110
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DESCONSTRUÇÃO E DIREITO: UMA LEITURA SOBRE “FORÇA DE LEI” DE JACQUES DERRIDA MANOEL CARLOS UCHÔA DE OLIVEIRA Recife 2011

DESCONSTRUÇÃO E DIREITO: UMA LEITURA SOBRE “FORÇA DE … · entre direito e justiça: esta é uma consequência ou fim daquele. Nesse sentido, Derrida produz uma análise do

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

DESCONSTRUÇÃO E DIREITO: UMA LEITURA

SOBRE “FORÇA DE LEI” DE JACQUES DERRIDA

MANOEL CARLOS UCHÔA DE OLIVEIRA

Recife

2011

Oliveira, Manoel Carlos Uchôa de

Desconstrução e direito: uma leitura sobre ―Força de

lei‖ de Jacques Derrida / Manoel Carlos Uchôa de

Oliveira. – Recife : O Autor, 2011.

109 folhas.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade

Federal de Pernambuco. CCJ. Direito, 2011.

Inclui bibliografia.

1. Filosofia do direito. 2. Justiça - Filosofia. 3.

Hermenêutica. 4. Derrida, Jacques - Crítica e

interpretação. 5. Violência - Filosofia. 6. Direito e justiça.

7. Linguagem - Filosofia. 8. Estruturalismo. 9.

Desconstrução - Direito. 10. ―Força de lei‖ - Jacques

Derrida. I. Título.

340.12 CDU (2.ed.) UFPE

340.1

CDD (22.ed.) BSCCJ2011-016

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

DESCONSTRUÇÃO E DIREITO: UMA LEITURA

SOBRE “FORÇA DE LEI” DE JACQUES DERRIDA

MANOEL CARLOS UCHÔA DE OLIVEIRA

Recife

2011

MANOEL CARLOS UCHÔA DE OLIVEIRA

DESCONSTRUÇÃO E DIREITO: UMA LEITURA

SOBRE “FORÇA DE LEI” DE JACQUES DERRIDA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito da Faculdade de Direito do

Recife/Centro de Ciências Jurídicas da Universidade

Federal de Pernambuco como requisito parcial para

obtenção do grau de Mestre.

Área de concentração: Teoria e Dogmática do

Direito.

Orientador: Prof. Dr. Gustavo Just da Costa e Silva.

Recife

2011

RESUMO

OLIVEIRA, Manoel Carlos Uchôa de. Desconstrução e Direito: uma leitura sobre a ―força de

lei‖ de Jacques Derrida. 2011. 109 f. Dissertação de Mestrado – Centro de Ciências

Jurídicas/Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

A desconstrução irrompeu à tradição filosófica ocidental enquanto uma marca do filósofo Jacques Derrida. Em

Força de lei: o fundamento místico da autoridade, o filósofo franco-argelino problematiza o direito e a justiça a

partir da perspectiva desconstrutivista. Sua conclusão cabal: a desconstrução é a justiça. Nesta dissertação,

busca-se explicar a concepção derridiana de justiça. Para tanto, é preciso definir introdutoriamente a

desconstrução: trata-se de um acontecimento inscrito na estrutura teórica da metafísica ocidental. Ela se

apresenta contra o pensamento dogmático, rompendo a cristalização estrutural do pensamento. Na tradição

filosófica, a justiça é concebida em uma estrutura metafísica ordenadora. Categoricamente, há uma metonímia

entre direito e justiça: esta é uma consequência ou fim daquele. Nesse sentido, Derrida produz uma análise do

discurso jurídico. O direito possui uma linguagem calcada em performatividade. Sob a influência de John L.

Austin, filósofo da linguagem inglês, Derrida assume os atos de fala, radicalizando a ação da força simbólica

sobre o contexto institucional. O direito prescreve normas, toma decisões e autoriza instituições na medida em

que enuncia atos performativos e performáticos. Logo, o discurso jurídico é agenciado por forças sobre forças

construindo interpretações. Em suma, a justiça enquanto direito constitui-se sobre camadas discursivas,

configurando-se por meio do jogo de forças imanentes. Apontar a justiça como o centro desse discurso é apenas

encobrir essas tensões violentas que a controlam. A expressão tomada como título do livro, força de lei, cunhada

no direito romano, exemplifica a justificação ideológica da justiça como direito, uma vez que consiste em uma

força metafórica para a legitimação da violência fundadora do direito. Ao passo que se questione o fundamento

último dessa razão jurídica, encontra-se a interdição da lei, ou seja, a lei está interditada ao conhecimento

daquele que a busca. Assegura-se apenas a instituição. Destarte, lança-se a conjuntura mística da autoridade, pois

o fundamento está guardado no silêncio dessa interdição. O ordenamento jurídico é forma vazia. Não é à toa que

este aparato tenta dissimular uma aporia fundamental - o abismo entre a universalidade da lei e as singularidades

da vida. Por isso, Derrida pinça a justiça da metonímia estruturante a fim de transformá-la em um indecidível, o

conceito limite que promove um deslocamento estrutural através do evento temporal. Então, A justiça torna-se

um acontecimento dentro da estrutura teórica e institucional do direito. É sua destruição para transformar a

ordem; porvir excede a instituição jurídica e a cinde temporalmente. Ela desajusta o direito nos gonzos da

historicidade. Portanto, a justiça verte-se como experiência do impossível, de outro modo, no tempo do outro. As

singularidades múltiplas se emancipam em uma revolução da temporalidade. No contratempo da história, a

justiça vem a ser a desconstrução.

Palavras-chave: Derrida, Jacques; desconstrução; justiça; direito.

ABSTRACT

OLIVEIRA, Manoel Carlos Uchôa de. Desconstrução e Direito: uma leitura sobre a ―força de

lei‖ de Jacques Derrida. 2011. 109 f. Dissertação de Mestrado – Centro de Ciências

Jurídicas/Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

Desconstruction arose in western philosofical tradition as a mark of the philosopher Jacques Derrida.

In Force of law: the mystical foundation of authority, the franco-algerian philosopher discusses the

law and justice from the deconstructive perspective. His ultimate conclusion: "deconstruction is

justice." This dissertation seeks to explain the derridean conception of justice. To do so, it must define

an introductory notion of deconstruction: it is an event traced in the theoretical framework of Western

metaphysics. It introduces itself against dogmatic thinking, breaking the structural crystallization of

thought. In philosophical tradition, justice is conceived in an ordinated metaphysical structure.

Categorically, there is a metonymy between law and justice: this is a consequence or end of that. In

this sense, Derrida produces an analysis of juridical discourse. Law has a language based on

performativity. Under the influence of John L. Austin, English philosopher of language, Derrida takes

the speech acts, radicalizing the action of symbolic power of institutional context. Law prescribes

rules, makes decisions, allows institutions to the extent that states performative acts and performers. In

this sense, the juridical discourse is acquired through forces over forces building interpretations.In

resume, justice as law is about discursive layers, setting up through the play of immanent forces. Point

to justice as the center of this discourse is to cover up these violent tensions that control it. The

expression taken as the book title, the force of law, came from Roman law, exemplifies the ideological

justification of justice as laws: it consists in a metaphorical force to legitimize the founding violence of

law. Questioning the ultimate foundation of this juridical reason is founding the prohibition of the law,

in other words, the law is intermitted to the one which seeks it. The institution is the only

assured. Therefore, it launches the mystique juncture of authority: the fundament is kept in the silence

of the intermission. The juridical ordination is an empty form. No wonder that this apparatus tries to

conceal a fundamental aporia: the chasm between the universality of the law and the peculiarities of

life. Consequently, Derrida clamps justice metonymy structuring in order to transform it into an

undecidable fact, the term limit that promotes a structural shift through time event. Justice becomes an

event within the theoretical framework and institutional law. It‘s its turn to destruction to transform the

order; to come, beyond the juridical institution and divide it temporally. It misfits law in hinges of

historicity. Therefore, justice sheds as experience of the impossible, otherwise, at the time of

other. Multiple singularities emancipate themselves in a revolution of temporality. In contretemps of

history, justice becomes deconstruction.

Keywords: Derrida, Jacques; deconstruction; justice; law.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – FAZER JUSTIÇA A DERRIDA ................................................................. 8 1 QUE É ISTO – A DESCONSTRUÇÃO? ............................................................................. 13

1.1 Por que isto? ................................................................................................................... 13 1.2 O lugar no (pós-) Estruturalismo .................................................................................... 15 1.3 O vestígio à razão ........................................................................................................... 24

1.4 A genealogia derridiana: entre Nietzsche e Heidegger .................................................. 32 1.5 Desconstrução, possibilidade e justiça ........................................................................... 37

2 PERFORMATIVIDADE: UMA ANALÍTICA DERRIDIANA PARA O DISCURSO

JURÍDICO ................................................................................................................................ 42 2.1 Uma proposta analítica da linguagem: teoria dos atos de fala (speech acts) de J. L.

Austin ................................................................................................................................... 42 2.2 Performatividade e iterabilidade: a différance como perspectiva de análise em Derrida

.............................................................................................................................................. 46 2.3 Políticas da performatividade: a instituição da autoridade e da crença na desconstrução

.............................................................................................................................................. 52 2.4 A lei e a literatura: uma interpretação derridiana sobre o vazio da pura forma em Kafka

e Kant .................................................................................................................................... 58

3 DA FORÇA DE LEI À FUNDAÇÃO MÍSTICA: A ECONOMIA DO DISCURSO

JURÍDICO ................................................................................................................................ 62

3.1 O direito como cálculo: uma perspectiva da economia do discurso jurídico ................. 62 3.2 Da força de lei................................................................................................................. 65

3.2.1 A genealogia de um dispositivo .............................................................................. 65 3.2.2 Violência e direito em Walter Benjamin ................................................................. 68

3.3 Do fundamento místico da autoridade: para uma crítica da ideologia jurídica .......... 75 4 A DESCONSTRUÇÃO É A JUSTIÇA: O LIMITE E A PASSAGEM ............................... 79

4.1 A fissão da metonímia: o incalculável do cálculo .......................................................... 79 4.2 Aporias do direito ........................................................................................................... 82 4.2.1 Primeira aporia: a epokhé da norma ............................................................................ 82 4.2.2 Segunda aporia: a assombração (hantise) do indecidível ............................................ 84

4.2.3 Terceira aporia: a urgência que barra o horizonte do saber ..................................... 85

4.3 Por um direito infinito: a abertura da experiência do impossível ............................... 86 4.4 Justiça porvir a contratempo: o fora dos eixos da história ......................................... 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS – O DEVIR, JUSTIÇA DA DESCOSNTRUÇÃO ................... 95 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 100

8

INTRODUÇÃO – FAZER JUSTIÇA A DERRIDA

―Tudo é muito complicado, confuso e de difícil interpretação em se tratando

dele‖. Talvez, qualquer trabalho acadêmico sobre a obra de Jacques Derrida esteja prestes a

enunciar isso. Há um tom ambíguo de desculpa e astúcia. Desculpa-se por nunca se chegar ao

suficiente; oferecer uma conclusão, talvez, não seja possível, talvez, não seja desejável. E,

assim, dribla-se qual um malandro o esforço que se passaria ao se debruçar sobre o seu

pensamento. Esquiva-se de um compromisso rigoroso em estudá-lo porque incita um

desprendimento da segurança dos imperativos, dos conceitos e das conclusões.

Tão logo aconteça a primeira leitura de algum de seus livros, aquela proposição do

início do parágrafo anterior torna-se bastante sedutora. Derrida escreve sobre um horizonte de

possibilidades, mas não se pode disto extrair enunciados apressados (todavia, trair é sempre

uma possibilidade). Mais ainda, seu pensamento traz uma exigência: a responsabilidade. É

preciso responder por uma herança de outrora; é preciso responder aos problemas

endereçados por outros; e, responder por uma infinidade de outros porvires. Se há alguns

temas reiterados ao longo dessa dissertação é o da responsabilidade e da alteridade. Alguém,

então, pode se perguntar: ―por que estudar um filósofo ou uma filosofia que de partida já

complica seu conhecimento ou sua compreensão?‖. Não se poderia oferecer uma resposta

muito satisfatória ou diferente de: ―Pelo desafio!‖.

Se há uma consequência última de engajar-se no estudo da filosofia, como de

qualquer saber ou ciência, será o de pensar o desafio de pensar. O impacto e o trauma são

condições para a filosofia desde sua emancipação grega. Platão não o disse de outra forma.

Contudo, esse acontecimento tem contornos muito íntimos posto que alguns filósofos passam,

outros vêm a ser companheiros de uma vida inteira. Mas não é isto o amor? Assim, a razão

principal dessa dissertação é por amor a Derrida? Embora o caso não se dê por louvor ou

submissão, ele desperta através de uma afecção.

Afetar-se remete a uma relação com a realidade de problemas que Derrida propõe.

Seu debate se dá numa relação contraditória com o tempo. Contemporâneo e extemporâneo,

diacrônico e anacrônico, a gama de interlocutores dispersa pela história da filosofia. Em

contrapartida, essa relação com o tempo torna-se um espaço de duelo imanente. Adentrar suas

temáticas exige a atenção numa zona de guerra. O que se faz mais relevante para discutir

9

sobre a obra derridiana resta na provocação para lidar com uma multiplicidade de linhas de

força. Por isso, o desafio desse trabalho conjuga pensar o mais emblemático de seus

emaranhados de força, qual seja, a desconstrução, e, na própria noção de emaranhado, tecer

uma transformação da mesma - então, a desconstrução se torna justiça. Como se deu tal

possibilidade?

Para o universo de problemas do direito, o pensamento de Jacques Derrida, numa

primeira olhadela, pode não atrair facilmente. Os trabalhos iniciais têm como foco principal a

linguística estruturalista, levando-se em conta que o horizonte problemático de sua época

reside na linguagem1. Em suma, tudo é linguagem. Será? A que definição de linguagem?

Segundo Derrida:

a linguagem mesma acha-se ameaçada em sua vida, desamparada, sem amarras por

não ter mais limites, devolvida a sua própria finidade no momento exato em que

seus limites parecem apagar-se2.

Há, logo, uma crise na linguagem perceptível no momento em que sua

supervalorização culmina em evidenciar sua insuficiência. O limite desponta no horizonte.

Assim, Derrida desenvolve sua pesquisa constatando a insuficiência da linguagem a partir

dela mesma. Ele a expõe abalando uma dicotomia hierárquica entre fala e escrita. Para tanto,

suas obras passam a trabalhar a noção de escritura (ou escrita)3 enquanto passagem para

exceder os limites da linguagem.

A pergunta continua: como um filósofo, escrevendo sobre linguagem, afeta a

filosofia ou a teoria do direito? Ora, o universo jurídico guarda uma intimidade tremenda com

a linguagem. Em sua dinâmica, o direito constitui uma linguagem extremamente especializada

que, por isso mesmo, desenvolve problemas. Destarte, uma das dimensões deste trabalho

consiste em relacionar os problemas entre linguagem e direito frente ao pensamento

derridiano. Contudo, em primeiro plano, o problema tratado nesta dissertação se dá na

proximidade às questões filosófico-jurídicas. Aparentemente, as coisas ficam mais fáceis

porque o grande tema a ser desenvolvido é a justiça, a divindade mais problemática do direito.

A articulação entre direito e pensamento derridiano se faz possível por conta de um pequeno

texto.

―Força de lei: o fundamento místico da autoridade‖ consiste em uma palestra

ministrada na Benjamin N. Cardozo Law School, Faculdade de Direito norte-americana. O

colóquio tinha como tema ―Desconstrução e a possibilidade da justiça‖, o qual é imposto

1 DERRIDA, J. Gramatologia. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

2 Ibidem, p. 7.

3 Algumas traduções tratam escrita outras, escritura. Nesse trabalho, os termos serão tratas indiferentemente.

10

como mote para a abertura, e a Derrida caberia endereçar a desconstrução aos juristas. Bem,

se há algo que deve ficar claro sob a desconstrução é que sua ―crítica‖ só se efetiva no interior

do discurso solicitado. Dessa forma, o filósofo franco-argelino precisa justamente enunciar

um problema afeto ao direito, porém que possibilite a desconstrução.

Desde as primeiras linhas, Derrida brinca arranjando e rearranjando o tema imposto.

Parece que ele pode ser configurado aleatoriamente, pois a conjunção e, termo talvez menor

nessa cadeia, possibilite tratar desconstrução e justiça frente ao discurso jurídico:

‗A desconstrução e a possibilidade da justiça‘: a conjunção e associa palavras,

conceitos, talvez mesmo coisas que não revelam da mesma categoria. Uma tal

conjunção ousa desafiar a ordem, a taxonomia, a lógica classificatória, opere ela de

que maneira for: por analogia, distinção ou oposição.

Elaborar uma digressão sobre o tema apenas pode se efetivar por causa de um

minúsculo sincategorema. Isso ensina outra coisa sobre a desconstrução: ―o diabo mora nos

detalhes‖4. Por isso, Derrida formula a questão da seguinte maneira: ―será que a

desconstrução assegura, permite, autoriza a possibilidade da justiça?‖5. Toda a argumentação

do texto derridiano é, enfim, um desdobramento de assuntos que possam permitir a relação

entre estes dois ―conceitos‖. E, logo, como Derrida agenciou-os para elaborar um novo

significado de justiça. Como objetivo maior dessa dissertação, analisar-se-á a concepção de

justiça desenvolvida a partir da desconstrução de Jacques Derrida.

No saber jurídico, talvez não haja conceito mais debatido e problemático que a

justiça. Afirmá-la ou negá-la torna-se o ponto de partida de diversas teorias do direito. E,

então, Derrida pinça um termo extremamente recauchutado que possui conotações

comprometedoras ao direito. Por quê? A proposta deste trabalho consiste em explicar como a

justiça é solicitada pela desconstrução. Contudo, de onde ela é solicitada? Na tradição do

pensamento jurídico, a justiça é concebida como uma estrutura. Desde os gregos, o justo está

atrelado à lei e ao direito, manifestando-se nas prescrições e instituições legais. A justiça era o

começo e o fim do direito. Ao mesmo tempo, dentro e fora dele.

Dessa ambiguidade a justiça encerrava uma estrutura. Ela deveria ser vista justa

enquanto direito. No positivismo jurídico, tenta-se alocá-la fora do discurso jurídico em nome

de um pensamento cerrado sobre si próprio: a legalidade. A estrutura, pois, perde seu começo

e seu fim para se instituir sobre os meios. Nesse panorama, Derrida solicita, ou seja, tira o

solo da estrutura a justiça. Em ―Força de lei‖, a justiça é encarada como um acontecimento

4 Proverbio inglês retirado de BILLIER, J. e MARYIOLI, A. História da Filosofia do Direito. Barueri-SP:

Manole, 2005. 5 DERRIDA, Jacques. Força de lei: O ―fundamento místico da autoridade‖. Porto-Portugal: Campo das Letras,

2003a. p. 10.

11

rompendo a estrutura: ―A desconstrução é a justiça‖6. Faz-se necessário explicar como

Derrida chega a esta imputação. Naquela asserção há a possibilidade de pensar a filosofia do

direito de outro modo. Um exceder as margens de seu discurso para expandir a reflexão do

direito frente a seus desafios.

Para compreender a perspectiva derridiana do justo, primeiramente é preciso explicar

o sentido de desconstrução cunhado pelo autor que, porém, tem referências bem mais

complexas dentro da tradição filosófica que o mero personalismo do próprio filósofo. É

preciso esclarecer que Derrida não faz desconstrução. Contudo, não se trata de uma mera

constatação. A desconstrução acontece. O primeiro capítulo tentará explicar as nuances do

termo no pensamento derridiano com o fito de expor as linhas mais gerais da desconstrução.

O segundo capítulo traz à baila certas questões acerca do pensamento derridiano.

Para compreender alguns problemas expostos em ―Força de lei‖, alguns temas precisam ser

endereçados. Assim, a questão da justiça como estrutura será explicitada com referências à

performatividade: ―é preciso responder pela herança de outrora‖. Também, aos termos

cunhados (ou reinventados) pelo filósofo (os indecidíveis) serão esclarecidos: a différance

forma uma série dos principais artifícios para a discussão dos problemas relacionados à

―crítica‖ que Derrida tece sobre o discurso jurídico em torno dos temas: lei, legalidade,

legitimidade, tradução e interpretação.

No avanço do tema ―Desconstrução e a possibilidade da justiça‖, chega-se ao

momento de questionar dois termos que compõem o livro de Derrida. É relevante indagar o

significado dos dois sintagmas que formam o título e o subtítulo da obra. A ―força de lei‖ e o

―fundamento místico da autoridade‖ são o cerne do terceiro capítulo. As expressões têm uma

história que precisa ser contada, e implica a problemática da justiça e do direito. Nesse ponto,

o trabalho será de remeter às referências básicas ao texto derridiano.

Se a conclusão de Derrida de que a justiça é a desconstrução for oportuna, é preciso

explicar as condições que fazem possível uma afirmação tão radical. Por isso, o quarto

capítulo consolidará a vida que emana dos apontamentos de Derrida sobre a justiça impondo-

se, dessa forma, uma necessária reflexão sobre seu entrelaçamento à ética da alteridade de

Emmanuel Levinas, um amigo a quem Derrida solicitou desde as primeiras obras, tanto para

contestá-lo quanto para segui-lo: na obra-homenagem Adeus a Emmanuel Levinas. A

alteridade desponta como a própria dimensão da justiça.

6 DERRIDA, 2003a, p. 26.

12

De outra maneira, implicar Força de lei com outra obra, Espectros de Marx, pois a

vida que a justiça possibilita passa pela assunção das questões inalienáveis do marxismo, tal

como evocadas por Derrida. O tempo e o devir marcam a manifestação da justiça como

ruptura da ordem do mundo estruturado na retidão do direito. A justiça está fora dos eixos,

logo, chega a contratempo. Dessa maneira, é possível provocar ao limite as três aporias

(epoché da norma, a assombração do indecidível e a urgência que barra o horizonte do saber),

determinada por Derrida para solicitar a separação radical entre direito e justiça: um não

identifica mais a outra, todavia, implicam-se e negociam a própria sobrevivência.

Talvez seja preciso enfatizar uma precaução de método. Se há uma pretensão neste

trabalho é não tentar firmar uma organização entre os capítulos em que cada um possibilite o

outro, nem uma organização em árvore. Evidencia-se que do primeiro capítulo pode-se pular

para o quarto. Talvez, começar pelo terceiro. Até, evitar o segundo. O tom, nesse sentido, é o

mais rizomático possível7. Não se tenta uma linearidade (começo, meio e fim). Essa retidão

não serve muito para entender Derrida. Uma traição dispensada. Logo, a desconstrução chega

para furtar-se ao conhecimento pleno. Essa é a dimensão da singularidade na diferença que

impulsiona a obra derridiana.

Ao mesmo tempo, o que dinamiza a dissertação é a responsabilidade com o herdado

e com o que chega (ou não chega) para compreender Derrida. Há um risco! Mas, vale o

desafio! Pode-se, de alguma forma, confundir o tom do trabalho com uma forma panfletária.

Entretanto, os enunciados têm um caráter performativo, pois, ao reiterar as teses derridianas

se faz uma promessa, ou se assume um compromisso, conforme será esclarecido no devido

momento. Por isso, uma análise de sua obra arrisca perder a mera descrição uma vez que esta

seria apenas um caso particular do ato de investigar Derrida.

A justiça traz consigo uma carga pesada da tradição jurídico-filosófica ocidental.

Para além do bem e do mal, o acontecimento será a possibilidade mesma: autêntico possível

como abertura ao devir. O direito não será mais o mesmo. A justiça não será mais a mesma,

nem a desconstrução. Pensar a obra de Derrida em relação à tradição jurídica traz em si a

tarefa de indagar o direito por dentro para, no limite, abrir uma passagem para o direito não

ser mais direito. No jogo de palavras, esconde-se uma sutil diferença (ou, mesmo différance)

que irrompe a justiça com seu instante mais cabal e decisivo. Esta dissertação pretende

transpassar esse desafio...

7 DELEUZE; GUATTARI. Mil planaltos. Capitalismo e esquizofrenia II. Lisboa: Assirio & Alvim, 2007.

13

1 QUE É ISTO – A DESCONSTRUÇÃO?

1.1 Por que isto?

O título proposto surge sem qualquer autenticidade (precário, talvez). Parte-se de

uma paráfrase; quiçá, de forma bastante fiel a Jacques Derrida: parte-se de um texto alheio. A

questão formulada por Heidegger, em Que é isto – a filosofia?8, serve como inspiração ao

desenvolvimento deste capítulo ante a indeterminação daquilo que se estudará. O ponto de

interrogação seria dispensável, até mesmo substituído por uma interjeição ou perplexidade.

Os termos constitutivos da pergunta (―que‖, ―ser‖, ―isto‖) carregam um abismo, pois

cada um implica a impossibilidade de definir plenamente um ―conceito‖ de desconstrução.

Esta mesma – tentar-se-á expor – revela-se enquanto intraduzível. Contudo, mesmo com risco

de trair o pensamento derridiano, há o objetivo de explicar a desconstrução apontada como

grande peculiaridade do filósofo franco-argelino, pois se trata mesmo de circunscrever a

desconstrução de maneira a entender sua possibilidade de justiça. Em suma, em meio a

possíveis abordagens sobre a desconstrução, ao excesso de sentido que acompanha essa

palavra, é preciso traçar bases teóricas para melhor conduzir a discussão sobre sua relação

com o direito e a justiça.

Divide-se a exposição deste primeiro capítulo em três eixos. Primeiro, localizar a

desconstrução, marcadamente a sob a rubrica de Derrida, diante da história da filosofia. Num

período de grande fertilidade teórica na França, o Estruturalismo se constituiu como

movimento heterogêneo e criativo nas diversas ciências humanas, entre antropologia e crítica

literária. É relevante entender a posição derridiana frente ao contexto contemporâneo. Seu

trabalho foi rotulado como pós-estruturalista (até mesmo ultra). Contudo, seu contexto não

serve para classificá-lo (traição recusada), mas indica o plano de imanência dos problemas

sobre os quais o filósofo criou seus conceitos e agenciamentos. Por isso, levanta-se o aspecto

histórico como primeiro eixo articulador para a desconstrução a fim de traçar sua faceta

estruturalista.

Em segundo momento, é preciso marcar aquilo que se denominará uma circunscrição

metodológica (ou até mesmo estrutural): há como formular uma desconstrução? Quem são os

8 HEIDEGGER, Martin. O que é isto - a filosofia? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos

filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 7-24. (Os Pensadores).

14

―desconstrutivistas‖? Já seria uma questão saber se há uma escola ou movimento com tal

denominação. Quais as premissas de se pensar a desconstrução? Ainda mais, qual a natureza

da desconstrução? Com frequência, o próprio Derrida dedica em seus textos uma orientação

sobre tais questões. Entretanto, não se pode confundir a desconstrução e uma metodologia.

Dessa maneira, é preciso distinguir tal pensamento daquilo que ele não é: a desconstrução

distingue-se de três termos caros à racionalidade moderna - análise, crítica e método. Mesmo

sendo possível se utilizar da conotação, dependendo do contexto, defini-la por procedimentos

e modelos se torna precipitado.

Como terceiro eixo, deve-se inscrever o sentido da palavra desconstrução para além

de um conceito ou de uma palavra. Mais ainda, não reduzir a um sintagma: S é P, a

desconstrução é isto ou aquilo. Mesmo assim, ela acontece (aconteceu e acontecerá)...

Irrompe em diversas épocas, através de uma textura: dá-se enquanto a possibilidade de

provocar uma tradição, rompê-la e assumi-la. Do mesmo modo e de outro, a obra de Derrida

sofre uma influência declarada em dois filósofos: Heidegger e Nietzsche. São expressões de

desconstruções dentro da tradição filosófica. A necessidade de partir de textos de outros e a

perspectiva artístico-literária são forças que atravessam os textos derridianos. Assim, a

ontologia fundamental e o niilismo permanecem dobrados geneticamente em seu pensamento.

No entrecruzamento desses três eixos (histórico, metodológico e genealógico),

possibilita-se uma contextualização para o tema. A cada leitura de um texto de Derrida é

possível encontrar uma definição para o mesmo. Há sempre uma tentativa com este intuito.

Contudo, busca-se orientar as linhas gerais de sua constituição, dessa maneira, remete-se a um

texto de Derrida, Carta a um amigo japonês9, que guiará as pretensões deste capítulo. Nesse

texto, endereçado ao prof. Izutsu, Derrida pretende elucidar esquematicamente o significado

da desconstrução através de ―prolegômenos a uma possível tradução dessa palavra para o

japonês‖ 10

. Suas considerações formam um caminho de pedras, tanto arriscado quanto

elucidativo ao termo tão controverso. Por isso, em sua história, revela-se seu contexto

estruturalista. Enquanto uma experiência de saber, produz um deslocamento da racionalidade

vigente; em seus genes, carrega marcas nietzschianas e heideggerianas a partir da tradição do

pensamento ocidental.

A proposta deste momento certamente consiste mais em lidar com a tradução da

desconstrução que conceituá-la, dar-lhe um limite. Transportá-la, deslocá-la, assumi-la! São

9 DERRIDA, J. Carta a um amigo japonês. In: OTTONI, Paulo (org.). Trad.: a prática da diferença. 2. ed. rev.

Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2005a. P. 21-27. 10

Ibidem, p. 21.

15

os primeiros passos para compreender um evento que passa por Derrida sem cessar nele. O

evento denominado desconstrução que não pertence a Derrida. Ao contrário, irrompe a todo

tempo na história do pensamento a fim de renová-la. Como acontecimento, não se pretende

demarcar uma data, uma metanarrativa. E é isto que se reitera: a desconstrução chega...

1.2 O lugar no (pós-) Estruturalismo

Qualquer filosofia permanece em tensão com sua época. Na medida em que é

assimilada no meio acadêmico ou, até mesmo, na comunidade (local ou global), traz o efeito

de repetição de seus termos, de seus conceitos, e de seu dito paradigma. Daí, mesmo filha de

seu tempo ou de muitos tempos, ganha contornos intempestivos. São platonismos, tomismos

ou kantismos que permanecem sobrevoando tanto prateleiras quanto discursos ao longo da

história.

A filosofia expande suas fronteiras historicamente, embora não caiba a este trabalho

tratar diretamente de filosofia da história. Desse modo, há algo no Estruturalismo que está a

todo o momento questionando seu lugar na história da filosofia. Da antropologia à literatura,

disseminou-se como um movimento eclético e criativo, dificilmente redutível à filosofia: cada

autor reconhecido enquanto estruturalista desenvolve suas pesquisas com elementos

singulares em relação a outros autores, mas que interagem numa atmosfera de problemas que

têm um cruzamento entre si. Dessa forma, o Estruturalismo gera estruturalismos: totalidades

sempre por vir em torno de seu problema central, qual seja, a linguagem.

Bem caracterizado por François Dosse, o Estruturalismo consiste em ―um

movimento de pensamento‖11

preocupado em considerar os sistemas formais construídos ao

longo da história. Assim, tem sua marca sobre a questão da linguagem como código que

possibilita as relações humanas. À influência de Ferdinand Saussure12

, o arbitrário e o

imotivado do signo tornam-se elementos decisivos para traçar a concepção da estrutura.

Contra a tradição filosófica, a constituição do saber é deslocada de seu foco subjetivo para

fazer emergir um pensamento na imanência das relações sociais e das formas simbólicas.

Mais ainda, o que antes era processado pela consciência revela-se um mero efeito de

11

DOSSE, François. História do estruturalismo: o canto do cisne. v. 2. São Paulo: Edusp, 2007. 12

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2000. p. 81.

16

superfície. No Estruturalismo, o inconsciente atravessa as questões antropológicas,

linguísticas e psicanalíticas ―como o lugar mesmo da verdade‖13

.

Não é à toa que esta geração assume a herança de três grandes pensadores: Marx,

Nietzsche e Freud14

. As suspeitas em torno do idealismo, da verdade e do sujeito consciente

desdobram-se no movimento estruturalista. Por exemplo, Althusser, Foucault e Lacan

permaneceram impregnados pelo trabalho de seus antecessores: a infra e a superestrutura

ganham foco na dinâmica da reprodução do capitalismo, tanto quanto a genealogia abala as

instituições sociais ou o inconsciente se estrutura linguisticamente. Da Alemanha para França,

o que era a modernidade germânica desloca-se ao território francês no pós-modernismo, como

se costumou caracterizar esta época15

.

