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  Apostilas d o Semi nário de Filosofia  Consciência e estranhamento (Descartes e a psicologia da dúvida – Parte II) Olavo de Carvalho Esta aula de 1998, transcrita por Fernando Manso e revista por Luciane Am at o (responsável t am bém pelas not as assinal adas N. R.), já deveria constar desta página faz muito tempo, pois a considero esse ncial para a compreensão do meu modo de enfocar a filosofia moderna . Simplemente esquec i de enviá-la ao webmaster. Continuação de Descartes e a psicologia da dúvida , ela passa da análise lógi ca da estrutur a da dúvida metódica à análise existencial da dúvida metódica c omo experiência vivida, levando, passo a passo, a conclusões surpreendentes, mas, creio eu, exatas. É claro que ainda pretendo dar-lhe uma redação final, com correções, mas a transcrição não pode mais ficar fora do alcance dos meus alunos e dos demais visitantes desta homepage. - O. de C . 1. Revisão do itinerário Examinei na parte anterior o passo inicial da filosofia de René Descartes, a dúvida metódica, que muitos, entre os quais Husserl, consideram também o passo inicial de toda a filosofia moderna. É ele que inaugura realmente um estilo de enfoque filosófico que se tornou dominante do século XVII até hoje. (1) Esse estilo é marcado pela idéia da dúvida preliminar, de que nenhuma verdade será aceita sem que haja razões suficientes para aceitá-la. Dessa proposta nasce toda uma linhagem de pensadores cujo último e mais ilustre representante será Edmund Husserl, o qual, numa série de conferências feitas no Collège de France, que depois receberam

Descartes e a Psicologia Da Dúvida-- Parte II

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  • Apostilas do Seminrio de Filosofia

    Conscincia e estranhamento(Descartes e a psicologia da dvida Parte II)

    Olavo de Carvalho

    Esta aula de 1998, transcrita por Fernando Manso e revista por

    Luciane Amato (responsvel tambm pelas notas assinaladas N.

    R.), j deveria constar desta pgina faz muito tempo, pois a

    considero essencial para a compreenso do meu modo de

    enfocar a filosofia moderna. Simplemente esqueci de envi-la ao

    webmaster. Continuao de Descartes e a psicologia da dvida ,

    ela passa da anlise lgica da estrutura da dvida metdica

    anlise existencial da dvida metdica como experincia

    vivida, levando, passo a passo, a concluses surpreendentes,

    mas, creio eu, exatas. claro que ainda pretendo dar-lhe uma

    redao final, com correes, mas a transcrio no pode mais

    ficar fora do alcance dos meus alunos e dos demais visitantes

    desta homepage. - O. de C.

    1. Reviso do itinerrio

    Examinei na parte anterior o passo inicial da filosofia de Ren

    Descartes, a dvida metdica, que muitos, entre os quais Husserl,

    consideram tambm o passo inicial de toda a filosofia moderna.

    ele que inaugura realmente um estilo de enfoque filosfico que se

    tornou dominante do sculo XVII at hoje. (1) Esse estilo

    marcado pela idia da dvida preliminar, de que nenhuma verdade

    ser aceita sem que haja razes suficientes para aceit-la. Dessa

    proposta nasce toda uma linhagem de pensadores cujo ltimo e

    mais ilustre representante ser Edmund Husserl, o qual, numa srie

    de conferncias feitas no Collge de France, que depois receberam

  • o ttulo de Meditaes Cartesianas, afirmou explicitamente que a

    dvida metdica o comeo obrigatrio de toda e qualquer

    filosofia. O primado da dvida tido assim como uma coisa to

    bvia, que no nem preciso declar-lo: praticamente a filosofia

    moderna est identificada com o exerccio preliminar da dvida

    metdica, ou com aquilo que Mrio Ferreira dos Santos chamava a

    suspiccia preliminar, uma atitude de suspeita perante quaisquer

    afirmativas que tenham pretenso verdade.

    Na seqncia de pensamentos que resume sob o ttulo

    Meditationes de Prima Philosophia, Ren Descartes comea, como

    todo mundo sabe, por rejeitar todas aquelas verdades costumeiras

    que lhe tinham ensinado desde a infncia, nas quais ele no visse

    um fundamento suficiente.

    Ele notava, por exemplo, que os cinco sentidos, nos quais

    geralmente acreditamos, no so fundamentos de si mesmos, quer

    dizer, no trazem consigo a prova das informaes que nos do.

    Ele usa, para impugnar a confiabilidade dos sentidos, uma srie de

    argumentos que, na verdade, no so dele, que so bem antigos,

    que so da escola pirrnica, e que consistem em alegar os enganos

    costumeiros dos sentidos -- a famosa histria do pau que, posto

    na gua, parece quebrado, ou o efeito da perspectiva que d a

    iluso de que as coisas mais distantes so menores do que as que

    esto perto. So esses erros ou enganos comuns dos sentidos que

    nos mostram, ento, que os sentidos podem ser uma fonte de

    conhecimento, mas no uma fonte segura. Ademais, existe o fato

    de que durante o sonho tambm temos sensaes e nem sempre

    temos a prova de que o sonho apenas sonho. Se no temos a

    prova de que o sonho sonho tambm no temos a prova de que a

    viglia seja viglia, e assim por diante.

    Em seguida, Descartes faz a crtica da memria, dizendo que esta

    tambm falha, e o que ele faz com a memria faz tambm com a

    imaginao e, enfim, com todos os seus pensamentos habituais e

    as com as crenas do senso comum.

    Descartes vai derrubando tudo isso, sempre em busca de qual seria

    o ponto arquimdico, o ponto seguro que poderia servir de

    fundamento construo de um sistema vlido de filosofia. No

    importando agora quais tenham sido as concluses a que ele

    chegou, esse movimento de negao inicial que considerado

  • por Husserl o paradigma do movimento filosfico como tal.

    O que fiz no 1 foi examinar o ato da dvida metdica, porque

    Descartes descreve apenas as concluses a que foi chegando no

    exerccio da dvida metdica, mas no faz em nenhum momento a

    descrio do prprio estado de dvida. Se para fazermos um

    exame radical do assunto, ento, no podemos saltar essa etapa:

    temos de nos perguntar o que acontece, efetivamente, quando

    estamos em dvida. Que estar em dvida, concretamente

    falando? A definio de dvida todo o mundo conhece, mas s o

    suficiente para reconhec-la quando aparece no exerccio real do

    pensamento, no o bastante para descrev-la em sua estrutura

    interna. Ento, esta pergunta que me fao: qual a estrutura

    ontolgica, a estrutura real do ato de duvidar? Vimos em primeiro

    lugar que a prpria concluso que Ren Descartes vai extrair desta

    parte do exame -- que, enquanto estamos duvidando, no

    podemos duvidar de que duvidamos, e que, portanto, o prprio ato

    da dvida seria a primeira certeza filosfica inabalvel --, tambm

    no inabalvel, porque, se a dvida uma alternncia entre duas

    convices contrrias, ela no apenas admite a dvida a respeito

    de si mesma, mas a exige, quer dizer: no podemos ter

    propriamente a certeza de que estamos em dvida. Por que?

    Porque estar em dvida oscilar entre duas certezas. Se no

    momento em que pensamos uma das alternativas, no temos nem

    uma certeza aparente dela, e ao instalar-nos na outra tambm no

    temos essa certeza, ento no estamos em dvida, porque j

    negamos as duas. Ento, no momento em que uma das alternativas

    pensada, ela no pensada como dvida, mas como uma certeza

    temporria, que em seguida destruda pelo confronto com a

    hiptese contrria. Portanto, a dvida no um estado, a dvida

    a impossibilidade de permanecer num estado e por isto mesmo ela

    tem um carter proliferante que se alastra sobre si mesma. No fim

    das contas, no possvel algum duvidar sem duvidar de que

    duvida, porque, se a certeza fosse excluda do horizonte, no

    existira mais dvida, existiria simplesmente a negao. (2)

    Em seguida, examinei os outros componentes da dvida, no

    seguinte sentido: Quais so as condies reais necessrias para

    que o indivduo esteja em dvida, no sentido cartesiano da coisa?

    Quais so as crenas que esto pressupostas no prprio ato de

    duvidar? Este exame, ento, um exame da estrutura lgica da

  • dvida, que vou completar, neste 2, com o exame da estrutura

    existencial da dvida. Um tempo considervel foi necessrio para

    que eu saltasse do primeiro exame ao segundo; porque estas

    questes so realmente complicadas.

    O exame da estrutura lgica da dvida mostrava quais so os

    pressupostos lgicos sem os quais a prpria dvida no possvel

    (refiro-me dvida cartesiana, dvida radical, claro, no

    dvida vulgar). Um deles a prpria continuidade do eu entre a

    pergunta e a resposta. Ren Descartes diz que o famoso penso,

    logo existo no um raciocnio, mas um ato intuitivo. Quando ele

    afirma: "Eu no posso duvidar de que duvido no momento em que

    estou duvidando", diz ele que isto no uma concluso lgica, mas

    um ato intuitivo, uma percepo instantnea. Porm, essa

    percepo, ainda que seja instantnea, se refere ao mesmo eu

    que estava duvidando antes. Portanto, existe a uma continuidade

    do eu no tempo que transcorre entre essas duas vivncias: o

    estado de dvida e a certeza intuitiva da dvida. No que esta j

    no esteja contida potencialmente no primeiro estado, mas o fato

    que ela s se atualiza na conscincia aps o recuo reflexivo, o

    giro da ateno que se desvia do objeto inicial da dvida para a

    dvida mesma enquanto estado.

    Mas, de modo mais geral, toda dvida, na sua prpria estrutura

    lgica, pressupe a continuidade do eu entre a primeira alternativa

    alternativa pensada e a segunda alternativa que a desmente. Por

    exemplo, tomemos uma dvida teolgica elementar: nada se cria

    do nada, no entanto Deus criou o mundo do nada. Todo o mundo

    sabe que nada se cria do nada, mas, pelo que est escrito na

    Bblia, Deus criou o mundo do nada. Ento, os telogos tm de se

    arranjar com esse problema e discutiram isso durante sculos. Ora,

    se tenho uma dvida a respeito porque vejo a uma contradio,

    e se vejo a contradio porque vi duas hipteses contrrias, e eu

    permaneci o mesmo enquanto via a primeira e enquanto via a

    segunda. Portanto, a continuidade do eu um pressuposto da

    dvida: no possvel ter uma dvida sem afirmar, no mesmo ato,

    a continuidade do eu.

    Outro pressuposto da dvida a identidade do objeto a respeito do

    qual tenho a dvida, porque se digo uma coisa a respeito do objeto

    A e a coisa contrria a respeito do objeto B, elas no se

  • contradizem necessariamente e o confronto das duas afirmaes

    no tem por que suscitar dvida. S dois predicados contrrios do

    mesmo sujeito podem contradizer-se. Se me dizem que Jos

    gordo, mas Antnio magro, isso no contradio, porm, se

    dizem que Jos gordo e magro, ento entro em dvida.

    Alm disso, a prpria estrutura do raciocnio lgico tambm est

    pressuposta na dvida. Se no existe princpio de identidade, no

    tenho como formar a dvida.

