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A R T I G O 40 Ricardo Scura Design e novos materiais Como designer, sou um profissional curioso e, diante da pro - posta de escrever um artigo sobre inovação, a idéia que me ocorreu foi que, talvez, fosse mais apropriado falar sobre o uso de materiais tecnológicos para criar projetos inovadores, ao invés de projetos inovadores de materiais. Mesmo sem dados consolidados para confirmar minha convicção, praticamente toda pesquisa de ponta no desenvolvimento e aperfeiçoamen- to de materiais é motivada pelos interesses de grandes corpo- rações que financiam pesquisas avançadas buscando solu- ções de grande impacto econômico. Isso nos remete a setores com características globais e con- sumos elevados de determinados materiais como, por exem- plo e para ficar apenas com dois, os setores de construção civil e vestuário. Ou seja, é muito mais provável que nos próximos anos surja um novo material criado especialmente para reves - tir fachadas de edifícios do que um outro para produzir cadei- ras, e digo cadeiras não por acaso já que nenhum designer encerra a carreira sem ter esboçado ao menos uma. Está aí a primeira sugestão: beba da fonte de outros seto- res produtivos diferentes daquele do produto que você está projetando, pesquise, principalmente nos mais dinâmicos. Para concretizar essa concepção, cito o caso da DuPont, que produz um tipo de papel denominado Nomex, feito de um polí - mero poliamida aromático (conhecido como aramida). O papel é obtido por mistura de duas fórmulas de aramida, pequenas partículas fibrosas aglutinantes ( fibrids) e fibras curtas ( flocs). Após a mistura ser transformada numa estrutura contínua em folha, por meio de uma papeleira, são realizadas as etapas de densificação e adesão interna por meio de calandragem a alta temperatura, da qual resulta um papel robusto, flexível, de excelente resistência à ruptura e abrasão e com notáveis pro - priedades elétricas. O Nomex suporta sobrecargas elétricas de pequena dura- ção e temperaturas até 200 graus produzem pouco ou nenhum efeito nas propriedades elétricas e mecânicas. Por não serem digeríveis, não são atacados por insetos, fungos ou bolores. Sob uma umidade relativa de 95%, preservam 90% da rigidez dielétrica observada em secura total, não produzem reações tóxicas, não se fundem e não suportam combustão sob um índice de oxigênio a 220 graus C superior a 20,8. Por todas essas características, quase a totalidade de Nomex fabricada é usada como isolante em motores elétricos e geradores. Se o tal papel não rasga, não pega fogo nem derrete, não con - duz eletricidade, não é tóxico, não embolora e não deforma com a umidade, além de ter o aspecto parecido com pergami- nho, por que não utilizá-lo como defletor ou cúpula para lumi- nárias? Foi o que pensou o designer Christian Ullmann quan- do convidado a desenvolver uma peça para o catálogo de "- novos materiais, componentes e processos" elaborado pelo Centro São Paulo Design. Outra abordagem para projetos ino- vadores é o rompimento de paradigmas: projetar o inusitado, a partir da utilização dos materiais que revertem a lógica esta- belecida em sua produção original, ou existente no conscien- te de cada um de nós. A alemã Tecnaro desenvolve e distribui a Arboform, resi- na vegetal obtida a partir da lignina, subproduto do processa- mento da polpa de celulose. Trata-se de uma resina biodegra- dável, cuja composição permite a moldagem de peças por inje- ção, ou seja, com os moldes em que se produzem o gabinete de um telefone ou um teclado de computador, pode-se obter as mesmas peças com aparência e algumas outras propriedades da madeira e com características formais que acreditávamos possível apenas para os plásticos. A indústria gaúcha de pro- dutos de plástico Coza, já colocou no mercado peças com for- mas idênticas, injetadas em plástico e em resina. O Corian, fabricado pela já citada DuPont, existe há mais de 30 anos e está disponível no mercado nacional há mais de 20. Contudo, seu uso nesse tempo todo tem sido praticamen- te restrito para a confecção de tampos de balcões, bancadas de cozinhas e laboratoriais, além de cubas. Composto por 1/3 de acrílico e 2/3 de minerais naturais, pode ter aparência de granito, inclusive apresentando a mesma sensação de textu- ra e temperatura. Devido à presença do acrílico, pode ser ter- momoldado e colado com emendas imperceptíveis, permitin- do formas arrojadas, impossíveis para uma placa de granito. Mas a surpresa não está sempre nas propriedades inespe- radas da matéria-prima. Em 2005, o escritório Chelles & Haiashi venceu o Prêmio Abiplast Design com o projeto de um tanque

