas mãos e deslizavam por baixo
das mangas de sua camisa.
A capa escorregou outra vez, e a fresta na lateral do barco ficou ainda
maior. Sanguessugas invadiram o espaço como uma avalanche.
“É o nosso fim”, Lief pensou, de repente. “Depois de tudo por que
passamos, estamos perdidos... derrotados pelas menores criaturas que já
enfrentamos.”
Se não fosse tão horrível, poderia até ser engraçado.
Mesmo enquanto as suas mãos lutavam inutilmente para fechar a fresta,
os seus pensamentos voaram até Del. Ele nunca voltaria. Os piores receios de
Marilen tinham se tornado realidade.
“No entanto, não me arrependo de nada”, Lief pensou. “Fiz o que tinha
que fazer.”
Uma paz estranha tomou conta dele e, junto com essa paz, veio a música
da Flauta de Pirra, atingindo-o com intensa doçura.
Finalmente, Lief se rendeu à música. Ele se deixou levar pelas ondas do
som e fechou os olhos.
Por esse motivo, Lief não percebeu quando, de repente, uma luz da cor
de esmeralda começou a brilhar através do tecido que cobria a sua cabeça. Ele
não notou que o som forte e insistente tinha parado. Ele não ouviu o leve
barulho da água quando o barco foi levado pelo mar verde e ondulante até a
segurança da terra firme.
QUANDO LIEF VOLTOU A SI, O SOM DA FLAUTA TINHA DIMINUÍDO, E UM
PESO ENORME O EMPURRAVA PARA BAIXO. COM UM MOVIMENTO VIOLENTO, ELE
FINALMENTE CONSEGUIU SAIR PARA A LUZ COR DE ESMERALDA. BARDA E
JASMINE MEXERAM-SE AO SEU LADO. QUANDO SE SENTARAM, O BARCO SE
INCLINOU COM O PESO DE MILHARES DE SANGUESSUGAS MORTAS.
O barco balançava levemente na água verde e rasa que batia na praia
arenosa. Mais adiante, havia uma floresta de árvores de suaves tons de verde e
marrom.
— Estamos em Keras! — Barda disse devagar. — Acho que chegamos
ao fim do Caminho Proibido. Quando saímos dele, todas as sanguessugas
morreram por causa da luz.
Ele tremeu de repente e esforçou-se para sair do barco, seguido de perto
por Jasmine e Lief. Eles mergulharam os braços e rostos na cintilante água verde
várias vezes, como que para se livrar de todas as marcas das sanguessugas.
Quando se sentiram limpos, os amigos caminharam até a praia puxando
o barco atrás deles. Eles empurraram a embarcação para um pequeno monte de
areia e o viraram, tirando dele o seu carregamento horrível. Em seguida, Lief
apanhou a capa, e eles avançaram para a sombra verde da floresta.
Uma trilha de areia dava voltas entre as árvores, e os companheiros
decidiram segui-la. Vez ou outra, ouvia-se o som de alguma criatura fugindo
rapidamente pela areia, mas esse era o único sinal de vida. O silêncio era sinistro.
— Então estamos no território da esmeralda — Barda afirmou num tom
natural, mas muito baixo. — Acima de nós, está a Montanha do Medo, onde
vivem os nossos amigos gnomos do medo.
Lief percebeu que Barda dizia a qualquer observador invisível que não se
apressasse em atacá-los. Barda sentia, assim como ele, que a floresta não era tão
deserta quanto parecia.
Eles chegaram a uma clareira densamente cercada por árvores, onde o
silêncio parecia ainda mais profundo. Lief sentiu um arrepio na nuca e olhou
rapidamente ao redor, mas nada se mexeu.
Os olhos de Jasmine moveram-se rapidamente até as grandes pedras
preciosas que enfeitavam o cinturão na cintura de Lief. O rubi e a esmeralda não
tinham perdido o brilho.
— Não podemos confiar nas pedras para nos darem avisos aqui embaixo
— Barda murmurou.
— Sei disso, Barda — Jasmine respondeu. — Mas por que isso acontece?
As pedras foram retiradas das profundezas de Deltora. Aqui elas deviam ser mais
poderosas, e não menos.
— Quem são vocês? O que estão fazendo aqui?
Os companheiros deram um pulo para trás e puxaram as armas. As vozes
que sussurravam pareciam vir de todos os lados, mas a clareira estava vazia.
— Respondam!
Jasmine respirou fundo e cutucou Lief. Seguindo o olhar da amiga, ele
olhou para cima. Uma espada ardente pendia sobre a sua cabeça de ponta para
baixo. Mais duas estavam penduradas sobre Jasmine e Barda. A testa de Lief se
encheu de suor. Estava claro que as perguntas tinham que ser respondidas bem
depressa e com cuidado.
— Eu sou Lief, o rei de Deltora, o reino acima de vocês — ele explicou.
— Os meus companheiros são Jasmine e Barda. Muitas pessoas de nosso povo
estão presas na Terra das Sombras, e somente a magia da Flauta de Pirra poderá
salvá-las. Os plumes e os aurons nos emprestaram as suas partes da Flauta.
Estamos aqui para implorar que o povo de Keras faça o mesmo.
Houve um momento de profundo silêncio. Então, bruscamente, as
espadas desapareceram, e um grande grupo de pessoas apareceu como que do
nada.
Assim como os plumes e os aurons, as pessoas eram pequenas, tinham
olhos claros, narizes grandes e compridos e orelhas pontudas. Os seus trajes
emitiam um brilho verde e, estranhamente, alguns tinham cabelos amarelos.
Uma dessas pessoas, uma mulher, que usava a touca alta de um flautista,
aproximou-se dos visitantes. Mariposas verdes com asas cintilantes voavam sobre
ela como uma coroa em movimento. Um menino com um rosto ansioso e magro
e cabelos fartos e espetados tinha se aproximado dela.
— Os meus cumprimentos, primos! — a mulher disse com uma voz
baixa e musical que tinha um toque de humor. — Eu sou Tirral, a Flautista de
Keras. Por favor, guardem as suas armas.
Como Lief hesitou, houve um som leve e irritante e, no momento
seguinte, as armas dos três companheiros estavam caídas aos pés de Tirral.
Jasmine e Barda deram um passo, mas, no mesmo instante, Lief estendeu
um braço para impedi-los. Ele vira algo que passara desapercebido aos amigos.
No momento em que se moveram, as mariposas verdes que voavam ao redor da
cabeça de Tirral haviam se transformado em flechas cintilantes apontadas para os
seus corações.
Tirral, que tinha ficado totalmente imóvel, sorriu.
— Desculpem os nossos cuidados, primos — ela disse. — Vocês dizem
que as partes da Flauta de Pirra que carregam foram dadas a vocês, mas é muito
mais provável que as tenham tomado à força.
— Pode ser mais provável, mas não é verdade — Lief retrucou,
abaixando o braço devagar. — Mas continuem segurando as suas armas, se isso
os faz sentir mais seguros.
Barda e Jasmine, atentos às flechas apontadas, recuaram relutantes.
As flechas encolheram e retomaram a forma de mariposas.
— Obrigada — Tirral disse com calma. — Não gostaríamos de ferir
nossos parentes. Especialmente os que fizeram o que é certo e trouxeram
consigo um excelente presente.
— Presente? — Barda grunhiu desconfiado.
— Uma quantidade imensa de iscas amontoada na praia! — disse o
garoto de expressão agitada. — Ah, obrigado, graças a vocês, vamos ter frutos do
mar por semanas! — ele agradeceu, lambendo os lábios. — Frutos do mar são
deliciosos! E não há nada melhor do que sanguessugas da entrada do mar de
Keras para apanhá-los. Se ao menos pudéssemos...
— Pegar sanguessugas é uma tarefa perigosa e quase nunca o fazemos —
Tirral explicou, interrompendo o garoto.
— Se iluminássemos o túnel, só por alguns momentos... — o garoto
começou.
— Não podemos iluminar o túnel, Emlis — Tirral disse com tristeza,
como se já tivessem tido a mesma discussão muitas vezes antes. — A escuridão e
as sanguessugas nos protegem dos aurons. Devemos nos arriscar a ser atacados
por nossos inimigos por causa de algumas iscas?
— Estou surpresa por ver que vocês precisam de iscas para pescar,
Flautista, pois a sua mágica é muito poderosa — Jasmine disse atrevida.
— Há muitos meios de pegar peixes — Tirral respondeu, sorrindo. — E
se o peixe que se deseja puder ser fisgado com uma simples isca, tanto melhor —
ela disse. — Por favor, sigam-me.
Ela se virou e se afastou, fazendo com que Emlis andasse à sua frente.
— Espero que nós não sejamos o peixe, nesse caso — Barda balbuciou
quando ele, Lief e Jasmine acompanharam Tirral, seguidos de perto por outros
kerons. — Somos convidados ou prisioneiros?
— Não vamos muito longe, primos! — Emlis avisou, esforçando-se para
vê-los por cima dos ombros.
— Por que nos chamam de primos? Não somos parentes deles!
— Jasmine disse em voz alta.
— Mas vocês são! — Tirral respondeu, parando onde o caminho
terminava num denso grupo de árvores. — Vocês não se lembram de sua
história? — Ela se virou para encará-los e ajeitou as mechas de cabelos claros que
apareciam sob a touca.
— A Garota dos Cabelos Dourados! — Jasmine exclamou perplexa.
— Alyss e Rosnan! Você quer dizer...?
— Certamente — Tirral respondeu. — Depois que se instalaram em
Keras, Alyss e Rosnan tiveram muitos filhos que se casaram com kerons e
também tiveram filhos. E assim foi durante várias gerações.
— Quase todos aqui têm sangue do povo do mundo superior correndo
nas veias — Emlis interrompeu. — Até mesmo os que não têm cabelos claros
como eu — ele correu os dedos pelos cabelos crespos com orgulho.
Tirral suspirou.
— E assim cumprimentamos vocês como primos distantes, como os
nossos ancestrais cumprimentaram Doran, o amigo dos dragões, há muito tempo
— ela completou. — Doran não ficou surpreso. Foi a história de Alyss e Rosnan
que o trouxe para as cavernas, para começar.
— Foi a mesma história que nos trouxe para cá — Lief murmurou.
— E, é claro, Alyss e Rosnan pararam em Keras! — Jasmine gritou.
— A caverna cor de esmeralda é a última antes do lugar cinzento do qual
tinham medo.
— Mas quem iria imaginar que depois de tanto tempo ainda haveria
traços deles aqui? — Barda exclamou.
— Sangue é sangue, não importa o quanto ele tenha se diluído ao longo
dos séculos — Tirral disse, dando de ombros. Ela ergueu a mão e três árvores
que bloqueavam o caminho desapareceram e revelaram um grande grupo de
crianças assustadas e com ar de culpa.
— Peixinhos malvados! Não mandamos que ficassem escondidos na loja
de frutas? — Tirral repreendeu. — E se nós fôssemos um bando de aurons
selvagens que tivessem vindo para comer vocês vivos?
Ela parecia muito zangada, mas escondeu um sorriso quando as crianças
correram.
Agora os companheiros podiam ver que as árvores escondiam uma vila.
Sem falar, Tirral levou-os pelas ruas largas e limpas.
A vila era grande, iluminada e agradável. As casas eram feitas de madeira
verde das árvores que cresciam na praia e eram cobertas de algas secas. Peixes
nadavam preguiçosamente nos lagos em quase todos os jardins, e as crianças que
tinham sido enxotadas da entrada da vila espiavam por detrás dos muros.
Finalmente eles chegaram a um grande espaço aberto no meio do qual
um fogo queimava num profundo berço de pedras. Esteiras estavam espalhadas
no chão ao redor do fogo.
— É aqui que nos reunimos — Tirral contou, sentando-se em uma das
esteiras e fazendo um sinal para que Lief, Barda e Jasmine a imitassem. — Aqui,
Alyss e Rosnan contaram a sua história aos nossos ancestrais.
— Doran também se sentou aqui, naquela época — Emlis contou,
jogando-se desajeitadamente ao lado dela. — Foi ele quem trouxe o fogo que
ainda queima aqui.
Os outros kerons que estavam reunidos em volta do fogo sussurravam e
observavam os visitantes com interesse, mas nenhum se mostrou tão curioso
quanto Emlis. Trêmulo de entusiasmo, ele olhava os visitantes e prestava atenção
a todos os detalhes de sua aparência.
— Esse é o Cinturão de Deltora, não é mesmo? — ele perguntou,
ficando mais perto de Lief. — Doran disse que ele é muito poderoso.
Tirral olhou para o garoto com uma irritação afetuosa.
— Este é meu filho Emlis — ela disse. — Acho que ele tem mais sangue
do mundo superior do que a maioria de nós, pois ele sonha em viajar e conhecer
de cor as histórias de Doran. A chegada de vocês o deixou muito contente.
O jovem rapaz corou e abaixou a cabeça, resmungando algo atrapalhado.
— Pois bem! — disse Tirral, erguendo um pouco a voz. — Vocês são
nossos parentes e, segundo as crenças do povo de Keras, é nosso dever ajudá-los
se possível. A nossa parte da Flauta de Pirra é valiosa para nós, mas poderemos
sobreviver sem ela se necessário. A nossa mágica é suficiente para as nossas
necessidades.
As pessoas que os cercavam murmuraram, concordando solenemente. O
coração de Lief começou a bater mais depressa.
Então, com uma pontada de desânimo, ele viu a expressão de Tirral se
endurecer.
“Seja lá o que for que ela conta sobre as crenças de seu povo, ela não
quer abrir mão de seu tesouro”, ele pensou. “Ela encontrou um meio de não nos
entregar a ponta da flauta... um meio que o seu povo vai aceitar.”
— Não perderemos a Flauta — Lief garantiu depressa. — Juro que ela
vai ser devolvida às cavernas!
Tirral continuou como se ele não tivesse dito nada.
— Mas também, segundo as nossas crenças, quando alguém nos pede
algo emprestado e jura devolvê-lo, eu posso exigir algo como garantia dessa
promessa. Algo que seja tão importante para vocês quanto o nosso tesouro é
para nós.
Ela abriu um sorriso largo, mostrando todos os dentes brancos e
pontiagudos.
LIEF, BARDA E JASMINE OLHARAM PARA AS PESSOAS SILENCIOSAS AO SEU
REDOR, JUNTO AO FOGO. TODOS CONCORDAVAM COM UMA EXPRESSÃO SÉRIA NO
ROSTO. ERA EVIDENTE QUE TIRRAL FALAVA A VERDADE.
“Mas é um truque”, Lief pensou. “Ela vai pedir uma coisa que, com
certeza, sabe que não vamos dar.” Olhando para os companheiros, viu quando
Jasmine acariciou Filli e Kree, que estavam em seu ombro em silêncio. Barda
estava de cara feia, sem dúvida pensando na espada que tinha sido a sua fiel
companheira por quase toda a vida.
Lief pensou em seus pertences mais preciosos — a espada feita para ele
pelo pai e a capa tecida pela mãe, que os escondia em situações de perigo. Como
ele poderia sobreviver na Terra das Sombras sem elas?
Ele esperou, num suspense terrível, quando Tirral se virou para eles com
os olhos brilhantes. Finalmente, ela falou.
— Eu quero... esse lindo cinturão enfeitado de jóias que você está
usando, rei de Deltora — ela disse.
— Mãe! — Emlis gritou horrorizado.
Uma forte onda de calor atordoante tomou conta de Lief. Ele ouviu os
gritos de surpresa e raiva de Barda e Jasmine e as exclamações das pessoas que
assistiam, mas ele só estava perturbado — perturbado pelo alívio que sentia. Ele
abaixou a cabeça, pois não queria que Tirral visse os seus olhos.
Finalmente ele olhou para cima.
— Muito bem — ele disse. Ignorando os protestos surpresos de Barda e
Jasmine, ele abriu o fecho do cinturão brilhante e o entregou a Tirral.
As pessoas presentes abriram a boca admiradas. Muitas se levantaram
com um salto e correram para se reunir à líder, ansiosas para ver o famoso
cinturão de perto.
Mas o rosto de Tirral era uma máscara confusa de raiva. Nunca, em
momento algum, tinha imaginado que Lief iria concordar com sua exigência.
Como todos os kerons, ela tinha crescido ouvindo as histórias de Doran e sabia o
quanto o Cinturão de Deltora era importante para a segurança do mundo
superior.
— Lief, o que você tem na cabeça? — Jasmine sussurrou furiosa.
— Três coisas — Lief sussurrou em resposta. — Primeiro, logo vamos
estar na Terra das Sombras. Segundo, as pedras do Cinturão de Deltora não
podem ser levadas para além das fronteiras de Deltora — e tenho certeza de que
Tirral não sabe disso. E, terceiro, acho que este é o lugar mais seguro para
esconder algo de grande valor.
A expressão de Jasmine mudou de repente. Ela vinha vivendo no
presente por tanto tempo que tinha esquecido que Lief teria que deixar o
Cinturão para trás se quisesse entrar na Terra das Sombras.
Mas o rosto de Barda estava enraivecido.
— Lief, você está dizendo que pretende mesmo cruzar a fronteira com a
gente? — ele murmurou.
— Claro que sim! — Lief respondeu, olhando para ele espantado. — Eu
já não disse isso?
Barda sacudiu a cabeça furioso.
— Não importa o que você disse. Pensei que, quando a hora chegasse,
você iria criar juízo. Você ficou louco? Você não pode entrar na Terra das
Sombras! Você e o Cinturão são as únicas coisas que estão entre Deltora e o
Senhor das Sombras. Você perdeu o senso de dever?
— Dever? — Lief repetiu, os punhos fechados com força.
Nos últimos meses, a vida dele não tinha sido nada além de uma rígida
dedicação ao dever. Ele trabalhou até cair de cansaço, se escondeu de tudo e de
todos que amava, guardou segredos e foi criticado, foi mal compreendido e até
odiado, porque a segurança do reino era a sua primeira responsabilidade e porque
havia inimigos em todos os lugares.
Palavras entusiasmadas tremiam em seus lábios. Ele tinha um forte
desejo de finalmente se livrar da carga que levava no coração.
Não! Você não deve fraquejar agora. Principalmente agora...
Lief cerrou os dentes e lutou para que palavras impensadas não saíssem
de sua boca.
— Barda, a Flauta de Pirra me chamou quando eu nem mesmo sabia que
ela existia — ele contou. — Sei que é meu dever encontrá-la e levá-la nesta
missão. Não vou abandonar esta jornada agora.
— Então eu gostaria que nunca a tivéssemos visto — Barda respondeu
irritado.
Jasmine tinha uma expressão preocupada e indecisa.
— Na verdade, Lief, o risco é muito grande. Talvez...
— Jasmine, não fique do lado de Barda contra mim! — Lief gritou. —
Não posso ir contra a minha natureza! “Ou o meu coração”, ele pensou com
tristeza. — Jasmine, você não entende? Mesmo que a Flauta de Pirra não
existisse, como eu poderia não seguir você depois que partiu?
Lief percebeu que as pessoas agrupadas ao redor de Tirral estavam se
afastando. Tirral carregava o Cinturão nas mãos com uma mistura de desprezo
amargo e raiva no rosto.
— Essa não é uma troca justa! — ela exclamou em voz alta. — O
cinturão não tem nenhum poder.
— Mãe, não pode ser! — Emlis falou depressa, corando, envergonhado
da mãe. — Doran nos contou! O Cinturão de Deltora é tão poderoso quanto a
Flauta de Pirra!
— No mundo superior, talvez — ela retrucou zangada. — Aqui, é apenas
uma ninharia cheia de pedras preciosas.
Mas a multidão murmurava agitada e, quando Tirral olhou à sua volta,
mordendo o lábio, Lief suspirou aliviado. Por mais que quisesse, a Flautista não
podia recuar sem parecer desonrosa e perder a confiança de seu povo.
Rigidamente, como se todos os movimentos provocassem dor, Tirral
pegou uma pequena caixa feita de conchas de dentro das dobras de sua túnica.
No mesmo momento, Lief tirou a pequena bolsa de tecido vermelho que
continha o bocal e a haste da Flauta de Pirra de dentro da camisa.
Tirral abriu a caixa e a estendeu para ele. A ponta da Flauta de Pirra
estava lá dentro, protegida por uma cama de seda. Ela era muito pequena, e a sua
superfície entalhada e estranha emitia um leve brilho verde debaixo da luz cor de
esmeralda.
Ela ergueu a cabeça, e o olhar de ambos se encontrou, enquanto a música
da Flauta flutuava ao seu redor.
O povo ficou em silêncio. Ele também podia ouvir a música. Mas
Jasmine e Barda olhavam nervosos um para o outro, pois não conseguiam ouvir
nada.
Atordoado pela música, Lief tirou a Flauta incompleta da bolsinha, e
Tirral estendeu a ponta para ele. Lief finalmente reuniu as três partes.
A música parou de repente, como se tivesse sido fechada com uma
tampa.
— Ela parou para chorar — Tirral sussurrou e, de repente, lágrimas
brilhantes saíram de seus olhos claros e frios.
Espantado com o repentino silêncio, Lief olhou fixamente para o objeto
mágico que segurava nas mãos. Ele brilhava muito levemente, como se tivesse
uma luz em seu interior. Ali, finalmente, estava a Flauta de Pirra — inteira e
perfeita pela primeira vez desde que as tribos rivais de Pirra a tinham dividido e
silenciaram a sua voz. E, completa, ela tinha se transformado.
— Mas ela mudou! — Jasmine balbuciou admirada. — Ela brilha! E
parece maior do que deveria ser.
Era verdade. A ponta da flauta era a menor parte das três e deveria ter
aumentado muito pouco o instrumento. Mas agora, completa, a Flauta parecia
muito maior e forte, muito mais estranha, bela e vibrante do que antes. Era como
se fosse maior do que a soma de suas partes.
Mas ela estava silenciosa. Esperando. Esperando que um sopro cálido lhe
devolvesse a vida. Esperando pelo toque hábil e carinhoso que recuperasse a sua
música nos campos fantasmagóricos em que havia sofrido por tanto tempo e a
deixasse cantar no presente.
“E eu não posso fazer isso”, Lief pensou, com uma pontada de tristeza.
“Eu não saberia onde começar e, mesmo que tivesse capacidade, outra pessoa
deveria tocá-la.”
Ele olhou para Tirral e viu o desejo em seus olhos brilhantes. De repente,
ele soube o que devia fazer. Lief estendeu as mãos que seguravam a Flauta
cintilante.
— Você é a Flautista, Tirral — ele disse devagar. — Toque, por favor.
E assim, pela primeira vez desde o começo do mundo, as notas puras da
Flauta de Pirra soaram nas cavernas do mar secreto, enquanto o povo de Keras
ouvia com expressões de êxtase e faces cobertas de lágrimas.
A música acariciou as águas encrespadas, ecoou nas rochas cintilantes até
que o ar pareceu tremer com sua beleza, e nenhuma parede foi capaz de segurá-
la.
Ela flutuou pelo Caminho Proibido, onde as sanguessugas a ouviram e se
esconderam na escuridão. Ela cantou no mar de opala, onde as grandes enguias
ergueram as cabeças da água e flutuaram ao seu som.
Os aurons, que trabalhavam em sua ilha, deixaram as suas tarefas
paralisados quando o som chegou aos seus ouvidos. A expressão no velho rosto
do Flautista não mudou, mas o seu corpo todo estremeceu, como que atingido
por um vento forte e gelado. E Penn, que arrumava manuscritos em sua pequena
cabana nas balsas, juntou as mãos feliz e maravilhada.
O som da Flauta atravessou as cavernas de arco-íris, onde as lagartas se
enterraram no fundo da areia para dele fugir, e as criaturas rechonchudas do mar
saltaram e brincaram. Ele encheu a luz com sua beleza e flutuou para o mar de
rubi e a ilha de Plume.
Nols, que cuidava do túmulo do guerreiro Glock, deu um grito quando
escutou a música. Ela se levantou com esforço e correu para a praia, onde
pessoas admiradas e silenciosas entravam na água escarlate até a cintura, olhando
na direção do som.
A música continuava a sua trajetória suave e persistente, até atingir os
mais longínquos recantos do mar dourado, onde Clef e Azan, que pescavam em
seu minúsculo bote, largaram as redes e ficaram sentados enfeitiçados. Então o
último e pequeno vestígio de som se elevou acima de suas cabeças e atravessou a
névoa cor de topázio. E, carregado pela brisa leve e fria, invadiu o sono
encantado do dragão dourado, levando consigo sonhos de sol, ventos fortes,
montanhas altas, magia e glória desaparecida.
TIRRAL FICOU SENTADA EM SILÊNCIO DURANTE AS COMEMORAÇÕES QUE
SE SEGUIRAM À SUA APRESENTAÇÃO COM A FLAUTA. HAVIA COMIDA, BEBIDA E
RISOS AO REDOR DA FOGUEIRA, MAS ELA NÃO PARTICIPOU DE NADA. ELA
PRESTOU ATENÇÃO SOMENTE QUANDO OS KERONS TROUXERAM AS SUAS
PEQUENAS FLAUTAS DE MADEIRA.
De fato, valia a pena ouvir a música doce e suave. E, para surpresa dos
companheiros, os tons mais agradáveis saíram da flauta de Emlis.