A expressão pós-modernidade representa um plano de problemas constitutivos do

século XX. Não se trata de um caminho a seguir, mas de uma conjuntura histórica na qual se

permanece inserido. Nesse sentido, há um campo de temas e estratégias possíveis por decidir:

Ao reconhecer que o pos-modernismo é o estado presente das coisas, devemos

concentrar a analise não apenas nas novas formas de domínio e de exploração, mas

também mostrar as novas formas de antagonismo que recusam essa exploração e

propõem alternativas de organização social.16

Não se trata de desprezar o período anterior. Afinal de contas, já se impõe como tema

a superação e a retomada (Aufhebung, talvez) de problemas da modernidade. Esta se faz ponto

de partida: pós-moderno. Desde a Renascença, foi erigido um discurso de instituição. O

homem, a ciência, o Estado são constituídos como discursos hegemônicos, pilares sobre os

quais se edificará uma época da razão. Eles instituem uma ordem (burguesa ou capitalista,

como se preferir) atrelada à narrativa homogênea da humanidade. Ao que se segue, acontece,

segundo Lyotard, um abalo nesse discurso de legitimação, isto é, nas chamadas

metanarrativas: as concepções ideológicas sobre a humanidade e sua história são contestadas

no interior desses mesmos discursos:

Vê-se nesse caso que, legitimado por um metarelato, que implica uma filosofia da

história, somos conduzidos a questionar a validade das instituições que regem o

vinculo social: elas também devem ser legitimadas. A justiça relaciona-se assim

com o grande relato, no mesmo grau que a verdade (grifo nosso).17

13

DOSSE, 2007, p. 13. 14

Cf. FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx. In: FOUCAULT, M. Um diálogo sobre os prazeres do sexo.

São Paulo: Landy, 2000. p. 47-75. 15

Cf. LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. 16

NEGRI, A; HARDT, M. O trabalho de Dioniso: para a crítica do Estado pós-moderno. Juiz de Fora-MG:

Editora UFJF – PAUZULIN, 2004. p. 31. 17

LYOTARD, op. cit., p. 16.

17

Derrida estava inserido em um contexto tão fértil e problemático que se sua marca

foi trabalhar à margem, da margem alcançou seu sucesso. Foi nos EUA que a desconstrução

ressoou à França como uma primeira crítica ao Estruturalismo: ―É por isso que,

principalmente nos Estados Unidos, se associou o móbil da desconstrução ao ‗pós-

estruturalismo‘ (palavra ignorada na França, exceto quando ela retorna dos Estados

Unidos)‖18

. De forma bárbara, as observações de Derrida, apesar de produzidas internamente,

invadem o cenário estruturalista francês; não é à toa que, de uma metrópole a outra, quem

anuncia a crítica é o estrangeiro.

Há uma pertinência biográfica no projeto derridiano, posto que nascido na Argélia,

em tempos de colonização francesa, ―Derrida nunca deixou de sentir e de cultivar uma certa

estranheza em relação a tradição do pensamento ocidental‖19

. O colonizado não se reduz ao

provincianismo, muito além exercita sua diferença e a expõe como primado filosófico

deslocando o pensamento colonizador: ―um fora-de-lugar que vai servir para desestabilizar

todo o esforço de fundação, de alicerçamento‖20

. A mesma crítica distancia-se de si para

afirmar as posições estruturalistas.

Derrida permaneceu sempre em relação com seus contemporâneos. Entrou em debate

com as principais referências de sua época (Lévi-Strauss, Foucault, Lacan, Levinas etc.). Por

outro lado, trouxe à tona problemas esquecidos na história. Fez releituras de Platão, Rousseau,

Kant. Principalmente, postou seu pensamento sobre a desconstrução contra a dialética

hegeliana, como se desenvolverá mais adiante, na engrenagem dialética, no processo de

suprassunção (Aufhebung)21

, na qual é acionada uma peça, aparentemente sem relevância

naquela engrenagem, que trava o jogo metafísico das oposições. Dessa maneira, a

desconstrução derridiana é sempre sincrônica e diacrônica em relação à sua história22

: na

ambiguidade de seus textos, pulsam inversões e multiplicações de sentidos dispersando na

temporalidade.

18

DERRIDA, 2005a, p. 24. 19

DOSSE, 2007. p. 33. 20

Ibidem, p. 33. 21

DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte: Autentica, 2001. p. 47. A tradução do termo hegeliano Aufhebung foi

cunhada pelo prof. Paulo Meneses: MENESES, P. Para ler a Fenomenologia do espírito: Roteiro. São Paulo:

Edições Loyola, 1992: ―Adotamos assim suprassumir e suprassunção, - calcados no francês sursumer,

sursomption, propostos por Yvon Gauthier em 1967 e adotados por Labarrière‖. Na edição brasileira, traduzido

pelo mesmo: HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. ed. rev. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002. Assim, como o

verbo aufheben foi traduzido por suprassumir. O neologismo tem a pretensão de responder à possibilidade

semântica inscrita nos vocábulos germânicos: conservar, superar, tirar, ultrapassar, suprimir. 22

BENNINGTON, Geoffrey & DERRIDA, J. Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p. 11-

14.

18

É na conjuntura estruturalista que essa relação com o tempo pode ser mais evidente.

Colocar um prefixo (pós, ultra) sobre um termo, que já se excede em sentido, não resolve uma

pesquisa histórica sobre a obra de Derrida: ―Se um dia a invasão estruturalista batesse em

retirada, abandonando suas obras e seus sinais nas plagas da nossa civilização, tornar-se-ia um

problema para o historiador das ideias‖23

.

O Estruturalismo tomou a cena intelectual do século XX, redefinindo problemas e

rompendo horizontes em questões que pareciam estáveis. Entretanto, é necessário reafirmar a

complexidade e multiplicidade de tal movimento, uma vez que o problema do historiador é

potencializado, pois cada ―autor‖ trabalha com problemas e referências não necessariamente

homogêneas. Não há uma continuidade estável. Por isso, não caracteriza-se o Estruturalismo

como uma escola ou corrente. Há, sim, uma rede de temas e debates compartilhados, pode-se

dizer um fruto das sociedades informatizadas.

Derrida situa-se no esteio desse movimento, para além de ser pós ou

ultraestruturalista. Como está inserido em tal movimento, seu pensamento se nutre dessa

multiplicidade para provocá-la. Pode-se ilustrar tal situação com o conceituado comentário de

Culler:

Os estruturalistas tomam a lingüística como modelo e tentam desenvolver

―gramáticas‖ – sistemáticos inventários de elementos e suas possibilidades de

combinação – que dariam conta da forma e do sentido de obras literárias; os pós-

estruturalistas investigam o modo como esse projeto é subvertido pelas operações

dos próprios textos. Os estruturalistas estão convencidos de que o conhecimento

sistemático é possível; os pós-estruturalistas afirmam saber apenas das

impossibilidades desse conhecimento.24

Esse raciocínio pode caricaturar o pensamento derridiano um mero tiro no pé do

Estruturalismo. Contudo, serve em certo sentido para entrever as diferenças. O que haveria de

cientificidade em um, é solapado pelo outro. Embora possa parecer um raciocínio de oposição

(Estruturalismo versus pós), o sentido desse movimento se amplia ao passo que se visualiza a

complementaridade (ou, no vocabulário derridiano, suplementariedade) entre ambos.

Todo o movimento estruturalista lida com sua herança teórica fazendo escolhas

criativas: ―se trata antes de mais nada de uma aventura do olhar, de uma conversão na maneira

de questionar todo o objeto‖25

. Talvez seja possível afirmar que os problemas modernos

continuam, mas operou-se uma mudança de perspectiva sobre eles. Mais ainda, da mudança

23

DERRIDA, J. Força e significação. In: DERRIDA, J. A escritura e a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva,

2005b. p. 11. 24

CULLER, J. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,

1997. 25

DERRIDA, op. cit., p. 12.

19

de perspectiva estruturalista é preciso, no evento da desconstrução, transformar a perspectiva

novamente ao limite, ou a vertigem dela. Possíveis reduções metodológicas podem encobrir

as rupturas fabricadas nesses movimentos. Contudo, a marca estruturalista suscita um

enredamento que Derrida busca evitar. As análises estruturalistas podem resvalar em uma

metafísica dissimulada:

a estrutura, ou melhor a estruturalidade da estrutura, embora tenha sempre estado em

ação, sempre se viu neutralizada, reduzida: por um gesto que consistia em dar-lhe

um centro, em relacioná-la a um ponto de presença, a uma origem fixa.26

A estrutura centrada assume seu trabalho absoluto formando uma totalidade. O

Estruturalismo cai numa crítica de forma. Na engenhosidade da metafísica, o centro instaura

uma ordem, mas não se oferece às contradições vindouras; ele institui, mas não se aloca ou se

fixa nela:

Sempre se pensou que o centro, por definição único, constituía, numa estrutura,

exatamente aquilo que, comandando a estrutura, escapa à estruturalidade. Eis por

que, para um pensamento clássico da estrutura, o centro pode ser dito,

paradoxalmente, na estrutura e fora da estrutura. Está no centro da totalidade e

contudo, dado que o centro não lhe pertence, a totalidade tem o seu centro noutro

lugar. O centro não é o centro.27

Não basta negar a centralidade do centro. É preciso provocar – essa estrutura é

apenas remessa sem fundamento28

. Nesse sentido, há um círculo vicioso na medida em que

um termo remete a outro que remete a outro, e assim por diante. Não há um porquê nem um

para quê definido a priori. As determinações do centro (origem ou fim) constituem-se no

arranjo formal dos elementos estruturais.

Derrida aponta um jogo posto, uma vez que os elementos estruturais se organizam

numa ―imovibilidade fundadora‖, um eixo de articulação arbitrário que produz um efeito

pacificador ao jogo – sua cristalização. Logo, jogo sem ricos, repete-se para satisfazer uma

necessidade por segurança. Arriscando um clichê: tudo em seu devido lugar, talvez, um

esquema racional e legítimo. Umberto Eco, assim, explicita:

Jacques Derrida [...], vê no excesso de análise estruturalista a manifestação de uma

crise, de um momento crepuscular da cultura. A obra enquanto forma é a

imobilização, a fase final, mas também o mecanismo gerador de uma força que o ato

drítico deveria constinuamente revelar e desenvolver.29

26

DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: DERRIDA, J.A escritura e

a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005b. p. 230. 27

Ibidem. 28

Essa questão entre estrutura centrada e jogo de remessas servirá mais adiante para uma análise do pensamento

jurídico positivista. 29

ECO, Umberto. A estrutura ausente. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 277.

20

O movimento estruturante, portanto, é substituição posto que um centro toma o lugar

do outro, ―um encadeamento de determinações do centro‖30

. À ventura do olhar, retomando-e-

seguindo, o acontecimento (a desconstrução), através da linguagem, historicamente rompe e

redobra a estrutura. Por isso, a estrutura está à mercê de sua história: ―A atitude estruturalista

e a nossa postura hoje perante a linguagem ou na linguagem não são unicamente momentos da

história. Antes espanto pela linguagem como origem da história. Pela própria historicidade‖31

.

Tal pensamento refere-se ao acontecido, passado, constituído e construído. Assim,

desvela-se a totalidade estrutural enquanto um território em que se agenciam formas e

sentidos historicamente firmados:

É também, perante a possibilidade da palavra, e sempre já dentro dela, a repetição

finalmente confessada, finalmente alargada às dimensões da cultura mundial, de

uma surpresa sem medida comum com qualquer outra e com a qual se agitou aquilo

que se costuma denominar pensamento ocidental, esse pensamento cujo destino

consiste muito simplesmente em aumentar o seu domínio à medida que o ocidente

diminui o seu.32

Anuncia-se a necessidade de distinguir, naquilo que se tratou até o momento como

estrutura, o movimento estruturalista. Deve-se observar o interior desse para traçar as

condições pelas quais Derrida revelou a desconstrução. Diante da formalização estrutural, há

a força, ou forças, dentro desta que precisam ser liberadas. Embora, para a estrutura, isto seja

uma catástrofe, Derrida começa a arriscar o jogo. O mesmo Estruturalismo que formata sua

análise, destrói a estrutura montada através das forças históricas inerentes a mesma:

Nada há portanto de paradoxal no fato de a consciência estruturalista ser consciência

catastrófica, simultaneamente destruída e destruidora, desestruturante, como o é toda

a consciência ou pelo menos o momento decadente, período adequado a todo

movimento da consciência.33

Há uma preocupação sobre Derrida em dar conta da história, pois é nela que as

estruturas se tornam tangíveis. Para tanto, é preciso solicitar a estrutura sob a forma de uma

ameaça:

Pode-se então ameaçar metodicamente a estrutura para melhor a perceber, não só

nas suas nervuras mas também nesse lugar secreto em que não é nem ereção nem

ruína mas labilidade. Esta operação denomina-se (em latim) preocupar ou solicitar.

Em outras palavras sacudir com um abalo qua atinge o todo (de sollus, em latim

arcaico: o todo, e de citare: empurrar.34

30

DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: DERRIDA, J.A escritura e

a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005b. p. 231.. 31

DERRIDA, J. Força e significação. In: DERRIDA, J. A escritura e a diferença. 3. ed. São Paulo:

Perspectiva, 2005b. p. 13. 32

Ibidem. 33

Ibidem., p. 14. 34

Ibidem., p. 16.

21

Assim, a solicitação (abalo) das estruturas remonta sua condição temporânea:

A análise estruturalista leva o significado, a consciência, a vida e o tempo a um fim

na pura estrutura, o que é a ruína do sentido. As estruturas são sempre a destruição

de si mesmas por que não são constituídas para obliterar o texto sujeito a análise.35

O resgate, então, de uma dimensão material, esvazia o jogo da estrutura, retira-lhe a

força – arruinar o sentido é menos negá-lo que fazê-lo desdobrar-se e multiplicar-se. O

Estruturalismo não lida com univocidades, antes intensifica a multiplicidade.

A catástrofe é expor a contingência desse discurso, expor a estrutura já é

desestruturá-la: ―A abordagem estruturalista é de agora em diante uma ‗solicitação‘ que abala

as estruturas, e que só mostra as estruturas a fim de colapsá-las. A exposição das estruturas é a

destruição das estruturas, e esse movimento paradoxal é o movimento da desconstrução‖36

. O

Estruturalismo trabalhou na intensificação de anular os pontos estruturantes (sujeitos,

consciência etc.) para trazer à tona a forma e o sentido de relações encobertas pelo discurso

metafísico e que não possuem uma origem ou fim explícitos, mas têm uma função na

dinâmica das sociedades. Dessa forma, a desconstrução de Derrida insere-se na problemática

estruturalista.

A palavra desconstrução nos remete à noção de desmantelar uma estrutura. É ―um

gesto estruturalista‖, como assinalou Derrida, ―uma operação relativa à estrutura ou à

arquitetura tradicional dos conceitos fundadores da ontologia ou da metafísica ocidental‖37

.

Ao passo que se relaciona a desconstrução com o processo de abalar o discurso dialético-

metafísico, ressalta-se sua estreita relação com o Estruturalismo que lhe direciona a uma

preocupação histórica: o discurso metafísico tem seu primado na construção do pensamento

ocidental. Contudo, não passa de um discurso, ou seja, de uma estrutura. Para entendê-la,

deve-se debruçar-se sobre a linguagem:

Na verdade, só há estrutura daquilo que é linguagem, nem que seja uma linguagem

esotérica ou mesmo não-verbal. Só há estrutura do inconsciente à medida que o

inconsciente fala e é linguagem. Só há estrutura dos corpos à medida que se julga

que os corpos falam com uma linguagem que é a dos sintomas. As próprias coisas só

têm estrutura à medida que mantêm um discurso silencioso, que é a linguagem dos

signos.38

Para uma compreensão histórica sobre a desconstrução, reportamo-nos ao texto de

Gilles Deleuze, datado de 1967, em que ele estabelece sete critérios para definir o

35

STOCKER, Barry. Routledge philosophy guidebook to Derrida on deconstruction. Londres: Routledge,

2006. p. 180. 36

Ibidem., p. 181. 37

DERRIDA, 2005a, p. 23-24. 38

DELEUZE, G. Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In: A ilha deserta. E outros textos. São Paulo:

Iluminuras, 2006a. p. 222.

22

Estruturalismo. Embora não se detenha minuciosamente sobre cada critério, esse ensaio traz

referências para pensar o Estruturalismo como um movimento desconstrutivo no qual Derrida

empreendeu ao limite.

Não se deve perder de vista que o elemento mais característico do movimento

estruturalista, o primeiro critério de reconhecimento, segundo Deleuze, é o simbólico. Se o

que Derrida pretende é travar a dialética, o simbólico vem a ser um campo em que a oposição

entre o real e o imaginário perde sua força metodológica. Como uma terceira ordem, não

deriva ou sintetiza as outras, antes as possibilita na linguagem:

o simbólico como elemento da estrutura está no princípio de uma gênese: a estrutura

se encarna nas realidades e nas imagens segundo séries determináveis; mais ainda,

elas as constitui encarnando-se, mas não deriva delas, sendo mais profunda que elas,

subsolo para todos os solos do real como para todos os céus de imaginação.39

O simbólico – um termo deslocado, não derivado, mas é ao mesmo tempo posto em

relação com a oposição real-imaginário a fim de desestruturá-la internamente como sua

possibilidade discursiva: ―O que, no animal, denominamos um comportamento simbólico é o

fato de um segmento deslocado assumir um valor socializado e servir ao grupo animal como

referência para certo comportamento coletivo‖40

. Nesse sentido, o simbólico agencia as

relações na estrutura, isto é, a própria linguagem possibilita o jogo entre a realidade e o

imaginário. Uma definição do real ou de sua imagem perpassa a estrutura linguística: a

realidade ou o sonho são enunciados.

As pessoas reais ou as representações tomam seus lugares no jogo, isto é, ao analisar,

por exemplo, uma determinada instituição, faz-se necessário compreender as posições dentro

das relações mais capilares que engendram a estrutura41

. Dessa forma, passam a construir um

sentido: ―os elementos de uma estrutura não têm nem designação extrínseca nem significação

intrínseca‖42

. No esteio do jogo, os elementos singulares são postos em relação diferencial em

que nenhum deles carrega consigo qualquer valor a não ser dentro da relação. Logo, o jogo

dá-se em um espaço, ou seja, a estrutura tem uma marca topológica que se refere aos planos e

a acidentes que constroem uma combinação de movimentos sem estar vinculados a valências

individuais ou condições de representação:

Não se trata de um local numa extensão real, nem de lugares em extensões

imaginarias, mas de locais e de lugares num espaço propriamente estrutural, isto é,

topológico. Aquilo que é estrutural é o espaço, mas um espaço inextenso, pré-

39

DELEUZE, 2006a, p. 223. 40

LACAN, Jacques. Nome-do-pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 20. 41

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins

Fontes, 1999. p. 27-48. 42

DELEUZE, op. cit., p. 227.

23

extensivo, puro spatium constituído cada vez mais como ordem de vizinhança, em

que a noção de vizinhança tem precisamente, antes, um sentido ordinal e não uma

significação na extensão.43

A estrutura torna-se uma virtualidade inconsciente porque nunca se apresenta em sua

atualidade. Não importam os entes posicionados, os espaços coexistem virtualmente, trocam-

se os nomes, mas a função permanece: ―O estruturalismo não é separável de uma filosofia

transcendental nova, onde os lugares prevalecem sobre aquilo que os preenche‖44

. Essa

instância virtual evoca o gosto pelo jogo dos estruturalistas. Por isso, Derrida tenta trazer ao

foco o jogo constitutivo do centro e das substituições45

.

A fixação de um único eixo empobrece o caráter diferencial, pois interrompe

paradoxalmente o jogo estrutural. Assim, aquele princípio de organização, que era o centro,

trava a dinâmica dos elementos do sistema. Tenta a qualquer custo instaurar um ponto de

articulação da presença da estrutura fora de seu jogo. Então, o paradoxo do centro, em

contrapartida, é ao mesmo tempo estar dentro e fora da estrutura:

Se for realmente assim, toda a história do conceito de estrutura, antes da ruptura de

que falamos, de centro para centro, um encadeamento de determinações do centro. O

centro recebe, sucessiva e regularmente, formas ou nomes diferentes. A história da

metafísica, como a história do Ocidente, seria a história dessas metáforas e dessas

metonímias. A sua forma matricial seria [...] a determinação do ser como presença

em todos os sentidos desta palavra.46

A metafísica consiste no golpe de estruturação de um centro: a ideia, a forma ou o

modelo, na sua origem ou no seu fim – não importando muito o nome dado – constituem o

centro, sem nunca sofrer os deslocamentos do próprio jogo estruturado. Por isso, a concepção

da estrutura reside em sua historicidade, ou seja, só o que se enuncia pode sofrer uma análise

estruturalista. Deve-se desvelar o jogo já constituído na linguagem dessa história. Revelar a

historicidade da estrutura abala sua pretensão metafísica. Este é o trabalho do Estruturalismo

que se arrisca ao esquecimento. A desconstrução chega justamente nessa historicidade

estrutural.

A pertença do pensamento derridiano ao Estruturalismo demandou uma avaliação do

autor e de sua posição. Não basta ser estruturalista ou não ser. Derrida se apropria da temática

e dos textos estruturalistas, nutrindo sua vinculação ao movimento, ainda que isso signifique

traí-lo ou ultrapassá-lo. Faz-se interessante pontuar essa pertença estruturalista, menos para

qualificá-lo que para explicitar a circunscrição do debate e a interação da obra derridiana com

43

DELEUZE, 2006a, p. 225. 44

Ibidem., p. 226. 45

DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: A escritura e a diferença.

3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005b. p. 230. 46

Ibidem., p. 231.

24

o Estruturalismo: é a dinâmica de definir um território novo a se aventurar, a partir de

territorialidades anteriores. Dessa maneira, Derrida permaneceu na tensão com o movimento

estruturalista, pois intensificou um acontecimento latente ao Estruturalismo. O pensamento

catastrófico dos estruturalistas alinhavou a desconstrução pensada por Derrida e possibilitou

sua história.

1.3 O vestígio à razão

Pode-se sempre propor uma definição para a desconstrução, embora haja o risco de a

mesma não permanecer por muito tempo. De outra forma, indaga-se: o que a desconstrução

não é? Em ambos os casos, afirmar ou negar oculta uma perspectiva ontológica. É preciso

compreender a dimensão em que a desconstrução acontece. Por isso, a proposta deste ponto

surge como uma discussão metodológica ou epistemológica. O que é? Por que é? Como é a

desconstrução? As questões permanecerão assim. Todas remontam a uma pergunta mais

incisiva: pode-se pensar a desconstrução?

À primeira tentativa de predicar a desconstrução, acontece uma dupla traição. Por um

lado, aquele que conjuga a predicação não vislumbra sua potência plural. Por outro, ela

própria não possui propriedades – dá-se por rastros. Não há uma realidade onde ela se

concretiza, nem um conceito a se definir. Nesse sentido, verdade ou fundamento devem ser

levados ao limite para, então, possibilitar uma abertura ao pensamento. A racionalidade se

perde ou deverá ser deslocada de seu significado corrente:

A racionalidade – mas talvez fosse preciso abandonar esta palavra, pela razão que

aparecerá no final desta frase –, que comanda a escritura assim ampliada e

radicalizada, não é mais nascida de um logos e inaugura a destruição, não demolição

mas de-sedimentação, a desconstrução (grifo nosso) de todas as significações que

brotam da significação do logos. Em especial a significação da verdade.47

Será nessa passagem da Gramatologia que Derrida, pela primeira vez, faz uso do

termo. A desconstrução fora compreendida a partir do trabalho de abalar o âmbito do sentido

da razão e da verdade. Uma das teses desse texto será o abalo do logocentrismo, qual seja, a

hegemonia da razão (logos) ou a hegemonia dos discursos (logoi) metafísicos da razão. Por

isso, um dos eixos da ordem logocêntrica constitui a própria cientificidade:

47

DERRIDA, 2006, p.13.

25

O conceito de ciência ou da cientificidade da ciência – o que sempre foi determinado

como lógica – o conceito que sempre foi um conceito filosófico, ainda que na

prática da ciência nunca tenha cessado, de fato, de contestar o imperialismo do

logos, por exemplo fazendo apelo, desde sempre e cada vez mais, à escritura não

fonética.48

A cientificidade, em última instância, desemboca no horizonte da linguagem. Não

qualquer linguagem, tendo em vista que a ciência possui uma linguagem especializada, um

jogo pertinente a sua estrutura. Na Gramatologia, Derrida aponta que a possibilidade da

ciência, pois, institui-se na metáfora do livro. Nessa articulação, cita uma tradição de autores

(entre outros, Galileu e Descartes) que atrelavam a constituição do saber científico à leitura do

grande livro do mundo49

.

As grandes leis naturais seriam lidas na escrita50

da natureza, logo, eterna e universal.

Contudo, a escrita é tratada como precariedade (sensível e finita): ―A época do logos,

portanto, rebaixa a escritura, pensada como mediação de mediação e queda na exterioridade

do sentido‖51

. Nesse momento, revela-se o paradoxo: a escrita da natureza tem seu

fundamento na fala, porém, ao mesmo tempo, se define a partir da escrita que tenta subjugar.

Ao mesmo tempo em que possibilita o discurso científico, a escrita não se sustenta

em si. Na inflação desse signo, não se produz o essencial, nunca diz o essencial, pois o

significante trabalha representando, assim, constitui-se na derivação, sem qualquer sentido

constituinte52

, isto é, sempre deve ser suprido pela presença da fala (phoné) – uma

pneumatologia:

a ordem do significado não é nunca contemporânea, na melhor das hipóteses é o

avesso ou o paralelo defasado – o tempo de um sopro – da ordem do significante. E,

o signo deve ser a unidade de uma heterogeneidade, uma vez que o significado

(sentido ou coisa, noema ou realidade) não é em si um significante, um rastro: em

todo caso, não é constituído em seu sentido por sua relação ao rastro possível.53

A refutação de Derrida ao postulado metafísico da presença se enuncia justamente na

inversão da relação entre o significado e o significante. Este cânone da presença postula a

atualidade do significado ou sentido no instante em que, por exemplo, um fenômeno se

48

DERRIDA, 2006, p. 4. 49

Ibidem., p. 19-20. 50

Como bem lembra Evando Nascimento, há uma opção dos tradutores da edição brasileira da Gramatologia. O

termo écriture dá a entender a escrita ou o texto escrito. Entretanto, traduziu-se por escritura que, mesmo sendo

possível, abre uma margem para uma riqueza de conotações que poderiam ser diminuídas, de alguma forma,

traduzindo-se simplesmente por escrita. Neste trabalho, não se faz distinção entre um termo ou outro; ambos

possuem suas justificativas e podem ser utilizados para fins didáticos como equivalentes. Cf. NASCIMENTO, E.

Derrida e a literatura: ―notas‖ de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 2. ed. Niterói-RJ: EdUFF,

2001. p. 105. 51

DERRIDA, op. cit., p. 15. 52

Ibidem, p. 14. 53

Ibidem, p. 22.

26

apresenta. A toda pedra em queda há o sentido da gravidade. Ou, a todo livro lido, uma

compreensão efetivada de imediato. Seria a instituição do instante exato e perpétuo da

consciência ao conhecimento.

O logocentrismo ou a metafísica da presença instituem uma autoridade. É preciso

desafiar a legitimação desses processos históricos. Não é à toa que há a pergunta frequente

nos livros de Derrida – apontando, por isso mesmo, um viés kantiano de suas divagações –

sobre o direito de54

constituir um fechamento sobre o sentido do logos, verdade, saber ou

realidade. Dessa forma, a discussão da ciência passa a uma política entre aquilo que pertence

ou não pertence, ou está dentro ou está fora. Em certo sentido, decide-se sobre o estado de

exceção55

.

A inversão, em contrapartida, não se afirma simplesmente por colocar o significante

à frente do significado. Ora, quando se escreve ou se fala a palavra significado, entende-se

que há um significante chamado significado que remeterá a seu próprio termo. O que não se

pode perder de vista, entretanto, é que significante possui um significado. Assim, Derrida

aponta o devir das diferenças entre essa oposição. Não se trata de subverter os polos: o

produto continuaria o mesmo porque a ordem adquirira apenas outra configuração. Ao

contrário, é preciso forçar essa ordem deslocando-a. Por isso, entre o significante e o

significado irrompe o devir.

O logocentrismo da presença busca constantemente solapar o porvir, seja através de

suas sínteses ou suas previsões probabilísticas. A desconstrução coloca a cientificidade entre

parênteses; separar a desconstrução dos domínios da razão, mas deixá-la por dentro de seu

grande edifício, deixar que ela o habite. Nesse ponto, a noção de jogo, a remessa dos signos,

conduz a um movimento de diferenciação: ―O campo do ente, antes de ser determinado como

campo de presença, estrutura-se conforme as diversas possibilidades – genéticas e estruturais

– do rastro‖ 56

. A desconstrução instaura outra percepção do real. Seria mais apropriado

definir como perspectiva:

A estrutura geral do rastro imotivado faz comunicar na mesma possibilidade e sem

que possamos separá-los a não ser por abstração, a estrutura da relação com o outro,

54

Em passagens relevantes da Gramatologia e de outros escritos, a pergunta sobre ―se é de direito?‖ é reiterada.

Essa interrogação serve de exemplo para problemática pós-modernista sobre a legitimação do saber. Depois de

mais de uma década, Jean-François Lyotard diagnosticou o espírito do século (Zeitgeist) em seu renomado texto,

propondo a legitimação como o problema: ―quem decide o que é saber, e quem sabe o que convém decidir? O

problema do saber na idade da informática é mais do que nunca o problema de governo‖. LYOTARD, J-F. A

condição pós-moderna. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. p. 11-14. 55

Cf. SCHMITT, C. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 7. Versão espanhola: AGUILAR,

H.O; SCHMITT, C. Carl Schmitt, teólogo de la política. México: FCE, 2001. p. 23. Esta aproximação terá seu

momento oportuno na análise do fundamento místico da autoridade, no capítulo 3. 56

DERRIDA, 2006, p. 57.

27

o movimento de temporalização e a linguagem como escritura. Sem remeter a uma

―natureza‖, o imotivado do rastro sempre veio-a-ser. Para dizer a verdade, não existe

rastro imotivado: o rastro é indefinidamente seu próprio vir-a-ser-imotivado.57

Parece importante, nesse momento, dar conta de outro conceito: a verdade. Para

tanto, um breve resumo. Sob duas possibilidades, o conceito de verdade tanto remete aos

termos alétheia, matriz grega, e veritas, matriz latina. Em primeiro lugar, o vocábulo grego

significa aquilo que se desvela; da saída do esquecimento, apresenta-se à contemplação. Por

outro lado, veritas refere-se ―a princípio de adequação de uma coisa ao conhecimento de

origem divina‖ 58

. Assim, a verdade passa a ser uma concordância entre o enunciado e seu

objeto. Ambos os discursos são desestabilizados no momento em que se introduz a concepção

de escritura e rastro (trace):

Exatamente do mesmo modo que a representação e não-presença precedem e tornam

possível o ―efeito‖ da ―presença‖ [...], a desconstrução terá um prazer diabólico em

mostrar de que modo a não-realidade e a irrealidade precedem e tornam a

―realidade‖ possível, tornando ao mesmo tempo possível e impossível o que quer

que ouse se passar por realidade. A desconstrução jamais se cansaria de contar aos

realistas aquela história contada por Nietzsche, de como o mundo real tornou-se

fábula.59

A realidade como a linguagem se movimenta na ocultação. O não essencial a que nos

referíamos, força-se no jogo da presença e da ausência (jogo de forma) que elas suscitam: ―É

preciso pensar o rastro antes do ente. Mas o movimento do rastro é necessariamente ocultado,

produz-se como ocultação de si‖60

. Até no que se propôs sobre a realidade e a verdade, nota-

se o kantismo de Derrida. Nesse caso, a coisa em si é a pura diferença, pois busca-se um

vestígio à racionalidade, e ao passo que torna precária a episteme racional, possibilita uma

relação mais originária com o saber filosófico que é o amor.

O amor pelas coisas mesmas se desvela no vir-a-ser da diferença. Ora, realidade e

linguagem não se apresentam nem se representam senão na conta do rastro. Há, pois, uma

impossibilidade de fechamento, síntese no processo pelo qual a existência dá-se por e na

diferença. Contudo, antes de desautorizar o discurso metafísico, suprimi-lhe a possibilidade

do clímax, isto é, da dominação de um conhecimento plenamente:

O que se tem em vista não é uma idéia correta da verdade, mas sim fazer a verdade,

facere veritatem, pôr a verdade do nome próprio para funcionar, introduzir sua

verdade na fábrica da vida lingüística. A desconstrução afastou-se da idéia

57

DERRIDA, 2006, p. 58. 58

NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura. Notas de literatura e filosofia nos textos de desconstrução.

Niterói-RJ: EdUFF, 1999. p. 61. 59

CAPUTO, J. Por amor às coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida. In: DUUQUE-ESTRADA, P. C (Org.).

Às margens: a propósito de Derrida. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002. p. 29. No próximo

ponto, estabelecer-se-á a relação entre Derrida e Nietzsche. 60

DERRIDA, 2006, p. 57.

