DERRIDA, Jacques - O perdão, a verdade, a reconciliação - qual

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    1/26

    EVANDO NASCIMENTO (ORG.)

    Jacques Derrida:pensar a desconstrucao

    Eslo~ao Liberdade

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    2/26

    ,I,

    JACQUES DERRIDA

    o perdao, a verdade, a reconciliacao:1 A ...1qua generor

    Primeira parte1

    Llberado apos aproximadamente tres decadas de encarceramento bru-tal , regressanc!o da prisao de Robben Island sem ressentimento, sern apa-rente desejo de vinganca e castigo, Nelson Mandela reaparece a luz do dlanUITIpalco politico, que ha multo tempo ja ocupava e orientava, na sombra,Ele lernbra 0prearnbulo cia const ltuicao da Nova Afr ica do SuI , por quetanto lutou, com tantos outros, negros e brancos. Desde as primeiras pala-vras, 0prearnbulo faz apelo a urn ges to de confissao, de arrependimentoe de reconciliacdo, e, poc.ler-se- ia clizer com Hegel ', a l ima "palavra de

    Tr.iducao de Evando Nascimento.l. Transc ri ca o (mu ito l ig ei ramente remune ja cl a) d e l ima s es sao d e s emin ar :o s obre 0

    Perdao e 0Perjurio (Ecole des Halites Etudes en Sciences Soc ia les, 1998-1999). Ellv ol tavu en ta o de l ima v iag em a Afr ic a do Su I. E ss e se rnlna rio e ra "compo sto" , aremcsmo "dranuuizudo", cnccnaclo de modo um tanto s ernclhan tc uo lugar teutrnl de: 1I1ltribunul, em qlle comparecessern sucessivamente, enquanto tesreruunhas, quarro bomens(e nenbuma mulber), que rambem fossern protestantes (Hegel, Mandel", DesmondTutu, Clinton). Rastros e as [ustiflcacoes dessa encenucao serao uqui reconhecidos.o sernin. ir io se pro longou , nos anos seguinres , em torno de A Pena de MOlle . Disposi-t ivo ana logo: qua tro tes re rnunhas, qua tro condenados a morte, Porern, de ss a ve z, derel .g lo es e s exe s - d e g cn eros - d if erent es . Soc ra te s, Je su s, Hal la] e J oan a d 'A rc .

    2, j:1 t inhumos, no mesrno seminario , ana lisndo 0 discurso hegeliuno sobre 0 perdno ecornentado de perto a express ito das Worl der Ver:s6hmmg (Penomenologia do espi-rito, pe rni lt ima pagina do c ap itulo sobre 0 espirito): nao a palavra [Ie mal] "reconci-l ia~ao", mas a pa.avra , 0gesto pe lo qua l s e o fe re ce ou s e propo e a rcc on ci li aci io ,c st end endo a miio. "A pa la vra d ia l r econci li ac il o e 0espfrito existente, 0espiritosenc!o-Clf[derdaseiende Geist;0grifo e de Hegel em daseiende: 0ser-at do espirito]."f. pO' rne io dessa pulavra de reconciliacao enderecada uo outro que 0 esp irito se rna -nifcsru a t. de esta ai; cnrra en)ccna, esni no seu ser-ai, 0 ai. 0 que atraves dessa pala-vra ai i da) s ignifica , de l ima 56 vez , a existencia e a presenca fenomenal e e feuvu, issomesmo esra sit'llado- ou e situcmte- nessa palavra de reconcillacao , e nao em outre

    4 5/

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    3/26

    J A C Q UE : -i I J EI W I D A: P E N SA l I II. I)ESCONSnHJ~Ao

    , .oncillacao" . Constituicao dernocratica de extrema modernidade, conce-Iec c , , < , . , I' 'on todos osbida e redigida por juristas de grande expenencia, e a mcol~ I

    'I [" 'to constitucional das clemoo aetas deste seculo,rogressos co C II ei

    " - e la t ,I, ar como 0f az u rn acontecimcnro, ela selugur, A reconciliacao tem lugar, e .t~t~ln.'\ ,lg.' 10 mesmo modo, s ituan:e, e la , " re-s ituu , est .i s iruada nessa palavra , que a Slt lll,l,d l1 1 : \ S , c 0 espirito (que nao e urn U7itz,- d - I .. e '5'1 palavra que 11e a lIgar. ,conciliacito, CI ,ugm u '~' ',' I ,I" 1 \ a r fa z a con te ce r n es s" fa lu [clans ceueI '"[to "1) a GeIS t t em ugar , oa t g , ' ,Um a I X\ a v ra espUl I 5, , , , . _ , '" + alavra de reconclllacao enderecada '\0}Jarole] e nao noutrc lug"~i~~': Sq~:~a:'~;::S~I~S:::~;d ;tvra decerto hav ia " guerra, " opo-outre. Isso ao menos Slg ',.,. _ , ""\0 a sofrimento c a rraumausmo,- li li ' " 'Idissociacilo au ,] Sep.lrdr;. , _5i,80 Oll 0 OC10, a ['V'S.10, " I' t dururam 'IS feridus 0 espirito naodi IV : d. ,) Par C"US\ c isso enqllan 0 _ ., " ,'IS feridas (Ie lin ell , '" ' , "I ", icnte e r eunido em 5i mesmo, ainda- , I - r nw tal 'lint" n(lOconsclestaua UI, a'n~ a nao at, co !, I " 't, "1- estava ern sell ainda-nao, elc S~, .' 0 E le ~un(I ndO e. s ._ L V d " ~ ~ ~11"0 prcsente em Sl mesrn , " inda nf absolute ai. presentc em sell ser-ai.EI ' to . t alve z mas am a nao en"! ._l I ,agllardava, e es .IVd,. " I'' t- r' ! Ainda n iio se apresen tavu . Nao' E ' bsoluto em cena na lIS0 a, ,. ,Em absolute exrstente, III a , uuva 0'\ coxia ensniavn sell pupel,de si para consigo. NOlOesrando em cena, '~lllum ,,I't 6rh d e s el l p nmel ro ' It o,repassava seu rex to na pre -lIt H el provavelmcnte , I ouvimos indagar-se, consta-A voz em off do espectro ere eger, te das cenas de arrependlmenro, de' I' $no 0 aurnento crescen sro , , _tando hoje, roje me' , , "11et'l'z'ICI'ISse essa globnlizucao cia' I I ciliacao 'to rnenos ITII ",perdiio ped ic a e (~recon , "; I _' it o a se r- a! do espirito declarando-seconfissao nao e enfim a apr esentacao (0 espmro, , reli gi ao r evel ada ( cr ist a) e daiI ' 0 'I p'lSs'tgem " , .no rnundo, como munuo, all sera, com, final do cap itulo sob re o esptrtto,ao saber absolute, Pois essa passagem.'d'lparece no 01 ct ' os tre ; mementos da religiao,' , , I' 'Co em segul a, ao term , _que val abrir para a re rgra , I I I''_ 'evelada a saber da religiao crista,para 0 saber absolute como verdac e (a re 'glao I . " ., " ,', I,' '

