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DESEQUILIBRANDO O CONVENCIONAL: UM RELATO SOBRE A IMPORTÂCIA DAS TRAJETORIAS E MEMÓRIAS NOS PROCESSOS DE ENSINO E APREDIZAGEM. JEFFERSON CLEBER DOS SANTOS COSTA

DESEQUILIBRANDO O CONVENCIONAL

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Este trabalho apresenta um breve relato, de cunho memorial, sobre a minha trajetória pessoal e acadêmica no campo da arte. Nesta trajetória, identifico os estímulos presentes em meu ambiente familiar e comunitário, e as respectivas e possíveis contribuições para minha inserção nas áreas culturais e artísticas. Também através de uma descrição sobre meu processo de formação e de atuação profissional, apresento uma reflexão sobre os conceitos de multidisciplinaridade, multiculturalidade e interdisciplinaridade, de forma a compreender e analisar como esse processo refletiu também em minha esfera familiar. Por fim, além de uma defesa do memorial como um importante instrumento pedagógico, apresento uma discussão sobre os desafios da educação e do arte-educador diante das múltiplas possibilidades de ensino e aprendizagem.

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DESEQUILIBRANDO O CONVENCIONAL: UM RELATO SOBRE A IMPORTÂCIA DAS TRAJETORIAS E MEMÓRIAS NOS PROCESSOS DE ENSINO E APREDIZAGEM.

JEFFERSON CLEBER DOS SANTOS COSTA

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola Guignard como requisito parcial para con-clusão do Curso de Licenciatura em Educação artística com ha-bilitação em Artes Plásticas.

Orientação: Profa. Especialista Célia Maria Figueiredo Lacerda.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS - ESCOLA GUIGNARD

Belo Horizonte - 2011

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Resumo:

Este trabalho apresenta um breve relato, de cunho memorial, sobre a minha trajetória pessoal e acadêmica no campo da arte.Nesta trajetória, identifico os estímulos presentes em meu ambiente familiar e comunitário, e as respectivas e possíveis contribuições para minha inserção nas áreas culturais e artísticas.Também através de uma descrição sobre meu processo de formação e de atuação profissional, apresento uma reflexão sobre os conceitos de multidisciplinaridade, multiculturalidade e interdisciplinaridade, de forma a compreender e analisar como esse processo refletiu também em minha esfera familiar.Por fim, além de uma defesa do memorial como um importante instru-mento pedagógico, apresento uma discussão sobre os desafios da edu-cação e do arte-educador diante das múltiplas possibilidades de ensino e aprendizagem.

Palavras chave:

Memória, educação, arte-educador, ensino, aprendizagem, formação, processos, família, possibilidades multiculturalidade, multidis-ciplinaridade.

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Dedico e agradeço a todas as forças que são inexplicáveis perante aos olhos dos homens. Agradeço, em especial, a Deus - o único por todas as nações e maiorias religiosas. Dedico este trabalho à minha família e a todos os jovens que ainda sonham com a possibilidade de passar por este desafio, o qual eu tive a oportunidade de vivenciar. Também dedico este trabalho aos professores, propositores, ofici-neiros, arte educadores, multiplicadores e a todas as classes que se propõem e se preocupam com os processos educacionais de ensino e aprendizagem.

Por fim, agradeço as pessoas que contribuíram categoricamente para realização deste trabalho: minha mãe, Nilda Maria Quirino dos San-tos, que incondicionalmente é a mulher que mais amo; minha irmã, Laurimar Keila dos Santos Costa; a professora e orientadora Célia Lacerda, que com maestria e parceria orquestrou a execução deste trabalho; aos amigos da Associação Imagem Comunitária, em especial aos do projeto Rede Jovem de Cidadania; aos professores e colegas de Escola Guignard; a Libéria Neves; Alexia Melo; Gracielle Fon-seca, pela revisão voluntária do trabalho escrito; Marcelo Lin, por conceber o designer junto a mim; Ricardo Fabrino; Juliana Leonel; Juarez Dayrell; Juliana felizardo, minha amiga e atual companheira de todas as lutas.

DEDICATORIA E AGRADECIMENTOS:

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Introdução Primeiro Capitulo: De 70: Historias e 2000 motivos Segundo Capitulo: Encontros e Possibilidades Terceiro Capitulo: Provocações Considerações Finais: Aprendendo com os processos, um desafio

para os educadores. Referências

Sumario:

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Introdução:

Esta pesquisa, pautada em relatos de cunho memorial, tem como funda-mentação alguns questionamentos de caráter pessoal, os quais viven-ciei e ainda vivencio e, que têm a ver com a notória incapacidade do Estado em suprir a contento as necessidades básicas da população, tais como, saúde, transporte, laz-er, cultura e educação. Mas, é nas comunidades economica-mente menos favorecidas, cuja edu-cação formal é pública e apresenta pouca (ou nenhuma) infraestrutura, que podemos perceber uma série de empecilhos, que problematizam ain-da mais essa questão. Nelas, tor-nou-se comum vermos muitos jovens perderem o estímulo pelo ensino formal, interessando-se por out-ras fontes de conhecimento, quando não, boa parte deles se dedica to-talmente ao trabalho e à renda. Juarez Dayrell (2007)¹ no arti-go “A escola ‘faz’ as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil”, nos ajuda a compreender essa realidade. Na visão do au-tor,

a educação da juventude, a sua relação com a escola, tem sido alvo de debates que tendem a cair numa visão apocalíptica sobre o fracasso da instituição escolar, com professores, alu-nos e suas famílias culpando-se mutuamente. Para a escola e seus profissionais, o prob-lema situa-se na juventude, no seu pretenso individualismo de caráter hedonista e irrespon-sável, dentre outros adjetivos, que estaria gerando um desin-teresse pela educação escolar. Para os jovens, a escola se mostra distante dos seus inter-esses, reduzida a um cotidiano enfadonho, com professores que pouco acrescentam à sua forma-ção, tornando- se cada vez mais uma “obrigação” necessária, tendo em vista a necessidade dos diplomas. Parece que as-sistimos a uma crise da escola na sua relação com a juventude, com professores e jovens se per-guntando a que ela se propõe. (DAYRELL, 2007, p. 1105)

Em suma, como podemos notar, são muitos os fatores que interferem nesta questão. O certo é que, esse cenário tem propiciado que a op-ção pelo ensino universitário e os avanços na formação – o que pode provocar outras possibilidades de conhecimento - fiquem em planos

pouco prováveis, salvando-se algu-mas exceções. Ingressei na academia, mais espe-cificamente na graduação em arte, com o objetivo de potencializar minha formação e produção artís-tica, usando a arte tanto como uma ferramenta no momento da produção musical, audiovisual e plástica, tanto como para propor alguma ação educativa. Também sou fruto deste cenário de desigualdade social e de escassez na educação publica, sou parte dos estímulos de projetos e ações socioculturais, nos quais ora atuava como sujeito atendido, ora na posição de sujeito proposi-tor. Portanto, foi da percepção de que era necessário avançar, tanto no discurso quanto nas propostas, que vi surgir uma nova possibilidade em meu ambiente familiar: minha família passaria pela experiência inédita de ter um de seus membros em um curso de graduação, sobretu-do de arte. Sendo assim, neste trabalho pre-tende-se investigar e revelar um pouco da minha trajetória pessoal e acadêmica no campo da arte, destacando-se as reflexões provo-

¹Educação e Sociedade. Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial. out. 2007. p. 1105 -1128. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br > Acesso em 30/05/2011.