28

representativa da verdade, não pela via de um pôr-se de joelhos em aterrorizante

admiração diante das profundezas da aletheia grega, [...], mas sim substituindo-se

com amor, [...], do tomar a verdade em algo a ser feito e realizado, numa espécie de

agostinianismo judaico.61

Segundo John Caputo, a desconstrução pode ser entendida como um hiper-realismo,

ou seja, um realismo além ou sem realismo em que suas pretensões restam na existência e não

na idealidade. Ao passo que se movimenta no interior da racionalidade ocidental, a

desconstrução corre o risco de ser confundida com processos propriamente racionais. Como

Derrida adverte, a desconstrução não tem análise, nem crítica, tampouco é método:

Os suportes gramaticais, lingüísticos ou retóricos encontram-se, aí, associados a um

suporte ―mecanicista‖. Essa associação me pareceu muito feliz, muito felizmente

adaptada ao que eu queria, pelo menos, sugerir.62

Mais precisamente, enquanto significantes, esses termos podem aparecer em algum

texto desconstrutivista ou sobre o Desconstrucionismo, por alguma analogia. Os significados

interessam a Derrida principalmente por duas definições: primeira, ―Desorganização da

construção das palavras de uma frase‖; ou, segunda, ―Desarticular as partes de um todo.

Desconstruir uma máquina para transportá-la para outro lugar‖63

.

No esteio do mecanicismo, a análise implica um movimento de decomposição em

que a parte permanecerá oposta ao todo, mesmo que contida nele. A finalidade analítica é,

pois, encontrar o elemento simples e indecomponível. No viés dessa proposta, a

desconstrução inscreve-se no rastro e este não se efetiva a não ser na diferença. A noção do

todo sofre do vazio a ser preenchido por perspectivas particulares. Em muitos casos, as partes

não se coordenam para formar um todo, mas disputam em sua heterogeneidade a fim de

homogeneizar-se.

A crítica, nesse caso, deve ser tomada em seu sentido kantiano. Diante disso, a

Crítica da razão pura era o tribunal da razão, ou seja, onde as condições de possibilidade da

racionalidade seriam decididas e julgadas. A razão julga a razão: ―Dentro dessa perspectiva,

inscreve-se o sentido da atividade crítica, que reside no poder de decisão quanto à veracidade

de um enunciado‖64

. É preciso decidir sobre a possibilidade de conhecer ou o dever de fazer

ou a possibilidade de julgar os gostos. Em todos os casos, a questão é de distinguir sobre as

fronteiras do saber: ―A krísis é a ação ou faculdade de separar, de discernir; o litígio, o

61

CAPUTO, op. cit., p.34. 62

DERRIDA, 2005a, p. 22. 63

Ibidem., p. 22. 64

NASCIMENTO, 1999. p. 77.

29

processo; ou ainda, a decisão, o juízo, a sentença, o resultado, o desenlace‖65

. Há uma

separação entre o tudo e o nada do ideal.

A relação entre as faculdades (sensibilidade, entendimento e razão), edifica as

grandes instituições críticas, à medida que a cada Crítica é necessário rearranjar o

agenciamento entre cada uma das faculdades, estas parecem mais máquinas produtoras de

representações: a sensibilidade produz intuições; o entendimento, conceitos; e, a razão,

ideias66

. Haveria, na Crítica, o discernimento da função e da competência de cada faculdade

da razão. Antes de conhecer, é preciso instaurar a ordem e as fronteiras dessa. Tal ordem

constitui-se em oposições binárias que servem de paradigma a toda crítica: forma-conteúdo,

presença-ausência, alma-corpo, ideal-material, inteligível-ininteligível, dentro-fora, natureza-

razão etc.

O colapso da Crítica acontece no momento em que Derrida apresenta a noção de

indecidível. Postula, então, três sentidos para se pensar a indecidibilidade enquanto

antidialética, o limite do calculável e o terceiro heterogêneo à ordem da dialética e do cálculo.

Em suma, Derrida define:

A indecidibilidade é outra coisa. [...] é sempre uma oscilação determinada entre

possibilidades (por exemplo, de meaning mas também de atos). Essas possibilidades

são muito determinadas em situações estritamente definidas (por exemplo,

discursivas – sintaxes ou retórica – mas também políticas, esticas). São

pragmaticamente determinadas.67

É preciso compreender que os indecidíveis serão quase-conceitos ou conceitos sem

conceitualidade que marcam a heterogeneidade em relação à lógica das oposições instaurada

no tudo ou nada, embora esta noção dê a entender uma indeterminação, razão pela qual

Derrida esforça-se por distinguir entre os dois termos:

Digo ―indecidibilidade‖ mais que “indeterminancy”, por que me interesso mais

pelas relações de força, pelas diferenças de força, por tudo o que permite,

justamente, por uma decisão de escrita (no sentido amplo que dou a essa palavra,

que compreende também a ação política e a experiência em geral), estabilizar

determinações em situações dadas. Não existiria indecisão ou doble bind, se não

fosse entre dois pólos (semânticos, éticos, políticos) determinados, às vezes

terrivelmente necessários e sempre singulares, insubstituíveis.68

Essa tensão inaugura aquilo que, de acordo com Derrida, é o exorbitante em relação

ao método, exorbitância esta que se apresenta como uma reserva entre a natureza e a razão.

Por um lado, o suplemento é um acréscimo ou um excesso à plenitude: ―É assim que a arte, a

65

NASCIMENTO, 1999, p. 77. 66

DELEUZE, G. A filosofia crítica de Kant. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 15. 67

DERRIDA, J. Por uma ética da discussão. In: DERRIDA, J. Limited Inc. Campinas-SP: Papirus, 1991. p.

203. 68

Ibidem., p. 204.

30

tekhné, a imagem, a representação, a convenção etc., vem como suplemento da natureza e são

ricas de toda esta função de culminação‖ 69

. Por outro lado, suplementar implica uma

supressão: ―não se acrescenta senão para substituir. Intervém ou se insinua em-lugar-de: se ele

colima, é como se cumula um vazio‖70

.

A possibilidade de estabelecer uma relação entre natureza e razão perpassa a

suplementariedade. Assim, passa a pensar uma lógica aquém das oposições binárias da

complementação: a lógica do suplemento:

acrescentando-se ou substituído-se, o suplemento é exterior, fora da positividade à

qual se ajunta, estranho ao que, para ser substituído, dever ser distinto dele.

Diferentemente do complemento, afirmam os dicionários, o suplemento é uma

“adição exterior” (Robert).71

Uma proposição que ficou muito famosa e também muito polêmica evidencia a

ruptura metodológica da desconstrução: ―Não há fora-do-texto‖72

. É importante definir o

texto, assim Geoffrey Bennington ensina com rigor simplicidade que ―Texto em geral é

qualquer sistema de marcas, rastros, referenciais (não se diga referência, tem um pouco mais

de sentido que aquele). Percepção é texto‖ 73

. A partir disso, todo o aparelho da filosofia

transcendental sofreria a desconstrução.

Não há um método que estabeleça uma relação entre mundo e texto, porque pensar

em ambos se faz possível através dos rastros. Saindo de vez do mecanicismo, aquela não é um

instrumento ou ferramenta para operar sobre um texto. Não há metodologia

―desconstrutivista‖. Ao mesmo tempo, a desconstrução retarda o método e o expõe a sua

impossibilidade74

. Nesse sentido, é impossível a universalidade metódica. Do mesmo modo, a

pretensão de uma metódica deve encarar a impossibilidade para que seja responsável. Derrida

expõe sua posição:

Não basta dizer que cada ‗acontecimento‘ de desconstrução permanece singular ou,

em todo caso, o mais perto possível de qualquer coisa como um idioma e uma

assinatura. Seria preciso, também, especificar que a desconstrução não é sequer um

ato ou uma operação.75

Essa discussão pode ser agravada caso se leve em consideração aquilo que Derrida,

na coletânea de entrevista denominada Posições, indicou como a estratégia geral da

69

DERRIDA, 2006, p. 177. 70

Ibidem., p. 178. 71

Ibidem. 72

Ibidem., p. 194. 73

BENNINGTON, G. Deconstruction is not what you think. In: MCQUILLAN, M (edt.). Deconstruction - a

reader. New York-EUA: Routledge, 2001. p. 217. 74

MCQUILLAN, M. Introduction: five strategies for deconstruction. In: MCQUILLAN, M. Deconstruction - a

reader. New York-EUA: Routledge, 2001. p. 5. 75

DERRIDA, 2005a, p. 25.

31

desconstrução. Ora, concebe-se uma estratégia discursiva em duas etapas correlativas e

simultâneas: a inversão e o deslocamento. Como explica Paulo Cesar Duque-Estrada:

por uma lado aponta para uma hierarquia intrínseca a toda e qualquer dicotomia

conceitual e, conseqüentemente, para o que há de impositivo e conflitivo na

universalidade dos conceitos76

.

A lógica do suplemento atua nesse processo, solicitando as hierarquias nas

oposições.

Derrida aponta que ―Desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um

momento dado, inverter a hierarquia‖ 77

. Muito além, intensifica-se essa contestação, com

efeitos práticos até na expressão nem isso, nem aquilo. Já se poderia mostrar um traço

fortemente nietzschiano em Derrida. Diante desse primeiro aspecto, pode-se retomar a marca

do Estruturalismo, no exemplo que foi dado a respeito do registro simbólico: para além do

real ou do imaginário. A partir da inversão, pode-se entrever o segundo aspecto desse gesto

duplo ou ambíguo, qual seja, o deslocamento.

Mais recentemente, em um de seus últimos livros, e o último livro com Felix

Guattari, Deleuze demonstra sua perspectiva do que é a filosofia diante da noção geológica

dos planos de imanência78

. Sem se deter sobre isso, a filosofia cria conceitos em planos

referentes a determinados problemas. Mais interessante é que, segundo Deleuze e Guattari,

quando um filósofo critica o trabalho de outro é porque transferiu os conceitos criticados para

outro plano, isto é, o seu plano de imanência. Assim, o deslocamento é o próprio deixar

deportar da desconstrução no interior da estrutura que se desconstrói: ―transportá-la para outro

lugar‖ 79

. Dessa forma Derrida conclui:

É preciso também, por essa escrita dupla, justamente estratificada, deslocada e

deslocante, marcar o afastamento entre, de um lado, a inversão que coloca na

posição inferior aquilo que estava na posição superior, que desconstrói a genealogia

sublimemente ou idealizante da oposição em questão, e de outro a emergência

repentina de um novo ‗conceito‘, um conceito que não se deixa mais – que nunca se

deixou – compreender no regime anterior.80

A desconstrução não faz escola. Seu movimento propicia múltiplas singularidades.

Não há autor ou objeto, pois o rastro torna possível, é uma história fora dos eixos. Seu

acontecimento revela uma temporalidade descontínua e amorfa. A análise, a crítica e o

método instauram e pressupõe formas e modelos que a desconstrução, através de seus

76

DUQUE-ESTRADA, P. C. Derrida e a escritura. In: DUQUE-ESTRADA, P. C. (Org.). Às Margens: a

propósito de Derrida. São Paulo: Loyola, 2002. p. 11. 77

DERRIDA, 2001, p. 48. 78

DELEUZE, Gilles; Guattari, Félix. O que é filosofia? 2. ed. Rio de Janeiro: 34, 2004. 79

DERRIDA, op. cit., p. 25. 80

Ibidem., p. 49.

32

simulacros virulentos, não sustenta nem se concilia ou conforma. O feixe epistêmico discutido

nesse ponto parece uma escolha equivocada por tratar de um termo (espisteme) tão vinculado

à lógica daquilo que se quer desconstruir. Contudo, propositalmente, o movimento exposto

também se impõe na re-significação, ou melhor, no arrombamento de conceitos tradicionais.

Por isso, a episteme alarga-se para pensar a margem.

1.4 A genealogia derridiana: entre Nietzsche e Heidegger

É relevante traçar uma genealogia do pensamento de Derrida. Postula-se, então, a

dimensão de que seu movimento não surge no pensamento derridiano, nem se esgotou nele.

Na escritura de seu DNA, quais rastros são encontrados? Ora, por mais que se aponte o

caráter inventivo da desconstrução, sua inspiração possui uma história em outros (em outros o

quê?). Na elaboração de seus primeiros trabalhos, Derrida expõe sua filiação filosófica a fim

de compreender o descentramento metafísico pretendido:

Se quiséssemos contudo, a título de exemplo, escolher alguns ―nomes próprios‖ e

evocar os o autores dos discursos nos quais esta produção se manteve mais próxima

da sua formulação mais radical, seria sem duvida necessário citar acrítica

nietzschiana da metafísica, dos conceitos de ser e da verdade, substituídos pelos

conceitos de jogo, de interpretação e de signo (do signo sem verdade presente); a

critica freudiana da presença a si, isto é, da consciência, do sujeito, da identidade a

si, da proximidade ou da propriedade a si; e, mais radicalmente, a destruição

heideggeriana da metafísica, da onto-teologia, da determinação do ser como

presença.81

Pode-se constituir um espólio regressando até os confins da filosofia e talvez

desviando para a mística judaica. São possibilidades. Embora fique evidente a tríade que serve

de fonte para Derrida, opta-se por tratar de duas referências importantes. A fim de explicar a

semântica da palavra desconstrução, recorre-se às assinaturas de Heidegger e Nietzsche. As

obras dos dois pensadores são referências de desconstruções no pensamento filosófico. A

desconstrução é um movimento dentro da tradição filosófica, e por mais que apresente a

fraqueza da metafísica, permanece sob alguma perspectiva vinculada a essa.

Tanto a crítica nietzschiana quanto a destruição heideggeriana confrontam um

dogmatismo arraigado na tradição filosófica. O problema não é incorrer em alguma

metafísica, mas perder de vista os problemas a que ela busca responder e aqueles que ela

81

DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: DERRIDA, J.A escritura e

a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 232.

33

produz perante a existência. A decadência do pensamento se dá ao passo que se tenta

controlar e perpetuar um sentido da vida ou da existência. Por isso, o niilismo segue

simultaneamente como um sintoma e uma linha de fuga à metafísica. Em certo sentido,

chega-se a um nada para possibilitar uma ampliação do horizonte do pensamento. Assim, as

obras de Nietzsche e Heidegger travam um bom debate.

Começa-se (é preciso começar) por uma fórmula, não por metodologia; mas uma

estética formulada, posto que o DNA pode ser visto enquanto uma fórmula em dobras e redes.

Constatando o heideggerianismo francês, Luc Ferry e Alain Renaut elaboram uma equação

interessante e pertinente ao objetivo desta sessão: Derrida = Heidegger + o estilo de

Derrida82

. O escopo para tal passa por uma citação (repetição à abertura do contexto) e, a

partir de uma pergunta sobre a différance83

, a economia das forças entre Nietzsche, Freud,

caindo em Heidegger, Derrida lança a afirmação marcante:

Sim, sobretudo. Nada do que eu tento fazer teria sido possível sem a abertura

das questões heideggerianas (grifo nosso). E, antes de tudo, pois aqui nós devemos

dizer as coisas muito rapidamente, sem a atenção àquilo que Heidegger chama de

diferença ôntico-ontológico tal qual ela permanece, de uma certa maneira,

impensada pela filosofia.84

Entre tantos conceitos a serem esclarecidos, esse período grifado é a chave para a

fórmula. A possibilidade do trabalho de Derrida reside em Heidegger? Ainda, a repetição de

Heidegger produz a diferença em Derrida? Em Derrida = Heidegger + o estilo de Derrida,

por um lado é preciso dar conta da igualdade, ou de maneira mais acabada da identidade; por

outro, daquilo que se soma a Heidegger: que estilo é este? Trata-se de uma soma ou uma

adição? Essa fórmula dá o lastro para a articulação dos traços constituintes do pensamento

derridiano.

A questão inaugurada reside na tradução do termo Destruktion ou Abbau na obra de

Heidegger. No início de Ser e Tempo (§6), a investigação se desenvolve na medula do sentido

do ser no tempo. Trata-se da história do conceito de ser na inscrição da sua possibilidade no

tempo:

Nesse caso, a presença se assume no modo de ser do questionamento e da pesquisa

dos fatos historiográficos. A história fatual (Historie) ou, mais precisamente, a

82

FERRY, L; RENAUT, A. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo:

Ensaio, 1988. p. 153. 83

Trabalhar-se-á em momento oportuno esse conceito (ou quase-conceito). Trata-se de um termo cunhado por

Derrida a partir de uma aglutinação das palavras diferença (différence) e diferir (différer). Por problemas de

tradução, será mantido o termo original em francês. Segue-se, pois, a orientação do professor e tradutor Evandro

Nascimento porque é assumida a intradutibilidade do termo para o português ou para qualquer outra língua. Cf.

NASCIENTO, E. Traduzindo Derrida (uma questão de gerúndio). In: FERREIRA, Elida; OTTONI, Paulo.

Traduzir Derrida: políticas e desconstruções. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2006. p. 31-50. 84

DERRIDA, 2001, p. 16.

34

fatualidade historiográfica (Historizität) só é possível como modo de ser da presença

que questiona porque, no fundamento do seu ser, a presença se determina e constitui

pela historicidade.85

A metafísica é a história do ser, ao mesmo tempo em que propicia seu esquecimento.

Para tanto, é preciso retirar as camadas discursivas sobre o tema do ser. Heidegger só pode

dar cabo ao seu projeto do sentido do ser desvelando esses sedimentos depositados pela

tradição. Dessa forma, o filósofo da Floresta Negra fez seu trabalho arqueológico para expor o

âmago de seu problema:

Caso a questão do ser deva adquirir a transparência de sua própria história, é

necessário, então, que se abale a rigidez e o enrijecimento de uma tradição

petrificada e se removam os entulhos acumulados. Entendemos essa tarefa como a

destruição do acervo da antiga ontologia, legada pela tradição. Deve-se efetuar essa

destruição seguindo-se o fio condutor da questão do ser até chegar às experiências

originárias em que foram obtidas as primeiras determinações de ser que, desde

então, tornaram-se decisivas.86

Para explicitar sua tarefa, Heidegger tenta definir os limites do passado de sua

questão, mesmo possuindo uma faceta negativa implícita e indireta. Nesse sentido, ele lida

com a questão da margem, a instância limítrofe. Em contrapartida, o filósofo alemão esteve

mais preocupado com as reverberações desse passado sobre suas questões contemporâneas:

―sua crítica volta-se ao hoje e para os modos vigentes de se tratar a história da ontologia, quer

esses modos tenham sido impostos pela doxografia, quer pela história da cultura ou pela

história dos problemas‖87

. É bem difundido o contexto dos debates no qual Heidegger se

envolveu88

. Entre várias perspectivas, seria necessário atacar os fundamentos dogmatizados

dos adversários.

Essa agonística frente a seus contemporâneos revela a resistência ao dogmatismo da

desconstrução. A destruição aponta uma proposta para a aporia da questão do sentido do ser.

Volta-se, pois, ao que se colocou na primeira seção deste capítulo – é no limite da filosofia

que se abre a passagem para o não-filosófico. Por isso mesmo, é o trabalho de desvelar as

camadas de sentidos:

Destruição não significa ruína, mas desmontar, demolir, e pôr-de-lado – a saber, as

afirmações puramente históricas sobre a história da filosofia. Destruição significa:

abrir nosso ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos

inspira.89

85

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista- SP: Editora Universitária São

Francisco, 2008. p. 58. 86

Ibidem, p. 60. 87

Ibidem, p. 61. 88

VATTIMO, G. Introdução a Heidegger. 10. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 7-21. 89

HEIDEGGER, Martin. O que é isto - a filosofia? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos

filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 20. (Os Pensadores).

35

Em outro sentido, Abbau remete a reflexão heideggeriana sobre o habitar e o

construir. Por isso, ―enquanto não pensarmos que todo construir é em si mesmo habitar, não

poderemos nem uma só vez questionar de maneira suficiente e muito menos decidir de modo

apropriado o que o construir de construções é em seu vigor de essência‖90

. A desconstrução

irrompe no interior do discurso solicitado. Na existência humana, as construções garantem,

possibilitam a segurança do pensar. Assim, a questão do sentido do ser envolve uma

localização referencial da morada.

A proposta de tradução de Derrida assume esses sentidos enunciados por Heidegger.

Da destruição à desconstrução há um fio pertinente para a discussão da tarefa do tradutor,

lembrando que a lição de Walter Benjamin91

torna-se relevante em meio às circunstâncias,

pelo fato de que um tradutor sempre trai num certo sentido a obra que traduz. Contudo, é

acometer um retardamento dos signos que possibilitam o momento da criação. Ora, um signo

em línguas diversas tem um peso diferente. Por isso, Derrida mostra sua felicidade mais por

haver encontrado um termo que expresse suas pretensões filosóficas, ainda, além disso, o

termo será transposto para sua filosofia.

Pode-se perceber o quanto Heidegger influenciou Derrida já na proposta. Contudo,

os desdobramentos são consideráveis. Enquanto o alemão trabalha no esquecimento do ser,

Derrida lida com a remoção dos sedimentos, nesse tirar as camadas, achando o sem-fundo do

devir-rastro. Nesse caso, o que Derrida assumiu mais propriamente em Nietzsche foi a

perspectiva sobre a linguagem e a tradição filosófica como a alcachofra: tantos conceitos,

sentidos, conceitos de sentido e sentido de sentidos para tapar um sem-fundo. Talvez, não

uma falta, mas um excesso. Às vezes pouco explorada, a assinatura de Nietzsche em Derrida é

uma força na constituição da desconstrução.

Não é na demolição que Derrida encontra Nietzsche92

, mas na diferença de forças

que solicitam os discursos filosóficos. Assim, herdou o trabalho contra a dialética, a

genealogia, a transvaloração de todos os valores foi o que, na vidência de Nietzsche, seria o

papel dos filósofos do futuro93

. No entanto, deve-se entender esse filósofo do futuro na

90

HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 5. ed. Petrópolis-

RJ: Vozes; Bragança Paulista-SP: Editora Universitária São Francisco, 2008. p. 128. 91

Cf. edição americana: BENJAMIN, W. The task of the translator. In: BENJAMIN, W. Illuminations: essays

and reflectios. New York-USA: Harcourt, Brace & World, 1968. p. 69-82. 92

Nesse sentido, faz-se referência ao grande estudo de Gilles Deleuze: DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia.

Porto-PT: Rés-Editora, 2001. Esse trabalho é reverenciado por Derrida para entender as relações de força em

Nietzsche, desenvolvido na différance: DERRIDA, J. A diferença. In: DERRIDA, J. Margens da filosofia.

Campinas-SP: Papirus, 1991. p. 50. 93

Cf. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das

letras, 2005.

36

emancipação do devir. No jogo de forças, Derrida revela o movimento da diferença que

desponta uma vontade de potência.

O imprevisível, absolutamente outro, aquilo que vem sem previsão ou predicados, o

contingente e a transformação tomam a filosofia para solicitá-la, abalar suas estruturas.

Segundo Nietzsche: ―A crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de

valores‖94

. Diante disso, retoma-se o movimento há pouco falado da inversão e do

deslocamento. Não para salientar um niilismo passivo; o que se deve aprender na

desconstrução é o dionisíaco – a liberação da força e a disseminação do sentido. Por isso, o

significado de um estilo passa pelo corte que ele promove nos textos que lê.

No ensaio, O teatro da crueldade e o fechamento da representação, Derrida

avalia a importância de Antonin Artaud para ressaltar o teatro que deve criação, a arte da

diferença ou a festa como ato político que rompe com as representações de Deus, do Ser e da

Dialética: ―não é nem livro nem obra, mas uma energia e neste sentido é a única arte da

vida‖95

. Assim, o limite da representação filosófica é a vida – nada mais nietzschiano: ―O

teatro da crueldade não é uma representação.

É a própria vida no que ela tem de irrepresentável. A vida é a origem não

representável da representação96

. A desconstrução não é niilista, passiva, ela irrompe de

Dionísio. Ao contrário, O niilismo é, pois, ativo. A vida está para ser afirmada – a existência

do vivente singular na multiplicidade: ―A afirmação múltipla ou pluralista, eis a essência do

trágico‖97

.

É preciso reafirmar a fórmula Derrida = Heidegger + o estilo de Derrida. Não há

problemática nesse encadeamento. Se Ferry e Renaut pretendiam ressaltar uma

inautenticidade derridiana, este encadeamento é fabuloso. Ora, é no rastro de sua relação com

o outro, Heidegger, que será possível pensar a desconstrução. Nesse sentido, as pretensões de

autonomia são solicitadas na precariedade do rastro imotivado; sempre porvir, Derrida busca a

diferença e o heterogêneo. Não é à toa que há uma adição, ou seja, a lógica suplementar

acomete a plenitude para exceder e substituir. Ainda mais, esse + (mais) releva a diferença de

força que possibilita o desmonte de onde se habita.

Derrida considera a pretensa crítica: ―O que atacam é o que chamam de um estilo, o

qual pretendem reduzir, falando de mim, a uma engenhosidade ou uma fecundidade lexicais.

94

NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das

letras, 2005, p. 10. 95

DERRIDA, J. O teatro da crueldade e o fechamento da representação. In: A escritura e a diferença. 3. ed.

São Paulo: Perspectiva, 2005b. p. 172. 96

Ibidem., p. 152. 97

DELEUZE, 2001. p. 28.

37

[...] Apenas uma forma de escrever, em suma‖98

. Por um lado, há uma infelicidade na crítica

que pode ser explorada em sua negatividade. A relação entre os autores alemães e franceses

pode ser instituída. Entretanto, existe um problema em reduzir a extensão de uma obra a uma

analogia. Definitivamente, o raciocínio analógico é um modo de captura da diferença. Por

outro lado, no desvio sempre permitido da metáfora, o estilo se torna a diferença deslocando a

crítica para a reafirmação do pensamento derridiano.

No suplemento da fórmula, realmente, foi possível aos críticos produzir uma série de

substituições entre filósofos franceses e alemães. Heidegger pode ser substituído por

Nietzsche ou por Marx que deslocará Derrida a Foucault ou Bourdieu. Em todo caso, são

rubricas que se repetem e se agenciam. Dessa forma, suas posições podem ser reformuladas.

O estilo oferece a possibilidade do corte porque a escrita ou sua forma produzem remessas na

finitude transpassado pelo infinito dos rastros.

1.5 Desconstrução, possibilidade e justiça

Ante os aspectos apresentados ao longo deste capítulo, haveria espaço para a

desconstrução no direito? Jacques Derrida poderia prestar alguma assessoria aos juristas?

Existe algo acessório nessas questões. Parece, a uma primeira olhadela, que os frutos desse

pensamento pós-moderno trarão redenção (Aufhebung)99

a alguns juristas frustrados, ou

artifícios a outros mais cheios de perfídia.

Nem uma nem a outra (expressão recorrente nos textos derridianos). Por outro lado,

reiterando a primeira questão, o espaço do direito é constituído sobre um discurso, mesmo em

suas diferenças e contendas, permeado por fundamentos aparentemente estáveis. Os signos

característicos podem ser visualizados em uma mínima leitura dos manuais correntes,

nacionais ou estrangeiros, por exemplo, de introdução ao direito. Lei, contrato, norma,

ordenamento, decisão e jurisprudência circulam repetidamente na semiótica jurídica. Nesse

sentido, é preciso compreender em que oportunidade a desconstrução será apresentada à teoria

do direito.

98

DERRIDA, J; ROUDINESCO, E. De que manhã: diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 27. 99

A tradução de Derrida para Aufhebung foi cunhada de acordo com o vocábulo francês relève. Em ―Os fins do

homem‖, os temas da superação da metafísica e do humanismo despontam para erguer, reparar, exaltar,

dispensar, aceitar um desafio, render um guarda (relever/aufheben). Cf. DERRIDA, J. Margens da filosofia.

Campinas-SP: Papirus, 1991. p. 149-177.

38

Convidado o filósofo a palestrar na Benjamin N. Cardozo School of Law, foi-lhe

imposto o seguinte tema: Desconstrução e a possibilidade da justiça; interroga Derrida: ―será

que a desconstrução assegura, permite, autoriza a possibilidade da justiça?‖100

. Figurar

simplesmente um sim ou um não para essa pergunta pode ser cair no próprio raciocínio

jurídico: é lícito (legítimo) ou ilícito (ilegítimo) relacionar desconstrução e justiça? Dá-se um

passo atrás a essa pergunta, pois os juízos e regras jurídicas podem desembocar em um círculo

vicioso se, assim, utilizá-los como critério para este estudo.

Derrida desvia-se das escolhas entre o sim ou não, é ou não é. Os conceitos, em

geral, são produzidos nessa lógica opositiva. Como o processo de transvaloração da carga

conceitual, a desconstrução inventa ou reinventa os termos através do suplemento:

É preciso transformar os conceitos, construir uma outra ―lógica‖, uma outra ―teoria

geral‖ ou um discurso que, mais potente que essa lógica, explique-se com ela e

reinscreva sua possibilidade. É isso que tento fazer. Tento mostrar que a pureza ideal

das distinções propostas [...] é não somente inacessível mas obrigaria, tal como é

praticada, a excluir certos traços essenciais do que ela pretende explicar ou descrever

– que desde então não pode integrar à ―teoria geral‖. Toda produção conceitual

exige, certamente, uma idealização.101

É preciso entender a desconstrução enquanto um movimento teórico que assume o

rastro, a diferença, a singularidade e o devir de sua própria teoria e idealidade. À medida que

aspas são postas sobre a teoria, suas pretensões são solicitadas pela contingência. Há uma

experiência do impossível que torna possível a desconstrução. Logo, pensar sobre a

possibilidade da justiça a partir das posições derridianas impõe questionar sobre a

possibilidade mesma:

Ora a experiência do ―talvez‖ seria, de uma só vez, a do possível e a do impossível,

do possível como impossível. Se apenas acontece (arrive) o que já é possível,

portanto, antecipável e esperado, isso, não faz um acontecimento. O acontecimento

só é possível se vindo do impossível. Ele acontece como a vinda do impossível, ali

onde um ―talvez‖ nos priva de toda segurança e deixa o porvir ao porvir.102

Cada texto que se escreve sobre a desconstrução, ou mesmo desconstruindo, é uma

singularidade, visto que pesa a diferença. Por isso, Derrida recorre ao contexto: ―A palavra

‗desconstrução‘, como qualquer outra, não extrai seu valor senão de sua inscrição em uma

cadeia de substituições possíveis‖103

. A série de indecidíveis (desconstrução-escritura-

différance-margem-suplemento-etc) conjuga o acontecimento singular de cada texto

100

DERRIDA, Jacques. Força de lei: O ―fundamento místico da autoridade‖. Porto-Portugal: Campo das Letras,

2003a. p. 10. 101

DERRIDA, J. Em direção a uma ética da discussão. In: DERRIDA, 1991a, p. 158. 102

DERRIDA, J. Como se fosse possível, "Within such limits". In: DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. São

Paulo: Estação Liberdade, 2004b. p. 257-290. 103

DERRIDA, 2005a, p. 27.

39

derridiano. A cada indecidível e texto tecido, abre-se uma desconstrução. A cada estrutura

desconstruída, impulsiona-se não o controle de um sentido mais arrojado, mas a multiplicação

dos sentidos.

Dar conta de tudo é uma impossibilidade, tanto quanto dizer nada – seria a condição

possível de se pensar a desconstrução. Na verdade, dizer algo sobre ela é um fazer

contingente. Contingente porque não se abarca a bibliografia, não se tem memória o

suficiente, não se tem palavras suficientes. Bem além, a cada obra derridiana lida, uma

desconstrução se desvela.

Derrida instiga em sua obra a dimensão do que chega sem ser esperado ou

programado. Antes de mais nada, a desconstrução é um acontecimento em sua singularidade.

Por isso mesmo, aquilo que permaneceu em deslocamento foram possibilidades. Ora, no

entanto, desconstrução e justiça possuem suas construções filosóficas e tradições. Entretanto,

a possibilidade oferece condições para solicitação dos discursos, como ensina Derrida:

―Possibilitará (grifo) ela (a desconstrução) a justiça ou um discurso consequente sobre a

justiça e sobre as condições de possibilidade da justiça?‖104

.

A questão passa, então, por um conceito que ao mesmo tempo se define dentro e fora

do direito, isto é, a justiça. Ela ocupa um espaço na teoria do direito em que as expectativas se

reservam. Não basta considerá-la um adjetivo para a estrutura jurídica. Derrida pensou a

relação entre o direito e a justiça para além da escatologia ou teleologia. Por isso, a

desconstrução apresentará outro modo para pensar a justiça em relação ao direito. Não por

oposição ou complemento, mas na medida em que pode irromper uma diferença de

perspectiva e de transformação na construção metafísica do direito.

Como a cada obra de Derrida se aprende mais uma desconstrução, Força de lei: o

fundamento místico da autoridade tem uma preocupação em expor a estrutura jurídica em

sua performatividade, ou seja, naquilo que não é justo ou injusto, verdadeiro ou falso, mas

que possibilita o julgamento do julgamento. Destarte, nessa seção, intitulou-se a maneira de

―Assinatura acontecimento contexto‖: não há vírgulas ou preposições que possam oferecer

uma ordem, senão o agenciamento aleatório entre os termos. Nesse caso, ―Desconstrução

possibilidade justiça‖ enfatiza multiplicidade de sentidos em remessa no texto Força de lei.