    Tambm est pressuposta na dvida a continuidade da lngua na

    qual ela se transmite. No poderamos arquitetar esse raciocnio

    todo sem o auxlio da lngua, e essa lngua, evidentemente, sei que

    no a estou inventando no momento em que estou formulando a

    dvida, sei que estou usando regras de gramtica que existem de

    antemo e que, se eu no as tivesse recebido, tambm no

    poderia produzi-las na hora. Em suma, por baixo do ato da dvida,

    teoricamente uma dvida radical que coloca tudo em dvida, existe

    uma montanha de certezas, portanto essa dvida no radical

    coisssima nenhuma, apenas um fingimento de dvida radical.

    Se a dvida metdica no uma dvida radical, mas j um produto

    ou uma deduo de uma srie de certezas anteriores, conclui-se

    que tambm est errada a regra de Kant de que o problema crtico

    do conhecimento o primeiro problema, na ordem dos fundamentos

    da filosofia. Nunca podemos comear com a crtica do

    conhecimento; a crtica do conhecimento pode acontecer, sim,

    mas ela no pode ser o primeiro captulo jamais, porque para poder

    faz-la preciso dar por subentendida no apenas a existncia do

    conhecimento que ser objeto de crtica (coisa que o prprio Kant

    reconhece), mas uma srie de certezas nas quais se apia o

    prprio exerccio da crtica.

    2. Passagem a um novo enfoque

    Partindo disso e aprofundando gradualmente a questo, vamos nos

    perguntar, agora, j no quais so as pr-condies lgicas do

    exerccio da dvida ou da crtica, mas quais so as pr-condies

    reais, existenciais, ou, dito de outro modo, como possvel, na

    prtica, estar em dvida radical. Como que vem a existir esse

    estado de dvida e como possvel que um homem, ou dois, ou

    trs, ou quatro tenham no apenas o estado de dvida, mas o

  • estado de dvida radical? Como possvel duvidar de tudo? De

    onde vem a possibilidade real da dvida geral cartesiana?

    Vamos partir de uma observao banal: mesmo que no possamos

    duvidar de tudo num sentido cartesiano, podemos duvidar de muita

    coisa. Ainda que seja incompleto no seu contedo e ainda que no

    se realize plenamente, o estado de dvida um fato. Temos de

    reconhecer que ele existe, e tambm que a dvida metdica

    existe: esto a trs sculos de exerccio dela para provar isso.

    Ento, a nossa pergunta : Como pde vir a existir? Como essa

    criatura chamada homem pde colocar "todo" o mundo entre

    parnteses, se ela nunca esteve fora do mundo? No temos

    realmente a experincia de ficar fora dos nossos sentidos, das

    nossas memrias e imaginaes, muito menos dos nossos prprios

    pensamentos -- simplesmente no temos essa experincia. Se no

    temos essa experincia, de onde obtivemos a possibilidade de

    conceb-la e de tentar colocar-nos neste estado, mesmo que no

    consigamos? Neste sentido, claro que nenhum outro animal, alm

    do homem, experimenta esse estado. Voc pode ver que, s vezes,

    um animal pode ficar num estado de perplexidade entre duas

    alternativas, mas voc nunca ver um animal paralisar totalmente

    as suas decises at resolver uma dvida cartesiana.

    Muito mais interessante do que o velho problema de como podemos

    ter a certeza do mundo exterior o problema de como podemos

    chegar a duvidar dele, se nunca tivemos a experincia de estar

    fora dele por um instante sequer. De onde vem essa capacidade

    humana de negar, ao mesmo tempo, a experincia, o hbito, o

    senso comum e a certeza moral? Pois o mais estranho no solipsismo

    experimental de Ren Descartes precisamente que o filsofo

    consiga entrar nele a despeito de saber que, mesmo durante esse

    perodo de radical isolamento, necessitar de uma "moral provisria"

    para se arranjar de um modo ou de outro naquele mesmo mundo

    exterior que, enquanto isso, ele est negando.

    Descartes, querendo colocar em dvida todos os seus

    conhecimentos, mas sabendo que enquanto isso vai continuar

    vivendo, conversando com as pessoas, tomando decises, pagando

    suas dvidas etc., pergunta-se: Como vou orientar-me no mundo

    enquanto estou em dvida com relao a tudo? Ento, ele concebe

    os princpios do que ele chama uma "moral provisria", que a

  • moral que ele vai seguir sem question-la e sem afirmar que

    verdadeira ou falsa, durante o perodo em que estiver realizando

    esse experimento interior.

    Ora, o simples fato de concebermos uma moral provisria nos

    informa que sabemos que estamos no mundo, mesmo durante o

    perodo em que estamos duvidando de que estamos nele. Mas, se

    sabemos disto, como que conseguimos conceber a hiptese de

    estar fora dele? Esta, no fundo, a pergunta: como? Porque o fato

    que o conseguimos, ainda que imperfeitamente.

    O conhecimento comea com o estranhamento. O primeiro passo

    da investigao filosfica colocar-nos num estado no qual

    possamos perceber a estranheza de alguma coisa. Normalmente

    no percebemos essa estranheza porque no prestamos ateno,

    mas, quando prestamos ateno, a estranheza aparece. Quando

    estamos lendo Ren Descartes, passamos direto por esta parte e

    no nos lembramos de nos perguntar: Mas como ele conseguiu

    fazer isto? O fato que ele conseguiu, pois est nos contando que

    conseguiu. E verdade que eu tambm consigo. Mas como isso

    possvel? Quase tudo o que os filsofos descobriram ao longo dos

    milnios foi estranhando coisas que o hbito nos faz esquecer que

    so estranhas. Ento, para estranhar, temos de nos colocar

    mentalmente "fora" daquilo e olh-lo como se fssemos um turista

    de outro planeta, ou pelo menos de outro pas. Assim, aps trs

    sculos de dvida metdica, nos acostumamos com ela, mas

    lembrem-se de que os primeiros que leram as Meditationes devem

    ter achado tudo muito esquisito. Ns j esquecemos que

    esquisito; ento, vamo-nos colocar de novo naquela posio de

    estranheza e nos perguntar: Como possvel a dvida cartesiana?

    Ora, existem duas maneiras de nos livrarmos de uma esquisitice: a

    primeira habituando-nos com ela acabando por esquec-la; a

    segunda tentando explic-la. S que, tentando explic-la, o risco

    que corremos o de que ela acabe parecendo mais esquisita ainda.

    Normalmente, perante as coisas esquisitas, primeiro nos

    assustamos e depois tratamos de nos habituar com elas e no

    fazer mais perguntas. Esta a atitude prtica mais vivel, mas em

    filosofia ela no legtima; ao contrrio, temos de buscar esse

    estranhamento porque, se no, as perguntas filosficas

    desaparecem. Ento perguntemos: Como foi possvel Descartes

    pensar isso? Como possvel cavar tamanho abismo entre o que se

  • sabe e o que se pensa?

    Notem bem que, durante todo o exerccio da dvida metdica,

    Descartes sabe que est realmente pensando; ele coloca entre

    parnteses no o pensar, mas o saber. Ele est pensando, mas

    aquilo que ele sabe duvidoso, portanto, ele no assume o que

    sabe, ele assume apenas que est pensando. Ora, como que

    podemos fazer isso? Notem bem que um bicho no pode fazer isso:

    tudo em que um bicho pensa, ele acredita; ele no pode pensar

    uma coisa no mesmo instante em que ele no acredita nela. Um

    computador tambm no pode fazer isso, toda a informao que o

    computador nos passa porque ele "acredita" nela. Ento, a

    dvida cartesiana um estado muito peculiar e podemos dizer que

    este estado exclusivamente humano. Talvez pudssemos at

    dizer que o homem o animal que pode tentar fazer a dvida

    cartesiana. Os animais no podem, os anjos no podem e Deus

    tambm no pode. Ento, por isso que a dvida metdica

    importante, ou seja, porque ela um estado que

    caracteristicamente humano, mas que no deixa de ser esquisito

    por isto.

    Essa capacidade de negar mentalmente sem negar

    existencialmente uma das propriedades mais estranhas do bicho-

    homem. Ela mais enigmtica, decerto, do que a nossa certeza do

    mundo exterior, a cuja explicao e fundamentao se dedicaram,

    no entanto, muito mais horas e livros.

    O fato de acreditarmos que o mundo existe j suscitou a atitude de

    estranhamento da parte de muitos filsofos. Muitos constataram

    que acreditamos, de fato, que estamos no mundo, que esse mundo

    real etc., e se perguntaram: Como possvel? O que eles no se

    perguntaram foi o contrrio: Como possvel duvidar? Esta

    investigao feita aqui, creio que pela primeira vez: qual o

    fundamento real da possibilidade da dvida?

    3. A condio de possibilidade da dvida

    cartesiana: o dinamismo antivital.

    J demonstrei que a dvida cartesiana no pode se levantar seno

    sobre todo um edifcio de certezas; que ela no , portanto, um

    comeo, como por longo tempo se pretendeu, mas uma simples

    etapa dialtica no movimento de uma mquina de certezas. A

  • dvida metdica, afirmei, no seno negao hipottica de algo

    que no mesmo instante se afirma categoricamente.

    No obstante, essa dvida um fato. Aconteceu a Descartes, e

    pode acontecer a qualquer um de ns vivenci-la ao menos por

    alguns instantes. Pouco importa que ela traga em si sua prpria

    negao. Se Descartes se enganou ao descrever seu estado como

    "certeza da dvida"; se no pode haver certeza do estado de

    dvida precisamente porque este no seno oscilao entre duas

    certezas que se contradizem e portanto negao de si mesma,

    tudo isso no impede que esse estado, ainda que tenhamos de lhe

    dar uma definio diversa daquela que recebeu de Descartes,

    efetivamente exista de algum modo como experincia.

    a possibilidade lgica e existencial dessa experincia que

    constitui um problema. Podemos duvidar de tudo -- mas como,

    raios me partam, podemos duvidar de tudo?

    Essa possibilidade supe, no ser humano, uma capacidade de

    cortar ao menos por instantes os laos entre a faculdade pensante

    e a existncia pessoal concreta, vivente, da qual essa faculdade

    no seno manifestao e funo.

    Por um lado, sabemos que estamos vivos, que estamos no mundo,

    que estamos nos relacionando com pessoas, que comemos, que

    dormimos, que trabalhamos etc., e exatamente porque fazemos

    tudo isso que podemos pensar. Se no estivssemos vivos, no

    pensaramos. Todos sabemos disso, e ento, podemos dizer que o

    pensamento o exerccio de uma faculdade vital, que ele supe,

    portanto, a vida. Como que, sendo um exerccio da faculdade

    vital, sendo uma espcie de manifestao da vida, ele pode, ao

    mesmo tempo, negar a vida ainda que hipoteticamente? No

    estranho?

    To antinatural essa operao, de tal modo ela se ope a todo o

    potente dinamismo psicofsico que deseja viver e que ademais tem

    de estar vivo para realiz-la, que temos de admitir que ela no se

    realizaria sem que esse dinamismo pudesse ser "suspenso" -- na

    esfera mental, claro pela ao de um dinamismo contrrio de

    poder equivalente, embora certamente de operao descontnua e

    no contnua como a dele.

  • Tudo o que fazemos, pensamos, rememoramos etc. , certamente,

    uma expresso do nosso impulso de viver, ou seja, temos um

    impulso de viver, e ele se manifesta em muitos atos, alguns

    externos, outros internos. isso o que eu chamo dinamismo, quer

    dizer, existe uma fora, existe um impulso, que nos impele a fazer

    essas coisas. Ora, o ato de colocar tudo em dvida contraria de tal

    modo este impulso vital, que no conseguiramos realiz-lo a no

    ser que nos apoissemos num impulso igual e contrrio, no

    permanente (porque seno ficaramos definitivamente paralisados)

    mas temporrio. Isso quer dizer que o impulso vital pode ser detido

    por instantes. Se ele pode ser detido, por uma fora capaz de

    det-lo. Que fora essa?

