Desenho e espaço construído: relações entre pensar e fazer na

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    Desenho e espao construDo: relaes entre pensar e fazer na obra De paulo MenDes Da rocha

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    aluna Catherine Otondoorientadora Prof Dr Ana Maria de Moraes Belluzzo

    Desenho e espao construDo: relaes entre pensar e fazer na obra De paulo MenDes Da rocha

    tese apresentada a faculdade de arquitetura e urbanismo da universidade de so paulo para a obteno do ttulo de dou-tor em arquitetura e urbanismo.

    rea de concentrao: Histria e fundamentos da arquitetura e do urbanismo so paulo, fevereiro, 2013.

    exemplar revisado e alterado em relao verso original, sob responsabilidade do autor e anuncia do orientador.o original se encontra disponvel na sede do programa.so paulo, 28 de julHo de 2013.

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    Otondo, Catherine

    O87d Desenho e espao construdo: relaes entre pensar e fazer na obra de Paulo Mendes da Rocha / Catherine Otondo. So Paulo, 2013. XXX p. : il.

    Tese (Doutorado - rea de Concentrao: Histria e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - FAUUSP.

    Orientadora: Ana Maria de Moraes Belluzzo

    1. Arquitetura moderna - Brasil 2. Desenho arquitetnico 3. Criao artstica 4. Espao (Esttica) 5. Rocha, Paulo Archias Mendes I.Ttulo

    CDU 72.036(81)

    autorizo a reproduo e divulgaco total ou parcial deste trabalHo, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    email: [email protected]

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    para meus amores,jorge,

    tHomas, martin e andr

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    agradecimento

    O esprito de trabalho em equipe sempre foi uma marca do ensino na FAU-USP, porm

    nunca pude imaginar que este sentido de coletividade fosse estar to presente na elaborao de uma

    tese que na minha imaginao era um trabalho feito predominantemente em solido. Por isso,

    meus primeiros agradecimentos vo para esta escola, de todos ns, que me permitiu conhecer e

    conviver com tantas pessoas especiais.

    Gostaria de agradecer Ana Belluzzo e Paulo Mendes da Rocha. Ana por sua orienta-

    o firme, corajosa, generosa, me apontou caminhos que eu no sabia existir. Paulo Mendes da

    Rocha que literalmente me entregou a chave de seu escritrio, me permitiu vasculhar suas gavetas

    e arquivos, e sobretudo, pelas nossas conversas distradas pela tarde afora.

    banca de professores presentes nas qualificaes: Prof. Dr. Arnaldo Martino; Prof. Dr.

    Carlos A.F. Martins, Prof. Dr. Luis Antnio Jorge e Prof. Dr. Regina Prosperi Meyer. Ampliaram

    os horizontes deste trabalho.

    Aos professores das aulas de ps graduao, em especial: Prof. Dr. Agnaldo Farias, Prof. Dr.

    Jos Tavares Lira, Prof. Dr. Jlio Katinsky; Profa. Helena Ayoub, Prof. Dr. Marcos Acayaba, Prof

    Dr. Mnica Junqueira e Prof. Dr. Rafael Perrone.

    Sophia Telles, pela entrevista concedida, e pela iniciativa de abrir um espao de estudos

    onde pudssemos encontrar colegas pra refletir sobre os caminhos do nosso fazer.

    Aos meus scios, queridos, Jorge Pessoa e Marina Grinover que dividem comigo os sabores

    e dissabores desta profisso. E equipe Base 3 que faz do nosso dia dia uma grande diverso:

    Bhakta Kpra, Cadu Marinho, Fabiana Faroni, Fernando Tlio, Juliana Teixieira, Julie Trickett, Lvia Marquez, Marinho Velloso, Matheus Tonelli, Otavio Sasseron, Paula Saad, Patrcia Mieko,

    Rebeca Grinspum, Regis Sugaya, Thais Marcussi.

    Aos amigos e colegas pelo apoio e afeto: Ana Paula Pontes, amigos da Base Seis, Caio

    Faggin, Carolina Gimenez, Didiana Prata, Guilherme Pianca, Guilherme Wisnik, Joo Sodr, Jos

    Paulo Gouva (em especial pela parceria nas publicaes), Juliana Braga, Marcella Faria, Martin

    Corullon, Martin Kohler, Michel Gubeissi, Milton Braga, Pedro Kok, Ricardo Bak Gordon, Silvio

    Oksman, Vinicius Andrade.

    Dulcinia Carmo Pereira e Eliane Ramos Alves, zelosas guardis do acervo de projetos de PMR.

    Carla Zocchio pelo lindo projeto grfico e Nina Jacomini pela leitura atenta e correo

    ortogrfica.

    E famlia pelo amor incondicional. Teresa, me, que me fez conhecer o mundo das letras,

    e ao Bernard, pai, que me ensinou que a vida uma aventura!

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    abstract

    Title: Drawing and constructed space: The relationship between conception and production in the work of Paulo Mendes da Rocha.

    This work presents a reflection on the formation of the architectonic work, based on the study of

    projects from the architect Paulo Mendes da Rochas collection, aiming to relate two instances of

    the creative process: drawing and constructed space.

    The act of drawing has been historically connected to the creative, technical, and institutio-

    nal development of the architectonic craft. A drawing can be understood as a depository of mul-

    tiple characteristics: mental and figurative, and it is present in various moments of the elaboration

    of an architectural project.

    The study on Paulo Mendes da Rochas work suggests a revision of the traditional concept

    of drawing applied to architecture schools, and it makes us search for new meanings for the com-

    plexity of the architectonic craft. Here, the drawing is connected to an ideation; it is a privileged

    instance where the action of the projects concept is materialized.

    The direct examination of the works puts us face to face with the constructed space reality,

    and obliges us to elaborate new questions: how does the architect work with the matter, the tech-

    nique and the program determinations? In other words, how does he become conscious or give

    shape to his thoughts?

    The selected projects gathered in this research allow us to elaborate, from new parameters, an

    alternative comprehension to Paulo Mendes da Rochas works, and they are at the same time asso-

    ciated with the continuous narrative that permeates his path, from the late 1950s to the present time.

    Key words: Architecture; Drawing; Space; Paulo Mendes da Rocha; Creative process; Time.

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    resumo

    O presente trabalho apresenta uma reflexo sobre a formao da obra arquitetnica a partir do

    estudo do acervo de projetos do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, buscando relacionar duas

    instncias do processo criativo: desenho e espao construdo.

    A atividade de desenhar est historicamente aliada ao desenvolvimento criativo, tcnico e

    institucional do fazer arquitetnico. O desenho pode ser entendido como algo que contm ml-

    tiplas naturezas: mental e figurativa, e est presente em vrios momentos da elaborao de um

    projeto de arquitetura.

    O estudo da obra de Paulo Mendes da Rocha sugere uma reviso do conceito tradicional

    de desenho aplicado s escolas de arquitetura, e nos leva a buscar novos sentidos para o desenho

    no fazer projetual, como um modo de alargar a percepo sobre o processo criativo, que traduz a

    complexidade do fazer arquitetnico. Aqui, o desenho est ligado ideao, trata-se de uma instn-cia privilegiada sobre a qual se materializa a ao do pensamento projetual.

    O exame direto das obras nos coloca frente realidade do espao construdo, e nos obriga

    elaborar novas perguntas: como o arquiteto opera com as determinaes da matria, da tcnica e

    do programa? Por meio de quais aes projetuais o arquiteto transforma o espao? Enfim, como

    ele toma conscincia ou d forma a seu pensamento?As obras escolhidas para compor este trabalho permitem construir uma compreenso al-

    ternativa obra de Paulo Mendes da Rocha a partir de novos parmetros, e ao mesmo tempo se

    associam narrativa contnua que percorre toda sua trajetria de trabalho, desde o fim dos anos

    1950 at os dias de hoje.

    Palavras chave: Arquitetura; Desenho; Espao; Paulo Mendes da Rocha; Processo criativo; Tempo.

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    2006 - Centro de Convenes e seCretaria do Mar (ersu)cagliari, sardenHa, itlia

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    sumrio

    i introduo .................................................................................................................................................................13 1.1 corpus: abrindo gavetas ................................................................................................................................. 16 1.2 leituras das leituras ........................................................................................................................................21 1.3 mais que temas, problemas ..........................................................................................................................31 ii caminHos do desenHo ........................................................................................................................................ 37 iii 1958 ginasio do paulistano: desenHo do edifcio .....................................................................................57 iv 1964 1970 casa butant e casa millan: o desenHo do lote ..........................................................................79 4.1 casa: abrigo das relaes Humanas ......................................................................................................84 4.2 formar pelo cavar .............................................................................................................................................. 90 4.3 liquid stone: matria e tcnica ................................................................................................................ 96 v 1974 1998 casa junqueira e poupatempo itaquera: desenHo da cidade .............................................. 127 5.1 casa junqueira .....................................................................................................................................................130 5.2 poupatempo itaquera .......................................................................................................................................139 vi 2000-2008 cais das artes e museu nacional do cocHes: o desenHo do territrio .................... 167 6.1 cais das artes, vitoria ................................................................................................................................... 174 6.2 museu dos cocHes, lisboa............................................................................................................................182

    vii consideraes finais ...................................................................................................................................... 207 viii referncias bibliogrficas.........................................................................................................................210

    ix anexo i: lista de projetos de paulo mendes da rocHa 1958 2011 ............................... 217

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    introduo

    No recente livro de Richard Sennett, O artfice1, o autor ingls explora a tese do fazer como pensar. A partir da observao do trabalho do artfice, representado na narrati-va ora por um cozinheiro ora por um luthier ou um arquiteto, Sennett rev a premis-sa da superioridade da cabea sobre a mo na civilizao ocidental e busca coloc-la em questo; tendo como teoria de partida a diviso poltica entre os homens definida por Hannah Arendt em A condio Humana.

    Segundo a antroploga alem, tambm mestre de Sennett, ns, seres humanos, vivemos organizados em duas dimenses: a primeira delas ligada tarefa de produzir coisas (Animal laborens) e a segunda, tarefa de julgar e discutir o processo de produ-o (Homo faber), sendo evidente para Arendt a relao de superioridade da segunda sobre a primeira. Segundo o autor, estamos habituados a uma forma de vida tal que: Enquanto o Animal laborens est fixado na pergunta Como?, o Homo faber per-gunta Por qu?2. esta relao com o fazer que os distancia.

    Arendt ilustra sua tese descrevendo como exemplo o processo de inveno da bomba atmica. Os tcnicos que desenvolveram a bomba atmica em 1945, o fizeram aplicando de forma mais eficaz as leis da fsica. No entanto, foram os polticos ame-ricanos que, durante a Guerra Fria, vislumbraram o uso dessa arma como forma de opresso e destruio das naes inimigas3. Assim, segundo Arendt, a mente se ativa somente aps o trabalho realizado; os engenheiros americanos no tiveram a dimen-so da potncia poltica daquilo que estavam construindo, a ideia de us-la como opresso poltica nunca esteve presente no trabalho de concepo da bomba.