Quantos caminhos, então, favorecem a lançar o dizer da desconstrução sobre o dito

do direito? Que consequências serão postuladas à justiça? A questão assim formulada poderia

encobrir os riscos da argumentação prometida. A apresentação desemboca numa troca

104

DERRIDA, 2005a, p. 10.

40

fictícia? Tudo não passaria de um jogo de palavras, um mero trocadilho filosófico bastante

irônico. Na verdade, o problema imposto aponta para um sofrimento de se colocar a questão

da desconstrução e da justiça. Um famoso amigo de Derrida, Louis Althusser, instiga o

suplício dos juristas chamando-os de maníacos das regras e dos casos de aplicação105

. Derrida,

então, provoca:

O sofrimento da desconstrução, aquele de que ela sofre ou aquele de que sofrem

todos aqueles que ela faz sofrer, é talvez a ausência de regras, de norma e de critério

seguro para distinguir de modo não equívoco entre o direito e a justiça. Trata-se aqui

destes conceitos (normativos ou não) de norma, de regra ou de critério. Trata-se de

julgar aquilo que permite julgar, aquilo de que se autoriza o juízo.106

Diante de tal provocação, a desconstrução revela em si, se em si houver, um

acontecimento definitivo para se chegar ao limite, isto é, não se pode esperar que a

desconstrução esteja protegida de si mesma. Ao passo que a desconstrução acontece, métodos

e metas entram em colapso: os grandes discursos são expostos em seu interior até o ponto de

serem tão contingentes ou exteriores a si mesmos, quanto desconstrutíveis. O programa ou

esquema tenta tornar previsível o acontecimento; conforma-se na harmonia metódica ou

sínteses totalizantes. Contudo, conduz-se um desvio, a justiça perante a desconstrução, e ao

lado dela deverá ser revelada como possibilidade de um acontecimento-que-chega-ainda-

por-vir, mesmo assim, impossível: ―A possibilitação desse possível impossível deve

continuar sendo, de uma só vez, tão indecidível e, portanto, tão decisiva quanto o porvir

mesmo‖107

A desconstrução não se opera, não tem metodologia qualquer. Contudo, ela se

manifesta à força no interior do jogo da metafísica ocidental, possibilitando uma experiência

outra, limítrofe – a filosofia vai de encontro a não-filosofia, isto é, a margem que promove um

arrombamento do próprio discurso filosófico, pois solicita o dentro e o fora desse discurso.

No primeiro ensaio de Margens da filosofia, o pensador postula:

Excede e faz quebrar: por um lado, obriga a ter em conta na sua margem mais e

menos do que se acredita dizer ou ler, desdobramento que se liga à estrutura da

marca (é a mesma palavra que marcha, como limite, e que margeia); por outro lado,

luxa o corpo mesmo dos enunciados na sua pretensão à rigidez unívoca ou à

polissemia regulada. Válvula aberta a um duplo entendimento, não formando mais

um único sistema.108

105

ALTHUSSER, 1999. p. 84. 106

Ibidem., p. 10. 107

DERRIDA, Jacques. Políticas de la amistad. Madrid: Vidarte, 1998. p. 86. 108

DERRIDA, J. Timpanizar – a filosofia. In: DERRIDA, J. Margens da filosofia. Campinas-SP: Papirus,

1991b. p. 26.

41

O evento dá-se na ruptura com os ditames logocêntricos. Sem fazer alusão direta, os

grandes projetos políticos e os grandes discursos sobre justiça restam cristalizados, em certo

sentido. Embora não se faça referência a um ou outro nesta dissertação para lhes negar que

para solicitá-los – também uma questão de herança – naquilo que guardam como texto,

matéria a interpretar. Há um logocentrismo na teoria e filosofia do direito, no sentido de que a

produção do direito constitui representações como o Estado, a norma que tenta subsumir às

singularidades da vida a sua economia. O discurso jurídico faz circular uma dominação

através de normas ou instituições sobre a crença de assegurar a vida em todos os seus

aspectos. A justiça, assim, não seria mais que uma representação na captura da vida.

É relevante indagar sobre a metonímia (ou metáfora) que sustenta a fusão entre

justiça e direito em todos os sentidos do campo jurídico. Assim, Derrida prescreve num de

seus documentários biográficos: ―não naturalizar o que não é natural; não assumir que o que é

condicionado por história, instituição ou sociedade é natural‖109

. Pode-se entrever um escopo

para uma crítica a ideologia jurídica, seja ela jusnaturalista, seja positivista.

A possibilidade de exceder está em convocar espectros. Estende-se sobre uma

tradição teórica, sobre a justiça. Se houvesse espaço para tanto, percorrer-se-ia de Platão a

Derrida, saltar-se-ia sobre seus planos, não para unificá-los, mas, à medida que se envereda no

relevo de seus legados, para descobrir uma vida a mais ou um mais de vida. Talvez, o tema da

possibilidade da justiça chegue a Derrida pela exigência das assinaturas que lhe antecederam.

Mais cedo ou mais tarde, a questão da justiça chegaria e, contudo, sempre esteve presente

obliqua ou retardadamente. Não seria possível a um filósofo não fazer justiça à Justiça.

109

DERRIDA. Director: Kirby Dicky e Amy Ziering Kofman. 2002.

42

2 PERFORMATIVIDADE: UMA ANALÍTICA DERRIDIANA

PARA O DISCURSO JURÍDICO

2.1 Uma proposta analítica da linguagem: teoria dos atos de fala (speech acts) de J. L.

Austin

Desde o ensaio Assinatura acontecimento contexto110

e Limited Inc. 111

, Derrida

recepcionou a teoria dos atos de fala (speech acts) de John L. Austin.112

Ao longo de diversas

referências e análises sobre essa teoria113

, como aponta Joseph Hillis Miller114

, Derrida renova

sua discussão, apropriando-se e recriando seus termos para uma leitura dos textos éticos e

políticos em geral. Em Força de lei, o filósofo recorre à performatividade dos atos de fala a

fim de elaborar uma análise sobre a linguagem jurídica.

Detido principalmente sobre as expressões to enforce the la ou the enforcebility of

law e to address, o direito se perfaz sobre atos performativos. Assim, faz-se necessário um

primeiro passo para compreender essa teoria implicada na desconstrução. Esse recurso

analítico para Derrida permite investigar os discursos jurídico, político e ético em sua

enunciação e lógica, a partir da construção de referenciais ideais. Embora já se possa perceber

que a idealidade não é estática em Derrida, é preciso perceber esses atos de linguagem não

sobre uma lógica opositiva entre o ideal e o material. Há, na desconstrução, uma

transitividade suplementar entre ideal e material: no seu limite, um virá a ser o outro sem

cessar.

A partir do campo investigações da linguagem, aberto pela segunda fase de Ludwig

Wittgenstein, John L. Austin constrói sua filosofia analítica sobre as possibilidades dos jogos

de linguagem e na produção do sentido através do uso. A análise pragmática wittgensteiniana

permite lidar com a diversidade de discursos constituídos em uma comunidade. Dessa forma,

Wittgenstein dimensiona as ações da linguagem em relação à vida em seus modos: ―A

expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de que falar uma língua é uma parte de

110

DERRIDA, 1991b, p. 349-373. 111

DERRIDA, 1991a. 112

AUSTIN, J.L. How to do things with words. 2. ed. Oxford-RU: Oxford University Press, 1975. 113

Cf. Otobiografias, Psique: a invenção do outro. (quem é o autor?) 114

MILLER, J.H. Speech acts in literature. Stanford-California-USA: Stanford University Press, 2001. p. 63.

43

uma actividade ou de uma forma de vida‖ 115

. Em contrapartida, os jogos de linguagem

deixam um campo de investigação amplo, na medida em que a linguagem torna-se uma

imanência múltipla e desnaturada, pois, ao mesmo tempo em que é reconhecida como

instância elementar (ou originária) de formação do humano, ela consiste em uma diversidade

de instituições116

. Por isso, Lyotard define os jogos de linguagem como o método alastrado no

pós-modernismo117

.

Este paradigma está constituído por uma dimensão conflituosa da relação humana.

Os jogos se instituem em contendas dentro da comunidade: ―é que falar é combater, no

sentido de jogar, e que os atos de linguagem provêm de uma agonística geral‖118

. A

confrontação dos interesses comunitários produz uma multiplicidade de jogos na qual se

conforma para que se possibilite a própria comunidade. Não apenas os códigos e as

gramáticas, mas o que eles representam e definem enquanto estrutura comum do combate. Há

uma circularidade entre o jogo e a comunidade que explica sua condição de imanência da

linguagem em relação às formas de vida nela inserida:

O conceito de jogo da linguagem pretende acentuar que, nos diferentes contextos,

seguem-se diferentes regras, podendo-se, a partir daí, determinar o sentido das

expressões lingüísticas. Ora, se assim é, então a Semântica só atinge sua finalidade à

Pragmática, pois seu problema central, o sentido das palavras e frases, só pode ser

resolvido pela explicação dos contextos pragmáticos.119

A partir do paradigma dos jogos de linguagem, John Austin defende uma posição

analítica-pragmática à medida que propõe um elemento referencial de investigação da

linguagem em sua faceta usual. Assim, os atos de fala tornam-se dispositivos de análise da

linguagem. É preciso identificá-los e submetê-los a uma classificação:

Falando geralmente, é sempre necessário que as circunstâncias nas quais as palavras

são expressas devem ser de algum modo, ou modos, apropriada, e é comumente

bastante necessário que o falante em si mesmo e a outra pessoa devem também

realizar (perform) certas outras ações, quer ações ‗fisicas‘ quer ‗mentais‘ ou ainda

atos de exprimir novas palavras.120

Se os jogos dispõem de um campo de ação para o linguista, Austin pretende construir

as formas de ação dentro desses campos. Contudo, diante da pluralidade suscitada pelos jogos

de linguagem, a ação conjuga uma proporcional multiplicidade de forças que a movimenta.

115

WITTGENSTEIN, L. Tratado lógico-filosófico e Investigações filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2008. p. 189. 116

OLIVEIRA, Manfredo Araujo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2. ed.

São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 137-147. 117

LYOTARD, 2004, p. 15-18. 118

Ibidem, p. 17. 119

OLIVEIRA, op. cit., p. 139. 120

AUSTIN, 1975, p. 8.

44

John Austin entende a constituição dessa imanência do jogo, efetivando-se em forças

que emergem da linguagem. Não é à toa que o critério definitivo para os atos de fala reside na

fortaleza que os sustenta. Dessa forma, não há a preocupação com a veracidade ou

inveracidade, com a verdade ou a falsidade do ato. Ao contrário, o ato se erige na força, logo,

a sua intensidade determina a posição em referência ao jogo. Por isso, o uso manifesta uma

força estruturante que se posiciona frente a um contexto de forças dentro do jogo. O sentido,

pois, é esse efeito de força.

Para delimitar os atos, Austin estabelece uma distinção fundamental. Os atos de fala

são classificados em constativos ou performativos. Essa dicotomia se assenta numa

convenção instituída previamente. Por um lado, quando se expressa uma determinada

situação, enuncia-se uma descrição do acontecido. Por exemplo, ―uma pedra caiu‖. Sendo

assim, pode-se dizer também que ―João matou Marcelo‖. Em ambas as proposições, é

definida uma situação determinada. Então, o estímulo à percepção pode gerar um enunciado

que apenas relate os elementos que constituíram o fato ou fenômeno – a verdade como

veritas. De outra monta, a própria enunciação pode efetivar uma ação. No instante em que,

e.g, João disse a Marcelo que iria matá-lo, ele realizou um ato de promessa.

O performativo institui uma forma de jogo em que a ação se manifesta na própria

enunciação. Daí, dizer é fazer (to perform): ―O nome é derivado, é claro, de agir (perform), o

verbo usual com o substantivo ação indica que a emissão da expressão é a performance

(performing) de uma ação – não é normalmente pensado como apenas dizer algo‖ 121

. Dessa

forma, a linguagem expõe sua faceta pragmática. How to do things with words é a própria

tentativa de interpretar a linguagem em sua dimensão ativa. Por isso, a força conduz ao

movimento que institui a linguagem. Se há ação, logo, reside uma força ou um jogo de forças,

isto é, um contexto sobre outro contexto.

Austin tipificou as forças que constituem um ato performativo para poder controlá-

las. Pensava, então, na seriedade de sua teoria para manter uma definição adequada. Passa a

ser condição de um ato esse arranjo exato das forças. Desse modo, em um ato há uma

multiplicidade de forças que podem ser denominadas como locucionária, ilocucionária e

perlocucionária. Essa multiplicidade, segundo Hillis Miller, produz uma catástrofe para a

tentativa taxonômica dos performativos: ―O projeto desfia-se num crescente inimaginável

complexidade, a complexidade do uso cotidiano na linguagem ordinária‖ 122

. O próprio

Austin reconhece a infelicidade (infelicity) comprometedora de sua teoria. Na tentativa de

121

AUSTIN, 1975. p. 6. 122

MILLER, 2001. p. 13.

45

constatar (to describe) os atos e suas forças e distingui-los, ele passa a agir (perform) para

conter sua proliferação.

É possível explicar cada uma dessas funções, ao passo que se entende o

agenciamento delas no ato performativo. Primeiro, a locucionária sintetiza a totalidade da

ação linguística. Logo, o uso da linguagem realiza a inteireza do ato, a força de uma só vez. A

locução possui elementos que poderiam ser chamados de fenomênicos porque dispõem da

possibilidade de uma experiência da linguagem. O refinamento proposto por Austin

condiciona o ato locucionário a outros tipos atos:

O ato fonético é meramente uma ato de emitir certos ruídos. O ato fático é a

expressão de certos vocábulos ou palavras, de outro modo, ruídos de certos tipos,

pertencendo a e pertencente a, um certo vocabulário, conformando e conformado a

uma certa gramática. O ato rético é a performance de um ato de uso daqueles

vocábulos com um mais ou menos certo sentido e referente definido.123

Esta sequência de atos internos à locução tenta demonstrar uma possível experiência

da linguagem. É a forma como Giorgio Agamben, a partir de Walter Benjamin, tenta definir a

experiência transcendental da linguagem, isto é, ―uma experiência que se sustém somente na

linguagem, um experimentum linguae no sentido próprio do termo, em que aquilo de que se

tem experiência é a própria língua‖124

. Como o ato de locução encontra uma inteligibilidade

na imanência da linguagem, Austin persegue o ponto em que essa cadeia fonético-fático-

rético articula a possibilidade de uma cientificidade da linguística: o som seria circunscrito em

quantidade e qualidade para construir uma relação e um efeito entre si. Por outro lado, essa

experiência remete a outro código taxonômico. Assim, Austin cria uma rede que compromete

suas elaborações mais sérias.

Em seguida, denomina-se outra dicotomia. Há a função ilocucionária, atrelada a

locução. A própria articulação rética da locução promove uma força ilocucionária – informa-

se um juízo na ação, ou seja, é o ponto em que algum valor é transposto no ato. Fazer,

exprimir, apelar, ameaçar e prometer são ações contextualizadas e assumidas enquanto

valores: ―Como o ato ilocucionário não é, em muitos casos, explícito, sua força só pode ser

explicitada por meio da consideração de todo o contexto‖125

. Por exemplo, para perceber a

força desse ato numa sentença judicial, é preciso contextualizar o veredito do juiz em relação

a todo o sistema que ele movimenta (normas, servidores públicos, prédios e instalações, a toga

etc.); todo o entorno força a consideração de tal decisão.

123

AUSTIN, 1975. p. 95. 124

AGAMBEN, 2005. p. 11. 125

OLIVEIRA, 2001, p. 159.

46

Por outro lado, a força desses atos se efetiva na medida em que aquele que acolhe os

enunciados é afetado por isso: ―Dizer algo produzirá comumente, e ainda normalmente, certos

efeitos consequenciais sobre sentimentos, pensamentos ou ações da audiência, ou do falante

ou da outra pessoa‖126

. Determina-se, então, a força perlocucionária à capacidade de afetação

frente ao outro através dos enunciados proferidos. Esse é o primeiro efeito retórico do uso da

linguagem. Toda obra escrita, da arte a ciência, pretende produzir essa função.

Um ato apenas carrega consigo uma pluralidade de forças. No caso de João enunciar

seu desejo de matar Marcelo seria preciso analisar o ato de promessa em três aspectos que se

implicam. Houve uma performance: a totalidade do ato de promessa ou ameaça, por assim

dizer, precisou de um contexto de relações, uma proximidade entre os agentes. Nesse ponto, a

morte surge como um valor a ser consumado pela ação de matar, isto é, interferir em outro

valor, a vida. Portanto, a função ilocucionária se reveste dos valores mencionados. A

possibilidade de que Marcelo venha a sofrer pelo temor de sua morte, alimentando suas

pulsões e a imaginação, circunscrevem a força perlocucionária. Dessa forma, assumindo o

contexto e os afetos, pode-se delimitar o ato locucionário da ameaça.

Em um ato performativo, existem forças que constituem atos internos a ele. Austin

postula os atos ou as forças ou as funções da performatividade, ou seja, há uma zona de

indistinção entre esses termos. Suas classificações se proliferam sem resultar em algo seguro,

porém não menos sério. Em contrapartida ao projeto de Austin, por mais que haja a tentativa

de manter séria a pesquisa, é preciso compreender como Derrida propôs uma teoria dos atos

de fala que postula lidar com a exceção das singularidades. Será o próximo passo

compreender os desdobramentos derridianos para a performatividade.

2.2 Performatividade e iterabilidade: a différance como perspectiva de análise em

Derrida

Derrida aborda os atos de fala (speech acts) através das exceções parasitárias que

Austin tentou excluir para garantir a pretensa seriedade de sua teoria. Nas classificações

construídas pelo linguista inglês, o filósofo francês constrói uma sequência de inversões e

126

AUSTIN, 1975. p. 101.

47

deslocamentos para flexibilizar os conceitos e enfatizar o jogo de diferenças que tece a teoria

dos atos de fala. Para tanto, Derrida aciona no interior dos atos a sua capacidade de iteração.

A iterabilidade se faz possível no sistema da língua, como proposto por Saussure, na

medida em que um signo não é definido por sua identidade, mas pela diferença em que se

estabelece entre outros signos:

Uma língua é, assim, concebida como um sistema de diferenças e isso leva ao

desenvolvimento de distinções nas quais o estruturalismo e a semiótica se têm fiado:

entre a língua como um sistema de diferenças (langue) e os eventos de fala que esse

sistema possibilita (parole), entre o estudo da língua como um sistema em qualquer

dado momento (sincrônico) e o estudo das correlações entre os elementos de

diferentes períodos históricos (diacrônico), entre dois tipos de diferenças dentro do

sistema, relações sintagmáticas e paradigmáticas, e entre os dois componentes do

signo, significante e o significado.127

A diferença emerge uma vez constituído o pensamento sobre a linguagem. A

possibilidade de representação perde potência em relação ao processo dinâmico que institui a

remessa de signos no jogo. Pela diferença, o signo não suscita um valor estático ou um

instante perpétuo e contínuo. Ao contrário, uma dinâmica diferida permite a relação entre o

significante e o significado:

Numa língua, no sistema da língua, não há senão diferenças. Uma operação

taxonômica pode pois fazer delas o inventário sistemático, estatístico e

classificatório. Mas, por um lado, essas diferenças jogam: na língua, na fala e nas

trocas entre a língua e a fala. Por outro lado, as diferenças são, elas próprias, efeitos.

Não caíram do céu inteiramente prontas; estão tão pouco inscritas num topos noetos

como prescritas na cera do cérebro.128

Esta não se dá senão num deslocamento de espaço e tempo. Isto é, a interpretação de

um signo nunca é contemporânea de sua apresentação: ―este princípio da diferença como

condição da significação afeta a totalidade do signo, isto é, simultaneamente a face do

significado e a face do significante‖129

. Ao ler um texto, por exemplo, nem se apreende seu

sentido de imediato, nem são saturadas as possibilidades de sua significação. Nunca um

sentido, mas mais de um. Assim, a diferença constitui-se num movimento em que sua

experiência perpassa tempo e espaço. Um pelo outro: ―Se a palavra ‗história‘ não comportasse

em si o motivo de uma repressão final da diferença podem ser, à partida e na sua totalidade,

‗históricas‖130

.

127

CULLER, 1997. p. 114. 128

DERRIDA, J. A diferença. In: DERRIDA, J. Margens da filosofia. Campinas-SP: Papirus, 1991. p. 42-43. 129

Ibidem, p. 42. 130

Ibidem, p. 43.

48

Surge, então, a différance enquanto um movimento em que ora significante se torna o

significado, ora o inverso porque, ao mesmo tempo, um é possível pelo outro. Logo, este

neologismo constitui uma ação que possibilita uma ―história‖ da diferença:

O que o motivo da différance tem de universalizável em vista das diferenças é que

ele permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de

limites: quer se trate de limites culturais, nacionais lingüísticos ou mesmo humanos.

Existe a différance desde que exista traço vivo, uma relação vida/morte ou

presença/ausência.131

O sentido é o produto de um espaçamento e temporalização dos elementos de um

signo. Desse modo, não se pode controlar a univocidade do sentido, senão se der conta de que

sua produção persiste sempre diferida e deslocada da experiência presente ou da idealização

substancial. Como este controle está constantemente se defasando, não há senão múltiplos

sentidos, na medida em que a cada lugar, um novo referencial; a cada tempo, uma outra

duração.

A différance possibilita uma relação de um espaço que vem a ser tempo ou um tempo

que se faz espaço, sem aglutinar um no outro: ―alude a essa alternância indecidivel e não-

sintética entre as perspectivas da estrutura e do evento‖132

. Na presença do significante, há a

ausência do significado. Assim, essa presença possui um espectro que a reenvia ao

significado. A comunicação, pois, é precipitada não por ruídos, mas pela possibilidade de ser

uma mera transmissão de mensagens entre o emissor e o receptor.

Solicitando a comunicação, está o exemplo da escrita que mantém uma relação entre

o finito e o infinito da proposta apresentada. Essa tensão pertinente a escrita se dá numa

perspectiva em que a textura tem seus limites no vestígio dos traços impressos, porém tais

marcas podem ser citadas, deslocadas de sua inscrição originária para habitar outro contexto,

logo, estabelecer novos agenciamentos e produzir outros sentidos. A partir desse jogo de

diferenças, a iterabilidade se manifesta na legibilidade que proporciona. Um signo só pode ser

apreendido se for passível de repetição: o texto vem a ser para si de novo.

Hillis Miller propõe um efeito dominó causado por Derrida sobre os atos de fala133

.

Cada eixo que sustentava a teoria de Austin cai. A fala, a subjetividade dos agentes, a

intecionalidade e o sentido sofrem o desvio de força. Sua função não reside em firmar a

seriedade da teoria. Ao contrário, a performatividade passa a possibilitar o movimento dessas

categorias. Seu agenciamento torna-se possível na iterabilidade. Destarte, essa repetição se

manifesta sobre contextos, sempre passíveis de transformações.

131

DERRIDA, J; ROUDINESCO, E. De que manhã: diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 33. 132

CULLER, 1997, p. 112. 133

MILLER, 2001, p. 86.

49

A escrita subverte a necessidade da presença dos sujeitos numa determinada

comunicação. Ela rompe a estrutura do espaço e o movimento do tempo nas consciências. A

morte do dito autor, por exemplo, Derrida, não impossibilita seu estudo:

Escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie de máquina por sua vez

produtiva, que minha desaparição futura não impedirá de funcionar e de dar, de se

dar a ler e a reescrever. [...] Para que um escrito seja um escrito, é necessário que

continue a ―agir‖ e a ser legível mesmo se o que chama o autor do escrito não

responde já pelo que escreveu, pelo que parece ter assinado, quer seja

provisoriamente ausente, quer esteja morto ou que em geral não tenha mantido a sua

intenção ou atenção absolutamente atual e presente, a plenitude do seu querer-dizer,

mesmo daquilo que parece ser escrito ―em seu nome‖.134

A ausência de Derrida obseda o texto na sua rubrica, porém o deslocamento do texto

da França ao Brasil não impede sua recepção por estudantes e leitores, ao passo que seu texto

se renova a cada leitura ou citação ou tradução, seu pensamento segue da finitude da brochura

para o infinito da repetição. Por isso, Derrida ensinará sob a tutela freudiana que a repetição é

uma proteção da vida contra a morte135

. Nesse sentido, Derrida não segue em sua

subjetividade, mas marca referenciando sua textura.

A escrita imprime-se na exterioridade dos rastros. Há, pois, um espectro que veicula

o jogo do signo à escrita. Até o momento, a teoria de Austin lidava com uma dimensão

fonética da linguagem. Seria a fala a possibilidade de estabelecer a comunicação entre

consciências presentes. Como uma temática recorrente a Derrida, em seus textos iniciais, a

escrita, desde Platão até Saussure e seus contemporâneos, encontrava-se solapada em sua

relação com a fala, pois sua inscrição persistia sem um deus-pai-autoridade para mantê-la

viva: ―A escritura não terá valor em si mesma, a escritura só terá valor se e na medida em que

deus-o-rei a estime‖136

.

A escrita é órfã de sua legitimidade, pois o rastro das diferenças é an-árquico.

Entretanto, constitui seu perigo: se não houver um pai para determinar sua interpretação, a

escrita disseminará seu valor, isto é, existe uma condição anômala da escrita. Sua iterabilidade

possibilita a manipulação do texto, ou seja, os recortes e enxertos, e.g, alteram a espacialidade

das marcas e fragmentam a intenção. Contudo, ao mesmo tempo, fazem sobrevivê-la. Na

repetição, revela-se um deslocamento das leis que constituem o texto tornando-se vida.

Não há uma regra presente de sua composição: ―A lei e a regra não se abrigam no

inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se

134

DERRIDA, J. Assinatura acontecimento contexto. In: DERRIDA, 1991b. p. 357. 135

DERRIDA, J. Freud e a cena da escritura. In: DERRIDA, J. A escritura e a diferença. 3. ed. São Paulo:

Perspectiva, 2005b. p. 179-227. 136

DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005c. p. 22.

50

possa nomear rigorosamente uma percepção‖ 137

. Mais ainda, na iterabilidade inexiste uma lei

à escrita:

Isso implica que não existe um código – organon de iterabilidade – que seja

estruturalmente secreto. A possibilidade de repetir e, portanto, identificar as marcas

está implícita em qualquer código, fazendo deste uma grelha comunicável,

transmissível, decifrável, iterável por um terceiro, depois por qualquer utente

possível em geral. [...] Conseqüência talvez paradoxal do recurso que neste

momento faço à iteração e ao código: a disrupção, em última análise, da autoridade

do código como sistema finito de regras; a destruição radical, no mesmo lance, de

todo o contexto como protocolo de código.138

A partir dessas precipitações com relação à iterabilidade, principalmente na escrita,

Derrida promove uma mudança na teoria dos atos de fala. Ao suscitar a noção de iteração na

performatividade, ele empreende uma interpretação nietzschiana aos atos, desdobrando o

trabalho da diferença de força no uso da linguagem. Dessa forma, a primeira inversão

realizada na teoria é quebrar a dicotomia entre constativo e performativo. Austin elabora uma

distinção, tentando controlar suas fronteiras por oposição. Ao revés, Derrida pensa essa

distinção por uma lógica do suplemento.

Na obra Assinatura acontecimento e contexto, o performativo suplementa o

constativo, pois esse seria um caso particular de performatividade. Quando um cientista

descreve um fenômeno, precisa se sedimentar sobre uma gramática específica de sua ciência.

A constatação do fato se sustenta em uma promessa ou compromisso em relação a este código

científico. Há um dever da descrição contextualizada. Logo, uma teoria fracassará, ou não, à

medida que se adeque ao contexto de sua legitimação. Por trás de todo constativo, há um

performativo legitimador.

Na diferença de forças performativas (locuconárias, ilocucionárias,

perlocucionárias), o conceito de contexto sofre uma mudança a partir das linhas de fuga da

iterabilidade. Esta possibilita o desenlace da trama vertendo uma reorganização dos rastros e

dos referentes. Desse modo, a iteração desconstrói o contexto sendo indesconstrutível, pois a

repetição age de uma só vez para si não permitindo, então, a saturação do contexto:

A pretensa reconstituição de um contexto permanece sempre uma operação

performativa e não puramente teórica. Para retornar à sua fórmula, ―o próprio

projeto de tentar fixar o contexto dos enunciados‖ talvez não seja ―algo

politicamente suspeito‖ certamente, mas não pode ser mais algo de apolítico ou

politicamente neutro. E a análise de da dimensão política de toda determinação

contextual nunca é um gesto puramente teórico. É sempre uma avaliação política,

mesmo que o código dessa avaliação seja sobredeterminado, rebelde às

137

DERRIDA, 2005c, p. 7. 138

DERRIDA, J. Assinatura acontecimento contexto. In: DERRIDA, 1991a, p. 365.

51

classificações (por exemplo, direita/esquerda) e por vir – prometido – mais que

dado.139

Se cada texto remete a um contexto em iteração, disseminam-se os sentidos na

relação entre força e diferença. A disseminação, pois, significa a ejaculação seminal sem um

retorno originário: ―Uma vez que não existe mais o sentido essencial resta apenas acrescentar

mais uma marca sobre marcas preexistentes, re-marca‖140

. Mais ainda, constitui o trabalho da

diferença em semear interpretações sobre interpretações, textos sobre textos, realidades sobre

realidades etc. No jogo sexual do sentido, como assegurar uma interpretação? Como avaliar a

avaliação de um contexto sobre outro? Derrida chama atenção à política em torno da teoria

dos atos de fala que se promove em direção ao controle do discurso num contexto social.

A desconstrução (ou a transvaloração) da teoria dos atos de fala propicia um debate

árduo e profícuo entre John Searle, herdeiro autorizado e continuador de John Austin, e

Derrida, o profanador da intenção austiniana. Dentre os pontos problematizados, interessa a

questão de uma avaliação política do discurso teórico dos atos de fala. Segundo Searle, como

garantir as intenções autorais de Austin contra a violação derridiana? Na verdade, como

preservar a intencionalidade que sustentava a teoria antes de ser suplementada pela

iterabilidade? Para tanto, as convenções permitem vislumbrar um controle pragmático dos

discursos:

Há os gramáticos, lingüistas, juristas ―teóricos‖, que dizem, descrevem, explicam a

norma, sem requerer sua aplicação, pelo menos a aplicação imediata, pela força

(física ou simbólica). Outras funções em fazer respeitar a lei e dispor de uma força

considerada legítima para tanto. Esses dois tipos de função e essas duas maneiras de

―fixar‖ as regras e também, para retomar sua expressão, ―fixar‖ o ―contexto dos

enunciados‖ podem associar o teórico do direito, o legislador (o inventor, ou o

próprio primeiro signatário de uma constituição, ou aqueles em nome dos quais ele

pretende agir) e o poder executivo.141

São agentes investidos performativamente que asseguram a convenção que controla a

performatividade. Nesse sentido, constrói-se um aparato para a regulação discursiva. Esta é a

polícia repressiva mantendo um controle contextual da sociedade. Bem próximo a essa

perspectiva, Foucault expõe as interdições em A ordem do discurso: ―Sabe-se que não se tem

o direito de dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer

um, enfim, não pode falar qualquer coisa‖142

. Assim, elenca três interdições que, em suas

139

DERRIDA, J. Posfácio: Em direção a uma ética da discussão. In: DERRIDA, 1991a. p. 178. 140

NASCIMENTO, 2001, p. 181. 141

DERRIDA, 1991c, p. 184. 142

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de

dezembro de 1970. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996. p. 9.

52

reentrâncias, fazem circular e selecionar os discursos, quais sejam, o tabu do objeto, o ritual

das circunstâncias e o direito privilegiado ou a exclusividade do sujeito que fala.

A proximidade de Derrida está em justamente dar ênfase ao discurso policiado ou a

vigilância sobre os enunciados performativos e performances:

Há um policia brutal e de preferência ―fisicamente‖ repressiva (mas a polícia nunca

é puramente física) e há polícias mais refinadas, mais ―culturais‖ ou ―espirituais‖,

mais nobres. Mas toda instituição destinada a fazer respeitar a lei é uma polícia.

Uma academia é uma polícia, quer a entendamos no sentido de Academia francesa,

cuja tarefa essencial é fazer respeitar a língua francesa, decidir o que deve ser bom

emprego do francês. [...] Não há sociedade sem polícia, mesmo que se possa sempre

sonhar com formas mais sublimes, mais refinadas ou menos vulgares de polícia.143

São aspectos que precisam ser problematizados. Por um lado, é preciso compreender

o potencial do performativo para pensar o discurso político. Uma forma de performatividade

desdobra um sentido de ação política. Logo, o performativo pode ser pensado num enunciado

que interpreta transformando-se144

. Por outro lado, no contexto da teoria do direito, é preciso

desenvolver uma análise em relação à lei e ao performativo. Dessa forma, Derrida faz

convergir em Força de lei a posição desconstrutiva da representação da Lei, no sentido

elaborado na leitura da parábola de Kafka em Devant le lo‖145

.