    - '" '1 s e e ns ur ia ai. 0 ser-a], 0 ucontccuneruo, 0 Ug.lI,Hegel quer tumbem dizct que nao P ,,', nento sem a profe-' 1- I ")lrito scm 0 plonuncldl ~ ,0, ter-lug,rr em pres en ce c omo se l-~, ' (~' IC,SI '_ 1 ' ' so qu erer ia cl iz er q ue E ll , l im "ELI",I I'5S'I hh de reconcunicao. s ,nmen:o penS

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    4/26

    J A C QU E S D E RR I DA : P E NS A H A D E SC O N ST H U( :A o

    discurso so lene e oficial, IS50 explica por que 0 periurio em geral, e 0perjurio de lim presidente no exercicio de 5Ll

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    5/26

    JACQUES IlElmlIlA, Pr:N,AH A DISCONSTI{U~AO

    discurso do chefe e principal orador. Este se felicita por ser mantida atradicao. Em seguida,

    o tom mudou de repente: "Eis nossos f ilhos , a flor c ia t ribo xhosa , 0orgu-1110cia mli;:iio. Acabarnos de circuncidsi-los, segundo lim ritual que Illespromete a humanldade viril [manhood], mas essa e uma promessa quenunca se ra mant ida. Po ls nos, as xhosas, e todos os negros cla Africa doSuI, somos urn povo conquistado. Somas escravos em nosso proprio pais.Somas locar.irios em 110550 pr6prio solo. Nao temos nenhuma forca, ne-nhurn poder , nenhurn conrrole sobre 110550 proprio destine em nosso pUISnatal. Entre esses [ovens, encontrarn-se chcfes que [arnais cornandnrao,porque nao temos nenhurn poder de governar a nos mesmos; soldadosque jam;lis lumrao, pois niio tc mos nrmus p.uu f:.lz0-jo; pe.ss[);ls cuh.is qll~jamais ensinarao, pols nao dispomos de nenhum lugar de estudos parades. [".J Tais dons nada sao ho]e, pois nao podernos lhes dar 0 mais pre-cioso de todos os dons, a liberdude e a independencia." Sem que com-preendesse exa tamente por que , e ssa s pa lavra s comeca ra rn a agi r em mim.Ele t inha luncado urna semente e, ainda que ell a tenha deixndo dorrnirdurante 0 tempo de umu longa estacao , f ina lrncnte comccou a c re sccr ."A palavra abantu (fellowsl;!ip: confraria, comunidade, co-cidadania)

    e a q ue foi utilizada pelo dlscurso oficial, no final do apartheid, paratraduzir a missao da Comissao Verdade e Reconciliacao, para traduzir a"reconciliacao" rnesma. Ora, clentre todas as reprovacoes feitas a essaComissao, presidida pelo bispo anglic ano Desmond Tutu, 0qual nao fezpou co para cristianizar sua linguagem, ate mesmo sell espirito e sua axio-matica, houve esta: considerar como evidente a traducao dos idiornasafricanos. Essas nao sao apenas questoes de linguagem. E 0caso detoclas as genealogias culturais e simbolicas que trabalharn as palavras,Reprovaram-lhe, portanto, ter traduzido os onze icliomas africanos na-quele que entao dominava, 0 Ing le s, ou seja, tarnbe rn cristae.Quando, pOI' exemplo, ap6s a llberacao de Mandela, em 1990, e alegalizacao do ANC, African National Congress [Congresso NacionalAfricano], os sul-africanos negoclaram urna constituicao provis6ria paraconduzir 0pars a s prime ira s e le icoe s dernocra tica s, decidiu -se prime ir a-mente conceder imunidade, portanto anistia, aos mernbros do ANC noexllio, para que pudessern participar das negociacoes. Estas forarn muitas4. Ibid., p. 1516.

    50

    o IJEUD5.o, A VEI IDADE, A. I!ECONCILIA-c;A-O: QUAI. GI:NERO?

    vezes dolorosas, em particular por cornecarem a colocnr face a face asvitim:.s C os carrascos (perpeiratorsi, As duns partes se decidiram entaopar uma clausub de anistia, a qual devia tornar possfveis as primeirascleicoes.

    Na aberturu do livro corajoso e bastante perturbador cia jornalista epoeta sul-africana Anrje Krog, Country ofMy Shull [literalmente Pais domeu cranioP, e lembra do que a adocao cia constituicao visava a garantiras condicoes necessarias para ultrapassar as divisoes e os conflitos dopassado, que tinharn engencirado brutais violacoes dos direitos hurnanosc dclx aclo urna hcran~'a de "(J(lio, rncdo, culpa c rcvanchismo". ESS;1hc-ran~a agora devc ser tratadn a partir de urna

    n~cL'.~.'itl;ldL' dc C()lllprCL'II"~U c n.io d~ vingan~:a, umu ll~cc,,~dadc de rc-pa rae. to e nao de vingan,,:,I, urna necessidade de uburuu [e 0 t exto inglescxpl icn ou tr aduz L'~SI palnvra, entre colchctes, pOI " lbeJ1ji icc/1I . IJ l.n ' /OSO!Jby0/ bumanismn e nao de vitimizacao,Com vistas a essu "rcconciiiacao" e a essa "reconstrucao", annistiu

    dcvia SCI' garanlida pa ra todos os "atos, omissoes C ofens as" ussocindos,no decorrer dos conflitos passados, a "intencoes po!fticas". Em virtudedessa constituicao, 0Parlamento devla adotar urna lei deterrnlnundodatas-limite para a instauracao da instituicao encarregada de tal rnissao(apos 8 de outubro de 1990 e antes de 6 de dezembro de 1993). Eledevia instituir tarnbern, logo apes a votacao cia lei, os mecanismos, oscriterios e os procedimentos, inclusive os tribunals necessaries para eSS,1anistia, No ana que se seguiu as eleicoes, 0Parlamento proje tou 0esta-beleclrnento da Comissao Verdade e Reconciliacao, Seus dezessete mem-bros teriam a tarefa de elaborar uma lista, tao comple ta quanto poss ive l,das causas, cla natureza e da extensao das brutais violacoes dos clireitos