    Se algum chamado Ren Descartes consegue colocar todo o saber

    e todas as funes vitais entre parnteses, quer dizer que o

    pensamento dele nesse momento tem uma motivao que no a

    mesma que o faz pensar, sonhar, sentir, viver etc.. uma "outra"

    motivao diferente e que se ope a tudo isso, e essa motivao

    tem de ser muito forte. Com isso a nossa pergunta inicial: Como

    possvel o ato da dvida?, se converte numa outra pergunta. Essa

    mutao das perguntas um dos elementos fundamentais do

    mtodo e da tcnica filosficas: a converso da pergunta numa

    outra pergunta mais explcita, mais detalhada e mais fcil de ser

    examinada. A segunda forma que a nossa pergunta assume a

    seguinte: Por que um sujeito chega a querer duvidar de tudo?

    Tnhamos uma pergunta mais genrica: Como possvel o ato da

    dvida? -- pergunta que pode ser colocada em nvel antropolgico,

    em nvel histrico etc. -- e em seguida a convertemos nesta outra

    pergunta que pertence mais ordem psicolgica. Para responder a

    esta pergunta no temos de examinar seno a mente de um s

    indivduo. No que ele v responder em nome de todos, mas, se

    chegarmos a entender por que um indivduo chegou a querer

    duvidar a esse ponto, teremos pelo menos uma pista sobre por que

    outros indivduos podem ter feito coisa semelhante.

    De onde tiramos, do nosso ser vivente, a fora para realizar a

    toro da nossa conscincia da atitude de crena natural para a

    de negao cartesiana ou a suspenso husserliana?

    Notem bem que Husserl vai tornar a dvida cartesiana um processo

    muito mais preciso, muito mais detalhado. Comparar a dvida

  • cartesiana com a suspenso, como a chama Husserl -- a epokh,

    com a qual ele coloca tudo entre parnteses -- mais ou menos

    como comparar um relgio de areia com um relgio suo a quartzo:

    a mquina se tornou muito mais precisa, mas a funo continua

    exatamente a mesma. Essa anlise realizada aqui valeria tanto para

    Husserl quanto para Descartes. Husserl chegava a dizer que o que

    ele chama de atitude fenomenolgica no s diferente, mas

    radicalmente oposta atitude natural. A atitude natural crer no

    que se pensa, crer no que se sente, crer no que se imagina. Crer

    ou descrer: ou afirmamos, ou negamos, mas em ambos os casos

    cremos: cremos na afirmao ou na negao. Ora, a atitude

    fenomenolgica no afirma nem nega, ela simplesmente descreve o

    que est se passando diante da nossa conscincia, ou seja, o

    prprio contedo intencional do ato cognitivo observado por ns,

    sem que o afirmemos ou neguemos. No se tratando sequer de

    introspeco, porque o que observamos no processo cognitivo

    pela tcnica fenomenolgica no so os atos reais de pensamento,

    no se trata de uma observao psicolgica, o que observamos a

    simplesmente o fenmeno enquanto dado presente conscincia,

    sem afirmar que ele seja verdadeiro ou falso, real ou irreal. claro

    que esta mesma atitude pode ser adotada para se estudar o

    prprio processo cognitivo, considerado enquanto fenmeno

    presente conscincia. Tambm neste caso no uma

    observao pessoal, mas transcendental. Essa atitude de fato

    muito esquisita e Husserl dizia que ela to antinatural que tem de

    ser treinada: o fenomenlogo precisa passar por um treinamento

    especial da conscincia. Um dos discpulos de Husserl, Raymundo

    Abllio, dizia que a fenomenologia era uma escola asctica, uma

    escola inicitica. Por qu? Porque o treinamento necessrio para o

    discpulo colocar-se na atitude fenomenolgica um autodomnio

    do esprito. Neste exerccio de autodomnio no qual nos

    desidentificamos das sensaes naturais, da memria etc., e

    adquirimos a posio de observador fenomenolgico, de certo

    modo, nos colocamos acima de ns mesmos. Comeamos a

    pensar num outro estrato, num outro andar, num outro nvel, que

    o nvel de validade universal, e a estamos instalados em pleno eu

    transcendental. Abellio comparava isso a um processo inicitico,

    com toda a razo. Mas, seja difcil ou seja fcil, seja toscamente

    como fez Ren Descartes ou mais elaboradamente como Husserl, o

    problema o mesmo: De onde nos vem a fora para fazer isso?

  • Esta fora certamente no pode ser o simples impulso vital, pois

    este nos impeliria a fazer exatamente o contrrio do que faz o

    fenomenlogo.

    4. Uma falsa explicao: o desejo de conhecimento

    Diante dessas aventuras do esprito, empreendidas por criaturas

    ousadas como Ren Descartes e Edmund Husserl, recorremos, para

    explic-las, ao desejo de conhecimento. Ao colocarmos a

    pergunta: Como possvel que um sujeito queira colocar-se numa

    atitude to difcil, to antinatural e, no final das contas, to

    dolorosa? Por que ele faz isso?, podemos apelar resposta que

    est mais mo: Ele faz isso por desejo de conhecimento. esta

    a primeira resposta que nos ocorre. Diremos, ento, que o desejo

    de conhecimento no uma funo do simples impulso vital

    genrico; um desejo especfico do ser humano. O que nos faz ter

    desejo de conhecimento no , de fato, o puro desejo de viver;

    mesmo porque, para obter conhecimento podemos sacrificar muito

    do nosso ser psicofsico, da nossa vida. Quando vemos, por

    exemplo, um asceta budista privando-se de comida e de sono para

    obter conhecimento, dizemos que isto um impulso de

    conhecimento, mas no um impulso vital: um impulso diferente do

    impulso vital.

    A primeira hiptese, ento, seria esta: Ren Descartes ou Edmund

    Husserl conseguem colocar-se no estado de dvida radical por

    desejo de conhecimento. E damo-nos por satisfeitos, como se

    tivssemos encontrado um princpio explicativo terminal e auto-

    evidente. "Todos os homens, por natureza, desejam conhecer": a

    primeira frase da Metafsica de Aristteles. E ele d como prova

    disto o prazer que temos no exerccio dos sentidos, mesmo quando

    eles no tm finalidade utilitria, mesmo quando eles no esto

    atendendo a interesses imediatos do nosso organismo. Assim, se

    esse desejo de conhecer est na natureza humana, nada mais

    natural do que realiz-lo, mesmo que isso custe sacrifcios ou perda

    para o nosso organismo vital.

    Se Husserl e Descartes agem segundo essa natureza, no h pois

    nisso, aparentemente, nada de estranho. Ento, damos a questo

    por resolvida, s que no resolvemos nada, pelo seguinte motivo: o

    simples desejo natural no pode, por si, atirar o homem a uma

    experincia antinatural.

  • Notem bem que, se o desejo de conhecer natural no homem

    tanto quanto o desejo de viver, o desejo de comer etc., o fato

    que, sendo eles desejos diferentes, podem entrar em choque uns

    com os outros, e teremos de escolher, por exemplo, entre

    continuar fazendo os exerccios ascticos ou parar para comer.

    Podemos ter essa dvida. Mas no caso de Ren Descartes existe

    algo mais que o desejo de conhecer. Isto se torna bvio quando

    formulamos a questo da seguinte maneira: O simples desejo de

    conhecer pode nos levar a negar todos os nossos conhecimentos?

    O prprio Aristteles no foi to longe. Ele, que dizia que o

    conhecer comea com o estranhamento, investigou o mundo e a

    alma, mas nunca estranhou, ao ponto de se atirar em ousados

    experimentos interiores para investig-lo, que a alma pudesse

    conhecer o mundo.

    Portanto, uma coisa o estranhamento aristotlico, outro o

    estranhamento cartesiano. Aquele nos leva a fazer as perguntas:

    Como possvel?, Por que isto acontece?, O que tal coisa?

    Quando estranhamos algo e isto suscita uma pergunta, qual o

    ato seguinte? Buscar a resposta, evidentemente. Mas nada disso,

    por si, poderia nos levar dvida metdica, dvida geral e radical

    sobre todos os conhecimentos. Ao contrrio, o impulso aristotlico

    do conhecimento nos leva naturalmente a restringir a pergunta

    quele aspecto que estamos investigando no momento. No vamos

    fazer todas as perguntas ao mesmo tempo, seno ficamos

    paralisados. Ento, se estamos investigando, por exemplo, a

    fisiologia do coelho, no vamos, ao mesmo tempo, fazer uma

    pergunta sobre a estrutura do Estado. Podemos tratar de uma e de

    outra, mas no mistur-las. Portanto, existe em toda a busca do

    conhecimento um princpio de rendimento que faz com que

    encaminhemos a pergunta da melhor maneira possvel. Nada disto

    nos impeliria dvida total. Entendemos ento que mesmo o desejo

    do conhecimento, por mais profundo, mais dominante e mais radical

    que fosse, no explicaria a vontade de dvida total.

    Mais ainda, colocar tudo em dvida para encontrar o princpio

    fundador de tudo subentende uma crena de que o princpio possa

    ser encontrado fora desse tudo uma idia que jamais ocorreu a

    Aristteles e que, realmente, antinatural. A curiosidade natural

    busca a explicao de uma coisa dentro dessa coisa ou em alguma

  • outra coisa em torno. A idia de afastar-se de tudo para conhecer

    a explicao de tudo jamais ocorreria a um homem por simples

    impulso natural.

    Se o desejo de conhecer natural, ele expressa a prpria natureza

    do homem, e no teria cabimento que a natureza despertasse no

    homem um desejo impossvel e antinatural.

    Ento, quando em ns o desejo de conhecimento se ope ao

    desejo de viver, os dois desejos so naturais. natural que o

    homem queira comer e natural que ele deixe de comer para fazer

    exerccios ascticos e adquirir conhecimento. Trata-se de um

    conflito que se d dentro da natureza, mas ainda a estamos muito

    longe do impulso que pode nos levar a negar todos os

    conhecimentos que temos.

    5. natural saber geralmente a verdade ou

    natural geralmente errar?

    Se a filosofia moderna comea precisamente com a investigao

    daquilo que Aristteles supusera desnecessrio investigar, ento

    patente que aquilo que pareceu natural a Aristteles j no parece

    natural aos primeiros filsofos modernos. Eles comeam por

    estranhar aquilo em que Aristteles, o filsofo do estranhamento,

    no vira nada de estranho.

    Aristteles faz muitas investigaes e se coloca em posio de

    estranhamento perante muitas coisas, mas no perante tudo ao

    mesmo tempo. Portanto, Aristteles admitiu que algum

    conhecimento ns sempre temos, que algum conhecimento vlido

    e, indo mais fundo ainda, ele diz que mais natural o homem

    pensar a verdade do que pensar a falsidade. Ele diz que

    geralmente sabemos a verdade, embora errando de vez em

    quando. Ora, se Ren Descartes chega a colocar tudo em dvida,

    porque ele est pensando exatamente o contrrio: que geralmente

    erramos e de vez em quando acertamos. E como Ren Descartes

    inaugura todo o ciclo filosfico moderno, ento, entendemos que

    para todos os filsofos modernos o errar comeou a parecer mais

    natural do que o acertar. Isto uma grande mudana.