    Contudo, para Sennett, esta diviso proposta no satisfatria e lhe parece falsa; implica numa desigualdade, j que imputa ao Animal Laborens a incapacida-de de pensar. Para o autor, pelo contrrio, h pensamento no fazer, seja pela consci-ncia do arteso quanto s possibilidades e virtudes de seu material de trabalho, seja pela convivncia entre aprendizes em uma mesma oficina.

    A partir de tal questionamento, sugere ento um caminho intermedirio para o entendimento da diviso das atividades sociais do homem, algo mais equilibrado, onde (...)o pensamento e o sentimento esto contidos no processo do fazer4.

    1 SENNETT, Richard. O Artfice. So Paulo, Ed Record, 2009.2 ibidem, p. 17 (grifo meu)3 ibidem, p. 124 ibidem, p. 17

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    Ao valorizar as atividades manuais, o autor aproxima cabea e mo, o mundo das ideias e o mundo da aes e conclui que: (...) podemos alcanar uma vida mate-rial mais humana, se pelo menos entendermos como so feitas as coisas.5.

    As atividades manuais, ainda segundo Sennett, fazem parte de nossa cultura material, e podem dizer muito a nosso respeito. A habilidade de fazer bem as coisas no privilgio do arteso, personagem que praticamente desaparece no mundo in-dustrial ocidental. Ela est no impulso, no desejo de fazer coisas de modo que cabea e mo estejam relacionadas, quer seja um violino, um programa de computador ou um delicioso frango assado!6 Para Sennett, o bom artfice sustenta um dilogo entre prticas concretas e ideias; esse dilogo evolui para o estabelecimento de hbitos pro-longados, que por sua vez criam um ritmo entre a soluo de problemas e a deteco de problemas7.

    O raciocnio que vamos adiante desenvolver est de acordo com esta viso. Pretendemos estudar a contribuio de Paulo Mendes da Rocha8, considerando que o modo como o arquiteto projeta e constri revela seu pensar. Nosso interesse se fixa, portanto, em duas instncias: desenho e espao construdo.

    Quando iniciei o estudo sobre a obra de PMR, visava focalizar a singularidade de seus projetos e acreditava ser possvel encontr-la a partir de seu desenho particu-lar. Razo pela qual, na primeira parte da pesquisa, nos dedicamos ao estudo da lin-guagem da arquitetura que compe o acervo de projetos, localizado no seu escritrio.

    Ao final desta etapa, percebemos o valor e a funo prpria que o desenho ocupa em seu processo criativo. Notamos tambm o modo pelo qual o desenho atua neste processo, como no se encaixa nas atribuies comumente dadas ao desenho nos manuais de arquitetura. Descobrimos novos valores em seu particular ato de de-senhar, que no eram levados em considerao. Da a nova pergunta: o que move o desenho?

    Para tanto, foi preciso ampliar nossa bibliografia a fim de atualizar conceitos que aprofundassem a noo de desenho, pois no era possvel entend-lo apenas como representao de um objeto a ser construdo. Desenhar supe pensar, meio de manejar o espao. O desenho pode nascer intuitivamente, ser posto a servio da ne-cessidade de articular diversas dimenses de um projeto e pode ser resposta ao desejo de movimento.

    5 ibidem, p. 186 ibidem, p. 20. 7 ibidem, p. 20. O autor continua a frase exemplificando que: A relao entre a mo e a

    cabea manifesta-se em terrenos aparentemente to diferentes quanto a construo de alvenaria, a culinria, a concepo de um playground ou tocar violoncelo...

    8 A partir deste momento iremos abreviar o nome Paulo Mendes da Rocha com as iniciais: PMR

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    Para ns, arquitetos contemporneos cuja prtica se desenvolve cada vez mais longe da prancheta e perto do computador, importante compreender que o desenho tem um valor que caracteriza e determina o pensamento espacial do arquiteto, e por isso, seja ele feito mo ou pela mquina, necessrio ter em mente a proeminncia deste valor.

    No caberia fazer aqui um contraponto extenso entre mo x mquina, nem entraremos no mrito das diferenas entre obras de arquitetura realizadas a partir de desenhos feitos mo ou digitais. Interessa compreender por hora que o uso de programas digitais na elaborao de projetos de arquitetura estabelece uma outra pos-sibilidade de conceber espaos, e outro suporte para o pensamento.

    Aquilo que podemos depreender por enquanto que o ato de desenhar mo permite ao arquiteto rever, reinventar e repensar sua ideia, em uma experincia onde mente e mo se relacionam diretamente, fisicamente. Um processo dinmico que pa-rece ter o tempo a seu favor. Um tempo que passa, um tempo para sonhar, e muita calma para pensar9.

    Nos dias de hoje, o arquiteto PMR trabalha em um escritrio enxuto, sem equipe de projetistas e sem computadores. Realiza poucos projetos ao mesmo tempo, o que lhe permite estabelecer uma relao prxima com a produo de cada um deles. Tem uma rotina de vida que em nada se assemelha de seu pares contemporneos, dos ditos arquitetos do star system10. No se trata porm de imprimir-lhe uma imagem romntica do artfice, enaltecida por Sennett, do arquiteto que desenha solitrio num canto escuro de seu ateli.

    um arquiteto que desenvolve suas ideias num primeiro momento por meio de desenhos feitos mo livre sobre papel manteiga ou elaborando maquetes de papel, outros suportes da mediao entre mente e mo: o momento preciso da concepo propriamente dita. Quando julga ter chegado a uma primeira sntese do projeto, PMR apresenta suas ideias equipe de arquitetos que efetivamente ir desenvolver o trabalho. O desenho passa a desempenhar, ento, um papel de comunicao entre os membros da equipe; tem uma funo social, ele a base da transmisso de informa-o, passa por ajustes, mudanas at vir a se realizar na obra construda.

    Podemos perceber por este modo de trabalhar uma dupla natureza do desenho: uma no momento de concepo e outra de socializao da informao. Em seu livro Why architects draw (1994), o antroplogo americano Edward Robbins afirma que a

    9 JOBIM, Antonio Carlos. Corcovado. 196310 Refiro-me aos arquitetos que tambm foram ganhadores do Premio

    Pritzker: Norman Foster, Renzo Piano, Frank O. Ghery. Ao contrrio destes, o arquiteto PMR mantm uma vida bastante espartana: no possui celular, site, carro...

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    complexidade da funo do desenho de arquitetura manifesta-se por sua extraordi-nria habilidade de ser suporte material, que implica na criao e ao mesmo tempo na produo social do trabalho11.

    Concordarmos com esta ideia: um desenho de arquitetura pode ter duas ou mais naturezas, o que importa esclarecer, ento, sobre qual delas estamos trabalhando.

    Aqui, o desenho est ligado ideao, projeo. Trata-se de uma instncia pri-vilegiada sobre a qual se materializa a ao do pensamento projetual.

    Com o desenvolvimento dos estudos foi tambm possvel compreender como o arquiteto atua sobre o espao e como o espao age sobre o arquiteto. Quer dizer: como a memria do espao tambm faz parte de sua experincia, como mede o espa-o com sua dimenso corporal, como reage s diferenas de luz e sombra e apreende assim, a escala do lugar.

    O exame direto das obras nos coloca frente realidade do espao construdo, e nos obriga a elaborar novas perguntas: como o arquiteto opera com as determinaes da matria, da tcnica e do programa? Por meio de quais aes projetuais o arquiteto transforma o espao? Enfim, como ele toma conscincia ou d forma a seu pensa-mento?

    1.1 - corpus: abrindo gavetas

    O extenso trabalho de estudo e documentao do acervo de desenhos de PMR situa o ponto de partida dessas reflexes. Alm do convvio direto com o arquiteto e familiaridade com seus registros e notaes - de grande valor para nosso trabalho , pudemos gerar a produo de um arquivo de obras que foi apresentada em regime de mestrado, criando a oportunidade para o prosseguimento dos estudos em regime de doutorado.

    Percebemos desde o incio do levantamento que esta separao fsica dos ar-quivos tinha uma relao direta com o tipo de suporte e material grfico de cada projeto, seja em termos cronolgicos ou em termos de grau de seu desenvolvimento: os estudos e croquis esto nas gavetas, os projetos executivos, por serem mais volu-mosos em nmero de pranchas, esto nos tubos e os projetos mais recentes esto no

    11 ROBBINS Edward. Why architects draw. Cambridge: MIT Press, 1994. Nesta publicao o autor faz uma extensa pesquisa em onze escritrios de arquitetura contemporneos sobre como o desenho serve produo de projetos. A partir de perguntas como: qual a funo do desenho no processo de concepo do desenho?; como e quando voc desenha?; qual so os diferentes papeis que o desenho desempenha em relao a diferen-tes interlocutores tais como: engenheiros, clientes, apresentaes publi-cas?(...). Apesar do foco de sua pesquisa estar ligado aos diferentes modos da produo social do trabalho do arquiteto um pouco distante do nosso propsito aqui vale destacar a leitura dos captulos referentes aos arquite-tos lvaro Siza e Renzo Piano.

    fig. 01mesa de trabaHo

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    computador.Constatamos que a estrutura de trabalho dentro do escritrio de PMR sempre

    foi a mesma desde os primeiros anos de profisso: a equipe de arquitetos e estagirios variava de acordo com o volume de trabalho, os projetos eram desenvolvidos no es-critrio coordenados por PMR e Joo Eduardo de Genaro12. Primeiramente, o escri-trio ficava em uma sala alugada no edifcio Conjunto Nacional na Avenida Paulista e em 1973, mudou-se para o edifcio do IAB-SP13, onde est at hoje. A partir de 1974, a administrao do escritrio e catalogao dos projetos passou a ser feita de forma primorosa por Dulcinia do Carmo Pereira, que quem sabe at hoje onde tudo est.

    Os projetos de grande escala, feitos at o incio da dcada de 1990, esto bem guardados em tubos de papelo. So, na maioria, trabalhos que chegaram fase de Projeto Executivo ou de projetos de escala que no foram construdos: Faculdade de Antropologia e Sociologia(1962), por exemplo, ou concursos, como Clube da Orla (1963). So, portanto, desenhos tcnicos feitos em papel manteiga ou vegetal, lpis e nanquim.

    Pudemos observar que as pranchas dos projeto executivos so bastante lim-pas, com poucas informaes escritas, poucas cotas, uma marcao destacada dos eixos da estrutura, e uma clara preferncia pelo desenho nas escalas menores14 e por detalhes em escala 1:1; todos feitos de maneira primorosa, revelando o rigor do arqui-teto, inclusive na apresentao dos seus projetos.

    O cuidado dispensado aos pormenores construtivos uma caracterstica dos projetos elaborados por PMR. O cuidado com as dimenses das peas de um guarda corpo, o fechamento das janelas, o piv da porta. Enfim, trata-se de um arquiteto que tem prazer em desenvolver esses pequenos engenhos. Entretanto podemos considerar tambm, que no final da dcada de sessenta e durante a dcada de setenta a indstria da construo no estava to desenvolvida como hoje, e era necessrio desenhar tudo15.

    Como se sabe, no ano de 1969, PMR teve seus direitos civis cassados pelo go-verno militar. O termo de cassao o proibia de lecionar na FAU e tambm de tra-balhar para rgos pblicos. Existem dois paradoxos nesta questo que merecem ser destacados.