    5. Random House South Africa, 1998, p. VI e VlJ. A autora, que rive a s orte e a honracle encontrar na Cidade cia Cabo, j{l era celebre pOI' sua obr a poet ic a quando, sob 0nome de Ant je Samuel, realizou ext ruordi ruir ias repOf[, lgens radiofonicns sobre assessoes cI;1 Comissao Verdude e Reconciliaciro. Essa experiencla esteve 0;1 origem deCountry ofMy Skull, que pode se ; li do , den tr e outr as cois .is , como

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    6/26

    J A C Q UE S D E R II I DA : P E N SA l l A I )f :S C ON S TU U C ;A o

    ;'0'1

    humunos, cornetidas entre primeiro de marco de 1960 e as datas pre-citadas. Isso mediante investigacoes e testernunhos. A Comissao deviatambem favorecer a anistia das pessoas que revelassern plenarnente asviolacces em questao, quando est ivessem associadas a f inal iclades politi-cas (mais urna vez, grifo estapalavra, em particular por causa cia dificul-dade ou da equ ivocidade imaginaveis. 0que dist ingue, em toclos essescasos, 0crime polit ico clo crime cle direi to comumr). A Comissao deviaigualmente restaurar a dignidade civil e hurnana das vitimas, recomendarmedidas de "reparacao" e prevenl r cont ra a renovacao de tais atos, Dafresultaram os tres comites que constitulam a Comissao, 0cornite cbs vio-l acoes dos direi ros humanos , 0 comite de anistia e 0 comite cle reparacno ereubilitacao. Este ultimo devia fazer todo 0 possive! para ajudar as vitirnase os sobreviventes. Uma Unidacle cle Pesquisa e lima Unidade de In-vestigacao deviarn finalizar 0trabalho em clezoito meses buscar a "ver-dade", arqutua-lai e tornar publico esse arquivo. As primeiras audiencias 'cornecararn em abril cle 1996. Durante os dois anos que se seguiram,os sul-africanos forarn informados cotidianamente das revelacoes feltas arespeito de sells traumas passados, nas grancles ou nas pequeri as c ldades ,em cortes instaladns de Improvise, em prefeituras, centres comunitariose igrejas, A Comissao tomou conhecimento de mais e1ev inte mi l dec la-racoes, das quais duzentas reallzadas em publico. Cerca de oi to mil cul -pados solicitaram 0 beneficio cia anisria. Como e lernbrado na aberturacle Country oj My Skull , os sul-africanos descobrirarn, com 0 imenso etemfvel problema do "testemunho", que "a relacao entre verdade e re-conciliacao e muito mais complexa clo que irnaginavam". A "verdade"podia tanto favorecer quanto desencorajar a elita "reconciliacao".

    2Estariamos, portanto, no teatro, dentro cle urn teatro, nele, mas

    rarnbem perante uma corte, nesse momenta em que nao foi decidida a6. Esse imenso e temivel prob lema foi ubordado durante LIm coloquio n:l Universidade

    til.' WLLwaterSr:llld, em que tomei p ar te , em . lo hunnes burgo, em ago"[D de 199H: quemdevia dispor desses urquivos, esrud.i-los, Inrerpreu i- lo sz Um poder d e Est ado ou urnainstit~i~:i\o de pesquisa independente? Cf. Archive Fever in South Africa, In: CarolynHamilton. R(!fi.~lIring the Archive, Cd.ide do Cabo: Davit! Philip, 2002; " DordrcchtHol:II,Ki;l: Kluwer Academic Publishers, 2002, F.ssa obru e de grande riqueza, indis:pcns.ivcl mesmo, plr~1JlIL'rn que)' que sc i nter esse pOl ' ( . ' . ' 1 : - ; ; \ histori.

    52

    o L'ELmAo, A VEnDA!)E, A IlF.CONCILlA

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    7/26

    JACQUES DEl ln lDA: PENSAI! 1 DESCON.'iTIHJ(.AO

    Quando e inscrita na lei, como no caso da Franca, desde 1964, para ascrimes contra a hurnanidade, a nocao de imprescritibilidade se tornaass im, para alern da ternporal idade jur idica e por tanto humana, l im con-cei to [ur idico. Este ci a a entender que nenhurna lei dos homens, notempo dos hornens, pode subtrair 0 criminoso ao [ulgurnen to. Nao setrata do cont ra rio do direito de indu lto, urna vez que a chefe de Estucloainda pode agrac ia r um homern condenaclo par crime cont ra a hurnani -dade (como acredi to que fez Pornp idou par Touvie r, em nome c ia recon-ciliacao e da reconstituicao cia unidade cia nacao), A imprescritibilidadete rn de ana logo com 0 direi to de indulto , com 0 indulto a que parece seopor, 0 faro de em ambos os casas a ordem humana cia lei e 0 tempohumane do julgamento serem cxcedldos por lima instflncia transcen-dente. Os homens nao tern 0 direito de subtrair au de se subtrai r ao jul-gamento, qualquer que seja a tempo decorrido ap6s a fal ta . A esserespeito, do mesmo modo que 0 clireito de indulto mimetiza a poderdivino, de que emana e com que se autoriza, tambern a ide ia de i rnpres-crit ibi lidade (algo bastante moderno, pelo menos enquan to fenomenojuridico, e conte rnporaneo apenas, ao que eu sa iba , do concei ro igua l-mente moderno de crime contra a humanidade, que e seu correlate naFranca desde 1964) mirnetiza a Juizo Final . Ele se dlr ige a l im "ate 0finaldos tempos", portanto ate um para alern do tempo: urn tempo ate 0final dos t empos. Inscreve no tempo , e no tempo da his toria , uma instan-cia que excede a todo memento, toda temporal idade determinavel. E , notempo, LIm para alem do tempo: l im tempo ate 0 fina l dos tempos,