Quando eles o cumprimentaram, Emlis baixou o instrumento e se sentou
ao lado da mãe tímido.
— Sempre fiquei feliz em tocar — ele disse. — Mas agora que ouvi a
Flauta de Pirra, sei que os sons que tiro de minha flauta são apenas um leve
reflexo do que pode ser a verdadeira música.
Desajeitado, ele limpou o instrumento na manga da camisa e estendeu-o
a Barda.
— Você não quer tocar para nós? — ele pediu. — Tenho muita vontade
de ouvir a música do mundo superior.
— É muito parecida com a de vocês — Barda respondeu, rindo. — Mas,
eu sinto muito, não posso tocar para vocês. E nenhum de meus amigos sabe
tocar também. Não entendemos nada de música.
— O quê?
A exclamação aguda de Tirral cortou a música e os risos como um raio.
O silêncio caiu entre eles.
— Você está dizendo que nem sabem tocar flauta?
— Não sabemos tocar como vocês — Lief concordou desanimado.
— Mas é a mágica da Flauta de Pirra que conta, não a habilidade do
músico. Uma única nota será suficiente para dominar o Senhor das Sombras.
— Você não tem certeza disso! — Tirral gritou. — Antigamente, a Flauta
só era tocada pelos melhores músicos de Pirra!
Com o rosto radiante pela esperança renovada, ela apelou ao povo
silencioso que a cercava.
— As nossas crenças não exigem que a gente ofereça ou empreste a
Flauta para um primo se a sua causa for inútil, kerons! Não é verdade?
As pessoas concordaram com relutância.
— Pois então, muito bem! — Tirral gritou. — O que poderia ser mais
inútil do que dar a Flauta de Pirra a quem nem sabe tocá-la? — ela perguntou,
olhando ao redor com ar de triunfo.
— Isso não importa!
Todos se sobressaltaram quando a voz alta e nervosa interrompeu o
silêncio. Todos olharam quando Emlis deu um passo à frente, corado até a raiz
de seus cabelos loiros.
— Não... não importa se nossos primos não sabem tocar a Flauta
— Emlis balbuciou, encontrando o olhar zangado da mãe numa atitude
de desafio. — Não importa porque... porque eu sei tocar muito bem. E eu vou
com eles!
A declaração foi seguida de muitas discussões, mas a fúria de Tirral e os
protestos dos companheiros de nada adiantaram. Para o povo de Pirra, o
argumento de Emlis tinha derrubado o último obstáculo para que a Flauta de
Pirra fosse levada para a Terra das Sombras.
— Então, vocês venceram e eu perdi — Tirral disse com amargura,
quando devolveu as armas dos companheiros. — Eu perdi não só a Flauta de
Pirra, mas também o meu filho. Vocês conquistaram o direito de destruir os dois,
e também a vocês. Espero que a sua vitória lhes traga alegria.
O rosto de Tirral estava sombrio, e as mariposas que voavam ao seu
redor mal se moviam.
— Tirral... — Lief começou, mas a Flautista já tinha se virado e se
afastava rapidamente.
— Não podemos fazer nada se o filho dela quer vir com a gente —
Jasmine sussurrou. — A culpa é toda dela. Se ela nos tivesse deixado ir em paz,
Emlis nunca teria tido essa idéia.
— Teria, sim — Barda discordou. — Esse rapaz está tão ansioso quanto
nós para escapar desta ilha. Acho que ele viu a oportunidade e a segurou com as
duas mãos.
— Mas ele não sabe o que está fazendo! — Lief murmurou.
— Não — Barda retrucou. E nós, sabemos?
Poucas horas depois, dois barcos compridos remados por dois
colhedores de sanguessugas de cara enrugada avançavam para o norte da ilha.
Lief, Jasmine, Barda e Emlis estavam sentados na popa de um deles. No outro,
estavam Tirral com uma expressão gelada no rosto e dois de seus conselheiros
mais íntimos.
A água de cor esverdeada se estendia à frente deles e se transformava
lentamente em cinza. O horizonte estava escondido pela escuridão.
Kree se mexia agitado.
— A Zona Cinzenta — Jasmine disse, observando o horizonte
ameaçador.
Emlis concordou com um gesto de cabeça. O medo se misturava ao
entusiasmo no seu rosto magro, que estava quase totalmente coberto pelo capuz
da capa grossa e verde que os colhedores de sanguessugas costumavam usar.
— Não é tarde para você mudar de idéia, Emlis — sugeriu Barda, que
estava sentado ao lado dele. — Isso não é um dos contos de Doran. Isso é real e
pode ser mortalmente perigoso.
— Não posso mudar de idéia agora — Emlis replicou. — Vocês
precisam de mim. Eles não vão deixar que levem a Flauta se eu não for junto.
— A sua pele não foi feita para o mundo superior, Emlis — Jasmine
sussurrou, inclinando-se para a frente. — O sol vai te queimar, e a luz vai te
cegar.
Emlis balançou a cabeça com teimosia.
— A capa vai me proteger do sol. E eu não sou o primeiro pirrano a sair
das cavernas. Doran contou que sete pirranos fizeram isso na época de Alyss e
Rosnan.
— E todos morreram, Emlis — Barda respondeu com crueldade.
— Eles morreram e nunca viram os seus lares outra vez.
— Eles foram mortos pelo povo do mundo superior, não pelo sol —
Emlis falou com a voz trêmula. — E, de qualquer forma, eles eram plumes, e
plumes são tão tolos e estúpidos quanto os aurons são malvados.
— Plumes e aurons não são estúpidos e maus! — Jasmine gritou.
— Eles são o seu povo. São seus parentes. Eles são muito mais próximos
de vocês do que nós.
Os colhedores de sanguessugas que remavam o barco deles se viraram e
olharam para eles com uma expressão feroz. Um deles emitiu um som baixo, e o
outro mostrou os dentes de modo desagradável. Jasmine fechou a boca e
retribuiu seus olhares sem piscar, até que finalmente eles se viraram e
continuaram a remar.
— Por favor, não briguem mais comigo — Emlis pediu, os ombros
curvados. — Esta é a minha única chance de fazer o que mais quero na vida. Ver
um mundo diferente do meu. Se eu morrer na viagem, vai ser porque decidi
assim.
Barda, desesperado, correu os dedos pelos cabelos emaranhados.
— Três deles — ele balbuciou baixinho. — Três jovens desatinados. Por
Deus, dois já não eram suficientes?
A luz cor de esmeralda diminuiu aos poucos. Uma hora depois, a
embarcação atravessava uma região envolta numa sombria cor cinzenta. O grupo
já estava muito além do que indicava o mapa de Doran e já tinha ultrapassado as
fronteiras de Deltora.
Quando olharam para cima, tudo o que viram foi uma agitada escuridão.
Eles sabiam que acima deles se erguiam os cumes traiçoeiros que se agrupavam
atrás da Montanha do Medo — rochas duras como ferro, cheias de grutas úmidas
e secretas onde viviam monstros terríveis como Gellick.
O bote se movia mais devagar, e os rostos enrugados dos remadores
estavam tensos e vigilantes.
À frente deles, surgiu uma sombra negra como a noite — a caverna que
se encontrava embaixo da Terra das Sombras.
— Quando eles vão nos deixar? — perguntou Jasmine.
— Precisamos ir até a beira da sombra — um dos remadores avisou
inesperadamente sem se virar. — Foi o que a Flautista disse. E ali vamos parar,
graças a Keras, e mandar vocês para cima, para o lugar maligno que existe lá.
— Mandar a gente para cima? — Lief piscou confuso. Ele tinha
imaginado que os kerons iam mostrar um caminho secreto para chegar à
superfície. Mas parecia que...
— É possível que não precisemos da magia de sete para essa tarefa —
disse o colhedor de sanguessugas — , mas achamos melhor garantir. Quem sabe
qual é a profundidade da rocha? Mesmo com todas as suas idéias estranhas,
ninguém vai querer que vocês sejam apanhados no meio do caminho, não é
mesmo?
O seu companheiro soltou um riso sinistro. Lief sentiu Jasmine
estremecer e percebeu que ela também imaginara o pesadelo que seria ficar presa
em meio à rocha sólida.
— Não tenham medo — Emlis os tranqüilizou. — Nossos ancestrais,
muitas vezes, mandaram Doran para a superfície sem problemas.
— Isso foi há muito tempo — Barda murmurou abatido. — E suponho
que Doran não foi mandado para a Terra das Sombras.
— Ah, não! — Emlis concordou. — Doran sempre deixou as cavernas e
foi para um lugar a oeste de Keras. Ele dizia que, na terra acima, exatamente
nesse ponto, havia um grande canal e barcos que o ajudariam na viagem para
casa.
— O rio Tor! — Lief exclamou. — Então era esse o caminho secreto de
Doran. Ele reaparecia no matagal abaixo da Montanha do Medo, andava até o rio
e esperava por um barco. Naquele tempo, não havia tantos piratas.
— Ou Ols — Jasmine completou. Kree grasnava nervoso no ombro da
dona, mas ela não se virou para ele. Os olhos de Jasmine estavam fixos na massa
escura que surgia diante deles.
A Terra das Sombras. Em breve, muito breve, ela poderia começar a
procurar por Faith, a sua irmã desaparecida. E Lief e Barda estariam a seu lado.
Jasmine não tinha perdoado Lief por tentar esconder Faith dela. Mas
tudo que passaram juntos depois que entraram nas cavernas fez a sua raiva
perder a força. Agora ela tinha certeza de que o amigo guardara esse segredo
somente para manter a ela, Jasmine, longe do perigo.
“Ele errou em me enganar”, Jasmine pensou. “Mas ele acreditou estar
fazendo o que era certo.”
Apesar de não enxergar nada, os olhos dela estavam presos na sombra
que aumentava na sua frente. A futura esposa de Lief, a moça nobre e instruída
que seria uma rainha adequada e que daria à luz a uma criança que usaria o
Cinturão de Deltora estava esperando por ele em Del. Mas era Jasmine que
estava com Lief naquele momento. E ela era sua amiga — sua verdadeira amiga.
“E isso é o bastante”, ela disse a si mesma. Era assim que deveria ser.
Afinal, o que ela sabia de palácios, boas maneiras e roupas finas? Absolutamente
nada e tampouco queria aprender. Lief sabia disso.
Filli choramingou baixinho debaixo de sua gola, e ela ergueu a mão para
acalmá-lo, inconscientemente tirando conforto do calor do animalzinho.
— A primeira vez que Doran veio até as cavernas, ele não conseguiu
chegar a Keras — Emlis tagarelava para Barda. — Alguns plumes o encontraram
se afogando no mar de topázio. Eles o salvaram, mas o mandaram imediatamente
de volta para a superfície. Veja só como os plumes são estúpidos.
Ele parou de falar e olhou arrependido para Jasmine, mas ela ainda
olhava fixamente para a frente.
— O plumes pensaram que Doran iria esquecer o que tinha acontecido
— Emlis continuou. — Mas uma canção que eles cantaram enquanto remavam o
bote ficou em sua mente e o fez lembrar. Assim ele voltou, e desta vez...
A sua voz ansiosa foi interrompida por um grito agudo.
A escuridão tinha caído como uma cortina. A água que os cercava era
negra como a noite. Eles não conseguiam ver nada e só conseguiam ouvir o som
das ondas e a pequena embarcação que os acompanhava batendo em seu barco
levemente.
— Chegou a hora — a voz trêmula de Tirral flutuou na escuridão. —
Agora vocês têm a última chance de mudar de idéia. Vocês vão voltar com a
gente para a segurança de Keras? Lief... Barda... Jasmine... Emlis?
Houve uma longa pausa.
— Muito bem — a voz de Tirral estava rigidamente controlada agora. —
Tenho um conselho para dar a vocês e, por favor, não deixem de segui-lo, pois
acho que realmente vale a pena. As Sombras mergulharam no fundo do território
de Pirra agora. Não importa o que os plumes e os aurons pensam, mas Pirra está
perdida para sempre. Nunca vai poder ser recuperada.
— Sabemos disso — Lief disse. — E nem os plumes nem os aurons
esperam que...
— Ainda não terminei — Tirral interrompeu. — Escutem! O poder do
Senhor das Sombras está muito maior hoje do que quando a Flauta o manteve
afastado do território de Pirra. Bem ou mal tocada, a Flauta vai dominá-lo
somente por pouco tempo, e somente se for pego de surpresa. Guarde a sua
mágica para quando for realmente necessária.
— Vamos fazer isso — Lief, Barda e Jasmine murmuraram juntos.
— Então, não tenho mais nada a fazer além de desejar sorte a vocês —
Tirral disse na escuridão. — Abracem-se, fechem os olhos e não pensem em
nada.
Como se estivesse num sonho, Lief passou para o centro do barco. Ele se
ajoelhou nas tábuas duras, esticou os braços e segurou firme nos companheiros.
Ele abaixou a cabeça e expulsou todos os pensamentos de sua mente.
— Boa sorte, primos — a voz rouca de um dos colhedores de
sanguessugas trovejou baixinho em meio ao silêncio. Então...
Frio, um frio gelado. A escuridão. Uma tontura forte, insuportável...
De repente, um silêncio aterrador. Um cheiro amargo e estranho. Um
som rápido e palpitante, muito próximo, misturado ao gemido do vento. Lief
abriu os olhos e respirou com dificuldade pela primeira vez na Terra das
Sombras.
LIEF FICOU DEITADO E MUITO QUIETO. AOS POUCOS, PERCEBEU QUE O
SOM LATEJANTE QUE OUVIA ERAM OS BATIMENTOS DE SEU CORAÇÃO. ELE
ESTAVA DE BRUÇOS NA TERRA DURA. O VENTO SOPRAVA SOBRE ELE, UMA
CORRENTE DE AR, NEM FRIA NEM QUENTE, QUE CARREGAVA COM ELA O CHEIRO
AMARGO QUE TINHA SENTIDO ANTES.
Ele levantou a cabeça com cuidado, piscando na luz sombria. Jasmine
estava agachada ao seu lado com Kree no ombro. Barda se levantava devagar não
longe dali. Emlis, envolto na capa, ainda estava no chão, encolhido como uma
pequena bola.
Com um estremecimento, Lief se deu conta de que estavam ao ar livre,
numa planície varrida pelo vento, espremida entre duas crateras abertas. Um
terreno coberto por uma argila branca e árida, ressecada e rachada como o leito
seco de um rio, se estendia diante deles até onde a vista alcançava. Grossas
nuvens cinzentas pairavam baixas e escondiam o sol.
A terra estava morta. Morta como ossos brancos e descorados.
Os olhos de Lief arderam quando as palavras do Conto da Flauta de Pirra
vieram à sua cabeça de repente.
Há muito, muito tempo atrás, além das Montanhas, havia um país verdejante
chamado Pirra, onde a brisa espalhava magia...
Pirra, antes um lugar repleto de beleza, sol e flores. O antigo lar dos
kerons, dos plumes e dos aurons. Agora... um deserto.
E isso é o que Deltora poderia ter sido. E ainda pode ser. Se você estiver
errado, Lief. Se você estiver errado...
Lief balançou a cabeça, tentando calar a voz em seus ouvidos, a voz
torturante de sua consciência, mas ela não parava.
Você deveria ter deixado Jasmine partir. Você deveria ter ficado em Del.
Esse era o seu dever. O seu dever...
Jasmine puxava o seu braço.
— Lief! Precisamos procurar um abrigo depressa — ela sussurrou. — Há
coisas aqui... chegando mais perto.
Lief deixou de contemplar o horizonte árido e olhou para a amiga. Os
olhos dela estavam assustados, arregalados, quase negros.
— Pessoas? Monstros? Ols? — ele perguntou depressa.
— Não... não sei — Jasmine murmurou. — Coisas — ela estremeceu.
Filli choramingou em seu esconderijo debaixo da jaqueta.
Barda levantou Emlis do chão e correu para perto deles.
— Não fiquem parados aí! — ele disse agitado. — Se um Ak-Baba nos
vir, vai se o nosso fim! — ele agarrou Lief pelo braço e fez com que ele se
virasse.
Somente então Lief percebeu que não tinham sido abandonados no meio
de uma grande planície, como havia imaginado. Atrás deles, as montanhas se
erguiam como uma grande cerca recortada. Os seus cumes cruéis perfuravam as
nuvens, e a sua base beirava a planície. O imenso contorno da Montanha do
Medo se elevava ao fundo e se espalhava para o oeste.
“Mas claro!”, Lief pensou, correndo para o sopé da montanha
acompanhado de perto dos companheiros. “Os kerons nos enviaram para a
superfície com sua magia e chegamos exatamente na fronteira da Terra das
Sombras. É claro que as montanhas estão aqui. No que eu estava pensando?”
Lief ouviu Emlis despertando, protestando e exigindo ser colocado no
chão. Bem, isso era bom. Pelo menos Barda ficaria com as mãos livres para
escalar. Lief contornou as primeiras grandes pedras cinzentas que estavam na
beira da planície e começou a subir com dificuldade, procurando o abrigo que um
penhasco maior oferecia.
Então, de repente, uma forte dor explodiu em sua cabeça quando um
objeto atingiu a sua testa com uma força surpreendente. Ele cambaleou para trás
agitando os braços desesperado, lutando para manter o equilíbrio. Através do
som em seus ouvidos, ele escutou gritos abafados de alerta quando, com alívio,
um braço firme apoiou as suas costas. Barda o empurrava e ajudava e ficar de pé.
Trêmulo, ele caiu de joelhos. Barda, Jasmine e Emlis agacharam-se bem
perto dele para que a grande pedra os escondesse da planície.
— Lief, o que aconteceu? — ele escutou Jasmine sussurrar.
— Você não viu? — ele balbuciou, apertando a testa com as mãos. —
Alguma coisa bateu em mim.
— Não! — ela sussurrou em resposta. — Não tinha nada aqui. Você só
caiu para trás de repente, sem motivo. Num minuto, você estava correndo, no
outro...
Barda respirava com dificuldade. Ele apanhou algumas pedras e as jogou
no ar na frente deles. Perplexo, Lief viu que as pedras pararam em pleno ar,
voltaram então caíram no chão.
— Uma parede invisível! — Jasmine murmurou.
— Sim — Barda concordou aborrecido. — Achei estranho as montanhas
não terem nenhuma proteção. Parece que o Senhor das Sombras fechou a
fronteira do seu próprio jeito.
Enquanto Barda falava, eles perceberam um movimento perto de onde as
pedras tinham caído. Um pequeno lagarto marrom, listrado e com olhos
brilhantes tinha saído de seu esconderijo.
— Mas ele veio da montanha! — Jasmine sussurrou animada. — De trás
do muro invisível. Eu vi! Será que só os humanos são afetados pelo feitiço?
Lief sentiu-se mal. Ele tinha pensado em outra explicação e pôde ver,
pela expressão de Barda, que o amigo tinha tido a mesma idéia.
A pequena língua bifurcada do lagarto entrou e saiu de sua boca por
alguns instantes. Então, bruscamente, ele se virou e voltou para o alto da
montanha. Quando chegou na frente da parede invisível, ele parou e caiu para
trás.
— Foi o que pensei — Barda disse devagar. — Era o que eu temia. O
feitiço não impede pessoas ou animais de entrar, apenas de sair.
Ele, Lief e Jasmine olharam um para o outro, sem vontade de falar.
Então Lief começou a se levantar com esforço.
— Fique quieto — Jasmine falou baixinho, segurando o amigo pelo
braço. — Você precisa descansar. Você bateu a cabeça...
— Não! — Lief protestou zangado, soltando-se da mão de Jasmine.
Jasmine segurou-o com mais força, e ele caiu para trás com um gemido, sentindo
a cabeça girar.
— Você disse que tinha uma coisa se aproximando — ele murmurou.
— Precisamos...
— Faça o que Jasmine mandou, Lief! — Barda ordenou sério, puxando a
espada. — No momento, estamos tão seguros atrás desta pedra quanto em
qualquer outro lugar. E, mesmo que Jasmine esteja ouvindo muitos ruídos, eu
ainda não estou vendo nada.
O pequeno lagarto arranhava freneticamente a parede invisível. Ele corria
ao longo dela de um lado a outro sem parar. De tempos em tempos, ele levantava
e empurrava o ar com as patas dianteiras agitando a cauda freneticamente.
— Mas por que o Senhor das Sombras não protege a sua fronteira?
— Emlis perguntou em voz alta e trêmula. — Ele tem muitas pessoas de
seu povo em seu poder. Ele não tem medo de que um exército... ou um pequeno
grupo como o nosso possa cruzar as montanhas e invadir o seu território?
— É isso que ele espera, tenho certeza — Barda murmurou. — Afinal,
ele deixou o caminho aberto.
— Mas por quê? — Emlis insistiu, a voz aguda.
O lagarto caiu para trás exausto. No mesmo instante, uma criatura
semelhante a um besouro espinhento cor de laranja saltou de uma fenda no chão
exatamente atrás dele. Num piscar de olhos, a criatura alaranjada agarrou o
lagarto, comeu a sua cabeça e arrastou a carcaça que ainda se contorcia para
debaixo da terra.
— Isso responde a sua pergunta? — Barda retrucou secamente.
Emlis olhou para ele boquiaberto.
Lief virou o rosto para o penhasco, o estômago revirado. E então ele
viu... uma marca que tinha sido rabiscada com vigor na superfície dura da rocha.
Ele olhou fixamente, mal acreditando no que via.
— O sinal da Resistência! — ele sussurrou, acompanhando o contorno
do desenho com o dedo. O seu coração batia depressa.
Outro deltorano tinha buscado abrigo ali. Um deltorano que, de algum
jeito, tinha escapado da prisão e se dirigido às montanhas, onde acabou
encontrando o caminho para a liberdade fechado. Um deltorano que,
possivelmente, usou as suas últimas forças não para chorar e amaldiçoar o
destino, mas, sim, para rabiscar uma mensagem de desafio na pedra.
A confusão desesperada que tinha tomado conta de Lief desde que
haviam chegado àquele lugar assustador pareceu desaparecer de repente e ele
conseguiu raciocinar outra vez.
Barda estava examinando o sinal.
— Ele não foi feito recentemente, mas também não é muito antigo —
ele disse devagar. — Acho que um ano ou dois, no máximo.
Lief se lembrou de outro sinal da Resistência que tinha visto numa rocha.
Ele tinha sido a assinatura de uma mensagem escrita com sangue na parede de
uma gruta na Montanha do Medo.
Aquela mensagem tinha sido escrita por Perdição que, segundo se dizia,
era o único deltorano preso na Terra das Sombras que tinha conseguido escapar.
E ele tinha escapado de...
Kree grasnou baixinho em sinal de advertência.
— A luz está mudando — Jasmine sussurrou, pegando a adaga.
Lief e Barda olharam para cima depressa. As nuvens baixas e agitadas
exibiam manchas vermelho claro e a luminosidade da planície estava diminuindo.
— Não é possível que um pequeno lagarto tenha disparado o alarme da
fronteira — Barda deduziu. — Essas coisas devem acontecer com freqüência.
— É o sol que está se pondo — Lief disse, olhando para o oeste, onde as
nuvens mostravam um brilho mais forte. — A noite está caindo.
Houve um breve silêncio. Os companheiros tinham estado em cavernas
durante tanto tempo que quase tinham esquecido que os dias no mundo superior
eram regulados pelo movimento do sol.
— Doran disse que o pôr-do-sol é um espetáculo magnífico — Emlis
disse, contemplando as nuvens desapontado. — Doran disse que ele parece uma
fogueira vermelha e cor de laranja queimando no céu.
— Pelo jeito, não é o que acontece aqui — Barda resmungou. Jasmine
não estava espiando o céu, mas, sim, a planície.
— Olhem — ela falou baixinho, apontando.
A planície pareceu criar vida. Pernas andavam, antenas ondulavam,
centenas de besouros alaranjados surgiam das fendas na terra.
LIEF OLHOU PARA BAIXO. HAVIA MUITO MOVIMENTO NAS FENDAS NA
TERRA PERTO DE SEUS PÉS, EMBORA ATÉ AQUELE MOMENTO NADA TINHA SE
AVENTURADO A SUBIR À SUPERFÍCIE.
— Não gosto disso — Barda comentou. — É melhor sairmos daqui.
Esses insetos são pequenos, mas são muitos e comem carne. Se estiverem com
muita fome...
Ele não tinha completado a sentença, mas tinha dito o suficiente para que
os amigos se levantassem depressa.
— Para que lado a gente vai? — Jasmine perguntou, olhando desesperada
para os dois lados.
— Para o oeste — Lief respondeu de imediato, virando-se para observar
o brilho vermelho escuro onde o sol se punha.
— Por que oeste? — ela quis saber. — Se quisermos encontrar o quartel-
general do Senhor das Sombras em tempo...
— O quê? — Barda interrompeu, olhando para ela sem acreditar. — Que
loucura é essa? O quartel-general do Senhor das Sombras? Esse é exatamente o
lugar que temos que evitar de qualquer jeito.
— Mas... mas os escravos! — Jasmine balbuciou, corando. Ela tinha se
traído, tinha esquecido que os seus companheiros não sabiam nada sobre os seus
planos.