    O primeiro que PMR foi cassado no mesmo momento em que ganhou o con-curso para o Pavilho de Osaka, que seria a sede representativa do pas na Exposio

    12 O arquiteto Joo Eduardo de Genaro foi scio de PMR entre os anos de 1958 a 1964.

    13 IAB- SP: Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento de So Paulo, localizado na Vila Buarque regio central da cidade.

    14 O Projeto Executivo da casa Gerassi est desenhado em sete pranchas A1, com plantas na escala 1:25, poucas cotas e algumas indicaes escritas. Ver publicao: Revista 1:100 n 45, Buenos Aires, 2008.

    15 Era comum encontrar nos primeiros trabalhos vrios detalhes construtivos 1:1, pregos, buchas e parafusos esto desenhados primorosamente lpis, com as ranhuras representadas em uma delicada hachura vermelha.

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    Internacional do Japo. Diante do constrangimento de ter o autor do projeto - que representaria o Brasil na Exposio - privado de seus direitos civis, o Governo Fede-ral acertou os tramites necessrios e PMR pde viajar em segurana para o Japo com um passaporte diplomtico, a fim de desenvolver o trabalho junto a uma equipe de arquitetos e engenheiros locais16.

    O segundo paradoxo vem do fato de que mesmo durante os duros anos da di-tadura, PMR realizou projetos importantes, inclusive para o poder pblico, sempre com a ajuda de amigos que estabeleciam parcerias a fim de viabilizar a participao do arquiteto nas concorrncias. Ao analisarmos a lista de projetos17, veremos que de 1957 a 1970, PMR realizou 53 projetos e que de 1970 a 80, realizou 55, dos quais 22 eram encargos pblicos.

    Contudo, o que parece uma contradio, pode ser explicada nas palavras do arquiteto Csar Shundi, em sua dissertao de mestrado sobre a rodoviria de Ja de Vilanova Artigas:

    De um lado, se encontravam os interesses dos arquitetos e urbanistas, que h muito buscavam possibilidades de atuao de maior amplitude, realizando projetos pblicos no mbito da cidade. De outro, a necessidade dos governantes do pas naquele instante, agindo pela mo forte da ditadura militar, em demonstrar avanos e realizar projetos. 18

    A partir dessa convergncia de interesses, PMR, bem como Artigas, pde rea-lizar grandes projetos durante a dcada de 1970, como: Escola Jardim Calux (1972), Estdio Serra Dourada (1973) e CECAP Itatiba (1975).

    Mesmo assim, os efeitos da cassao foram devastadores para a trajetria desses arquitetos, que devido a essa interrupo forada, realizaram bem menos trabalhos do que suas capacidades produtivas permitiam.

    Como meio de continuar trabalhando, PMR realizou diversos projetos residen-ciais: dos 272 projetos listados at agora, 62 so de residncias, dos quais 26 apenas elaborados na dcada de 70.

    Quando o arquiteto se refere aos projetos das casas unifamiliares, como vere-mos no captulo IV, pondera que uma cidade contm na sua gnese a ideia do coletivo e, para tanto, a casa urbana o edifcio vertical, pois seria um absurdo pensar que todos os habitantes da cidade poderiam construir sua casa em um pedao particular de terra. Assim, quando PMR afirma: (...) como se as casas, no mbito da cidade,

    16 O projeto completo das formas e protenses foi realizado por uma equipe de engenheiros japoneses, a partir do pr-clculo feito pelo engenheiro brasileiro Siguer Mitsutani. Os desenhos deste projeto executivo, em japo-ns esto guardados em tubo no escritrio.

    17 Ver Anexo 1.18 IWAMIZU, Csar Shundi. A estao rodoviria de Ja e a dimenso urba-

    na da arquitetura. FAU-USP, So Paulo, 2008. p 142.

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    fossem pedras de uma catedral da Idade Mdia (...)19, parte da ideia de que a cidade se constitui a partir do desejo primordial do homem em morar ali, coletivamente, desfrutando da diversidade e imponderabilidade da vida urbana.

    Nesse sentido, o desenho da casa urbana deve contemplar os recursos ofereci-dos pela cidade, e no mimetiz-la em uma escala privada.

    Na dcada de 1980, com a abertura poltica, o arquiteto reorganiza seu escrit-rio e realiza uma srie de projetos que se tornaram emblemticos em sua trajetria. Foi um perodo de intenso trabalho, mas tambm de profundas mudanas no am-biente intelectual no qual o arquiteto estava inserido. Trata-se de um momento de passagem, de transformao no pensar e fazer de PMR. O captulo V contempla a reflexo sobre estas mudanas.

    Em meados dos anos 1990, ao ser contratado para fazer a reforma da Pinacoteca do Estado, PMR desenvolve o projeto no canteiro de obras, onde passa grande parte de seu tempo. Nesse momento, os demais trabalhos que estavam em andamento no escritrio eram de pequeno porte: projetos museogrficos, cenrios para teatro e para atend-los, mantm uma equipe reduzida em seu escritrio.

    Em 1993, quando volta a trabalhar no escritrio, ao fim da obra da Pinacoteca, encontra-se justamente no momento da troca da prancheta pelo computador.

    O arquiteto toma a deciso consciente de no equipar seu escritrio com tais tecnologias, dispensa sua equipe e passa a desenvolver seus projetos com escritrios parceiros escritrios formados por ex-alunos e colaboradores antigos, como Edu-ardo Colonelli, do escritrio Ricoy Torres, e Jose Armnio Cruz do Piratininga20 - com os quais estabelece uma relao duradoura, cuja base uma afinidade intelectual e uma proximidade geogrfica, pois esto quase todos localizados na mesma rua da cidade. Segundo Jose Armnio: A associao entre Paulo e seus colaboradores , essencialmente, uma associao de ideias, uma construo do pensamento que se pro-duz atravs das obras21.

    O escritrio no IAB passa a ser ento um lugar de estudo, leitura, reunies, e onde o arquiteto recebe seus clientes, alunos e amigos visitantes.

    H com isso, sem dvida, uma mudana estrutural na maneira como os projetos so desenvolvidos. Eles no ficam mais grudados na prancheta durante semanas, ex-postos ao olhar de seu autor, passam a ser feitos fora, nos escritrios de seus colabo-radores, longe da presena diria de PMR. No entanto, os primeiros estudos de cada trabalho continuam a ser elaborados por ele sobre sua prancheta.

    19 Memorial de titulao FAU-USP, 1998. p. 220 Os escritrios e respectivos coordenadores que desenvolvem projetos atu-

    almente para PMR so: Pedro Mendes da Rocha Arquitetos/Arte 3: Pedro Mendes da Rocha; MMBB: ngelo Bucci (1996-2002),Fernando Mello Franco; Marta Moreira e Milton Braga; Piratininga: Jos Armnio Cruz; Escritrio Paulistano de Arquitetura: Eduardo Colonelli e Silvio Oksman; Metro: Martin Corullon.

    21 WISNIK, Guilherme. Entrevistas con los estdios colaboradores de Pau-lo Mendes da Rocha. Revista 2G. Revista 2G, n 45. Barcelona: Editorial GGili, 2008.p. 138 [Traduo minha].

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    A transformao na estrutura de produo do trabalho tem sim um reflexo na maneira como o arquiteto se relaciona com o mesmo. Primeiramente, h uma diminuio direta do tempo de convvio de PMR com o desenvolvimento do dese-nho, e tambm h uma mudana instrumental na hora de corrigir ou afinar o projeto, pois uma coisa ver o projeto disposto ali na prancheta e outra sentar ao lado de algum olhando uma tela de computador22.

    Outro ponto importante a assinalar, referente aos projetos desenvolvidos fora do escritrio, que sobra pouca documentao em papel como resultado desse processo, ao ponto de alguns trabalhos recentes, no terem o registro dos primeiros desenhos elaborados por PMR, o que torna difcil a tarefa de documentao. Sabemos da existncia de desenhos feitos pelo arquiteto arquivados em alguns dos escritrios parceiros, mas o trabalho de pesquisa deste material ainda no foi realizado.

    Assim, as relaes de trabalho entre o arquiteto e os escritrios parceiros esta-belecem uma nova instncia do fazer. Trata-se ainda de um trabalho em equipe, mas a equipe, por ser de um escritrio independente, possui um outro grau de autonomia em relao ao desenvolvimento do projeto. Veremos a seguir como esta relao se d.

    O caminho que o projeto percorre hoje pode ser descrito da seguinte maneira: h uma primeira fase de concepo feita em solido no escritrio, com base em modelos tridimensionais e desenhos feitos mo livre. Nesta fase de concepo j existe um contato com o engenheiro, que d uma primeira diretriz sobre o tamanho das peas estruturais, dos vos, e ajusta com PMR como a estrutura vai trabalhar. Neste momento, a ideia formadora do projeto j est dada.

    A prxima fase, o desenvolvimento do projeto, de certo a mais longa e penosa, pois entram os projetos complementares, os ajustes de oramento e as modificaes solicitadas pelos clientes. Neste momento o projeto est fora do escritrio.

    Cabe aos colaboradores de PMR coordenar essas acomodaes, seguindo uma diretriz dada pelo arquiteto. Podemos verificar que existe uma cumplicidade na re-soluo dos problemas entre o arquiteto e seus parceiros. Segundo Martin Corullon, a dinmica de trabalho estabelecida por PMR se assemelha a uma partida de xadrez, pois a cada etapa do trabalho, os arquitetos tm que raciocinar mantendo a tenso da partida at o xeque mate, num processo de ao e reao23.

    22 No podemos afirmar aqui, nem o objeto deste estudo, se essa esta nova maneira de trabalhar transforma o projetar, e portanto o resultado final da obra arquitetnica.

    23 A relao de trabalho entre o arquiteto e seus colaboradores incita vrios outros questionamentos que infelizmente no cabem neste trabalho, mas que consideramos fundamental serem feitos. Para um incio de pesquisa, indicamos a leitura da entrevista feita por Guilherme Wisnik com a maioria dos colaboradores, publicada na Revista 2G n 45.

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    Podemos indicar ento, que todos os projetos realizados posteriormente fi-nalizao do projeto da Pinacoteca (1993) foram desenvolvidos fora do escritrio de PMR, e que o arquivo de imagens, desenhos e maquetes est dividido entre o escrit-rio parceiro e o do arquiteto.

    1.2 leitura das leituras

    O arquiteto Paulo Mendes da Rocha realizou desde 1957 at 2011 aproximada-mente, 270 projetos; a maioria deles divulgada em mais de 200 artigos para revistas e jornais brasileiros, 100 estrangeiros, alm de 18 livros publicados. Destes livros, sete so monogrficos, e somente trs so publicaes brasileiras.

    Os primeiros artigos saram simultaneamente realizao dos projetos: a cadei-ra Paulistano (1957) e a divulgao do projeto vencedor do concurso para a Assem-bleia Legislativa de Santa Catarina, ambos em 1957, pela revista paulista Acrpole n 219 e 232, respectivamente24.