    Mas como a ordem do prescri tive l Oll do imprescritivel nao e a doperdoavel Oll do im-perdcave l, os quais n5.0 te rn 111ai5nada a ver, emprincfpio, com 0 judiciario ou com 0 pena l, entao essa hipe rbole do di-rei to acena para urn perdao, a saber, urn excesso no excesso, lim suple-mento de transcendencia (pode-se, ao mesmo tempo em que se condena,perante a corte de justica, perdoar 0 imperdoavel), ou ainda para umareapropriacao hurnanizante, urna reimanentizacao da logica do perdao,

    Essa reimanentizacao, essa reapropriacao humanizante, scm pre in-forma 0 que esta em jogo num debate religioso, 0 qual nao pode evitarpassar pela sacralidade, pel a indenidade, pela imuniclacle (Heiligkeii) re-l igiosa. Debate rel igioso tambem entre as rel igioes que , como cada umadas rel igioes abraarnicas, trata diferentemente cia reconcillacao, da me-dlacao humana na relacao com Deus, da encarnacao, dos profetas, doMessias e do Profeta, jesus, intercessor junto a Deus pelo perdiio dos quenao sabem (pelo menos segundo Lucas), nao e 0 Messias para toclo

    5 4

    mundo, Nao 0e para os judeus c e apenas um profeta para os muculrna-nos , Foi para interrogar essa possivel cristianizaciio planetaria cia expe-r iencia atual- 0 que chama resumidarnente de globalizacao ciaconfissao,do perdito e cia confissao, apos indenizacao - que iniciamos ouvincloHegel, Cornecamos por ele e par sua voz espectral, nao porque se]a nopalco 0 unico homern rnorto (Mandela, Clinton, Tutu est ito vivos), masporque em sua fa la presente, na presenca de sua fala , ouve-se 0aruincioou a recordacao de um saber absolute, que passa pela reconciliacao,pelo perdno e pela morte de Deus na cruz, pel a paixao do Cristo e pelaSexta-Fei ra Santa especu lat iva . Ele fa lava em alemao e , urna vez que ou-viamos essa voz luterana vinda cia Alernanha, observo de passagern que,na massa cot id iana cbs informucocs relat ivns a onda frenetica e subita-mente compulsiva dos processes de arrependimento, de reparacao, deinden izacao (em particular, a restituicao dos bens, a reconstitu icilo dasespoliacoes , etc.) , se 0grande Willy Brandt t inha dado 0 primeiro sinalao se ajoelhar e pedlr perdao em Auschwitz h:1 decudas, a propriaVolkswagen se ofereceu para indenizar, 55 anos apes, as vitlmas queforam obrigadas ao trabalho forcado em suas fab ricas durante a guerra(dentre elas, cerca de 1.500 judeus, muitos dos quais se encontrarn emIsrael). Tudo parece partir da Alernanha. No ana passado, t inhamos lieloa carta de um [ovem alernao a jankelevitch.? Para declarar sua infinitaculpa de jovem ale rnao, no entanto inocente , como toda sua geracao, elecitava 0 poerna de Celan, "Toclesfuge (Der Tod ist ein Meister ausDeutschland)",

    Essa dimensao crista ou cristianizadora do processo em curso,sabernos que foi tarnbern multo acentuada no Chile, Pinochet foi ren-dido [ releve] no corneco da dernocratizacao e apos as eleicoes, masrendido no sent ido de Hegel, aufgeboben, conservado ao mesmo tempoem que foi cleslocado, uma vez que continuou sendo chefe das ForcasArmadas e uma grande voz cia pais, quando na verdade havia cediclo 0poder, Ora, no comer, :o da era pos-Pinochet , no instante de uma anistiage ral, e a mais alt a hiera rquia da Igreja que prega a reconci liacao nucio -nal. Decerto em 1973, ap6s 0 assassinate de Allende, 0 cardeal RuulSilva Henriquez tinha corajosarnente declarado "os direi tos do hornernsao sagrados", oponclo-se em seguida a Pinochet a sua maneira, Porern,velho e enfermo, ele foi hoje rendido por um arcebispo de Santiago, j

    /1I

    7. Jacques Derrida , Pardonner: l 'i rnpardonnable e t l'imprescriptible, In: jacques Derrida(Cabler de L'Hernc). Paris: Editions de L'Herne, 2004.

    55

    /

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    8/26

    J A C Ql ll :S D E HU l DA : P E NS A R A nESCON~TUU\:Ao

    monsenhor Francisco javier Errazuriz, que enLltiz:l a "nccessidadc deperdoar". Sera excessive lernbrar que esse arcebispo teve urn cargo noVaticano e na Alernanha, que pertence a uma das farnilias mais ricasdo p:lfs e que Sl~U irm.io e 1I1ll militunto do partido de ciireit:l ch.uuadoRenouacao Nacional? E preci se sernpre lernbrar, po r ser lima sitllJ

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    9/26

    JACQUES IlERRIDA, IENSAII A J)ESCONSTI{U~Ao

    tel' cometido ,1Irocidades em seus grllpos. Elc se sentou durante cssa tiradn.N6s S0l110S independentes. Fui des ignado por ser rnoralmcnte rieutro.Minha unica creclibilidade provem dos cornbates contra 0 apartheid e con-tra ;1 opressao, e nao tenho que pedir perdao por isso. Tem-se uma icleiamuito cstranha cia reeoneilia\ ;l lo. Pens

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    10/26

    J ACQ UE S DEl m! DA: PE NS An A DFSCONSTRU\:Ao

    Seria preciso desenvolver analises sutis para mostrar que os COlD~porrarnentos oposros e sucessivos muitas vezes siio do dominio da rnesrnaaxiomatica: 0 bern, 0 bem-estar e 0 born funcionamento do corpo e ciamaquina social ou estado-nacional, do Estado e cla sociedade civil: nelesrnesmos, mas tarnbern em sell arnbiente europeu e mundial.o Reconciliation Act [Ato de Reconciliacao], National Unity andReconc il ia tion '? [Unidade Nacional e Reconci liacaol , l ima vez confi rmadoe prolongado pela ultlma constituicao, Mandela 0tera inspirado, com aaprovacao de todas as partes entao envolvidas na negociacao. Ele lem-bra em sua autobiografia 0 que forum SUe!,Ina lise, sell calculo e sellclever, no dia seguinte as primeiras eleicoes livres em 1994. Concluidacom a ajuda de inumeras pessoas, dentr e as quais escritores comoNadine Gorclimer, essa autobiografia foi iniciacla na prisao, de maneiraclandestina, em condicoes aterradoras, com extraordinarlas e com oven-res astuctas para preserva-Ia e faze-la passar para fora. E preciso estaratento 8 .. lmbricacao do calculo ou cia raciona lidade polirica, da condicio-nalidade hlstorica com a 16gica do principio transcendente (liberdade,justica , democracia, verdade), em relncao ao qual essa estrategiu deve riae pretencle se afinar, E sempre analisando 0 estado das forcas e das re-lacoes de forca, e com vistas 8 . integridade ou a salvacao do corpo 50-ciopolitico, ou estado-naclonal, que Mandela ajusta sua s escolhaspoljticas." Resumindo a debate polernlco que a opos a De Klerk na te-levlsao, Mandela acrescenta que ele sentiu ter side rude com seu adversario (que era tarnbern seu pa rcei ro pol it ico, num momenta em que setra tava de constituir Ul11 gove rno de unidacle nac iona l) :