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cadas em meu âmbito profission-al e familiar, bem como algumas das possíveis contribuições para processos de ensino e aprendiza-gem menos rígidos.Para tal, no primeiro capítulo, por meio de algumas histórias, recupero laços e heranças famil-iares, bem como memórias da co-munidade na qual fui criado. O intuito e identificar os estímu-los aos quais fui exposto e suas contribuições para minha inser-ção. No segundo capítulo, apresento uma descrição sobre a minha tra-jetória de formação escolar e atuação profissional nas esferas social, cultural e política. Nes-sa descrição, procuro refletir - apoiado nos ensinamentos de Ivo-ne Mendes Richter(2008), Juarez Dayrell(2006) e Lúcia Gouvêa Pi-mentel(2010) – sobre os conceitos de multidisciplinaridade, multi-culturalidade e interdisciplin-aridade. O terceiro capítulo, o considero como meu “rito de passagem”. Nele demonstro como, vencendo desafios e superando comodidades, assumo meu legado familiar e comuni-tário, não somente como parte de minha formação pessoal, mas tam-bém cultural e como projeto de

vida. Nesse processo também ex-plicito como meu amadurecimento, proporcionado por minha produção artística e pelo meu encontro com academia, refletiu em meu am-biente familiar.Por fim, através de investigação bibliográfica, além de justificar e defender o relato memorial como instrumento pedagógico, apresen-to alguns argumentos sobre o de-safio da educação e do educador para manter vivos os múltiplos processos de ensino e aprendiza-gem, tendo em vista alguns fun-damentos estéticos, culturais e éticos da arte-educação.

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famílias não tinham dinheiro para reconstruir seus lares, ou moravam de aluguel na região onde as chuvas causaram estra-gos. Os que foram atingidos na região da Lagoinha, próximo ao rio Arrudas, enfrentaram mais dificuldades para tentar voltar às suas casas, pois já havi-am especulações anteriores às enchentes para tirar as mora-dias desta região, em função da continuação das obras do hoje conhecido como Complexo da La-goinha. Com o acontecido, os órgãos re-sponsáveis pela construção do complexo da Lagoinha desapropri-aram algumas casas, acelerando, assim, as obras. As famílias que tinham menos condição financeira tiveram que se contentar com os barracos cedidos pela administ-ração pública daquela época. Meu pai, proveniente de Vitória – ES, e minha mãe, de Coronel Fabriciano – MG, tinham acabado de chegar a Belo Horizonte com seus dois filhos, à procura de novas oportunidades. Eles alu-garam uma casa nesta região de-scrita acima. Entretanto, como veremos o sonho de conquistar uma vida melhor logo foi se des-fazendo.

chuvas torrenciais, que fizeram com que o rio Arrudas transbor-dasse e causasse uma das maiores enchentes de Belo Horizonte. Os moradores da região da Lagoinha e das partes mais baixas da área central de Belo Horizonte foram os mais atingidos. Mas, a re-sistência em ficar naquele lugar logo perdeu força, pois de acor-do com os próprios moradores da época, após as enchentes, tanto o prefeito Maurício de Freitas Teixeira Campos como os subse-qüentes – até Sérgio Ferrara, contribuíram com as famílias. Eles cederam barracos de ma-deira e uma mínima (miserável) estrutura em uma área entre a BR 262 (hoje 381), próximo à divisa com a cidade de Sabará. O lugar, cedido para as pes-soas que não tinham a princip-io para onde ir, era semelhante a um acampamento, composto por barracos de madeiras que forma-vam mais ou menos 20 corredores dispostos em toda extensão do terreno. Nesta época, logo após essas chuvas que castigaram Belo Hori-zonte, várias famílias tentaram voltar para os lugares aonde residiam e que as enchentes haviam atingido. Mas, algumas

No fim da década de 70 a ci-dade de Belo Horizonte passava por transformações estruturais. Havia uma tentativa por parte do poder público de remoção das famílias que residiam próxi-mo à região do bairro Lagoin-ha. O intuito da desocupação era proporcionar a construção de vias de acesso ao centro da capital. E como toda desapro-priação é acompanhada por re-sistência, essa não foi difer-ente. O que se pretendia era a liberação da área hoje conhe-cida como Complexo da Lagoinha, para construção das trinchei-ras, túneis e viadutos que at-ualmente dão acesso ao centro de Belo Horizonte. Contudo, o ano de 1979 foi marcado por

A vida não é a que gente viveu, é sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.Gabriel García Márquez (Epígrafe do livro: Viver para Contar)

Primeiro Capitulo: De 70: Histo-rias e 2000 motivos

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Minha mãe uma - tal como hoje é denominado, “analfabeta funcio-nal”, e meu pai “ensaiando” para ser um alcoólatra, nesta época dividiam suas funções familiares de forma tradicional: meu pai ar-cava com as despesas financeiras e a minha mãe cuidava dos filhos e da casa.

Com o passar do tempo, minha mãe começou a ver não só seus sonhos de mulher, mas de “dona do lar” se perderem. Pois, mesmo sem muita estrutura física na casa que ainda era de madeira, e com nenhum grau de e instrução, de leitura e escrita, tivera que, no início da década de 90, “dobrar as mangas” e ir à luta em busca da sobrevivência dos filhos. Ela passou toda a década de 80 dedicada a ter e cuidar dos fil-hos: depois dos dois que ela já tinha antes de chegar à Belo Hor-izonte, deu à luz a mais quatro, sendo o primeiro desta série eu, Jefferson Cleber. Anteriores a mim, Laurimar Keila e Jenario Cleibson. Depois do meu nas-cimento, vieram Labibe Sheila, Laucimar Shenia e Lauriane Jes-sica - todos dos Santos Costa, filhos de Nilda Maria Quirino dos Santos e Antonio dos Santos Cos-ta. Além desses, havia também um filho adotado, Marcos Domingos, e uma filha concebida fora do casa-mento por parte de meu pai, Jo-siane Tavares Santiago dos San-tos, que surgiu em nossas vidas aos 11 anos de idade.

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No início de 1990, minha mãe per-cebeu que meu pai não mais con-seguia suprir as necessidades da casa e da família. Assim, foi à procura de trabalho, mas se dep-arou com a realidade de ser uma mulher interiorana, quase anal-fabeta e sem experiência em nen-hum ofício urbano, a não ser os do lar e os afazeres braçais co-muns às pessoas que migram do interior para a cidade grande. Diante disso, ela foi trabalhar com o ofício que ela dominava muito bem, o de doméstica, arru-mando casas de pessoas com o pod-er aquisitivo mais apurado que o nosso.

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Nossa casa de madeira persistiu do modo em que a ganhamos até meados de 2006, na mesma região doada pela prefeitura, a região Nordeste de Belo Horizonte no bairro conhecido como Vila Ma-ria/ Jardim Vitoria/ Poca-Oi, ou para os antigos, na região do Gorduras. Minha mãe, mesmo que com essa pouca estrutura, sempre incentivou os filhos aos estudos formais. E meu pai, ape-sar de ser um cara boêmio e com comportamento machista e auto-ritário, sempre valorizou o lado cultural e artístico. Lembro-me de que meu pai, além de com-prar vários discos e freqüentar vários bares, reservava no mês um dia para levar seus seis fil-hos ao cinema, aos parques da cidade e outras infinidades de coisas que poderiam ser fei-tas com pouco dinheiro. Além das possibilidades artísticas e heranças indiretas que veremos adiante, essas iniciativas de meu pai propiciavam em nós uma ampliação dos nossos olhares em relação às coisas, mesmo ele achando que isso pesava no or-çamento. Esse comportamento de meu pai nos faz refletir acerca de um dos primeiros problemas levantados por Alceu Amoroso

Lima no livro Problema de Es-tética, (1946 p.47) citado por Duarte Júnior(1988) na publi-cação Fundamentos estéticos da educação, que diz:

Quando as artes se tor-nam privilégio das classes ricas e a má distribuição das riquezas coloca miser-áveis em face das elites altamente cultas, as artes perdem seu caráter liber-tador para ser elemento de dissociação e incompreensão entre os grupos de uma na-cionalidade. AMOROSO LIMA apud DUARTE JÚNIOR, 1988,

p.109

Adiante, Duarte Júnior res-salta que as artes elitistas, quando conseguem atingir su-jeitos pouco instruídos para reflexão e crítica, ela nada mais é que uma tentativa de “Um nivelamento social e in-dividual através de sentidos considerados sentidos univer-sais, que acaba por fazer com que os indivíduos provenientes de diferentes classes sociais vejam sua realidade a partir da ótica dominante.” (DUARTE JÚNIOR, 1988. p.119)Do ponto de vista da minha famí-lia, a ótica dominante propunha que tivéssemos uma casa grande, banheiros azulejados, cozinhas

e quartos com cores elegantes, móveis e eletrodomésticos mod-ernos, mesa de jantar onde toda família pudesse participar de uma ceia elegante.O lazer oferecido para nós, os filhos, de certa forma, e no meu ponto de vista, tinha a preten-são de fazer com que não per-cebêssemos a crise em que meu pai e minha mãe viviam - tan-to na parte amorosa quanto as suas divergentes visões de mun-do. Logo, nós filhos detectamos essa crise que, na medida em que íamos alcançando outros pa-tamares de discernimento, ficava mais aparente. Mas, isso era um problema dos dois. Não era per-tinente aos filhos resolverem, a não ser que isso refletisse na educação e na criação, tal como aconteceu futuramente e veremos adiante. Um dos maiores sonhos da nos-sa família era morar numa casa digna, o que significava possuir banheiro e cozinha decentes, piso e teto onde não tivéssemos problemas com as chuvas. Min-ha mãe lutou por isso, carregou tijolo, fez massa, abdicou das vaidades femininas e começou a mudança. Talvez, mesmo que in-stintivamente, ela tenha sido

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afetada pela revolução femini-sta dos anos 1960 e 70, na qual as mulheres foram em busca de outras formas sociais de ex-istência, além da condição de possibilidades concretas para ampliação e desmontagem dos modelos familiares calcados pelo patriarcado. As mulheres começam a ser peça fundamental nas decisões para além do lar e da educação dos filhos. Meu pai, talvez aproveitando deste mo-mento, começou a se distanciar das responsabilidades famil-iares vendo-se diante da pos-sibilidade de minha mãe começar a dar conta das responsabili-dades que eram exclusivas dele, além disso, ele começou a enx-ergar na minha pessoa a possi-bilidade de um filho ativo, in-ventivo e curioso. Dessa forma, meu pai ensinou a mim o ofício de pedreiro, o qual ele conhe-cia muito bem - mas parafrase-ando o dito popular: “em casa de ferreiro o espeto é de pau”, no caso de meu pai, em casa de pedreiro o barraco é de pau - Com isso, de certa forma, ele também se livrava de mais uma responsabilidade, de construir uma moradia adequada para a sua família.

O certo é que eu sempre fui muito curioso, mesmo que fosse só para começar algo e desistir logo em seguida. Posso dizer que, se meu pai deixou para mim algum legado, o mesmo foi o de apre-ciar coisas que, para muitos, não tinham utilidade. Foi com ele que, desde pequeno, apren-di a montar e desmontar coisas velhas e achadas numa caçamba, situada naquela época (década de 80 e 90), na esquina da rua em que moramos. Meu pai tam-bém tinha essa facilidade: ele adorava juntar tralhas e depois fazer barganhas com outros, con-hecidos seus. O que mais gostá-vamos de barganhar eram aparel-hos de rádio velhos e vinis, que foram uma das primeiras paixões de minha vida. Meu pai possuía um substancioso acervo de vinis e fitas cassetes, parte herdada do meu avô e outra parte conquistada via compras e barganhas. Era um acervo diver-so, tinha de tudo um pouco. No livro de Juarez Dayrell, A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da ju-ventude(2005), ele utiliza dois teóricos, Henri Wallon (1978), Lev Vygotsky(1991) para dizer das relações estabelecidas com

o mundo a partir das heranças que nos são concebidas.

A condição humana se reali-za, de fato, no ingresso em um mundo onde o humano já existe sob a forma de out-ros homens e de tudo que a espécie humana já construiu anteriormente.Tanto Wallon quanto Vygotsky asseveram que o homem é ge-neticamente social e que eu e o outro estão ligados para sempre nesse contexto, no qual a relação consigo supõe a relação com o outro. (DAY-RELL, 2005 p.176)

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Na década de 90, e para a nos-sa situação financeira, possuir aparelhos sofisticados de eletro-doméstico era algo fora da nos-sa condição. Por isso, o en-tretenimento mais acessível eram os rádios e toca-discos velhos barganhados pelo meu pai. Es-cutar vinis era uma das formas de criar um mundo mágico, en-tre o imaginário e a realidade. A música criava uma unidade en-tre a família: escutar um vinil era compartilhar um mesmo momen-to, cada um no seu canto fazendo suas tarefas, mas os ouvidos bem atentos para qual seria a próxi-ma música.Eu e meus irmãos escutamos muitos discos e fitas cassetes. Eu adora-va fazer seleção de músicas e brincar de rádio. Não tínhamos brinquedos comprados em loja. Nossa condição financeira permi-tia comer e, quando minha mãe cobrava e meu pai cismava, logo ele arrumava um jeito de nos en-treter fora do bairro (parques, bares, cinema, lojas de vinis). De certa forma, isso contribuiu para a liberdade das nossas brin-cadeiras de infância. Outrora, lembro-me do meu pai me levando ao Cine Brasil e depois em lo-jas de vinis que ele mais gosta-

va. Ele passava horas escolhendo vinis e, sabendo que eu era um dos filhos que também dava valor a este tipo de coisa, ele sempre arrumava um jeito de poder com-prar uma quantidade para que eu pudesse escolher algum.

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Os vinis, a construção da casa, o gosto pelo rádio e a crise famil-iar entre meu pai e minha mãe não afastavam de mim um dos lugares que mais marcaram a minha infân-cia e a minha adolescência: foi uma caçamba de lixo, que como já havia citado brevemente, situa-va-se no fim da rua em que moro. A caçamba era um lugar vivo, onde eu encontrei amigos, inventava brincadeiras e descobria objetos desconhecidos. A cada dia, ela trazia a esperança renovada de uma nova revelação e de uma surpre-sa. Nesta caçamba já encontrei, só para citar alguns exemplos, roupas, brinquedos, material de construção e revistas. Até hoje tenho o hábito de olhar seus arre-dores com curiosidade, em busca de objetos únicos e significati-vos, histórias de vida jogadas fora, memórias supostamente apa-gadas, bens materiais dispostos como inúteis. Sempre me apropriei desse “lixo”. Tomei-o como próprio. Usei cois-as com os fins para os quais foram produzidas. Dei novos usos a outras. Compartilhei com os ami-gos da rua muitas experiências e brincadeiras que começaram nessa caçamba. Fiz pequenas reformas na minha casa. Compartilho com

colegas de trabalho, hoje, obje-tos que vieram dela e que podem se fazer novamente úteis. Ali-mento-me da caçamba, cultural e artisticamente, em diversas oca-siões.Esse processo de me alimentar da-quilo que parece desimportante, de ressignificá-lo, marcou não so-mente esta época, mas toda a minha vida. Ela, a caçamba, metaforiza a potencialidade de estar aberto ao outro, de deixar-se transfor-mar por ele, ao mesmo tempo em que se atua para transformá-lo. Ela mostra a produtividade das brechas, daquilo que é incerto e do que se desdobra a partir do encontro. Aquela caçamba, que foi meu grande brinquedo ao lon-go da vida, tornou-se a definição do trabalho a que me dedico e a filosofia que utilizo diariamente para aprimorá-lo. Com o tempo, a crise que se ins-taurava entre meus pais começou a nos atingir. Minhas irmãs sof-riam com a educação machista e sexista e, já não viam a hora de se afastarem de um pai tão severo; minha mãe procurava con-ciliar, tentando encontrar um meio termo em meio às freqüentes discussões, mas não havia espaço para negociação. O poder de ar-

gumento de minha mãe era inferior às verdades de meu pai. Nós, os rapazes, sofríamos mais ao ver-mos nossas irmãs e mãe sofrendo caladas, pelos cantos. No ano de 2000 começamos a perce-ber que meu pai só daria conta do valor que aquela grande família tinha ao ver a mesma sendo des-montada. Meu irmão mais velho, após um sério desentendimento com meu pai, decidiu sair de casa. No natal do mesmo ano, um enorme desentendimento entre meu pai e minha mãe - diante de uma platéia composta por familiares e amigos de ambos, eu também resolvi não mais ficar naquela casa. A questão é que, apesar de nem sempre ser levado a sério, eu sempre mediei conflitos e discór-dias e, mesmo tendo uma afinidade grande com meu pai, não conseguia mais ver nossa família sofren-do devido ao destempero de nosso patriarca. Naquela noite de natal decidi que iria embora. Fui até o quar-to onde estavam reunidas minhas irmãs e minha mãe e, comuniquei a todas que eu também não moraria mais naquela casa. Minhas irmãs disseram que sem mim não ficariam e, minha mãe, chorosamente, disse que sem seus filhos não ficaria