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A R T I G O

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Ricardo Scura

Design e novos materiais

Como desig ner, sou um pro fis sio nal curio so e, dian te da pro -pos ta de escre ver um arti go sobre ino va ção, a idéia que meocor reu foi que, tal vez, fos se mais apro pria do falar sobre o usode mate riais tec no ló gi cos para criar pro je tos ino va do res, ao invés de pro je tos ino va do res de mate riais. Mesmo sem dadoscon so li da dos para con fir mar minha con vic ção, pra ti ca men tetoda pes qui sa de pon ta no desen vol vi men to e aper fei çoa men -to de mate riais é moti va da pelos inte res ses de gran des cor po -ra ções que finan ciam pes qui sas avan ça das bus can do solu -ções de gran de impac to eco nô mi co.

Isso nos reme te a seto res com carac te rís ti cas glo bais e con -su mos ele va dos de deter mi na dos mate riais como, por exem -plo e para ficar ape nas com dois, os seto res de cons tru ção civile ves tuá rio. Ou seja, é mui to mais pro vá vel que nos pró xi mosanos sur ja um novo mate rial cria do espe cial men te para reves -tir facha das de edi fí cios do que um outro para pro du zir cadei -ras, e digo cadei ras não por aca so já que nenhum desig nerencer ra a car rei ra sem ter esbo ça do ao menos uma.

Está aí a pri mei ra suges tão: beba da fon te de outros seto -res pro du ti vos dife ren tes daque le do pro du to que você estápro je tan do, pes qui se, prin ci pal men te nos mais dinâ mi cos.Para con cre ti zar essa con cep ção, cito o caso da DuPont, quepro duz um tipo de papel deno mi na do Nomex, fei to de um polí -me ro polia mi da aro má ti co (conhe ci do como ara mi da). O papelé obti do por mis tu ra de duas fór mu las de ara mi da, peque naspar tí cu las fibro sas aglu ti nan tes ( fibrids) e fibras cur tas ( flocs).Após a mis tu ra ser trans for ma da numa estru tu ra con tí nuaem folha, por meio de uma pape lei ra, são rea li za das as eta pasde den si fi ca ção e ade são inter na por meio de calan dra gem aalta tem pe ra tu ra, da qual resul ta um papel robus to, fle xí vel,de exce len te resis tên cia à rup tu ra e abra são e com notá veis pro -prie da des elé tri cas.

O Nomex supor ta sobre car gas elé tri cas de peque na dura -ção e tem pe ra tu ras até 200 graus pro du zem pou co ou nenhumefei to nas pro prie da des elé tri cas e mecâ ni cas. Por não seremdige rí veis, não são ata ca dos por inse tos, fun gos ou bolo res.Sob uma umi da de rela ti va de 95%, pre ser vam 90% da rigi dezdie lé tri ca obser va da em secu ra total, não pro du zem rea çõestóxi cas, não se fun dem e não supor tam com bus tão sob um

índi ce de oxi gê nio a 220 graus C supe rior a 20,8. Por todas essas carac te rís ti cas, qua se a tota li da de de Nomex fabri ca daé usa da como iso lan te em moto res elé tri cos e gera do res.

Se o tal papel não ras ga, não pega fogo nem der re te, não con -duz ele tri ci da de, não é tóxi co, não embo lo ra e não defor macom a umi da de, além de ter o aspec to pare ci do com per ga mi -nho, por que não uti li zá-lo como defle tor ou cúpu la para lumi -ná rias? Foi o que pen sou o desig ner Christian Ullmann quan -do con vi da do a desen vol ver uma peça para o catá lo go de " -novos mate riais, com po nen tes e pro ces sos" ela bo ra do peloCentro São Paulo Design. Outra abor da gem para pro je tos ino -va do res é o rom pi men to de para dig mas: pro je tar o inu si ta do,a par tir da uti li za ção dos mate riais que rever tem a lógi ca esta -be le ci da em sua pro du ção ori gi nal, ou exis ten te no cons cien -te de cada um de nós.