    A despeito dus crulcas de De Klerk, digo, e em segukla voltnndo rneuolhar para ele "'0 senhor e u rn daqueles com que canto. Vamos rer queenfrentar a problema deste pais juntos." Nesse insranre, peguei-Ihe a milo

    10. " 'Notwi thstanding the other provi sions of the new Constutuion and despt tc {he repeal qf(be preinous Const itut ion, all tbc prooisrons relat int; to amnestv conraincd i ll tbc pre-VI()US Constitution uncler tbe bem/llg ofNational Unily and iccconcihaticm are deemedt obepart a /t he nei o Cons ti tu ti on fo r thepurpos es o f t he Promo /ion o f Nati ona l Uni tyand Reconct liat tcn Act , 1995 (Act 34 q[ 1995), as am ended, illc/lldin,q /01 the 1111-j }( )s (' s ( ~/ J/S lJ(JI/(II~.H

    1'1. Pel'mi lo -me remeicr a(jui a "Admira tion de Nelson Mandd:t . Oll I", lois de b 1"-flexion". Esse rexro foi primeir.uuenre puollcudo n" ,\bertLlr'l de Po",' Nel~("'1Malldelll(obrn colctiv de c1.[Clr7(' .iutores, Pari: Ci~dlilll:~rdJ 1C)HCi)(!, l'm : -;(~,gt lld;L, rctolll:ldo ern1\1,'('''l: iHll('nliolls de rUIUn', 1':ll'i.'): Cal ih..: 'L' , '1~)K7.Novn Ldi\~~Il) l ll lp li :u.l :l , t , I, I~)t.nl.

    60

    o IElDAO. A VEWlAIlE. A IECONC!LIA

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    11/26

    .li\CQIJ~~:SD E H Rl L JA : I ' li N SA l l A DESCONSTl1U(AO

    un iversalizais/'II"!(/, Tr.ul. Mari:! I{odrigll

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    12/26

    1-\l\~IIES IlF,HHIIl;\: I'ENS:\1I1\ DES())NSJIHI( ..ll

    3. 0 negro i gnora a irnortalidade cia alma, ernbora aise encontremos expccrros dos rnortos (Totengespensten, E verdade que, :10 vcr deHegel, 0 culto dos monos sinallza - dar a complexidade das coisas e desua ~'valiac;:fio - lim acesso dos negros a algo de superior e urn esbocodo sent imento de irnort al idade. Por isso, ele diz: ignoram a imorralidaci'e,ainda que entre eles se encontrern alrnas do outro mundo.

    4. Mas sobrerudo, eis 0trace sobre 0qual eu deixar ia 0Iantasmnde Hegel discorrer mais tempo, 0 traco essencinl do negro e a esc ra -vidao, die Slzlaoeret. 0 negro nao rem consciencia de sua liberdade.o ho rnern negro ainda ndo tem consciencia de sua liberdade. Aindando. E preciso enfat izar 0 "ainda nao": a inconsciencia e npenas 0"ainda nao" cia consciencia e cia passagem a consciencia, urn simplesatruso, uma simples ~Iucronia no processo de lIlll tempo teleol6gicc)("der Mensch das Beuiusstsein seiner Freiheit noch nich t hat").E po r issoque ele cai na categoria cle coisa sern valor ("und somi t zu einer Sacbezu einem v/erttosen berabsinet"). E por ser. uma coisa sern valor hu~mario, sem liberdade, sem consclencia, torna-se uma mercadorla, redu-zida pelos europeus it escr avidao , para vende-la ao s arner icanos: "DieNeger tuerden von den Europaern in die Selauerei gefubrt und nacbAmeriha bin oereauft:"

    Ouviremos Mandela: provavelmente sobre a liberdade e os parade-xos de lima liberacao Infinltn, que pode apenas se desenvolver na dire-

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    13/26

    scmpre 0risco de scrcm sucrilcgas e rerigos;ls. 0 direito mcsmo, e a[ustlca, arenas progred iu trilhando 0caminho das ques tocs Into ler .ive ise "intoleradas". Inconfessaveis. A condenacao cia pena de motte, tidajustamente como urn irrefutavel progresso nos direitos hurnanos, naEuropa, e na Franca hti uns vinte anos, teria impeclido, em 1789, a cons-tituicao de tribunals politicos e nacionais, bem como provavelmente aDeclaracao clos Direitos Humanos - e, tendo isso como fundo, as pri-mei ras condenacoes publi cas c ia esc ravidao.

    Outra compl ica

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    14/26

    J A C Q UF S D E tI i UD A : P E N S, \n . . DESCONSTnU(.Ao

    sua abrupta anulacao" (grifos meus). Os Estndos Unidos entenderarn a!i\.-:1o: n:l0 de repentc, niio depressa demuis; e qllem se inrercssu deperto pela historia ciaescravidao, do segrcgaclonismo e dos direi tos civisnos Estados Unidos, encontra af uma bela imagem desse progresso, delima so vez irreversivel e rnuito lento, co rnp licado, de uma sob redeter -minacao intermin.ivel. E do carater interrninavel cia liberacao, a partir deurnu liberdade que seria no entanto originaria, que a inda vumos falar :1partir dos textos de Mandela. 0 que se traduz, no texto de Hegel, por"abrup r.i anu lacao" (a abolicao cia escravidao niio deve se -lo) e "plotzlicbeAI!/7.?ebllng".17 "Abru pt.. ;Inula