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jamais. Assim, na mesma noite, fomos todos embora, deixando meu pai com todos os convidados para o natal daquele ano.Por cinco anos, nossa casa ficou só e abandonada, pois meu pai voltou para sua cidade natal, Vitória-ES. Como pagávamos alu-guel, decidimos pedir permissão a nosso pai para voltar para nossa casa que estava abandonada. Ele concordou. E foi assim que ret-omamos aquele velho barraco de madeira da Rua 8.

Segundo Capítulo:Encontros e Possibilidades

Vivemos em um mar de histórias, e como os peixes que (de acor-do com o provérbio) são os úl-timos a enxergar a água, temos nossas próprias dificuldades em compreender o que significa na-dar em histórias. Não que não tenhamos competência em criar nossos relatos narrativos da realidade – longe disso, so-mos, isso sim, demasiadamente versados. Nosso problema, ao contrário, é tomar consciên-cia do que fazemos facilmente de forma automática.

(BRUNER, 2001 p. 140)

A construção da nossa casa sem-pre foi um desafio para mim e min-ha família, visto que até meados do ano dois mil ainda morávamos na mesma casa de madeira. Com a

separação dos meus pais, logo os filhos tiveram que tomar decisões do tipo: dar continuidade e re-forçar os estudos, trabalhar e contribuir com a renda familiar, reorganizar a família e traçar novos rumos e perspectivas. No entanto, isso não era fácil. Como bem aponta o teórico Duarte Júnior (1988 p.118), os sociólo-gos procuram na economia ou nas relações familiais as causas das fraquezas humanas e, esquecem-se de questões alienígenas às quais estamos submetidos, tais como as práticas educacionais, a indús-tria cultural, o sistema artís-tico e outros. Esquecem-se dos processos e das responsabilidades que são atribuídas aos jovens oriundos de famílias com pouca estrutura e renda, como a minha. Jovens que, em sua maioria, são peças fundamentais na construção da estrutura financeira e física dos lares e das famílias de onde eles vêm.A educação e os estímulos que tive com a família e o entor-no no qual eu estava inserido eram completamente improvisa-dos. Talvez essa realidade im-provisada também trouxesse re-flexos das ações governamentais que nos anos 70, 80 e 90 ainda eram precárias em relação aos

aglomerados, vilas e favelas de Belo Horizonte. Berenice Martins Guimarães (1992), a partir de uma análise de dados, avalia as ações do poder público com o objetivo de traçar uma perspectiva históri-ca das origens e da evolução do problema frente a esta re-alidade das vilas, favelas e aglomerados.

O imediatismo e a impro-visação, características das primeiras ações do poder público com relação à favela, foram seguidos da criação de órgãos e programas destina-dos a enfrentar o problema, cujo desempenho, entretanto, sofre solução de continui-dade e é afetado por mudan-ças políticas e orientação. (GUIMARÃES 1992 p.11)

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Desde cedo tive um modelo de edu-cação “improvisista”. E foi as-sim que eu aprendi a lidar com a escassez e os restos deixados por outras pessoas; acima de tudo, me desviei das imposições de senti-dos e valores distantes da reali-dade em que eu vivia. Neste caso, a saída improvisada era o que restava não só para mim, mas para outras pessoas em condição social semelhante, regida pela ausência: estrutura familiar comprometida, dificuldades na geração de ren-da e pouca perspectiva escolar, perspectiva de trabalho em sub-empregos. Ainda que façam parte da construção histórica do mundo desde seus primórdios, essas pes-soas geralmente não são valoriza-das pela sociedade. Para esse meu exemplo de realidade citado acima, investimentos em ed-ucação formal eram escassos, pois o dinheiro adquirido com nosso árduo trabalho mal dava para su-prir as nossas necessidades bási-cas, como por exemplo, alimenta-ção, contas prioritárias (tais como, água e luz) e lazer. Diante disso, a educação formal ficava em segundo plano. Às vezes, quando o dinheiro sobrava, até dava para comprar caderno, lápis e até uma mochila, mas não era sempre.

Lembro-me da primeira vez em que fui à escola, levei um caderno reaproveitado de minha irmã dentro de uma sacola de arroz. Eu estava muito motivado, me sentia como se eu estivesse indo para uma brin-cadeira nova, de chinelo e roupas bem à vontade. Logo me enganei. Fui me frustrando com a escola. Permaneci repetente na primeira série durante três anos, pois não conseguia dar conta das tarefas exigidas pelas professoras. Eu gostava mesmo era de coisas que não faziam parte do universo da escola formal. Além de gostar de músicas - como descrito anterior-mente, herança adquirida de meu pai (eu ficava horas garimpando os vinis que ele tinha em um pequeno acervo), gostava também de ficar na rua, de montar e desmontar peda-ços de coisas velhas. Eu gastava horas indo até a caçamba de lixo da esquina para descobrir alguma possibilidade nova. Com o passar dos tempos, aos poucos fui estimulado com as formalidades do mundo escolar. Meu primeiro estímulo veio através da profes-sora Maria Angélica, que gostava de conhecer os alunos bem de per-tinho. Ela foi uma das primeiras a se interessar pelas coisas que eu fazia e pelas histórias que car-

regavam cada uma dessas coisas. A professora Angélica quase sem-pre organizava ao final da aula uma espécie de show de talentos, no qual cada aluno apresentava algo. E como eu era um dos alunos menos tímidos da turma, eu adorava ir à frente e cantar alguma música que ouvia em casa. Acredito que, com isso, essa professora percebeu que o processo de ensino e apren-dizagem, no meu caso, não poderia se restringir somente à sala de aula. Daí, mesmo com todas as di-ficuldades que eu ainda apresenta-va, ela me avançou para a segunda série – creio que, a professora Angélica percebeu naquele momento que eu precisava de estímulo. A partir desse marco, começam a sur-gir em minha formação os primeiros aspectos de valorização multidis-ciplinar e multicultural e da “in-terculturalidade”. Anos depois, na quinta série, o professor Gilson, me ensinou o prazer da leitura. Outros profes-sores, tais como Maria do Rosário e Algésia também exerceram enorme importância na mudança de minha conduta escolar. Meu pai, mesmo com pouca educação formal, e minha mãe sem nenhuma, sempre por mais que não entendessem todas as coi-sas, faziam questão de participar

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ativamente. E foi assim que, aos poucos, fui capturado pelo gosto e pelo prazer do estudo. Foi quando comecei a perceber que aquilo vivenciado por mim fora da escola também poderia contribuir para o meu processo de ensino e aprendizagem. No intuito de compreender essa possibilidade, invoco o artigo de Ivone Mendes Richter (2008, p.105), pois, o mesmo discute questões que de certa forma têm relação tanto com o citado anteriormente como com aquilo que veremos adiante. Para essa autora, a “intercultur-alidade” tem papel fundamental nos processos de ensino e aprendiza-gem. É um conceito que tem como característica principal consid-erar a diversidade como um re-curso e uma força para educação, em vez de um problema. Outros au-tores como Lúcia Gouvêia Pimen-tel (2010 p.181) e Juarez Dayrell (2001 p.140) também apresentam a possibilidade do multiculturalis-mo como força para os processos de educação formal.Essas definições também pare-cem conversar com o que Clifford Geertz(1997) diz sobre o estudo de arte:

A compreensão desta realidade, ou seja, de que estudar arte

é essencialmente uma formação coletiva; e de que as bases de tal forma são tão amplas e tão profundas como a própria vida social,(...) (GEERTZ, 1997 p149)

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Em 1996 comecei a me envolver diretamente com ações culturais e sociais, de forma coletiva. O primeiro grupo do qual partici-pei foi o União Hip Hop(1996)² . Junto a esse grupo tive um dos meus primeiros contatos, ainda incipientes, com a cul-tura Hip Hop. Para o propósito deste trabalho, basta infor-mar que essa cultura retoma de forma criativa, a tradição oral dos negros da África Ocidental que entoavam canções nas alde-ias (griots). Na sua origem ur-bana, ela nasce na década de 60, na Jamaica, sob a forma de canto e ritmo (ou canto falado) que denunciava a violência nas favelas de Kingston, a situação política do país, além de tratar temas mais prosaicos, como sexo e drogas. Mas, é a partir de meados de 1970 e sobretudo nos subúrbios pobres de New York, que os imigrantes Jamaicanos e porto-riquenhos difundiram essa cultura para as ruas e esquinas da cidade. O Hip Hop chega ao Brasil no final da década de 80. A princípio, essa cultura apre-senta 4 elementos fundamentais:

Com esse grupo procurei canal-izar parte do discurso sobre questões que ia encontrando ao longo da minha vida. O rap e a cultura Hip Hop me propor-cionaram a vontade de conhecer outras coisas, tanto próximas como distantes da realidade em que eu vivia. E foi a partir do gosto herdado de minha famí-lia pela música e meu envol-vimento com a cultura Hip Hop que comecei também a me inter-essar por movimentos de rádios comunitárias. Em 1998 pleit-eei junto a uma rádio comuni-tária, situada próximo à minha casa, um horário para que eu pudesse apresentar um progra-ma. Na publicação Na publicação - Pensamentos e trajetórias de jovens realizadores do audio-visual comunitário, de Juliana Leonel(2010 p.322) , descrevi assim:O programa se chamava “Reali-dade Ativa” e combinava Rap com questionamentos sobre políti-cas, segurança, economia e so-ciedade. Os comentários eram pouco apurados, mas agressi-vos e radicais. Com o passar

Break(dança), Grafite(artes vi-suais), Mestre de Cerimônias(Mc, o que apresenta, improvisa e canta o rap), DJ (Maestro, que inicialmente, com os toca dis-cos, toca e compõe músicas e batidas para Hip Hop).O grupo, união Hip Hop tinha um comportamento e forma de se vestir bastante peculiar - calças largas, blusas colori-das, totalmente carecas ou no estilo Black Power bem ouriça-do, tênis com formatos avanta-jados e, gírias locais faziam parte do estereótipo do grupo. Aos poucos, percebi que o Un-ião Hip Hop(1996) se interes-sava somente por um dos ele-mentos dessa cultura, o break³ . De alguma forma me sentia à vontade no grupo, comecei a em interessar pela cultura Hip Hop e a pesquisar mais a fundo. Nesta pesquisa descobri e criei uma afinidade com o Rap, um dos gêneros musicais da cultura Hip Hop. E, em 1997 convidei mais dois amigos para começarmos um grupo de Rap próprio, hoje con-hecido como Rep em Fatos (Ritmo e Poesia em Fatos - ou REF).

²Grupo da região do bairro Vila Maria que se reunia para ensaiar passos de danças ligados a cultura Hip Hop. Ao definirmos O Hip Hop neste trabalho como cultura, o interpretamos via Geertz(1979), como um “sistema cultural” que integra crenças, valores, normas, condutas, representações, que se cristalizam em contextos locais, por meio de específicas e concretas formas expressão, mas que se atualizam incessantemente visto que a cultura é dinâmica.

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do tempo, tais posicionamentos amadureceram: era preciso li-dar com diferentes públicos e não fazia sentido assumir pos-turas tão totalitaristas e mas-sificantes como aquelas a que me opunha... p322

³Tambem conhecida como Breakdance, breaking ou somente B.Boy. Essa definição é dada à pessoa que dança pela cultura Hip Hop. Dentro do estilo existem infindáveis categorias e estilos de se dançar, mas, na origem dessa dança, em 1970, os porto-riquenhos imitavam combat-entes de guerra mutilados e ferramentas utilizadas para guerra, como helicópteros, tanques, metralhadoras e outros. Cf. LEONEL, de Melo. MENDONÇA, Ricardo Fabrino (Org.). Audiovisual comunitário e educação: histórias, processos e produtos. Belo Hori-zonte: Autêntica Editora, 2010 (Coleção Comunicação e Mobilização Social; 7) p.315 a 330

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Foi nesta época que comecei a perceber que, a prática da ed-ucação midiática permitia uma ampliação do discurso e abria novas possibilidades para a construção de uma visão de mundo mais critica e reflexi-va, tanto na minha vida quanto na de outras pessoas. Oficinas e formações, ministradas por mim, despertaram meu interesse pela área de comunicação, arte e educação. Assim, logo pro-curei me envolver mais nestas áreas. O trabalho com a rádio e as reflexões desencadeadas nesse período fazem parte da vida de muitas pessoas, incluindo a minha. As experiências com “o outro” serviram de substâncias para ações mais amplas e menos exclusivas, pois nesta época eu tinha que lidar o tempo inteiro com um público exigente na for-mação e na discussão dentro do ambiente radiofônico. Também nesta época, eu era uma das pessoas envolvidas em um coletivo de políticas públicas para a juventude e para o Hip Hop, o “Coletivo Hip Hop Chama”, que reunia grupos de diversos bair-ros de Belo Horizonte e região metropolitana, tendo como um dos propósitos sistematizar e

efetivar ações em prol da ju-ventude do Hip Hop, contando com a contribuição legítima de diversos representantes da cultura local. Debates, semi-nários e formações diversas com foco em diversidade e gênero, redução de danos, igualdade ra-cial, políticas públicas para juventude e para o Hip Hop eram algumas das temáticas mais pau-tadas por esse coletivo. O coletivo se consolidou em Belo Horizonte e, logo surgiram oportunidades de parcerias que faziam com que o grupo ganhas-se mais força. Uma das maiores parcerias foi com a Associação Imagem Comunitária (AIC), uma ONG que tinha como um dos prin-cipais focos a discussão do uso e da produção crítica e reflexiva em torno da produção audiovisu-al, tendo como base a ideia de acesso público à comunicação, e respectivos desdobramentos. Foi a partir desse encontro en-tre o Coletivo Hip Hop Chama e a AIC que surgiu para mim uma nova possibilidade de atuação no meio cultural e artístico. Pois, o coletivo foi convidado a participar de uma oficina que o AIC conceitualmente chamava de formação na produção de vídeo.