    A crtica e reflexo sobre arquitetura, entre as dcadas de 1960 e 80 no Brasil, era feita de forma resistente em revistas especializadas, ou seja, haviam poucos livros publicados sobre o assunto, destacando-se as compilaes feitas por: Yves Bruan25: (Brasil Builds,1943), Henrique Mindlin (Arquitetura Moderna no Brasil,1956)26 , e mais adiante j na dcada de 80, Marlene Milan Acayaba publicou sua dissertao, Residncias em So Paulo (1947-1975)27.

    A fim de preencher este vcuo editorial e organizar um material que auxiliasse a pesquisa acadmica num momento em que a internet no existia, a professora Sophia da Silva Telles, junto Faculdade de Arquitetura PUC de Campinas, fez entre os anos 1989-91 uma compilao de artigos sobre os arquitetos, Paulo Mendes da Rocha, Joa-quim Guedes e Lina Bo Bardi. Este rduo trabalho consistiu em agrupar e reproduzir em xrox, artigos de jornais e revistas, nacionais e internacionais, e organiz-los em ordem cronolgica. Sobre PMR, foram feitos dois volumes contendo mais de 150 artigos publicados entre 1957 e 1990. Durante muitos anos esta era a fonte mais com-pleta de documentos sobre o arquiteto que se dispunha.

    Curiosamente, o primeiro livro publicado sobre a obra de PMR foi realizado por uma editora estrangeira, a espanhola GGigli: Mendes da Rocha (1996), de autoria do crtico e historiador Josep Maria Montaner, em coautoria com Maria Isabel Villac.

    24 A relao completa das publicaes sobre a obra de PMR, separadas por data e tipo de mdia, consta do Trabalho Programado 2 O estado da questo entregue FAU-USP em 2009.

    25 No livro de Bruand, esto publicados os seguintes projetos de PMR: Ginsio do Clube Paulistano, Residncia Gaetano Miani, Residncias no Butant e Edifcio Guaimb.

    26 O livro de Mindlin no publica nenhum projeto de PMR.27 Esto publicadas no livro de Marlene Acayaba as seguintes obras: Resi-

    dncia no Butant; Residncia James Francis King e Residncia Fernando Milan.

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    A partir desta data, refletindo um impulso local na edio de livros nacionais sobre arquitetura, houve uma srie de publicaes sobre vrios arquitetos, protago-nistas de nossa cultura, que ainda no tinham sido devidamente publicados. Vale destacar a srie realizada pelo Instituto Pietro e Lina Bardi, conjuntamente com a editora Blau: Lina Bo Bardi (1993), Vilanova Artigas (1997), Affonso Reidy (2000), Lel (2000).

    Neste contexto, no ano 2000, surge a primeira monografia completa sobre a obra de PMR, realizada pela editora Cosac Naify, organizada por Rosa Artigas, com os projetos escolhidos pelo prprio arquiteto e trs textos fundamentais escritos pelo mesmo.

    Segue a esta publicao, o livro organizado pela professora sua Annette Spiro, no qual apresenta uma ampla seleo de projetos (trinta e sete) e uma pequena anlise do conjunto de realizaes de PMR que no se atm a nenhum projeto em especial, mas cujo interesse est no modo como a autora localiza este conjunto a partir de uma visada europeia, sob a tica da tradio clssica, apoiada nos estudos do crtico e his-toriador ingls Colin Rowe28.

    Os trabalhos acadmicos complementam e aprofundam temas levantados nas publicaes e nos artigos de revistas29. Podemos identificar dois conjuntos de traba-lhos acadmicos: o primeiro que tem como foco principal a obra de PMR, como o caso dos trabalhos de Ruth Verde Zein (2000), Maria Isabel Villac (2000) e Denise Solot (2004); e um segundo grupo no qual os projetos entram como exemplo de um tema mais amplo, como os trabalhos de Ivana Peters (2000), Myrna Arruda (2002) e Leandro Shenk (2004).

    Desse conjunto, interessa-nos destacar os trabalhos do primeiro grupo. Em Ruth Verde Zein, o foco est no estudo historiogrfico da formao e definio da Escola Paulista Brutalista entre os anos de 1960 e 70; para Maria Isabel Villac - que realiza sua tese em Barcelona - h uma busca da insero da obra de PMR num con-texto mais amplo, a cultura brasileira; e finalmente Denise Solot, um trabalho voltado para anlise de obra - sob a orientao de Ronaldo Brito -, no qual elege a questo da tcnica como tema de ligao entre as obras analisadas.

    A seguir descreveremos cada um deles para situar nosso trabalho frente ao con-junto.

    O trabalho de Ruth Verde Zein nos interessa na medida em que a autora prope uma narrativa que busca encontrar um sentido para a Arquitetura Moderna local a

    28 O texto de Annette Spiro nos intrigou particularmente por seu ponto de partida inusitado, procurando encontrar paralelismos entre os procedimen-tos projetuais de PMR e a tradio clssica. Por este motivo e por se tratar de um livro pouco acessvel a ns, decidimos traduzir seu texto publicado na revista PS Revista do Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo FAUUSP. n 25, junho 2009.

    29 Atravs da busca nas bibliotecas da USP, internet e no escritrio do arqui-teto, pudemos identificar 12 teses e dissertaes cuja temtica est direta ou indiretamente ligada a arquitetura de PMR; apenas quatro destas foram produzidas na Universidade de So Paulo. No so muitas se compararmos ao nmero de trabalho registrados de outros arquitetos prximos, como: 15 sobre a obra de Lina Bo Bardi e 28 de Vilanova Artigas, para citar ape-nas alguns.

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    partir da inaugurao de Braslia, que identifica como sendo um momento de ruptura no desenvolvimento da arquitetura moderna no Brasil. Segundo a autora, a produo da Escola Paulista o elo entre este momento de ruptura e o presente. Esta produo comea a realizar-se em meados da dcada de 1950 e teria se consolidado como escola na dcada seguinte, expandindo-se na dcada de 70. Para Ruth Zein, a obra de PMR exemplar desse processo, pois passa por todos os momentos histricos discutidos em seu trabalho.

    Desta maneira, a autora divide seu trabalho em duas etapas: na primeira, defi-ne as caractersticas e atributos da Escola Paulista e sua aproximao com o termo brutalista, relacionando aspectos formais, materiais, construtivos e discursivos. E no segundo momento, detm-se na compreenso desse perodo da histria atravs da anlise dos projetos residenciais de PMR, que segundo ela, congregam alguns dos caros temas Escola Paulista.

    A partir da comparao entre obras selecionadas para estudo, so estabeleci-das caractersticas formais, espaciais e construtivas comuns a esta arquitetura que de-nomina Escola Paulista Brutalista. So realizaes que tm como qualidade comum a preferncia por blocos nicos destacados do cho, procura pela horizontalidade, e uso da estrutura em concreto armado protendido, valorizando sua qualidade de manufatura30.

    Sobre as dificuldades de encerrar os termos desta escola, ou definir mais pre-cisamente o que seria Escola Paulista Brutalista, Ruth Zein aponta trs aspectos: o primeiro que seus protagonistas no se reconheciam como parte de uma escola; o segundo, que esses arquitetos preferiam que suas obras fossem valorizadas pelos seus aspectos ticos, sociais e polticos, em detrimento das suas caractersticas formais e construtivas; e finalmente, por que tais arquitetos se expressavam mais atravs de suas obras que atravs de textos.

    Ao definir o nome da Escola Paulista como brutalista, a autora d um passo na contramo de muitos historiadores, e de autores como Helio Pin e Rosa Artigas, por exemplo, que no aceitam o adjetivo brutalista, cuja origem vem da produo arquitetnica inglesa, para daquele conjunto de produes31.

    Vale ento destacar que vamos aceitar esta terminologia com reservas, pois no havia a rigor o projeto de constituio de uma escola, nem de um movimento ou manifesto. O termo Escola aqui pode ser entendido pelas afinidades de um proceder

    30 ibidem, p. 384.31 Segundo Hlio Pion: No importa desmentir uma e outra vez, em suas

    escassas mas penetrantes confisses, aqueles que tratam de identificar essa produo como brutalismo que entrou para historia ha trinta anos...com o qual a conjuntura comercial procura compensar duas dcadas de exibicio-nismo ps-modernista.

    PIN, Helio. Paulo Mendes da Rocha, 2002. p. 13

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    comum de arquitetos, que na sua maioria estavam relacionados FAU-USP e mais particularmente, ao arquiteto Vilanova Artigas.

    Tampouco podemos generalizar o termo Paulista, atribudo a um conjunto de realizaes de um grupo particular de arquitetos. Porm, quando nos referimos Escola Paulista somos capazes de reconhecer certo proceder projetual comum, com aparncia esttica das obras associadas ao uso do concreto bruto e aparente32, e sobre-tudo um procedimento projetual que se diferencia da arquitetura moderna carioca.

    O trabalho de Maria Isabel Villac parte de outra preocupao, apesar de per-correr o mesmo caminho historiogrfico que o trabalho de Ruth Zein. Villac aponta a construo da cidade de Braslia (1960) como o momento de ruptura de um movi-mento arquitetnico que se inicia com a chegada de Le Corbusier ao Rio de Janeiro em 1929 e com construo do Ministrio de Educao e Sade (1931) .

    Novamente, a Escola Paulista parece apresentar uma sada para o impasse his-trico colocado pelo silncio dos crticos diante da constatao da impossibilidade de Braslia servir de modelo para a arquitetura moderna e para a resoluo dos conflitos sociais e culturais do pas. Para a autora, a Escola Paulista inaugura um laboratrio construtivo de uma arquitetura adequada realidade do pas33.

    Sua tese admite a possibilidade da estruturao de um modelo de anlise de obra cujo suporte seria a mirada crtica do sujeito em relao ao objeto. Nesta postura, daria-se a ao do arquiteto por meio de arquitectogramas, entendidos como sendo a reunio de um conjunto de estratgias adaptveis, procedimentos de transformao da natureza e um sistema de significados. Nas suas palavras: a obra arquitetnica atualiza ritos, celebra gestos criadores e reitera criaes exemplares34. Para cada obra analisada, a autora busca encontrar procedimentos projetuais enquan-to escolhas formais, estruturais e materiais. E sua anlise tambm se estende quanto a insero dessas obras em nossa cultura, relacionando-as com as vanguardas artsticas dos anos 1960 e com a tropiclia.

    O texto de Denise Solot, elaborado a partir da anlise de obra com enfoque na relao entre arte e tcnica e, por conseguinte, na relao entre forma e estrutura. O argumento historiogrfico descrito pela autora se assemelha ao das demais pesqui-sas, em que os arquitetos paulistas desenvolvem uma arquitetura em contraponto de Braslia, uma arquitetura na qual as relaes sociais e polticas esto voltadas para uma cidade que se faz a partir do pensamento coletivo.

    Em sua opinio, o aspecto bruto dessa nova arquitetura vem da influncia de Le

    32 O Eng. Figueiredo Ferraz ( 1918-1994) ; e o Eng. Roberto Zuccolo

    (1924-1967) foram os principais responsveis pela introduo do uso do concreto protendido no pas. Sobre, Zuccolo, PMR afirma: ele foi um ilustre engenheiro do sculo XX, indispensvel para todo o desenvolvimento das tcnicas construtivas do pas. Ele foi uma espcie de Eugene Freyssinet. In ROCHA, Paulo Mendes da. Encontros com Paulo Mendes da Rocha. p. 222.