Jasmine tinha certeza de que Faith se encontrava perto ou dentro do
quartel-general do inimigo. Para pedir ajuda, a garotinha tinha usado
secretamente o que chamava de “o cristal”. E onde mais poderia estar esse
instrumento mágico, senão na principal fortaleza do Senhor das Sombras? De
alguma forma, Jasmine tinha que convencer os companheiros a procurar por ela.
Deveria ela contar o segredo, afinal? Contar para Lief e Barda o que Faith
tinha dito?
Quase que imediatamente ela decidiu que não podia correr esse risco.
Não ali, naquela planície varrida pelo vento, onde cada brisa trazia o cheiro do
perigo. Ela tinha guardado o segredo durante muito tempo para pôr tudo a
perder. Aquele não era o lugar ideal para brigas, perda de confiança ou palavras
zangadas que ela acabaria dizendo assim que a interrogassem.
“Não. Agi sozinha até agora, e é assim que tenho que continuar até
chegar o momento certo”, Jasmine pensou.
— Os escravos devem estar espalhados por todo esse maldito território
— Barda grunhiu. — Por que você acha que...?
— Esperem! — Lief olhou rapidamente de um lado a outro. — Onde
está Emlis?
Assustados, Jasmine e Barda se viraram bruscamente. Emlis não estava
mais atrás deles. Ele tinha desaparecido.
— Mas... mas ele estava aqui! De pé, do lado dessa pedra! — Barda
declarou.
— Pois agora não está mais — Lief disse preocupado. — Ele deve ter se
afastado de nós enquanto a gente discutia.
Estava ficando cada vez mais escuro. Eles se separaram depressa e,
chamando baixinho, procuraram nas proximidades. Mas Emlis não foi
encontrado em nenhum lugar.
Eles se reencontraram na grande pedra, todos com medo e zangados.
— Não posso acreditar numa coisa dessas! — Barda vociferou. — Que
jogo esse garoto bobo pensa que está brincando?
— Vamos ter que continuar sem ele — Jasmine disparou, queimando de
impaciência. — Não temos tempo a perder. E esses insetos estão aparecendo aos
montes.
Lief esforçou-se para enxergar na planície. O barro, escurecido pelo sol
que se punha, tinha agora a mesma cor dos besouros. Se não fossem tantos, os
insetos poderiam ficar totalmente camuflados. Eles faziam o chão parecer
agitado, como se estivesse coberto por ondas provocadas pela maré.
As ondas pareciam especialmente grandes num ponto ao lado da cratera
maior. Era como se elas quebrassem sobre uma grande pedra que estava caída ali.
“Parte de minha mente ainda está no mar secreto”, Lief pensou. Então,
de repente, ele se inclinou para a frente e observou a penumbra com atenção. Por
que os besouros se amontoavam tão perto uns dos outros exatamente naquele
lugar? Era quase como se...
De repente, Lief compreendeu o fato terrível que estava acontecendo.
Ele gritou e saltou para a frente.
Ele ouviu Jasmine e Barda seguindo-o, pedindo aos gritos para que
parasse, enquanto corria pela planície, esmagando dezenas de besouros a cada
passo pesado de seus pés. Mas não havia tempo para parar, para explicar. Não
havia tempo para contar aos amigos por que o seu estômago se revirava, o seu
coração batia acelerado....
Em poucos instantes, ele atingiu a massa enorme de besouros perto da
cratera e mergulhou os seus braços em meio aos insetos. Então, ofegante e
trêmulo, ele ergueu o corpo mole e ensangüentado de Emlis do chão.
Com exclamações de horror, Barda e Jasmine começaram a bater com as
mãos nos insetos colados às roupas esfarrapadas de Emlis e arrancá-los da carne
ferida. No chão, milhares de besouros corriam em pânico, lutando por espaço
enquanto voltavam para as fendas na terra.
Emlis gemia fracamente e tentava falar.
— Como isso aconteceu? — Barda gritou. — Será que ele é tão louco
que se afastou...
As palavras morreram em seus lábios e ele arregalou os olhos. Quando
Barda ergueu a espada, Lief e Jasmine se viraram rapidamente para ver o que
estava acontecendo.
Vultos saíam das crateras — vultos maltrapilhos de olhos brilhantes e
dentes arreganhados que andavam arrastando os pés. As mãos cheias de garras se
estendiam para eles. Grunhidos baixos e uivos agudos se juntavam num terrível
coro de raiva frustrada.
Lief, que carregava e arrastava Emlis, se virou e voltou com dificuldade
para as colinas no chão coberto por besouros. Barda e Jasmine o seguiram, as
armas estendidas diante deles para afastar as criaturas medonhas que saíam
rastejando da cratera em número cada vez maior.
As criaturas pareciam humanas, apesar de exibir mudanças horríveis.
Algumas estavam cobertas de cabelos, tinham dentes enormes saindo das bocas
abertas. Outras tinham braços e pernas encolhidos, caudas compridas e pele
coberta de escamas. Outras ainda tinham corcundas cobertas por uma casca
brilhante, pernas torcidas semelhantes às de insetos e nadadeiras espinhentas no
lugar dos braços. Rugindo e uivando, elas começaram a se espalhar, cercando os
amigos em fuga como um bando de animais se aproximando de sua presa.
Lief, Barda e Jasmine chegaram à pedra marcada com o sinal da
Resistência e, mudos de terror, viraram-se para lutar. As criaturas chegavam de
todos os lados. Não havia por onde fugir.
Então, de repente, um tremor pareceu atingir o grupo selvagem e ele
parou onde estava. Houve um ruído longo e baixo parecido com um trovão
distante e, no mesmo instante, a luz fraca ficou brilhante.
Instintivamente, Lief olhou para cima, e um calafrio percorreu a sua
espinha. Em vez da Lua que esperava ver, outra figura se formava no céu.
Enorme e ameaçadora, ela brilhou como um fogo branco e frio contra as nuvens
cinzentas.
Gemendo e se lamentando, as criaturas caíram ao chão e cobriram os
olhos.
— Agora! Corram! — Barda ordenou, erguendo Emlis sobre o ombro.
Juntos, ele deixaram a proteção da pedra, atravessaram o grupo de
criaturas caídas no chão e começaram a correr ao longo da fileira de colinas na
direção do oeste.
Após apenas alguns momentos, eles ouviram o som forte de pés atrás
deles e um terrível coro de latidos, grunhidos e uivos. As criaturas se recuperaram
do momento de medo provocado pelo surgimento da marca do Senhor das
Sombras no céu e recomeçaram a perseguição cruel.
Sem ousar olhar para trás, os companheiros continuaram correndo,
desviando-se de pedras, tropeçando no chão irregular, atingidos pelo vento
implacável que varria a planície. Então eles viram, não longe de onde estavam,
alguma coisa que bloqueava a passagem. Uma pedra comprida emergia da terra,
cintilando na terrível luz que vinha do céu.
— Para cima! — Barda disse ofegante. — Não podemos nos arriscar a
dar a volta. Não podemos deixar que eles... fiquem na nossa frente.
O grupo alcançou a barreira e saltou para cima, subindo para o alto com
dificuldade e escorregando pelo outro lado.
Lief caiu no chão duro, torcendo o ombro. Quando Jasmine aterrissou ao
seu lado, ele se ergueu de um salto e esperou Barda para ajudá-lo com Emlis. E
então ele ouviu Jasmine gritar o seu nome. Ele se virou, carregando Emlis nos
braços e viu algo que gelou o seu sangue nas veias.
Não muito longe deles, havia outra pedra imensa emergindo da terra,
mais alta do que a que tinham acabado de escalar. E de sua sombra surgia uma
figura enorme em forma de domo que emitia um brilho fosco igual ao das
rochas. O seu corpo imenso ondulava e inchava horrivelmente enquanto se
movia, como se a pele grossa e lisa cobrisse a carne, que nada mais era do que
uma geléia trepidante.
Lief abafou um grito quando o vulto se arrastou para onde havia luz. Ele
ouviu Filli guinchando apavorado, Kree grasnando e Barda praguejando. Ao
redor do corpo do monstro, havia um colar formado de dezenas de cabeças, cada
uma com olhos vidrados e abertos, bocas abertas sem lábios das quais pendia
uma língua longa, fina e gotejante.
Os amigos se encostaram à rocha. Os uivos e o barulho de pés batendo
no chão ficavam mais fortes. Os seus perseguidores estavam se aproximando.
Virar-se e escalar por onde tinham vindo seria entregar-se diretamente nas mãos
do inimigo.
Mas a besta caminhava na direção deles. Ela deslizava sem esforço no
chão tortuoso sobre centenas de minúsculas patas quase escondidas debaixo de
uma franja de pele que pendia do corpo como uma saia esfarrapada. Ele tinha
dezenas de olhos, que tinham girado para se fixar nos intrusos. As suas línguas
ficavam cada vez mais compridas e se enrolavam e tremiam ameaçadoras.
— Precisamos nos dividir e tentar dar a volta — Barda murmurou para
Lief e Jasmine. — Vocês dois vão para a direita. Eu vou para a esquerda com
Emlis.
Mas assim que deram o primeiro passo, ouviu-se um som agudo, e as
línguas dispararam para a frente como cobras em ambas as direções, não
atingindo Barda e Jasmine por pouco. Os companheiros recuaram e se
recostaram à rocha. Era evidente que não poderiam se mover.
O corpo da besta se enrugava e parecia inchar enquanto se aproximava, e
os seus olhos vazios brilhavam.
AO LADO DE JASMINE E BARDA, LIEF OBSERVOU O MONSTRO. ELE
ONDULAVA DIANTE DELES, AS SUAS LÍNGUAS SE AGITANDO E ENROLANDO, O
CORPO SE ACHATANDO E ESPALHANDO, ERGUENDO-SE LEVEMENTE DO LADO
VOLTADO PARA A ROCHA.
“Ele está se preparando para nos engolir”, Lief pensou.
Suas pernas enfraqueceram. O coração dele batia acelerado. A mão que
segurava a espada estava úmida e escorregadia. Suor corria sobre suas
sobrancelhas e, quando Lief ergueu a mão livre para limpá-lo devagar, o seu
braço roçou a Flauta de Pirra escondida debaixo da camisa. De repente, ele se
lembrou da promessa feita a Tirral.
A Flauta não estará perdida. Juro que ela vai ser devolvida para as cavernas.
Lief molhou os lábios secos. Aparentemente, essa promessa tinha sido
inútil. Tão inútil quanto todas as suas promessas — aos plumes, aos aurons, a
Marilen...
Não tenha medo, Marilen. Você só precisa esperar.
O vento gemia ao redor das rochas, como a voz fantasmagórica de seu
desespero.
— A flauta, Lief — Barda sussurrou ao seu lado. — A flauta! Use-a!
Lief hesitou. Era possível que a Flauta parasse a besta e talvez lhes desse
a chance de fugir. Mas, no momento em que fosse tocada, o Senhor das Sombras
tomaria conhecimento dela e de sua presença.
Eles perderiam a vantagem da surpresa e seriam caçados sem piedade,
não encontrariam os prisioneiros e nem conseguiriam libertá-los.
Ele se obrigou a deslizar a mão por debaixo da camisa e afrouxar o
cordão que fechava a bolsa de tecido vermelho. A ponta de seus dedos
encostaram na Flauta e a seguraram...
Um formigamento quente percorreu a sua mão, subiu por seu braço e
depois por todo o seu corpo. Era como se sangue novo corresse em suas veias,
fortalecendo as pernas trêmulas, acalmando o coração acelerado.
Lief endireitou os ombros, respirou fundo, de repente se sentindo vivo
outra vez. Em meio ao lamento do vento, ele ouviu os sons enraivecidos do
bando do outro lado do rochedo.
E de repente, soube o que devia fazer.
— Estamos aqui! — ele gritou o mais alto que pôde. — Venham pegar a
gente!
— Lief! — Jasmine gritou aterrorizada.
Uivos e gritos de fúria encheram o ar, seguidos do som de pés escalando
a rocha agitadamente e do raspar e bater de garras.
— Encostem bem na pedra! — Lief gritou, empurrando Barda e Jasmine
para trás. — O mais que vocês puderem! Pronto...
Os amigos ouviram grunhidos agudos acima de suas cabeças e, no
momento seguinte, figuras selvagens estavam se atirando cega e descuidadamente
sobre a borda do rochedo. Gritos de triunfo se transformaram em guinchos de
terror quando os atacantes perceberam o erro que tinham cometido. Retorcendo-
se e uivando, eles caíram sobre o corpo ondulado da besta, perfurando a sua pele
com garras e dentes, rolando e caindo estendidos no barro.
Arrastando Emlis com eles, os companheiros começaram a se esgueirar
pela beira do rochedo na direção da planície aberta. O início da caminhada foi
lento e cuidadoso, mas eles já não interessavam ao monstro. Inchando e girando,
com um líquido claro borbulhando dos orifícios em sua pele, ele atacava os
novos intrusos, os atacantes que tinham ousado feri-lo.
Sibilando, dezenas de línguas dispararam para fora e se enrolavam nos
vultos retorcidos no chão. Outras línguas se atiraram para cima, tentando
apanhar as criaturas ainda penduradas na beira do rochedo. As línguas agarravam
os que estavam caídos no chão sobre seus pés e os arrastavam, aos gritos, para a
morte.
Os companheiros já estavam perto do fim da rocha. Agora era o
momento de tomar uma decisão: deveriam correr para a planície e arriscar-se a
enfrentar os novos terrores que talvez estivessem à espera ali? Ou deveriam ir até
a segunda rocha, o que significava cruzar um espaço perigoso no qual a besta
ainda girava e grunhia?
Lief olhou para trás e ficou repugnado. O corpo da besta, rasgado e
ondulante, estava se desfazendo. As cabeças que pendiam do seu lado fugiam da
massa encrespada, arrastando grandes pedaços de carne.
Olhando apavorado, Lief ouviu os companheiros soltarem gritos
abafados quando compreenderam o que acontecia. Então, de repente, ele
também viu a verdade. As cabeças que rodeavam o corpo do monstro não faziam
parte dele. Elas pertenciam a versões menores e mais jovens dele mesmo que ele
carregava em bolsas ao redor do corpo enorme.
Os jovens rastejavam para longe da besta ferida, deixando grandes
buracos atrás de si. Eles tinham o tamanho de um homem, mas eram quatro
vezes mais largos. Todos estavam ansiosos por arrastar a presa que tinham
capturado com a sua língua enrolada e se banquetear.
Com os uivos e gritos das vítimas engolidas pelos monstros em seus
ouvidos, os amigos atravessaram correndo o espaço que os separava do segundo
rochedo. Eles o rodearam e se dirigiram para as rochas espalhadas, que
marcavam a beira da planície.
Ofegantes e trêmulos, se refugiaram atrás da maior pedra que
encontraram. Emlis estava gemendo de dor. Barda o colocou no chão e, juntos,
os companheiros limparam e trataram de seus ferimentos da melhor forma
possível, usando a pomada e as ataduras que tinham recebido dos kerons.
Durante um longo tempo, eles não comentaram sobre o que tinham
acabado de escapar. A lembrança ainda era muito brutal. Mas, finalmente,
quando Emlis se acalmou, Barda conseguiu falar.
— Me desculpem — ele murmurou. — Não foi graças a mim que
estamos salvos. Pensei que era o nosso fim. Não consegui pensar nem fazer nada,
só consegui ficar desesperado. E ainda estou paralisado. Não sei o que aconteceu
comigo.
Lief olhou para Jasmine. O rosto dela estava pálido e sombrio. Filli se
escondia debaixo de sua jaqueta e só o seu nariz estava visível. Kree, com as
penas arrepiadas, estava encolhido em seu ombro.
— Você também está se sentindo assim, Jasmine — Lief disse com
calma.
Ela concordou.
— Venho tentando lutar contra essa sensação, mas é impossível — ela
balbuciou. — É como se... o medo aumentasse cada vez que respiro. Como se o
ar estivesse envenenado.
Com um sobressalto, Lief se lembrou do cheiro estranho e amargo que
sentiu no ar quando chegaram à Terra das Sombras. Ele tinha se acostumado
com ele e não tinha pensado nele por muito tempo. Mas agora Lief percebia que
Jasmine estava certa. O vento era a forma encontrada pelo Senhor das Sombras
para enfraquecer a vontade dos que entravam no seu reino. O cheiro amargo que
carregava era o cheiro do desespero.
— Você tem razão! — ele exclamou. — Mas nós podemos combater
esse cheiro — ele tirou a bolsa vermelha de dentro da camisa. Com cuidado,
tirou a Flauta e estendeu-a a Barda e Jasmine. Assim que eles a seguraram, Lief
notou a mudança em seus rostos. As expressões estranhas e desanimadas
desapareceram, os seus olhos se iluminaram, as suas bocas ficaram firmes.
— Mas isso é um milagre! — Barda exclamou.
— Experimente em Emlis também — Jasmine pediu.
Eles colocaram a Flauta entre os dedos pálidos de Emlis e, de fato,
somente alguns minutos depois, os olhos do jovem keron se abriram.
Ele olhou os companheiros confuso, estremeceu e tentou se sentar. A
Flauta começou a escorregar para o chão. Lief a pegou antes que caísse e a
guardou na bolsa vermelha.
— Onde estamos? — Emlis balbuciou. — O que aconteceu? As
criaturas... me pegaram e carregaram e então... — ele arregalou os olhos
apavorado quando se lembrou do que tinha acontecido.
— Fique quieto, Emlis — Lief mandou, enfiando depressa a bolsa
vermelha debaixo da camisa. — Guarde as suas forças. Vamos ter que continuar
daqui a pouco.
— É mesmo — Barda murmurou, olhando por cima do ombro na
direção do rochedo, ainda muito próximo para que ficasse tranqüilo. Lief
dominou um estremecimento. Ele não queria pensar no que estava acontecendo
ali.
Jasmine também olhava para trás, mas por um motivo diferente.
— O caminho para o leste está impedido agora, a menos que a gente
queira se arriscar a cruzar o território da besta outra vez — ela disse preocupada.
— Por que está tão decidido a ir para o oeste, Lief?
Lief inclinou-se para a frente, ansioso em explicar.
— Porque me lembro de Perdição — ele disse. — Perdição fugiu da
Arena das Sombras. Dali, ele atravessou as colinas e chegou a Deltora, e foi
perseguido pelos Guardas Cinzentos ao subir a Montanha do Medo. Assim...
— A Arena deve ficar muito perto da fronteira e perto do lado oeste da
Montanha do Medo! — Barda exclamou. — Claro! Como não pensei nisso? Se
andarmos para o oeste, vamos chegar lá facilmente.
— E, com certeza, muitos prisioneiros devem estar na Arena das
Sombras — concluiu Lief, olhando para Jasmine. — Se eles vão ser executados,
como o pássaro te contou...
Ele fez uma pausa, e Jasmine concordou inquieta. Não tinha sido um
pássaro, mas, sim, Faith que tinha contado que os prisioneiros estavam em
perigo.
“A verdade não muda, não importa quem a conte”, Jasmine disse a si
mesma.
Barda se levantou.
— Para o oeste, então — ele disse. — Não que a gente tenha outra
escolha. Eu, pelo menos, não quero encontrar com a besta outra vez — ele
afirmou, desafiando Jasmine a discordar.
Mas Jasmine tinha raciocinado depressa. Lief tinha razão. A Arena das
Sombras tinha que estar perto da fronteira e também da Montanha do Medo. E
ela tinha se lembrado de outro fato. O veneno que os Guardas Cinzentos usavam
nas armas que atiravam as bolhas mortais era levado por uma trilha que ia da
Montanha do Medo até a Terra das Sombras.
Ninguém carregaria frascos de vidro contendo veneno mortal por uma
distância maior do que a necessária. Portanto, era quase certo que a fábrica onde
as bolhas eram produzidas ficava perto da trilha, do lado das Terras das Sombras.
A Arena das Sombras e a fábrica. Dois lugares muito importantes.
Ambos perto da Montanha do Medo. Fazia sentido que pelo menos uma das
principais bases do Senhor das Sombras estivesse no mesmo lugar. E Faith,
talvez, estivesse muito perto.
Ela baixou a cabeça para que Barda não visse o brilho de esperança em
seu olhar.
— Muito bem — ela murmurou. — Se você estiver certo, vamos
continuar avançando para o oeste.
Barda olhou para ela desconfiado. Jasmine não costumava concordar tão
facilmente. Mas ele não queria perder tempo fazendo perguntas. Ansioso para
partir, ele já estava ajudando Emlis a se levantar.
Lief estava parado ao lado deles e observava a planície. Ela estava
inundada de luz, mas grossas nuvens cobriam a Lua e as estrelas. A marca do
Senhor das Sombras dominava o céu, queimando como um fogo branco e frio.
— Vamos ter que andar com cuidado — ele murmurou, virando-se para
olhar a fileira de rochas recortadas que se dirigia para o oeste. — Não vejo
muitos lugares para a gente se esconder. Se nos virem...
— Vocês já foram vistos, idiotas! — grunhiu uma voz rouca vinda do
chão. E antes que ele pudesse se mexer ou falar, os seus tornozelos tinham sido
segurados por garras que o puxavam para baixo.
TENTANDO AGARRAR-SE INUTILMENTE AO CHÃO DURO, LIEF SENTIU AS
PERNAS RASPANDO NAS PEDRAS. APAVORADO, ELE PERCEBEU QUE ESTAVA
SENDO ARRASTADO PELOS PÉS PARA DENTRO DE UM BURACO QUE SE ABRIA
DEBAIXO DA ROCHA.
Desesperado, Lief estendeu os braços para a frente. Abafando um grito e
assustados, Jasmine, Emlis e Barda o agarraram, tentando em vão puxá-lo para
trás. Lief tentou chutar, mas as garras cobertas de escamas que prendiam os seus
tornozelos o seguraram com mais força e puxaram com mais vontade. Ele sentiu
como se estivesse sendo rasgado em dois. Ele gritou de dor e medo.
— Cale a boca ou vou matar todos vocês! — a voz rouca rugiu.
Ouviram-se insultos e grunhidos vindos de baixo. Então, de repente, Lief
sentiu outro par de mãos agarrar as suas pernas e puxar. Os amigos não
conseguiram mais segurar os seus braços e ele deslizou para baixo da rocha,
caindo com um ruído surdo no chão duro.
No mesmo instante, ele foi levantado e jogado contra uma parede,
enquanto o seu pescoço era apertado por uma mão enorme. Atordoado e quase
estrangulado, ele viu que a rocha não era uma pedra solta, mas parte do teto de
uma enorme caverna. Uma tocha tremeluzia nas paredes e no chão. Água
gotejava nas sombras. Um pequeno grupo de seres de aparência estranha espiava
para ele.
Havia um espantalho barbado em forma de homem cujas mãos eram
garras cobertas de escamas, como as garras de uma ave de rapina. Do lado dele,
estava uma mulher — jovem e alta, mas magra e com olhar de poucos amigos —
com a marca do Senhor das Sombras cruelmente queimada na testa. E,
prendendo Lief à parede, zombando, sujo, com um colar de ferro ao redor do
pescoço, estava... Glock!
Lief abriu a boca ao ver o rosto bruto tão perto do seu. Não podia ser!
Ele estava sonhando! Glock estava morto — morto e enterrado no túmulo de
um herói na ilha de Plume. Teria um Ol assumido a sua forma para enganá-los?
Um Ol grau três, capaz de imitar até o toque quente da pele de um ser humano?
Mas se isso fosse verdade, o Ol certamente fingiria reconhecê-lo, o
chamaria pelo nome e usaria a voz de Glock. Mas nenhum sinal de
reconhecimento brilhava nos olhos dele.
A mão imensa ao redor do pescoço de Lief pressionou mais ainda
enquanto Jasmine atravessava o buraco do teto da caverna seguida de perto de
Barda e Emlis. Os companheiros carregavam as suas armas nas mãos. Eles
saltaram para o chão e congelaram ao ver Lief preso à parede.
— Dê mais um passo e vou quebrar o pescoço dele como se fosse um
galho! — rugiu o ser parecido com Glock.
— Larguem as armas — ordenou o homem com mãos em forma de
garras, dando um passo à frente. — Nós somos amigos.
— Amigos que arrastam nosso companheiro para esse lugar? — Barda
vociferou, erguendo a espada levemente.
O homem inclinou a cabeça para o lado e observou Barda com
curiosidade.
— Brianne, feche o alçapão — ele mandou por sobre o ombro. Com um
olhar furioso, a mulher alta obedeceu.
— Você foi um idiota por trazer eles para cá, Garra! — ela criticou
quando a luz da caverna diminuiu bruscamente. — Eu não lhe disse?
— Então eu deveria deixar que fossem apanhados pelos Selvagens? — o
homem com as garras resmungou. — Você ficou bem satisfeita ao ser salva
quando estava vagando pela planície, Brianne. Eles são inofensivos, ouvi a
conversa deles.
O ser que se parecia com Glock cuspiu enojado.
— Inofensivos? Você está louco! Na melhor das hipóteses, eles são iscas,
e espiões, na pior! Olhe para eles! Eles se parecem com escravos fugidos? Eles
não mostram sinal da Tristeza.