Esse projeto era intitulado Juventude e Direitos Humanos. Nele, os participantes experi-mentavam e discutiam um pouco sobre a linguagem audiovisu-al e, ao final, concluía-se um produto comunicacional, neste caso, um vídeo de aproximada-mente 24 minutos de duração. Essa experiência me propiciou um grande avanço em minha for-mação. Nesta época, eu já atu-ava em duas potências de cria-ção e produção de conhecimento, a Rádio Comunitária e a Cultura Hip Hop, citadas anteriormente. Agora, surgia a possibilidade de ampliar meu conhecimento através do audiovisual. A iniciação na produção audio-visual ficou marcada em minha memória, pois ela abriria um novo ciclo de produção de sen-tidos e conhecimento. E, ao fi-nal deste primeiro contato com o audiovisual, produzi, junto a outras pessoas, o documentário “TeleRadiodifusão”. Neste doc-umentário buscamos refletir um pouco sobre as condições de funcionamento das rádios comu-nitárias através de uma breve crítica sobre o conteúdo di-sponível na produção de TV ab-erta. Minha participação foi

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tão intensa que, logo no ano seguinte, comecei a trabalhar efetivamente na AIC.Ao longo das minhas experiên-cias, sempre tive um grande contato e afinidade com o som. Gostava de músicas, me envolvi com grupos de Rap e atuava em rádio comunitária. Foi daí que surgiu a possibilidade de con-tribuir com o trabalho da AIC, pois pouco antes, tive a opor-tunidade de montar uma espécie de selo de produção musical,o “Produto Tosco” que, nos tem-pos atuais atua também no au-diovisual. A criação desse selo musical a princípio se ocupava somente da produção sonora da rádio em que eu atuava, e da composição das músicas do grupo no qual, como dito, eu já es-tava inserido: o REF. Somente mais tarde o selo se ampliou. O convite para o trabalho na AIC, em 2005, era para que eu pudesse atuar na formação, através de oficinas e mobiliza-ção em escolas de Belo Hori-zonte, usando a linguagem e as ferramentas da produção de rá-dio. Atuei durante seis meses

neste projeto da AIC, que pos-suía o nome de CUCO – Juven-tude, Cultura e Comunicação. No ano de 2006 fui convidado a compor a equipe da Rede Jovem de Cidadania (RJC)5 , projeto da AIC que, na tentativa de resum-ir, consiste em produzir cole-tivamente, ou seja, com pessoas e grupos organizados de todo o estado, um programa para a tele-visão. Trata-se de uma rede de comunicação participativa que articula centenas de grupos e movimentos juvenis. A proposta é dar visibilidade a iniciati-vas nos campos da cultura e da cidadania protagonizadas pela juventude, bem como a debates e reflexões ligadas ao universo juvenil. No mesmo artigo cita-do anteriormente na pagina 326, também discorro brevemente so-bre essa minha passagem pela Rede Jovem de Cidadania.

O trabalho com o outro proporciona diversas desco-bertas pessoais e coletivas, quando você está à vontade e consegue fazer com que o outro se sinta parte da pro-posta. O real encontro com o outro faz com que o desejo de

estar no papel de question-ador, provocador, proposi-tor, mediador ou professor aumente sempre. O importante é que devemos aliar prática com o estudo para estar mais próximos daquilo que quere-mos trabalhar. É importante, também, não descartar nunca a hipótese segundo a qual, mesmo entre iguais, to-dos são extremamente difer-entes. Outro aspecto a ser mencionado é a necessidade de abandonar uma concepção redutora de verdade, que di-ficulta conhecer outros ol-hares sobre a mesma coisa.

Rede Jovem de Cidadania é um programa de televisão, atualmente exibido pela TV Brasil em todo território nacional, e também exibido há quase dez anos pela Rede Minas de Televisão em todo estado de Minas Gerais.5

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Com a minha entrada AIC e a ampli-ação do Produto Tosco, a necessi-dade de potencializar as ações e o discurso pediam novos desafios. E foi essa minha trajetória, rica em processos de ensino e apren-dizagem, que aguçou ainda mais em mim o desejo de ampliar meus conhecimentos através de um curso universitário. Na universidade eu poderia, enfim, confrontar todas essas relações e formações que obtive, tanto com minha família como pelos lugares por onde pas-sei. No próximo capítulo conta-rei melhor sobre esse processo.

dio, comecei a me questionar sobre o tipo de relação que eu gostar-ia de estabelecer com a educação formal. Nesta altura, quase tinha me entregue à profissão militar. Fiz um curso de aproximadamente dois anos para ingressar na ca-reira militar. Nessa época, min-ha mãe, com todo o sacrifício e dificuldade, trabalhava como dia-rista e tirava parte de sua renda para pagar não só o curso, mas as provas que eram exigidas. Numa destas provas consegui passar, já na primeira etapa, para ser piloto de caça das Forças Arma-das. O sonho de ter estabilidade financeira e de poder completar os estudos estavam bem próximos a mim.Mas, a ideia de ter que mudar para outra cidade e ficar longe da minha família fez com que eu desistisse desta oportunidade. Isso sem contar que eu já havia acumulado relações com os lugares e coisas com os quais eu mantive contato desde então. Algumas pes-soas ficaram chateadas mas, minha mãe, que era pessoa fundamental nas minhas decisões, me deu todo o apoio nesta escolha. Após esse episódio, consegui meu primeiro trabalho formal, como auxiliar administrativo. Tra-

balho este que gerou a primei-ra ideia para prestar vestibu-lar. Fiz prova para o vestibular de administração numa faculdade particular, incentivado pelas donas da empresa em que eu tra-balhava, que me propuseram a in-vestir nesta área, pois a em-presa pagaria os custos. Passei, mas logo nos primeiros dias de aula detectei que ali não era meu lugar. Frequentei aproxima-damente três meses de aula e, fiz uma avaliação crítica sobre essa escolha. Comecei a refletir so-bre os meus desejos e toda minha história de vida. Logo concluí que a graduação em administração não passava de uma escolha cômoda e não condizia com essas poucas memórias da minha vida, as quais relatei até o momento. Agradeci as pessoas que investiram em mim e parei de freqüentar as aulas, abandonando o curso. Depois disso, tentei descobrir qual seria a formação que iria contribuir e reverberar recip-rocamente na minha trajetória. Vasculhando livros e escritores, descobri Katia Canton, que no livro Tempo e memória (2009), reserva um capítulo para dizer sobre a memória como agente de resistência. Em um dos trechos

Terceiro Capítulo: Provocações

Cada enigma é um mar desconhe-cido que convida: atravessar o oceano Atlântico num bar-co a vela, sozinho. E quando a gente é capaz de fazer a coisa, vem a euforia, o sen-timento de poder: fui capaz: isso tem a ver com um desejo fundo que mora em cada um: ser objeto do olhar admirado do outro, ser o desejo fundo que mora em cada um: ser objeto do olhar admirado do outro, ser o primeiro. (ALVES, 1989,

p. 2)

Pouco antes de entrar para a AIC, ou seja, ao terminar o ensino mé-

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essa autora diz: Nas artes, a evocação das memórias pessoais implica a construção de um lugar de resiliência... Neste trecho ela discorre sobre as possibili-dades do mundo virtual, das tro-cas e construção da memória co-letiva que tendem a nos induzir a pensamentos e decisões, se in-corporando às nossas escolhas de forma que não sabemos até que ponto elas são realmente “nos-sas”. Isso traduz um pouco da sensação que eu tinha, pois ape-sar de muita gente ver um po-tencial em mim, eu mesmo ainda não havia parado para refletir e decidir qual caminho eu gostaria de trilhar na academia. Em outro momento, fiz uma lis-ta de possibilidades de cursos de graduação e consultei amigos: História, Sociologia, Arte, Psi-cologia, Engenharia, Arquitetura e Economia, eram as que mais me interessavam. Meus amigos quase sempre me indicavam formações que tinham a ver com relações huma-nas. Mas, foi no primeiro ano em que trabalhei na AIC que consegui tomar a decisão sobre qual ves-tibular gostaria de prestar. Na AIC, agradava-me muito a ideia de trocar múltiplos conhecimen-tos a partir da arte e da comuni-

cação. Isso começou a despertar em mim uma possibilidade de for-mação que parecia ir ao encontro com o que eu já havia acumula-do até o momento. Atuava na AIC à principio como aprendiz, mas queria contribuir um pouco mais. Além disso, minha formação ao longo da vida carecia de uma nova possibilidade de ampliação. Por outro lado, refleti também sobre quais seriam os rastros e heran-ças que minha família e o lugar onde vivo, mesmo que invisíveis, haviam plantado ou deixado em minha formação. Por fim, conheci a Escola Guignard, que oferecia em sua grade dois cursos titu-lados pela Universidade do Es-tado de Minas Gerais (UEMG) e procurei saber sobre tais possi-bilidades. Descobri que ambos os cursos, Artes Plásticas e Educa-ção Artística, embora partam do mesmo princípio, o primeiro está mais ligado à produção e reflexão, enquanto o segundo aprofunda a grade curricular em questões da arte como possibilidade educa-tiva. Escolhi Educação Artística, cur-so que a principio me ofereceria - além de um contato acadêmico com a arte e a educação - a pos-sibilidade para que eu pudesse

cruzar as passagens e experiên-cias que minhas vivências haviam me permitido. Enfim, vi no cur-so uma oportunidade de ampliar e potencializar ações ligadas à arte. Tentei o vestibular por duas vezes e finalmente passei.