    33 VILLAC, Maria Isabel.p 8. Original em espanhol, traduo minha.34 Ibidem, p. 75. Original em espanhol, traduo minha.

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    Corbusier, no mais aquele que visitou o Brasil por primeira vez em 1929, mas aquele da capela Ronchamp (1955) e da Unidade de Marselha (1952). Por isso, a proximidade com o brutalismo ingls se daria pelo discurso, mais que pela plasticidade das obras.

    Cada uma das obras escolhidas35 por Solot ilustra o encadeamento de sua nar-rativa, que oscila ora entre leituras mais prximas ao mundo das artes, ora ao mundo da tcnica. E sobre a discusso em torno deste ltimo que o trabalho se destaca, pois a autora, como professora de escolas de engenharia, realiza explicaes tcnicas dos projetos bastante detalhadas.

    Diante disso, podemos considerar que a nossa hiptese de trabalho sobre a obra de PMR complementa e amplia o conjunto de teses acadmicas, na medida em que nos dispomos a apresentar um conjunto de reflexes sobre o fazer criativo do arquiteto PMR, com base no desenho e na experincia do espao construdo, que entendemos no ter sido o foco dos trabalhos apresentados at ento.

    Apesar da importncia bibliogrfica das teses descritas acima, foram alguns ensaios direcionados anlise de obra que se tornaram relevantes para a base terica da presente tese.

    O modo pelo qual autores como Flavio Motta, Sophia da Silva Telles e Gui-lherme Wisnik se aproximam das obras de PMR nos interessam, seja pelo modo como confrontam essa particular produo arquitetnica com outras disciplinas, tais como as artes plsticas, a filosofia e a msica; seja pela preciso e clareza das ideias formuladas e ancoradas na experincia da obra. Com destaque, ainda, ao lirismo das frases curtas e poticas do professor Flavio Motta, cujos ensaios analisaremos aqui com maior demora.

    Consideramos que esses ensaios configuram um conjunto de ideias alinhadas, que podem ser compreendidos de forma relacional: aquilo que Motta estabelece como base ideal para a compreenso da obra de PMR nos anos 1970, Sophia Telles amplia nos anos 90 e Wisnik atualiza para nossos dias. Apesar da distncia cronolgica que separa os trs autores, encontramos alguns pontos de tangncia entres os textos, os quais procuraremos descrever a seguir.

    O professor Flvio Motta escreveu dois ensaios especficos sobre a obra de PMR: Paulo Mendes da Rocha(1967), no qual faz um anlise da Casa Butant e Arquitetura Brasileira para a Expo 70 (1970), onde reflete sobre o sentido cultural de um pavilho brasileiro em Osaka . Com uma narrativa sinttica, lana a base do 35 A autora apresenta oito projetos num recorte que tem incio na obra do

    Ginsio do Paulistano e termina na Praa do Patriarca.

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    que seria a reflexo crtica sobre a obra de PMR para as prximas dcadas, inaugu-rando de maneira quase visionria o modo de considerar a arquitetura de PMR: descrevendo relaes entre construo, natureza e tcnica, e indagando o sentido do espao arquitetnico como o lugar das relaes humanas.

    reconhecida a proximidade intelectual e afetiva que existe entre Flavio Motta e PMR, iniciada nos tempos em que ambos eram professores da FAU_USP. Trata-se de uma relao de troca de ideias to intensa que por vezes ao ler frases escritas pelo professor Motta, podemos achar que j ouvimos PMR dizer a mesma coisa36. Ao lon-go do tempo, conceitos levantados por Motta foram incorporados ao modo de pensar de PMR, como forma de explicar seu prprio trabalho.

    O primeiro texto escrito por Flavio Motta, Paulo Mendes da Rocha, foi pu-blicado em 1967 pela revista Acrpole e em 1973, em coletnea organizada pelo pr-prio autor, Textos Informes, publicada pela FAU-USP37.

    Flvio Motta inicia seu argumento localizando o trabalho de Paulo Mendes em relao aos dois grandes mestres: Niemeyer e Artigas38. Afirma que o prestgio da arquitetura brasileira (da poca) tira o foco da verdadeira funo da arquitetura moderna, que no significava apenas uma modernizao dos meios, mas uma amplia-o do sentido do projeto em relao sociedade e natureza. Neste caso, a relao com a natureza no seria de domnio nem de subordinao, seria referencial, ou seja, o espao criado pelo arquiteto capaz de estabelecer o modo como nos relacionamos com o mundo ao nosso redor.

    Sugere que a casa, portanto, seria o abrigo das relaes sociais, com espaos pessoais e impessoais. Trata-se de um lugar meio favela racionalizada, que exige do seu morador uma nova maneira de viver, onde um aceita o convvio com o outro. Com isso, para Flavio Motta, o arquiteto concebe um espao que se realiza pela expe-rincia do viver: a proposta que pede resposta, por que trabalho criador com sua implcita responsabilidade social39.

    A partir da vemos que Flavio Motta entende que o espectador participa da obra e no a contempla de longe; o espectador parte fundamental do espao, ele quem lhe d vida, dimenso, profundidade.

    Flavio Motta supe que a relao entre homem e objeto deva ser transforma-dora, dinmica, cclica. E finalmente, alerta para os perigos da coisificao da vida, onde o objeto existe sem a projeo do homem: ...se os arquitetos, por reflexo, por experincia, por l no se sabe mais o que, no se dispuserem realmente a projetar,

    36 Frequentemente o arquiteto menciona uma leitura que fez por indicao de Motta: Projeto e Utopia (1973) de Manfredo Tafuri, por exemplo.

    37 FAU-USP: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo.

    38 (...)PMR encontrou em Niemeyer a tnica do confronto Arquitetura--Natureza, e em Artigas, Arquitetura- Sociedade. MOTTA Flvio. Paulo Mendes da Rocha in Textos Informes. So Paulo: FAU-USP, 2 edio ampliada, 1973.p. 20.

    39 ibidem, p. 21.

    1970: pavilho de osakadesenHo de flavio motta, para o projeto museogrfico do pavilHooriginal em papel manteiga e caneta Hidrogrfica

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    estamos destinados a viver em espaos cheios de coisas e vazios dentro de um modus vivendi que pouco resta de vivendi40.

    No texto Arquitetura Moderna para Expo 70, publicado na revista Acrpole e nos Textos Informes, Motta se preocupa em localizar o projeto do pavilho para Osaka dentro de um quadro de realizaes da arquitetura moderna estabelecido por Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas, o que possibilitou a compreenso dessa arquitetura como representante da produo do pas em uma feira internacional.

    Antes de prosseguir com nossa reflexo, preciso destacar que Flvio Motta teve participao ativa no projeto do pavilho, no como arquiteto membro da equi-pe, mas como idealizador do projeto museogrfico da exposio. Em uma tarde, como nos conta PMR, Motta desenhou com canetas hidrogrficas mais de 60 pran-chas em formato A2, nas quais disps um panorama da cultura brasileira, abrangendo as artes plsticas, urbanismo, engenharia e arquitetura.

    Para o autor, o Pavilho no era apenas um envoltrio para abrigar as merca-dorias brasileiras, mas a representao de um conhecimento acumulado, contextua-lizado, que pudesse se colocar de forma universal e fraternal em relao aos edifcios vizinhos.

    Em nenhum momento do texto, Motta se atm aos aspectos plsticos do pavi-lho, ao contrrio, diz que a construo no deve ser vista como um objeto de exu-berncia, exibicionista, dada sua tcnica construtiva, mas algo que constri e amplia o conhecimento do homem e do mundo com o qual ele se faz, e por isso mesmo, tambm faz41.

    Visivelmente, a estrutura do pavilho imponente: pela grande cobertura de concreto armado e aparente (como a FAU, segundo PMR), apoiada de um lado numa elevao ondulada do prprio terreno e de outro, em dois arcos entrelaados. De modo potico, Motta conta, por exemplo, que a funo dos arcos da Praa do Caf no ser mero apoio dos esforos mecnicos da laje de cobertura, constituem um lugar de convivncia e a memria da beleza dos arcos na histria da arquitetura.

    A anlise do autor destaca a importncia do piso do pavilho ser o mesmo as-falto de Osaka, que entra no espao interno tornando-se nas palavras de Motta: um caminho ininterrupto e sem barreiras, que ainda est na esperana de muitos (...). O cho acolhe suavemente o caminhante, e de maneira leve e delicada, a cobertura de concreto nervurada pousa sobre o terreno ondulado(...)42.40 ibidem, p. 23.

    41 ibidem, p. 33.42 ibidem, p. 31.

    o desenHo acima refere-se um projeto desenvolvido por uma equipe de engenHeiros da escola politcnica da universidade de so paulo, do qual participou o pai de pmr: paulo de menezes men-des da rocHa - cuja proposta era construir uma serie de canais fluviais entre rios que constituiriam uma conexo entre as bacias amaznica e do prata, possibilitanto a criao de uma segunda costa brasileira.

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    Entendemos que Motta decifra o sentido dessas formas e sua organizao no tempo e no espao com preciso e sabedoria . Como menciona bem Ana Belluzzo na seguinte passagem:

    Sabe, como ningum, considerar a obra de arte e ao penetr-la em profundidade, como filsofo, desperta a sensibilidade e a reflexo de muitos interessados que no faltam ao seu redor (...) prepara sabiamente a perplexidade do observador diante da obra. Ele capaz de torn-la um campo de indagaes, detonadora de dvidas e instigadora de novas vivncias43.

    Parece-nos inegvel que o pensamento de Motta resistiu ao tempo e foi capaz de inspirar e amparar os estudos que vieram posteriormente, como o caso dos en-saios que apresentaremos a seguir.

    No incio da dcada de 90, a autora Sophia da Silva Telles publica dois ensaios crticos fundamentais: Museu da Escultura visto por Sophia Telles (1990), no qual faz uma profunda anlise de obra sobre o Museu da Escultura; e A casa no Atlnti-co (1995) uma introduo seo Documento da Revista AU.

    Nestes artigos, Sophia Telles recoloca a obra de PMR em discusso, aps os anos silenciosos da ditadura, num momento de transio histrica, no qual estava posta em questo a retomada ou no da experincia da arquitetura moderna dos anos 1960 ou a aderncia novos caminhos. E quais seriam esses?

    Segundo a autora nem a experincia ps-moderna (europeia e americana), nem o esforo do historiador Kenneth Frampton de valorizar arquitetura regionais foram ideias discutidas ou avaliadas no ambiente da arquitetura brasileira na poca:

    ...a crtica ao movimento moderno no se sustentaria se reduzida ao comentrio maneirista (...) [enquanto] o regionalismo crtico, ideia corrente de Frampton44, s poder ser instigante se compreendida no espectro amplo da cultura e no como simples ateno s condies objetivas da arquitetura.45.