A ale mã Tecnaro desen vol ve e dis tri bui a Arboform, resi -na vege tal obti da a par tir da lig ni na, sub pro du to do pro ces sa -men to da pol pa de celu lo se. Trata-se de uma resi na bio de gra -dá vel, cuja com po si ção per mi te a mol da gem de peças por inje -ção, ou seja, com os mol des em que se pro du zem o gabi ne te deum tele fo ne ou um tecla do de com pu ta dor, pode-se obter asmes mas peças com apa rên cia e algu mas outras pro prie da desda madei ra e com carac te rís ti cas for mais que acre di tá va mospos sí vel ape nas para os plás ti cos. A indús tria gaú cha de pro -du tos de plás ti co Coza, já colo cou no mer ca do peças com for -mas idên ti cas, inje ta das em plás ti co e em resi na.

O Corian, fabri ca do pela já cita da DuPont, exis te há maisde 30 anos e está dis po ní vel no mer ca do nacio nal há mais de20. Contudo, seu uso nes se tem po todo tem sido pra ti ca men -te res tri to para a con fec ção de tam pos de bal cões, ban ca dasde cozi nhas e labo ra to riais, além de cubas. Composto por 1/3de acrí li co e 2/3 de mine rais natu rais, pode ter apa rên cia degra ni to, inclu si ve apre sen tan do a mes ma sen sa ção de tex tu -ra e tem pe ra tu ra. Devido à pre sen ça do acrí li co, pode ser ter -mo mol da do e cola do com emen das imper cep tí veis, per mi tin -do for mas arro ja das, impos sí veis para uma pla ca de gra ni to.

Mas a sur pre sa não está sem pre nas pro prie da des ines pe -ra das da maté ria-pri ma. Em 2005, o escri tó rio Chelles & Haiashiven ceu o Prêmio Abiplast Design com o pro je to de um tan que

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de lavar rou pas enco men da do pela Tigre.Sempre que olho para o pro du to, ima gi noque o que deve ter sen si bi li za do mais o júrinão foi o valor esté ti co da peça, o mais popu -lar entre os requi si tos jul ga dos em pro je tosde auto ria de desig ners, até por que a apa rên -cia do tan que não dife re em mui to de qual -quer tan que domés ti co mas, sim, a que brade para dig ma ao uti li zar o plás ti co, mui tomais leve, no lugar da cerâ mi ca.

NOVAS FRON TEI RAS PARA A CRIA ÇÃODe tem pos em tem pos, o desen vol vi -

men to de novas tec no lo gias amplia o hori -zon te dos desig ners que ganham cam popara criar pro du tos ino va do res, seja na for -ma ou na fun ção. Desde que Edson, em1879, fabri cou a pri mei ra lâm pa da incan des cen te, até pou -cos anos atrás, os desig ners que pro je ta vam lumi ná rias inva -ria vel men te tinham que par tir da lâm pa da, limi ta dos porsua for ma (há tem pos, um íco ne!), dimen sões e emis são de calor. Não impor ta va quan to o desig ner dese jas se ser inven -ti vo, qual quer crian ça não pre ci sa ria olhar duas vezes para dizer o que era aque le obje to.

Essa con di ção mudou um pou co de alguns anos para cácom o sur gi men to das lâm pa das aló ge nas e das lâm pa das frias. Mas só recen te men te as fron tei ras se expan di ram paraos desig ners. O desen vol vi men to dos minús cu los LEDs de bai -xa ten são, com suas dimen sões redu zi das, vida útil de 40 a 50anos e desem pe nho que hoje se equi va le ao das lâm pa dasincan des cen tes e a mais nova tec no lo gia em desen vol vi men -to nes se cam po: os O-LED (dio dos orgâ ni cos emis so res de luz)pelí cu las fle xí veis e trans pa ren tes essen cial men te cons ti tuí -dos por cama das de folhas de plás ti co extre ma men te finas,que con têm mate riais fos fo res cen tes em san duí che entre osele tro dos, muda rão radi cal men te o reper tó rio for mal dos dese -nhos de lumi ná rias.