Na AIC todos ficaram felizes pela minha escolha. Para mim e min-ha família, a ideia de univer-sidade ainda parecia um enigma, pois todos esses valores e sig-nos que permeiam o caminho até e após a graduação ainda eram bem distantes da nossa vida cotid-iana. Mas, arte como parâmetro para educação, mesmo que incon-scientemente, era algo valoriza-do em minha família. Creio que esta postura fez toda a difer-ença na educação que meus pais me deram.

No intuito de aprofundar em todas essas questões, vale recuperar o discutido nos dois primeiros capítulos, ou seja, o fato de que desde cedo tive um modelo de edu-cação improvisada, que contribuiu para que eu tivesse liberdade para re-significar e estabelecer conexões com o mundo, mas sempre ciente da realidade. Aprendi a re-significar e aproveitar restos

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que são deixados à classe social da qual eu vim. Além disso, tive que lidar com as imposições de sentidos e valores distantes da vida concreta, para mim e para vários outros residentes do lu-gar em que vivo.

A saída improvisada era o que restava pra mim, tal como para diversas pessoas em condição so-cial igual à minha: regida pela escassez, com estrutura familiar comprometida, dificuldades na ge-ração de renda e poucas perspec-tivas escolares. Quando entrei para a universidade e, sobretudo para uma graduação em arte, comecei a perceber que ela poderia ser um lugar em que eu poderia canalizar e ampliar as possibilidades de conexão com a vida e a educação.De fato, logo criei uma afini-dade com esse universo tão pe-culiar, e ao me deparar e ouvir as histórias de vida de alguns de meus colegas de curso con-cluí que o ensino universitário é organizado, a priori, de modo a dificultar o ingresso de pes-soas que passaram por um ensi-no primário deficiente. Portanto, os que conseguem chegar lá, em grande maioria, têm uma boa base

escolar primária. Em seguida, vêm aquelas pessoas com um certo poder aquisitivo. Por fim, somente uma pequena parcela é de pessoas como eu, que não sou oriundo de nenhum desses dois universos, mas consegui, apesar de todas essas adversidades, vislumbrar possi-bilidades a ponto de enxergar a universidade não somente como um desafio, mas como uma etapa im-prescindível para meu avanço. Aos poucos venci este desafio. Contando, a todo o momento, com o repertório que eu já trazia: o da herança familiar, das memórias da comunidade em que eu vivo, das relações dos lugares e trabalhos que pude acessar, além do desejo de abrir mais um ciclo de pos-sibilidades na história da minha família. Em suma, o que eu não gostar-ia de perder, ou melhor, o que deve e merece ser ressaltado, é essa história que construí no meu “pedaço”. O conceito de “pedaço” tal como o uso, foi criado por José Guilherme Cantor (1984) e apropriado por Dayrell (2005) no livro o qual fiz menção no primeiro capítulo. O trecho diz assim:

Segundo Mangnani (1984), “pedaços” é um espaço inter-mediário entre o público e o privado, onde se desenvolve

uma sociabilidade básica mais ampla que a fundada nos la-ços familiares, porém mais densa, significativa estável que as relações formais e in-dividualizantes impostas pela sociedade... Para o autor, o pedaço constitui um componen-te de ordem espacial a que corresponde a uma determina-da rede de relações sociais. (Dayrell 2005, p.72)

Na escola Guignard fui tomado gradativamente pelo poder que a arte tem. Mas, sobretudo, pelo vasto repertório que a produção de arte pode nos propiciar e as possibilidades de educação a partir da arte. Um exemplo disso é: como um quadro de arte colo-cado numa sala de visitas de uma família pode trazer reflexões in-usitadas no cotidiano. Digo isso porque, pouco antes de entrar para a graduação de arte educação comprei uma pintura de um artista amigo, Eu Penaforte. Apesar de em minha casa haver centenas de fotografias, nunca houve sequer uma foto nas paredes. Foi assim, sem muita pretensão, apenas bus-cando inserir outras possibili-dades de pensamentos no ambiente familiar, que decidi colocar a pintura do artista Eu Penaforte na sala de visitas.

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A figura feminina a esquerda no primeiro representa a figu-ra da Mulher-Mãe que sozinha em seu banco se despede de uma forma de vida passada, Meni-na-Mulher. A figura do casal à direita ao segundo plano representa o desejo por algo que perdeu ou que gostaria de ter. As cores azul e vio-leta instauram uma atmosfera melancólica. Na construção das formas são usadas apenas cores, sem a utilização de linhas de contorno, tentando ressaltar ainda mais a ideia de quimera, sonho, ou deva-neio. (Descrição feita pelo autor.)

No primeiro almoço de domingo, a pintura na sala já provocou uma discussão a respeito dos sentidos que ela trazia e o que signifi-cava. A tradução proposta pelo autor, nesta hora, ganhou outros sentidos e significados, dando espaço para um debate formativo e elucubrativo sobre a imagem. Quando me perguntavam sobre o que eu achava, eu respondia com in-formações técnicas do tipo: nome da obra e do artista, técnica que ele utilizou para executar a obra e o movimento artístico que talvez ele houvesse se pautado. Isso de certa forma não ajudava no que eles queriam, pois gostariam de uma definição minha para saber quem mais se aproximou da minha opinião ou da do autor sobre a obra. No entanto, estas definições técnicas, que não faziam parte até então do nosso mundo, pas-saram a ser incorporadas. Pron-tamente, pintura, desenho, arte, atelier, trabalho de arte e out-ras definições menos profundas agora começavam a fazer parte de nosso universo cotidiano. Clifford Geertz (1997) amplia a ideia de apreciação de uma obra de arte, na medida em que ele diz que: “a capacidade de uma pin-tura de fazer sentido (ou de poe-

mas, melodias, edifícios, vasos, peças teatrais, ou estátuas), que varia de um indivíduo para outro é, bem assim como todas as outras capacidades plenamente humanas, um produto de experiência cole-tiva que vai bem mais além des-sa própria experiência.” (Geertz 1997, p.165)O que Geertz sugere é a ideia de que as possibilidades a partir do convívio e da apreciação da produção artística são múltip-las e, que o encontro entre a obra e o espectador transcende e amplia as realidades em que a obra estava inserida. E isso, entretanto, de forma alguma tor-na a obra menor ou maior, mas sim cria uma nova possibilidade que nasce entre o encontro entre o eu e a obra, e posteriormente os efeitos desse encontro em rela-ção ao coletivo. Aos poucos fiz com que a minha produção artística tomasse conta do ambiente familiar. No ano de 2000 resolvi montar uma pequena produtora de música, a Produto Tosco, que ficava no meu quarto e atualmente ocupa dois cômodos da casa. Em 2008, ao entrar para a graduação de arte, parte da produção plástica produzida por mim ocupava um desses cômodos.