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    15/26

    JACQIII:,S 1)I~nHDI : PENSAI! I I n[~Sc()NSTHlc:Ao

    conceito do metoda, a que canstr6i a estrada, que outro niio e senao omovimento cia conscienciu, do espirito se tomando consciencia,

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    16/26

    N"IO n.iscl com r(JIll': d.: liberdacle. Nasci Il vrc - Livre p'lr,\ COI"l"

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    17/26

    JACQUES DEHIUDk IENSAI! A IlF~)CONSTHU

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    18/26

    JACQUES f)EmIDA I ENSAIl A DESCONS JlIUC;;Ao o "E1mAo, A VElDAIE, A I\ECONCI.IAI-AOI QUAL .RNI!II01

    pode nao se sentir no direito de percloar, sozinha COmo esta, vitirna pri-vacla cia outrn vftima, 0 rnurido. Porern, quando, upos outre silencio, eluacrescentn. "E nao estou disposra a perdoar", 0que logicamente pocle seenrender como urn "ora, nao estou disposta a perdoar", isso exigi ria maisurn ccmentsirio e lima multiplicicl:icle cle leituras quase infinitas, sobrerudose nao remos acesso ao que ela cliz literaimente em seu idiorna.

    Como e a partir clesse raciocinio que ela poe em questao, ate mesmoem :!cu sa. ; ;: i i ., a 16gica poHt ico- juridi ca e a Hngua (inglesa au afrikaans)que Ihe impoem, seria preciso saber 0que significa "nao esrou disposraa perdoar", Sera que ela quer dizer com isso: nao estou em sitLla

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    19/26

    JACQUES DEI{(IDA, IENSAl A DESCONSTIIU~Ao o I 'ERDAO, A VERDADI:, II IIECONCII_JI\C~i\O: Q U A L . G P N E RO ?

    Na massa dos testeinunhos que poderfamos escolher, privilcgiei,por razoes de eeonomia e sobnedacle, mas nao apenas por !SSO, 0 ciamulher que diz "e nao estou clisposta a perdoar". Certamente escolhi talexemplo pelo que ela diz, a mulher-esposa, mas tarnbem por ser umarnulher. E uma mulher que fala, e precisarnos aqui levar em conta a dife-renca sexual, As testemunhas, do lado das vitimas sobreviventes ou dosa liados destas , Ior am 0rnnis das vezes mulheres, esposas, lrrnas, maes,filhas. Quando Tutu quer dernonstrar que tuclo isso e feito com 0 obje-tivo de perdoar C'Na Africa do Sui, explicamos que queremos sincera-mente perdoar e encerrar 0 passado", diz ele26), quando quer mostrarque esse perdao Ioi, com efeito, muitas vezes concccliclo, ele tamberntorna urn exemplo, nesse casoigualmente urn exemplo de mulher. Seriapreciso ler toda a entrevista, mas eis 0 trecho em que Tutu responde auma objecao (de De Klerk, dentre outros): sed que todas essas revels-coes nf \o VaG ameacar 111ai5do que favorecer a reconciliacao buscada?

    Uma mulher (liz "nito estou disposta a perdoar", uma outra, "ell 0perdoo". Nao 0sublinho sornenre para lembrar que a questao cia clife-renp sexual, multo alern do grande exemplo sul-africano ou de todoexernplo possfvel, marca em seu interior a questao do perdao, E precisenunca esquecer isso. E nao apenas porque se pode perisar que 0 amorou a compaixiio, associados mais ao perdao do que ao rigor do direito,parecern naturalmente mais femirunos do que masculines, como se 0excesso do perdao sobre direito, sobre a retribuicao calculavel, ,Itemesmo sobre a vinganca, fosse coisa mais da mulher do que do hom em.Penscrnos novarnente n.is cenas do Evangelho comcntudus por Hegelem seu livro de juventude L'esprit du cbristianisme et son destin: a apa-rir!/;I'II, p. 2~S: I. ,'-'"pri/ rill chris-t iant smo e ! SOil des/ill, Trucl. J Mar tin, 1 \I I; s: Vrin, 1948, p. 62.

    28. I,'/J/JaJ/gi/e seton !.lICaS, 7, 36-50. Trad: fl:1I1C,J Grnsjcall c M. Lct urmy , B ib li ot hcquc d~ 1 :1PI6i"d~ Paris; Gul hm. rr d, 1971, 1' . 198-199 (X" lQ(V Aiy( , ' 001, Ihllf("VTrHrl (~f"I.!Ti{1lntlTrl~ o:i rro,\Aai, OTlljY1xn'l l"TV n oM ,: ( .~N oMyov (h~il'[m, oAiyov 1 .\ Y (x IT I~ . [ [T I I: v oi:aUT!l, Aq,t{uvwi oou al &fl"'QTim.) Proplerqlod d i e D Ilb/; Rellllll1ll11l1ref/yeccala 1 1 1 1 1 1 1 a ,qIlOll/CIIIIdilexilll/.ulllllll. Gill all/em III{II liSdllllillillll; m/lllls diliy/I. Dixi l a ll iem ad /11t1J1I.6. Pas d'l\mnistie sans verite op. cil., p. 67.

    78 7 9

    ""

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    20/26

    I,\CQUES I )E nn II )A : P E NS A Il A I)ES(;ONSTHJ~~Ao o PEHDAo, A V E I{ D A D E , A ItECONCIL lAC;Ao : QUAL Gt:NFHO?

    1 Esse capitulo (cap. 16) se chama "Truth is a Woman". Rico deexemplos e de testemunhos dllacerantes, rnereceria ser citado in ex-tenso. Num deterrninado memento, Anrjie Krog coloca a questao: "Doestruth have a gender?" ("Sera que a verda de tem sexo?"). Tais militanteslernbram uma prirneira humilhaciio reservada as mulheres, rebaixu-mento previo que, de algum modo, sobredetermlnava qualquer outraviolencia. antes mesmo do risco de serern estupradas ou de se tornaremalvo de uma agressao sexual em geral, uma acusacao slngularrnenteinjuriosa lhes era expressa, assim que elas eram presas e entregues aosservices especiais de seguranca ou a policia: "Voce nao e urna verda-deira m ilitan te politica, mas u rna prostitu ta."