2.3 Políticas da performatividade: a instituição da autoridade e da crença na

desconstrução

Das reentrâncias da retórica da política, engendram-se possibilidades de análise

performativa de acordo com as diferenças observadas entre Jacques Derrida e Pierre

Bourdieu. Em Speech acts politically146

, Judith Butler formula uma comparação promissora

entre os autores, expandindo os horizontes do contexto da teoria dos atos de fala sobre a

política. A análise de Derrida e Bourdieu centra-se entre duas categorias políticas que

constituem o debate de Força de lei, qual seja, a autoridade e a crença.

143

DERRIDA, 1991c, p. 185. 144

DERRIDA, J. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad.

Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a. 145

DERRIDA, J. Before the law. In: DERRIDA, J. Acts of literature. Edited by Derek Attridge. New York:

Routledge, 1992. p 181-220. 146

BUTLER, J. Speech acts politically. In: MCQUILLAN, M (edt.). Deconstruction – a reader. New York-

EUA: Routledge, 2001. p 254-262.

53

Apesar das diferenças entre Derrida e Bourdieu, a noção de poder simbólico torna-se

relevante para a perspectiva desconstrutiva de direito. É importante perceber o seu significado

segundo o sociólogo francês: ―O poder simbólico é um poder de construção da realidade que

tende a estabelecer uma ordem gnoseológica”147

. Significa, então, que além de estabelecer

uma forma de conhecer a realidade é potência criadora da mesma. Inventa-se a realidade em

meio aos signos que duplamente estruturam e são estruturados por ela.

Esse poder circula discursivamente. A linguagem manifesta o trabalho de enunciação

em meio aos processos que constroem a interpretação do mundo:

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e

fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo; poder quase mágico

que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou

econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for

reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isso significa que o poder

simbólico não reside nos ―sistemas simbólicos‖ em forma de uma ―illocutionary

force‖ mas que se define num relação determinada – e por meio desta – entre os que

exercem o poder e os que lhe são sujeitos, quer dizer, isto ‗‘e, na própria estrutura do

campo em que se produz e se reproduz a crença.148

A divisão entre os que exercem e os que sofrem é a relativização do exercício de

poder. Entretanto, na constituição dos campos, assim como pensado por Bourdieu, essa

distinção se contextualiza à medida que se pode enunciar os sujeitos envolvidos. Nesse

sentido, o campo é definido como os espaços estruturados em posições em que se observa a

economia de trocas e disputas simbólicas, num determinado trabalho social (ciência, religião,

direito etc.)149

.

A noção de campo é wittgensteinianamente produzir um jogo de linguagem

especializado frente a uma perspectiva ordinária. Como ensina Butler: ―Códigos de

legitimação são estabelecidos precisamente através da invocação de palavras não-ordinárias

em um modo que uma apresente ter uma relação sistemática com a outra‖150

. Destarte, as

posições são instituídas a partir de uma dicotomia: os especialistas que comungam do habitus

e conhecem a economia simbólica não-ordinária de um campo são chamados de profissionais;

em contrapartida, aqueles que experimentam uma interdição, não reconhecem os símbolos

147

BOURDIEU, P. Sobre o poder simbólico. In: O poder simbólico. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2007. p. 9. 148

Ibidem., p. 12. 149

Cf. BOURDIEU, P. A gênese dos conceitos de habitus e de campo. In: BOURDIEU, P. O poder simbólico.

11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 59-73. BOURDIEU, P. Algumas propriedades dos campos.

Exposição feita na Ecole Normale Supérieure, em novembro de 1976. In: BOURDIEU, P. Questões de

sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 89-94. Disponível em: Http//<www.4shared.com>. Acesso em:

21 jan. 2010. 150

BUTLER, 2001. p. 255.

54

senão por sua ignorância ou submissão a eles, são denominados profanos – sua linguagem é

ordinária, marcadamente naturalizada.

O campo não seria senão convencional frente a uma relação que o determina: ―aquele

que é investido com legitimidade faz ato de linguagem; o que não é investido pode recitar a

mesma fórmula, mas produzir efeito algum‖151

. Essa distinção representa o próprio conflito de

classes na sociedade a partir de rituais controlados discursivamente. Por isso, para Bourdieu, o

performativo reside em segundo plano, pois a linguagem consistiria a representação da

autoridade.

Este poder de fazer ver e fazer crer mobiliza o que o sociólogo francês chama de

capital político. O objeto dos interesses profissionais entre si e frente aos profanos é ―crédito

firmado na crença e no reconhecimento‖152

, isto é, institui-se um plexo de rituais de crédito no

qual aquele que exerce o poder se confere a confiança para exercê-lo. Assim, a crença atua

num potencial mágico da confiança, por sua própria etimologia: ―O kred, o crédito, o carisma,

esse não-sei-quê pelo qual se tem aqueles de quem se tem, é produto do credo, da crença da

obediência, que parece produzir crédito, a crença, a obediência‖153

. A autoridade, portanto, se

instaura na crença em um movimento circular. Há uma retroalimentação do campo no poder

simbólico.

A estabilização do contexto do campo na relação de crença aparentemente demonstra

o papel secundário da performatividade. Esta se instala na economia simbólica daquela

relação. A força de dizer e fazer crer (ilocucionária e perlocucionária), segundo Bourdieu,

reside no grupo que a exerce. Parecer é apenas efetivo ou feliz o enunciado que a priori é

dotado de autoridade. (esta frase não estaria desconexa?) Se Bourdieu tem a excelência para

compreender a economia do poder simbólico, elaborando uma teoria social do campo, há um

esquecimento da função do performativo em relação à instituição das estruturas simbólicas.

Nesse deslocamento, pode-se construir ou, até mesmo, forçar a interpretação segundo a qual

Derrida constituiria um suplemento a Bourdieu ao inscrever a iterabilidade nesse jogo.

Pensando na circularidade da crença e do reconhecimento, é possível pensar a

saturação do contexto da autoridade. Como Hannah Arendt bem ensinou, a autoritas refere-se

a uma certa relação com o passado, precisamente na noção de fundação e tradição154

. Na

circularidade temporal da antiguidade, era necessário expandir o valor de origem (arché) de

151

BUTLER, 2001, p. 258. 152

BOURDIEU, P. A representação política. In: BOURDIEU, P. O poder simbólico. 11. ed. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2007. p. 188. 153

Ibidem., p. 188. 154

ARENDT, H. Que é autoridade? In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 6. ed. São Paulo: Perspectiva,

2007. p. 163-165.

55

uma sociedade. Assim, o próprio retorno à origem era inevitável para a conservação política:

―toda autoridade deriva dessa fundação, remetendo a cada ato ao sagrado início da história

romana e somando, por assim dizer, a cada momento singular todo o peso do passado‖155

.

Embora somente seja abordado o ―fundamento místico‖ da autoridade no próximo

capítulo, é preciso entender como Derrida tentou quebrar essa circularidade pelo movimento

da différance. Nesse ponto, Butler salienta a força de ruptura da performatividade através da

repetição:

Para Derrida, a força do performativo é derivada precisamente de sua

descontextualização, de sua ruptura com um contexto prévio e de sua capacidade de

assumir novos contextos. De fato, ele argumenta que o performativo, na medida em

que é convencional, deve ser repetível a fim de funcionar.156

O trabalho da performatividade inscreve-se na própria constituição das dicotomias de

Bourdieu. A noção de profissional revela-se no habitus: as convicções e práticas apreendidas

na força de significação do mundo. Retardando a consolidação do agente frente ao poder

simbólico, é preciso visualizar que, para possibilitar o habitus, um performativo é enunciado.

Então, o profissional se institucionaliza na declaração de compromisso – ―Professar é dar um

penhor, empenhando a sua responsabilidade‖157

. Enunciar uma promessa ou um juramento

consiste em performatividade, ou seja, os verbos prometer e jurar são performativos. Não é

à toa que toda formação acadêmica inicia-se com uma promessa e se consolida num

juramento. O bacharelado de direito é o melhor dos exemplos.

Reconhecer a dinâmica da autoridade não implica muitas vezes perceber o que lhe

sustenta. No retorno à origem, encontra-se um valor performativo, qual seja, o compromisso

com o passado, com a expansão do fundamento, há um rasgo na história ou narrativa da

saciedade. O instante de sua determinação é um testemunho esquecido que se movimenta por

uma identificação. Isto não significa identidade, pois ―Uma identidade nunca é dada, recebida

ou alcançada; não, só se sofre o processo interminável, indefinitamente fantasmático da

identificação‖158

. Ao contrário, é preciso repetir a fundação ou a história fundadora.

Na sua iteração, o contexto não se mantém; há um constante fazer e desfazer do

tecido da narrativa. Então, há a identificação enquanto um processo do fantasma. Por isso

mesmo, a tradição romana investigada por Hannah Arendt se perfila em uma relação com o

assombro de retornar ao passado: ―para os romanos o crescimento dirigia-se no sentido do

155

ARENDT, 2007, p. 165. 156

BUTLER, 2001. p. 259. 157

DERRIDA, J. Universidade sem condição. São Paulo: Estação Liberdade, 2003b. p. 38. 158

DERRIDA, J. El monolingüismo del outro. 3. ed. Buenos Aires: Manantial, 2009b. p. 45.

56

passado‖159

. A sacralização dos fundadores é a própria necessidade de uma mitologia para

justificá-los. Nesse caso, os mortos seduzem os vivos, mantendo a circularidade da crença

que, ao fim, torna-se muito ambígua:

A tradição preserva o passado legado de uma geração a oura o testemunho dos

antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação e,

depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos (grifos

nossos).160

A força de différance instiga uma indecidibilidade da fundação – no testemunho, não

se pode definir a constatação de uma presença que não se saturou ou a invenção de um futuro

sacro da instituição autoritária. Isto é, o instante de fundação é ao mesmo tempo um ato

constativo e performativo. É, logo, a contaminação da lógica opositiva dentro da teoria dos

atos de fala de Austin. Se não se pode destruir a metafísica inerente a linguagem e a história, é

preciso arrombar o discurso deformando as fronteiras teóricas instituídas: ―as normas dessa

inteligibilidade mínima não são absolutas e a-históricas, são somente mais estáveis que

outras‖161

. Então, a autoridade possui uma estabilidade contextual, mantida pelo performativo

da crença.

A performatividade lida por Derrida ou rubricada por ele manifesta a diferença na

constituição do contexto de teorias políticas e éticas. A afirmação da autoridade reside entre a

natureza e o artifício, ao passo que, de uma só vez, naturaliza-se a invenção e se

institucionaliza a naturalidade da vida (um duplo sentido, de bios e zoé, a ser tratado no

terceiro capítulo). Dessa maneira, a construção histórica da autoridade se efetiva na crença

sob uma dupla injunção (doble bind): há o contexto estável descrito em narrativas permeadas

pela concepção contínua do tempo e a descontinuidade da interpretação performativa,

rompendo com o contexto e desdobrando-o.

Baseado nas Teses Sobre Feuerbach, na Ideologia Alemã, Derrida promove sua

virada política para a teoria dos speech acts. O juramento e a promessa do devir na linguagem

política e na política das linguagens:

esse performativo originário que não se dobra às convenções preexistentes, como

fazem todos os performativos analisados pelos teóricos dos speech acts, mas cuja

força de ruptura produz a instituição ou a constituição, a lei mesma, ou seja,

também o sentido que parece, que deveria, que parece dever garanti-lo em

retribuição. Violência da lei antes da lei e antes do sentido, violência que interrompe

o tempo, o desarticula, o demite, o desloca para fora de seu alojamento natural: ―out

of joint‖.162

159

ARENDT, 2007. p. 166. 160

Ibidem. 161

DERRIDA, 1991a, p. 201. 162

DERRIDA, 1994a, p. 50.

57

Derrida cria, em Espectros de Marx, a interpretação performativa, ―uma

interpretação que transforma isto mesmo que interpreta‖163

. O poder simbólico (poder-se-ia

aproximar a ideologia em certo sentido) instaura uma interpretação de mundo hegemônica.

Assim, é preciso desdobrar na própria linguagem a possibilidade de abertura a política sem

contra-hegemonia, pois esta tem suas aspirações. No entanto, a différance movimenta o aqui-

e-agora da alteridade e das singularidades na vida.

O espírito ou a rubrica de Marx possibilita uma inversão do discurso hegemônico na

política ao propor a práxis enquanto compreensão imanente do mundo. Assim, é possível

levantar a hipótese de que Derrida provoca uma contaminação entre a práxis e o performativo,

a différance ou indecidibilidade entre a linguagem e a prática de instituir o mundo. Parece

haver um encontro íntimo, improvável até, entre Nietzsche e Marx – uma luta na imanência.

Infelizmente, não se propõe nesta dissertação analisar tal interseção entre os grandes filósofos

alemães do século XIX, mas é importante definir uma noção de práxis para problematizar a

interpretação performativa.

A práxis, no sentido empregado por Marx, é o trabalho de realizar a filosofia na ação.

Sua crítica se endereça à teoria constituída apenas para justificar os estado das coisas. A

interpretação, logo, permaneceria situada sobre o aspecto da justificação de uma ordem a

partir de sua descrição. Em contrapartida, Marx pensa a filosofia enquanto o trabalho, isto é, a

transformação da natureza e do homem. Através desse processo prático, o homem constitui

suas relações, a produção dos objetos e, por fim, seu em si. Contudo, este mesmo trabalho

aliena. Assim, há um paradoxo: ―O trabalho nega o homem e, ao mesmo tempo, afirma-o‖164

.

A negatividade da filosofia hegeliana é suplantada pela possibilidade de afirmar a

vida na transformação. Marx afirma o trabalho para subverter a dialética hegeliana do

conceito. Tome-se como premissa este ponto, pois não é objetivo desta dissertação

desenvolver um tema tão problemático. Apenas é preciso compreender que, para Marx, há

uma indecidibilidade do trabalho: nem negação pura, nem afirmação, pura natureza pura, nem

artifício puro. Mesmo assim, esse processo não se atém exclusivamente à subjetividade

humana, abre possibilidades de pensar o homem em suas relações sociais, por isso,

objetivamente.

A relação entre o homem e a natureza se dá na marca da transformação. Nesse

sentido, as Teses sobre Feuerbach são relevantes para o questionamento da interpretação

163

DERRIDA, 1994a, 75. 164

VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales –

Clacso; São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 125.

58

performativa. Derrida explicitamente toma como referência a tese XI ―Os filósofos apenas

interpretam o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo‖165

. A própria

relação entre a desconstrução e a filosofia ocidental é um empreendimento no sentido de

deslocar o trabalho da escrita na constituição do conhecimento.

A marca do rastro ou a différance consiste no movimento não sintético entre o

homem e a natureza, ou entre o homem e seu si mesmo. Trata-se da produção do humano na

diferença da natureza que vem a ser o humano: ―A teoria assim concebida se torna necessária,

como crítica teórica das teorias que justificam a não transformação do mundo e como teoria

das condições de possibilidades da ação‖166

. Tanto a teoria marxiana quanto a desconstrução

derridiana primam pelo arrombamento das perspectivas dogmáticas construídas ao longo da

história. Assim, a interpretação performativa seria a tentativa estética de Derrida para

compreender tanto a relação filosofia e ação, quanto entre a interpretação e a práxis.

2.4 A lei e a literatura: uma interpretação derridiana sobre o vazio da pura forma em

Kafka e Kant

Sobre outra perspectiva, a performatividade também estrutura uma análise sobre o

direito em Força de lei. Derrida propôs discutir a relação entre lei e força, seguindo uma certa

tradição filosófica. Por isso, deteve-se sobre as expressões inglesas to enforce the law e

enforceability of the law. Posteriormente, trouxe à baila uma ambígua palavra alemã,

Gewalt167

. Assim, a discussão desenvolveu-se sobre o entrecruzamento de idiomas a serem

traduzidos. Para tanto, é tecida uma relação entre a força e linguagem no interior do direito.

A performatividade prepara o terreno para o problema da economia do discurso

jurídico. Por isso, o problema inicial é a tradução dos termos problematizados. Primeiramente,

a expressão to enforce the law é traduzida tanto para o francês (appliquer la loi) quanto para o

português (aplicar a lei). Derrida denuncia a perda de sentido, ao passo que a metáfora da

força é neutralizada pela latinização: ―perde-se esta alusão directa, literal à força que, do

interior, vem lembrar-nos que o direito é sempre uma força autorizada, uma força que se

165

MARX, M; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes

Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1945-1946). São Paulo:

Boitempo, 2007. p. 535 - 539. Cf. DERRIDA, J. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a

nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 75. 166

VÁZQUEZ, 2007, p. 151. 167

DERRIDA, 2003a, p. 12-13.

59

justifica ou que é justificada ao aplicar-se‖168

. A opção por aplicar, sendo possível forçar,

seria um artifício retórico de neutralização do discurso jurídico? Há, de certo, um eufemismo.

Levando em consideração o caráter tecnológico do direito, pode-se pensar em tratá-

lo como uma fórmula a ser aplicada. Contudo, as dinâmicas sociais não são tão simples para

sua engenharia. É preciso compreender a estreita relação que o direito possui com a força em

geral:

Há, por certo, leis não aplicadas, mas não há lei sem aplicabilidade, e não há

aplicabilidade ou ―enforceability‖ da lei sem força, seja esta força directa ou não,

física ou simbólica, exterior ou interior, brutal ou subtilmente discursiva –

hermenêutica mesmo –, coerciva ou reguladora, etc.169

Considerando a lição de Kant, a força está inserida no conceito analítico do direito.

É-lhe inerente: ―Direito e competência de empregar coerção, portanto, significam uma e única

coisa‖170

. Essa relação se efetiva na exterioridade do direito. Contudo, há uma pertinência à

interioridade da Lei, nesse caso, a grande referência da ética kantiana. Nesse ponto, a

indagação sobre a lei da lei revela a performatividade do dever na ética de Kant.

Para compreender a fábula em torno da ideia de Lei, Derrida faz uma leitura sobre

uma parábola de Franz Kafka, Vor dem Gesetz (Diante da Lei). Em seu ensaio, ele enfatiza a

relação entre lei e literatura, sob o fantasma sorrateiro de Kant. Por isso, a Lei, em letra

maiúscula (ou máscula – se quiser forçar uma metáfora), significa a imponência da instituição

última de uma justificação racional a toda moral e direito. Dessa forma, lega-se a

demonstração da liberdade da segunda Crítica. Se a vontade não possui condicionamentos

empíricos, apenas determinada pela forma pura da lei, então há liberdade porque esta pura

forma da razão constitui o próprio fato de sua liberdade171

.

Para compreender a relação entre lei e literatura, seria preciso contar a parábola?

Aliás, reiterá-la – citá-la mais uma vez, assim como o próprio Kafka a enxertou em O

Processo. O que garantiria à literatura como instituição, conservar seus escritos ou a

possibilidade de preservar um autor em sua obra? ―Diante da Lei encontra-se o guardião

(doorkeeper). A este guardião chega um camponês e roga por acesso à Lei‖172

. Essa história

possui sua singularidade ao passo que é iterável por outras histórias ou narrações e leituras

como a de Derrida. Por isso, são oferecidas pressuposições triviais para seu entendimento.

168

DERRIDA, 2003c, p. 12. 169

Ibidem., p. 13. 170

KANT, I. A metafísica dos costumes. Bauru, SP: Edipro, 2003. p. 78. 171

KANT, I. Crítica da razão prática. São Paulo: Martin Claret, 2005. 172

DERRIDA, J. Before the law. In: DERRIDA, J. Acts of literature. Edited by Derek Attridge. New York:

Routledge, 1992. p. 183.

60

As pressuposições consistem em valores compartilhados pela própria circunstância

da preleção de Derrida. Tanto Diante da Lei (a análise derridiana) quanto Força de lei são

endereçadas (addressed) a uma plateia que possui pressuposições e valores compartilhados

implicitamente. Desse modo, Derrida enuncia os axiomas para sua investigação.

Primeiro axioma. É reconhecido que o texto tem sua própria identidade,

singularidade e unidade. O começo e o fim da história constituem as margens e limites através

de certo número de critérios estabelecidos por regras positivas e convenções. Nesse axioma, o

próprio texto, concebido em sua história, sustenta-se legalmente (regras positivas e

convenções), isto é, à textualidade é conferido legitimidade, reconhecimento de uma

personalidade jurídica recaída na versão original.

Segundo, o texto tem um autor. A personalidade jurídica conferida ao texto dá-se

pela metonímia do autor. Aquele que assina como Franz Kafka tem sua existência garantida

pela lei, ou melhor, é autorizado pelo Estado. A lei garante a diferença entre o autor e os

personagens na história. Concomitante a isso, Derrida lembra que o sistema de leis que

garante essa situação formou-se recentemente na história, então, ―tudo que ele garante remete

essencialmente instável, tão frágil quanto um artifício‖173

. A terceira pressuposição consiste

no fato de o texto carregar um título (Vor dem Gesetz) que possui uma relação com a

literatura. Para além do gênero ou modelo a ser discutido, o texto pertence à literatura.

O que decide sobre Diante da Lei pertencer ao que se entende como literatura?

Quem julga ou decide? Cai-se numa aporia: por um lado, alguém pode afirmar que não se

pode definir um campo chamado literatura ou uma classe (categoria), ou não existe algo como

uma essência literária; por outro lado, o nome da literatura pode estar destinado a permanecer

impróprio, sem critério garantido: literatura remeteria ao drama de nomear, a lei do nome ou o

nome da lei: ―Há uma singularidade em relação à lei, a lei de singularidade que precisa entrar

em contato com a essência geral ou universal da lei sem nunca ser capaz de fazê-lo‖174

.

A parábola kafkaniana narra a aporia fundamental do Direito: a Lei é o universal que

lida com as singularidades, isto é, há um abismo paradoxal entre o universal e o singular no

direito. Diante da Lei, as singularidades sofrem a captura, ao mesmo tempo, colocam-se frente

a Ela. No momento em que o camponês chega a Lei, o guardião interpõe-se: ―Mas o guardião

diz que ele não pode conceder o acesso no momento‖175

. A Lei está interditada, não se pode

vê-la ou conhecê-la. A porta da lei permanece aberta, porém não se pode acessar. Esta porta

173

DERRIDA, 1992, p. 185. 174

Ibidem, p. 187. 175

Ibidem., 183.

61

era a passagem exclusiva para o camponês, mas a ele não era permitido passar. Esse é o

paradoxo do direito.

62

3 DA FORÇA DE LEI À FUNDAÇÃO MÍSTICA: A ECONOMIA DO

DISCURSO JURÍDICO

3.1 O direito como cálculo: uma perspectiva da economia do discurso jurídico

Depois de tratar o performativo como elemento analítico da desconstrução, é preciso

trabalhar a argumentação de Derrida em Força de lei. Por isso, a perspectiva do direito como

cálculo precisa ser pensada do ponto de vista da economia do discurso jurídico. Isto é, a partir

do paradigma do estado de direito, o conceito de governo se amalgama às disposições legais

para a dominação da vida.

É interessante especificar neste capítulo aquilo que se considera economia. Segundo

Giorgio Agamben, a palavra economia passa por uma mudança semântica da antiguidade

grega a teologia medieval:

Nos primeiros séculos da história da Igreja – digamos, entre o segundo e o sexto

séculos –, o termo grego oikonomia desempenha na teologia uma função decisiva.

Oikonomia significa em grego uma a administração do oikos, da casa, e, mais

geralmente, gestão, management. Trate-se, como diz Aristóteles (Pol. 1255 b 21),

não de um paradigma epistêmico, mas de uma práxis, de uma atividade prática que

deve de quando em quando fazer frente a um problema e uma situação particular.176

O paradigma desta virada semântica reside numa metáfora que transporta o sentido

da vida privada para a pública. Desse modo, o cerne da economia é menos seu valor privado

que base convencional e regulativa. Essa possibilidade está inscrita no radical nómos que

consiste em prescrições e normas para a conduta humana no seio da polis pelo

reconhecimento de sua convenção177

. Esta organização convencional serve à teologia cristã

para explicar a trindade divina: Deus é uno, mas a forma como se dispõe sobre o mundo é

tríplice. O Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma função no governo do mundo.

Principalmente, a encarnação do filho revela os planos de redenção e salvação para a vida

terrena.

Toda a problemática de uma teologia política já pode ser entrevista. Há um

encadeamento entre economia e poder na ralação com a lei. Por um lado, a organização da

casa se tece em relações peculiares e práticas. Assim, seria um universo micropolítico em que

176

AGAMBEN, G. O que é um dispositvo? In: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios.

Chapecó-SC: Argos, 2009. p. 35. 177

Cf. KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 190-191. BILLIER, J-C;

MARYIOLI, A. História da filosofia do direito. Barueri-SP: Manole, 2005. p. 2-52

63

as disposições das pessoas e dos bens precisam ser bem definidas para melhor eficiência do

ambiente. Por outro lado, seria o domínio da unidade de Deus, conduzindo o mundo para o

bem soberano. Logo, as questões de governo e de soberania ganham forma178

. Nesse sentido,

a lei será o conceito que articulará o soberano e o governante. Na verdade, consistem em dois

momentos de um mesmo processo: a fundação da Lei por Deus e o regime do filho – aquele

que dá e tira a lei para aquele que a tutela.

O debate entre o poder constituinte e o constituído não pode ser dispensado nessa

economia. Não se pode pensar que exista uma oposição entre ambos ou uma

complementação. A lógica suplementar serve para compreender a contaminação no exercício

do poder, antes de sua própria qualificação. Em ambas as representações do poder, a lei tem

papel de mediação, pois significa a medida para a execução de determinados fins para o

controle da vida. Por isso, o papel da violência é intrínseco à lei. Evocando Píndaro, Agamben

enuncia a relação paradoxal entre força e lei: ―o poeta define a soberania do nómos através de

uma justificação da violência‖179

.

Não disse de outra forma Pascal quando, em seus Pensamentos, mostrou a relação

entre força e justiça: ―[...] Sobre que fundará o homem a economia do mundo que quer

governar?‖180

. Em seguida, ―298 — Justiça, força — É justo que o que é justo seja seguido. É

necessário que o que é mais forte seja seguido‖181

. Em um primeiro momento, há uma relação

antitética entre essas categorias. De um modo, a justiça é a realização ética de valores e fins

em virtude do bem. Seria sua formulação mais genérica: o dever. De outra forma, a

necessidade apenas conhece a força e esse é seu ser. Assim, dever e ser tecem uma

suplementação entre si. É na lei ou no direito que são harmonizados: ―não fazendo com que o

justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo‖182

.

Um dos trabalhos da economia do discurso do direito é estabelecer um programa em

que o ser se faz dever, ou seja, a força se torna a lei. Contudo, essa lei não se faz por uma

necessidade natural através da qual a natureza já se humanizou nas relações de poder. A lição

de Bobbio sempre se faz presente nessa articulação: ―O Direito, como ele é, é expressão dos

mais fortes, não dos mais justos. Tanto melhor, então, se os mais fortes forem os mais

178

Cf. AGAMBEN, G. El reino e la gloria: Uma genealogía teológica de la economía e del gobierno. Buenos

Aires: Adriana hidalgo, 2008. p. 13-39. 179

AGAMBEN, G. Homo sarcer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 37. 180

PASCAL, 1979. p. 109. 181

Ibidem., p. 11. 182

Ibidem.

64

justos‖183

. Assim a economia jurídica se perfaz na eficácia da justificação da força e em sua

administração.

O direito passa a ser o cálculo de força. Este trabalho consiste no esforço de dominar

as múltiplas possibilidades que emanam da vida. A lei refere-se a uma escolha do possível –

uma medida para o possível. Assim, constitui-se um programa da lei e a lei do programável.

Um exemplo bem eficiente é a Teoria do ordenamento jurídico de Bobbio. Esse texto

reitera toda uma tradição do pensamento jurídico, além de ser uma referência difundida nos

bacharelados em direito. De modo simples, o professor italiano ensina:

O objeto de regulamentação por parte das normas jurídicas são todas as ações

possíveis do homem, e entendemos por ―ações possíveis‖ aquelas que não são nem

necessárias nem impossíveis. Segue-se, obviamente, que uma norma que

comandasse uma ação necessária ou proibisse uma ação impossível seria inútil; de

outro lado, uma norma que proibisse uma ação necessária ou ordenasse uma ação

impossível seria inexeqüível.184

O cálculo normativo versa sobre o próprio controle das possibilidades. Este controle,

pois, se articula espacialmente e temporalmente. Por isso, a relação entre homem e

espacialidade, por um lado, está no cerne de sua existência. O direito se perfaz nessa relação

com o espaço: território, propriedade, jurisdição e competência são casos dessa disposição

existenciária, ou seja, da ―delimitação fatual do exercício da existência‖185

. O direito se

desenvolve na constituição do limite e no limite das constituições.

O cálculo deriva de uma geometria – as linhas e pontos constituem os referenciais

para o exercício do poder legal, as posições e os limites de cada instituição. É sintomático

como Carl Schmitt produz uma oposição entre a terra e o mar: o direito é postulado sobre a

estabilidade terrena, mas precisa lidar com o limite fluido e tempestuoso das marés186

. Na

fertilidade da terra, o soberano institui a ordem excluindo a exceção.

No que diz respeito à temporalidade, o direito lida com a contingência dos

acontecimentos por um processo probabilístico. Aquilo que Bobbio enunciava como ações

possíveis entra na conta da seleção e controle da multiplicidade. Assim, o direito não lida

diretamente com o possível uma vez que ele institui uma medida programática. Nesse sentido,

seu objeto não são ações programadas, na medida em que há uma expectativa, uma

antecipação do acontecimento ou da decisão. Em tal grau, todo o possível é amortecido no

183

BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1997. p. 67. 184

Ibidem., p. 24. 185

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista- SP: Editora Universitária

São Francisco, 2008. p. 562. 186

SCHMITT, C. El nomos de la tierra: em el derecho de gentes del ―Jus publicum europaeum‖. In:AGUILAR,

H.O; SCHMITT, C. Carl Schmitt, teólogo de la política. México: FCE, 2001. p. 463-465.

65

programa jurídico, ou seja, seus itinerários e padrões. Fora disso, nada – impossibilidade,

necessidade ou indecidibilidade. Assim seria o aparato legítimo que tenta impedir o futuro

intempestivo através do ―futuro anterior‖187

.

Entre vários dispositivos para o controle da vida, Derrida pinça uma expressão do

léxico jurídico que lida com o cálculo de força para justificá-lo: a força de lei. Seguir-se-á a

exposição da genealogia do termo e de como ele possui função relevante para a legitimação

autoritária. Por isso, é preciso compreender o trabalho dessa expressão na economia jurídica

da violência em geral. Por meio da linguagem, a força e a violência são amalgamadas à ideia

de Lei.

3.2 Da força de lei

3.2.1 A genealogia de um dispositivo

Um título é a primeira tentativa de sedução. Estampa-se um sintagma, geralmente

para atrair a atenção e instigar uma pretensão sobre o que se tratará – agenciar um desejo. No

caso da obra de Derrida, Força de lei, é utilizada uma expressão já bastante familiar aos

juristas. Há uma história permeando este sintagma e, talvez, a escolha desse título permaneça

vinculada à necessidade de acessar de dentro o discurso jurídico.

A preocupação em introduzir o tema Desconstrução e a possibilidade da justiça se

dá justamente pela necessidade de habitar a estrutura jurídica, acessar-lhe o que haveria, se

assim se puder afirmar, de essencial ou puro no direito. Pode uma teoria do direito ser pura

sem considerar a violência? Derrida precisa de um tema afeto aos juristas, ao mesmo tempo

em que possibilite a desconstrução. Já fica evidente que a escolha para a abordagem é feita a

partir da estreita relação entre força e direito. Por isso, endereça de forma provocadora,

enunciando o sintagma pela primeira e última vez no texto:

Como distinguir entre esta força da lei, esta ―força de lei‖, como se diz em francês e

como em inglês, creio eu, e por outro lado a violência que se julga sempre injusta?

Que diferença existe entre, por um lado, a força que pode ser justa, em todo o caso

julgada legítima (não apenas o instrumento ao serviço do direito, mas o exercício e o

187

DERRIDA, 2003a, p. 65.