— E eles vieram do leste, Garra — Brianne exclamou. — Todos os
escravos estão no oeste. Vimos com os nossos próprios olhos quando eles
atravessaram a planície, acorrentados e bem vigiados pelos guardas, enquanto um
Ak-Baba voava acima deles. Com os nossos próprios ouvidos, escutamos quando
os guardas os ameaçaram, dizendo que iriam para a Arena das Sombras. Como
esses quatro poderiam ter escapado?
Jasmine respirou fundo. Lief imaginou o que ela estava pensando e era só
o que podia fazer para manter o rosto inexpressivo. Ele estava certo. Todos os
escravos tinham sido levados para a Arena. Algum plano terrível estava em ação.
Eles tinham que fugir dali, e depressa.
Lief encontrou o olhar de Barda e piscou. Os lábios do amigo se
apertaram levemente.
— Então, estranhos? — Garra disse secamente. — Vocês ouviram a
opinião dos meus amigos. Quero explicações!
— Não temos que dar explicações a você — Lief disse com dificuldade.
— Não queremos a sua ajuda ou sua companhia. Só queremos continuar nosso
caminho.
— Mas claro! — Garra respondeu, curvando-se zombeteiro. — E por
que iríamos deixar que fizessem isso?
Em segundos, Garra recebeu a resposta, pois, antes que pudesse piscar,
Barda tinha dado um salto e apontava a espada para o seu pescoço.
Um gemido rouco escapou dos lábios de Lief quando a mão poderosa
que segurava o seu pescoço apertou ainda mais.
Barda apenas sorriu.
— Então, vamos trocar uma vida por uma vida? — ele perguntou com
indiferença. — Posso me virar sem o rapaz, que causa muito mais problemas do
que vale a pena. Os seus amigos podem se virar sem você?
O atacante de Lief grunhiu zangado. Brianne, o rosto de pedra, cruzou os
braços para disfarçar o tremor.
— Você tem um bom argumento — Garra respondeu, aparentemente
sem se importar. — Solte o rapaz! — ele ordenou, erguendo a voz.
Lief sentiu o aperto afrouxar e então a criatura recuou. Lief escorregou
para o chão da caverna tonto, o ar passando com dificuldade pela garganta
machucada. Quando Emlis e Jasmine correram até ele, Barda empurrou Garra
para junto do grupo.
Os outros moradores da caverna os olhavam, sem coragem para se
mover.
— Acho que o nosso relacionamento começou mal — Garra disse com
calma, como se estivesse conversando educadamente numa reunião social. —
Isso é uma pena, porque eu acho que vamos ter que ajudar uns aos outros muito
em breve. Vocês não agem como escravos fugitivos, isso é verdade. Mas também
não acho que sejam criaturas do Senhor das Sombras.
— O que eles são, então? — Brianne perguntou irritada. Então, de
repente, ela cobriu a boca com a mão e arregalou os olhos.
Garra concordou, sem tirar os olhos de cima de Barda.
— Eles são a prova do que eu disse no dia em que as nuvens vermelhas
voltaram para cima das montanhas e os Selvagens gritaram e tremeram diante da
fúria do inimigo. Deltora está livre. De alguma forma, o Cinturão de Deltora foi
restaurado e o seu poder devolvido ao herdeiro. Nossos visitantes atravessaram
as montanhas vindos de Deltora.
O rosto de Barda continuou inexpressivo.
O canto da boca de Garra se torceu como se ele estivesse se divertindo.
— Vocês não confiam em nós — ele disse. — Talvez as coisas
melhorem depois das apresentações. Eu sou conhecido como Garra, por motivos
que devem ser evidentes. Mas o meu verdadeiro nome é Mikal, de Del.
Ele viu os olhos de Lief se arregalarem, viu Jasmine e Emlis olharem
rapidamente para as suas garras. Ele sorriu sem vontade.
— Vocês estão surpresos — ele observou. — Vocês pensaram que eu era
uma criatura estranha de algum país distante? Ah, não, meus amigos. Sou um
cidadão de Deltora — ou era, antes que ela tivesse me esquecido. Vivi e trabalhei
na olaria. Vocês devem saber onde é.
Ele esperou e, ao não receber resposta, continuou.
— Quando vim para cá com a minha família, o Inimigo fez algumas ...
melhorias na minha aparência. O inimigo gosta dessas experiências...
Ele estendeu as garras e as flexionou pensativo.
— Elas são fortes e muito úteis — ele declarou. — Eu escapei da Fábrica
antes que o Inimigo tivesse terminado a sua obra. Eu sou um dos felizardos.
Outros não tiveram tanta sorte assim. O seu pequeno companheiro com o capuz
já deve ter conhecido alguns deles na Planície da Morte, quando eles o usavam
como isca. Nós os chamamos de Selvagens.
Ele sorriu tristemente.
Lief ouviu Emlis choramingar baixinho, sentiu a tensão de Barda e a mão
de Jasmine procurar a sua. Nauseado e aterrorizado, ele olhou para Garra, e se
obrigou a enfrentar a terrível verdade. As criaturas selvagens que tinham raptado
Emlis — aqueles terríveis seres metade animais, metade humanos que rondavam
na planície árida — eram o seu próprio povo. Vítimas da maldade do Senhor das
Sombras, enlouquecidas e sem esperanças.
Satisfeito com o efeito causado por suas palavras, Garra acenou para a
mulher alta.
— Brianne é o mais novo membro de nosso grupo. — a boca dele se
torceu num meio sorriso zombeteiro. — Muitas vezes, eu me arrependo do dia
em que a trouxe. Ela é teimosa como uma mula e tem sido uma pedra no meu
sapato desde o começo.
A mulher alta olhou para ele e endireitou os ombros.
— Brianne, de Lees — ela se apresentou bruscamente.
Uma lembrança passou pela cabeça de Lief. Brianne, de Lees. Onde já
tinha ouvido esse nome?
Mas Garra continuava a falar.
— Brianne escapou da Arena das Sombras. Dizem que é a terceira dos
deltoranos que conseguiu fugir. Mas o segundo está aqui.
Ele fez um gesto na direção da figura enorme que zombava ao lado de
Brianne.
— Este é o último integrante de nosso grupo. O último e maior, segundo
as suas próprias palavras. Gers, de Jalis.
— Gers! — Jasmine exclamou surpresa.
O homem que Garra chamou de Gers estendeu o queixo para a frente e
fechou os punhos enormes.
— Está achando o nome engraçado? — ele rugiu. — Então lute comigo,
fracote, e vamos ver se vai continuar sorrindo quando a luta terminar.
— Não tem nada de errado com o seu nome! — Jasmine gritou. — É só
que... é que você é exatamente igual a... um amigo nosso.
— Um Jalis chamado Glock — Barda acrescentou, sem tirar a espada do
pescoço de Garra.
O rosto de Gers ficou imóvel.
— Eu tinha um irmão chamado Glock — ele disse devagar.
— Não acredite neles, Gers! — Brianne exclamou. — Eles são criaturas
do Inimigo! Eles estão tentando enganar você.
Os olhos de Gers se estreitaram.
— Ninguém vai me enganar. Eu tinha um irmão. Ele era só um ano mais
velho do que eu. Mas faz muito tempo que ele morreu. Eu o vi ser derrubado no
campo de batalha quando Jalis fez a última tentativa de combater o Inimigo,
imediatamente antes de nós sermos capturados. — a mão enorme ajeitou o colar
de ferro ao redor de seu pescoço.
— É possível que Glock tenha sido derrubado, mas ele não morreu
— Jasmine disse emocionada. — Ele viveu para ter uma participação
importante na retirada do Senhor das Sombras de Deltora, e morreu como herói
em...
Barda pigarreou e Jasmine parou de falar, percebendo que quase tinha
falado demais.
— ...em nossos braços — ela concluiu sem firmeza. Quando Gers a
olhou desconfiado, Jasmine tirou o talismã de Glock, que levava pendurado no
pescoço, e o estendeu para ele.
— Glock me deu isso antes de morrer — ela contou. — Você sabe o que
é?
Gers arregalou os olhos.
— O talismã de nossa família! — ele balbuciou, os lábios mal se
movendo enquanto olhava a pequena bolsa desbotada. — O amuleto de madeira
de um duende morto por um de nossos ancestrais. Uma pedra da serpente-
diamante, e mais duas no ninho de um dragão. Ervas de grande poder. E a flor
de uma Carnívora. Nunca imaginei que os veria outra vez.
Jasmine olhou para Lief e Barda. O seu rosto mostrou que pelo menos
ela estava convencida. Ela estendeu a mão para Gers novamente.
— Pegue — ela insistiu com suavidade. — É seu por direito, e Glock
gostaria que ficassem com você. Ele deu o talismã para mim, porque não tinha
mais ninguém, e nós lutamos lado a lado. Ele não está mais completo, pois o que
você chama de amuleto do duende não está mais aí. Mas, mesmo assim, talvez
você goste de ficar com ele.
O homenzarrão olhou para ela, ainda sem fazer nenhum movimento para
pegar a pequena bolsa.
— O que Glock disse quando deu isso para você?
— Ele disse... — a voz de Jasmine tremeu um pouco, mas ela se esforçou
e continuou — ele disse “Você tem o coração de um Jalis. Pegue o talismã do
meu pescoço. Agora ele é seu. Talvez ele ajude você.”
Gers molhou os lábios.
— “Pegue o talismã do meu pescoço. Agora ele é seu. Talvez ele ajude
você” — ele repetiu. — Essas são as palavras. As palavras que sempre são ditas
quando o talismã é passado adiante.
Ele se virou para Garra.
— Ela está falando a verdade! — ele disse, a voz rouca de emoção.
— Ela lutou junto com o meu irmão. E se ele disse que ela tem o coração
de um Jalis, é verdade.
Gers olhou para Jasmine, curvou-se e tomou o talismã da mão dela.
— Espero que um dia eu também possa lutar ao seu lado — ele desejou.
Esse, estava claro, era o maior cumprimento que ele poderia oferecer a alguém.
— Então deixe este lugar agora e vá com a gente para o oeste, Gers —
ela respondeu, sorrindo. — Esse dia chegou.
UMA HORA DEPOIS, OS COMPANHEIROS ESTAVAM MAIS UMA VEZ
AVANÇANDO PARA O OESTE. MAS ELES NÃO VIAJAVAM POR TERRA, COMO
TINHAM PLANEJADO. ELES RASTEJAVAM POR UM TÚNEL DEBAIXO DA TERRA, E
NÃO ESTAVAM MAIS SOZINHOS. NÃO SÓ GERS OS ACOMPANHAVA, MAS TAMBÉM
GARRA E BRIANNE.
Lief estava muito satisfeito com a ajuda e a companhia dos moradores
das cavernas, mas não tinha esperado por aquilo. Os novos companheiros nem
sabiam os nomes dos visitantes. Após a sua história dramática, Jasmine apenas
contara a Gers que ela e os amigos tinham a intenção de libertar os escravos da
Arena das Sombras.
Ela não tinha contado nada sobre a Flauta de Pirra, de modo que a
missão parecia realmente uma loucura. Lief entendeu por que Gers se mostrou
interessado, mas tinha imaginado que Garra e Brianne seriam mais cuidadosos.
Porém, havia um fato que Lief não tinha considerado.
Garra disse simplesmente que a caverna não era mais segura.
— Vocês não querem admitir que acabaram de chegar de Deltora, meus
amigos, mas tenho certeza de que foi isso que aconteceu — ele disse. — Vocês
passaram pelo feitiço que cria uma barreira nas montanhas, e o Inimigo foi
avisado. Guardas Cinzentos estarão aqui aos bandos a qualquer momento,
farejando vocês. Quanto mais cedo partirmos, melhor.
Gers apenas grunhiu, concordando, mas o rosto de Brianne se encheu de
um desespero furioso quando se virou para encher um cantil de água.
Com uma expressão de pena, Emlis chamou Lief, Barda e Jasmine de
lado.
— Por que não podemos contar a Garra que ele não precisa ter medo,
porque chegamos às Terras das Sombras pelo subterrâneo? — ele sussurrou.
— Ninguém pode saber disso! — Lief sussurrou em resposta. — Seja lá
como isso for terminar, o Senhor das Sombras não pode saber sobre as cavernas.
O seu povo não pode ser traído.
— Mas eu tenho certeza de que podemos confiar em Garra e nos outros
— Emlis afirmou. — Eles não vão contar.
— Talvez não espontaneamente — Barda concordou sombrio. — Mas,
vindo com a gente ou não, eles podem ser capturados a qualquer momento.
Existem meios de fazer um prisioneiro falar, e o Senhor das Sombras conhece
todos.
Emlis pareceu aterrorizado.
— É por isso que dei poucas informações a Gers — Jasmine murmurou.
— Quanto menos os outros souberem das nossas intenções, mais seguros nós
vamos ficar, Emlis. E eles também, porque não poderão ser obrigados a contar o
que não sabem.
Ela olhou para Lief surpresa por ele ainda não ter falado. A cabeça do
amigo estava baixa, e ele parecia estar tomado por uma emoção muito forte.
— Você não concorda, Lief! — ela exclamou.
— Claro que concordo — ele disse, erguendo a cabeça e encontrando o
olhar de Jasmine. — Nós poderíamos diminuir o peso que carregamos jogando
nosso segredo sobre essas pessoas. Mas, se fizermos isso, talvez a gente os
condene a morrer se culpando por trair os amigos e seu país. Precisamos ficar em
silêncio. Mas concordo com Emlis que isso é difícil.
Antes que Jasmine pudesse responder, Gers passou por eles e
desapareceu nas sombras no fundo da caverna. Garra o seguiu com uma tocha.
Os companheiros ouviram o som de uma rocha raspando no chão. Então,
quando Garra ergueu a tocha, eles viram que Gers tinha aberto a entrada de um
pequeno túnel escuro.
— Este túnel leva a outra célula da Resistência mais para o oeste
— Garra contou. — Nós não o usamos desde o dia da ira do Senhor das
Sombras, mas ele é mais seguro do que andar ao ar livre.
Ele notou a hesitação dos companheiros e ergueu as sobrancelhas.
— Nós vamos na frente, se preferirem.
— Gers e Brianne primeiro — Barda disse. — Você, Garra, entre a
gente.
Garra concordou e levou Gers e Brianne para a entrada do túnel. Eles
entraram sem hesitar, aparentemente por estarem acostumados. Jasmine entrou
em seguida, e depois Emlis e Barda. Na vez de Garra, ele deu uma última olhada
na caverna e sorriu com amargura.
— Quando vim para este lugar, ele era só um buraco debaixo da rocha,
com espaço apenas para me esconder como um animal ferido — ele disse
devagar. — Então eu ouvi o barulho de água. Louco de sede, comecei a cavar.
Encontrei a caverna e a água. A nascente vem dos subterrâneos de Deltora —
acho que da Montanha do Medo — pois vence o desespero provocado pela
Terra das Sombras, que chamamos de Tristeza. Este lugar tem sido meu refúgio
há muito tempo.
— Desculpe se você está indo embora por nossa causa — Lief
murmurou com dor na consciência.
Garra abriu um sorriso largo.
— Não precisa se desculpar. Assim que vi as minas sendo abandonadas e
o nosso povo sendo levado para o oeste, eu soube que não ficaria escondido por
muito tempo. Enquanto eu podia fingir que o esconderijo atendia a um objetivo
— que salvar algumas pessoas ou matar alguns Guardas enfraquecia o Inimigo
— , eu pude suportar. Agora...
Ele apagou a tocha e foi atrás de Barda, seguido de perto por Lief.
O túnel era escuro e estreito. Os companheiros de Garra falavam pouco.
Na jornada através do corredor escuro, apertado e cheirando a mofo que parecia
interminável, Lief teve bastante tempo para se perguntar se estariam sendo
levados a uma armadilha.
Mas, finalmente, eles pararam de andar. Houve outro som forte quando a
pedra que fechava o túnel foi arrastada para o lado. Então, um longo e baixo
grunhido ecoou pelo túnel.
— O que é isso? — Lief escutou Brianne sussurrar. — Gers? Não houve
resposta.
A caminhada continuou quando Brianne, seguida pelos companheiros, se
juntou a Gers na caverna do outro lado do túnel.
Lief ouviu um grito abafado, uma série de sussurros e, então, silêncio
total. Com medo, ele se arrastou pela estreita abertura atrás de Garra.
Nenhuma tocha tinha sido acendida, mas a caverna não estava escura.
Uma luz branca e fria entrava pelo teto que tinha sido quebrado como a casca de
um ovo. Uma grossa camada de poeira cobria os restos de alguns poucos
pertences tristemente espalhados no chão — roupas de cama queimadas, uma
tigela quebrada, algumas roupas esfarrapadas.
A marca do Senhor das Sombras tinha sido gravada com fogo numa
parede de pedra manchada de sangue.
Estava claro o que tinha acontecido ali — uma descoberta seguida de
ataque. Até o ar tinha cheiro de medo.
Lief foi rapidamente para o lado de Barda, Jasmine e Emlis, que estavam
parados sem se mexer debaixo do buraco do teto, perto do que restava de uma
escada queimada.
— Hellena — Brianne gemeu, caindo de joelhos e apertando um xale
azul rasgado junto ao rosto, mergulhada em profundo sofrimento. — Pi-Ban,
Tipp, Moss, Pieter, Alexi...
Os lábios finos de Garra estavam apertados. Ele estava tão quieto que
mal parecia respirar.
Gers cuspiu na marca do Senhor das Sombras.
— Tivemos sorte que os Guardas estavam ocupados demais destruindo
tudo para fazer uma busca — ele murmurou. — Eles não encontraram o túnel. A
rocha ainda estava no lugar.
— Isso não significa que eles não o encontraram — Garra respondeu
sério. — Está claro que isso aconteceu alguns meses atrás, mas eles ainda podem
estar lá em cima, como gatos esperando o rato sair da toca.
Brianne se levantou, alta e ereta, o rosto magro marcado, mas ainda
bonito, frio como o gelo.
— Espero que estejam — ela disse, acariciando a adaga que levava na
cintura.
Foi então, de repente, que Lief lembrou onde ouvira o nome dela. Tinha
sido na estrada para Rithmere. Brianne, de Lees, tinha a fama de grande atleta,
uma Campeã dos Jogos de Rithmere. Dizia-se que ela tinha se escondido para
não dividir o prêmio que tinha conquistado com o seu vilarejo.
Essa história era falsa. Maldosamente falsa, pois tinha feito com que o
seu povo a odiasse, como certamente os Guardas fizeram questão de lhe contar,
já que gostavam de ver o sofrimento dos outros. Lief gostaria de poder contar a
ela que o seu povo agora sabia o que tinha acontecido e sofria a sua perda. Mas
ele não podia dizer nada. Ainda não.
Jasmine murmurou algo para Kree, que voou até o buraco no teto. Eles
viram a silhueta negra do pássaro desenhada no céu, os seus olhos amarelos
brilhando. Então Kree voltou para o ombro de Jasmine e emitiu uma série de
grasnados. O rosto de Jasmine ficou atento.
Gers praguejou e apertou o talismã.
— Você viu isso? — Lief escutou-o sussurrar para Garra. — O pássaro
está falando com ela.
— É o que parece — os olhos espertos de Garra observaram Jasmine e
Kree com interesse.
— Kree não viu nenhum Guarda, mas há um edifício enorme um pouco
para a esquerda — Jasmine informou.
— É a Fábrica — Garra disse. — Precisamos passar por ela para chegar
na Arena das Sombras — a voz dele era baixa e firme, mas enquanto falava um
nervo repuxou ao lado de seu olho e ele dobrou as garras sem perceber.
— É melhor a gente começar enquanto ainda é noite — Gers
resmungou, olhando para ele.
Garra concordou e então, sem dizer nada, foi para debaixo do buraco e
pulou, agarrou a borda do teto com as garras e se puxou para fora.
Jasmine, Barda, Lief e Brianne o seguiram e se viraram imediatamente
para puxar Emlis enquanto ele era erguido por Gers, que saiu por último,
grunhindo e praguejando com o esforço, as mãos enormes se apoiando na borda
do buraco, as pernas dando impulso nas paredes da caverna.
Quando finalmente ele caiu deitado na terra seca, os companheiros se
viraram para o oeste para observar a grande construção longa e escura que se
erguia a distância.
A Fábrica se espalhava quase até as montanhas. As suas chaminés altas e
finas atiravam chamas para o ar, colorindo de escarlate a nuvem quente que as
cobria. O simples fato de vê-la encheu Lief de pavor.
Ele se virou para Jasmine e viu que ela estava olhando fixamente para o
edifício ao longe, os olhos verdes fazendo cálculos, a boca firme e determinada.
Lief ficou agitado. Por que Jasmine estava daquele jeito?
Eles começaram a andar abaixados em fila indiana, movendo-se depressa
nos espaços abertos entre as rochas espalhadas. As chamas das chaminés
queimavam altas, orientando o seu caminho. Os seus ouvidos estavam atentos a
sons de perigo, mas tudo que conseguiam ouvir era o leve e monótono ronco
que ficava cada vez mais alto a cada passo que davam.
As chamas se aproximavam. O som trovejante ficou mais forte, fazendo
com que até o ar parecesse estremecer, e a própria terra sob seus pés parecesse
vibrar. Um desagradável cheiro doce e azedo era levado até eles pelo vento.
Agora Lief via o tamanho colossal da Fábrica de perto. Ele via uma
estrada larga que corria ao longo do edifício na direção do oeste e depois
desaparecia atrás de uma colina alta. Ele também conseguia ver a fonte do cheiro
terrível. Montes de lixo imensos e sombrios se formavam entre a estrada e as
montanhas.
— Esses montes vão nos dar uma boa cobertura — Barda murmurou
para Lief.
Garra se virou. O rosto dele brilhava de suor. Os seus olhos estavam
vidrados, os lábios fixos num sorriso que mais parecia um rosnado.
— Boa cobertura — ele repetiu. — Ah, sim. Também acho. Então,
repentinamente, ele arregalou os olhos.
— Gers, Brianne! — ele gritou com voz rouca.
Lief se virou depressa e viu, saltando na direção deles, um vulto verde e
monstruoso, de formas humanas, com ombros largos e curvados, mãos em
forma de garras e uma cauda agitada. As escamas iguais as de uma serpente
brilhavam, a horrenda boca sem lábios aberta num sorriso selvagem, os olhos
alaranjados queimando.
Lief sabia do que se tratava. Já tinha visto um ser parecido na Montanha
do Medo. Ele era uma criação do Senhor das Sombras, feito para lutar. Uma
máquina de matar insuperável. Um vraal.
AS TERRÍVEIS GARRAS CURVAS E AFIADAS DO VRAAL ESTAVAM
ESTENDIDAS. A SUA CAUDA BATIA DE UM LADO A OUTRO E PEDAÇOS DE ARGILA
SE ESPALHAVAM ATRÁS DE SEUS CASCOS RACHADOS QUANDO ELE SALTAVA PARA
A FRENTE.
— Corra, menina! — Gers gritou para Jasmine. — Não tente lutar com
ele.
O aviso era desnecessário para Jasmine, Lief e Barda. Eles já tinham
tentado lutar contra um vraal uma vez, e tinha sido suficiente. Aquele monstro
era invencível. Ele não se importava em sentir dor e não sabia o que era desistir
ou ter medo.
Jasmine se virou e correu na direção dos montes de lixo. Arrastando
Emlis no meio deles, Lief e Barda a seguiram com passos largos.
Furioso porque os seus oponentes não ficaram para lutar, o vraal
começou a persegui-los. A corrente quebrada e enferrujada que ainda pendia da
argola de ferro em seu pescoço chocalhou e tiniu, mas o vraal, acostumado ao
som, não se importou. Ele tinha vivido com ele desde que escapara do cativeiro.
Para o monstro, o som de correntes quebradas representava liberdade.
Liberdade para matar e se alimentar quando tivesse fome, em vez de se
submeter à vontade dos donos.
Liberdade para vaguear pela planície, tão aberta, tão diferente dos
espaços apertados da cela debaixo da Arena das Sombras.
Liberdade para caçar os homens-bestas que comiam besouros, os
escravos maltrapilhos, que cavavam buracos na terra, e os mestres cinzentos, que
tinham um gosto horrível, mas que proporcionavam um bom exercício antes de
cair gritando em suas garras e dentes.
Esses inimigos eram diferentes. Por causa do cheiro e também das
atitudes, o vraal sabia que eles não eram iguais aos inimigos com que tinha sido
obrigado a lutar antigamente. Sangue fresco e saboroso ainda corria em suas
veias. O fogo ainda queimava em seus corações.
Esses eram inimigos que valia a pena matar. Eles eram como os inimigos
dos velhos tempos da Arena das Sombras, fortes e cheios de energia, que eram
trazidos todos os dias para lutar e morrer.
Mas esses inimigos não estavam lutando. Eles estavam correndo.
Correndo para as colinas que cheiravam como carne podre, que o vraal só comia
quando estava faminto.
O nariz do vraal era apurado e delicado e não gostava de mau cheiro
como qualquer ser humano. Ele também sabia que os seus cascos, adequados
para quase todos os tipos de superfície, não teriam bom desempenho nos morros
que caíam aos pedaços. Mas ele hesitou só por um segundo antes de entrar no
monte de sujeira.