Eu Pena Forte - A Despedida(2007) - Acrilico sobre Tela

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Era um espaço bem pequeno. Mas, ao longo do curso comecei a tomar conta de outros cantos da casa - um dia minha mãe me surpreendeu me perguntado se eu não gostaria de construir um atelier maior. Isso, de certa forma, demonstrava como naturalmente meu comporta-mento e meus trabalhos artísti-cos trazidos da escola pra casa estavam ampliando a visão e o cotidiano de minha família.

Estas ideias ganharam mais força na medida em que produzia e ocu-pava mais lugares da casa com minha produção acadêmica. Assim, produzi pinturas e coloquei nas paredes, esculturas ficaram pelos cantos da casa, desenhos nos ras-cunhos chamavam a atenção, ocupei quartos com materiais que uti-lizava na produção, textos e liv-ros que ia acumulando também iam se espalhando pela casa; coisas

que agora procurava na rua tendo em vista alguma produção plásti-ca também compunham o amontoado de possibilidades que eu levava para casa. Essas coisas, de al-guma maneira, remetiam à ideia da caçamba que contei em outro capítulo.

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Ao produzir abertamente para que a família percebesse, surgiram questionamentos, até então im-pensáveis: perguntas do tipo, “O que você estuda?” “Pra que serve esta formação?” “Sua escola é longe?” “No dia de sua formatu-ra como temos que nos vestir?”, passaram a ser comuns.

Assim, vi emergir novos efeitos no meu ambiente familiar pois, as perguntas foram, de forma grada-tiva, respondidas naturalmente. E, com isso, a possibilidade da produção artística, da educação através da arte proporcionada pela minha entrada na universi-dade proporcionou que o cotidia-no da minha família ganhasse mais estas possibilidades.

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uma crítica que forçosamente ava-lia as ações, ideias, impressões e conhecimentos do sujeito nar-rador; é também autocrítico da ação daquele que narra, seja como autor do texto ou como sujeito da lembrança.” (TOLEDO e SOLIGO, 2005, p. 6). Estes autores, no mesmo artigo, também ressaltam a importância pedagógica do memo-rial como uma das principais fer-ramentas para o educador refletir sobre a educação e seus proces-sos. No livro de Katia Canton, Tempo e memória (2009, p.15) a autora cita a obra A identidade cultur-al na pós-modernidade (2000), em que Stuart Hall define o processo de novas combinações de espaço-tempo como uma das principais características da globalização. Segundo Hall, diferentes épocas culturais apresentam diferentes formas de combinar tempo e espa-ço, e a compressão das distâncias e o achatamento das escalas tem-porais está entre os principais aspectos do mundo contemporâ-neo globalizado. Canton (2009, p.22), também reafirma a idéia de memória como uma das grandes mol-

duras da produção artística con-temporânea, as memórias dos ed-ucadores, somadas ao cruzamento e às possibilidades dos diversos ciclos de ensino e aprendizagem que o aluno (educando – apren-diz – formando) já carrega, po-dem propiciar processos mais satisfatórios a ambos. Os laços e heranças familiares, a comuni-dade e os trabalhos já realiza-dos, tal como procurei mostrar com os meus exemplos, podem con-tribuir para uma melhor relação do sujeito com a educação e seus respectivos processos. Dayrell (2005 p.176), utiliza Vygotsky (1991), que assevera: Nesta perspectiva, a alteridade mostra que o ser humano se coloca no limite entre a natureza e a cultura, no qual a dimensão bi-ológica e a social influenciam-se mutuamente. A possibilidade de o ser humano se constituir como tal depende tanto do seu desenvolvi-mento biológico, em especial do sistema nervoso, quanto da quan-tidade das trocas que estabelece no meio social. Os encontros gerativos entre educando e educador podem cru-

Considerações FinaisAprendendo com os processos, um desafio para os educadores.Os processos de ensino e apren-dizagem têm se mostrado cada vez mais híbridos e, as formas de sistematização e organização destes, às vezes não conseguem suscitar os micro processos que ficam invisíveis frente a práticas educacionais tão esmagadoras. Nesse sentido, a ideia de con-struir um memorial a principio teve a pretensão de fazer uma re-flexão autocrítica acerca da min-ha trajetória de vida e formação acadêmica. A partir dele, foi possível localizar os desdobra-mentos desses diferentes proces-sos de formação em meu ambiente de atuação cultural, profissional e familiar. Neste caso, contamos com o apoio da teoria de Guil-herme do Val Toledo e Rosaura Soligo (2005) que diz: Todo nar-rado é construído a partir da escolha de partes selecionadas. A relação entre o narrado e o que nele se revela não provoca explicações, mas interpretações. Conforme suas próprias palavras, “(...) o memorial não é somente

PRADO, Guilherme; SOLIGO, Rosaura. “Memorial de Formação – quando as memórias narram a história da formação”. Disponível em: www.fe.unicamp.br/ensino/graduação/downloads/proesfmemorial_GuilhermePrado_RosauraSoligo.pdf Acesso em: 30/05/2011.

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zar memórias e experiências edu-cativas, que talvez, nunca ten-ham sido pesquisadas por nenhum teórico. E, essa possibilidade faz com que esses encontros se-jam únicos. Richter(2008 p.106) , nos lembra que a educação se refere aos pro-cessos formais e informais por meio dos quais a cultura é trans-mitida aos indivíduos. A escola é somente um desses processos. A educação, no entanto, é univer-sal, pois é a experiência bási-ca do ser humano de aprender a ser competente na sua cultura. A autora cita, para reafirmar a arte como um meio de educação, o seguinte: “A arte pode construir pontes entre as origens culturais de nossos alunos e sua partici-pação no aprendizado, de forma a criar um ambiente escolar en-riquecedor para todos os alunos” Amalia Mesa-Bains(1996). comple-menta, daí, também é necessário que nossos futuros educadores (professores – propositores), sejam permeáveis, críticos e reflexivos na arte de ensinar e aprender. Uma das relações do ensino de arte está ligada à pos-

totalitárias tornem nossos pro-cessos de ensino e aprendiza-gem tão dificultosos,a ponto de nós mesmos desacreditarmos de-les. Nesse caso, a arte, tal como procuramos demonstrar neste tra-balho, tem papel fundamental. Sendo assim, vale acrescentar, amparados na reflexão de Duarte Júnior (1988, p.119 ) que é necessário o movimento de fazer com que a arte seja empregada no sentido de permitir ao educando uma elaboração de suas vivências e, que suas memórias e suas real-idades também façam e sejam in-corporadas como um dos elementos fundamentais para a apropriação das possibilidades geradas pela educação formal.Por fim, e em alusão ao título deste trabalho, ainda que ele fuja um pouco do convencional, é possível que ele conte com ao menos um mérito, o de apresentar um registro reflexivo no qual os objetos, as situações, as pes-soas e os grupos também podem se tornar suportes potencializa-dores dos processos de ensino e aprendizagem.

sibilidade de cognição, afetivi-dade e racionalidade. Portanto, rememorar os nossos laços e quais foram os motivos que nos fizeram ocupar tais lugares, fazem parte do amadurecimento, tanto para ampliar relações com o proces-so, como para se permitir avan-çar. Os jovens são autores plu-rais, abertos à experimentação e propensos a assumirem difer-entes identidades dependendo do contexto e das relações sociais em que estão inseridos (MELUCCI, 2004). Da mesma forma, ensina Geraldo Leão (2011, p.99)os pro-cessos e espaços educativos dos quais essas pessoas participam também são variados e extrapolam os muros da escola e o ambiente da família.

Por fim, o que podemos fazer como educadores é não nos trancarmos somente em nossas experiências e verdades acadêmicas. Elas são sim importantíssimas; não de-vemos abrir mão delas, nem tão pouco descartar ou eximir nossas memórias e formações ao longo da vida. Também não seria ideal deixar que visões absolutistas e

Apud. BARBOSA, Ana Mae, AMARAL, Lilian (Org.). Interritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo. Editora SENAC: Edição Sesc SP, 2008 p.105 a 111.

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