    Se propusssemos a Aristteles o mtodo da dvida metdica, ele

    nos chamaria de loucos, porque, para ele, todo conhecimento se

  • baseia em algum outro conhecimento. Sempre soubemos alguma

    coisa, e dela que vamos partir para saber mais: transitamos do

    conhecido ao desconhecido, para que o desconhecido se torne

    conhecido. E Aristteles ainda diria que se suprimssemos tudo o

    que conhecemos, a inteligncia estaria paralisada. O mtodo da

    dvida metdica pareceria a Aristteles radicalmente esquisito e

    inaceitvel. No entanto, ele nos parece to aceitvel e to bvio,

    que alguns dos maiores filsofos e talvez o maior do sculo XX, que

    foi Husserl, diz que ele o comeo paradigmtico e obrigatrio de

    toda filosofia. Isso significa que, para a filosofia moderna, o

    conhecimento, longe de ser natural como para Aristteles, quase

    uma exceo, quase uma anormalidade ou mesmo uma

    impossibilidade.

    O que provocou toda essa mudana? preciso que se compreenda

    o abismo de diferena que existe aqui. Nunca vi isto colocado

    assim em parte alguma, e creio tambm que ao longo dos tempos

    nenhum outro ser humano estranhou mais a dvida metdica do

    que eu, porque estou com esse problema na cabea h trinta anos.

    A primeira vez que li Ren Descartes j me surgiu a pergunta:

    Como isto possvel?, porque, medida que eu ia lendo, eu via

    que pensava mais ou menos a mesma coisa que Descartes. Mas s

    que, ao mesmo tempo, eu tinha a sensao de estar andando sem

    os ps, e me perguntava: Como que eu estou conseguindo fazer

    isto? Ora, como possvel, mente que conhece, estranhar-se

    enquanto conhece?

    Sempre podemos estranhar a nossa mente. Todos j tivemos a

    experincia de nos passarem pela mente umas idias esquisitas.

    Voc acorda, por exemplo, com o seu filhinho chorando s trs

    horas da madrugada e voc tem vontade de jog-lo pela janela.

    uma idia esquisita, no ? No h limites para as esquisitices que

    podem passar pela nossa cabea. Ora, isto ns podemos fazer,

    podemos estranhar-nos de ns mesmos, estranhar a nossa prpria

    mente e estranhar o nosso prprio "eu" sob vrias circunstncias.

    Porm, aqui no caso, o que que Ren Descartes est querendo?

    Est querendo um conhecimento. Ento, ele est se estranhando,

    no enquanto sujeito de atos esquisitos ou de pensamentos

    esquisitos, ele est se estranhando enquanto sujeito do prprio

    ato de conhecer, que precisamente o ato que ele est realizando

    naquele mesmo momento. H aqui um enigma e por isso que

  • pergunto: como que o sujeito que conhece pode estranhar-se

    enquanto cognoscente? No enquanto esquisito, no enquanto

    autor de atos estranhos realizados num momento passado ou de

    pensamentos estranhos pensados numa outra ocasio, mas

    enquanto algum que est realizando o prprio ato que lhe parece

    esquisito e que s se percebe como esquisito por meio desse

    mesmo ato. Vamos apelar ao mtodo filosfico da converso da

    pergunta. No podendo responder a essa pergunta diretamente,

    vamos fazer a converso da pergunta, exatamente como fazemos

    em lgebra, quando, por exemplo, o professor nos d uma equao

    enorme e vamos transformando-a em outras mais simples ou vamos

    tratando dela por partes. Chegamos aqui, ento, ao estranhamento

    do estranhamento. Consequentemente, temos de nos perguntar

    agora: o que propriamente estranhar?

    6. Fenomenologia do estranhamento (1)

    Precaues de mtodo

    Num curso de filosofia que pretenda ser efetivamente um curso de

    filosofia e no somente um curso sobre filosofia, no importante

    s o contedo do que o professor est transmitindo, mas o

    exerccio do caminho que ele est trilhando, o seu modus

    operandi. No fundo, isto at mais importante do que o assunto. E

    como itens bsicos desse modus operandi que estou adotando aqui

    temos, primeiro, a idia de perguntar: Que ?, Quid est? Esta a

    pergunta filosfica fundamental. E, segundo, ao perguntar: Que ?,

    nunca nos contentarmos com uma definio nominal. A definio

    nominal declara apenas o que queremos dizer com determinada

    palavra, e no isto o que estamos procurando. Temos de tornar

    presente mentalmente (3) a prpria coisa da qual estamos falando

    e temos de ver aquilo que, de certo modo, ela nos impe como sua

    natureza, aquilo que ela prpria nos apresenta como sua

    identidade, seu quid, seu modo prprio de ser e de mostrar-se.

    Ora, as palavras esto nossa disposio, elas so instrumentos

    para manifestarmos o que queremos. Ns as usamos como

    instrumentos de nossa auto-expresso, mas as coisas no so bem

    assim. As coisas nos resistem mais que as palavras, e justamente

    nesta resistncia que elas nos mostram que so alguma coisa em si

    mesmas e por si mesmas, independentemente do que projetemos

    sobre elas do nosso prprio estado interior. (4) Ento,

    justamente esta resistncia das coisas que o filsofo procura,

  • porque sabe que ela preciosa, ela o aspecto das coisas que

    transcende a nossa subjetividade. Mas coisas, a, no significa

    apenas os entes materiais, e sim tambm os fatos e situaes,

    tudo enfim o que real, inclusive na nossa experincia interior

    considerada como realidade factual, como fato psquico. Quando

    pergunto: o que estranhar?, posso definir a palavra estranhar

    como quiser, mas isso no me dir o que acontece realmente

    quando se estranha alguma coisa, o que realmente estranhar.

    Para saber o que estranhar, terei de traduzir num contedo

    verbal as experincias internas do ato de estranhamento, com as

    quais eu no me preocupei no momento mesmo em que estranhava.

    Por exemplo, algum que conheo aparece de repente pintado de

    verde, naturalmente eu o estranho; mas, justamente por isso, no

    estranho que eu estranhe. Ento, nessa hora, eu no vou

    perguntar-me: O que estranhar?, O que se passa na minha

    mente na hora em que eu estranho?. Estranhar o estranhamento

    no coincide no tempo, em geral, com o ato de estranhar. Se

    estranho realmente alguma coisa, porque ela me parece estranha

    e, por isto mesmo, no vejo nada de estranho em estranh-la.

    Assim, perguntar Que o estranhamento? exige algo mais do que

    o estranhamento natural, exige uma espcie de estranhamento de

    segundo grau, um estranhamento do estranhamento. Quando

    perguntamos: Que ?, Quid est?, devemos, com efeito, tornar

    presente isto que perguntamos, seja um objeto fsico, seja um

    estado interior etc.. Mas esse tornar presente no um reviver no

    sentido direto. Para eu investigar o que tristeza no preciso ficar

    triste, mas preciso que a tristeza me esteja presente de algum

    modo; eu preciso ter a recordao eficaz e suficientemente

    completa da tristeza para que eu possa dizer o que ela . Ento, a

    no estou triste, mas a minha tristeza est presente. Isso significa

    que j no vou estar muito alegre, mas tambm no estou triste.

    Poderia perguntar-me, por exemplo, o que o medo. Ora, s

    podemos perguntar o que o medo num momento em que no

    estamos com medo, evidentemente; porque se na hora do medo

    consegussemos nos distanciar intelectualmente do medo ao ponto

    de estranh-lo e perguntar Que o medo?, o medo se dissolveria

    como vivncia direta para reaparecer como objeto de reflexo.

    Entre estarmos vivendo uma certa experincia e estarmos

    filosofando sobre ela, existe uma diferena e existe uma afinidade.

    A diferena que no estamos revivendo existencialmente aquele

  • estado e a afinidade que esse estado tem de estar presente, to

    presente quanto se estivssemos vivenciando-o, mas de uma

    forma diferente daquela pela qual ele se apresenta na vivncia

    direta. Na vivncia direta o estado, de certo modo, nos possui e

    nos envolve, ao passo que na reflexo ele est diante de ns e

    s muito parcialmente nos deixamos envolver por ele e identificar

    com ele. A diferena, que alis simples, vem de que, alm de

    esse estado estar presente, existe um outro estado que tambm

    est presente, que o estado de pergunta, o qual no estava

    presente no momento em que vivamos esta situao em sentido

    existencial. Ento, se pergunto: Que o medo?, o medo tem de

    estar to presente quanto na hora em que eu o sinto, s que agora

    ele est, de certo modo, neutralizado, porque est presente

    tambm uma curiosidade que o neutraliza ou pelo menos o abranda.

    esta coexistncia entre a curiosidade e um determinado estado

    interior que me permite perguntar sobre ele. Mas, se nos

    contentamos com a definio de uma palavra ou com a primeira

    resposta que aparea, movidos por um impulso espontneo de

    auto-expresso e comunicao, ento no permitimos que este

    objeto esteja novamente presente: o que est presente o nosso

    impulso de falar, de comunicar-nos, e este impulso encobre o

    objeto do qual queramos falar, desviando o foco da nossa ateno

    para a comunicao-expresso. um mecanismo dispersante. Para

    super-lo, preciso chamar o objeto de volta e de volta, quantas

    vezes for necessrio, at termos a certeza de que ele, e no o

    nosso impulso de expresso-comunicao, se tornou o foco da

    nossa ateno. Essa operao toda supe pacincia, honestidade

    e muita curiosidade. Quando voc no est muito empenhado em

    saber, no leva essa operao at o fim, e ento diz algo que no

    expressa o objeto, mas apenas voc mesmo.

    Bem, convertemos nossa questo de Como possvel o ato da

    dvida?, em O que motivou o ato da dvida? ou, Por que o

    sujeito quis ficar em dvida?. Em seguida a convertemos numa

    questo mais precisa ainda: Como possvel estranharmos, no

    um estado qualquer nosso, mas aquele mesmo estado presente

    que o ato de conhecer? Como a mente cognoscente se

    estranha enquanto cognoscente? E por fim convertemos essa

    pergunta numa outra mais geral, cuja investigao deve preceder a

    das outras perguntas: Que estranhar?

  • 7. Fenomenologia do estranhamento (2) Estranhar

    e assumir

    Estranhar algo desidentificar-se dele, olh-lo desde uma

    distncia desde a qual esse algo aparece injustificado, desprovido

    de fundamento, absurdo; ou seja, o estranhar um no assumir

    algo.

    Estranhar o contrrio de assumir. Assumimos algo -- um encargo,

    um dever, uma idia, um amor, uma pessoa -- quando o damos por

    to justificado, por to fundamentado, por to dotado de uma

    razo absoluta de ser, que por essa razo arriscamos nosso bem-

    estar e nossa vida. Como pode a mente que conhece, no instante

    em que conhece, recusar-se a assumir que conhece?

    A questo agora ficou mais precisa ainda: conheo, mas no

    assumo que conheo -- isto a dvida cartesiana. Ento, deixo de

    ser o sujeito executivo do ato de conhecer e me coloco fora do

    campo de minha prpria ao, dizendo: "Conheo, mas no sou

    bem eu que conheo."