    Segundo Sophia, a obra de PMR possui um rigor intimista, prprio, por exemplo, da bossa nova, num tom rebaixado, menos monumental. Apesar da urgn-cia dos compromissos polticos que contribuam para a severidade dos projetos de arquitetura ligados FAU_USP nos anos 1970, a obra de PMR escapa polarizao

    43 BELLUZZO, Ana Maria M. Falar em Flvio Motta pensar em arte. Revista Caramelo 6 . So Paulo, FAU_USP, 1993. - p. 48.

    44 Kenneth Frampton (1930), crtico e historiador ingls, estabelece o termo regionalismo crtico uma categoria que compreende a produo arqui-tetnica contempornea a partir de valores universais, porm identificando seus vnculos com as realidades cultural, poltica e econmica onde so produzidas.

    FRAMPTON, Kenneth. Modern Architecture, a critical history. Londres: Thames and Hudson, 1985.

    45 TELLES, Sophia. Museu Brasileiro da Escultura . AU Arquitetura e Urbanismo, 1991. p. 51.

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    colocada entre canteiro e desenho46, e se traduz por uma relao mais afetiva em re-lao histria e natureza. Retoma, assim, uma linha de pensamento proposta nos ensaios de Flavio Motta sobre o Pavilho de Osaka.

    A partir dessa reflexo, Sophia Telles coloca a obra de PMR em um outro lugar para a anlise, mais independente em relao obra de Vilanova Artigas, mais afasta-do dos rgidos pressupostos polticos, e isento dessa culpa do canteiro47.

    Desta forma, a obra de PMR se caracteriza, segundo a autora, pelo modo sin-gular pelo qual estabelece relaes entre natureza e tcnica, espao e matria, entre objeto construdo e superfcie do terreno. O Museu da Escultura se faz, segundo Tel-les, por uma sucesso de planos horizontais sobre um eixo vertical, configurando uma continuidade superficial entre interior e exterior: O projeto destri (...) a primeira impresso, a de uma superfcie esttica sobre a qual um objeto vem pousar.48. Num raciocnio distinto ao de Artigas e Niemeyer, que estabelecem a linha do horizonte como o lugar da tangncia dos pontos de apoio.

    Para compreender o modo como o arquiteto opera esta relao entre objeto e terreno, a autora destaca a importncia da leitura corte transversal do Museu da Es-cultura, onde se v a extenso do cho da rua para dentro do espao interior. Deste modo, Sophia Telles elabora uma ideia que se torna chave para a compreenso da obra de PMR: a implantao de seus projetos no terreno se d pela manipulao do dese-nho em corte e no pela planta.

    Pudemos entender ento, que na obra de PMR no existe a separao entre volume e superfcie, como ocorre na obra de Niemeyer por exemplo, mas h uma extenso de planos constituindo uma unidade espacial ininterrupta.

    Um ltimo ponto que nos interessa destacar no texto de Sophia refere-se ao uso do concreto enquanto matria bruta e aparente. Segundo a autora, PMR recupera o uso do concreto num sentido mais prximo Le Corbusier (pedra bruta)49, portanto, de um modo distinto ao de Niemeyer e Artigas, cuja nfase residia nas explorao das possibilidades estruturais e plsticas do material. O que interessa a PMR so as propriedades reversveis do concreto, pelas quais ele pode reafirmar a continuidade espacial que se impe no modo como ele implanta seus projetos.

    Em Conversas com Sophia Telles (2010), a autora afirma que o raciocnio projetual de PMR no se faz a partir da juno de partes em vista de um todo, ele pensa o concreto como uma matria total 50.

    46 Refiro-me a polarizao que mobilizou a reflexo e produo arquitetnica da FAU_USP nos anos 70 em torno dos meios de produo da profisso do arquiteto. Um grupo de arquitetos cuja figura proeminente era Sergio Ferro defendia a ideia do arquiteto se envolver com a produo efetiva da construo. Para um conhecimento mais aprofundado da questo ver:

    ARANTES, Pedro Fiori (org.) Srgio Ferro: arquitetura e trabalho livre. So Paulo: Cosac Naifyy, 2006

    47 TELLES, Sophia. Museu Brasileiro da Escultura , 1991 p. 50.48 ibidem, p. 4649 Imaginamos que neste ponto a autora esteja se referindo aos projetos

    elaborados por Le Corbusier a partir dos anos 1940 como a Unidade de Marselha (1947) e a capela de Ronchamp (1955).

    50 Ao longo deste trabalho, realizei vrios encontros com Sophia Telles. Per-cebi que muitas de suas ideias ecoavam em minha pesquisa, e que muitas delas eram desdobramentos de hipteses colocadas em textos anteriores, ainda no publicados. Assim, decidi gravar uma pequena entrevista,durante a qual levantei trs pontos de discusso que me pareciam importantes para o estudo da obra de PMR, e que precisavam ser registrados pela voz de Sophia Telles.

    A primeira pergunta versa sobre as diferenas de uso do concreto bruto e aparente por arquitetos modernos; a segunda, sobre os conceitos de natu-reza, paisagem e territrio na obra de PMR; e finalmente, a ltima, sobre a relao entre arquitetura e a construo de cidades.

    Diante do resultado, surgiu o interesse em publicar esta entrevista, mas isso ainda no foi feito. Portanto, sempre que me referir a algum trecho da entrevista, citarei: Conversas com Sophia Telles.

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    Entendemos, ento, que seu raciocnio espacial se estende tambm para o modo como o arquiteto manipula a matria, ou seja, no se trata de construir um objeto a partir de seus elementos construtivos (pilar, viga, fechamento), e sim constituir planos cuja funo estrutural funde vrios atributos em uma s pea: o fechamento da parede se estende at a viga de sustentao, que segue at a calha e se inclina na cobertura. Retomaremos esta ideia no capitulo IV.

    O crtico e arquiteto Guilherme Wisnik, retoma as ideias sedimentadas por So-phia Telles e expande sua anlise no sentido de fazer uma leitura mais transversal en-tre as obras, estabelecendo outro nvel de relaes. Assim, sua anlise no se atm s particularidades de um ou outro projeto, como fizeram Flavio Motta e Sophia Telles, mas em uma viso mais geral da trajetria de PMR.

    Em seus dois ensaios principais, Nova cobertura da Praa Patriarca em So Paulo(2002)51 e Arquitetura do territrio(2008)52, seu interesse est em localizar a obra de PMR no mundo contemporneo, procurando situ-la frente a outros campos do conhecimentos, como a sociologia, a msica, as artes plsticas etc., sem se prender com intensidade aos procedimentos projetuais do arquiteto e suas estratgias formais.

    O autor possui uma relao prxima ao trabalho de PMR, realizando publi-caes e escrevendo artigos sobre sua obra. Ao final do ano de 2012, foi curador de uma importante exposio das obras do arquiteto no Museu Vale em Vitria, Espirito Santo, intitulada: Paulo Mendes da Rocha: a natureza como projeto.

    Ao contrrio da poca na qual Sophia Telles publicou seus artigos, a obra de PMR desfruta nesse momento de uma condio de prestgio nacional e internacional bastante relevante. Isso permite com que Wisnik possa se ocupar de aspectos mais abrangentes da produo arquitetnica, como a relao com a natureza, a degeneres-cncia das grandes cidades, o desequilbrio natural do habitat humano.

    Para Wisnik, a arquitetura de PMR pode ser pensada como uma metadiscipli-na (e no uma atividade multidisciplinar que busca apoio em outras disciplinas) que condensa vrios modos do saber, capaz de formular perguntas sobre o destino das cidades e do homem.

    Finalmente, o crtico retoma o binmio indicado por Motta e Telles, sobre as relaes entre natureza e tcnica. Aqui, natureza tomada no mais como um territrio natural, desocupado, mas o mundo edificado: Seja em sitio urbanos, seja em meio natureza, o projeto se lana como uma infraestrutura tcnica que deve suportar uma ampla diversidade de usos, imprevisveis e cambiantes.53

    51 WISNIK, Guilherme. Nova cobertura da Praa Patriarca em So Paulo. In www.vitruvius.com.br, 01/12/2012.

    52 WISNIK, Guilherme. Arquitectura del territorio. Revista 2G, Barcelona, 2008.

    53 ibidem, p. 202.

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    O exame desse conjunto de ensaios nos forneceu, ento, um repertrio concei-tual a partir do qual avanaremos desenvolvendo os temas que nos parecem ser chave para nossa anlise de obra: compreender o espao como projeto social, relacionar natureza e tcnica, observar a implantao dos projetos de PMR a partir de uma viso particular do territrio e assumir a cidade contempornea como realidade edificada a ser reinventada.

    1.3. mais que temas, problemas

    Depois de um longo perodo mergulhados em gavetas, tubos, caixas e muito p, no escritrio de PMR, pudemos realizar uma primeira tentativa de ordenao cr-tica dos projetos. Fizemos um longo painel de desenhos no qual os trabalhos foram dispostos em seis categorias temticas, em linha cronolgica: 1958-2008 54. A ideia deste painel foi a de poder estruturar visualmente o conjunto de projetos estudados no tempo e no espao, um panorama, enfim. Os temas surgiram a partir da percepo de diferentes questes tais como, tcnica, relaes com a cidade, os diferentes usos do concreto e do ao e a diversidade projetual das casas feitas da cidade ou na natureza.

    A elaborao do painel foi um momento importante da pesquisa e nos permi-tiu a visualizao de um conjunto amplo de projetos, alm de verificar repeties de procedimentos, ver que algumas ideias vo se desenvolvendo ao longo do tempo at finalmente serem construdas.

    Mas ao avanarmos na leitura das obras, e no sentido de cada categoria, vimos que nosso olhar escapava s linhas temticas e se conduzia em movimento transversal a elas. Entendemos ento que no era possvel compreender a obra de PMR a partir de categorias ou temas, porque seu processo projetual no parte de uma ideia temti-ca, ou de um assunto: a casa, a cidade, o museu, o concreto ou o ao, mas sim de um problema espacial, arquitetnico.

    No se trata tambm de uma arquitetura de solues, ou seja, seu projeto no busca resolver problemas, mas apont-los, pr em evidncia um outro modo de ver a vida, o real. Para Brgson, tanto na Filosofia como em outras disciplinas, a verdade trata de encontrar o problema e, por conseguinte p-lo, muito mais que resolv-lo55.

    A partir desta considerao, observamos que a maneira como PMR apresenta 54 Este painel foi apresentado nas bancas de qualificao. Ele foi realizado em

    papel canson e lpis grafite, mede 1.00x4.50m e portanto de difcil reprodu-o digital. Ao lado uma imagem de um pequeno trecho do desenho.

    55 BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. p. 54.

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    seus projetos se d sobre a colocao de um problema, independente da escala, do programa, ou da localizao da obra . Ou seja, o que vem primeiro a pergunta, a questo, o discurso sobre o que fazer de modo oportuno.

    O estudo da obra de PMR sugere ainda uma reviso do conceito tradicional do desenho aplicado em escolas de arquitetura, para tanto dedicamos um captulo para esta reflexo. A anlise dos sentidos do desenho no busca fornecer ferramentas operacionais para a anlise de obra, mas alargar a percepo do processo criativo, construtivo que traduz melhor a complexidade do fazer arquitetnico.

    Trata-se, portanto, de examinar a formao da obra, suas transformaes no tempo. O formar. Perceber, enfim, o pensamento espacial de PMR tal como se ex-pressa na arquitetura.