Seus inimigos não conseguiriam se esconder por muito tempo. No fim,
ele iria encontrá-los. Logo haveria luz, e o edifício que se erguia ao lado dos
montes asquerosos — o edifício que soltava fogo — não servia de esconderijo.
O vraal sabia que os humanos preferiam morrer a entrar lá.
Os moradores das cavernas tinham se espalhado e se enterrado nos
montes até desaparecerem. Anos se escondendo tinham ensinado a eles que, ao
primeiro sinal de ameaça, era preciso ir para o subterrâneo. Barda, Emlis, Lief e
Jasmine, porém, não tinham sido tão rápidos e agora ouviam o vraal
escorregando e se aproximando deles com dificuldade.
Com Jasmine na frente, eles tropeçaram na escuridão, muitas vezes
mergulhados até os joelhos no lixo pegajoso e repugnante, tentando se afastar ao
máximo da besta antes de tentar parar e se esconder. Mas os sons emitidos pelo
vraal eram cada vez mais altos. Em vez de ficar para trás, ele se aproximava.
Então, de repente, enquanto eles avançavam com dificuldade pela lateral
de um morro, a Fábrica apareceu na frente deles, sem janelas e sombria.
“Jasmine nos levou para o lado errado!”, Lief pensou apavorado. “Como
isso tinha acontecido? Jasmine sempre foi capaz de se orientar, mesmo no
escuro, e ela não hesitou por nenhum momento. Era como se ela quisesse estar
perto da Fábrica. Mas isso é impossível!”
Nesse instante, Emlis também viu a Fábrica, soltou um grito agudo,
escorregou e caiu em cima de Barda.
O homenzarrão cambaleou, e os seus pés se enterraram fundo na lateral
do morro. A superfície solta começou a deslizar e logo toda uma seção do monte
caiu. Sem poder fazer nada, os companheiros foram levados para baixo junto
com uma massa de lixo e aterrissaram, assustados e sem fôlego, no alto de um
pequeno monte, bem ao lado da estrada.
Meio cobertos pela sujeira, quase sufocados pelo mau cheiro, eles ficaram
deitados ali, apavorados demais para se mover.
Lief não conseguia mais ouvir o vraal. Com cuidado, ele limpou a sujeira
do rosto, olhou para os lados e para cima. Então ele o viu — o monstro havia
escalado um morro exatamente atrás daquele que tinha caído. Com sua silhueta
assustadora contrastando com o céu claro, ele não se mexia e espiava para baixo,
procurando sinais de movimento.
— Sinto cheiro de carrapatos!
Lief sentiu o coração parar. A voz pouco clara tinha vindo do lado de seu
ouvido, e ele se esforçou para virar a cabeça.
Um rosto medonho estava bem ao lado dele. Um rosto de olhos brancos,
meio derretido, de feições embaçadas e retorcidas. Quando Lief se encolheu
horrorizado, a boca torta mostrou um sorriso terrível e falou outra vez.
— Carrapatos de Deltora! Você ouviu, Carns?
Lief escutou o grito abafado de Jasmine, o choro alto e apavorado de
Emlis, logo abafado, provavelmente pela mão de Barda.
— Fique quieto! — Barda sussurrou. — Ele não pode nos machucar.
Você não viu que ele está meio morto?
— Carrapatos, sim, Cam 2 — outra voz grunhiu, muito perto.
— Os Perns querem esses carrapatos! — dessa vez, a voz vinha de
debaixo do ombro de Lief. — Os Perns vão matar os carrapatos e agradar o
mestre. Ele vai ver que ainda podemos prestar bons serviços por muitos anos!
Algo se mexeu no peito de Lief. O estômago dele se revirou quando
percebeu que se tratava de uma mão de dedos inchados que saía de um braço
coberto por um uniforme cinzento.
Então, de repente, houve movimentos em toda a sua volta, e foi como se
os seus olhos pudessem ver, pela primeira vez, o que o cercava e o que estava
debaixo dele. O morro era uma massa de corpos em uniformes cinzentos,
empilhados um em cima do outro.
Cabeças afundadas e deformadas estavam viradas para cima. Pés saindo
de botas rasgadas se retorciam sem poder fazer nada. Membros abertos e frouxos
estremeciam. Mãos que se dissolviam abanavam e se debatiam. E vozes pastosas
se ergueram num coro horrendo.
— Matem os carrapatos! Vamos pegá-los e satisfazer o senhor! Vamos
mostrar ao senhor que não somos...
O vraal virou a cabeça na direção do som e do movimento. Os seus
olhos avermelhados pareciam faiscar. A sua boca aberta como uma grande ferida
vermelha mostrava uma fileira de dentes brancos.
Quando ele deu um passo à frente, Lief, Jasmine, Barda e Emlis
levantaram-se de um salto, livrando-se das mãos agitadas que tentavam puxá-los
para trás. Kree mergulhou do ar, usando o bico forte num Guarda que tentava
pegar o tornozelo de Jasmine.
— Pássaro preto! Comunico presença de pássaro preto e garota! — o
Guarda avisou. O grito foi ouvido pelos seus companheiros e sussurrado de um
morro a outro, ecoando horrivelmente de centenas de gargantas secas. Pássaro
preto e garota... informar o senhor, o senhor...
A respiração difícil, o peito apertado de medo e horror, os companheiros
desceram tropeçando até a estrada e começaram a correr.
Olhando por cima do ombro, Lief viu que o vraal tinha chegado ao
morro do qual tinham acabado de fugir. O monte ainda ondulava com o
movimento dos guardas agonizantes. O vraal estava parado no alto, a cauda
agitada, as garras abertas.
Lief sabia que o monstro estava apreciando o momento, ansioso pela
caçada, pelo ato de matar, pela vitória certa. Em segundos, ele estaria atrás deles.
Em segundos.
— Lief! — Jasmine gritou.
Lief olhou para a frente. Jasmine estava parada diante de uma porta de
metal da Fábrica. Ela a segurava aberta, e Barda e Emlis já corriam para dentro.
Com um rugido, o vraal pulou. Antes de atingir o chão, Lief já se
aproximava da porta. Ele se aproximou dela, empurrou Jasmine para dentro,
entrou e a fechou no exato momento em que o vraal se chocava contra ela.
Os companheiros ficaram ofegantes de costas para a porta, enquanto a
besta golpeava o metal, urrando e rugindo. Eles estavam em um quarto quadrado
com portas em todos os lados. Uma das portas, a do lado direito, exibia um
grande símbolo pintado de preto.
Jasmine correu até a porta, colou o ouvido nela e ouviu com atenção.
Lief olhou ao redor. Não havia lugar para se esconder. O quarto estava
completamente vazio. As paredes eram duras, lisas e emitiam um brilho branco.
O teto era iluminado com uma luz fria que parecia vir de lugar nenhum.
“Como o quarto de Fallow no palácio”, Lief pensou. No mesmo instante,
ele se repreendeu e tentou bloquear a mente.
Tarde demais. Lembranças daquele outro quarto branco já passeavam em
sua mente, trazendo com elas fraqueza e terror. Um suor frio escorreu por sua
testa. Ele lutou contra as lembranças.
Mas não adiantou. O seu cérebro estava repleto de imagens e sons.
Sozinho e em segredo, confiando na proteção do Cinturão de Deltora,
ele tinha tentado com todas as forças destruir o perigo e o mal encerrados no
quarto de Fallow.
Tinha sido uma batalha desesperada e angustiante. Era uma batalha que
ele tinha lutado sozinho, como sabia que tinha que fazer, e tinha perdido. No
final, exausto, fraco e doente, ele teve que se satisfazer em fechar o quarto com
tijolos e mandar o corredor ser vigiado por guardas para que ninguém entrasse.
Então, ele tentou apagá-lo de sua mente, esquecer que existia.
Mas ele não conseguia esquecer. O conhecimento da profunda escuridão
que estava escondida no coração do palácio continuava a atormentar Lief.
Ele nunca comentou o fato com ninguém. Somente uma pessoa sabia o
que ele tinha passado naquele quarto fechado, e essa pessoa era Marilen, pois não
podia haver segredos entre eles.
Marilen... Ele se lembrou da imagem da garota como a tinha visto da
última vez — trêmula, envolvida em sua capa, o rosto assustado virado para o
dele quando se despediram.
Ele se apegou à imagem como se fosse uma linha da vida, usando-a para
se libertar da confusão de medos e lembranças que ameaçavam engoli-lo.
Jasmine estava puxando o seu braço e sussurrava algo para ele com
insistência. Algo sobre um esconderijo. Sobre...
Ouviu-se um forte estrondo, e a porta de metal se curvou para dentro e o
vraal chocou-se contra ela mais uma vez.
— Lief! Os Guardas vêm vindo! — Jasmine avisou ofegante, enquanto
Filli guinchava freneticamente em seu ombro. Ela arrastou Lief até a porta que
tinha o símbolo preto. Ela estava aberta, e Barda e Emlis já passavam para o
quarto do outro lado.
— Não tem ninguém aqui — Jasmine conseguiu falar. — E acho que o
sinal mostra que ele é proibido para Guardas Cinzentos. Isso vai nos dar algum
tempo. Depressa!
Agora Lief também conseguia ouvir os passos duros e as vozes que
gritavam e se aproximavam deles vindos de algum lugar do edifício. Ele
atravessou a porta aberta, seguido de perto por Jasmine.
ENQUANTO JASMINE FECHAVA A PORTA, LIEF, BARDA E EMLIS
CONTEMPLARAM, ESPANTADOS, O GRANDE SALÃO EM QUE TINHAM ENTRADO.
ELE ERA TÃO BRANCO E FORTEMENTE ILUMINADO QUANTO O QUARTO DE QUE
TINHAM ACABADO DE SAIR, MAS ERA MUITO, MUITO MAIOR. ELE ERA TOMADO
POR UM ZUNIDO BAIXO E OUTROS SONS LENTOS, CONTÍNUOS E BORBULHANTES.
COMO O QUE SE OUVE QUANDO SE COZINHA MINGAU. O SALÃO ESTAVA MUITO
QUENTE E CHEIO DE VAPOR, E HAVIA UM CHEIRO ESTRANHO QUE LEMBRAVA A
LIEF O CHEIRO DE FERRO QUENTE.
O aposento estava lotado de recipientes compridos de metal apoiados em
pequenos pés. Eles estavam bem arrumados um atrás do outro e ocupavam
quase toda a largura da sala. Da porta, Lief não conseguiu ver o que havia dentro
deles.
Ele se aproximou de um deles e congelou. O som de botas pesadas pôde
ser ouvido na sala ao lado. Vozes ásperas gritavam.
— A porta está torta. Alguém tentou entrar. Uma gangue de Selvagens
certamente. Dê uma olhada, Bak 3.
Os amigos ouviram a porta de metal sendo aberta, um grito e um forte
estrondo quando ela foi fechada com força.
— Vraal! — várias vozes gritaram em meio a pancadas e golpes do
monstro que atacava a porta novamente.
Surpreendentemente, os Guardas ainda não tinham sentido o cheiro dos
invasores e não tinham adivinhado que o vraal estava perseguindo os intrusos.
Lief sentiu Jasmine tocar o seu braço. Ela pôs o dedo sobre os lábios e acenou.
Então, muito devagar e em silêncio, ela começou a avançar pela sala.
— Ele não vai embora! — uma voz gritou do outro lado da porta.
— Chame os Perns!
— Não! Podemos cuidar disso sozinhos! — outra voz protestou.
— Temos as novas varinhas que soltam faíscas, não é? Agora vamos
poder usá-las.
Os Guardas ainda estavam concentrados no vraal.
“Quando eles expulsarem o monstro, poderemos escapar. Mas Jasmine
está certa em não ficar parada. Qualquer um pode nos ver aqui. Precisamos achar
um esconderijo seguro enquanto esperamos”, Lief pensou.
Ele acompanhou Jasmine na ponta dos pés, seguido de perto por Barda,
que praticamente carregava Emlis.
Mas quando chegaram ao primeiro recipiente de metal, eles congelaram.
O recipiente era dividido em dez diferentes seções e dentro de cada
compartimento havia algo parecido com uma sopa que fervia lentamente. No
líquido cinza claro boiavam pedaços de formas estranhas.
— O que é isso? — Barda murmurou, franzindo o nariz.
— Não importa — Jasmine sussurrou, espiando dentro do recipiente e
continuando a andar. — Não pare. Tem uma porta no fundo da sala. Vamos...
Jasmine cobriu a boca com a mão e soltou um som abafado.
Lief correu para junto dela com Barda e Emlis. Quando viu o que a
amiga tinha descoberto, o seu estômago revirou.
Os compartimentos da segunda caixa estavam cheios até a metade com a
sopa cinza claro, que cozinhava devagar, mas no líquido flutuavam corpos sem
forma com cabeças, braços, pernas...
Barda praguejou baixinho. Emlis cobriu o rosto com as mãos. O rosto de
Jasmine estava retorcido de horror.
— Pessoas mortas! — ela conseguiu falar. — Corpos sem vida se
dissolvendo...
— Não! — Lief tinha andado ao lado do recipiente e tinha visto o que os
amigos não viram. Havia três palavras gravadas no metal.
CASULOS DE CARNS
— Eles não estão se dissolvendo — ele disse com voz rouca, quando se
virou para os amigos. — Eles estão se formando. Eles são Guardas Cinzentos.
Eles não nascem, mas são criados! Aqui, na Fábrica!
Ele mostrou as palavras gravadas com o dedo trêmulo.
— Sabemos que os Guardas Cinzentos sempre vêm em grupos de dez.
Dez irmãos idênticos com o mesmo nome, que trabalham e lutam juntos. Vocês
não percebem? Cada um desses recipientes é um casulo. Esses são os casulos dos
Carns.
— Os Carns que estão no monte de lixo, Lief! Como eles também
podem estar aqui? — Barda perguntou intrigado.
— Porque... — Lief ia explicando.
Então, de repente, a porta do fundo da sala começou a se abrir. Com um
raio, os companheiros se agacharam atrás do recipiente. — ... parece que era só
um vraal furioso — disse uma mulher jovem.
— Os Baks vão cuidar dele.
— Ou o monstro vai cuidar deles — respondeu uma voz masculina.
— Esses Baks já passaram dez dias da data de vencimento. Eles estão
começando a cometer erros. Além disso, na minha opinião, o modelo Bak nunca
foi perfeito.
Ouviu-se o ruído de passos no chão duro. Espiando por trás dos pés dos
recipientes, Lief viu dois pares de pés calçados em botas brancas, que passavam
lentamente pelo salão, inspecionando a última fileira de caixas. Ele também viu
que a porta estava só encostada.
— Esses Baks novos já estão quase prontos — disse a mulher com
suavidade, depois de um instante. Lief achou a voz conhecida, mas isso era
impossível. Estava claro que ela era uma serva do Senhor das Sombras.
— Já estava na hora — o homem respondeu irritado. — Eu já lhe disse.
Os estoques de Guardas estão baixos demais. Quando verificarmos os Carns,
você vai ver como a situação é grave. Tivemos que nos livrar dos velhos Carns
semanas atrás, e os novos nem estavam formados!
Lief sentiu os olhos de Jasmine e Barda voltados para ele e soube que os
companheiros tinham compreendido afinal. Os Guardas Cinzentos, criados
apenas para servir, para serem cruéis, totalmente obedientes e sem nenhum traço
de simpatia ou pena, viviam somente por um período limitado. Quando
começavam a ficar gastos, eram simplesmente jogados fora e substituídos por
modelos idênticos.
“Não é surpresa que a entrada deles nessa sala seja proibida”, Lief
pensou. “Apesar da obediência cega, até eles poderiam reagir se vissem os seus
substitutos crescendo aqui.”
As botas brancas se viraram e começaram a voltar para o outro lado do
aposento. Os recém-chegados estavam inspecionando outra fila de Guardas em
formação.
Com cuidado, Lief, Barda, Jasmine e Emlis começaram a rastejar para a
frente, junto dos recipientes. Sair de onde estavam era arriscado, mas era um
risco que eles tinham que enfrentar. Se ficassem onde estavam, logo seriam
descobertos.
Felizmente, os inspetores estavam interessados demais em seu trabalho e
em sua conversa para perceber os sons baixos de pés que se arrastavam do outro
lado do salão.
— Esses Perns estão crescendo mais devagar do que a previsão — a
mulher comentou, quando chegou ao final da penúltima fileira.
— Bom, não é minha culpa! — o seu companheiro exclamou. — A
energia foi cortada duas vezes ontem — ele continuou com a voz queixosa. — É
tudo culpa do Projeto de Conversão! Na minha opinião, ele usa material demais
há muito tempo e toda a atenção do mestre.
“Projeto de Conversão?”, Lief repetiu mentalmente, prendendo a
respiração e ouvindo com atenção. Os inspetores tinham passado pela próxima
fila e voltavam devagar para onde os companheiros estavam escondidos. Esperar
era perigoso, mas ele tinha que ouvir o que diziam.
— Parece que você tem muitas opiniões, 3-19 — a mulher comentou,
endurecendo a voz. — Se eu fosse você, tomaria cuidado.
— O que você quer dizer? — o homem perguntou desconfiado.
— Por que você acha que o Projeto de Conversão passou a ser mais
importante que tudo para o mestre, seu idiota? — a mulher perguntou irritada,
perdendo a paciência. — É porque o recente desastre em Deltora o fez perder a
confiança nos Ols de Grau 3. Em você e na sua raça, 3-19!
O coração de Lief acelerou. O ser chamado de 3-19 era um Ol de Grau 3!
Um exemplo dos seres capazes de mudar de forma mais perfeitos e perigosos
criados pelo perverso Senhor das Sombras. Capazes de imitar os humanos com
tanta exatidão que podiam viver entre eles sem serem descobertos.
Quem — ou o que — era a mulher, então? Ele queimava de curiosidade
para saber qual seria a aparência dos dois, mas não ousou levantar a cabeça.
— O mestre está achando que os Ols de Grau 3 foram um erro — a
mulher continuou. — São parecidos demais com humanos. São orgulhosos,
curiosos, fracos e desobedientes. E você, 3-19, parece estar provando que ele está
com a razão!
Depois de dizer isso, ela se afastou depressa do companheiro. Lief
deslizou para a frente e saiu depressa da passagem lateral bem a tempo de se
esconder outra vez.
Ele podia ver os vultos agachados de Barda, Jasmine e Emlis algumas
fileiras adiante. Ele também podia ver as pernas, cobertas com botas brancas, da
mulher misteriosa no fundo da sala.
Com um estremecimento de pavor, Lief viu a ponta da capa verde de
Emlis aparecendo no corredor. Se a mulher olhasse para a frente e para baixo...
Mas ela não parecia estar disposta a notar o que havia ao seu redor. Ela
batia um dos pés com impaciência enquanto 3-19 corria para se juntar a ela,
murmurando desculpas e explicações.
— ...não quis criticar ninguém — Lief escutou o Ol dizer. — Eu nunca
duvidaria da opinião do mestre.
— Pois eu acho que era exatamente isso que você estava fazendo! — a
mulher disparou, passando à próxima fileira de novos Guardas Cinzentos. — O
Projeto de Conversão é a porta para o futuro, 3-19. Como você vai descobrir
muito em breve.
— Breve? — 3-19 engasgou muito assustado. — Mas eu pensei...
— Todos os erros do processo foram corrigidos — a mulher replicou
com frieza. — Você vê algum defeito em mim?
Houve um momento de silêncio.
— Eu... eu não sabia que você era um deles — 3-19 conseguiu balbuciar
enfim.
— Pois bem, eu sou! — a mulher confirmou. — Agora, explique por que
esses Krops parecem mais magros do que deveriam ser.
Eles estavam passando ao outro lado do aposento outra vez. Lief, Barda,
Jasmine e Emlis se esgueiraram para fora do esconderijo e começaram a rastejar
para a frente o mais depressa possível.
Em instantes, eles estavam quase na mesma altura que os dois inspetores,
que naquele momento já tinham quase chegado ao fim do Casulo de Krops.
Aquele era o momento mais perigoso. Um por um, os companheiros
atravessaram o espaço entre os recipientes. Se um dos inspetores parados na
extremidade do corredor se virasse, eles seriam vistos claramente.
Mas eles não se viraram. Olhando para os lados ao sair do esconderijo,
Lief viu rapidamente os dois vultos vestidos de branco, um alto, o outro baixo e
magro, parados juntos no fim do recipiente. O vulto baixo consultava um
gráfico. O alto estava curvado para virar uma das alavancas do recipiente de
metal reluzente.
Então, os dois ficaram fora das vistas de Lief mais uma vez quando ele
seguiu os amigos, passou pelos dois últimos casulos junto da parede dos fundos,
em direção da porta aberta.
Ainda abaixada, Jasmine espiou com cuidado para fora. Ela se virou,
acenou para os amigos e rastejou pela abertura. Barda e Emlis a seguiram, mas,
quando Lief ia acompanhá-los, percebendo que a outra sala era algum tipo de sala
de trabalho, ele ouviu o Ol falar de novo, muito tímido.
— O plano do mestre...
— O mestre tem muitos planos! — a mulher interrompeu irritada. — E
nenhum deles é da sua conta!
Jasmine acenava com insistência do outro lado do aposento, mas Lief
não conseguiu mais conter a curiosidade. Assim que pôde, levantou-se e espiou
com cuidado atrás da porta semi-aberta para dentro da sala de casulos.
Os dois vultos tinham começado a inspecionar mais uma fileira de
Guardas. O mais baixo, a mulher, estava consultando o gráfico. O alto a seguia
de perto.
Ele tinha o rosto magro e azedo de Fallow.
Lief agarrou a porta até os nós dos dedos ficarem brancos. “Aquele não é
Fallow”, ele lembrou desesperado. “Fallow morreu. Aquela criatura, 3-19, apenas
usa o mesmo rosto.” Mas, mesmo assim, a sua respiração se acelerou, e um
calafrio percorreu o seu corpo.
Então, a mulher ergueu os olhos do gráfico e se virou para o
companheiro. O seu rosto delicado e os seus olhos azuis claros foram iluminados
pela luz forte.
Lief olhou para ela durante uma fração de segundo e então recuou atrás
da porta chocado.
BARDA, JASMINE E EMLIS ESTAVAM REUNIDOS NA FRENTE DE UMA PORTA
ESTREITA AO LADO DA SALA DE TRABALHO. LIEF CONTORNOU UMA LONGA MESA
BRANCA, ONDE HAVIA MUITOS JARROS, CANECAS DE MEDIDAS E UM POTE
CONTENDO UM LÍQUIDO VERDE E BORBULHANTE EM CIMA DE UMA CHAMA, E
CORREU BARULHENTAMENTE ATÉ ELES.
— Não tem lugar para a gente se esconder aqui — Jasmine sussurrou. —
Temos que procurar outro lugar — ela parou quando percebeu a expressão do
rosto de Lief. — O que foi? — ela murmurou. — Parece que você viu um
fantasma.
— Eu vi — Lief respondeu baixinho. — Aquela mulher, a da sala dos
casulos, é Tira, de Noradz.
Barda e Jasmine olharam para ele horrorizados.
— Quem é Tira? — Emlis perguntou, olhando de um para outro.
— Uma amiga que uma vez arriscou a vida para nos ajudar — Jasmine
contou desalentada. — Ficamos sabendo que o povo dela foi trazido para a Terra
das Sombras. Esperávamos encontrá-la e salvá-la, mas...
— Mas parece que ela não quer ser salva — Barda retrucou zangado. —
Ela se tornou uma criatura do Senhor das Sombras. O que fizeram com ela?
— Acho que a resposta está ali dentro — Jasmine disse devagar. Ela deu
um passo para o lado e apontou o aviso na porta.
Não se ouvia nenhum som atrás da porta. Lief segurou a maçaneta, que
girou com facilidade. Ele abriu a porta um pouquinho e espiou na sala.
No início, tudo o que conseguiu ver foi uma luz rosa avermelhada. Ele
piscou e, lentamente, conseguiu enxergar melhor. Era outra sala de trabalho,
muito maior — enorme, silenciosa e vazia. A estranha luz vermelha brilhava das
paredes, do teto e do chão. Na parede em frente a Lief, havia duas portas grandes
firmemente fechadas.
Uma onda de medo o invadiu. Jasmine o empurrava, incentivando-o a
andar, mas, durante um longo momento, ele resistiu. Tudo dentro dele ordenava
que ficasse onde estava. Ele segurou a Flauta de Pirra debaixo da camisa e,
finalmente, reuniu força suficiente para entrar tropeçando no quarto.
Várias mesas de trabalho estavam encostadas às paredes laterais, cada
uma ocupando um terço da largura da sala, cada uma coberta com um conjunto
de tiras de couro largas. Lief estremeceu quando a sua imaginação começou a
encher o aposento de pessoas. As vítimas indefesas presas aos balcões, as
criaturas vestidas de branco trabalhando nelas, obedecendo às ordens do mestre.
Fazendo... o quê?
O corredor formado no meio da sala estava vazio, mas o piso arranhado
indicava que nem sempre tinha sido assim. Algo pesado, grande e quadrado tinha
estado exatamente no centro. Marcas rasas, como as deixadas por rodas de
carroças, mostravam que o objeto tinha sido arrastado para fora da sala, por uma
porta dupla.