    No sei se este um problema psicolgico, no estou tentando

    catalog-lo como um problema psicolgico ou antropolgico etc.,

    estou tentando descrever o que se passa. Ora, como que

    podemos no assumir exatamente aquilo que estamos fazendo

    naquele mesmo instante e pelos mesmos meios com que nos

    recusamos a assumi-lo? pensando que conhecemos, pensando

    que assumimos ou no assumimos. Ento, pelo mesmo meio o

    pensar que vamos fazer a desidentificao entre o sujeito que

    conhece e o sujeito que pensa.

    Neste ponto, deparamo-nos com uma dificuldade das mais

    temveis: se me desidentifico daquele que em mim conhece, se me

    separo do meu eu cognoscente, onde que precisamente "estou"

    neste instante? Quem, em mim, fala e pensa, se no o eu

    cognoscente? Dito de outro modo, se me coloco fora daquela rea

    que para mim iluminada, e se o fao precisamente com o

    propsito de enxergar a luz mesma que vem de mim e no os

    objetos que ela ilumina, mas ao mesmo tempo recuso assumir que

    essa luz luz e que ela minha, tenho ento de olhar desde as

    trevas. Torno-me inconsciente para examinar a conscincia, como

    um homem que arrancasse os olhos para os examinar. Mas, ao

  • mesmo tempo, como o foco iluminante do que conheo a prpria

    ateno que projeto sobre os objetos, isto , como o eu

    cognoscente se desloca comigo para onde quer que eu v, tenho

    apenas a iluso de entrar nas trevas para ver a luz, porque de fato

    levei a luz comigo e a projeto sobre aquela outra luz que sou eu

    mesmo. O eu reflexivo, duplamente cognoscente, ilumina o eu

    meramente cognoscente e, ao mesmo tempo, o objeto deste. Se

    sei, sei que sei; e se sei que sei, sei que sei que sei: as trevas

    resolvem-se num jogo de luzes e espelhos. (5) O resultado parece

    esplndido, ao menos do ponto de vista esttico: a tentativa de

    estranhamento resultou numa aproximao, a desidentificao

    numa identificao intensificada.

    Esta a questo: aqui est o objeto do conhecimento, aqui est o

    eu que conhece, mas eu me desidentifico e me coloco fora da

    relao entre eles. Ora, existem duas maneiras de se fazer isto.

    Uma delas pode ser formulada assim: aqui est o objeto do

    conhecimento, ali est o sujeito que conhece, e dentro ou acima

    de mim existe um terceiro que diz: Eu sei que conheo, eu tomo

    conscincia de que conheo. Ora, se diante de mim est o objeto

    e o ato de conhecer est em mim, a conscincia de que conheo

    no pode estar somente em mim; ela est em mim, mas de certo

    modo ela me transcende porque me mostra as relaes que tenho

    com um objeto que no sou eu. Esta a primeira maneira de

    refletir sobre o ato de conhecimento. Ento, aqui, no que eu

    que me desidentifique de mim; eu subo um grau acima de mim

    mesmo e olho o que estou fazendo, desde um plano mais elevado.

    Logo, eu sei, e sei que sei. claro que a funo saber , em si,

    mais elementar do que o saber que sabe, porque esta abarca a

    primeira. Porm, no disto que se trata no estranhamento

    cartesiano: este no olha o ato do conhecer de um ponto de vista

    mais elevado, mas ele se coloca "fora" do ato de conhecer; ele no

    assume o conhecimento. A primeira operao que descrevi, que

    esta reflexo que nos leva concluso de que sabemos que

    sabemos, longe de ela se desidentificar do ato de conhecimento,

    ela o aprofunda. Ela tanto se identifica com este ato, que ela diz

    no apenas: sei, mas tambm: sei que sei; ou seja, assume o

    conhecimento duplamente. No estamos a apenas vivenciando o

    ato, mas, por assim dizer, estamos assinando embaixo dele,

    passando recibo dele, reconhecendo-o. Ora, o estranhamento

    cartesiano no isto, exatamente o contrrio. Ele tambm se

  • coloca "fora" do ato de conhecimento; s que esse fora no um

    acima, um "fora" em sentido literal. Ele no assume o ato de

    conhecimento, ele o desassume, ele o rejeita. Como possvel

    isto? Por enquanto no temos nenhuma soluo. At o momento s

    temos problemas. Conseguimos converter um problema noutro

    problema, noutro e noutro e estamos no meio da elaborao da

    equao.

    Pode ser que o mtodo cartesiano no funcione, porque se eu me

    coloco fora do conhecimento, ento vou tirar concluses que no

    sero vlidas, porque vou poder continuar gerando a mesma dvida

    eternamente. Mas, e se o mtodo cartesiano funcionar? Ento,

    certamente no ser assim, porque deste colocar-se fora do

    conhecimento, deste desassumir o conhecimento, ser possvel

    tirar concluses positivamente vlidas.

    Essa era a esperana de Descartes. Seno, ele no teria adotado

    esse mtodo. E o fato que ele tira algumas concluses. Eu at

    concordo com a observao de que eles no podem ser vlidas, de

    que o mtodo cartesiano no funciona, acho que de fato assim e

    que no final se demonstrar que mais ou menos assim. Porm, por

    enquanto ainda no estamos julgando o mtodo cartesiano. (Alis,

    um outro detalhe da formao para o exerccio do mtodo filosfico

    que de nada adianta chegar a uma concluso que certa, mas

    da qual no se possuem efetivamente todos os detalhes da sua

    demonstrao. Todo o esforo filosfico o esforo de sair do

    reino dos meros termos e conceitos e chegar ao conhecimento das

    coisas mesmas. No basta, por exemplo, termos um conceito de

    rvore para conhecermos uma rvore. Assim, operando com

    conceitos, tiramos concluses muito facilmente, mas isto at um

    computador faz. Fazendo isso deslizamos em cima das coisas e

    vamos direto para as concluses, jump to conclusions, dizem os

    americanos. Mas melhor no chegar a concluso nenhuma do que

    pular direto para ela, pois, se este o procedimento normal da vida

    prtica -- porque nesta voc tem de tomar decises, as quais no

    podem ser justificadas em todos os pontos, por uma questo de

    tempo --, j no esforo de conhecimento teortico, ao contrrio,

    no adianta termos a concluso, o que precisamos da completa

    justificao da concluso. Por isso mesmo que, evidentemente, a

    investigao filosfica progride muito mais lentamente do que

    qualquer outro esforo cognitivo humano. Qualquer

  • empreendimento pode ser muito mais rpido e eficiente do que a

    investigao filosfica, porque esta vai esbarrar a todo momento

    em novas perguntas, e novas, e novas, e novas, at termos a

    certeza de que o que estamos dizendo reflete, no apenas um jogo

    de conceitos em nossa mente, no apenas um arranjo inteligente

    de convenes cientficas, mas a exigncia interna da prpria

    realidade. Por isso preciso ter calma e pacincia.) No presente

    momento, quando estamos examinando a dvida cartesiana,

    estamos, de certo modo, colocando-nos no estado da dvida

    cartesiana e ao mesmo tempo examinando-a. Ora, se chego a uma

    concluso, o que foi que fiz? Sa fora da dvida e o meu objeto de

    reflexo (a dvida mesma) foi embora. Essa a tendncia natural

    do pensamento humano: mudar de assunto o mais rpido possvel.

    E isto logicamente funciona na vida prtica, por exemplo, se

    estamos guiando um carro, h um nmero de dados e de

    informaes que vm de fora e temos de saltar de um ao outro

    rapidamente, porque se ficarmos pensando no carro que cruzou a

    rua l adiante, vem um outro e colide com o nosso. O procedimento

    de investigao, seja em cincias, seja em filosofia, exatamente

    o contrrio. E nas artes acontece a mesma coisa, a mincia a tem

    a mesma importncia, porque na arte a meticulosidade em cada

    detalhe e na relao de cada detalhe com o conjunto tambm o

    segredo do sucesso. (6) Esse o segredo em filosofia, em cincias

    ou em artes, a mesma coisa. Na vida prtica -- considerando a

    vida prtica j no num sentido imediato e fsico, mas naquela

    parte de vida prtica que implica um comando e um planejamento,

    ou seja, no mundo estratgico ou empresarial, por exemplo --,

    tambm a mesma coisa. Napoleo dizia que era preciso ter o

    melhor plano de batalha e, ao mesmo tempo, pensar em cada

    parafuso de cada canho, seno alguma coisa falharia. Aqui

    tambm a mesma coisa, vale a pena gastar tempo, porque

    quando abandonarmos esse problema e passarmos para outro, o

    primeiro ter sido liquidado definitivamente.

    8. Reflexo completa e dvida cartesiana

    Qual , ento, a dificuldade do estranhar que se conhece, na hora

    em que se conhece? A dificuldade precisamente que no estamos

    aqui fazendo uma reflexo comum. A reflexo comum seria

    composta de objeto, sujeito, ato, conscincia do ato e conscincia

    da validade do ato. O meu falecido mestre, o Prof. Stanislaw

  • Ladusns, chamava a isso a reflexo completa, e este o

    fundamento, por assim dizer, da credibilidade do conhecimento, ou

    seja, a reflexo completa refaz tudo, e eu acrescento que,

    enquanto fazemos isto no estamos nos desidentificando do

    conhecimento, mas, ao contrrio, o estamos assumindo cada vez

    mais. Porm, o estranhamento cartesiano no isto; ele

    desassume o conhecimento. Parece impossvel, e no entanto,

    fazemos isso, Descartes fez isso e ns tambm podemos fazer isso.

    Parece, ento, que a coisa ficou mais esquisita ainda.

    Na reflexo comum, ou na reflexo completa, o que acontece? Se

    tomamos o ato de conhecimento como aquele ato pelo qual a

    ateno ilumina um determinado objeto, ento, olho para este

    objeto e, de certo modo, a ateno o destaca dos outros e o

    ilumina. Na reflexo, o que fao? Alm de manter este objeto aqui

    iluminado, eu ainda ilumino o cenrio, mas eu no apaguei a luz que

    nos ilumina a todos: a mim, ao objeto e ao cenrio. Mas, se eu

    estranho o ato, se me coloco fora dele, se no o assumo, eu no

    estou iluminando o ato, estou negando-o. Eu o nego e o olho ao

    mesmo tempo. Ento, de onde eu o olho? Eu me coloquei fora da

    zona iluminada e o estou olhando desde as trevas. Mas acontece

    que, como o fator iluminante era eu mesmo, como era a minha

    prpria ateno que iluminava o objeto, como que posso retirar-

    me para as trevas e continuar ao mesmo tempo vendo o objeto e o

    ato? Sempre que eu for para as trevas e eu prestar ateno ao

    que eu fiz, estarei reiluminando tudo novamente. Mas se eu ilumino

    de novo, ento digo: eu sei que sei, o que significa que volto

    reflexo comum e no fa;o dvida cartesiana nenhuma. Parece que

    no existe escapatria disso, ou seja, eu no posso prestar

    ateno numa coisa e dizer que no a estou vendo, pelo menos

    no ao mesmo tempo. E, no entanto, isto o que faz a dvida

    metdica; ela, de fato, acontece, e ela, de fato, impossvel.

    Ento, se ela era esquisita, agora ela ficou diabolicamente

    esquisita.

    Ento, voltamos reflexo completa do Pe. Ladusns. Ora, mas

    com isso provamos que a dvida cartesiana impossvel e no

    obstante ela aconteceu. Parece que temos um problema

    terrificante na mo, ele j era complicado e no comeo da nossa

    investigao a dvida cartesiana parecia esquisita, mas agora ela

    parece impossvel.