66

próprio cumprimento, essência do direito), e, por outro lado, a violência que se julga

sempre injusta? O que é uma força justa ou uma força não violenta?188

É preciso retomar a história desse termo. Ora, é a força, a violência gestada e gerida

pelo direito em todas as suas possibilidades que constrói a metonímia entre direito e justiça ou

autoridade. Para tanto, a expressão força de lei encontra o valor de sua origem no direito

romano, mais precisamente nas Institutas do Imperador Justiniano. No livro primeiro, título

segundo, do Direito Natural das Gentes e Civil, em seu parágrafo sexto, informa:

Também o que agradou ao príncipe tem força de lei; pela lei Régia, que foi

promulgada a respeito de seus poderes, o povo lhe concedeu e estabeleceu nele todo

seu império e poder. Tudo aquilo que, portanto, o Imperador constitui por um

rescrito, ou conhecendo, decretou, ou preceituou, em edito, tem força de lei.189

Se a lei é constituída pelo povo romano, passa a vontade de um equivaler de todos,

inscrita num documento consolidado na lei que é como se fosse expressão da vontade do povo

romano. Assim, a força de lei é uma metáfora, uma força performativa, o como se é

constituinte do direito posto pela autoridade. Nessa força metafórica, autoriza-se o Imperador

e revela-se o jogo, ou a troca fictícia das teorias do direito:

Na realidade, o fio condutor do discurso de Gaio, mais que o paradigma da lei

enquanto tal, revela-se como o sujeito oculto sob a tela (formalista) da lex: o ―povo

romano‖. E, com efeito, o ―povo‖ reaparecia em cada uma das definições

apresentadas: de modo direto, na lex (“a lei é o que o povo ordena e estabelece...”)

e de plebiscito (“o plebiscito é o que a plebe ordena e estabelece. A plebe se

diferencia do povo... de modo que os plebiscita comprometesem a todo o povo”); em

modo indireto, através da expressão deliberadamente ambígua ―ter força de lei‖

(...).190

Segue-se uma série de normas em que a expressão força de lei agencia a

performatividade da representação popular. Em primeiro momento, o que agrada ao príncipe

tem força de lei, isto é, a lei é instituída sobre o critério do prazer. Segundo, aponta-se a

condição fundamental para equivaler o querer do príncipe à lei: é o critério de representação,

agenciado pela força metafórica. Por fim, instaura-se o procedimento, logo, o critério da

forma, ou a força da forma, que possibilita o fluxo do querer-prazer encontrar seu caminho

autoritário. A autoridade edita sua vontade por uma força inscrita em lei. Assim, há um salto

performativo entre o povo romano e o imperador.

188

DERRIDA, 2003a, p. 13. 189

JUSTINIANO I, IMPERADOR DO ORIENTE. Institutas do Imperador Justiniano: manual did‘dito para

uso dos estudantes de direito de Constantinopla, elaborado por ordem do Imperador Justiniano, no ano de 533

d.C. 2. ed. ampl. e rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 25. 190

SCHIAVONE, A. Ius: a invenção do direito no Ocidente. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2009. p.

439. As definições em itálico podem ser conferidas em: JUSTINIANO I, IMPERADOR DO ORIENTE.

Institutas do Imperador Justiniano: manual did‘dito para uso dos estudantes de direito de Constantinopla,

elaborado por ordem do Imperador Justiniano, no ano de 533 d.C. 2. ed. ampl. e rev. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2005, p. 24-25.

67

Agamben talvez seja o primeiro a tentar esclarecer o termo frente a constituição dos

atos do soberano moderno. A partir do conceito schmittiano de soberania, há o paradoxo no

qual a exceção define-se como o fora-da-lei, porém esta pertence à lei. A previsão de declarar

o estado de exceção está inscrita na norma: ―a norma se aplica à exceção desaplicando-se,

retirando-se desta‖191

. Assim, suspende-se o ordenamento para protegê-lo – o próprio

fundamento da ditadura romana192

. Na iminência da exceção soberana, Agamben define:

O conceito de ―força de lei, enquanto termo técnico do direito, define, pois, uma

separação entre a vis obligandi ou a aplicabilidade da norma e sua essência formal,

pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem,

entretanto, sua ―força‖.193

É preciso compreender a circunstância histórica romana que possibilitou a criação

desse artifício metafórico. O grande modelo racional e a tecnologia do direito romano foram

recepcionados pela modernidade como o paradigma jurídico. Contudo, nem sempre este

direito esteve caracterizado pela técnica e sistematicidade:

A codificação de Justiniano não foi, por conseguinte, inovadora, mas prestou o

relevante serviço de selecionar a matéria entre milhares de editos imperiais e

tratados jurídicos, eliminando contradições mediante a escolha da pratica ou regra

corrente em 533 e sistematizando o todo sob títulos correspondentes às esferas do

direito: propriedade, família, direito processual, crimes, e assim por diante. Perdeu-

se a maioria das fontes de onde foi extraído o Corpus Juris. Tomamos conhecimento

delas apenas através de suas páginas (grifos nossos).194

O Corpus Juris é a tentativa de restabelecer a totalidade do Império que havia

entrado em colapso com a queda de Roma. A constituição de um aparato legal seria o passo

para um controle mais eficiente dos territórios e organização interna do próprio império

oriental. Era necessário selecionar, sistematizar e eliminar a multiplicidade de normas para

ganhar o corpo da elite romana. Por isso, o sintagma força de lei é o dispositivo que permite

legitimação para os atos das diversas magistraturas entre senado e pretores. A possibilidade

regulativa expande-se a partir dessa força metafórica e performativa, de modo que força de lei

é um dispositivo na forma como Foucault e Agamben o pensaram:

a) É um conjunto heterogêneo, lingüístico e não lingüístico, que inclui virtualmente

qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de

polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se

estabelece entre esses elementos.

b) O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre

numa relação de poder.

191

AGAMBEN, 2002, p. 25. 192

SCHMITT, C. La dictadura: desde los comienzos del pensamiento modernode la soberania hasta la lucha de

clases proletária. 3. ed. Madri: Alianza Universidad, 2009. p. 33-57. 193

AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 60. 194

TIGAR, M. E; LEVY, M. R. O direito e a ascensão do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p.

35.

68

c) Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. 195

Esta expressão transpassa a história com o próprio aparato necessário para dar

dinâmica à ordem legal. Por exemplo, uma medida provisória editada pelo chefe do Poder

Executivo possui força de lei; um ato de uma comissão parlamentar a possui. Em casos

extremos, a força de lei define a retórica de legitimação: ―O Preâmbulo do primeiro Ato

Institucional, assinado em 09 de abril de 1964, proclamava um regime de exceção legitimado

em uma situação de emergência e dotado de força de lei revolucionária (...)‖196

. O sintagma

resguarda a força na lei assim como permite fundar uma ordem legal por sua própria força de

equivalência à lei.

No ponto em que se leva o sintagma para o próprio fundamento precário da ordem

legal e a legitimação da autoridade, faz-se necessário entender a economia jurídica da

violência garantida por ela. Nesse ponto, a crítica de Walter Benjamin tornou-se a bússola

para Derrida. A violência inscrita sob força de lei é o meio de fundar e preservar a própria lei

ou o ordenamento ou o direito.

3.2.2 Violência e direito em Walter Benjamin

Mais de meio século separa os textos de Jacques Derrida e o de Walter Benjamin.

Uma crítica da violência e Força de lei possuem contextos distintos, mas ambos estão

implicados – não é à toa que, em boa parte das referências sobre temas afins, aparece um

acompanhado do outro. Nesse sentido, a crítica desenvolve uma série de distinções para

possibilitar uma compreensão do papel da violência nas relações morais e jurídicas.

Qualificando a crítica, Derrida atenta à inquietação e ao enigma que ronda seus

enunciados. Seria um fantasma! O texto está desde o início

assombrado (hanté) pelo tema da destruição radical, da exterminação, da aniquilação

total; e em primeiro lugar pela aniquilação do direito, senão mesmo da justiça: e de

entre esses direitos, pelos direitos dos homens, pelo menos como eles podem ser

interpretados numa tradição jusnaturalista de tipo grego ou de tipo da Aufklãrung.197

195

AGAMBEN, 2009, p. 29. 196

TELES, E; SAFATLE, V. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.

300. 197

DERRIDA, J. Prenome de Benjamin. In: Força de lei: O ―fundamento místico da autoridade‖. Porto-

Portugal: Campo das Letras, 2003. p. 49.

69

A memória do fantasma persiste naquilo que não é nem vivo nem morto, nem datado

nem esquecido. É a própria obsessão por uma solução final. Derrida escolhe propositalmente

o ensaio benjaminiano para tratar de um tema que o próprio ensaio não poderia prever.

Benjamin o publicou ainda em 1921, muito antes da ascensão do nacional-socialismo na

Alemanha. Entretanto, não menos situado pela conjuntura destruidora da Primeira Grande

Guerra. Por isso, permanece o vestígio da IX tese sobre a história, analisando o quadro

Angelus Novus de Paul Klee:

O Anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado.

Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que

sem cessar acumula escombros sobre escombros, arremessando-os diante dos seus

pés. Ele bem que gostaria de poder parar, de acordar os mortos e de reconstruir o

destruído. Mas uma tempestade sobre do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é

tão forte ele não consegue mais cerrá-la. (...) Aquilo que chamamos de Progresso é

essa tempestade.198

Temente a este anjo e a circunstância que o evoca, remontar-se-á a questão da

tradição jusnaturalista e positivista do direito para elucidar a delimitação que Walter

Benjamin fará de seu estudo sobre a violência.

Quando se alude a certos aspectos da tradição jurídica no ocidente, deve-se ter em

mente a dicotomia histórica que alimenta seu discurso, desde os gregos até a modernidade,

com ecos sobre algumas teorias contemporâneas. Esse é o caso do direito natural e positivo,

uma dicotomia que tem o peso da tradição: manejando seus conceitos entre a idealidade e a

materialidade, entre o sensível e o inteligível. São discursos edificadores, ensinados desde o

primeiro momento nos cursos de Bacharelado em Direito.

No fundo dessa dicotomia há outra que funciona como ponto de ancoragem dessa

tradição: desde os gregos, physis e nomos ou, como se acostumou nomear, Natureza e

Sociedade. Uma está na imanência necessária, outra na instância da liberdade humana,

transcendental. A partir dessa definição fundamental, cria-se a perspectiva da existência de

suas ordens distintas, mesmo que coordenadas. Dessa forma, o jusnaturalismo e o direito

positivo desenvolvem-se como teorias distintas, mesmo que coordenadas e implicadas. O que

serve a presente discussão seria mais esclarecer as observações de Walter Benjamin em vez

de tecer uma explicação sobre tais escolas.

O lastro da crítica da violência se firma na indagação sobre a sua pertinência ao

âmbito das relações morais. Logo no início, é estabelecido o campo de investigação da

violência: ―A tarefa de uma crítica da violência pode definir-se como a exposição de sua

198

BENJAMIN, W. Teses sobre filosofia da história. In: BENJAMIN, W; KOTHE, F. R (Org). Walter

Benjamin. São Paulo: Editora Ática, 1985. (Coleção Grandes Cientistas Sociais, 50) p. 158.

70

relação com o direito e a justiça. Porque uma causa eficiente se converte em violência no

sentido exato da palavra, só quando incide sobre relações morais‖199

. Somente se pode pensá-

la entre as relações morais e jurídicas porque seriam definidas por juízos de valor.

Walter Benjamin utiliza uma terminologia aristotélica para enunciar a função

mediata na qual se encontra a violência. Sob o aspecto mais natural, ela significa força: ―o

princípio causal que produz o movimento e o repouso‖200

. No desdobramento semântico

dessa, há uma reterritorialização do conceito no campo ético para firmar-se enquanto

violência. Na teoria das quatro causas de Aristóteles, causa eficiente é o meio pelo qual

determinado ato ou coisa é efetivado201

. Assim, pode-se concluir que para ambas as teorias

jurídicas em questão a violência funciona como meio, procedimento, a fim de provocar ações

ou interditá-las. O que as distingue é o foco que cada uma tem sobre seus mecanismos e

procedimentos.

Para delimitar a plaga da crítica, é preciso retomar uma relação fundamental entre o

reino dos fins e dos meios no discurso jurídico – por isso, remontar ao fundamento como

crítica. Sendo assim, remeteria ―a relação fundamental e mais elementar de todo o

ordenamento jurídico, é a de fim e meio; e, que a violência, para começar, só pode ser

buscada no reino dos meios e não no dos fins‖202

. No direito, para cada interesse em jogo,

cada tendência satisfeita, há um procedimento ou rito disponível pelo ordenamento sob a

tutela de suas instituições.

Já ficou evidente que a violência deve ser pensada enquanto fenômeno social. No

mais das vezes, permanece uma criação bem institucionalizada. No direito natural,

principalmente na modernidade, ela é designada como produto natural empregado para

efetivação de fins justos. Por isso, desde que não se utilize para fins injustos, a moralidade da

violência está salvaguardada. Evocando Spinoza, mas muito bem apropriado a Hobbes,

Benjamin retoma a lição da constituição do soberano no momento em que ―as pessoas se

despojam de toda sua autoridade em favor do Estado‖ 203

.

A fim de garantir a vida e sua segurança – ou qualquer direito tido com inerente ao

humano – os indivíduos abandonam um estado cuja característica principal é a guerra de

199

BENJAMIN, Walter. Para una critica de la violencia. In: BENJAMIN, W. Ensayos escogidos. 2. ed. México:

Edicionas Coyacán, 2001. p 109. 200

NEWTON, Isaac. O peso e o equilíbrio dos fluidos. In: NEWTON, Isaac; LEIBNIZ, G. W.. Princípios

matemáticos: o peso e o equilíbrio dos fluidos, a monadologia, discurso de metafísica e outras obras. São Paulo:

Abril Cultural, 1974. p. 29-60. (Os pensadores). p. 53. 201

Cf. REALE, Giovanne. História da filosofia antiga: II. Platão e Aristóteles. 9. ed. São Paulo: Loyola, 1994.

v. 2. (História da filosofia). p. 340-341. 202

BENJAMIN, op. cit., p. 109. 203

BENJAMIN, 2001, p. 110.

71

todos contra todos, ou seja, o risco da aniquilação. Nesse ponto, por mais divergentes que os

teóricos jusnaturais sejam, há sempre um momento de risco, de insegurança, de caos mesmo,

o qual antecede a ascensão do Estado justo204

. O plano consistiria em atuar sobre o caos para

fundar um ponto de equilíbrio sobre a existência, sendo assim, a violência agiria como um

mecanismo à formação da ordem e de sua preservação. Kant sintetiza categoricamente esses

preceitos:

Ora, tudo que é injusto é um obstáculo à liberdade de acordo com as leis universais.

Mas a coerção é um obstáculo ou resistência à liberdade. Conseqüentemente, se um

certo uso da liberdade é ele próprio um obstáculo à liberdade de acordo com as leis

universais (isto é, é injusto), a coerção que a isso se opõe (comum impedimento de

um obstáculo à liberdade) é conforme à liberdade de acordo com as leis universais

(isto é, é justa).205

Mais adiante, essa concepção instituidora e conservadora da violência será

importante para as considerações de Benjamin e Derrida. Em contrapartida ao movimento

jusnaturalista, o direito positivo observa a violência através de sua transformação histórica,

diferentemente como dado natural. Há uma preocupação, nessa teoria, de avaliar o direito

tendo como critério a legitimidade dos meios. Por exemplo, segundo o normativismo de Hans

Kelsen, uma norma só é valida na medida em que outra norma, que lhe é superior, legitima-

a206

. Assim, os procedimentos e os meios encontram sua validação dentro do ordenamento

jurídico. A garantia de meios legítimos perfaz um ambiente seguro para a consecução dos fins

justos.

Tais perspectivas levam Walter Benjamin a constatar um dogma fundamental

comum a essas teorias:

os fins justos podem ser alcançados por meios legítimos, os meios legítimos podem

ser empregados a serviço de fins justos. O direito natural tende a justificar os meios

legítimos com a justiça dos fins, o direito positivo a garantir a justiça dos fins com a

legitimidade dos meios.207

Poder-se-ia afirmar que não haveria oposição autêntica entre essas escolas, mas uma

verdadeira cumplicidade. Se o jusnaturalismo serviu de base ideológica à instituição do

Estado Moderno, o direito positivo agiu em prol de sua preservação e seu fortalecimento208

.

204

Cf. BOBBIO, N. & BOVERO, M. Sociedade e estado na filosofia política moderna. 4. ed. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1996. 205

KANT, 2003, p. 77. 206

Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARZOTTO, Luis

Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. 2. ed. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2007. 138 p. 207

BENJAMIN, op. cit. 208

Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Para um

novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática).

72

Por isso, a conclusão de Michel Foucault parece pertinente e assombrada pela crítica

benjaminiana: ―O direito no Ocidente é um direito de encomenda régia‖ 209

.

Como critério para a violência, a teleologia jusnaturalista se torna precária, pois há a

possibilidade de uma casuística sem fim, remetendo-se o fundamento a um ponto mais

original ou pré-original. Acaba, pois, por produzir uma ilusão, até mesmo um obstáculo à

investigação filosófica. Por outro lado, o Positivismo dá como extinta a discussão sobre os

fins, produzindo uma superação da metafísica a fim de construir uma concepção mais

instrumental do direito. Dessa forma, Benjamin ressalta a cegueira das teorias jurídicas:

―Porque se o direito positivo é cego para a incondicionalidade dos fins, o direito natural é

cego para o condicionamento dos meios‖ 210

.

Numa transformação das perspectivas adotadas até então, a pretensão da Crítica da

violência é considerar o direito sob um ponto de vista da filosofia da história. Assim, a teoria

positiva do direito fornece o melhor critério para as pretensões de Benjamin: a distinção entre

a violência sancionada como poder e a não sancionada, ou seja, legítima ou ilegítima. Como

toda força no âmbito moral é violência, essa deve se submeter ao crivo do direito para obter

sua aprovação enquanto legítima. Será nesse processo historicamente constituído que Walter

Benjamin desenvolverá comentários à relação entre a materialidade social e os critérios de

validade do ordenamento jurídico.

Em observações preventivas a Crítica, Derrida chama atenção ao contexto da

produção do ensaio: ―A análise de Benjamin reflete a crise do modelo europeu, da democracia

burguesa, liberal e parlamentar, e, portanto, do conceito de direito que dela é inseparável‖211

.

A asfixia de um modelo político permanece, na marca histórica, como um gérmen da

contradição. A crise torna-se o valor mais eminente num contexto de rupturas:

É também o dia seguinte a uma guerra e a uma pré-guerra que viu desenvolver-se,

mas também fracassar, na Europa, o discurso pacifista, o antimilitarismo, a crítica da

violência incluindo da violência jurídico-policial, o que não tardará a repetir-se nos

anos seguintes.212

As relações políticas e sociológicas já sofrem por si a ação do direito. Numa época

de aprofundamento das crises, as disposições do direito tornam-se incisivas e decisivas para,

de certa maneira, tentar conter ou amenizar a instabilidade constatada. Mais do que

meramente conservar o corpo social, seria uma medida para conservar o próprio poder. Nesse

sentido, o ensaio da crítica levanta questões dessa ordem. O que se discorreu há pouco sobre o

209

FOUCUALT, 2002, p. 30. 210

BENJAMIN, 2001, p. 110. 211

DERRIDA, 2003a, p. 56. 212

Ibidem, p. 56.

73

reconhecimento dos fins como jurídicos ou naturais revela o jogo platônico do discurso

legitimador. Ora, há ameaça a estrutura de ser controlada por esses critérios e, ainda, o

fornecimento de possíveis linhas de fuga à dominação.

Numa questão bastante weberiana, o ordenamento jurídico não poderia permitir aos

indivíduos agir por sua conta e risco no emprego da violência. Todo e qualquer ato violento

não sancionado (permitido e autorizado) pelo Estado deve ser combatido e extinto. O

monopólio da violência legítima permanece como a tônica do Estado racional moderno:

Hoje, o estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território

— este, o ‗território‘, faz parte da qualidade característica —, reclama para si (com

êxito) o monopólio da coação física legítima (...). Este é considerado a única fonte

do direito de exercer coação.213

No esteio das considerações publicistas do poder dominante, a violência individual

torna-se uma ameaça a plenitude idealista daquele. Não seria senão um risco ao modelo

instituído: ―É dizer que este ordenamento jurídico, em todos os campos em que os fins de

pessoas isoladas poderiam ser perseguidos com violência, tende a estabelecer fins jurídicos

que podem ser realizados de esta mesma forma só pelo poder jurídico‖214

. Com uma leitura

mais crítica, para Benjamin, antes de salvaguardar princípios jurídicos, o monopólio da

violência assegura o direito mesmo. Não se poderia admitir o empreendimento isolado de

força fora da esfera legal, pois seria um fator a desestabilizar a autoridade estatal.

Em contrapartida a uma simples ameaça particular e isolada, Benjamin evidencia

várias hipóteses mais arriscadas ao ordenamento nas quais existe, em certas instâncias, a

permissão para o uso da violência:

A função da violência pela qual esta é tão temida e se aparece, com razão, para o

direito como perigosa, se apresentará justamente ali de onde, todavia, é permitido

manifestar-se segundo o ordenamento jurídico.215

A análise da greve, da polícia e do exército expõe o paradoxo de uma ordem contra

ela mesma, na medida em que é ameaçada por dispositivos que deveriam protegê-la. Em

obras posteriores, Derrida definirá esse processo como autoimunidade216

:

213

WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora

Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. v. 2. p. 526. 214

BENJAMIN, 2001, p. 111. 215

Ibidem, p.112. 216

Cf. DERRIDA, J. Fé e saber: As duas fontes da ―religião‖ nos limites da simples razão. In: DERRIDA, J;

VATTIMO, G. A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 11-89. DERRIDA, J.

Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – um diálogo com Jacques Derrida. In: BORRADORI, G.

Filosofia em tempo de terror: diálogos com Jünger Habermas e Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed, 2004. p. 95-145. Um bom comentário para o tema: NAAS, M. ―Uma nação... indivisível‖: Jacques Derrida e

a Soberania que não ousa dizer seu nome. In: SANTOS, A.C; DURÃO, F.A; VLLA DA SILVA, M.G.

Desconstrução e contextos nacionais. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 13-46.

74

A violência não é exterior à ordem do direito. Ameaça o direito no interior do

direito. Essencialmente, ela não consiste em exercer o poder ou uma força brutal

para obter este ou aquele resultado, mas em ameaçar ou em destruir uma ordem de

direito dado, e precisamente, neste caso, a ordem estatal que teve de conceder este

direito à violência, por exemplo, o direito de greve.217

Essa crítica se sustenta na primeira dicotomia criada por Benjamin para analisar a

violência legalmente constituída: a violência fundadora e a conservadora. Toda autoridade

lida com esses dois tipos em suas ações. Antes de serem excludentes, a fundação e a

conservação trabalham associadas, como no caso da polícia:

é um poder que funda – pois a função específica deste último não é a de promulgar

leis, sim decretos emitidos com força de lei (grifo nosso) – e é um poder que

conserva o direito, dado que se põe a disposição daqueles fins218

.

As instituições autorizadas permanecem sob essa dupla injunção (fundadora e

conservadora).

É importante ressaltar que nem Derrida nem Benjamin, em um primeiro momento,

tentam distinguir força, violência, poder e autoridade219

. De tal sorte, o agenciamento desses

conceitos é levado a tal ponto em que um contamina o outro. Derrida opera entre esses termos

em suplemento de um e outro. É no ponto em que a violência funda e conserva a lei que o

sintagma força de lei age fundamentalmente. A economia do discurso jurídico faz uso do

dispositivo para permitir a sua própria justificação. Um círculo vicioso que o próprio Marx

enunciou em certo sentido que se desdobra em Benjamin e Derrida: ―Toda vida social é

essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram

sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática‖220

.

Derrida extrai da crítica de Walter Benjamin o trabalho de questionar a ideologia

jurídica. A justiça como direito é a tentativa de harmonizar essa intriga entre as violências que

circulam pelo direito. Os dogmas naturalistas ou positivistas camuflam um aparato ideológico

que, é claro, instaura uma interpretação a partir de uma economia simbólica. Para tanto, ainda

é preciso investigar o fundamento místico para a constituição dessa crítica à ideologia

jurídica.

217

DERRIDA, 2003a, p. 63. 218

BENJAMIN, 2001. p. 117. 219

Para uma tentativa de distinção entre esses conceitos, conferir: ARENDT, H. Da violência. In: ARENDT, H.

Crise da república. São Paulo: Perpectiva, 2006. p. 91-156. 220

MARX, M; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes

Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1945-1946). São Paulo:

Boitempo, 2007. p. 534-539.

75

3.3 Do fundamento místico da autoridade: para uma crítica da ideologia jurídica

O problema do fundamento não conduz aquele que o interroga a um porto seguro.

Antes de firmar posição, põe-se um entrecruzamento de caminhos que faz emergir as forças

que produziram o contexto de tal fundação. Nesse ponto, a autoridade segue como a expansão

de uma origem que se deriva historicamente pelo trabalho da dissimulação da própria origem.

Tudo parece bastante circular – a decisão que instaurou tal ordem não pertence a essa

circularidade, porém, é força de ruptura.

É preciso retomar a performatividade do crédito dado à autoridade. Contudo, este

performativismo não se evidencia imediatamente. Há um processo de esquecimento a partir

da justificação da ordem. Por isso, a tessitura da história é controlada para reinscrever o ato

criador da ordem nas camadas de sentido que ele produziu, constituindo uma interpretação

dentro da perspectiva contínua de tempo:

O próprio surgimento da justiça e do direito implica uma força performativa, quer

dizer, implica sempre uma força interpretativa e um apelo à crença: não, desta vez,

no sentido em que o direito estaria ao serviço da força, em que ele seria o

instrumento dócil, servil e, portanto, exterior do poder dominante, mas no sentido

em que ele manteria, com o que se chama força, o poder ou a violência, uma relação

mais interna e mais complexa.221

No instante de fundação da ordem legal, há uma indecidibilidade entre a força, o

poder, a violência e o direito. Forma-se uma rede em que um se reenvia ao outro sem cessar.

Nesse sentido, o sintagma força de lei torna-se o fundamento mais preciso e, ao mesmo

tempo, mais enigmático. Se, em sua gênese romana, há uma transferência entre decisão e

povo para decisão do imperador e magistrados, a decisão de declarar-se povo não se dá

imediatamente. Segundo Heidegger, a decisão de dizer nós somos o povo é fruto de uma

decisão sem estar na ordem do calculável:

Em conformidade, nós somos mesmo nós, em cada caso como nós somos, pela

igualdade e identidade do teor. Nós somos propriamente nós apenas na decisão e

cada uma individualmente.

[...] Apesar do afastamento do individuo, conforme com a decisão, realiza-se aqui

uma concórdia oculta, cuja ocultação é essencial. Esta concórdia é, no fundo, sempre

um mistério.222

221

DERRIDA, 2003a, p. 23. 222

HEIDEGGER, M. Lógica: a pergunta pela essência da linguagem. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2008. p. 112-113.

76

Derrida retomará esta lição em Declaração de independência. Quem é o signatário

da declaração de independência americana? A resposta mais direta: o povo, o bom povo

americano. Entretanto, se esse povo ainda estava sob o domínio inglês, como pode se

denominar de tal forma?

A assinatura inventa o signatário. Este só pode autorizar-se a firmar uma vez

chegado ao final, por dizê-lo de algum modo, de sua firma, e em uma sorte de

retroatividade fabulosa (grifo nosso). Sua primeira firma o autoriza a assinar.223

Novamente, a fábula se apresenta. Toda a decisão que institui a ordem é fabulosa,

pois começa por ela mesma – na crença que se toma por história. A fábula consiste no ponto

de ruptura de qualquer continum da narrativa fundacional:

O momento da sua fundação ou mesmo da sua instituição não é, aliás, nunca um

momento inscrito no tecido homogêneo de uma história, porque o rasga com uma

decisão. Ora, a operação de fundar, de inaugurar, de justificar o direito, de fazer a

lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e portanto

interpretativa que, em si mesma, não é nem justa nem injusta, e de nenhuma justiça,

nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente

poderia, por definição, garantir, contradizer ou invalidar. Nenhum discurso

justificador pode assegurar e deve assegurar o papel de metalinguagem, em relação à

performatividade da linguagem ou à sua interpretação dominante.224

Há uma mística na qual uma lógica jurídica encontra-se e tenta renunciar, ocultar ou,

até mesmo, aclarar. Não há melhor exemplo deste esquema que a norma fundamental225

. O

direito racional, na influência de Weber, deve possuir seu fundamento e sua justificativa na

norma. Norma sobre norma: é elaborado todo um escalonamento hierárquico para o

ordenamento até construir uma pirâmide de camadas de sentido que se determinam umas

pelas outras. Já se conhece a história. Quando se chega ao topo desse edifício normativo, há a

constituição. Logo, se o raciocínio precisa ser obedecido, ela deve ser validada por outra

norma. Qual o artifício? Encontrar uma norma auto-referente: seu fundamento torna-se o

próprio retorno à constituição.

No limite da ordem, há um pressuposto transcendental, um centro descentrado da

estrutura que consiste na tentativa de fechamento da ordem. Aquilo que seria uma

desvinculação ao argumento natural do direito, transforma-se em fábula. Assim, o trabalho do

martelo da desconstrução é de romper a ideologia de um poder constituinte pautado na

clausura da metafísica:

O ato de que os estados dos Estados Unidos foram unidos mediante a firma de seus

representantes revela ―a um tempo‖ tanto o coup de force de toda a lei como o passo

extático do tempo sobre o qual se baseia a força de lei. A marca – o passo do tempo

223

DERRIDA, 2009a, p. 17-18. 224

DERRIDA, 2003a, p. 24. 225

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 224-228.

77

– é a ―lei‖ da lei (a lei de que nenhuma lei pode justificar-se a si mesma). A

incapacidade radical de fundar a lei ―é‖ a incapacidade radical de evitar a demora do

tempo. O futuro anterior da lei determinante é a lei da força de toda lei.226

Tratando-se de uma questão temporal, o direito dissimula sua metafísica na constante

preocupação em fazer-se além da história. Tanto mais uma norma sobreviva, mais demonstra

sua universalidade. Nesse sentido, a pura forma da lei é essencial à relação do direito com o

tempo, ou melhor, a negação do tempo. Por isso, Derrida se atrela à teologia política para

expor a ideologia jurídica no seu íntimo. Quem melhor para ser signatário de uma declaração

de independência ou constituição que Deus? A performatividade da declaração se confundiria

com a constatação do ato, de direito e de fato; no instante da fundação, ser e dever-ser se

confundem:

A instância do juízo, a altura do Juiz Supremo, é a última instância de dizer o ato e o

direito. Podemos entender a Declaração como um vibrante acto de fé, como uma

hipocrisia indispensável para o golpe de força político, militar, econômico, etc., ou

mais simplesmente, mais economicamente, como o desdobramento analítico e

conseqüente de uma tautologia: para que esta Declaração tenha um sentido e um

efeito faz falta uma última instância. Deus é o nome, o melhor. Para essa última

instância e esta última firma.227

O exemplo mais próximo de como a força de lei recebe a assinatura divina é o

Preâmbulo da Constituição Federal brasileira (CF/88). Apesar de não possuir força normativa

(por decisão judicial, cabe ressaltar228

), não se diminui a força performativa deste porque são

reconhecidos os valores inscritos disseminados por toda a Constituição Federal229

. O valor da

rubrica de Deus é o performativo para dissolver a temporalidade do direito na força de sua

226

BEARDSWORTH, R. Derrida y lo político. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008. p. 143. 227

DERRIDA, 2009a, p. 22-23. 228

"Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de

norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa." (ADI 2.076, Rel. Min.

Carlos Velloso, julgamento em 15-8-02, Plenário, DJ de 8-8-03.). Cf. A Constituição e o Supremo. Disponível

em: http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/constituicao.asp. Acesso em: 15 jul. 2010 229

―Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a

correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei

8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se

contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá

de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça,

mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade

fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição

brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que ‗O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o

exercício de determinados valores supremos. ‗Assegurar‘, tem, no contexto, função de garantia dogmático-

constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‗exercício‘. Este

signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‗assegurar‘, tem o efeito imediato de

prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de

destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico‘ (...). Na esteira destes

valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas

constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.‖ (ADI 2.649, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia,

julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008.). Cf. A Constituição e o Supremo. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/constituicao.asp. Acesso em: 15 jul. 2010.

78

instituição. O fundamento místico se perfaz na violência que silencia e impõe o limite ao

conhecimento do mundo230

.

230

WITTGENSTEIN, L. Tratado lógico-filosófico e Investigações filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2008. p. 140.

79

4 A DESCONSTRUÇÃO É A JUSTIÇA: O LIMITE E A

PASSAGEM

4.1 A fissão da metonímia: o incalculável do cálculo

A filosofia ocidental, desde a antiguidade, firmou a identificação entre o direito e a

justiça. Há uma metonímia declarada: falar de justiça é falar do direito que a possibilita; ou,

dizer a lei é fazer a justiça – torná-lo justo ou ajustá-lo (endireitar). Nesse sentido, a violência

(fundadora e conservadora) gerenciada por dispositivos jurídicos assegura uma ordem. Assim,

o aparato jurídico agencia uma justa cristalização na harmonia da ordem. A justiça como

direito passa a ser um mecanismo ideológico, seu dogma mais eficaz, porém menos

pertinente.