Apesar de não ter visto nada assustador, todo o corpo de Lief estremeceu
ao se aproximar das marcas no chão. Ele sabia, sem dúvida alguma, que o mal
tinha estado naquele aposento iluminado de vermelho.
Seus companheiros tiveram a mesma sensação. Emlis pareceu ter
encolhido dentro da capa, o pequeno rosto aflito e os dentes ligeiramente à
mostra. Barda respirava ruidosamente, como se tivesse corrido. O rosto de
Jasmine estava pálido. Filli tinha desaparecido debaixo de sua gola, e Kree parecia
uma estátua negra em seu ombro.
Por instinto, todos evitaram pisar nas marcas no chão. Eles as
contornaram andando bem perto das mesas de trabalho e evitando olhar para
elas.
Os companheiros se aproximaram da porta dupla e, depois de escutar
com atenção e não ouvir nenhum som, eles a atravessaram.
Uma onda de poder maligno os atingiu em cheio no rosto, fazendo com
que parassem onde estavam.
Eles se encontravam num espaço mal-iluminado por uma luz
avermelhada, com uma porta dupla em cada parede. O espaço estava vazio,
exceto por uma enorme caixa quadrada de metal colocada no centro, onde
terminavam as marcas dentadas no piso. A caixa tinha a mesma altura de
Jasmine, rodas e um alçapão em uma extremidade. A sua tampa estava aberta e
pendia em uma das laterais. Não havia dúvidas de que era o objeto que tinha sido
movido da sala de trabalho.
O mal soltava-se dela como uma onda de calor, mas, ao mesmo tempo,
transmitia uma sensação de frio mortal, que parecia congelar o sangue dos
amigos. Emlis começou a choramingar.
Lief obrigou-se a agarrar a Flauta de Pirra. Uma sensação de calor
percorreu os seus dedos, e ele deu um passo a frente.
— Pare! — Jasmine sussurrou, segurando o braço dele. — Lief, não! Não
chegue perto disso!
Mas Lief tinha que saber o que havia dentro da caixa. Agarrando a Flauta
com mais força, ele deu outro passo, seguido por Jasmine, que tentava impedi-lo.
Ele estendeu a mão para a caixa e, assustado, olhou sobre a beirada.
No início, ele só conseguiu ver uma massa rosada que se retorcia. Mas
então o seu coração pareceu parar quando se deu conta do que estava vendo —
milhares de vermes compridos e claros, com cabeças escarlate, que se retorciam
no banho de um líquido vermelho.
E então os vermes perceberam a sua presença. Eles começaram a se
levantar para pegá-lo, agitando as caudas, as cabeças vermelhas perversas se
esforçando para subir pela lateral da caixa.
Com um grito abafado, Lief recuou rapidamente, chocando-se contra
Barda e Jasmine, que estavam bem atrás dele.
Ele não precisou perguntar aos amigos se eles tinham visto, pois os seus
rostos horrorizados lhe diziam que sim.
— Temos que sair deste lugar — Barda murmurou. Ele apontou para a
porta dupla à direita. — Por ali! O meu senso de direção me diz que os montes
de lixo estão daquele lado. Talvez tenha outra porta...
— Não! — Jasmine protestou, balançando a cabeça, apontando para
outra porta. Barda olhou para ela, e o rosto de Jasmine corou violentamente. —
Precisamos continuar! — ela gritou desesperada. — Deve haver prisioneiros
aqui.
Lief olhou de um amigo para outro e para Emlis, que se encolhia atrás
deles.
“O tempo todo, Jasmine queria vir para cá...”, o pensamento passeou em
sua mente e ali ficou. Ele sabia que tinha razão.
— Jasmine, quem...? — ele começou secamente. Ele só teve tempo de
perceber o olhar assustado e culpado da amiga quando um ruído vindo da sala de
trabalho fez com que parasse de falar.
Era o som de vozes e passos. Tira e o companheiro tinham terminado a
inspeção muito antes do que ele tinha esperado.
— ...não se pode fazer nada! — Tira estava exclamando. — Você ouviu a
mensagem. Precisam de nós imediatamente! O Projeto de Conversão está para
ser colocado em ação.
Os companheiros olharam ao redor agitados. Não havia onde se
esconder. Barda agarrou o braço de Lief e se dirigiu para a porta à direita,
acompanhado por Emlis. Depois de hesitar um instante, Jasmine os seguiu.
Eles entraram na escuridão. A porta mal tinha se fechado atrás deles
quando alguém entrou na sala da qual tinham acabado de sair.
— Ah, minhas belezinhas! — eles ouviram Tira dizer. — A hora de
vocês chegou. Acabo de receber a ordem.
Houve um rangido, uma batida forte e quatro cliques, como se a tampa
da caixa estivesse sendo fechada e trancada.
— O que está acontecendo? — Jasmine sussurrou em pânico. — O que
eles vão fazer com aquelas... coisas?
— Psiu!
O assobio na escuridão silenciosa foi assustador. Lief, Barda, Jasmine e
Emlis deram um pulo violento e se viraram.
Atrás deles, havia uma jaula de ferro sobre rodas, com o teto coberto por
um emaranhado de pedaços de tecido. Dentro dela, alguma coisa se mexia.
— Me ajudem! — a voz grunhiu. — Me tirem daqui, pelo amor de Deus!
Os companheiros dispararam até a jaula em silêncio. Aporta estava trancada com
uma forte fechadura. Um Gnomo do Medo, de olhar assustado, espiava pelas
grades, o rosto quase invisível na escuridão.
— Eu me chamo Pi-Ban — o gnomo balbuciou. — Pi-Ban, antes da
Montanha do Medo. Vocês são a causa do pânico? Foi Garra que mandou vocês?
Onde estão Brianne e Gers?
Barda agarrou duas das grades da jaula e puxou com toda a força, mas
mesmo ele não conseguiu entortar o ferro grosso e rígido.
Sem falar nada, Jasmine estendeu a adaga. Lief a pegou e usou a sua
ponta para tentar abrir a fechadura.
— Garra não nos mandou para cá, exatamente, Pi-Ban — ele sussurrou.
— Mas já ouvimos o seu nome. Sabemos que você é um dos que foram
capturados na caverna da Resistência que fica a leste deste lugar.
— Onde estão os seus amigos — Jasmine perguntou ansiosa, enquanto
Barda recomeçava a tentar entortar as barras. — Onde ficam os prisioneiros?
O gnomo grunhiu, os olhos fixos nas mãos de Lief.
— As masmorras ficam no subsolo — ele informou, mal mexendo os
lábios. — Mas elas agora estão vazias. Moss, Pieter, Tipp, Alexi, Hellena... foram
levados embora, um por um. Tudo começou no dia em que fomos capturados.
Moss foi o primeiro, e Hellena foi a última. Ela foi levada ontem. Só eu fiquei.
— Mas... mas deve haver outros escravos aqui — Jasmine disse com a
voz tensa.
— Havia outros, no começo — Pi-Ban disse. — Muitos outros, novos e
velhos. Alguns estavam na masmorra com a gente. Os mais calmos e obedientes
faziam a limpeza e o transporte. Mas eles não estão mais aqui.
— Esses... esses mais calmos — Jasmine disse depressa. — Havia alguma
menina entre eles?
— Uma garota chamada Tira, por exemplo? — Barda perguntou
ofegante, interrompendo por um momento o esforço para abrir a jaula.
O gnomo ergueu o rosto abatido.
— Vocês vieram para buscar Tira? — ele perguntou com ar cansado. —
Sim, eu sei quem é. Uma criatura delicada e com olhos cor do céu que, junto com
outros, veio de Noradz. — Um pessoal estranho e tímido que usava roupas
pretas e que limpava os corredores e levava água e comida para as masmorras.
Primeiro, pensamos que eles serviam o Senhor das Sombras de boa vontade, mas
não era verdade. Eles eram prisioneiros como nós.
Barda acenou tristemente com a cabeça e atacou as barras outra vez,
como se as suas mãos enormes estivessem estraçalhando o próprio Senhor das
Sombras. Lief estava concentrado na fechadura, com o olhar sério.
Como se fosse incapaz de esperar mais, Pi-Ban se virou e andou até o
fundo da jaula. Ele agarrou as barras e caiu de joelhos, olhando para a escuridão.
Jasmine se aproximou dele e se ajoelhou para falar com ele cara a cara.
— Fiquei sabendo de outra menina que talvez estivesse aqui, Pi-Ban —
ela disse em voz baixa. — Mais nova do que Tira — uma criança de cabelos
pretos e olhos verdes chamada Faith.
Ela prendeu a respiração quando Pi-Ban ficou sério e pensativo.
— Faith. Estranho você mencionar esse nome — o gnomo disse
finalmente. — Só há pouco tempo é que ouvi falar dele pela primeira vez,
quando os Guardas me trouxeram para cá. Eles eram Baks, e o humor deles
estava pior do que nunca. Três de seu grupo tinham acabado de ser destruídos
por um vraal, que perseguia um quarto no deserto. Eles receberam ordens para
abandonar a busca para me acompanhar. Eu lhes disse que fiquei contente com o
que tinha acontecido e, por isso, levei um ou dois tapas.
Um sorriso selvagem brilhou brevemente por entre os fios emaranhados
de sua barba, e então ele ficou sério outra vez.
— Eles me disseram que eu seria levado para a Arena das Sombras e que
Faith tinha ido antes de mim — ele balbuciou. — Eles acharam que essa
informação ia me atormentar porque eu conhecia a menina. Mas eu não a
conhecia.
Ele olhou para Jasmine com ar esperto.
— Está claro que essa menina é muito importante para você. Quem é
essa menina de cabelos pretos e olhos verdes iguais aos seus? E por que você faz
de tudo para perguntar sobre ela enquanto os seus amigos não estão ouvindo?
Com a cabeça a mil, Jasmine se afastou dele depressa.
— Não consigo abrir, Barda! — Lief murmurou da frente da jaula.
— A fechadura é forte demais. Vamos ter que encontrar outro jeito.
Nesse momento, houve um ruído forte na sala da qual tinham vindo.
Portas estavam sendo abertas, e pés marchavam naquela direção.
— Guardas! — Barda deduziu.
— Vão embora! Depressa! — Pi-Ban sussurrou. — Tem outra porta
atrás da jaula. Acho que é uma saída.
— Não! — Jasmine sussurrou desesperada, levantando-se depressa.
— Não podemos ir embora agora!
— Vocês precisam! — o gnomo ergueu a cabeça despenteada com
orgulho. — Se vou morrer, quero morrer como um Gnomo do Medo, não como
um covarde que arrasta outras pessoas com ele. Saiam! Salvem-se!
Mas era tarde demais. A porta dupla foi empurrada, e a luz vermelha e
opaca brilhou pela abertura. Os Guardas estavam entrando na sala.
COMO UM RAIO, LIEF, BARDA E JASMINE SALTARAM NO TETO DA JAULA,
ARRASTANDO EMLIS ATRÁS DELES. ELES SE ESCONDERAM DEBAIXO DAS
CAMADAS DE TECIDO E FICARAM QUIETOS, ESPIANDO PARA FORA COM CUIDADO,
OS CORAÇÕES BATENDO FORTE.
— Chegou a hora de ir, escória! — zombou um dos Guardas. Ele se
aproximou da jaula e empurrou um bastão pesado pelas barras. Houve uma série
de faíscas e os companheiros ouviram Pi-Ban gemer e cair pesadamente no chão.
Os Guardas se dobraram de tanto rir.
Dois vultos vestidos de branco atravessaram a porta — Tira e o Ol
chamado de 3-19. Os Guardas ficaram imediatamente em silêncio.
— Você vai acompanhar a jaula, 3-19 — Tira disse secamente. — Eu
vou seguir vocês com o Projeto.
— Só temos um prisioneiro — 3-19 protestou. — Ele pode ir
acorrentado. A jaula não é necessária.
— Não é você quem decide o que é necessário — Tira replicou irritada.
— Este prisioneiro foi guardado especialmente para este momento. Não
podemos nos arriscar que ele fuja. Ele não deve ser machucado, portanto, vigie
bem os guardas.
3-19 concordou, a raiva estampada no rosto magro.
— Nós, Baks, não precisamos de um Ol para nos dizer o que fazer —
resmungou um dos Guardas.
— Silêncio! — Tira gritou. Ela se virou e voltou para a sala com a luz
vermelha onde outro grupo de Guardas esperava, cinco de cada lado da caixa de
metal.
3-19 pigarreou.
— Vocês escutaram! — ele disse para os Baks. — Tomem posição!
Enquanto os Baks se colocavam ao lado da jaula de mau humor, ele passou por
eles e abriu o outro par de portas. Uma luz fraca entrou no aposento, trazendo
com ela o mau cheiro dos montes de lixo.
Lief ficou imóvel, temendo que fossem vistos a qualquer momento, mas
não houve nenhum grito de alerta. Os Guardas olhavam ressentidos para 3-19,
cujos olhos estavam fixos no caminho à frente.
— Andem! — Tira gritou do outro aposento.
— Mexam-se! — 3-19 murmurou para os Baks.
— Antes precisamos cobrir a jaula — um deles grunhiu.
Com um calafrio, Lief se deu conta de que os pedaços de tecido debaixo
dos quais estavam escondidos eram abas feitas para serem puxadas sobre os lados
da jaula.
— Não precisamos cobrir a jaula, idiota! — 3-19 respondeu irritado.
— Já é noite! Os prisioneiros não vão ver nada.
— Uma jaula em movimento precisa ser coberta — o Guarda insistiu
teimoso. — Essas são as ordens. Nós, Baks, sempre...
— Vocês, Baks, já passaram do tempo de ir para o monte de lixo, e
quanto antes forem, melhor! — 3-19 disparou furioso. — Andem!
Resmungando, os seis Baks encostaram os ombros na jaula e a
empurraram para dentro da noite mal-cheirosa. Atrás deles, seguia
barulhentamente a grande caixa de metal.
Pi-Ban, ainda deitado, resmungava atordoado. Lief, Barda, Jasmine e
Emlis seguravam-se, desesperados, no teto da jaula cambaleante. Cada um dos
servos do Senhor das Sombras estava ocupado com os próprios pensamentos de
ressentimento ou triunfo.
E, por esse motivo, ninguém viu as três sombras que saíram do
esconderijo oferecido pelos montes de lixo e os seguiram.
No início, Lief só conseguia ouvir o chacoalhar da jaula, mas, depois de
alguns momentos, ele começou a perceber vozes vindas de baixo.
— Nós merecemos mais respeito — um dos Guardas resmungava.
— Nós demos o alerta! Fomos nós que estávamos lá fora lutando com o
vraal. Fomos nós que ouvimos aqueles restos gritando no monte de lixo.
Lief ficou arrepiado e escutou com atenção.
— O Ol disse que nós deveríamos estar no monte de lixo, Bak 3 —
outro Guarda disse.
— O Ol é um idiota! — Bak 3 resmungou. — Você sabe que não temos
uma data de vencimento como os outros grupos, Bak 9. Disseram isso desde o
começo e nos avisaram para não contar para os outros. Vocês esqueceram?
— Não — Bak 3 murmurou. — Mas o Ol disse...
— Esqueça o que ele disse! — Bak 3 respondeu irritado. — O mestre
nunca se livraria de nós. Ora, fomos nós que demos as notícias que ele estava
esperando: as notícias sobre a garota e o pássaro preto. Por que acha que estamos
indo para a Arena agora?
O coração de Lief bateu com força. O Senhor das Sombras estava
esperando por Jasmine o tempo todo. Eram as notícias sobre ela que tinham
causado aquela pressa.
A suspeita que Lief vinha tentando afastar desde que chegaram à Terra
das Sombras voltou à sua cabeça e, dessa vez, ele pensou nela com seriedade.
Jasmine tem um segredo — um segredo perigoso. Ela os tinha levado à Fábrica.
Ela tinha se recusado a fugir, quando uma fuga ainda era possível.
Lief estava ansioso por virar a cabeça e falar com Jasmine, pedir
explicações a ela. Mas não teve coragem. O menor som ou movimento poderia
traí-los.
Através de um buraco no tecido, ele pôde ver que a jaula estava rodeando
a colina que tinha visto da Fábrica. Os Guardas estavam ofegantes ao empurrar
as rodas barulhentas para a curva.
Então, de repente, a estrada ficou reta novamente. Agora ela
acompanhava as montanhas e, mais à frente, estava a imensa Arena iluminada.
Pelo barulho, havia uma grande multidão à espera.
— Mais depressa! — Tira gritou de trás, a voz aguda de entusiasmo. —
Pare no túnel, 3-19! O Projeto deve entrar na Arena primeiro. Você ouviu?
— Não sou surdo! — resmungou 3-19. — Guardas! Mais depressa!
— Nós também não somos surdos, Ol — Bak 9 resmungou.
A jaula começou a se mover mais depressa. O barulho da multidão ficou
mais forte. Então, de repente, a intensidade da luz diminuiu, e a jaula parou com
um rangido. Lief viu pedras escuras e imaginou que estavam na entrada do túnel
que atravessava os muros da Arena.
Ele ficou tonto, ouviu o som das rodas pesadas e se deu conta de que a
caixa de metal estava sendo empurrada para a frente da jaula para que pudesse
entrar na Arena primeiro.
— Espere ser chamado, 3-19! — Tira gritou de algum ponto adiante.
— A mulher de vermelho é a escrava Faith? — 3-19 perguntou curioso.
Lief sentiu Jasmine ficar tensa.
— É claro que não! — Tira respondeu com maus modos. — Ela é o
caminho para o futuro, assim como eu. A escrava está acorrentada debaixo da
plataforma. Perns! Em frente!
Um tambor começou a soar — um som profundo e pulsante como o
bater de um coração. A multidão ficou em silêncio.
Lief tinha que ver o que estava acontecendo. Com cuidado, ele puxou um
pouco do tecido para o lado.
Atrás de Tira, a caixa de metal, estava sendo empurrada por debaixo de
um grande arco não muito longe dali. Ela saiu da escuridão e foi iluminada por
uma luz muito forte. A luz da Arena.
Lief imaginou que haveria fileiras de assentos rodeando a Arena, mas não
conseguia vê-los de onde estava. Ele também não conseguia ver os vraals, cujos
rugidos se misturavam ao bater do grande tambor. Mas ele podia ver o chão com
clareza. Tudo o que estava emoldurado pelo arco estava claro como o dia. Era
como ver uma imensa imagem em movimento.
Guardas Cinzentos segurando bastões de choque estavam enfileirados ao
longo do caminho pelo qual a caixa de metal passava. O caminho levava a uma
imensa plataforma cercada de colunas brancas. Alguém usando uma túnica
vermelha esperava ali, longe demais para que Lief pudesse ver com clareza.
Atrás dos Guardas, estavam pessoas esfarrapadas, apertadas umas contra
as outras. Os ombros das pessoas estavam curvados, e os seus olhos mostravam
medo e desespero. A maioria tinha a marca do Senhor das Sombras na testa ou
na face e observava a passagem de Tira com a caixa de metal.
Lief ficou angustiado ao reconhecer entre elas o povo vestido de preto de
Noradz, os vultos fortes de centenas de Jalis, alguns guardas do palácio. Ele não
reconheceu todos, mas sabia que eram fazendeiros do nordeste, do oeste e de
Plains, gladiadores de Rithmere, pescadores da costa, membros da Resistência,
cidadãos de Del...
Muitos deltoranos. Espancados, explorados e castigados pelo vento do
desespero até perderem o ânimo e a esperança. Eles acreditavam que tinham sido
levados para lá para morrer. Para muitos, talvez, a morte poderia parecer um
alívio para o sofrimento causado pela escravidão.
“Mas eles não vão morrer. Eles não vão mais ser escravos!”, Lief pensou
com tristeza.
Mas eles eram tantos. Agitado, Lief encostou os dedos na Flauta de Pirra
que escondia debaixo da camisa. Logo chegaria o momento de testá-la. Será que a
sua magia daria tempo a eles para reunir as pessoas e tirá-las da Arena? Ela
poderia quebrar o feitiço que fechava a saída das montanhas?
A caixa já estava perto da plataforma, e a luz da Arena estava mudando
para um vermelho forte e sem brilho.
O dia estava raiando.
Um movimento chamou a atenção de Lief. Os Baks estavam se
aproximando do arco. 3-19 estava olhando para Tira ressentido. Ninguém vigiava
a jaula.
— Essa é a nossa chance de descer! — Barda murmurou.
— Não! — Jasmine sussurrou, ansiosa. — Precisamos ficar aqui. Que
outro jeito temos de chegar até a plataforma em segurança?
— A plataforma? — Barda exclamou espantado. — Por que...?
Lief tinha certeza de que Jasmine tinha motivos para querer chegar até a
plataforma. Mas ele também acreditava que eles deveriam ir para o centro da
Arena.
— A Flauta deve ser tocada onde o Senhor das Sombras possa ouvir bem
— ele sussurrou. — E as pessoas precisam nos ver. Emlis, vou dar a Flauta para
você assim que chegarmos na plataforma. Esteja preparado!
Emlis concordou com um grunhido assustado.
— Esse plano é precipitado, Lief — Barda protestou. — As pessoas não
foram avisadas. Elas não vão saber...
— Sshh! — Jasmine sussurrou.
Lief congelou. Então ele ouviu o que Jasmine tinha ouvido antes dele.
Ruídos leves vinham do fundo da jaula. Vozes que sussurravam, um tinido como
se alguém tivesse mexido na fechadura. Um grunhido de esforço e um
xingamento abafado.
Então, algo bateu no pé de Lief.
— Desçam daí, seus idiotas! — ordenou uma voz rouca. — Não
podemos soltar Pi-Ban, mas, pelo menos, podemos salvar vocês.
— Não, Garra! Vamos ficar em cima da jaula — Lief sussurrou.
— Você ficou louco, rapaz? — Garra se espantou.
— Não temos tempo para explicar — Barda disse depressa. — Se você
quer ajudar a gente, entre na Arena. Diga a todas as pessoas que puder para
ficarem prontas para lutar e sair daqui. Elas vão saber quando chegar a hora.
— Se tentarmos salvar todas elas, elas vão ser massacradas — Garra
replicou. — E nós também. Algumas poderão...
— Diga para elas irem até a passagem atrás da Arena! — Barda
interrompeu. — Agora, Garra, vá embora, pelo amor de Deus! Os Guardas vão
se virar e ver você!
— A passagem está fechada por um feitiço — Garra respondeu.
— Deixe isso por nossa conta — Barda retrucou. — Apenas faça o que
mandei.
— Você está louco! — Garra murmurou, tirando a mão de cima do pé de
Lief.
Os companheiros ouviram mais alguns sussurros e depois tudo ficou em
silêncio. Garra, Brianne e Gers tinham desaparecido nas sombras.
— Será que ele vai fazer o que você pediu? — Jasmine sussurrou.
— Quem sabe? — Barda disse preocupado. — E acho que estamos
mesmo loucos como ele disse. Pelo que sabemos, a Flauta de Pirra não vai
perturbar o Senhor das Sombras mais do que o zumbido de uma mosca.
— Olhem! — Jasmine sussurrou.
Uma mulher vestida de vermelho andava para a frente da plataforma, o
rosto marcante e os cabelos macios e prateados agora claramente visíveis.
— Hellena!
O grito desesperado e surpreso tinha vindo de debaixo deles. De Pi-Ban.
3-19 se virou.
— Voltem aos seus postos! — ele ordenou aos Guardas furioso, para
depois se virar para a Arena.
A mulher vestida de vermelho também tinha ouvido o grito de Pi-Ban e
os seus lábios se torceram num sorriso frio.
Lief olhou horrorizado. Hellena tinha sido um membro do grupo de Pi-
Ban. Ela era a amiga por quem Brianne tanto tinha chorado. No entanto, agora
os olhos dela brilhavam triunfantes, enquanto os Perns empurravam a caixa de
metal numa rampa até a plataforma. Ela se deliciava com a crueldade. Assim
como Tira.
O Projeto de Conversão... o caminho para o futuro...
— Hoje não vamos soltar nenhum vraal — Hellena avisou com voz
aguda.
Uivos de desapontamento se ergueram do público — uivos que
mudaram bruscamente para lamentações quando soou um trovão e um frio
assustador percorreu a Arena.
Os Baks tremiam ao lado da jaula.
— O mestre está presente — Bak 3 choramingou.
— Hoje começa uma nova era! — Hellena anunciou. — Depois de hoje,
nada mais vai ficar no caminho do mestre. Onde quer que ele coloque a mão,
todos irão se curvar diante dele e cumprir a sua vontade. Vocês verão.
— Tragam Faith! — ela ordenou, erguendo a mão.
Dois Guardas subiram até a plataforma arrastando entre eles uma garota
pequena de cabelos negros que se debatia e cujos olhos faiscavam com fúria.
Jasmine prendeu a respiração.
O coração de Lief pareceu parar. Barda praguejou baixinho.
A criança na plataforma, o pequeno rosto, tão parecido com o de Jasmine
que poderiam ser irmãs, observava a multidão, os olhos cheios de medo e
esperança.
— Essa é a irmã de uma das maiores inimigas do mestre! — Hellena
gritou. — Mas, assim como o gnomo que vai lhe fazer companhia, um gnomo
que é um perigoso traidor, ela logo vai se curvar, de boa vontade, diante do
mestre.