    A crueldade dessa clupla violencia (nao ser reconhecida como rni-llruurc responsiiv cl, mas como p rostituta, CpOI' conseguinte SCI' tr:II':I(]:1como tal, subrnetida a boa vontacle sexual dos torturadores), eis 0 quetornava impossivel ou particularmente diflcil todo testernunho a esserespeito perante a Comissao , 0 que viria a ser a terce ira fericla. Algumasmulheres nao podiam mais revelara verdade, tornanclo-se incapazes demanifestar a verdade do que lhes tinha sido infligido, precisarnenteporque 0 que tinha acontecido de pior era serern finalmente impedidas,inihiclas, proibidas em sua fala rnesrna, sua fala publica, e ~IS vezesprivada, familiar, a respeito de tais traumarismos, do traumatismo notraumatisrno: 1) nao ser reconhecicla como lima militante responsavel,mas como lima puta; 2) pOl' con seguinte, ser tratada como uma puta e,portanto, estar sexualmente exposta a abuses; 3) por tanto, nel l) mesrnopoder mais testernunhar sobre isso, principal mente perante a Comissaono entanto dita "Verdade e Reconciliacao", sem tel' que descrever cenasde estupro e sem as vezes ter que exibir, desnudando-se, as provasque constitu iar n outras tantas cicatrizes. Era, de urna s6 vez, assassin adade .mremao a condicao do testemunho, da verdade e cia reconcillacaoem ta i s vlolencias praticadas contra as mulheres. Urn exemplo c1entretantos OLitrOS, os breves excertos de urn cliscurso pronunciado pela pre-sidente de uma Gender Commission (Comissao cia Dif erenca Sexual,C

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    21/26

    o I'EIWAO, /\ VE~ )A[)F, A 11ECONcrUA(.AO; QUAI. G~NEl.O?

    Apos SC ter inclagaclo "Does truth have a gcmder?"!", qucst iio quecia parcee responder corn um "sim" doloroso, ele mesmo traurnatizado,Antjie Krog c i a , entao, a pa lavra a pre sidente c ia Gender Commission. Elalembra, quando das audienclas e special mente reservadas a s mulheres,que em to do lugar onde tinham que se haver com as forcas de polfciaou de seguranca, elas se expunharn aos abuses sexuais e ao estupro.Viarn sua~ dignidade de rnilitante politica recusada, digniclac1e esta ~ISvezes respeitada nos homens pelos torturadores, Eles cliziam: "Voce estana prisiio porque nao e uma mulher como deve ser - voce e irrespon-s.ivel, e uma pura. gorda e feia ... e procura lim homern." Ou ainda"Voceriao e uma revolucionaria, e uma puta negra e fogosa."

    Como epfgrafe a essa explanacao, Antjie Krog cita uma vitirna:

    cSlllpr:lliu!'cs. Porcm, qual cstuprucloi confcssa na entao sel l c rime?Adernais, os hom ens nao utilizam a palavra "estupro" nos testemunhosrclntivos ;IS violencias scxua is de que FOLlIll vit im.rs. I'ul .uu de "socloml-z:l

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    22/26

    J A C Q UE S P E nI { lD A : P E N SA l t A J ) E. - i. C ON S T[ W (: A O

    feridas, Oll a memoria das feridas, ela reativaria 0 mal, ate mesmo 0 6elioracial, por ocasiao de testemunhos que mal se sustentarn, a s vezes porocasiao de encontros entre as vitirnas e seus carrascos (perpetrators).Continua, portando, sendo dificil reconcillar entre si, em prirne iro Ingar,os clois imperatives que definem a tarefa ou a responsabilidade cia TRC:verdade e reconciliacao,

    2o que quer dizer aqui "verdade", e 0 que fazer quando a dita

    "verdadc" pode ser antes urn obstaculo a reconciliacao do que levar aela? 0 que quer dizer verda de, aqui? De qual genero de verdade setrata? 0proposito nao e e stabeiecer urn sabe r, 0de uma verdade cienti-fica, de urna verdade supostarnente objetiva, adequada a seu obje to oureveladora de seu objeto, tal como um historiador poderia pretenderdeterrnina-la e fixa-Ia. Nao se tern simplesmente em vista um arquivo quese trataria de constituir, de reconstituir, colocando-o em lugar segura.(Tratando-se de arquivo, soube em Johannesburgo, pela boca do diretordos nrqulvos nacionais, que j:l havia um. t tensiio, a tc mesrno urn conf lito,entre sua instituicao - em principle, uutonoma e inclependente do go-verno ~ e, por outre lado, 0 governo, nao a respeito do arquivo emgeral, mas do arquivo cbs sessoes da Comissao, urna enorme quantidadecle reglstros sonoros e visuals, de transcrlcoes, cle deliberacoes, a partirdus quais a Comissao redigiu urn relatorio, que jrt ope rava urna selecaoe lima interpretacao. E esse relat6rio que devia ser entregue a Mandela.A questao e de extrema gravidade: quem dispora desse arquivo? Quemcontrolar.i 0 acesso? Quem trabnlhara com a interpreta

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    23/26

    JACQUES DElml!)A, IENSAll A DE5CONSTllU,-AO o PEI i[ )AO, A VEHDADE , t \ I IE CONC IL lA \- ,\ O: QUAL G t:NE IlO?

    muitas vezes considerado urna "[ustica dos vencedores''." Adernais, exigiarecu rsos de que a nova Africa. do Sul nao dispunha e invest irnentos derisco dernasiadarnente a ltos. Quanta ao modele chile no da anistia geral,este ameacava paral is ar e confirrnar a vftima em seu destine de vitima.A cliferenca desses dois precedentcs,

    na Africa do Sui, explicarnos que queremos smceramente percloar e encerraro passado , mas nao em meio a uma improv isa

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    24/26

    .:1"

    destinacla a c urar (heal away) urna comuniclacle nacional hererogenea,mortlficada, Ol l 111 11Estado-nacao tfio ameacado em seu futuro e em suacnes:io. Tutu renra, poreru, de maneir.i ;1 men ver poucn eonvincentc,ap:lg~lr ou esplritualtzar essa "economiu", cilstinguincio "reparacao'' e"compensacao" :