A lei sempre expressará o justo? Toda articulação discursiva e institucional do direito

é montada na própria justificativa (torná-lo justo ou ajustado). De um lado, as camadas

performativas do texto jurídico construindo um manancial teórico-deôntico. A lei enuncia um

dever na medida em que professa tanto a garantia de um forte sentido para a vida quanto

promete, a todo instante, uma sanção, isto é, correção mediata para os eixos sociais. Se o texto

legal está aberto, sua manipulação não está: essas camadas discursivas se sobrepõem, de

procedimento sobre procedimento, comando sobre comando, técnica sobre técnica,

interpretação sobre (-) interpretação, passam do invisível ao visível. Institui-se, pois, um

aparato para práticas sociais a partir de um jogo performático.

Agentes são investidos através dessa textura. Eles mantêm o funcionamento. Vigiam

a porta escancarada da lei porque são autorizados para realimentar o jogo dos performativos.

São suportes, avatares da fantasmagoria da lei, visíveis e invisíveis, ao mesmo tempo, e, ao

passo que permanecem ajustando essa máquina a fim de perpetuar uma estrutura de

dominação, é sempre possível invadir a lei. Nesse instante, faz-se necessário que esses

agentes estejam preparados para conduzir a invasão, amortecendo-a. Por isso, precisam

adequar ou ajustar as singularidades à pretensão universal da lei.

Em uma oscilação brusca, o sistema atualizará seus mecanismos cognitivos a fim de

sofisticar sua clausura estrutural. Contudo, persiste uma interrogação: um tribunal é a justiça?

Tal indagação se reduz a um aparato discursivo-institucional?

80

Derrida complica o jogo binário entre teoria e prática jurídicas no instante em que

afirma: ―A desconstrução é a justiça‖231

. Todo o trabalho de Força de lei resume-se em

fissionar a metonímia: direito e/é justiça. Para Derrida, é necessário compreender a diferença

entre ambos, distingui-los, pois à medida que um golpe de força instaura a ordem – criando

uma interpretação – o direito tenta camuflar outras possíveis forças que o acometem em sua

imanência. Nesse ponto, a desconstrução aciona tais forças recalcadas: libera-se a produção

do sentido para o que virá sem saber o quê. Contudo, existe um limite.

O momento de maior colapso entre as forças é o instante de maior intensidade

transformadora: desloca-se para outro modo, pois uma força ou um conjunto delas se

sobrepôs e redefiniu o jogo. Encontra-se o momento limítrofe para abrir uma passagem, isto é,

o devir que chega.

Este limite-passagem é a justiça. Dentro do jogo de forças do direito, a justiça é o

momento de colapso da jogatina: não se poderá mais jogar da mesma forma. Logo, Derrida

propõe uma espécie de silogismo para sua argumentação:

1. A desconstrutibilidade do direito (por exemplo) torna a desconstrução possível.

2. A indesconstrutibilidade da justiça torna a desconstrução possível, confunde-se

mesmo com ela.

3. Conseqüência: a desconstrução tem lugar no intervalo que separa a

indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do direito. Ela é

possível como uma experiência do impossível, aí onde, mesmo se ela não

existe, se não está presente, ainda não ou jamais, há justiça. Por todo o lado em

que se pode substituir, traduzir, determinar o X da justiça, dever-se-ia dizer: a

desconstrução é possível, como impossível, na medida (aí) em que há X

(indesconstrutível), portanto na medida (aí) em que há (o indesconstrutível).232

A problemática da afirmação da desconstrução sendo a justiça opera na tessitura

dessas proposições. O silogismo de Derrida conclui o que se poderia denominar uma

contradição: experimentar o impossível ou ―a experiência da aporia‖233

. O instante destruidor

da metonímia é a possibilidade para pensar de outro modo o vínculo entre direito e justiça.

Por isso, negá-las uma identidade não significa anular a tradição ocidental. Dá-se uma nova

interpretação: sua relação se fundamentará na diferença entre ambos, ou seja, a différance

possibilitará essa relação:

É também preciso saber que esta justiça se endereça [s’adresse] sempre a

singularidades, singularidade do outro, apesar ou mesmo em razão da sua pretensão

à universalidade. Conseqüentemente, nunca ceder neste ponto, manter

constantemente vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos os limites

do nosso aparelho conceptual, teórico ou normativo em torno da justiça é, do ponto

231

DERRIDA, 2003a, p. 26. 232

Ibidem. 233

Ibidem., p. 27.

81

de vista de uma desconstrução rigorosa, tudo excepto uma neutralização do interesse

pela justiça, uma insensibilidade à justiça.234

Este capítulo pretende explicitar a distinção promovida por Derrida entre direito e

justiça. Ao tentar definir seus espaços e suas dinâmicas, uma concepção derridiana de justiça

poderá ser compreendida. Na aporia da indecidibilidade, justiça e direito não podem se opor, a

não ser que se queira cair na clausura da metafísica ocidental. É preciso expor o movimento

das diferenças que possibilita uma ordem suplementar da justiça para o direito. Também, é

preciso que, no cálculo do direito, haja uma negociação entre o incalculável e o calculável. Há

um imperativo para que o juízo seja fruto desse calcular.

O trabalho da différance se instala na relação entre direito e justiça. Se o direito é

desconstrutível e a justiça indesconstrutível, a tensão entre ambos é possível ao passo que um

torna-se o outro:

A ordem deste é preciso não pertencer propriamente, nem à justiça, nem ao direito.

Ela não pertence a um desses dois espaços senão transbordando-o para o outro. O

que significa que, na sua própria heterogeneidade, estas duas ordens são

indissociáveis: de facto e de direito. A politização, por exemplo, é interminável,

mesmo se não pode nem deve jamais ser total.235

Não se trata de destruir o direito pela desconstrução, contudo, as possibilidades de

devires são pensadas na ordem. É preciso, sim, destruir uma noção de tempo arraigada na

teoria do direito. O dogma do tempo contínuo e progressivo trava a possibilidade de mudança

na ordem. O direito, então, se cristaliza por meio de uma ideologia montada na normatividade

e suspensa de sua relação com a alteridade que lhe sobrevém – o rastro do real. Por isso,

Derrida propôs algumas aporias do direito para solicitar sua estrutura:

Em geral, a desconstrução pratica-se segundo dois estilos, que o mais das vezes ela

enxerta um no outro. Um assume o ar demonstrativo e aparentemente não-histórico

de paradoxos lógico-formais. O outro, mais histórico ou mais anamnésico, parece

proceder através da leitura de textos, interpretações minuciosas e genealógicas. 236

Neste capítulo, o questionamento se dará no primeiro dos dois estilos acima

mencionados. As aporias são a chance de interpretar o direito em seu limite. Diante da relação

entre a fronteira e o conceito que define o circular da metafísica, o direito possui sua fronteira

na vida, pois todo o campo de investigação necessariamente passa por lidar com os

acontecimentos dessa: ―Mas acontece que o direito pretende exercer-se em nome da justiça e

que a justiça exige instalar-se num direito que deve exercer-se (constituído e aplicado) pela

força enforced. A desconstrução encontra-se e desloca-se sempre entre esses dois‖237

. Se os

234

DERRIDA, 2003a, p. 33. 235

Ibidem., p. 47. 236

Ibidem., p. 36.

82

dois não se identificam, eles possuem uma relação ao passo que o direito é, ele estrutura-se, e

a justiça vem a ser – o devir múltiplo dos acontecimentos.

4.2 Aporias do direito

4.2.1 Primeira aporia: a epokhé da norma

Propor um pensamento da aporia para o direito passa a ser o primeiro passo para

possibilitar a justiça. Na primeira aporia, Derrida toma o instituto limítrofe da atividade

jurídica, a decisão. No instante em que o direito não se propõe mais lógica e precisa da força

pra suprir seus axiomas, o ofício do juiz consiste em se pôr nesse limite entre a vida (ou fato,

se quiser) e o próprio sistema. O trabalho do juiz avança até a saturação dos procedimentos

lógicos do ordenamento:

[...] o Direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras que

tendem a abranger todos os casos possíveis apresentados na ‗realidade‘, de maneira

a evitar ser surpreendido por um ‗déficit‘ jurídico de fato, por onde se poderiam

introduzir, no próprio Direito, práticas não jurídicas que viessem a prejudicar a

integridade do sistema.238

Essa aporia manifesta-se em processos limítrofes. O limite da ordem da verdade e da

justiça como direito, pois, da própria soberania da ordem deve manter-se assegurado do risco

de não poder incluir a vida. A credibilidade mesma de sua atividade reside em solucionar os

problemas da vida em geral. Dessa forma, abertura cognitiva do sistema, como o próprio

Luhmann a concebe, por exemplo, não pode comprometer a integridade do mesmo, ou seja,

seu fechamento normativo239

. Mesmo assim, Derrida evidencia uma interrogação sobre o ato

de decidir: para se fazer uma decisão justa, o juiz deve ser livre para decidir? Em que consiste

essa liberdade? Há uma decisão ou uma aplicação em relação à lei, regra ou norma?

É preciso ressaltar que a decisão tem força de lei. Estará equivalente e adequada à

própria integridade do sistema do direito. Contudo, seu processo constitui um risco àquele que

237

DERRIDA, 2003a, p. 37. 238

ALTHUSSER, 1999. p. 84. 239

MELO, Marcelo Pereira. A perspectiva sistêmica na sociologia do direito: Luhmann e Teubner. Tempo

Social: revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 351-373, jun. 2006. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702006000100018〈=pt>. Acesso em: 20

set. 2009.

83

a legitima. Na medida em que a norma lida com o programável ou calculável, a decisão tem

seu impulso perante o limite entre direito e vida. Assim, a decisão pode gerar cálculo, mas não

se origina dele: ela é da ordem do incalculável. Não é à toa que a suspensão ocorre na norma,

o ato de decidir exige um desvio para construir efeitos tanto no direito quanto na vida.

A epoché da norma traz o peso da decisão para a vida. Subverte-se, então, o próprio

método subsuntivo (implícito ou explícito em diversas teorias da interpretação) no jogo

interpretativo do juiz. Para tanto, é preciso esclarecer os rastros dessa aporia, principalmente

no conceito de epoché exposto na tradição filosófica. Cunhado no ceticismo pirrônico, epoché

significa a suspensão de juízo. Para alcançar a ataraxia (a tranquilidade da alma), o filósofo

cético não poderá desenvolver e expor seus juízos, dada a impossibilidade de decidir a

respeito da equivalência de argumentos sobre uma questão. Por isso, suspende-se o juízo.

O ceticismo inspira a aporética da decisão, isto é, ao passo que se instiga a decisão é

necessário encarar a possibilidade de não decidir, não escolher. Contudo, essa seria a

influência possível para Derrida, porém, diante da existência da aporia entre direito e vida,

recorrer-se-á a outro sentido de epoché. Desde seus primeiros trabalhos, o pensamento de

Derrida permanece ligado à fenomenologia de Husserl. Entre livros e artigos, ele torna-se

tributário dessa corrente filosófica. Embora não se trate de investigar a relação entre os dois, o

propósito passa por construir um recurso para compreender a dimensão em que a vida solicita

o direito. A primeira aporia seria o primeiro passo à possibilidade da justiça.

Primeiro, sua provocação recai sobre o papel do juiz no campo jurídico. O ofício

desse agente recai sobre uma aporia vertiginosa: ajustar uma norma geral a um caso concreto.

Produzindo, em nome da lei, a sentença, ele não decide efetivamente sobre a existência. A

sentença obedece a um programa jurídico de subsunção e justificação, isto é, de cálculo. Ao

contrário, uma decisão, para ser justa, deve suspender toda sua programação a fim de permitir

que os interesses em jogo se manifestem. Há uma quebra no mito da imparcialidade do juiz.

Ora, o magistrado temente ao princípio da imparcialidade apenas oculta sua total adesão

aquele que o autoriza. Sim, o juiz tem sua parcialidade em relação à autoridade que o sustenta.

A justiça de uma decisão está em revelar a singularidade do acontecido – o juiz julga

o passado que a ele se apresenta, porém não possui a total compreensão do futuro efeito dela.

Logo, é necessário ceder às exigências daqueles que o recorrem. No momento da provocação

da jurisdição, o outro chega à estrutura como um evento único. Sua unicidade manifesta a

diferença que pode não se adequar às formalidades. Para tanto, o juiz deve acolher sua

manifestação: dar-lhe a palavra, ouvi-lo. A agonística das partes movimenta uma gama de

interesses. Logo, dificilmente serão satisfeitas em sua inteireza:

84

Em suma, para que a decisão seja justa e responsável, é preciso que, no seu

momento próprio, se houver, ela seja, ao mesmo tempo, regrada e sem regra,

conservadora da lei e suficientemente destrutiva e suspensiva da lei para dever, em

cada caso, reinventá-la, re-justificá-la, reinventá-la pelo menos na reafirmação e na

confirmação nova e livre do seu princípio.240

O juiz julgará na contingência do acontecimento para solucionar a contenda sem uma

previsão possível. Por isso mesmo, o juiz deve assumir a responsabilidade de sua decisão.

Aquele que toma uma decisão em conformidade com a regra, não a tomou – é irresponsável.

Pode-se definir que possibilidade ontológica do processo é o contencioso. Vai-se ao Judiciário

em busca de uma solução para um determinado problema. O juiz não está para solucionar o

conflito contendo suas forças com uma medida exterior ao acontecimento, ao contrário, a

liberdade e responsabilidade desse só se efetiva na escolha a partir da emergência da

singularidade do acontecido.

4.2.2 Segunda aporia: a assombração (hantise) do indecidível

Já ficou explícita a questão do indecidível e da indecidibilidade, uma vez que a

decisão frente ao direito deve ter a experiência de sua impossibilidade para tornar-se possível,

o que explica a força de ruptura de uma decisão. Entretanto, o assombro refere-se a um

processo tanto subjetivo – consciência daquele que julga – quanto objetivo, no histórico da

decisão. O impulso para a decisão não tem sua garantia na razão do cálculo:

Começa, deveria em direito ou em principio começar, com a iniciativa de tomar

conhecimento, de ler, de compreender, de interpretar a regra, e mesmo de calcular.

Porque se o cálculo é cálculo, a decisão de calcular não é da ordem do calculável, e

não deve sê-lo.

Aquele que decide sustenta uma multiplicidade de fatores que o determinam. É o que

Derrida definiu como subjétil, ou seja, nem sujeito nem objeto – um suporte que possibilita

ambos241

. A subjetividade tem sua condição no suporte de outros conceitos: consciência,

intencionalidade, mas, também, inconsciência. Por isso, a fantasmagoria do indecidível nunca

se efetiva senão pelo trabalho entre o possível e o impossível:

O indecidível permanece apanhado, alojado, como um fantasma pelo menos, mas

como um fantasma essencial, em toda decisão, em todo o evento [événement] de

decisão. A sua fantasmaticidade destrói do interior toda e qualquer segurança, toda a

240

DERRIDA, 2003a, p. 38. 241

DERRIDA, J. Enlouquecer o Subjétil. Trad. de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ateliê; Editora da

UNESP; Imprensa Oficial do Estado, 1998. p. 26.

85

certeza ou toda a pretensa criteriologia que nos asseguraria a justiça de um decisão,

na verdade do próprio evento [événement] de uma decisão.242

Derrida não deixa certezas para se afirmar ou qualificar uma decisão como justa. A

primeira injustiça seria justamente adjetivar uma decisão por uma justiça. Pode-se tratar de

legal ou ilegal, legítima ou ilegítima, porém sem justiça determinada, ao passo que a decisão

adentra nos procedimentos institucionais, já se transforma em direito mesmo que o modifique

internamente.

4.2.3 Terceira aporia: a urgência que barra o horizonte do saber

A suspensão e a indecidibilidade no direito complica-se ainda mais por sua relação

com o tempo. O direito já sofre suas críticas por sempre estar atrasado em relação à

sociedade. A demanda, frente às instituições, não tem sua satisfação imediata: ―uma decisão

justa é imediatamente requerida, imediatamente, o mais depressa possível‖243

.

Nessa aporia, está, talvez, a declaração mais difundida do texto: ―o instante da

decisão é uma loucura‖. Na verdade, ela é uma citação das Migalhas de Johannes Climacus

(Kierkeegard)244

. A decisão é o conflito do discípulo em aceitar a doutrina do mestre. O que,

em certo sentido, revela o conflito de tempos no instante da decisão. O tempo instantâneo é a

própria suspensão temporal para o eterno. O conflito se dá na confluência dos tempos no

direito. No instante, decide-se o passado, o presente e o futuro do acontecimento. Há um

contra-tempo no instante pois não se perfaz nenhuma decisão no imediato daquilo que chega.

O juiz precisa ser Hamlet. Da loucura de sua situação possui o dever e a tarefa de

conciliar o tempo em crise do direito:

Amaldiçoa o destino que teria justamente destinado ele, Hamlet, a fazer justiça, a

endireitar as coisas, no reto caminho, a fim de que, em conformidade com a regra de

seu justo funcionamento, avance direito – e segundo o direito245

.

O cinismo de alguns agentes do direito está em sublimar esse conflito em uma

decisão pré-fabricada, isto é, num programa:

242

DERRIDA, 2003a, p. 41. 243

Ibidem., p. 43. 244

KIERKEGGARD, S. Migalhas filosóficas: Ou Um Bocadinho De Filosofia De João Climacus. 2. ed.

Petropolis-RJ: Vozes, 2008. 245

DERRIDA, 1994a, p. 37.

86

É verdade, em particular, do instante da decisão justa, que deve também rasgar o

tempo e desafiar as dialéticas. É uma loucura. Uma loucura, porque uma tal decisão

é, ao mesmo tempo, superactiva e sofrida, guarda qualquer coisa de passivo, de

inconsciente mesmo,como se o decisor não fosse livre senão deixando-se afectar

pela própria decisão, e como se ela lhe viesse do outro.246

De tal forma, o trabalho daquele que decide está no risco de perder-se a todo o

momento nas contradições entre os tempos, na fuga para arbitrariedade e na clausura dos

conceitos. Por isso, o direito tenta dissimular as aporias que o solicitam. O esforço em tratá-

las leva a um estado insustentável para as pretensões dominantes. Na experiência da

alteridade e no contratempo, o direito transbordaria à justiça, em um fazer e desfazer sua

tessitura.

4.3 Por um direito infinito: a abertura da experiência do impossível

Discorrer sobre a proximidade entre os trabalhos de Jacques Derrida e Emmanuel

Lévinas perpassa pela amizade e a interlocução que mantiveram durante toda a vida. Como

um referencial caro a Derrida, a ética levinasiana surgiu como uma alternativa a tradição

filosófica do ocidente. Assim, nos caminhos heterogêneos que suas obras traçaram, pode-se

marcar uma profunda intercessão: a diferença seria o horizonte de inspiração de ambos; logo,

o último moralista de nossa época tem uma contribuição pertinente ao pensador da

desconstrução.

Na condição humana do início do século XX, encontra-se a irrupção de duas guerras

aniquiladoras. Desde a infância, Lévinas conviveu com o trauma dos conflitos bélicos entre os

povos. Da fragilidade da existência, tentou desenvolver uma filosofia sem a ilusão do projeto

moderno: ―Facilmente se concordará que importa muitíssimo saber se não nos iludiremos com

a moral‖ 247

. Mesmo se apropriando de uma linguagem tradicional e tendo influências

relevantes como Husserl e Heidegger, Lévinas transvalora o primado metafísico ocidental.

Não haveria imperativos categóricos para dirigir a consciência moral, a própria consciência –

enquanto local da subjetividade – seria posta em questão.

Logo em sua tese central, ele subverte: a ética é a filosofia primeira. Para romper

com o paradigma posto desde a antiguidade, há uma inversão de centro a partir do momento

em que se propõe um pensamento ético como instância fundamental ao discurso filosófico.

246

DERRIDA, 2003a, p. 44. 247

LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1980. p. 9.

87

Antes de se questionar sobre o ser e a verdade, o homem deveria dar-se em relação ao Outro.

Antes da teoria, há a vivência com o que é estranho e estrangeiro. O que no paradigma

moderno firmou-se enquanto autonomia, Lévinas conjuga em uma heteronomia. Na irrupção

dos processos conscientes e livres, o desejo e a necessidade articulam-se em relação ao Outro;

mais especificamente, outrem é quem instiga a percepção e o pensamento.

O primado da filosofia levinasiana reside na alteridade. Do que se faz estranho e

arisco à formalização na lógica do mesmo, é aberta uma instância alter-nativa, um

pensamento outro (alter) – outro-modo-de-ser. A condição de possibilidade da filosofia

perpassa a experiência com a infinitude de outrem. A ideia de infinito atua como ponte para

tal experiência: a ideia que pensa mais do que pensa excede a subjetividade e evidencia a

separação absoluta entre o Eu e o Outro: ―A alteridade de Outrem não depende de uma

qualidade que o distinguiria de mim, porque uma distinção dessa natureza implicaria entre nós

a comunidade de gênero, que anula já a alteridade‖ 248

.

Diante do primado ético de Lévinas, em um ensaio compilado em A escritura e a

diferença249

, Derrida inicia suas considerações a partir da evidência da morte da filosofia. Se

não morte, poder-se-ia dizer agonia. A violenta abertura do discurso filosófico arranca a sua

possibilidade contra o não-filosófico – ―seu fundo adverso, seu passado e sua faticidade, sua

morte e seu recurso‖250

. Na mortalidade da filosofia, o pensamento depara-se com seu devir

em relação a problemas que ela não pode responder. A pedra angular, como observa Derrida,

de uma possível comunidade entre os filósofos, só pode se efetivar na comunidade da questão.

O outro ronda, de forma selvagem, a desconstruir toda segurança construída na

neurose da totalidade. Não há como analisar a alteridade conjugada a compreensão de uma

espécie no gênero: ―A alteridade de Outrem não depende de uma qualidade que o distinguiria

de mim, porque uma distinção dessa natureza implicaria entre nós a comunidade de gênero,

que anula já a alteridade‖ 251

. Além da conceituação, de outro modo que o Ser, sem

classificação ou categorias, outrem dissimula a com-preensão do Mesmo:

A relação entre Outrem e eu brilha na sua expressão não desemboca nem no número

nem no conceito. Outrem permanece infinitamente transcendente, infinitamente

estranho, mas seu rosto, onde se dá a epifania e que apela para mim, rompe com o

mundo que nos pode ser comum e cujas virtualidades se inscrevem na nossa

natureza e que desenvolvemos também na nossa existência. 252

248

LEVINAS, 1980. p. 173. 249

Cf. DERRIDA, J. Violência e metafísica: ensaio sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. In: A escritura e

a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 111-223. 250

Ibidem., p. 107. 251

LEVINAS, op. cit. 252

Ibidem., p. 173.

88

A relação com Outrem é um querer sem poder, ou um poder que não pode.

Interrompe a possibilidade de ser apreendido enquanto objeto:

Ela não equivale à distância entre sujeito e objecto. O objecto, como sabemos,

integra-se na identidade do Mesmo. O Eu faz dele o seu tema e, desde logo, sua

propriedade, seu espólio, sua presa ou vítima. A exterioridade do ser infinito

manifesta-se na resistência absoluta que, pelo seu aparecimento – pela sua epifania –

opõe a todos os poderes. 253

Poderíamos questionar se a resistência de outrem já não seria uma produção de

poder. Contudo, o Outro apenas revela-se em sua impossibilidade de negá-lo. Ele não

comporta uma apropriação negativa como o objeto. Sua negação só poderá ser total no

homicídio. O objeto está para ser compreendido, pois depende do Eu. Outrem é independente.

Assim, ele é o único ente que posso querer matar. Para Levinas, a alteridade significa o outro

homem. A relação ética dá-se entre pessoas. Por isso, o poder emanado dessa relação é a

derrota do próprio poder:

Eu posso querer. E, no entanto, este poder é totalmente o contrário do poder. O

triunfo deste poder é sua derrota como poder. No preciso momento em que meu

poder de matar se realiza, o outro se me escapou. Posso, é claro, ao matar, atingir

um objetivo, posso matar, como faço uma caçada ou como derrubo árvores ou abato

animais, mas neste caso, apreendi o outro na sua abertura do ser geral, como

elemento do mundo em que me encontro, vislumbrei-o no horizonte. Não o olhei no

rosto, não encontrei seu rosto. 254

O outro – como havia enunciado acima – manifesta-se como Rosto. É nele que

outrem possui sua significação ética. No entanto, deve-se entendê-lo não em sua estética, em

sua plasticidade. O rosto é uma significação sem contexto. O desejo de infinito é posto em nós

pela expressão do Rosto: ―Acto puro à sua maneira, ele recusa-se a identificação, não entra no

já conhecido, socorre-se a si mesmo, como diz Platão, fala. A manifestação do rosto é toda ela

linguagem‖ 255

. O imperativo que o rosto expressa é a sua impossibilidade de ser morto: Não

matarás! O rosto é desnudado, não admite um perfil, ele é linguagem. Assim, ele escapa de

ser morto porque já se expressa como um vestígio do outro. Outrem nunca se revela em sua

completude.

Como um elétron, movimenta-se por uma indeterminação, caminha entre o Dizer e o

Dito. Entretanto, sua origem é puramente dizer. Assim, qualquer tentativa de estabelecer seu

conceito já é uma traição e, mesmo assim, um insucesso. Nesse sentido, a fim estabelecer um

253

LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

p. 210. 254

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre alteridade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 32. 255

LEVINAS, 1997, 211.

89

elo com a diferença radical surge, a partir do Rosto, a linguagem. Na transcendência do Outro,

o discurso une os termos, mas deixa-os desvinculados:

A linguagem é uma relação entre termos separados. A um, o outro pode sem dúvida

apresentar-se como um tema, mas a sua presença não se funde no seu estatuto de

tema. A palavra que incide sobre outrem como tema parece conter outrem. Mas já se

diz a outrem que, enquanto interlocutor, abandonou o tema que o engloba e surge

atrás do dito. 256

O discurso seria a via pela qual Outrem interpela o Eu. Há uma oposição contida na

relação, porém não se reduz às convicções dialéticas do Mesmo. A linguagem mede a relação

tanto a partir do Outro quanto na resposta do Eu. O rosto incita a palavra sem deixar-se definir

por ela:

O facto de o rosto manter pelo discurso uma relação comigo não o inscreve no

Mesmo. Permanece absoluto na relação. A dialética solipsista da consciência,

sempre receosa do seu cativeiro no Mesmo, interrompe-se. A relação ética que está

na base do discurso não é, de facto, uma variedade da consciência, cuja emanação

parte do Eu. Põe em questão o eu e essa impregnação do eu parte do outro. 257

Outrem é transcendente, então, na medida em que se expressa já se dá ausente: ―O

além de onde vem o rosto é a terceira pessoa‖ 258

. Dessa forma, ao mesmo tempo em que

outrem é o tu, também é ele: a manifestação paradoxal do vestígio. A partir disso, Levinas

estabelece o princípio de Eleidade no qual há um terceiro de onde vem o outro e onde ele

escapa em ausência. O rosto é visitação e transcendência, ou seja, se expressa tanto na

linguagem através da qual o Eu o percebe quanto na ausência que instiga o sujeito em ser

responsável.

A justiça feita na relação com outrem, encarando e dispensando-o, somente pode ser

concebida a partir de outrem. Ora, se quer se fazer o bem, aquele a quem devemos responder,

isto é, o Outro, é que possui o direito de dizer qual é o seu bem. Em sua altura, é o outro que

determina a obra de bondade, foi ele quem nos colocou o desejo de ir além, então, Outrem é

nosso mestre. O semblante da alteridade no rosto é expresso no semblante do pobre, do

estrangeiro, da viúva e do órfão. Ao mesmo tempo em que é poderoso em sua trans-

ascendência, sua altura, há o rebaixamento de sua condição. No entanto, um glorioso

abaixamento.

Outrem me faz frente, não posso ser indiferente a ele. Entretanto, não serei Eu a dizer

o que ele precisa. A bondade não está em manipular a vontade de outrem, está em deixá-lo

falar, ordenar a minha ação. A heteronomia só é possível a partir de outrem. A subjetividade é

256

LEVINAS, 1980. p. 174. 257

Ibidem. 258

LEVINAS, 1997. p. 241.

90

concebida por outrem. A consciência moral é um desejo do Outro. Assim, a ambiguidade de

sua condição remonta na alteridade a origem da socialidade, seria a própria fonte para

desvelar o mundo e a pulsão para a vida.

Sendo um pensador ativo na religião judaica, esta constitui a primeira fonte de sua

moral. A Torá – bíblia judaica – é uma de suas primeiras leituras. Ela é vista pelo filósofo

como fonte original de sua moral: ―É a extraordinária presença das suas personagens, é esta

plenitude de ética e as misteriosas possibilidades de exegese que significam originalmente‖

259. No lastro desse pensamento, existem as interpretações bíblicas dos antigos rabinos ao

longo da história que se consolidam no Talmude Torá (estudo da Torá).

O filósofo, temente a suas crenças, busca a inspiração dessas interpretações para

compor sua obra filosófica, agregando o sentido religioso da alteridade, porém sem cair em

qualquer teologia. O sentido da religião é em sua perspectiva ética. Dessa forma, ele manteve

contato com suas tradições participando de colóquios sobre o pensamento judeu. Na

interpretação das lições talmúdicas, Levinas revela a ideia de um direito infinito. Na

conferência ministrada no Colóquio de Intelectuais Judeus de Língua Francesa, chamada

Judaísmo e revolução, o filosofo franco-lituano tece suas considerações sobre uma passagem

talmúdica.

A passagem conta a história sobre a condição para contratar operários para uma obra

determinada. Desde o início percebe-se que a leitura bíblica tem um vínculo profundo com a

vida cotidiana a fim de retratar lições morais para quem as lê. Assim, a história se dá quando

o rabi João bem Matias manda seu filho contratar operários. Na prescrição de que o acordo

deve estar conforme o costume do lugar, seu filho contrata operários, incluindo a alimentação

deles, enquanto durasse a obra. No retorno, o pai contesta a contratação com o argumento de

que, ―mesmo que você lhes preparasse uma refeição igual à que o rei Salomão servia, não

estaria quite com eles [...]‖ 260

. Assim, o filho volta para especificar a que tipo de alimentação

os operários teriam direito.

A modificação do contrato se dá com base no costume do local. De acordo com as

práticas de cada região, o contrato será firmado. Nesse sentido, ―a Mishna afirma os direitos

da outra pessoa [...]‖ 261

, definindo até onde a liberdade de negociação vai. O rabi ensina pôr

em questão a própria liberdade, em favor da pessoa em sua unicidade. O costume é a

produção do direto de cada um diretamente em seu âmbito materialista. É na convivência

259

LEVINAS, E. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1982. p. 17. 260

LEVINAS, E. Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2001. p. 15. 261

Ibidem. p. 20.

91

entre o Eu e o Outro que será instituído o direito da outra pessoa: ―A natureza dos limites

impostos é fixada pelo costume e evolui com o costume. Sua generalidade é tribal e um pouco

infantil, mas é uma generalidade, matriz da universalidade e da Lei‖ 262

.

Para além da estrutura de códigos, a experiência original no Dizer da alteridade é o

fundamento de uma ordem justa, que vem a retomar o sistema de leis. Há, pois, um resgate do

humanismo para o direito: ―Humanismo autêntico, humanismo materialista‖ 263

. A partir da

condição concreta do outro é que a responsabilidade é delimitada. O direito garantido em um

ordenamento é primeiramente o direito de outrem, em detrimento de meu direito. Nessa

perspectiva, existem ―as indicações sobre a extensão do direito do outro: é um direito

praticamente infinito‖ 264

. A revelação do rosto de outrem remete a uma ordem outra para a

razão. A consciência da humanidade é a consciência do outro, então, os deveres para com

outrem não têm limites.

Numa posição contra o contratualismo moderno, não é no contrato que surge a

sociedade ou que se extingue a violência entre os homens. O direto infinito de outrem e a

obrigação infinita do eu é que formam a base do Estado. Entretanto, o contrato surge no dito

da racionalidade perpassada pela originalidade do dizer:

Mas onde o outro é, em princípio, infinito para mim, pode-se, numa certa medida –

porém apenas numa certa medida –, limitar a extensão dos meus deveres. Trata-se,

no contrato, de limitar meus deveres mais do que de defender meus direitos.265

No texto trabalhado, Levinas aborda a questão do proletariado como classe

revolucionária. Para romper a alienação que assola os operários, o filósofo conduz uma

reflexão entre a revolução e a alienação:

Como se toda alienação não fosse superada pela consciência que a classe operária

pode tomar de sua condição de classe, e de luta; como se a consciência

revolucionária não fosse suficiente para superar a alienação; como se a noção de

Israel, povo da Torá, povo velho como o mundo e a humanidade perseguida,

trouxesse em si uma universalidade mais alta do que a de uma classe explorada e em

luta; como se a violência da luta já fosse uma alienação. 266

Não se pode reduzir a reflexão sobre o marxismo, como se fosse calcado em

violência. Levinas não adere a reducionismos. No entanto, a reação violenta como forma de

contradição já se faz uma resistência dialética para afirmar a totalidade. Gilles Deleuze

discorre de maneira similar a dialeticidade do proletariado:

262

LEVINAS, 2001, p. 20. 263

Ibidem. p. 20. 264

Ibidem. p. 21. 265

Ibidem. p. 25. 266

Ibidem., p. 23.