O público rugiu.
— Já vamos ser chamados — tagarelou Bak 9 assustado. — O mestre vai
pensar que desobedecemos às suas ordens. O dia raiou, e a jaula está descoberta.
Lief ficou tenso e Faith era a última de suas preocupações. Estava claro
que, agora, que estavam tão perto, iria acontecer um desastre. Os outros Baks
arrastaram os pés nervosos.
— O Ol disse... — um deles começou.
— Que se dane o Ol! — Bak 9 interrompeu com raiva. E, sem outro
aviso, os seis pularam para os lados da jaula e puxaram a capa para baixo.
Emlis, repentinamente exposto, rolou apavorado e caiu. Ele atingiu o
chão e ficou imóvel. Lief, Barda e Jasmine se esforçaram para se levantar e
apanhar as armas, mas não tiveram chance. Os Guardas se recuperaram do susto
rapidamente, e os bastões de choque começaram a funcionar sem piedade...
Lief viu Jasmine se encolher e cair para trás acompanhada de Kree. Ele
viu Barda ser atingido uma, duas vezes. Então ele também sentiu um choque
quente na nuca. Uma dor forte percorreu o seu corpo e tudo ficou escuro ao seu
redor.
LIEF RECOBROU OS SENTIDOS DEVAGAR. ALGO BATIA NELE SEM PARAR, E
CADA BATIDA MANDAVA UMA PONTADA DE DOR À SUA CABEÇA. ELE ESTAVA
DEITADO NUMA SUPERFÍCIE DURA, QUE SACOLEJAVA E MACHUCAVA OS SEUS
OSSOS DOLORIDOS.
Ele se esforçou para abrir os olhos. A sua cabeça estava prensada nas
grades frias. Ele não conseguia ver nada de onde estava, pois um tecido grosso o
cobria.
Ele levou algum tempo para se lembrar do que tinha acontecido e para
perceber, com pavor, onde estava. Lief estava na jaula e ela estava se movendo
pela Arena. O som que ele ouvia era o bater do grande tambor.
Barda e Jasmine estavam se mexendo ao lado dele. Pi-Ban estava
agachado perto da cabeça de Barda, com uma expressão de horror estampada no
rosto.
Lief procurou a espada, mas era óbvio que tinha sido levada. Com um
calafrio de medo, ele colocou a mão no pescoço e, com alívio, sentiu o cordão
que prendia a Flauta de Pirra debaixo da camisa.
Vozes ásperas murmuravam algo perto deles. Lief se deu conta de que
eram as vozes dos Guardas que empurravam a jaula.
— O Ol vai tentar colher os louros por essa prisão.
— Ele que experimente! Quando tirarmos a capa, ele não vai conseguir
esconder a surpresa. O mestre vai entender que foram os Baks que trouxeram os
três, e que o Ol não sabia de nada.
— O selvagem magricela que estava com eles...
“Emlis!”, Lief pensou, procurando na jaula desesperado. Então, ele se
lembrou. Tinha visto Emlis pela última vez quando o pequeno keron caiu da
jaula dentro do túnel.
Outro guarda estava falando. Lief fechou os olhos e tentou ouvir e ficou
angustiado com o que escutou.
— O selvagem estava ferido. Ele se arrastou para morrer. Esqueça dele.
São esses três que o Mestre quer. O rapaz, o homem grande e a garota com o
pássaro preto. Que sorte tivemos, não é, Bak 3?
— Você já pensou a cara de idiota que o Ol vai fazer? Os Guardas riram
baixinho.
Estremecendo por causa da dor na cabeça, Lief foi até a frente da jaula.
No canto, as abas deixavam um espaço e ele espiou para fora.
O Ol 3-19 estava na sua frente, parado muito ereto de costas para a
plataforma onde Tira esperava com uma expressão sombria. Ao lado de Tira
estava Hellena, segurando a corrente de Faith com uma das mãos, enquanto a
outra descansava na tampa da caixa de metal.
Atrás dos Guardas Cinzentos, que cercavam o caminho, estava o povo
esfarrapado, assistindo a tudo com o olhar sem brilho. E, mais adiante, erguendo-
se até perder de vista, fileiras de bancos lotadas de espectadores — de todos as
formas, cores e tamanhos.
O público parecia brilhar, mudar e ondular... Lief esfregou os olhos.
Então, ele se deu conta de que os seus olhos não estavam com
problemas. Havia alguns Ra-Kacharz nos bancos, alguns grupos de Guardas, e
vários selvagens. Mas a maior parte do público era composta por Ols — de Grau
1 e 2, cujos formatos mudavam a toda hora, dissolvendo-se e transformando-se
enquanto ele observava.
Ali, era evidente, não havia motivos para disfarçar. Os Ols de grau
inferior não precisavam manter uma forma, se não quisessem.
Eles podiam mudar à vontade, por pura diversão ou para o fim que
quisessem.
Ele se concentrou em um par e viu quando as suas cabeças com chifres,
semelhantes aos de cabras, se dissolveram e se transformaram em caras de peixe
com as bocas abertas, as mãos se transformaram em nadadeiras, e a sua cor
mudou de marrom para prata esverdeado e os seus corpos incharam. Ao fazer
isso, eles empurraram o par que estava ao lado deles, duas mulheres de gorro
vermelho. A mulher resmungou zangada e, por um instante, mostrou o seu
verdadeiro corpo, branco, sem formas, com bocas abertas sem dentes e olhos
negros como carvões. No momento seguinte, as formas brancas encolheram e
estreitaram e se tornaram serpentes retorcidas com rostos humanos.
Enojado, Lief olhou outra vez para os escravos, imóveis e silenciosos.
E então ele viu algo muito estranho. Parecia que ninguém estava se
movendo, mas era como se ondas estivessem passando pela multidão.
Ele apertou o rosto contra as grades. Agora ele percebia que os mesmos
gestos insignificantes eram repetidos por uma pessoa depois da outra. Uma
pequena inclinação de cabeça, lábios se movendo tão levemente que seria
impossível descobrir a distância que algo estava sendo dito.
Uma mensagem estava sendo transmitida entre os escravos, e Lief sabia
onde ela tinha começado: com Garra, Brianne e Gers misturados à multidão na
beira da Arena, sussurrando as mesmas palavras sem parar.
Fique de olho na plataforma. Prepare-se para lutar. Vá para a estrada atrás da
Arena. Passe adiante.
— A mensagem está se espalhando — Barda disse em seu ouvido. —
Precisamos impedir.
Lief se virou. Barda estava atrás dele, olhando para a Arena por cima de
sua cabeça. O homenzarrão estava visivelmente preocupado. Uma grande
queimadura vermelha marcava a sua testa, que tinha sido atingida por um bastão
de choque.
— Agora é tarde demais — Lief respondeu.
— Mas tudo mudou e, pelo que parece, Garra, Brianne e Gers não sabem
disso — Barda sussurrou agitado. — Acho que eles ficaram escondidos fora do
túnel quando fomos presos e não viram nada. Se eles puderem ver a jaula coberta
agora, vão pensar que faz parte do plano.
Lief procurou a Flauta de Pirra e a tirou da bolsa. Uma sensação de calor
fez a mão dele formigar e uma estranha paz o invadiu.
— Nada mudou, Barda — ele disse com calma. — Não se pode prender
um som. Quando chegarmos à plataforma, vou tocar a Flauta exatamente como
planejado. Não como Emlis faria, mas o melhor que eu puder.
— Não sei que poderes a Flauta tem, mas ela não pode derreter barras de
ferro — Barda replicou mal-humorado. — É possível que os outros escapem,
mas nós estaremos presos.
“Então é assim que vai ser”, Lief pensou. “Garra, Brianne e Gers podem
levar o povo para a liberdade tão bem quanto nós.” Mas ele não disse nada.
Ao procurar por Jasmine, Lief viu que ela também tinha acordado e
rastejara para a frente da jaula. Mas ela não se reuniu aos companheiros. Ela
estava agachada em outro canto, espiando pela fresta do tecido.
“Ela está tentando ver Faith”, Lief pensou. “A irmã que vinha
procurando o tempo todo.”
Ele passou para o lado de Jasmine e tocou a sua mão.
— Jasmine — ele sussurrou. — Por que você não me contou sobre
Faith?
Jasmine virou-se para ele, os olhos tomados pelo sofrimento.
— Contar a você? Como pode perguntar isso? — ela disse em voz baixa.
— O que... o que você quer dizer? — ele balbuciou espantado.
— Até agora você tenta me enganar, Lief? — ela retrucou, fechando os
punhos. — Você não entende? Eu sei. Eu sei o que você fez.
— O quê? — Lief perguntou desorientado.
Ele parou de falar quando as rodas da frente da jaula bateram na borda
da rampa com um baque. Ele, Barda e Jasmine foram atirados com força para
trás. A Flauta de Pirra voou da mão de Lief e começou a rolar para o fundo da
jaula. Ele estendeu a mão para ela desesperado e conseguiu pegá-la exatamente
quando os Guardas, resmungando pelo esforço, inclinaram a jaula e começaram a
puxá-la para cima. Mais um segundo e a Flauta teria escorregado pelas grades e
estaria perdida.
Com o coração batendo forte por causa do desastre do qual tinha
escapado por um triz, Lief voltou para a frente da jaula.
“Esqueça tudo”, ele disse a si mesmo. “Tudo, menos o que deve ser
feito.” Lief sentiu um conhecido calafrio de medo e soube que a jaula estava se
aproximando da caixa de metal, e agarrou a Flauta com mais força.
— Atenção, escravos! — Hellena gritou. — Tenho um aviso importante
para vocês. Escutem bem.
Lief foi até o canto da jaula e espiou pela fresta. Tira estava parada ao
lado dela, junto de 3-19.
— Por que a jaula está coberta? — Tira murmurou furiosa para 3-19,
enquanto olhava para cima nervosa.
— Isso é obra dos Baks — ele respondeu de mau humor. — Quando
percebi que tinham desobedecido, nós fomos chamados, mas era tarde demais
para tirar a capa.
— Você é um idiota incompetente! — Tira disparou. — Felizmente, o
mestre acabou com você e a sua espécie.
Ela se virou. 3-19 olhou para ela, os dedos longos se retorcendo como se
ele quisesse apertá-los ao redor do pescoço magro dela. Tira foi até o lado de
Hellena. Hellena ergueu os braços.
— Eu já fui uma inimiga mortal do mestre — Hellena gritou. — Eu
libertava os seus escravos. Eu matava os seus servos. Eu confesso. E a minha
companheira foi uma das piores rebeldes que já existiu, uma espiã falsa e
mentirosa que ajudava secretamente os inimigos do mestre!
— Eu confesso! — Tira disse em voz alta, erguendo o queixo.
Lief ouviu Barda gemer baixinho atrás dele, mas não se virou para olhar.
O olhar frio de Hellena passeou pela Arena.
— Agora, nós duas não temos mais dúvidas, medo ou pensamentos
maus. Graças ao presente que o mestre nos deu, somos não apenas suas servas,
mas também os seus olhos e ouvidos.
A sua mão alisou a caixa de metal com carinho.
— Como nós, vocês, escravos, merecem a morte. Mas o mestre é
misericordioso. Vocês todos poderão receber o seu presente. Em breve, as suas
dificuldades vão terminar. Vocês vão pertencer ao mestre, como nós.
O público aplaudiu animado. Os escravos no chão da Arena estavam em
total silêncio. Hellena mostrou um sorriso frio.
— Vocês não precisam ter medo, escravos, não importa que boatos
tenham ouvido — ela disse. — O Processo de Conversão foi aperfeiçoado. Ele é
seguro, eficiente e simples. Depois de liberadas, as criaturas que carregam o
presente do mestre encontrarão o caminho até vocês. Elas são pequenas e muito
velozes. O processo se completa muito depressa.
Hellena tocou o ouvido.
— Uma pequena dor aqui, e o mestre estará com vocês para sempre. A
sua Conversão vai trazer liberdade para vocês. Vocês vão voltar para as suas
casas, misturar-se ao seu povo e cumprir a vontade do mestre com satisfação.
A pele de Lief estava arrepiada. Finalmente, ele compreendeu o que tinha
acontecido com Tira e Hellena. Ele entendeu o que eram aqueles vermes terríveis
e o que faziam. Ele percebeu qual era o plano do Senhor das Sombras.
O mestre tem muitos planos...
Uma imagem horrível se formou na mente de Lief. Milhares de
prisioneiros libertados pelo Senhor das Sombras, voltando a Deltora, recebidos
com alegria e carinho. Milhares de prisioneiros que pareciam ser exatamente o
que eram antes, mas que, dentro de seus cérebros, carregavam o Inimigo, que
orientava todos os seus pensamentos e ações.
Milhares de prisioneiros em cujos bolsos ou sacolas havia mais vermes
mortais de cabeça escarlate. Assim, durante a noite, enquanto as suas famílias e
vizinhos dormiam...
Hellena tinha recomeçado a falar.
— Embora não seja possível fugir do presente do mestre, é melhor que
vocês não lutem — ela aconselhou. — Com a ajuda da escrava Faith e o gnomo
que certa vez lutou ao meu lado contra o senhor, vou lhes mostrar como isso
pode ser fácil
Ela se virou para os Guardas.
— Removam as capas! — ela ordenou.
AS CAPAS FORAM ARRANCADAS DA JAULA. A LUZ ENTROU E EXPÔS SEM
PIEDADE AS QUATRO PESSOAS QUE TINHAM SE LEVANTADO DE UM SALTO E SE
RECOSTADO NAS BARRAS. LIEF OUVIU 3-19 GRITAR ZANGADO, E AS EXPLICAÇÕES
BARULHENTAS E TRIUNFANTES. ELE VIU TIRA E HELLENA, DE OLHOS
BRILHANTES, OBSERVAREM A FUMAÇA VERMELHA QUE GIRAVA NA TORRE ACIMA
DELAS E PARA A SOMBRA ESCURA DENTRO DELA.
Raios saíram das nuvens agitadas. Uma ventania ameaçadora soprou
sobre a Arena, derrubando Lief e os companheiros e prendendo-os ao chão. A
jaula estremeceu, e as suas rodas se curvaram sob a força do vento.
Respirando com dificuldade, incapaz de se mover, apertado ao chão pelo
vento que uivava, Lief ouviu os gritos dos escravos se contorcendo indefesos na
Arena, os gritos de Tira e Hellena, os grunhidos dos Baks e dos Perns na
plataforma quando eles lutaram para se erguer.
Grasnando, os sete Ak-Baba voaram para baixo, levados pela ventania, de
garras estendidas e bicos curvos abertos. As colunas que rodeavam a plataforma
tremeram e criaram vida. Ols! Chamas brancas sibilantes com a escuridão em seu
interior, bocas desdentadas abertas, olhos ocos e mãos prontas para agarrar o que
estivesse à sua frente, eles se ergueram e enfrentaram a força do vento. E, com
um estrondo desagradável, portas de pedra deslizaram e fecharam a Arena.
Então Lief soube que não só Jasmine, mas todos eles tinham sido
esperados. O Inimigo não sabia como ou quando eles iriam aparecer, mas sabia
que viriam. E tinha se preparado para a sua chegada.
Mas havia uma coisa pela qual o Inimigo não esperava. Com os olhos
lacrimejando e quase surdo pelo vento que rugia, Lief começou a levar a Flauta
de Pirra até os lábios com esforço. Devagar, muito devagar, ele obrigou a mão a
subir.
— 3-19! Os prisioneiros estão no chão! Eles estão prontos! — Tira gritou
bem alto. — Abra o Projeto de Conversão!
O Ol com o corpo de Fallow andou até a caixa de metal com facilidade,
sem ser perturbado pelo vento. Ele colocou a mão na fechadura que abria o
alçapão.
— 3-19! — Lief chamou com todas as forças. — Cuidado! O Ol virou a
cabeça e olhou para ele confuso.
— Não escute! — Tira gritou. — 3-19! Estou mandando!
— Se você abrir essa caixa, vai ser o seu fim, Ol! — Lief gritou. — Com
seres humanos para fazer o que ele quer, o seu mestre não vai mais precisar de
você. Você e toda a sua espécie vão apodrecer nos montes de lixo junto com os
Guardas.
3-19 hesitou, franzindo o cenho.
— Baks! Perns! — Tira berrou furiosa.
Mas os Baks e Perns, que se debatiam sobre as tábuas da plataforma, não
podiam se mover.
A mão de Lief que agarrava a Flauta já estava na altura do peito. Ele
obrigou-a a subir até a boca. Ele precisava de mais um momento, só mais um
instante...
Uma fumaça vermelha saiu furiosamente da torre cheia de uma feroz
vontade de fazer o mal. Olhos faiscaram dentro da fumaça, e mãos sombrias se
estenderam.
3-19 gritou aflito, se encolheu e caiu. O alçapão na ponta da caixa se
abriu com violência. Vermes de cabeça escarlate saíram como uma forte torrente
e se espalharam na jaula, procurando ansiosos por suas vítimas.
Lief pôde senti-los deslizando sobre seus pés e suas pernas. Os gritos
apavorados de Jasmine e Barda machucavam-lhe os ouvidos. Kree grasnava
desesperado. Pi-Ban deu um único grito agudo. Lief fechou bem os olhos e
concentrou toda a sua energia num último esforço desesperado.
Então, finalmente, ele tinha a Flauta nos lábios. Ele soprou. Uma nota
clara e pura.
O som penetrante se ergueu e ecoou pelas paredes da Arena e até as
montanhas mais adiante.
E com o som, o avanço dos vermes parou. Eles se debateram, retorceram
e morreram como as sanguessugas do Caminho Proibido expostas à luz.
A fumaça vermelha se enrolou com um ruído estrondoso que fez o chão
tremer. A ventania se acalmou, e os Ak-Baba voaram sem rumo no céu. Os Ols
abaixaram as mãos estendidas e ali ficaram cambaleantes. As criaturas nas fileiras
de assentos se curvaram e gemeram. Os vraals uivaram nas jaulas.
Os escravos na Arena tinham sido avisados para esperar pelo sinal. De
que outro sinal precisavam? Eles se ergueram de um salto e avançaram para a
frente numa grande onda. Os Guardas confusos que cercavam a passagem
tropeçaram e caíram, esmagados pelo seu peso.
Mas não havia saída. A Arena estava fechada com portas de pedra. Não
havia como chegar à passagem que levaria à liberdade. Não havia para onde
correr, nem onde se esconder.
Ofegante, erguendo-se com dificuldade, Lief encheu os pulmões de ar. A
fumaça vermelha inchou e se torceu sobre ele enquanto a sombra dentro dela
reunia forças. Lief soprou outra vez e, mais uma vez, a nota penetrante ecoou
pela Arena, o trovão soou e a fumaça se recolheu.
Lief viu Pi-Ban se levantando de olhos arregalados e um verme retorcido
caindo de seu ouvido sobre o ombro. Ele viu Barda e Jasmine se erguendo e se
segurando às grades da jaula.
Fora da jaula, os guardas viravam de um lado a outro confusos. Tira e
Hellena tinham caído de joelhos, e olhavam com uma repugnância atordoada
para os vermes que haviam caído longe deles na plataforma. Faith estava parada,
sozinha, pálida como um fantasma.
— Faith! — Jasmine berrou. — Pegue as chaves da jaula!
A criança se virou, a expressão séria. Os seus lábios se entreabriram.
Então, a voz saiu — um sussurro baixo e mortal de congelar o sangue.
— Não há como escapar, Jasmine.
Jasmine olhou paralisada. A voz continuou a sussurrar.
— Você estava condenada a partir do momento em que olhou no cristal
e me deixou entrar em sua mente. Eu sabia que você viria até mim. Eu só tinha
que esperar. Mas não pense que eu me importava com você. Você era só uma
isca. Eu sabia que ele a seguiria para onde você fosse.
Então, a menina soltou uma gargalhada horrível. E enquanto ria, ela
estremeceu, se apagou e desapareceu num turbilhão de fumaça vermelha, como o
fantasma que era.
Jasmine gritou repetidas vezes, agarrando as grades da jaula chocada,
magoada e aterrorizada. Chocada por ter acreditado que uma miragem era de
carne e osso. Sofrimento por uma criança que nunca tinha existido, e terror por
perceber o quanto tinha sido enganada.
Uma lembrança voltou à memória de Lief. Tirral, falando na Ilha de
Keras.
Há muitas formas de apanhar um peixe. E se o peixe que se deseja puder ser fisgado
com uma simples isca, tanto melhor.
“Jasmine foi atraída pela isca jogada pelo Senhor das Sombras e eu logo
depois”, Lief pensou. “Como tinha sido fácil! Com que tranqüilidade ele nos
trouxe para a sua armadilha. Ele usou as nossas fraquezas, a solidão e a
impaciência de Jasmine, e o meu amor por ela.”
— Pelos Jalis! — as palavras de Gers rugiram em meio ao trovão — ele
saltou sobre a plataforma, liderando um exército maltrapilho de integrantes de
sua tribo. Alguns dos Jalis se atiraram, urrando, sobre os Baks e Perns
apavorados. Outros colocaram as mãos em duas das grades da jaula e puxaram.
O ferro se entortou como se fossem galhos de árvore. Pi-Ban saiu com
dificuldade pelo espaço aberto. Barda o seguiu, meio que arrastando Jasmine.
Logo depois, Lief saiu com a Flauta ainda presa entre os lábios.
Lief teve que respirar fundo mais uma vez, e mais uma vez a fumaça
vermelha se retorceu e atacou. E mais uma vez, ela recuou quando a Flauta foi
tocada novamente.
Mas o Inimigo estava reunindo forças. A cada toque da Flauta, ele
recuava um pouco menos. Os sete Ak-Baba voavam ao redor dele, os seus gritos
assustadores se misturando ao trovão. No centro da fumaça, brilhavam olhos
malignos.
Durante quanto tempo a Flauta conseguiria evitar a aproximação das
sombras?
E então, Lief escutou. Através do som da Flauta, do retumbar do trovão,
veio um lamento leve e cansado.
Lief se virou bruscamente, mas Jasmine também ouvira o som. Jasmine e
Barda tinham voltado para a jaula e estavam ajoelhados ao seu lado, espiando
debaixo de sua base, gritando para Gers.
Então o Jalis e Barda levantaram a jaula para incliná-la, enquanto Jasmine
escorregou para baixo dela e surgiu arrastando um pequeno vulto vestido numa
capa com capuz verde. Emlis!
Emlis estava tagarelando sobre como se arrastou para baixo da jaula no
túnel e depois se agarrou ao fundo dela enquanto era empurrada para a
plataforma. Ele contou como ficou preso quando as rodas da jaula entortaram
com a força do vento; como não pôde fazer nada, incapaz de se soltar, de fazer
com que o ouvissem, até aquele momento...
No instante seguinte, Emlis estava ao lado de Lief e tomou a Flauta de
suas mãos. Emlis tocou o instrumento e, pela primeira vez em incontáveis
séculos, o país que antes tinha sido Pirra ouviu o verdadeiro som da Flauta de
Pirra.
Pois, enquanto os Ak-Baba grasnaram e a fumaça vermelha voltou para o
céu agitado, enquanto os Ols se encolhiam, gemendo, e os prisioneiros ouviam,
encantados, Emlis tocou como os antigos Flautistas. Emlis tocou na Flauta de
Pirra a música que vinha do fundo de seu coração.
O som maravilhoso encheu a Arena, ecoou das montanhas, tocou as
paredes da Fábrica e avançou sobre a planície ressecada. A música levava consigo
o lamento por antigas belezas perdidas, a ira pela maldade que só quer dominar e
destruir, o medo pelo que poderia acontecer. E também, uma profunda saudade
do lar.
Não Pirra, saqueada, transformada e perdida para sempre. Mas o único
lar que Emlis conhecia.
Um lar em que águas profundas ondulavam, e a areia macia cobria praias
tranqüilas. Um lugar onde a luz era suave e fria e onde o delicado som da água
batendo na praia enchia o ar. Um lugar de que sentia falta e pelo qual sofria.
Lief ficou ouvindo paralisado. O seu coração parecia que ia partir
enquanto a música se espalhava, implorando por ajuda, gritando por liberdade.
Então... a Arena desapareceu.
Frio, muito frio. A escuridão agitada...
E no momento seguinte, Lief estava se debatendo na água gelada e
escura, enquanto os gritos de pavor de milhares de pessoas soavam em seus
ouvidos.
O que tinha acontecido? Que novo feitiço era aquele?
— Jasmine! — ele chamou.
— Aqui! — Barda surgiu ao lado dele, apoiando Jasmine e Pi-Ban. Lief
tomou Jasmine dele e segurou-a acima da água e sentiu a agitação das asas de
Kree.
— A minha música! — Emlis nadou como uma enguia na direção deles.
— O meu povo a ouviu! Eles nos trouxeram para casa! O Senhor das Sombras
nunca vai saber o que aconteceu com a gente!
— O nosso povo vai se afogar, Emlis! — Jasmine disse mal conseguindo
respirar. — Ah, eles são tantos! Os kerons não vão poder salvar tanta gente a
tempo. Eles vão se afogar.