  • "Se sei, sei que sei; e se sei que sei, sei que sei que sei", era a

    frmula imortal do Pe. Ladusns, a frmula do conhecimento

    reflexivo. S que, a cada vez que eu fizer novamente essa

    reflexo, terei reafirmado todo o trajeto. Segundo a tcnica que

    me foi ensinada pelo Padre Ladusns, que foi um discpulo de

    Husserl, a reflexo reafirma o ato de conhecimento e o aprofunda,

    mas se o reafirma, ento, no pode haver desidentificao dele por

    um instante sequer, ao contrrio: agarramo-nos a ele.

    como se voc estivesse apaixonado e pensando em casar; a

    voc experimenta desidentificar-se mentalmente da sua noiva para

    ver se sem ela no estaria melhor. Mas no instante em que pensa

    isto, j sente tristeza. Ento acaba casando. No amor, este ltimo

    captulo evitvel. Voc pode, no ltimo instante, desistir, mas

    aqui no bem isso o que acontece; aqui, tentamos pular fora,

    mas, quanto mais pulamos fora, mais estamos dentro. Mas, se

    assim, como que acontece a tal da dvida cartesiana, que a

    desidentificao? Isso quer dizer que a dvida cartesiana tem uma

    estrutura impossvel, apesar de ela acontecer.

    Mas isto, de fato, s complica o nosso problema: tentamos

    desidentificar-nos do nosso eu cognoscente, mas, de fato, no

    pudemos fazer isso. "Ser homem conhecer": tentamos deixar de

    s-lo por um instante, mas foi em vo. Mais compulsiva que a

    natureza m, que nos impele de vez em quando a repetir os

    mesmos erros, parece ser a natureza boa, que nos devolve

    insistentemente o poder do qual abdicamos. Ou seja, tentamos

    pular fora da verdade e no conseguimos. Queramos ser

    esquisitos, mas no conseguimos tornar-nos seno o bom e velho

    homem natural de Aristteles, cuja natureza era conhecer.

    Entre o homem natural e o homem filosfico que reflete no h uma

    diferena de natureza, h uma diferena apenas de intensidade. O

    homem natural aquele que conhece, o homem filosfico aquele

    que, atravs da reflexo, reconhece que conhece.

    Mas, se assim, por que foi que quisemos entrar nessa experincia

    falhada? E de onde, pelo amor de Deus, de onde tiramos a hiptese

    de ir para as trevas para enxergar a luz, se nada, nem na nossa

    experincia natural, nem nas doutrinas dos antigos filsofos,

    deixava entrever essa possibilidade que por fim constatamos

    mesmo no existir? Por que quisemos tentar isso?

  • Para arriscar-se nessa experincia, insisto, preciso uma fora --

    a fora de opor-se natureza, de rejeitar os seus dons, ainda que

    para ter de curvar-se a ela no fim e receb-los todos de volta. Por

    que e com que fora os filsofos modernos, a comear por

    Descartes, julgaram poder, mediante uma operao to

    manifestamente condenada a se suprimir a si mesma, encontrar

    um fundamento mais slido para o conhecimento humano?

    A dvida suprime-se a si mesma porque se transforma em reflexo

    completa. Mas se assim, por que que quisemos a dvida? No

    poderamos simplesmente ter feito a reflexo completa? Por que

    Descartes no fez simplesmente isso, como o velho Aristteles

    fazia? Existe a a interferncia de um outro elemento, totalmente

    estranho, parece, ao impulso natural de conhecer. claro que s

    vezes a natureza se contraria a si mesma, porque ela tem impulsos

    contraditrios, mas ela se contraria a si mesma dentro da

    naturalidade dos dois impulsos: temos o impulso da raiva, mas

    temos o da piedade tambm. Porm, neste caso estamos falando

    de um impulso que no apenas no natural, mas que no pode

    ser atendido por modos naturais.

    O desejo de conhecer, j vimos, no explica isso, porque o natural

    no explica o antinatural. Temos de buscar a explicao, parece,

    nesse anti. Que que, no homem, se ope natureza, ao desejo

    de conhecer?

    Aqui est o ponto crucial de toda esta trajetria: este

    estranhamento total no pode ser realizado apenas por desejo de

    conhecer, porque o desejo de conhecer impele reflexo natural e

    no negao total. No entanto, a negao total existe, e precisa

    apoiar-se numa fora suficiente para deter a natureza. Ora, se se

    trata de uma deteno, ou de uma desidentificao do ato de

    conhecer, e se isso no pode ser explicado pela prpria dinmica

    do ato de conhecer, ento, porque ele um impulso oposto ao

    ato de conhecer. Assim como na vida pode haver um desejo de

    viver e um desejo de morrer, tambm existe um desejo de conhecer

    e um desejo de no conhecer. Esta a primeira concluso positiva

    a que chegamos. Deve haver um outro impulso, que no tem nada

    que ver com o desejo de conhecer, no qual se apia a possibilidade

    da dvida metdica.

    9. O mergulho no fundo do poo

  • Se acompanharmos o raciocnio inteiro de Descartes, veremos que

    ele chega a uma determinada certeza, que a certeza do eu

    pensante: "se eu estou duvidando, duvidar pensar, e se eu estou

    pensando, eu no posso na mesma hora duvidar que penso". Isso

    para ele a primeira certeza. No I, demonstrei que isto tambm

    no uma certeza, mas Descartes achou que era. A primeira

    certeza positiva a que ele chega a do eu pensante. Haveria uma

    diferena entre esse raciocnio de Descartes e o de Husserl? No.

    Husserl s o aprofunda, ele torna isso mais preciso, e mais trgico

    no fim das contas. O filsofo polons Kolakowski demonstra

    eficazmente que o mtodo husserliano, por maravilhoso que seja,

    no responde pergunta que coloca. (7) Vamos observar a mesma

    coisa agora j em Descartes, porque, uma vez colocada a dvida

    metdica, e feito todo o exame, ele chega a um primeiro resultado

    positivo, que a existncia do eu -- uma certeza absolutamente

    inabalvel para Descartes --, porm, como poderamos deduzir

    desta nica certeza os demais conhecimentos que, no obstante,

    sabemos que so certos, como os conhecimentos cientficos,

    matemticos etc.? Resposta: no podemos. O eu solipsista, por

    definio, no tem pontes para fora de si mesmo.

    Descartes entrou na dvida metdica dizendo que seu objetivo era

    reconstruir o mundo das cincias, o mundo do saber, em bases

    mais slidas. Ora, a primeira base que ele encontra a certeza do

    eu. S que essa certeza no suficiente para deduzir da o mundo,

    a cincia fsica, a histria, etc. Chegamos certeza do eu e vemos

    que s h esta certeza, mais nada. No h mais cincia. S h a

    certeza do eu. Ento, esse resultado no contenta Descartes.

    Como que ele sai disso? Ele apela para Deus dizendo: "Ora, eu

    tenho a idia de vrios conhecimentos; conheo geometria,

    conheo histria, conheo religio, conheo a existncia do mundo,

    tenho informaes que me chegam pelos sentidos, conheo mais

    isso, mais aquilo etc.. Quem colocou todas essas informaes em

    mim no fui eu mesmo, foi algum de fora. Foi Deus. Ora, Deus no

    iria enganar-me dessa maneira, seria uma covardia e Deus no iria

    fazer isso comigo. Portanto, como Deus bom, conclumos que

    todos esses conhecimentos devem ser vlidos."

    Ora, isto significa que ele adotou um mtodo para dar um

    fundamento mais slido aos conhecimentos e que, no momento

    decisivo, ele acabou achando um fundamento que no tem nada a

  • ver com o mtodo, um fundamento completamente diferente

    daquele que foi prometido no incio. Isso significa que alguma coisa

    do mtodo ele obteve, mas no obteve o que queria. Obteve

    infinitamente menos. E para sair da armadilha que ele prprio

    montou ele teve de apelar no apenas a um conhecimento comum,

    mas f religiosa. Ora, para quem comeou duvidando de tudo e

    afirmando o primado absoluto da razo e da dvida, isso um

    anticlmax.

    Descartes, armado de confiana na razo humana, chega ao fundo

    do poo e pede socorro a Deus. Ento, algo falhou. Esse algo nos

    mostra que efetivamente o mtodo da dvida cartesiana no tem

    sada para fora da dvida, e que a reconstruo cartesiana do

    conhecimento, que a segunda parte do mtodo, o famoso

    racionalismo cartesiano fundador de cincias, no tem nada a ver

    com a primeira, com a dvida metdica. A segunda parte tem um

    fundamento que se chama Deus, o qual no tinha entrado na

    histria at ento.

    Ora, pelo resultado a que ele levou, que um resultado negativo,

    entendemos que esse mtodo fica ainda mais esquisito. Ele

    antinatural, no tem nada a ver com a reflexo sobre o

    conhecimento, no pode ser explicado pelo desejo de

    conhecimento e, pior ainda, no funciona. Ento, por que o sujeito

    quis entrar nisso? Mais ainda, se fosse s ele que entrou,

    poderamos saltar fora da questo, alegando: um maluco. Mas

    no foi s ele. Foi todo o ciclo da filosofia moderna, culminando em

    Husserl. Ora, se o mtodo tem todos esses defeitos se ele

    antinatural, no uma reflexo, di e no funciona --, e se, no

    entanto, no apenas quase todos os filsofos o adotaram mas um

    deles chegou a dizer que ele o comeo obrigatrio de toda a

    filosofia, temos, ento, agora no apenas um problema filosfico

    mas um problema histrico dos mais graves; um problema que

    compromete toda a civilizao moderna.

    Entre Descartes e Husserl houve muitas tentativas filosficas de

    sair da armadilha montada pela dvida metdica sem apelar a Deus.

    Devia haver um meio racional e cientfico de se sair disso,

    acreditava-se. Todas essas tentativas falharam e, finalmente,

    tambm a de Husserl. Eu tenho uma grande admirao por Husserl,

    que era um grande filsofo e um homem honestssimo mas o fato

  • que depois de cinqenta anos de esforo de Edmund Husserl,

    Kolakowski em oitenta pginas acaba com tudo e diz: "No

    funciona". No funciona pela mesma razo pela qual, em Descartes,

    j no funcionava. Quer dizer: em ambos os casos o sujeito monta

    a armadilha, entra dentro dela, joga a chave fora e depois pede

    socorro: "Deus, tire-me daqui". Que a humanidade inteira pudesse

    ter entrado nisso, que alguns dos melhores crebros da

    humanidade e pessoas inteiramente honestas, porque Husserl o

    supra-sumo da integridade intelectual entrassem nisso nos

    parece agora muito mais esquisito ainda.

    Ento, temos de retomar a investigao do Como possvel? S

    que, neste momento, temos plena conscincia do beco sem sada

    que o mtodo cartesiano. Como foi possvel entrarmos nesse

    buraco? E j vimos que no pode ter sido um impulso natural.

    Ento, analisemos um pouco como que funciona o impulso natural

    para ver os elementos contraditrios que possam existir nele e que

    possam servir de porta de entrada para algo que anti-natural.