A ino va ção no uso de mate riais, per mi te a ele va ção de sta -tus de alguns deles: mate riais antes tidos como de qua li da deinfe rior ou até mes mo lixo, pas sam a ser vir tuo sos, por suacon tri bui ção à pre ser va ção ambien tal. Alguns casos: o cou rode tam ba qui ou cas ca de côco como ele men to de jóias, lami -na dos de bam bu usa dos na fabri ca ção de móveis.

Ainda com foco na sus ten ta bi li da de, fala-se mui to em reu -so e reci cla gem. Quem tem mais de 40 anos, com cer te za se lem -bra do tem po em que se guar da vam em casa engra da dos de gar -ra fas vazias de cer ve ja ou refri ge ran te para serem tro ca daspor cheias nos esta be le ci men tos comer ciais. Caso o con su mi -

dor não tives se a mão os "cas cos" vazios, devia pagar um "depó si to" e rea ver o dinhei -ro quan do devol ves se as gar ra fas. Isso antesdas gar ra fas one way ou não retor ná veische ga rem ao mer ca do. As gar ra fas, que naépo ca eram lava das e reu ti li za das, hoje sãoreco lhi das para a reci cla gem do vidro e reu -so como maté ria-pri ma na fabri ca ção de novas gar ra fas ou outros pro du tos des semate rial.

Pessoalmente, não no caso das gar ra -fas mas de manei ra geral, não sim pa ti zomui to com o reu so que ana li sa do, de modosim plis ta, pro mo ve a dimi nui ção da pro -du ção de bens de con su mo. Para que fabri -car menos cadei ras de madei ra e sen tar empol tro nas de pneus usa dos se pode mos

gerar empre gos e ren da pro du zin do móveis em madei ra ori -gi ná ria de flo res tas de mane jo sus ten tá vel em fábri cas de pro -du ção mais lim pa? Já pneus velhos podem ser reci cla dos e vol -tar como maté ria-pri ma para outros fins, como os sola dos de tênis pro du zi dos por meio da par ce ria de gigan tes como Adidas,de arti gos espor ti vos, com a Goodyer, fabri can te de pneus.

Quanto às gar ra fas, será que a quan ti da de de água uti li -za da no pro ces so de lava gem, seja para o reu so ou para a reci -cla gem, não cau sa um pre juí zo maior ao meio ambien te doque a fabri ca ção de pro du tos com o mate rial "vir gem"? Equan to à ener gia neces sá ria para reci clar o copi nho de café,até onde com pen sa?

Respostas para per gun tas como essas podem ser obti das apar tir de estu dos com pa ra ti vos entre pro du tos simi la res que podem ser fabri ca dos com pro ces sos e mate riais dife ren tescha ma dos Análises do Ciclo de Vida (ACV). A ACV é uma fer ra -men ta da qual, em bre ve, todo o setor pro du ti vo se tor na rádepen den te. Novas exi gên cias na legis la ção inter na cio nal, comoa rotu la gem dos pro du tos para expor ta ção (ISO 14025), con tro -les das emis sões de CO2, entre outras, devem difi cul tar as coi -sas para as empre sas que não esti ve rem pre pa ra das. Por outrolado, quem conhe cer o cus to para o meio ambien te da fabri ca -ção de seus pro du tos, e a ACV pro me te apre sen tar esta con ta,pode rá, rapi da men te, vis lum brar opor tu ni da des seja por meiode subs ti tui ção de mate riais, tro ca de pro ces sos, mudan ça defor ne ce do res entre outras ati tu des que tra rão van ta gem com -pe ti ti va jun to à con cor rên cia, alem de cola bo rar nos esfor çospara sal var o pla ne ta. Mas isso é assun to para outra con ver sa.

Ricardo Scura é coordenador do Núcleo de Materiais do Centro

São Paulo Design.

Arquivo pessoal

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