92

A contradição não é a arma do proletariado, mas a maneira pela qual a burguesia se

defende e se conserva, a sombra atrás da qual ela mantém sua pretensão de decidir

os problemas. As contradições não são ‗resolvidas‘, mas dissipadas quando a

apropriação do problema que nelas apenas projetava sua sombra. Em toda parte, o

negativo é a reação da consciência, a desnaturação do verdadeiro agente, do

verdadeiro ator. 267

Na concepção levinasiana, o marxismo é uma expressão de alteridade. Quando não

desemboca em stalinismo que é degenerescência de um discurso contra o poder político, o

marxismo desconstrói o poder político na reivindicação daquilo que por direito a totalidade

deveria ser responsável: ―Não porque ele tivesse tido grande êxito, mas porque tomou o Outro

a sério‖ 268

. A tentativa de se formular uma alternativa a partir da diferença é, para Levinas, o

ponto de desequilíbrio da Totalidade rompida pelo infinito.

A justiça concretiza-se num direito para além da codificação que interfere na própria

interpretação do direito posto. A hermenêutica, como meio de compreender a condição de

outrem, é o ponto fundamental do direito infinito. Nessa perspectiva, a justiça seria a

produção de uma ordem em que o devir vem de outrem. O Outro atua no dizer e desdizer da

estrutura, o movimento é através da unicidade de outrem ao infinito. Assim, o direito sai de

sua abstração positivada para transcender a vida do outro, que já é outro modo de ser. Sobre

esse horizonte, Jacques Derrida conclui a partir da lição de Levinas:

A justiça permanece por vir (à venir), ela tem que vir, está por-vir (à venir), ela

desprega a própria dimensão de eventos (événements) irredutivelmente por vir (à

venir). Ela terá sempre, este por-vir (à venir), e tê-lo-á sempre tido. Talvez seja por

isso que a justiça, na medida em que não é apenas um conceito jurídico ou político,

abra ao porvir a transformação, a reforma ou a refundação do direito e da política. 269

A alteridade conjuga a sua infinitude, por conta de sua exterioridade, um devir para o

Eu a que o Outro se apresenta rompendo sua mesmidade. Dessa forma, a justiça é encontrada

no face a face com outrem, para além de qualquer segurança. Ela já é o risco de não conter-se

em si. O direito é corrompido por outrem porque não pode calculá-lo. Assim, outrem é a

diferença que afeta a decisão de lei. O ordenamento que contém a alteridade silenciando-a

permanece na geração da violência pela estrutura. Outrem é a origem da justiça e do direito

justo, a partir da expressão original (dizer) que funda a própria verdade (dito).

267

DELEUZE, G. Diferença e repetição. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 373. 268

LEVINAS, 2004, p. 163. 269

DERRIDA, 2003a, p. 46.

93

4.4 Justiça porvir a contratempo: o fora dos eixos da história

A questão aporética da justiça revela uma concepção de tempo e história a partir do

pensamento da desconstrução. A experiência do outro instaura um deslocamento no

paradigma da temporalidade e da historicidade, pois a justiça acontece na intempestividade do

porvir. Se o direito consiste em uma construção para o ser de uma sociedade habitar, à medida

que domina a existência, ele precisa de uma dimensão temporal a fim de assegurar sua

dinâmica no seio desse domínio.

Derrida pensa a transformação da ordem no nível em que não apenas a sua estrutura

se modifique, mas, além disso, a experiência do tempo e a constituição histórica sejam

alteradas, isto é, desloquem a vida para além. É preciso pensar a relação do tempo e da

história instituída no direito. Para, assim, compreender como a justiça é a oportunidade para

uma revolução cultural na filosofia do direito. Na lição de Agamben:

Da mesma forma, toda cultura é, primeiramente, uma certa experiência do tempo, e

uma nova cultura não é possível sem uma transformação desta experiência. Por

conseguinte, a tarefa original de uma autêntica revolução não é jamais simplesmente

―mudar o mundo‖, mas também e antes de mais nada ―mudar o tempo‖.270

O direito negocia com a justiça. A justiça está por vir, a chegar – não se dá ao direito,

nem por direito ao programa do direito. The justice is out of joint (a justiça está fora dos eixos

ou fora dos gonzos). Antes de tal negociação (acordo, contrato, tratado), a justiça irrompe a

possibilidade de negociação, possibilidade impossível (inegociável), pois sua ruptura dá-se

justamente no desajuste.

Solicitada pela justiça, é posta frente a frente a sua temporalidade (historicidade,

possibilidade de porvir) na medida em que o âmbito jurídico se encontra retardado em relação

à sociedade, diferido dela. Direito em diffèrance reverte-se em direito à diffèrance. Se fosse

possível falar em direito justo, já seria desajustado. Perante a justiça, o direito encara seu fora

de tempo, seu contratempo social. Por um lado, no exercício dos tribunais, na entranha do

universo jurídico, a jurisprudência sofre uma dupla injunção: ao mesmo tempo, processo de

captura e seleção, logo limite, mas também passagem, pois sempre é possível o novo, o não-

decidido que exige e clama decisão.

Tanto o processo de captura é desajustado de seu tempo, porque necessita historicizar

a norma – sempre adiada em virtude do fato passado, ainda a chegar a ser jurídico para enfim

270

AGAMBEN, G. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2005. p. 111.

94

se atualizar – quanto a decisão não tomada, mas exigida, rompe com a previsão e o

precedente.

É fora de tempo tanto quanto out of joint, desajustado. Por outro lado, no subterrâneo

político, no inconsciente do direito, é preciso lidar com o desajuste do conflito produzido no

espaço político. O direito está por fazer e fazendo – são regras do jogo político que também

são jurídicos, que produzem, reproduzem e renovam o jurídico. O desenvolvimento desigual e

combinado de escrever reescrevendo a legislação. O direito não é contemporâneo da decisão

que inaugura o direito:

O que se diz do tempo é válido também, por conseguinte, ou por isso mesmo, para a

história, mesmo se esta última pode consistir em concertar, nos efeitos de

conjuntura, e se trata aqui do mundo, a disjunção temporal: The time is out of joint, o

tempo está desarticulado, demitido, desconjuntado, deslocado, o tempo está

desarticulado, concertado e desconcertado, desordenado, ao mesmo tempo

desregrado e louco. O mundo está fora dos eixos, o mundo se encontra deportado,

fora de si mesmo, desajustado.271

Essa é a oportunidade de pensar a justiça fora dos eixos. Não mais uma justiça, mas

justiças que devem na vida e pela vida. A história deve ser construída num tempo

multivetorial, contraditório. Por isso, histórias a cada tempo em muitos. A justiça compromete

a integridade do direito no acontecimento não dialético. Os processos emancipatórios são o

exemplo utilizado por Derrida. As diferenças constituem afirmação da vida que o direito não

controla, mas circula entre ele. Assim, o justo tona-se o injusto, pois não há justiça que possa

dar conta de tudo ou do todo. Cada um apenas uma vez... O justo chega, transforma e

perpassa. Nesse sentido, não há direito que possa se fazer seguro, mas um direito que afirme a

vida.

271

DERRIDA, 1994a, p. 34.

95

CONSIDERAÇÕES FINAIS – O DEVIR, JUSTIÇA DA DESCOSNTRUÇÃO

O que é a justiça? Como reconhecer o justo ou o injusto? Pode o justo tornar-se

injusto? Tais perguntas obsedam toda uma história da filosofia e do direito. O tema habita

uma fronteira em relação a esses dois âmbitos de conhecimento. Na verdade, por ser

fronteiriça, a justiça transita entre a vida e a lei e, na medida em que não se pode, ao certo,

defini-la dentro ou fora do campo do direito, ou mesmo exclusivamente como um debate

filosófico, ela alarga os contextos de ambos.

A condição para compreender o devir-justiça da desconstrução passa por revelar este

movimento. Então, sua aporia ao mesmo tempo permanece inscrita nos dois campos, ou seja,

tanto possibilita a desconstrução, como também propõe a lição do texto, Força de lei: o

fundamento místico da autoridade. Uma vez que o trabalho de Derrida foi elaborado a

partir da proposta temática Desconstrução e a possibilidade da justiça, em torno de um

congresso universitário de direito, foi preciso definir certas bases para entender a própria

desconstrução. O primeiro passo, logo, consistiu em traçar a dimensão histórica na qual os

trabalhos de Derrida estavam inseridos.

Em meio a um contexto estruturalista, o filósofo propõe uma leitura da tradição

filosófica e literária. Nas linhas de força que constroem um texto, Derrida desvelava a

estrutura na medida em que subvertia as relações estruturantes e deslocava o foco da

interpretação. Por sua influência nietzschiana, as formas são solicitadas pelas forças que as

constituem. Assim, é preciso transvalorar os modelos vigentes na história do pensamento

ocidental. Há uma mudança de percepção posto que, à margem, o excesso surge. A

desconstrução, por isso, acontece – chega manifestando uma singularidade.

A realidade, para Derrida, instaura-se na relação com todo outro, isto é, o rastro

originário. Tal relação não propõe uma origem, mas demonstra o movimento aporético que

constitui a existência. Ora, a relação com todo-outro possibilita o saber, ao mesmo tempo em

que revela sua relação com o limite, isto é, a impossibilidade de ser pleno. Dessa forma,

Derrida assume um método exorbitante: não há fora-do-texto. Isso significa a necessidade de

manter-se dentro do contexto frente a tantos outros contextos possíveis. Assim, a realidade e a

verdade são frutos de um contexto, ainda que sem saturação possível.

A linguagem guarda os rastros nos quais a existência se movimenta. Não se trata de

um programa de construção do real e da verdade. Como a linguagem não pode comunicar a

96

essência, é preciso lançar-se no sem-fundo da vida. Entretanto, isto não impede que se

edifiquem formas que auxiliam a lidar com o trágico, mas não impedem a contingência dos

rastros. Nesse sentido, a relação com o outro se abre na possibilidade do sem fundo, ou seja,

na impossibilidade de definir logicamente a vida, multiplicam-se os possíveis modos de viver

na diferença. A desconstrução, pois, aparece como uma invasão da vida dentro das estruturas

formais que constituem perspectivas de controle ou representação sobre a mesma.

Pensá-la enquanto um acontecimento leva a considerar o trabalho da diferença ou a

différance. Por um lado, produz-se uma gama de aparatos para conter este movimento. Os

conceitos, as ideias, os códigos tanto quanto as ruas, os arranha-céus, os bancos são a tentativa

de instaurar uma ordem em si no sem-fundo. Em contrapartida, os mesmos artifícios que

protegem essa estrutura, veem a comprometê-la. São, assim, convicções que estagnam a

manifestação da vida. As ideias e os conceitos não respondem a totalidade dos problemas; os

monólitos aquecem o cotidiano das cidades; e, as exigências dentre os povos não se sanam em

créditos ou sentenças. Por isso, a différance consiste na dinâmica inconciliável entre as

estruturas e os acontecimentos.

O direito permanece enquanto uma estrutura de controle e dominação da vida. A

norma apropria-se de acontecimentos ao passo que constitui um programa. Assim, a

programação do ordenamento subsume as singularidades em casos particulares que a

depender da intensidade são qualificadas como difíceis ou fáceis. Nesse sentido, é preciso

deter-se sobre a forma da lei. O processo formal instaura uma captura e uma seleção

dispondo, assim, o fechamento para si. A formalidade do direito constrói a própria visão de

ordenamento enquanto uma pirâmide, configurando, assim, um signo de eternidade e império,

mas também um imenso mausoléu. Nesse caso, seu interior encontra-se vazio. Para tanto, esta

dinâmica de representação é conduzida por um aparato de atos performativos.

A linguagem permanece como o plano em que o jogo de remessas da

performatividade do direito se realiza. A força performativa efetua o trabalho de organização

do campo jurídico. Desde a atividade profissional à teórica, o direito perpassa uma lógica em

que as palavras significam ação. Toda norma professa um estado de coisas que se quer

universal e efetivo. Ao passo que a lei versa sobre meios e fins, por exemplo, a sua teleologia

torna-se uma promessa. Essa promessa define-se na transição de um enunciado geral a um

caso particular, ou seja, há uma expectativa de que o comando indique um caminho

meticuloso que venha a satisfazer a condição singular do evento.

Na articulação do campo jurídico, é preciso que determinados atos complementem a

estrutura. A discricionariedade de agentes permite a construção de interpretações que

97

possuem efeito perlocucionário sobre as demandas do sistema. Dessa forma, há o trabalho de

fechamento e possível saturação do ordenamento frente a questões da vida. Contudo, o ato

discricionário – ou, de maneira vulgar, a vontade – do agente deve possuir credibilidade para

sua obediência. Assim, um dispositivo criado no direito romano das Institutas é acionado para

ajustar as determinações individuais ao direito, alavancando a ordem universal. Este é o

sintagma força de lei: um mecanismo metafórico produzido para dar equivalência de lei às

determinações volitivas do imperador frente a seus súbitos.

Na medida em que a figura de autoridade se sustenta em uma metáfora relativa à

legalidade, a violência que a instaura não pode ser julgada enquanto justa ou injusta, pois a

força de lei lhe confere uma forma. Por isso, os eixos se ajustam e o ordenamento ganha uma

estabilidade. A dominação em todos os seus tipos reveste-se da forma de lei. Nesse ponto, a

violência criadora-conservadora do direito é definida enquanto uma decisão em que os limites

da ação jurídica são postulados em referência à lei. Da constituição aos atos institucionais de

uma ditadura, deve ser conferida uma credibilidade de lei, isto é, sua legitimidade. No

entanto, a própria lei é pura forma vazia. Há uma interdição em se conhecer a lei no vazio.

A autoridade encontra seu fundamento nesse vazio de significação. É o instante em

que Derrida denomina a mística como o paradigma para a sustentação daquele que domina. Se

a autoridade é entendida como uma relação de respeito à origem, este ponto originário está

interditado de sentido. Ao escalar a pirâmide jurídica, não há encontro com qualquer

divindade que assegure uma arqueologia ou uma escatologia ao direito. Para proteger o

monólito, é necessário incitar a crença sobre o oco da lei. O direito, portanto, não tem seu

fundamento na verdade ou falsidade do vazio, mas na força que o movimenta. A violência

mítica do direito se efetiva no vazio da forma da lei.

Contemplando a imensidão do edifício, Derrida sabe que esse não é feito de concreto

e mármore, mas de palavras, textos e contextos: a pirâmide constrói-se em papel. A

desconstrução torna-se possível na própria impossibilidade do vazio da lei. É a vigência sem

significado, segundo Agamben, ou seja, a conjugação entre força e nada é o alvo da

desconstrução. É a experiência do impossível no tempo, abrindo uma passagem para deslocar

os eixos jurídicos. É pensar o direito no limite – pensá-lo na aporia temporal. Desse modo, a

justiça só é possível enquanto desconstrução. Ela já não é estrutura ou forma, mas

acontecimento – trabalho da diferença no rastro. Sofre, portanto, um processo de

transvaloração porque, enquanto evento, ela sucede a vida em si por contratempo.

O pensamento da aporia impulsiona as questões de direito ao estado em que se

tornam questões de fato, porém este fato não se evidencia sobre formatações. Nesse ponto,

98

Derrida propõe suas aporias. Primeiro, a epoché da norma tem uma dupla injunção (doble

bind): por um lado, permite a manifestação dos outros no processo, evidenciando uma

experiência para além do programa jurídico; de outro modo, denuncia o vazio da

imparcialidade do juiz, no instante em que seu compromisso não é com a experiência, mas

com a estrutura normativa.

Seu ofício o apresenta ao descompasso entre ao campo jurídico e o campo social. É

preciso resolver esta desarmonia originária em sua demanda. Por isso, a suspensão provoca a

responsabilidade do juiz. Enquanto aquele que vai decidir em vista da existência do outro, o

juiz cria o direito a cada caso na sua singularidade. Respondendo a primeira aporia, a decisão

será considerada justa, pois permitiu que a vida fosse tomada como valor primordial. O

evento não se tornou caso a ser catalogado apenas. É, contudo, história, inscrição de

temporalidade no direito, logo, constituindo uma verdadeira jurisprudência e também a

realização da jurisdição como uma lição de vida.

A segunda aporia, consequentemente aponta a relação entre a necessidade do cálculo

no direito e o incalculável cortando a decisão. Se a epoché permite a manifestação do outro

frente à universalidade da norma, há uma segunda consequência nessa experiência, a

indecidibilidade. Todo o risco da decisão está na indecidível experiência do estrangeiro. O

acolhimento de todo outro reside nessa impossibilidade de conhecê-lo plenamente. Por isso, a

assombração revela a fenomenologia do heterogêneo. A diferença trabalha no espectral

denotando que o tempo se faz heterogêneo tanto quanto o espaço. Então, não pode haver uma

decisão no instante presente. O tempo é conflito, a loucura das possibilidades: não se sabe o

início, nem se haverá termo. Contudo, a tensão entre o passado e o futuro não permite uma

presença. A decisão estrangula um passado inconciliável e um futuro sem previsão. Não se

sustenta qualquer dogmatismo na experiência do indecidível.

A terceira aporia chega como urgência possibilitada indecidivelmente. É o

acontecimento na abertura em que a velocidade do devir é incalculável. Na tentativa de

apreender o evento enquanto tal, a decisão rompe com o processo de racionalização. Desse

modo, o evento implica a própria subjetividade daquele que decide. Não garantia que a

consciência instaure o corte. A subjetividade se esvai porque se revela como um suporte que

antes sustentava a estrutura e a partir da indecidibilidade, sustenta o peso do evento. No

instante que se afirma um eu decido, esse eu já se passou por outros, foi fragmentado. Quando

vem a restabelecer a ordem, já não se garante um raciocínio ou motivação exatos, apenas um

imperativo a decidir.

99

As três aporias apontadas por Derrida se firmam no limite entre o direito e a vida.

Em que medida a vida invade o direito? Essa é a questão do porvir da desconstrução da

justiça. Trata-se, pois, da virada ética do pensamento derridiano. É preciso compreender que a

desconstrução não propõe um projeto moralizante. Derrida propõe uma problemática sobre a

ética e o direito. A aporia suscitada na desconstrução provoca o questionamento do direito

perante a vida não apenas como um valor, mas enquanto sua condição de possibilidade. A

justiça é o que incita a transformação do direito.

De maneira alguma uma anulará o outro. Ao contrário, a justiça chegará ao direito

para deslocá-lo, destruí-lo, se necessário, para que as conjunturas venham a ser de outro

modo. O devir torna-se evento de justiça. As lutas emancipatórias são o devir das

singularidades. Os direitos das ditas minorias são o processo mais patentes de devires:

mulheres, homossexuais, animais, etnias, imigrantes. Se a aporia consiste em lidar com o

limite, de um modo ou de outro essas minorias manifestam a margem. As questões de

fronteira ultrapassam a mera questão dos muros da soberania. A ideia de um movimento

social referencia uma ação na qual o que está em jogo vai além de um dispositivo

constitucional. O poder constituinte passa a se constituir no porvir dos clamores por justiça.

Esse clamor vem de uma multidão de outros.

Com a ruptura de uma ordem em sua totalidade ou parcialmente, os problemas serão

outros. Então, chegará a necessidade de respondê-los, de reorganizar os códigos e definir

novas fronteiras. O fundamental da justiça não é fazer ciência ou legislar, mas traçar uma

história. Nesse sentido, a justiça acontece num tempo fora dos eixos. A lógica é suplementar:

o excesso no vazio da lei remete a uma experiência em que o sentido chega de todo outro.

Esse tempo é irredutível, pois não está na projeção das metas do Judiciário. Por exemplo, o

momento revolucionário não é uma mera constatação. Seu primado é uma promessa sobre o

tempo. Aquilo que se seguirá determina o cálculo, porém não faz parte dele.

Derrida define a possibilidade da justiça como a própria desconstrução para deslocar

o valor da justiça conformada e articulada com o direito. O processo da justiça se dá no tempo

sem programa, no tempo que transpassa a vida para afirmá-la enquanto singularidade.

Aprender, enfim, a viver ou deixar viver é a questão central da justiça na concepção

derridiana. Por isso, através do performativo da promessa, a justiça chegará, num tempo

outro, a uma revolução sobre o tempo. A justiça tem a força de différance – os movimentos

singulares da vida engendram a abertura de possibilidades na qual a vida se desenvolve sem

fechamento, apenas expansão...

100

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Homo sarcer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2002. 37 p.

______. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 60 p.

______. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2005.

______. El reino e la gloria: Uma genealogía teológica de la economía e del gobierno.

Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008. 13-39 p.

______. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó-SC: Argos, 2009. 35 p.

ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999.

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. 163-165 p.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2003. 240 p (Coleção a obra-

prima de cada autor; 53).

AUSTIN, J.L. How to do things with words. 2. ed. Oxford-RU: Oxford University Press,

1975.

BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a

Kelsen, Ros e Hart. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

BEARDSWORTH, R. Derrida y lo político. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008. 143 p.

BENJAMIN, W; KOTHE, F. R (Org). Walter Benjamin. São Paulo: Editora Ática, 1985.

(Coleção Grandes Cientistas Sociais, 50) 158 p.

BENJAMIN, W. Ensayos escogidos. 2. ed. México: Edicionas Coyacán, 2001. p 109.

101

BENNINGTON, Geoffrey & DERRIDA, J. Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1996.

BENNINGTON, G. Deconstruction is not what you think. In: MCQUILLAN, M (edt.).

Deconstruction - a reader. New York-EUA: Routledge, 2001. 217 p.

BILLIER, J. e MARYIOLI, A. História da Filosofia do Direito. Barueri-SP: Manole, 2005.

BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1997a. 67 p.

BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. 4. ed. Brasília:

UnB, 1997b. 168 p.

BOBBIO, N. & BOVERO, M. Sociedade e estado na filosofia política moderna. 4. ed. São

Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

BOURDIEU, P. Sobre o poder simbólico. In: O poder simbólico. 11. ed. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2007. 9 p.

BUTLER, J. Speech acts politically. In: MCQUILLAN, M (edt.). Deconstruction – a reader.

New York-EUA: Routledge, 2001. 254-262 p.

CAPUTO, J. Por amor às coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida. In: DUUQUE-

ESTRADA, P. C (Org.). Às margens: a propósito de Derrida. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio;

São Paulo: Loyola, 2002. 29 p.

________Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1997. 184 p.

CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 1001

CULLER, J. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro:

Rosa dos Tempos, 1997.

DELEUZE, G. Filosofia crítica de Kant, A. Lisboa-Portugal: Ed. 70, 2000. 88 p.

102

______. Nietzsche e a filosofia. Porto-PT: Rés-Editora, 2001.

DELEUZE, Gilles; Guattari, Félix. O que é filosofia? 2. ed. Rio de Janeiro: 34, 2004.

DELEUZE, G. Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In: A ilha deserta. E outros

textos. São Paulo: Iluminuras, 2006a.

______. Diferença e repetição. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Graal, 2006b. 440 p.

______. Filosofia crítica de Kant, A. 1. Lisboa-Portugal: Ed. 70, 2000. 88 p.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia II.

Trad. de Rafael Godinho. Lisboa: Assirio & Alvim, 2007.

DELEUZE, G. O que é filosofia? 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. 288 p.

DERRIDA, J. Limited Inc.Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991a.

______. Margens da Filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães.

Campinas: Papirus, 1991b.

______. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991c

(Biblioteca Pólen).

______. Acts of literature. Edited by Derek Attridge. New York: Routledge, 1992.

______. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional.

Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a.

______.A voz e o fenômeno. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994b.

______. De um tom apocalíptico adoptado há pouco em Filosofia. Trad. e posfácio Carlos

Leone. Lisboa: Vega, 1997.

______. Políticas de la amistad.Madrid: Vidarte, 1998a.

103

______. Enlouquecer o Subjétil. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ateliê; Editora

da UNESP; Imprensa Oficial do Estado, 1998b.

______. Posições. Belo Horizonte: Autentica, 2001.

DERRIDA. Director: Kirby Dicky e Amy Ziering Kofman. 2002a.

______. Torres de Babel. Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002b.

______. O animal que logo sou: (A seguir). Trad. Fabio Landa. São Paulo: Editora da

UNESP, 2002c.

______. Força de lei: O ―fundamento místico da autoridade‖. Porto-Portugal: Campo das

Letras, 2003a.

______. Universidade sem condição. Trad. Evando Nascimento. São Paulo: Estação

Liberdade, 2003b.

______. Da Hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003c.

DERRIDA, J; ROUDINESCO, E. De que manhã: diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2004a. 27 p.

DERRIDA, J. Papel-Máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade,

2004b.

______. Carta a um amigo japonês. In: OTTONI, Paulo (org.). Trad.: a prática da diferença.

2. ed. rev. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2005a.

______. A escritura e a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005b.

______. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005c. p. 22.

______. Gramatologia. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

______. Otobiografias. La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre próprio. Buenos

Aires: Amorrortu, 2009a.

104

______. El monolingüismo del outro. 3. reimp. Buenos Aires: Manantial, 2009b. p. 45.

______. Violência e metafísica: ensaio sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. In: A

escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2010. 111-223 p.

DOSSE, François. História do estruturalismo: o canto do cisne. 2 vol. São Paulo: Edusp,

2007.

DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (Org). Desconstrução e ética: ecos de Jacques Derrida.

Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004. 247 p.

______. Às Margens: a propósito de Derrida. São Paulo: Loyola, 2002.

ECO, U. A estrutura ausente. 7.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

FERRY, L; RENAUT, A. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo.

São Paulo: Ensaio, 1988.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France, pronunciada

em 02 de dezembro de 1970. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996. 9 p.

FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx.In: FOUCAULT, M. Um diálogo sobre os

prazeres do sexo. São Paulo: Landy, 2000. 47-75p.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2004.

______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HEIDEGGER, M. O que é isto - a filosofia? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e

escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 7-24. (Os Pensadores).

______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, c 1979. 302 p. : il. --

(os pensadores).

HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 5. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista-

SP: Editora Universitária São Francisco, 2008a. 128 p.

105

______. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista- SP: Editora

Universitária São Francisco, 2008b.

______. Lógica: a pergunta pela essência da linguagem. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2008c. 112-113 p.

HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

HOFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 408 p.

JUSTINIANO I, IMPERADOR DO ORIENTE. Institutas do Imperador Justiniano:

manual did‘dito para uso dos estudantes de direito de Constantinopla, elaborado por ordem do

Imperador Justiniano, no ano de 533 d.C. 2. ed. ampl. e rev. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2005. p. 25.

KAFKA, F. O veredicto e Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 84 p.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica do costumes, A. Lisboa: Ed. 70,

1995.120 p.

______Metafísica dos costumes, A. Bauru, SP: Edipro, 2003. 330 p.

______ Crítica da razão prática. São Paulo: Martin Claret, 2005.

______Paz perpetua e outros opúsculos, A. Lisboa: Ed. 70, 1995. 184 p.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 224-228 p.

______. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo: Edições Loyola, 2003. 190-191 p.

KIERKEGGARD, S. Migalhas filosóficas: Ou Um Bocadinho De Filosofia De João

Climacus. 2. ed. Petropolis-RJ: Vozes, 2008.

LACAN, Jacques. Nome-do-pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

106

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2. ed. 1982.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1980. p. 173.

______. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

______. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1982. p.

17.

______. De otro modo que ser o más allá de la esencia. 4. ed. Salamanca-Espanha:

Ediciones Sígueme Salamanca, 2003. 272 p.

______. Humanismo do outro homem. Petropolis: Vozes, 1993. 131 p.

______. El Tiempo y el Otro. Trad. José, L. Pardo Torío. Barcelona: Paidós, 1993.

______. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 2000a. 296.

______. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa: Edições 70, 2000b. 119 p.

______. Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2001. 208 p.

______. Novas interpretações talmúdicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 112

p.

______. Quatro leituras talmúdicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. 182 p. (Elos, 51).

______. Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis-RJ: Vozes, 2004. 302 p.

LEFEBVRE, Jean-Pierre; Macherey, Pierre. Hegel e a sociedade. São Paulo: Discurso

Editorial, 1999. 159 p. (Clássicos e Comentários, Edição de Bolso).

LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna.8.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

107

MARX, M; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus

representantes Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo alemão em seus diferentes

profetas (1945-1946). São Paulo: Boitempo, 2007. 534-539 p.

MELO, Marcelo Pereira. A perspectiva sistêmica na sociologia do direito: Luhmann e

Teubner. Tempo Social: Revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 351-373,

jun. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

20702006000100018〈=pt>. Acesso em: 20 set. 2009.

MCQUILLAN, M (org.). Deconstruction - a reader. New York-EUA: Routledge, 2001.

MCQUILLAN, M. Introduction: five strategies for deconstruction. In: MCQUILLAN, M.

Deconstruction - a reader. New York-EUA: Routledge, 2001. 5 p.

______. Deconstruction: a reader. New York: Routledge, 2001. 62-70 p.

MILLER, J.H. Speech acts in literature. Stanford-California-USA: Stanford University

Press, 2001. p. 63.

MORRIS, Charles. Fundamentos de la teoría de los signos. Barcelona: Ediciones Paidós,

1985.

NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura. Notas de literatura e filosofia nos textos de

desconstrução. Niterói-RJ: EdUFF, 1999.

NEGRI, A; HARDT, M. O trabalho de Dioniso: para a crítica do Estado pós-moderno. Juiz

de Fora-MG: Editora UFJF – PAUZULIN, 2004.

NEWTON, Isaac. O peso e o equilíbrio dos fluidos. In: NEWTON, Isaac; LEIBNIZ, G. W..

Principios matemáticos: o peso e o equilíbrio dos fluidos, a monadologia, discurso de

metafísica e outras obras. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 29-60 p. (Os pensadores). 53 p.

NUNES, Etelvina Pires Lopes. O outro e o rosto: problemas da alteridade em Emmanuel

Levinas. Braga-Portugal: Publicação da Faculdade de Filosofia da UCP, 1993. 278 p.

NEWTON, Isaac. O peso e o equilíbrio dos fluidos. In: NEWTON, Isaac; LEIBNIZ, G. W.

Princípios matemáticos: o peso e o equilíbrio dos fluidos, a monadologia, discurso de

metafísica e outras obras. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 29-60 p. (Os pensadores).

108

NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São

Paulo: Companhia das letras, 2005.

OLIVEIRA, Manfredo Araujo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia

contemporânea. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 137-147 p.

PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 276 p. : il. -- (os

pensadores).

PLATÃO. Carta VII. Texto estabelecido e anotado por John Burnet. Trad. José Trindade

Santos e Juvino Maia Jr. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2008.

REALE, Giovanne. História da filosofia antiga: II. Platão e Aristóteles. 9. ed. São Paulo:

Loyola, 1994. v. 2. (História da filosofia).

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG,

1995. 372 p.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2000.

SOUZA, Ricardo Timm de. Razões plurais: itinerário da racionalidade ética no século XX:

Adorno, Bérgson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPURCS, 2004. 232 p.

(Coleção Filosofia, 159)

SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. 5. ed. São Paulo: Cortez,

2005.(Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição

paradigmática).

SCHIAVONE, A. Ius: a invenção do direito no Ocidente. Buenos Aires: Adriana Hidalgo

Editora, 2009. 439 p.

SCHMITT, C. El nomos de la tierra: em el derecho de gentes del ―Jus publicum europaeum‖.

In:AGUILAR, H.O; SCHMITT, C. Carl Schmitt, teólogo de la política. México: FCE,

2001a. 463-465.

SCHMITT, C; AGUILAR, H.O. Carl Schmitt, teólogo de la política. México: FCE, 2001b.

SCHMITT, C. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

109

______. La dictadura: desde los comienzos del pensamiento modernode la soberania hasta la

lucha de clases proletária. 3. reimpr. Madri: Alianza Universidad, 2009. p. 33-57.

STOCKER, Barry. Routledge philosophy guidebook to Derrida on deconstruction.

Londres: Routledge, 2006.

TELES, E; SAFATLE, V. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:

Boitempo, 2010. 300 p.

TIGAR, M. E; LEVY, M. R. O direito e a ascensão do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1978. 35 p.

VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de ciências

Sociales – Clacso; São Paulo: Expressão Popular, 2007. 125 p.

VATTIMO, G. Introdução a Heidegger. 10. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. 7-21 p.

VILLEY, M. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes,

2005.

WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:

Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.

WITTGENSTEIN, Ludwig.Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas. 2. ed.

Lisboa: Fudação Calouste Gulbenkian, 1995.