    Vamos partir de um exemplo mais simples. Um lobo alimenta-se de

    carne. natural, ento, que procure um bicho para comer -- uma

    ovelha, um coelho ou coisa assim. Alimentar-se desses bichos,

    compor com as protenas deles seu sangue e seus msculos,

    crescer e mover-se s custas deles est na natureza do lobo. No

    , portanto, natural que ele deixe de comer esses bichos. Mas, se

    for privado desse tipo de alimentos, ele perde energia, passa a

    economizar movimentos e por fim definha e morre. Imaginem que

    pegamos um lobo, o prendemos numa jaula e s lhe damos bananas

    para comer. Mesmo que ele aceite esse humilhao de viver de

    bananas, ele vai definhar. Por natureza, por si mesmo ele jamais

    deixar de comer outros bichos para preferir bananas. Lobo

    vegetariano no existe, mas se por algum fator alheio sua

    natureza ele ficar privado desses alimentos, de onde vir o decreto

    de que em tais circunstncias ele deve definhar e morrer? Vir da

    sua natureza mesma, que no suporta a vida seno em condies

    que sejam propcias ao exerccio dos dons naturais do lobo. Ento,

    a natureza do lobo contm no apenas o mandamento referente s

    coisas que ele vai fazer, mas j contm esse programa alternativo

    que decretar o seu definhamento e a sua morte no caso de essa

    mesma natureza ser contrariada. Isso faz parte da prpria

    natureza, quer dizer, a natureza tem no s o decreto positivo,

  • mas o negativo tambm. Nesse sentido, a patologia est prevista

    na fisiologia, quer dizer: o rgo funciona de tal ou qual maneira,

    mas, se ele for agredido, ele funcionar de outra maneira. A

    natureza prescreve no apenas o que um animal vai fazer em vida,

    mas em quais condies ele estar condenado a morrer. No digo

    que em tais condies o lobo "querer" morrer, a no ser que o

    verbo querer, aqui, tenha um sentido diverso daquele que tinha

    quando o lobo "queria" comer uma ovelha ou, cheio de carne de

    ovelha na barriga, "queria" brincar com os outros membros da

    alcatia para expelir a energia sobrante. Ns privamos o lobo da

    sua comida especfica e a ele comea a definhar e dizemos que ele

    "quer morrer". Porm, o verbo querer aqui tem um sentido

    diferente. No que ele "queira" morrer no mesmo sentido em que

    ele "queria" comer um coelho. um querer diferente, um querer

    negativo, que Miguel de Unamuno chamava, para contrastar com

    voluntad, de noluntad. O certo que, passado um certo limite de

    privao, o lobo "no querer" mais viver, ou "se deixar" morrer.

    Esse querer negativo recebe, entre os humanos, o nome de m

    vontade. M vontade no querer fazer algo que seria bom fazer.

    Se as circunstncias nos impedem repetidamente de realizar nossa

    vontade positiva, acabamos por desenvolver uma vontade ao

    contrrio, uma m vontade. Vingamo-nos em ns mesmos de um

    mal que nos foi infligido de fora.

    Num filme de Woody Allen (Um Assaltante Bem Trapalho) havia

    um menino todo franzino e azarado, que usava culos. Quando ele

    ia para a escola, os outros pegavam os culos dele e quebravam.

    At que um dia ele est indo para a escola, vem aquele bando de

    garotos para quebrar os culos dele e o que que ele faz? Ele

    mesmo tira os culos e quebra. Ou seja, ele j entrou nesse ciclo

    negativo. Isto nos acontece: um masoquismo preventivo.

    como, por exemplo, aquela menina que teve um namorado, o

    namorado a largou, e ento ela diz: "Agora eu no namoro mais

    ningum." O que que isto? a m vontade, a inverso do

    querer, que est prevista, como programa alternativo, na prpria

    estrutura do querer.

    De modo anlogo, o organismo do lobo, privado daquilo que lhe

    dava vontade de viver, entra numa espcie de m vontade e

    conspira contra si mesmo para morrer. No fim j ser intil

    oferecer-lhe um coelho, uma ovelha. Ele j no quer mais comer,

  • ele est marcado com o signo da morte e o curso do seu destino j

    no pode mais ser mudado. Ora, esta inverso do impulso natural

    nas situaes em que ele j no pode se manifestar to "natural"

    quanto o impulso mesmo.

    Suponhamos que um lobo jovem e bem alimentado pudesse

    imaginar, com anos de antecedncia, essa temvel situao. Um

    pouco da sua morte j entraria antecipadamente no seu horizonte

    de experincia vital. E, se ele imaginasse que num futuro prximo,

    por uma razo qualquer, a privao de alimento seria fatal e

    inelutvel, ele comearia a definhar nesse mesmo instante, de

    medo, preocupao e tristeza. Algo desse sofrimento futuro j se

    tornaria presente em imaginao. Ora, quantas vezes ns mesmos

    todos temos essa experincia nos privamos de algo por medo

    de fracassar ou por medo de perder coisas que nunca tivemos? Ou

    seja, entramos nessa atitude no somente por experincias

    dolorosas que tivemos, mas por experincias possveis que no

    tivemos, mas que prevemos pela imaginao. Isso o lobo no faz.

    Mas, se ele fizesse, a idia de ter de comer s bananas comearia

    a mat-lo nesse mesmo instante.

    Felizmente, os lobos s se preocupam com a alimentao diria e

    no cogitam de problemas a longo prazo. O homem, ao contrrio,

    inclinado a esse tipo de cogitaes, e por isto mesmo se distingue

    por sua capacidade de sofrer, em imaginao, males que ainda no

    se apresentaram e talvez no se apresentem nunca. coisa de

    experincia comum o fato de termos, s vezes, a anteviso de um

    mal possvel que nos abate mais do que esse prprio mal realizado.

    Ora, se natural no homem desejar conhecer, tambm natural

    que, privado da possibilidade de conhecer, ele sofra. A mais

    elementar forma de conhecimento a estimulao sensorial.

    Experimentos cientficos recentes demonstraram que a privao de

    estmulos sensoriais externos leva um homem ao desespero ao fim

    de umas poucas horas. Podemos suportar a privao de alimento

    por mais ou menos quarenta dias, a privao de sono por quatro

    dias, mas no podemos ficar sem estimulao sensorial por um dia

    sequer.

    10. Soluo do enigma

    Isto quer dizer que, no caso do mtodo de Descartes, estamos

  • falando de um experimento de privao feito imaginariamente. Que

    a dvida metdica? um experimento de privao vivido

    imaginariamente. Privao de qu? No podemos dizer que

    privao de conhecimento, porque o ato de conhecimento est l,

    mas privao do reconhecimento desse conhecimento, privao da

    identidade entre o eu pensante e o eu cognoscente. como se eu

    estivesse me olhando conhecer, mas este que olha no reconhece

    aquilo que esse mesmo eu conhece na mesma hora. Ora, que no

    existe situao de sofrimento intelectual mais intenso do que essa.

    Porque eu me olho a mim mesmo, mas eu no sou eu mesmo.

    Podemos chamar isso de esquizofrenia? No, porque o

    esquizofrnico, na hora em que est pensando, se identifica com

    aquilo que ele est pensando. Depois ele imagina que se

    transformou em outro, claro, e diz: "No fui eu." Mas na hora do

    ato de conhecimento, ele no estranha esse ato de conhecimento

    ao ponto de dizer que no ele. Ele pode fazer isso logo depois,

    mas na hora, no. Ora, e se eu estivesse olhando a minha prpria

    conscincia e ao mesmo tempo no tivesse conscincia dos

    contedos que essa mesma conscincia est conscientizando

    naquele mesmo momento? Essa situao no humanamente

    vivvel. Ela apenas imaginvel... e temvel, mesmo sendo apenas

    imaginvel. Essa experincia, na verdade, o que no plano

    imaginrio mais se aproxima daquilo que em teologia se chama "a

    morte da alma". Isso no um experimento de ignorncia, de

    ignorncia comum, no um experimento de privao de certos

    conhecimentos, mas um experimento de privao de identidade

    com o eu que conhece. Esta alma existe, esta conscincia existe,

    mas ela j no mais sua. No encontramos isto em parte alguma

    da experincia humana. Portanto, no pode ser por ter vivido essa

    experincia humana que Descartes tenta imagin-la -- porque ela

    no vivvel, s imaginvel. E ela tem um nome em teologia, o

    que significa que um experimento que no se refere a este

    mundo, mas que se refere ao inferno. O psictico ou o

    esquizofrnico experimenta isso, de certo modo, ao dizer: "Eu no

    sou eu, eu no estou aqui, eu sou um outro"? Sim, ele pode dizer

    isso, mas no pode realiz-lo conscientemente. Ele diz isto, mas

    no est efetivamente vivenciando-o, isto um detalhe

    fundamental, porque a identidade fsica dele torna impossvel essa

    vivncia como vivncia real. Ento, dizemos que, na hora em que

    ele est dizendo isso, ele no se lembra dele mesmo; ele no ele

  • mesmo, mas ele aquele que est falando. No caso de Descartes,

    no. no mesmo ato que a conscincia se afirma e se nega: "Eu

    no sou este que est dizendo isto, e tambm no sou um

    terceiro." Isto no um experimento psicolgico. Psicologicamente

    isto no existe, nem na esquizofrenia. o experimento imaginrio

    de uma situao humanamente impossvel.

    Ora, o mtodo da dvida metdica um mtodo para se precaver

    contra algo, que Descartes diz ser o erro, a possibilidade do erro,

    mas vemos que ele se est precavendo contra algo muito mais

    grave do que o erro; e est se precavendo pelo famoso mtodo

    da autovacina: ele quer inocular-se um pouco desse estado para

    homeopaticamente neutraliz-lo. Mas de onde ele tirou o temor da

    possibilidade desse estado? Da experincia humana cognitiva

    comum no foi, pois nela esse estado no existe. Ele s

    mencionado em teologia, em religio, somente a que

    Descartes pode ter ouvido falar disto, e em nenhum outro

    lugar. Portanto, o mtodo cartesiano uma tentativa

    desesperada de o sujeito se precaver contra a "morte da

    alma" mediante uma morte imaginria que imaginariamente

    neutralize essa possibilidade.

    Neste momento, a questo parece ter ficado mais compreensvel.

    Descartes antevia esse estado infernal e tenta defender-se dele

    por meios humanos, atravs do uso da reflexo. No consegue,

    porque ou ele cai na reflexo completa ou volta para a dvida

    paralisante. Ento, o que que ele faz? Quem que nos tira do

    inferno? Deus. Ele apela a Deus. Ento, era um problema teolgico

    e teve uma soluo teolgica. No um problema filosfico e no

    tem soluo filosfica.

    Se tentarmos equacionar isso em termos psicolgicos, chegamos a

    contradies incrveis. Psicologicamente, uma contradio, uma

    absurdidade, algo que no acontece no mundo real. algo que s

    pode ser imaginado numa situao extrema e no-humana a qual

    chamamos de situao infernal. E por isto mesmo que se chama

    a morte da alma.

    Ora, precisemos mais um pouco o que seria essa morte da alma. O

    cristianismo no muito explcito quanto a isto, e nem nos fornece

    muitas imagens a respeito. Mas nas doutrinas hindus e em algumas

    ocidentais muito antigas encontramos a idia da metempsicose.

  • Que metempsicose? O sujeito morre e reencarna num outro tipo

    de ser, reencarna como lagartixa, como barata, como hipoptamo.