Então, Lief ouviu Jasmine engasgar, e no momento seguinte uma luz
forte substituiu a escuridão, empurrando-a para longe, assim como a música
mágica da Flauta de Pirra tinha feito o Inimigo encolher e se retirar. E com a luz
veio um som agitado e latejante. Lief virou-se, tremendo. Ele piscou, mal
acreditando no que via.
Pois, avançando na direção deles, vinha uma imensa esquadra de barcos.
As embarcações semelhantes a conchas dos plumes, os botes novos e elegantes
dos aurons, a barcos compridos e pesados dos kerons, navegando juntos,
retirando pessoas da água, levando-as para a segurança.
Clef e Azan remavam furiosamente para acompanhar os guardas dos
aurons sentados em enguias ágeis e os imperturbáveis colhedores de
sanguessugas dos kerons. Nols, Flautista dos plumes, remava ao lado de Tirral,
Flautista dos kerons, que procurava nas águas escuras o filho, cuja música tinha
chamado a todos.
Mas foi Penn, a preservadora da história dos aurons, que tirou Lief e seus
companheiros da água. E foi com ela que começaram a longa jornada para casa.
AS PESSOAS DORMIAM ENQUANTO ERAM CARREGADAS PELAS CAVERNAS.
SOMENTE PI-BAN ESTAVA ACORDADO, PARA APERTAR AS MÃOS DE LIEF, BARDA
E JASMINE, E ENTÃO PARA SER ENVIADO PARA O ALTO DA MONTANHA DO MEDO,
ACIMA DO MAR DE ESMERALDA.
— Acho que ele vai contar suas aventuras, apesar dos meus conselhos —
Lief murmurou. — Os Gnomos do Medo são grandes contadores de histórias,
Penn.
— Pi-Ban não vai contar — Penn replicou serena. — Ele vai se esquecer
de tudo assim que respirar o ar do mundo superior. Você não sabe, Lief? Você
leu os versos de Doran.
Lief inclinou a cabeça, relembrando.
— “Onde marés intermináveis ocultam as lembranças...” — ele
murmurou finalmente.
— Sim. Os mares do subterrâneo são os mares do esquecimento — Penn
sorriu. — Como você acha que vivemos aqui em segredo durante tanto tempo?
— Mas na Terra das Sombras nós lembramos — Barda protestou.
— Emlis estava com vocês — Penn explicou. — Além disso, o nosso
pensamento estava concentrado em vocês.
— Mas quando voltarmos para casa, vamos nos esquecer de tudo?
— Jasmine perguntou muito séria.
Penn sorriu e pegou três pedras pequenas e lisas.
— Não se vocês conservarem isso com vocês — ela disse, entregando
uma pedra a cada um. — Elas são pedras da alma. Todos os aurons carregam
uma. Dizem que Doran sempre levava a dele. E essas são de vocês.
Lief, Barda e Jasmine contemplaram as pedras. Elas pareciam mudar de
cor a cada momento — dourado brilhante, vermelho, verde, azul, preto, roxo, e
todas as cores do arco-íris.
— É impossível dizer a cor dela — Barda disse maravilhado.
— É porque não há cor alguma — Penn disse com simplicidade. — A
diferença está nos olhos de quem a observa. E descobrimos que o mesmo
acontece com pessoas, quando a Flauta tocou em nossas cavernas pela primeira
vez, há pouco tempo.
— Foi assim que...? — Jasmine começou.
— Nós, em Auron, ouvimos a Flauta. A sua música nos fez lembrar que
antigamente o nosso povo era unido. Saímos para finalmente ver os
companheiros da nossa espécie e para descobrir o que tinha acontecido com
vocês. No Caminho Proibido, encontramos os plumes, que tinham viajado para o
norte pelo mesmo motivo. Eles não pareciam tão selvagens como tínhamos
imaginado. E assim, juntos, chamamos os kerons, pedimos que iluminassem o
túnel e que nos deixassem entrar em seu território.
— E Tirral concordou? — Barda perguntou sem acreditar.
— Depois de algum tempo — Penn disse com calma, sorrindo.
— Parece que, assim como nós, ela e o seu povo tinham refletido sobre o
bom senso de se manter uma rivalidade em tempos difíceis. Ficamos sabendo
que o filho dela tinha ido com vocês até a Terra das Sombras. Então, juntos,
esperamos pelo som que nos diria que ele, vocês e a Flauta estavam prontos para
voltar. Juntos, finalmente, ouvimos a música e, juntos, trouxemos vocês de volta.
— A gente teria morrido sem vocês — Lief disse. — Devemos a nossa
vida a vocês.
— Sem vocês, os pirranos teriam ficado separados para sempre — Penn
respondeu. — A nossa dívida é ainda maior.
A esquadra pirrana deslizava pelas cavernas como folhas sopradas pelo
vento. Porém, havia muito tempo para conversar e para relembrar, pois muitos
barcos navegavam ao lado do de Penn. Clef e Azan vieram com a embarcação
baixa pelo peso de Garra, Brianne e Gers. Nols se aproximou tendo Tira e
Hellena tranqüilas aos seus pés. E Tirral veio com Emlis, que se livrara da capa
verde com alívio.
— O meu filho parece mais alto do que antes de partir — Tirral disse.
— Ele cresceu, mas não foi só na altura — Barda comentou. — Ele tem
um coração enorme.
— Quando eu for um pouco mais velho, e a capa de colhedor de
sanguessugas me servir, vou ser um explorador como Doran — Emlis contou
tímido. — Vou explorar e desenhar mapas das cavernas. Vou viajar pelos mares
do plumes e dos aurons e por outros mares desconhecidos.
— Mares de um roxo delicado — Lief murmurou. — Mares negros
cheios de estrelas. Cavernas que brilham como diamantes.
— Como você sabe? — Emlis perguntou surpreso.
Mas Tirral pôs a mão dentro de sua capa, tirou algo que brilhava na luz
mágica e o entregou a Lief. Ele olhou o objeto, quase como se tivesse esquecido
o que era.
— Eu lhe devolvo o Cinturão de Deltora — Tirral disse com seriedade.
— Em troca da Flauta de Pirra.
— Obrigado — Lief hesitou. Havia algo que Lief queria dizer, mas achou
que não seria sensato. Consciente do olhar de Barda e Jasmine, ele prendeu o
cinturão brilhante ao redor da cintura e ficou em silêncio.
Finalmente, na caverna dourada de topázio, chegou o momento da
despedida.
— Trouxemos vocês para o lugar em que os sinais de vida superior são
mais fortes — Penn explicou aos companheiros com suavidade, enquanto os
outros barcos se reuniam em volta dela. — Daqui, todo o seu povo pode voltar
para casa.
— Lief! Barda! Jasmine!
Lief se virou e viu Emlis acenando para eles, não muito longe. Ele ainda
estava segurando a Flauta de Pirra. Os companheiros acenaram de volta.
— E o que vai acontecer com a Flauta, Penn? — Lief perguntou. — Ela
vai ser separada em três partes outra vez?
— Não — Penn garantiu. — Os kerons vão ficar com ela agora.
Decidimos, antes de vocês voltarem que, se algum dia a flauta voltasse às nossas
mãos, ela ficaria completa. Ela vai ficar com cada tribo por um ano inteiro para
ser tocada de manhã, ao meio-dia e à noite pelo Flautista, como manda a tradição
de Pirra. Então, ela vai ser passada adiante num grande festival organizado pela
tribo que a estiver emprestando.
Os olhos de Penn cintilaram.
— Tenho certeza de que vai haver muita competição — ela acrescentou.
— As tribos vão tentar tocar melhor do que as outras, e cada festival vai ser
maior e mais estimulante do que o anterior. Mas eu, pelo menos, não vou me
queixar. Festivais são muito melhores do que guerras. E ninguém gosta mais de
uma festa do que eu. Bem... vocês estão prontos?
Lief sentiu um nó na garganta, mas concordou...
— Adeus, Penn— ele disse. Ele segurou as mãos de Barda e Jasmine e
fechou os olhos.
— Adeus — ele ouviu Penn sussurrar. E então a conhecida escuridão os
envolveu.
Os companheiros abriram os olhos sob a luz de Deltora. O dia tinha
acabado de nascer. A grama em que estavam deitados ainda estava coberta de
orvalho. A cor do céu era um azul muito claro com leves manchas cor-de-rosa.
Uma brisa, fresca e doce, agitava as árvores e acariciava os seus rostos.
Lief percebeu que nunca tinha visto tanta beleza.
Ele se deu conta de que estavam nos jardins do palácio, perto das escadas
que levavam ao grande salão de entrada. Dois guardas estavam parados junto às
portas.
Por um momento, os guardas olharam sem entender, espantados, para a
multidão que tinha aparecido na grama do palácio vinda do nada. Então, eles se
viraram e correram para dentro, gritando a novidade com toda a força de seus
pulmões.
Jasmine virou o rosto para o sol. Kree levantou vôo, esticando a asa
machucada e grasnando feliz. Barda soltou um profundo suspiro.
Ao redor deles, as pessoas abriam os olhos, se sentavam e observavam,
sem poder acreditar em tanta felicidade. Parecia que elas haviam sido
transportadas da Arena das Sombras para aquele lugar maravilhoso, que tinha a
aparência e o cheiro de seu lar num piscar de olhos. A maioria estava convencida
de que estava sonhando.
Mas ali, se levantando devagar, estavam os três estranhos que tinham
estado na plataforma diante deles. Um era o rapaz que tinha tocado a estranha
flauta. Ao redor de sua cintura, estava um objeto brilhante. Um cinturão de aço,
enfeitado com sete pedras preciosas.
Os escravos, agora libertados, observavam maravilhados, aceitando a
verdade aos poucos.
Deltora não os tinha abandonado. Eles nunca tinham sido esquecidos.
Eles estavam livres. E tinha sido o seu rei que os tinha trazido para casa.
As portas do palácio se abriram, e pessoas começaram a descer as escadas
correndo, muitas ainda com ar sonolento, mas todas gritando e estendendo os
braços. As pessoas na grama se levantaram e foram ao encontro delas
tropeçando. As duas multidões se encontraram e se juntaram, parentes queridos e
estranhos se abraçaram, choraram e riram de alegria.
Os sinos do palácio começaram a tocar, chamando o povo da cidade.
Jasmine tocou o braço de Lief. Ele olhou para ela, o coração cheio de felicidade.
Ela murmurou alguma coisa, mas o barulho que os cercava não o deixou ouvir.
Ele se inclinou para perto dela.
— Eu disse que estou envergonhada por ter duvidado de você, Lief —
Jasmine repetiu sem jeito. — Mas Faith parecia tão real. E ela disse...
— A culpa foi minha — Lief disse depressa. — Fui um idiota por não ter
falado sobre o cristal, de fingir que ele não existia. Uma vez, eu falei dele para
você e Barda, depois que o vi num sonho no Vale dos Perdidos. Pensei que você
fosse se lembrar.
Jasmine pareceu confusa.
— No começo, pensei que sim — ela disse devagar. — Mas então olhei
para o cristal e esqueci tudo, menos a mentira que via dentro dele — ela baixou o
olhar. — Eu deveria saber que você nunca iria me enganar.
Lief hesitou. Esse era o momento que ele temia. Ele olhou para Barda,
que fazia de conta que não ouvia. Ele pigarreou.
— Eu enganei você, Jasmine — ele disse em voz alta. — E a você
também, Barda. Tem uma coisa...
Ele parou de falar. Jasmine tinha tirado a mão de seu braço e olhava para
o palácio.
Um pequeno grupo de pessoas apareceu na porta, procurando ansioso na
multidão. Sharn e Perdição estavam de um lado, sustentando Josef entre eles. Do
outro lado estava Stephen, o mascate, oscilando, de braços dados com uma
mulher alta e desconhecida, cuja cabeça raspada estava coberta por desenhos de
espirais. Mas no centro estava Ranesh, com o rosto inexpressivo, Zeean, de Tora,
e uma figura graciosa envolta numa longa capa.
Marilen.
ANGUSTIADO, LIEF DEU UM PASSO À FRENTE. MARILEN O VIU. COM UM
ÚLTIMO OLHAR PARA RANESH, ELA ERGUEU A CAPA E DESCEU OS DEGRAUS
DEVAGAR, DE CABEÇA ERGUIDA. LIEF SENTIU JASMINE E BARDA SE AFASTAREM
QUANDO ELA SE APROXIMOU.
A multidão festejava agitada ao redor deles, mas os quatro — os três
companheiros e a garota que se aproximava — só tinham olhos um para o outro.
Era como se estivessem numa ilha, fora do tempo e do espaço.
Marilen estendeu as mãos, o rosto iluminado pelo alívio e pela alegria.
Lief as segurou.
— Ah, Lief, como desejei a sua volta! — Marilen murmurou. — Como
desejei poder lhe contar... Está tudo bem, Lief! Está tudo bem. Estamos em
segurança.
Lief curvou a cabeça cheio de gratidão. Ele sentiu as mãos da garota
deixarem as dele e olhou para trás. Barda estava olhando para algum ponto à sua
frente, mas Jasmine encontrou o seu olhar com um sorriso determinado.
Lief ficou confuso por um momento. Será que a sua companheira já sabia
qual era o segredo que escondera deles por tanto tempo?
Mas ele não tinha tempo para pensar. Marilen estava esperando. O
momento tinha chegado. Lief colocou as mãos na cintura, abriu o cinturão
cintilante e o deixou cair. Ele ouviu Barda e Jasmine abafarem um grito.
Marilen abriu a capa, revelando um objeto de cores brilhantes que
pareciam faiscar. Em seguida, ela tirou algo da cintura e o entregou a Lief.
Sorrindo, aliviada, ela se afastou depressa para trás.
As grandes jóias do Cinturão de Deltora brilharam como estrelas debaixo
do céu da manhã. Os refinados elos de aço cintilaram e aqueceram os dedos de
Lief. Ele colocou o Cinturão, sentiu o seu peso conhecido, endireitou os ombros
e se virou para olhar para Barda e Jasmine.
Os dois olhavam para ele boquiabertos.
— O verdadeiro Cinturão estava seguro em Del o tempo todo! — Barda
resmungou. — Você estava usando uma cópia! Todo esse tempo... e não
sabíamos de nada — ele apanhou o cinturão caído no chão e o sacudiu na frente
de Lief. — Isso é só uma imitação!
Lief concordou envergonhado.
— Vocês dois têm o direito de ficar zangados, mas, por favor, tentem
entender — ele balbuciou. — Perdição e eu fizemos a cópia em segredo na
ferraria. Combinamos nossos encontros usando mensagens em um código
simples em que cada letra era substituída pela letra seguinte do alfabeto, a mesma
coisa acontecendo com os números.
— Então, “PERDIÇÃO” seria “QFSEJDBP” — Jasmine concluiu,
lembrando-se do bilhete que tinha encontrado.
Lief olhou para ela curioso.
— Usamos pedras das jóias do palácio muito parecidas com as
verdadeiras — ele continuou. — Elas têm algum poder, como todas as pedras
preciosas, mas não valem nada quando comparadas aos talismãs do verdadeiro
Cinturão.
Ele sorriu tristemente.
— Tirral tinha um bom motivo para não sentir nenhuma mágica no
cinturão. Não havia nenhuma mágica nele!
— Você deixou o verdadeiro Cinturão para trás para que ficasse em
segurança — Jasmine balbuciou. — A sua... a sua amiga o usou porque ela é a
pessoa em quem você mais confia?
— Porque é a pessoa que tinha que usá-lo — Lief respondeu. — No
caso de alguma coisa me acontecer — ele fez um gesto para Marilen, que voltou
a se juntar a eles.
— Marilen é uma prima distante, minha parente mais próxima do lado de
meu pai — Lief contou com um toque de orgulho. Ele riu quando Jasmine e
Barda tentaram esconder a confusão. — Vocês dois ainda não entenderam? —
ele gritou. — Marilen é minha herdeira, a próxima na linha de sucessão do
Cinturão de Deltora.
— O quê? — Barda explodiu.
— Mas... — Jasmine começou, mas as palavras ficaram presas em sua
garganta. Ela respirou fundo e tentou outra vez. — Mas eu pensei que somente o
filho do rei ou da rainha poderia ser o herdeiro.
Lief concordou com um gesto, procurando a mão dela.
— Os conselheiros-chefes do palácio encorajaram essa crença, porque
eles eram servos secretos do Senhor das Sombras — ele disse. — Mas quando
pensei no assunto, imaginei que isso não podia ser verdade. Seria perigoso demais
para Deltora. A minha vida ficou ameaçada no momento em que me tornei rei e
eu não tinha um filho que pudesse usar o Cinturão depois de mim, se eu
morresse.
Para Lief era um grande alívio finalmente poder contar a história. As
palavras, guardadas por tanto tempo, escaparam de sua boca como as águas
agitadas de um rio.
— O Cinturão de Deltora diz simplesmente que o Cinturão deve ser
usado por um verdadeiro herdeiro de Adin. Isso quer dizer que, se o rei ou a
rainha morrer sem ter tido filhos, o Cinturão vai para o próximo na linha de
sucessão, um irmão ou irmã, por exemplo.
— Mas você não tem irmãos ou irmãs — Jasmine disse, mordendo o
lábio quando a última palavra trouxe de volta lembranças desagradáveis.
Lief apertou ainda mais a mão dela.
— Não. Ou tios e tias. Tem sido um hábito real ter apenas um filho. Por
acaso, o herdeiro de Adin teve somente um filho e assim isso se tornou uma
tradição — e que os conselheiros-chefes insistiram para que continuasse.
— E que, sem dúvida, atendia muito bem a seus objetivos. Ver Deltora
dependendo de uma vida frágil a cada geração — Barda murmurou.
— É verdade — Lief concordou. — E o trabalho deles foi tão bem feito
que as minhas primeiras tentativas de encontrar um herdeiro pareceram inúteis.
Mas então... — ele olhou para Marilen. — Mas então eu me lembrei de que Adin
tinha tido muitos filhos.
— Todos eles se casaram com toranas — Jasmine concluiu pensativa. —
Jinks me disse isso.
— Exatamente — Lief continuou, estremecendo ao ouvir o nome de
Jinks, assim como Marilen, por motivos diferentes. — Assim, eu sabia que, se
procurasse mais, acabaria encontrando um herdeiro em Tora, não importava que
fosse um parente muito distante — ele sorriu levemente.
— Sangue é sangue, não importa o quanto ele se diluiu durante os anos,
como alguém nos disse há pouco tempo.
— Então você procurou pistas nos livros e nos pergaminhos da
biblioteca — Jasmine murmurou. — Histórias da família, registros de
casamentos, crianças nascidas... Todas aquelas horas de trabalho.
— Eu tinha que garantir o futuro de Deltora antes de qualquer outra
coisa — Lief disse. — E eu tinha que fazer isso em segredo. Perdição e minha
mãe eram os únicos que sabiam. Eles sabiam como isso era importante e que a
segurança de Deltora nunca mais deveria depender da vida de uma só pessoa.
Ele sorriu.
— Marilen é descendente do segundo filho de Adin. Quando a encontrei,
sabia que finalmente tinha um herdeiro. É verdade que, quando eu tiver um filho,
ele tomará o lugar dela como o primeiro da linha...
— Espero que esse momento chegue logo! — Marilen interrompeu com
entusiasmo. — Quando Lief nos contou em Tora que eu era uma herdeira por
parte de minha mãe, a novidade mais pareceu uma maldição do que uma alegria.
Lief sorriu para ela com carinho.
— Mas, mesmo assim, ela concordou em deixar seu lar, a sua família e
seus amigos e vir até Del...
— Para usar o verdadeiro Cinturão de Deltora se você corresse perigo.
Assim se algo de mal lhe acontecesse, ele brilharia para ela no mesmo instante! —
Jasmine exclamou, terminando a frase para Lief. — E o tempo todo pensamos...
todo mundo pensou...
Ela se soltou do aperto carinhoso de Lief e colocou a mão no rosto
corado. A cabeça dela girava. Nada do que imaginara era verdade. Tinha
interpretado tantas coisas de uma forma e agora via que tinha se enganado. Lief
trancado na biblioteca. O pergaminho com o título de As principais famílias de Tora.
As visitas secretas na ferraria. O sumiço das jóias reais. A viagem a Tora...
— Eu sei que Lief queria contar a vocês sobre mim, Jasmine — Marilen
disse com suavidade, percebendo a aflição da garota. — Mas ele tinha jurado para
o meu pai que apenas Sharn e Perdição saberiam quem eu era.
— Quanto mais pessoas soubessem que Marilen era a próxima na linha
de sucessão, mais perigo ela iria correr — Lief acrescentou. — Se o Senhor das
Sombras tivesse a menor desconfiança...
Jasmine respirou fundo e concordou.
— Então por que está contando para a gente agora? — ela conseguiu
dizer.
Marilen sorriu feliz.
— Porque agora está tudo bem! — ela exclamou. — Lief só teve tempo
de verificar a descendência do segundo filho de Adin. Mas Adin e Zara, a mulher
dele, tiveram cinco filhos ao todo. Zeean e o meu pai examinaram os
documentos que Lief levou para Tora. Eles descobriram muitos outros
descendentes de Adin, não só em Tora, mas também em Del, e em todo o reino.
Ela bateu palmas, os olhos brilhando.
— Logo todos saberão que uma ameaça a Lief não significa uma ameaça
a toda Deltora. Não haverá motivos para matá-lo, pelo menos não por esse
motivo.
— E eu não vou mais precisar ficar trancado no palácio como um
prisioneiro! — Lief exclamou com grande satisfação.
— Nem eu! — disse Marilen, igualmente feliz. — Se Lief morrer sem ter
filhos, eu vou tomar o seu lugar. Se eu morrer, vai haver outro para tomar o meu
lugar... e outro e mais outro! O Cinturão de Deltora sempre terá um herdeiro, e
Deltora ficará em segurança.
— Que conversa é essa sobre morte? — Barda gritou, batendo no ombro
de Lief e abrindo um sorriso largo. — Embora eu confesse que eu mesmo
poderia estrangular Lief quando lembro dos terrores que passei, temendo por ele
e por esse cinturão falso!
— Estou tão feliz, mas tão feliz que tudo tenha terminado bem —
Marilen disse, sorrindo.
Jasmine concordou com um gesto de cabeça, ainda tendo dificuldade
para encarar Marilen de forma diferente. — Esses dias devem ter sido difíceis
para você — ela disse um pouco sem jeito.
— E foram mesmo — Marilen respondeu com franqueza. — Mas os
perigos que enfrentei não foram nada comparados aos riscos que vocês correram.
Eu tinha o Cinturão de Deltora, e sabia que Lief estava vivo, pois ele nunca
brilhou para mim. E as pedras me ajudaram. Uma vez, a ametista perdeu a cor
quando a minha comida foi envenenada. Eu vi e soube que algo estava errado.
O rosto dela se abriu num sorriso.
— Além disso, se eu não tivesse vindo para cá, não teria conhecido
Ranesh — ela acrescentou.
Ela olhou ao redor e viu Ranesh ainda sozinho na escadaria, olhando
para ela.
— Preciso ir até lá. Tenho muita coisa a explicar para ele e também para
o pobre Josef.
Com outro sorriso, ela se afastou.
— Então... Marilen e Ranesh — Lief murmurou, erguendo uma
sobrancelha. Ele olhou para Jasmine. Algumas vezes, ele tinha tido receio quanto
aos sentimentos dela em relação ao rapaz.
Mas o sorriso de Jasmine quando o olhar dos dois se encontrou era
muito real. Uma paz imensa invadiu o coração de Lief.
Então Marilen se virou.
— A propósito, Lief — ela disse. — Você sabia que todos acreditaram
que eu vim para Del para me casar com você?
A expressão espantada de Lief respondeu a pergunta de Marilen. Ela riu e
seguiu o seu caminho.
Lief se virou para Jasmine e Barda.
— Vocês sabiam dessa história? — ele perguntou.
Barda não demonstrou o que pensava e achou melhor ficar em silêncio.
As faces de Jasmine ficaram vermelhas outra vez, mas ela deu de ombros.
— Boatos do palácio — ela disse indiferente. — Mas você é novo demais
para se casar. Eu sempre disse isso.
Lief não soube o que dizer.
Barda viu Tira andando na direção das escadas, parecendo perdida. Ele
murmurou algo e saiu atrás dela.
— Claro — Jasmine continuou, começando a sorrir quando ela e Lief
caminharam atrás de Barda devagar. — Marilen teria sido a escolha ideal para a
esposa do rei. Instruída, bonita, educada, elegante, acostumada a palácios...
— Quando a hora chegar — Lief disse, interrompendo Jasmine com
firmeza —, vou seguir o exemplo de Adin e me casar por amor — ele olhou para
ela. — Se a mulher que eu amar me quiser, é claro.
— Ela provavelmente vai querer — Jasmine respondeu. — Quando o
momento chegar — e ela estendeu a mão para ele.
Um tumulto com gritos e vivas começou atrás deles. Uma grande
multidão subia a estrada vinda da cidade para se juntar à multidão que já lotava o
gramado. As pessoas nas escadarias riam e acenavam. Os sinos ainda tocavam, e
o coração de Lief se encheu de alegria.
“E agora”, ele pensou “finalmente podemos começar.”
FIM