    A escolha dos projetos foi feita a partir de dois critrios: o primeiro e mais direto que os projetos fossem construdos, pois a hiptese desta tese coloca o pen-samento e espao vivido numa relao que demanda sua real verificao. Isso implica em dizer que visitamos pelo menos uma vez cada uma dessas obras.

    O segundo critrio refere-se ao tempo: pretendamos com nossa seleo des-tacar projetos que pudessem de certo modo narrar a trajetria de trabalho de PMR como um todo, do incio nos anos 1960 at os dias de hoje .

    As sete obras escolhidas so analisadas em quarto captulos dispostos numa se-quncia cronolgica do Ginsio do Clube Paulistano (1958) at o Museu dos Coches (2008).

    Deixamos de lado assim, algumas obras primas j bastante analisadas por outros autores, como o Museu da Escultura e a Pinacoteca, pois no nos interessava destacar feitos extraordinrios, mas a possibilidade de construir uma narrativa cont-nua a partir da relao entre as obras, como elas conversam entre si, seus rebatimentos e distanciamentos.

    Imaginamos desse modo ento,criar uma nova maneira de refletir sobre o pen-samento e obra de PMR, sua formao num tempo estendido, procurando perceber movimentos e mudanas, as inquietaes e as particularidades do seu processo criati-vo que as vezes o brilho assertivo de uma obra prima poderia ofuscar.

    A compreenao da obra tecida, portanto, entre o desenho e o espao constru-do no qual se sobrepe o discurso, o exerccio retrico que formula conceitos, que vo aderir fantasia.

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    trecHo do painel de desenHos relizado em 2010, em papel canson, grafite e aquarela.: 100 x 450 cm. primeira tentativa de sntese na qual dividi os projetos em seis linHas temticas na seguinte ordem de cima para baixo:momentos de inveno; caminHos do concreto; estruturas Hbridas; para alm do lote; residncias urbanas, casas na natureza.

    ... 1980 1990 2000 ...

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    1970pavilho de exposies de osaka

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    ii. caminHos do desenHo

    Aquilo que conecta pensamento com imaginao, imaginao com desenho, desenho com edificao, edificao com nossos olhos projeo, ou o processo que escolhemos para modelar esta projeo (...).

    Robin Evans1

    com certa naturalidade que podemos relacionar as aes de desenhar e construir no campo da arquitetura, pois desde o Renascimento at nossos dias a atividade de dese-nhar inerente profisso do arquiteto. Pelo desenho, que os arquitetos expressam e comunicam suas ideias. Por enquanto.2

    O desenho, como sabemos, a forma primitiva de expresso humana, assim como a escolha e a construo do abrigo do homem. Mas somente a partir de mea-dos do sculo XVI que o desenho torna-se um recurso de pr-visualizao da cons-truo. Mais que isso, torna-se um meio, um sistema, pelo qual os arquitetos passam a comunicar e ensinar ao outro aquilo que ser construdo.

    Durante o Renascimento, atravs das realizaes de Brunelleschi, Alberti e Ra-fael, principalmente, conforma-se o trabalho do arquiteto como aquele capaz de pr figurar uma ideia espacial e produzir desenhos num sistema grfico que ilustra e co-munica sua anteviso da construo.

    Com o passar do tempo, a confiana no desenho como recurso para a realizao do trabalho do arquiteto amplia-se de tal sorte que o valor de um arquiteto passa a ser dado pela virtude que possui em produzir um belo desenho. Ou seja, a representao grfica ganha primazia at mesmo sobre o pensamento espacial.

    Neste captulo iremos traar um breve percurso historiogrfico a fim de apon-tar em passagens histricas, que vo desde o sculo XVI at nossos dias, os distintos papis que o desenho assume no fazer arquitetnico.

    Com isso desejamos consolidar um saber que nos permita ampliar a compreen-so do desenho como algo que vai alm da representao de uma ideia ou da orienta-o da construo. Veremos que imaginar, desenhar, construir e perceber so aes do

    1 EVANS, Robin. The Projective Cast Arquitecture and its three geometries. Cambridge, 2000. P. xxxi. (Traduo da autora.)

    2 H sem dvida um desdobramento evidente desta afirmao que nos leva a perguntar: e o computador? Para melhor encadeamento de nossa reflexo no iremos abrir mais adiante esta discusso, o Por enquanto um aviso que retomaremos ao assunto ao final deste captulo.

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    pensamento espacial, que se conectam em mltiplos momentos da formao de uma obra arquitetnica.

    Antes do surgimento da figura do arquiteto como conhecemos hoje, a con-duo de um processo construtivo cabia ao arteso (craftsman), cuja responsabilidade era comunicar oralmente aos seus aprendizes o modo de fazer. Tratava-se de um pro-cesso, portanto, emprico, cujos avanos se davam pela tentativa e erro. Havia sim de-senhos no canteiro, mas estes se relacionavam realizao dos moldes das partes or-namentais de alguns componentes do edifcio, como capiteis, frontispcios e cornijas.

    A experincia descrita por Rafael em sua Carta ao Papa Leo X sobre as runas de Roma3 em 1519, ilustra como o autor apresenta ao Papa Leo X a necessidade da instaurao de um sistema de representao grfica que d conta das complexas demandas de seu trabalho ( no caso, a recuperao das runas da cidade de Roma):

    XVIII. Na minha opinio, h muitos que se enganam no que diz respeito a desenhar edifcios, e , em lugar de fazer o que pertence ao arquiteto, fazem o que pertence ao pintor. Direi, portanto, qual o sistema que acho que se deva utilizar para que possamos entender exatamente todas as medidas e para que saibamos encontrar sem erros todos os membros dos edifcios. O desenho dos edifcios divide-se em trs partes. A primeira delas a planta, quer dizer, o desenho em plano; a segunda o desenho da parede externa, com seus ornamentos; a terceira a parede interna, tambm com seus ornamentos. A planta aquela que ordena o todo do espao plano do lugar a ser edificado, ou seja, o desenho da fundao de todo o edifcio, quando ele est no nvel do terreno. (...) Chama-se esse desenho de planta, porque, tal como o espao que ocupa a planta do p a base de todo o corpo, assim essa planta o fundamento de todo o edifcio.4 (grifo meu)

    Nota-se a preocupao do artista com o registro do edifcio como um volume total e no mais com a representao de suas partes. Ou seja, o arquiteto passa a ser aquele que tem o controle mental de uma totalidade que ainda no existe como rea-lidade.

    Mais que uma ferramenta de comunicao do mtodo construtivo de um edi-fcio, o pensamento renascentista revela que h tambm uma dimenso ideal no de-

    3 RAFAEL de Urbino; organizador Luciano Migliaccio. Cartas sobre Arqui-tetura. Campinas, 2010. p. 9.

    Publicada pela primeira vez em portugus esta edio conta com distintas verses de dois documentos atribudos a Rafael: a carta sobre a runas de Roma e Carta de Rafael Castiglione sobre a Villa Madama, ambas escri-tas em 1519.

    4 ibidem, p. 51.

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    fig. 02rafael, projeto para terraos de jardins villa madama, roma, 1518planta: desenHo executado presumidamente por antonio da sangallo ,aluno de rafael

    senho, ou seja, o desenho como um juzo que se forma na mente, nas palavras de Giorgio Vassari (1511-1574)5.

    O desenho no s representa os aspectos constitutivos do edifcio, mas se con-verte em suporte configurado por uma Idea, uma Ordem e uma bela forma. Gior-gio Vassari indica, ainda, que se pode: concluir que esse Desenho outro no seja que uma aparente expresso e declarao de um conceito que se tem na alma, e daquele que de outros na mente imaginado e fabricado na Idea6. Idea aqui entendida como a razo do projeto, sua inteligncia.

    Diante disso, o desenho se torna o suporte da ao do arquiteto. E como tal, atua numa dupla dimenso do fazer: uma ligada criao, ao mundo das ideias, e a outra focada nas questes dos cdigos de representao e transmisso da informao para o canteiro de obra.

    Interessa-nos aqui frisar a existncia dessa dupla dimenso presente j nas ori-gens da reflexo sobre o sentido do desenho para a arquitetura: uma ligada ao pensa-mento e outra representao. Como veremos a seguir, as questes do desenho como linguagem acabam por prevalecer sobre as questes referentes ideao.

    A partir do Renascimento houve, portanto, uma nfase na formalizao de um cdigo ou uma normativa grfica, fundada nos princpios e valores estticos da anti-guidade clssica com base na obra de Vitruvius (1 a.C.). Proporo, harmonia, ritmo e beleza eram representados graficamente por figuras da geometria euclidiana: plano, linha, crculos, tringulos etc., constituindo um repertrio figurativo que permanece ativo at o sculo XIX .

    A publicao e divulgao deste repertrio deu-se na Europa j a partir do scu-lo XVI, sobretudo na Itlia e na Frana, atravs da publicao dos Tratados de Alberti (1452), Palladio (1570) e mais adiante Scamozzi (1615).7 Ainda que em cada regio as tcnicas construtivas permanecessem vinculadas s condies materiais e tcnicas locais, houve um processo de universalizao de mtodos da prtica arquitetnica.

    Os Tratados renascentistas apresentam por primeira vez proposies exibidas pelo desenho, ilustrando o como e o que fazer.8

    Assim, representar graficamente uma ideia espacial torna-se uma ao intrn-seca ao trabalho do arquiteto. Saber desenhar torna-se condio de saber projetar. Podemos dizer ento que historicamente a figura do arquiteto vai se distanciando da imagem do arteso, o crafstman, como a extenso fsica do seu objeto de trabalho, e se aproxima do desenhista, o drafstman9.

    5 VASSARI Giorgio, Vite, 1958. apud Eduardo Corte Leal CORTE-LEAL, Eduardo. O triunfo da virtude origens do desenho arquitetnico, 2001. p 59.

    6 ibidem, p. 59.7 Alberti, Leon Battista: De Re aedificatoria libri decem, 1452; Palladio, Andrea: I quatro Libri dellArchitetura di Andrea Palladio, 1570; Scamozzi, Vincenzo: LIdea dellArchitettura Universali di Vincenzo Scamo-

    zzi, 16158 Vale lembrar que nos Dez Livros de Vitruvius (1 a.C.) no havia ilustraes,

    nem tampouco no Tratado de Alberti original, que retoma a obra de Vitru-vius como referncia.

    9 Em ingls, craft, tambm significa fora, habilidade; e draft contm, alm da ideia de esquema, a de poro, parte. http://michaelis.uol.com.br/moderno

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    Inquieta-nos, porm, o fato de que nessa trajetria a compreenso do dese-nho como norma ou como representao prevaleceu sobre sua dimenso criativa. As questes relativas linguagem se sobrepem s relativas ao pensamento. como se parte de sua natureza fosse deixada sombra.

    Devemos atentar para o fato deque para compreender como pensa um arqui-teto, como se d seu processo de criao, temos que recuperar de certa maneira a dimenso do desenho como coisa mental e deixar um pouco de lado as categorias de anlise ligadas ao cdigo.