    Mas evidentemente nem todos os hipoptamos, lagartixas e

    mosquitos so reencarnaes de pessoas. Existem mosquitos

    normais, que nasceram como mosquitos, e h outros que no so

    apenas mosquitos, mas so ex-pessoas. Ora, isto evidentemente

    uma imagem, uma metfora para designar um estado inferior.

    Inferior, nfero ou infernal a mesma coisa, quer dizer, h um

    rebaixamento do estatuto ontolgico do ser, ele menos existente

    do que ele era antes. por isso que isto no pode ser explicado

    psicologicamente porque, psicologicamente no temos o dom de

    inexistir ou de existir menos. Qualquer coisa que se passe em nossa

    psique pressupe nossa existncia tal e como ela est aqui agora,

    e at para ficarmos malucos, ou esquizofrnicos, precisamos existir

    e estar aqui. Mas aqui se trata no de um estado psicolgico, e sim

    de um estado ontolgico no qual nossa existncia diminui, no qual

    ela menos intensa, no qual existimos menos, no qual nos

    tornamos duvidosos, evanescentes. Ento, o sujeito que se

    reencarnou como mosquito no propriamente real enquanto

    mosquito, porque algo de homem ele ainda tem, que sobrou da

    existncia anterior. Ora, o que que ele tem de homem? Ele tem

    todas as diferenas entre mosquito e homem. Foi isto que sobrou

    nele de homem. Sua hominidade residual consiste em tudo o que

    separa o mosquito do homem. Tudo o que um homem pode fazer e

    que um mosquito no pode fazer ele conserva-se nele como

    informao de carncia, e por isso que a condio de mosquito

    uma condenao para ele. Ele no tem somente as potncias do

    mosquito, tem todas as impotncias que o separam do poder

    humano.

    Essa descrio uma figura de linguagem, uma imagem,

    evidentemente, uma imagem at contraditria, mas difcil

    conceber um sofrimento maior do que esse.

    Em Dante, na porta do inferno, h um demnio que tem linguagem

    mas no sabe falar em lngua humana. Podemos imaginar isso de

    outras maneiras, por exemplo, podermos entender tudo o que esto

    dizendo, mas no podermos responder, entendemos a lngua que os

    outros falam, mas tudo o que falarmos eles no entendero. uma

    imagem do inferno, e esta imagem a de uma separao

    inconcebvel.

  • Na religio grega no havia Cu, todo mundo ia para o inferno. S

    os heris viravam semi-deuses e subiam ao cu; eram pessoas

    especiais. Mas geralmente as pessoas iam para o inferno. Nesse

    inferno havia uma forma de existncia diminuda, uma existncia

    fantasmtica, de sombra. (8)

    Podemos imaginar a morte da alma sob milhes de formas; todas

    essas imagens so falhas. O que elas tm em comum que elas

    descrevem uma coisa que humanamente irrealizvel, impossvel

    nesta vida e terrivelmente m.

    Ento, entendemos que o problema sobre o qual Ren Descartes se

    debruava, no fim das contas, poderia equacionar-se assim: "Como

    eu posso, por meios racionais e humanos, sem a ajuda de Deus ou

    da religio, precaver-me contra a morte da alma?" este o

    verdadeiro problema de Descartes. E por isso que o mtodo

    falha, porque isso no um problema filosfico, isso um problema

    real, um problema concreto, o que o mesmo que dizer: um

    problema teolgico pois a religio no se constitui de conceitos e

    doutrinas, mas de realidades. No h soluo da dvida

    metdica porque ela coloca um problema religioso e tenta

    resolv-lo por meios puramente filosficos; coloca um

    problema existencial, real, e tenta resolv-lo por meios

    puramente conceptuais.

    Assim, a soluo da nossa pergunta mostra que a dvida

    metdica possvel porque possvel conceber a morte da

    alma, mas ao mesmo tempo a dvida metdica no pode

    funcionar como mtodo filosfico porque no existe nenhum

    esquema pensante que possa prevenir a morte da alma, que

    possa defender-nos da morte da alma. Tem de haver, para

    isso, um algo a mais, porque a morte da alma um fator extra-

    humano, (9) e, ento, o ser humano evidentemente no vai poder

    abarc-la com os seus instrumentos, e quem quer que entre nisso,

    ou vai cair na mo do diabo ou vai pedir socorro a Deus. Os que

    dizem que no fazem isto, como Husserl, no fundo esto se

    enganando a si mesmos. E este foi o grande drama de Edmund

    Husserl, porque ele tentou at o fim. Ele acreditava que a cincia,

    o saber, tinha um elemento interno sacro. Talvez at tenha, s

    que, ento, no o saber humano, o saber divino que tem de ser

    colocado em ns como sabedoria infusa. E o mtodo

  • fenomenolgico talvez possa produzir um acesso a esse

    conhecimento, mas enquanto mtodo asctico, no apenas

    enquanto modelo conceptual. Ele pode nos defender, talvez,

    contra a morte da alma, porque, sendo um mtodo asctico, ele

    nos fortalece espiritualmente. Mas esta defesa s pode se dar pela

    sua forma, no pelo seu contedo; o contedo filosfico no

    interessa. Se mtodos ascticos funcionam, isso acontece por

    motivos teolgicos que no nos interessa investigar agora. Mas

    eles s podem funcionar se considerados enquanto mtodos

    ascticos, no enquanto puros mtodos filosficos. E se podem

    funcionar enquanto mtodos ascticos, ento, a questo de

    funcionar ou no vai depender de potncias supra-humanas as

    quais no controlamos. Porque nenhum mtodo asctico do mundo

    tem funcionamento garantido, no podemos dizer que existe aqui

    ou ali uma frmula infalvel pela qual, por exemplo, voc chama os

    anjos e eles so obrigados a vir. Isso no existe. Pode cham-los,

    fazer tudo direitinho, e chega na hora o anjo diz: "No, no vou".

    Por qu? Porque existe o livre arbtrio de Deus, ora!

    Ento, se Descartes cria a dvida metdica, no s para

    fundamentar o conhecimento cientfico, mas ele o faz na esperana

    de defender a alma humana, por meios filosficos, contra a morte

    da alma e, portanto, contra o demnio. E ele fracassa exatamente

    porque a luta a desproporcional. Agora, aqui que temos de nos

    perguntar: "Mas como que, durante trs sculos, a filosofia insiste

    neste mesmo caminho, que to obviamente invivel?" Ela insiste,

    primeiro, porque ningum percebeu que um problema teolgico,

    segundo, porque se algum percebeu que um problema teolgico,

    ainda assim tinha a tentao de que, por meios racionais e

    humanos, pudesse dominar a situao, pudesse provar de certo

    modo que, sem a ajuda de Deus, poderia ser mais poderoso do que

    o demnio. Mas se entramos nesse esquema de disputar poder com

    o demnio e no mesmo instante o meio que usamos consiste em

    nos entregarmos ao demnio -- ou seja, eu me exponho morte da

    alma para provar que o demnio no me mata --, a j entramos

    numa armadilha sem sada, porque a nica sada aquela que

    Descartes encontrou: Deus. No deixa de ser interessante saber

    que Edmund Husserl, embora jamais falasse sobre isso, era um

    homem crente, era um judeu convertido ao protestantismo, rezava

    todo dia, lia a Bblia, e por isso que ele agentava essa

    brincadeira fenomenolgica. Se no, no teria agentado.

  • Descartes tambm era crente, era um carola, e por isso mesmo

    que agentou brincar de dvida metdica sem ficar maluco. Por

    qu? Porque ele talvez soubesse que no fundo sempre restava um

    Deus ao qual ele poderia pedir socorro no momento decisivo, e

    deste Deus ele nunca duvidou um s instante.

    Ou seja, o ciclo moderno, to aparentemente irreligioso, todo ele

    se fundamenta num problema teolgico que s encontra soluo

    teolgica, e todo ele se constri por um mtodo lgico que,

    excluda a referncia a Deus, se torna ilgico no mesmo instante.

    Esta anlise, pelo que sei, nunca foi feita antes. E depois de tudo

    explicado, o caso de perguntarmos: "Mas como no perceberam

    antes?" Se tivessem percebido j teriam parado com essa

    brincadeira antes, e entenderiam que a dvida metdica no o

    caminho da filosofia racional. O caminho o contrrio. O caminho

    o da reflexo completa, que no nega o conhecimento nem

    hipoteticamente , mas o reafirma. aquele que aprofunda o

    conhecimento, assumindo que tem conhecimento: Eu sei, e eu sei

    que sei; e se eu sei que sei, eu sei que sei que sei; e assim

    sucessivamente. A cada nova conjuno que que pusermos aqui,

    estaremos assumindo mais ainda o conhecimento. Este o mtodo

    que denomino: "Mtodo da crena metdica"; ou seja, trata-se de

    acreditar naquilo que sabemos, partindo de coisas simples que

    sabemos, como por exemplo: eu sei que eu estou aqui, eu sei que

    eu vim aqui por um motivo, eu sei que eu estou falando

    portugus, eu sei que foi algum que me ensinou portugus etc. E

    assim chegamos a descobertas fantsticas. Por exemplo (e isto foi

    Eugen Rosenstock quem ressaltou), eu sei que eu tenho um eu.

    Mas como que eu sei que eu tenho um eu? Antes de eu me

    chamar a mim mesmo de "eu", algum me chamou por algum nome.

    Ento, de certo modo esse eu s despertou em mim na hora em

    que me chamaram. Se ningum fala comigo, esse eu vai ficar l

    guardado, e eu nunca vou saber que o tenho. Portanto, seria um

    eu em potncia apenas. Ento, longe de o eu poder ser o

    fundamento do conhecimento, ele, pelo simples fato de poder

    pronunciar-se, exige um outro. Geralmente nossa me a primeira

    pessoa que fala conosco, isto tambm nos indica que o nome

    pessoal pelo qual nos chamam um dos fundamentos da nossa

    condio humana, e que o simples fato de termos um nome, de

    sermos chamados por ele, nos abre possibilidades que esto

  • infinitamente acima das possibilidades naturais. Porque somos um

    eu e porque temos um nome, podemos ter histria, podemos ter

    linguagem, podemos ampliar nosso crculo de concepo

    infinitamente alm da durao da nossa vida biolgica e

    infinitamente alm do espao fsico que ocupamos. Por isso o nome

    uma coisa sagrada, por isso h o batismo, e por isso dar um

    nome uma coisa sria. E por isso tambm que o nome pode ser

    uma profecia, e vemos tantas e tantas vezes pessoas terem um

    destino que o seu nome. Mas s percebemos isso na hora em que

    o sujeito morre, vemos a sua vida inteira e dizemos: "A vida dele foi

    exatamente o seu nome". Nomen est omen, nome profecia. Um

    dia fazemos essa experincia. Como que isso acontece? Isso

    acontece porque lhe foi dado um nome, e esse nome, de certo

    modo, uma definio do que esperam dele, esse nome uma

    cobrana. E por causa desse nome que temos um eu; ento, ter

    um eu uma honra insigne, o que dizia Buda: "Um nascimento

    humano uma grande honra. Voc poderia ter nascido como

    mosquito, como barata, como lagartixa, como pedra, mas nasceu

    como humano; ento, tem direito a um nome e tem direito a um

    destino, tem direito a um futuro. E tem at direito a questionar

    tudo isso.

    A concluso final disto tudo que o problema central do

    cartesianismo um problema teolgico que se ignora a si

    mesmo. No pode ter soluo pelo mtodo cartesiano

    porque, por definio, um problema teolgico que se refere a