    I-lege I conclulra com uma considera

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    25/26

    J AC QU ES I lE lm ID A, ] 'F N SA i< A DESCONSTHUyAO

    de algum modo 0 antecipa: Hegel observa que esse esforco de Jesuspara se erguer acima da totalidade do destine [udeu, dessa figura total,encontra primeiramente a confrontacao e J hostilidade 0mais perto des]. Ainda que ele tenha em visra .o amor e a reconciliacao, a hostilidadeque Jesus suscitou de inicio apenas podia ser superada , rendida (aujzu-beben) pela bravura CIapfereett), pela coragem, e nao conciliacla oureconc il ia cla pe lo amor (nicht durcb Liebe uersobnt werden). A tentativasublime de Jesus (sein erbabener Versucb) para superar a totalidade dodestine teve que fracassar no interior de sell proprio povo, Jesus teveque se tornar a vitirna sa crificial (Opfer) desse mornento, Ele perdeu aguerra em sen proprio povo, mas achou uma entrada, uma acolhida, urnacesso no resto do mundo, junto a homens que niio participavarn dodestino e nada tinham, portanto, a defender. E , entao, a hurnanldade,a beleza da natureza , 0 arnor , a unidade cia reconciliacao, e 0 coracao e asubjetividade que assirn Jeslis oporia i ' t . dissociacao juclia, ~Iobodlcnciui't l et ra c ia lei , ao fart sa lsmo, it execucao pontual, mecanica e literal deprescricoes objetivas.

    3Seria precise se aproximar mais do que dizia Hegel, entao, do per-

    dao, especialrnente acerca do "Sermao cla montanha" e da cena de MariaMadalena. Duas peclras de espera, Voltaremos a isso quando Clinton en-trar em cena. Estas ainda sao sequencias teatrais.

    1.a) Primeirarnente dois fragmentos, como para opor a espiruo (naoa revista Esprit mas 0 Geist clo Cristianismo de Hegel) e a palavra espiri-tuosa (Witz, [chistel) segundo Freud. Em seu livro sobre Der Witz undseine Beziebung ZU1n Unbeunissten [0 chiste e suas relacoes com in-consclente], de 1905, sempre a titulo do humor e da ironia, cia linguageme da pa lavra espirituosa, de seus mecanismos, de sua econornia, de suastecnicas, Freud poe em cena, a sua rnaneira, 0nome ante sem 0nornear,o tornar-se-cristao do perdao como resposta 11agressao. Ele 0des crevecomo urna certa economia (como tera feito, a seu modo e clentro de urnespirito completarnente diferente, Hegel, e como tera feito, de uma outramaneira, Nietzsche). Freud fala tarnbem de si mesmo e de Lima certaanalogia com a agressao sexual (que esteve no centro de nossa sessao).Como as pulsoes sexuais, as pulsoes hostis se submetem a esse recalqueprogresslvo que se chama "cultura humana". Decerto, "nao conseguirnos

    90

    o l'Ff~J)Ao,A VERDADF ., A UECONCl li ACAo : QUAL Gr.Nr:RO~

    ainda ir tiio longe a ponto de amar nossos inimigos Oll ofe recer-lhes aface esquerda depots de esbofeteada a direita", Embora, em n~S5~\ comu-nidade nacional, dorninemos melhor a agressividade, esta atua livre-mente com relacao a rnernbros de outra nacao,

    Contuclo, dentro de nosso proprio cfrculo, ja f i z cmos alguns , \V< ln< ; :05 nocontrole dos Impulses host is . Como Lichtenbe rg expr imiu em termos dra s-ticos: "Onele dizemos agora 'desculpe-rne' costurnavamos dar urn 50CO nosouviclos." A hostilidade bruta l, proibic la por lei, foi substitufda pcla invec-tiva verbal; lim melhor conhecimento cia interconexiio dos impulses huma-nos est.i cada vez nos roubnndo - atraves de sell consistenre toutcomprendre c'est /01.1/ pardonner lcompreender tuclo e perdoar tudol -a cap.iclcludc de nos z~\ngannos com quem quer que se intrometn emnOSSQ carninho.

    Toda essa parte analitica do Chis/e)" mereceria ser levadu em conraaqui.

    l .h) Aindn lll;lis tcatrul, 0 segundo I'rag111cnto poe em ccnn , como 6a caso muitas vezcs nesse Itvro, 0 jucleu convertido que foi Heine ~dessa vez, em seu leito de morte e sernpre com verve. A cortina se erguesobre lima certu automaticldade do perdJ.o, uma ccrta maquina lidadcfuncional, profissional e institucional no mecanisme elo perdiio (pedidoou concecliclo). Porern, esse oficio do perdao seria 0 offcio de Deus. Ora,por urn lado, essa paiavra de Heine, a respeito cia responsahilidacle pro-fissional de Deus, e enderecada a urn padre, portanto a alguern queexerce a profissao de perdoar ou de transrnitir 0pedido de perdao, Poroutro, evocando profissoes analogas, a do medico e a do advogado,Heine nao Iala cia psicanalista, mas par isso mesmo, e Freud tarnpouco,dessa especie de medico que e 0 analista e em quem nao podernos dei-xar de pensar aqui: 0 ps ! como perdoador patenteado, como 0 profissio-nal do perdao Oll 0 clelegado de Deus no perdao, 0 repre senrante c le ssepat rao do perdao que e Deus. Como urn patrao artesao, Deus faz ~ISvezes ele mesrno 0 trabalho. Outras vezes ele del ega seu secretario-confidente-confessor, 0padre ou, par lima via tao mais sutil ou astuciosa,

    38. Le mo t d 'e sp ru. Trad. M. Bonaparte e M. Nathan. Parts. Gallimard, [dees, p . 151 -153 F(Standard Edition, VlJ[, p. 102-103). [0 chiste e HWS relacces COm0 lnccnsciente.Trad. bras. sob ,I dire(:ao de jayme Snlorn.ic. Edicao Standard das obras psicotogtcascoinpletas de Freud. Rio de jur ie iro: Imago, 1976 v. VlI l, p . 122-123.1

    91

  • 5/9/2018 DERRIDA, Jacques - O perd o, a verdade, a reconcilia o - qual

    26/26

    J A CQ U ES D E mU D A: P~ ' :NSAR A DESCONSTIW(:AO

    ... ,"

    a psicanalista. A palavra de Heine e, entretanto, citada como a palavrade urn judeu alernao que diz - em frances ~ alga do ponto de vista dojudeu sobre 0 perdao, e talvez sobre 0 perdao cristiio. Quando limde seus amigos que e padre lernbra ao ngonizanre a misericordia dlvinu ,deixundo-o ter a esperan(,,'il de que Deus lhe pcrdoara os pecados, Heinereplica, em nOSS