    Ao final do sculo XVIII, os trabalhos de Giovanni Piranesi (1720-1788), Clau-de Ledoux (1736-1806) e Etienne-Louis Boulle (1728-1799) apresentam uma am-pliao no repertrio de solues arquitetnicas, pois a configurao dos projetos no se refere apenas a uma edificao, mas construo da cidade e sua pluralidade de funes; funes estas relacionadas ao desenvolvimento da indstria.

    A indstria transformou no s as relaes de trabalho e da famlia, mas tam-bm a vida urbana, promovendo novas atividades na cidade: de lazer, financeiras e administrativas. Para cada uma destas, desenvolveram-se tipos de edificaes dis-tintas, feitas de acordo com o programa que abrigavam: a Biblioteca, a pera, o Tri-bunal, a Casa da Moeda.

    Na cidade grande, no mais possvel pensar na forma de cada edifcio como algo nico e singular, mas em tipologias que possam ser reproduzidas inmeras vezes de acordo com a funo urbana e o programa do edifcio. Como afirma Giulio Carlo Argan: O tipo no modelo, mas um esquema que traz em si a possibilidade de va-riantes segundo as necessidades contingentes.10 (grifo meu).

    Ainda segundo o autor:

    Na medida em que concebem a arquitetura como definio de objetos de edificao (e no mais como representao perspectivada e cenogrfica do espao), Boulle e Ledoux no projetam mais atravs de plantas e sees (sempre relativas a uma representao do espao), e sim por entidades volumtricas, individuando nos slidos geomtricos a sntese entre a ideia e a coisa, isto a forma tpica por excelncia11. 10 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna, 1992. p. 35,36. Texto referente s

    obras: Projeto para o Cenotfio de Newton de Etienne Boull, Casa dos Guardas Campestres de Claude Ledoux.

    11 ibidem, p. 37.

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    Ainda no sculo XVIII, os estudos desenvolvidos nas recm criadas escolas de engenharia europeias, sobretudo acerca das propriedades fsicas do cimento alia-das ao ferro, ampliaram os horizontes da construo civil, possibilitando a produo de sistemas estruturais capazes de vencer grandes vos com peas industrializadas e complexas, nas quais um mesmo componente poderia absorver foras de compresso, trao e articulao.

    As obras de arquitetura mais significativas do sculo XIX expressam essa apro-ximao entre cincia e construo. A torre de Gutave Eiffel (1887), o Salo de Lei-tura de Henri Labrouste (1858), ambos em Paris, e o Palcio de Cristal de Joseph Paxton em Londres (1851), so construes que expressam na sua forma o caminho das foras que sustentam o edifcio, ainda que esteticamente estejam relacionadas a um repertrio figurativo da antiguidade clssica.

    nesse ambiente de urgncia e acelerao que surgem as primeiras formas de pensar e construir a partir do binmio cincia e arte, razo e emoo, que sero defi-nidoras da produo arquitetnica da primeira metade sculo XX.

    Apesar das intensas transformaes nas dimenses ideais e formais no campo da arquitetura na passagem do sculo XIX para o XX, o sistema de representao grfica dos projetos permanece o mesmo. Ou seja, o uso de plantas, cortes, elevaes e perspectivas fundadas na geometria euclidiana ainda o suporte instrumental para o desenho arquitetnico.

    Segundo Robin Evans, apesar de tantas transformaes ocorridas no campo da arquitetura, o sistema de representao dos projetos mantm-se incontestado. O autor destaca, porm, dois suportes grficos que ganham valor no decorrer do desen-volvimento da arquitetura moderna do sculo XX.

    O primeiro a valorizao do croquis como fonte de originalidade e meio in-vestigativo do arquiteto. O croquis no como um primeiro impulso do artista, mas como ao projetual que contem a ideia.

    O segundo o uso de desenhos axonomtricos que se desenvolveram a partir da geometria euclidiana, onde a equivalncia mtrica entre os trs eixos, x, y, z tem o mesmo valor numrico, gerando um desenho espacial sem deformaes, como ocorre na perspectiva renascentista com pontos de fuga 1213.

    Segundo Evans, seja pelo croquis ou pela axonometria, tais disposies grficas so relativas ao processo criativo do arquiteto e no representao da construo

    12 Gaspard Monge (1746-1818) desenvolveu dentro da cole Polythecnique de Paris os estudos sobre Geometria Descritiva, cuja ideia principal era que a configurao espacial no se dava mais a partir de uma linha do horizonte e um ponto de fuga, mas do rebatimento das figura em planos verticais dis-postos de maneira perpendicular ao plano de base. Deste sistema derivou--se a axonometria.

    13 Evans alerta que a Geometria um conhecimento (uma cincia) que serve para medir coisas e no constituir espaos, que deve assumir uma presena na Arquitetura como a Matemtica na Fsica, e o alfabeto nas palavras.

    A Geometria no gera Arquitetura - os arquitetos no produzem geome-tria, eles a consomem , ela um instrumento para sua produo. EVANS, Robin. The Projective Cast Arquitecture an its thres geometries, 2000. p. xxvi

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    fsica da obra, elas se relacionam com o campo da imaginao e apresentam o modo particular como cada um configura seus projetos. Ou seja, pelo modo como o arqui-teto apresenta sua ideia, possvel compreender como ele pensa espacialmente.

    A partir desta compreenso, podemos relacionar o modo como o arquiteto de-senha com seu modo de pensar e agir sobre o espao. Robin Evans d o nome a esta relao de projeo14.

    Recentemente, o arquiteto espanhol Rafael Moneo reuniu em uma publicao intitulada Inquietao terica e estratgia projetual o resumo de suas aulas, cujo tema a anlise de obra de oito arquitetos contemporneos.

    A inquietao do autor versa sobre a hiptese que as escolhas projetuais de cada arquiteto, desde o modo como ele desenha, a escolha de materialidades especficas at as tcnicas construtivas, constituem uma estratgia de projeto particular de cada um.

    Segundo Moneo, hoje no mais possvel traar uma teoria que d conta de uma ao projetual coletiva, com normas, programas e modelos comuns; faz-se ento necessrio conhecer cada uma dessas estratgias como uma chave fundamental para compreender as obras que os arquitetos contemporneos realizam.

    O termo estratgia entendido aqui como mecanismos, procedimentos pa-radigmas e artefatos formais que aparecem com insistncia recorrente na obra dos arquitetos de hoje: entendo que os utilizam para configurar o construdo15.

    Moneo ainda afirma que na obra do arquiteto ingls James Stirling (1926-1992) possvel perceber quando o arquiteto concebe a partir da manipulao da planta ou do corte: Tanto a maquete quanto os desenhos nos mostram como o fazer arquitet-nico se converteu no fazer da planta (...). A arquitetura , aqui, descrio deste [pro-grama]por meio da planta16. Ou ainda como lvaro Siza, reconhece a realidade onde est inserido seu projeto e a manipula plasticamente atravs do corte transversal17.

    Aquilo que nos interessa evidenciar a partir da leitura dos textos de Evans e Moneo a considerao do desenho como algo prprio do processo de criao es-pacial. No cenrio da arquitetura contempornea, no qual o que prevalece a indi-vidualidade e no a norma, torna-se indispensvel reconhecer as particularidades de pensamento de cada arquiteto a fim de compreender os espaos que constroem. 18

    No processo dialtico entre pensar e construir, entendemos que o desenho tambm pensamento espacial, ele se forma na mente e no apenas figura no papel. aquilo que pe em relao as distintas variveis de um projeto em curso. um meio plstico, mvel e flexvel que encontra correspondncia no manejo do meio espacial.

    14 No texto original, Robin Evans usa o termo projection: The distinction between composition and projection in architecture has its counterpart in mathematic geometry.

    ibidem, p. xxxi.15 MONEO, Rafael, Inquietao terica e estratgia projetual na obra de oito

    arquitetos contemporneos. So Paulo, 2009. p. 916 Ao analisar o projeto da biblioteca cientifica da Universidade do Sul da

    Califrnia (1988). ibidem, p. 47.17 ibidem, p. 195. Ao descrever a obra do Restaurante Boa Nova em Lea

    Palmeira (1958-63), o autor afirma: Trata-se de um projeto em que a ma-nipulao do espao prevalece. Da a importncia dos cortes, que permitem comprovar o uso hbil dos interstcios produzidos entre as coberturas.

    18 Para o historiador Kenneth Frampton, em seu ensaio Regionalismo Cr-tico, no mais possvel considerar a arquitetura ditada por solues ou ideologias universalizantes. Para as questes globais, como o crescimento acelerado das cidades, o desequilbrio ambiental, o arquiteto deve buscar elementos pr-existentes e regionais, salientando determinadas condies dadas pelo site-specific, com uma viso critica do lugar.

    Ver captulo: Critical Regionalism: modern architecture and cultural identity, in FRAMPTON, Kenneth. Modern Architecture, a critical history. Londres: Thames and Hudson, 1985. 2 edio. p. 327 (traduo da autora)

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    Agora, a pergunta que temos que fazer : como se d este processo na obra de PMR? E mais ainda, o que move seu pensar?

    A partir do estudo do acervo de projetos de PMR e do testemunho da concep-o dos projetos do Cais das Artes (2007) e Museu dos Coches (2008), pudemos con-firmar que as maquetes de papel e desenhos no papel manteiga so suporte material pelos quais o arquiteto realiza formalmente suas ideias.

    Vimos que ao logo do processo de elaborao de um projeto o arquiteto realiza uma nica maquete sobre a qual vai trabalhando e fazendo os ajustes necessrios. O mesmo ocorre com o desenho no papel manteiga: no h uma profuso de papeis ra-biscados at se chegar a uma concluso, trata-se de um s desenho, em geral um corte, sobre o qual ele desenha vrias hipteses, apaga as antigas, num processo similar a uma lapidao.

    Os traos sintticos e precisos que qualificam esses suportes materiais indicam que o arquiteto desenvolve grande parte do desenho em sua mente antes de mesmo de dar-lhe forma no papel.

    Na dimenso do pensamento, o arquiteto articula vrios nveis de aproximao da questo pela escolha de alguns caminhos: a convocao do conhecimento acumu-lado sobre o assunto; a memria como referncia espacial; e uma certeza singular daquilo que no quer fazer. Elementos que podemos conferir por meio do modo como ele se expressa sobre o processo de elaborao do projeto da Praa dos Museus da USP (2000):

    (...) Vou explicar como se configurou com clareza na cabea a soluo que possibilita a voc, l pelas tantas, abrir a porta, chamar o calculista e os outros colaboradores para ajudar, expandir a ideia e chegar nas suas dimenses definitivas.

    (...)Esses museus tm uma particularidade muito atraente: so museus de pesquisa, portanto frequentados por professores e cientistas. A convivncia do pblico com esses cientistas, voc pode imaginar o que : no pode ser feita assim estabanadamente (...).

    (...)Tem que arranjar uma espacialidade, uma museologia adequada para que ele possa exibir os resultados de sua pesquisa e permitir que outras pessoas desfrutem desse trabalho.

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    (...) Eu pensei o seguinte: fazer um espao elevado. Essa a parte emprica do saber: o viaduto do Ch (1892), em So Paulo, um espao elevado (...). No nosso caso, imaginei que um espao elevado poderia ser o saguo comum dos trs museus (...).