19
1 Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel do Carmo, Frederico Cantante, Margarida Carvalho Observatório das Desigualdades Este texto pretende fazer uma análise geral sobre os níveis de desigualdade social que teimam em persistir na sociedade portuguesa e que afetam um conjunto diferenciado de sectores. Encara-se as desigualdades como um problema estrutural na sociedade portuguesa, cujos antecedentes são muito anteriores à atual crise económico-financeira. Contudo, chama-se a atenção para o papel importante de algumas políticas públicas e o impacto positivo, mas ainda incompleto, que tiveram na atenuação de certos desequilíbrios estruturais. Por fim, focam-se os riscos sociais que emergem da presente crise e das respetivas medidas de austeridade, e apontam-se algumas recomendações tendo por base relatórios publicados recentemente por duas organizações internacionais. ANTECEDENTES DO PROBLEMA As desigualdades sociais são multidimensionais e afetam diferentes sectores da sociedade. No entanto, considera-se que as desigualdades de rendimento e as desigualdades escolares detêm uma importância acrescida, na medida em que estas se encontram profundamente relacionadas. Por exemplo, a sociedade portuguesa ainda se caracteriza por um enorme défice de escolarização e pelo baixo nível salarial de parte substancial da população empregada (principalmente as que detêm menores níveis de escolarização e de qualificação). Como iremos ver pelos dados apresentados, esta interdependência é muito vincada. Daí que as políticas mais eficazes, mas não exclusivas, de redução das desigualdades são aquelas que incidem de forma mais direta sobre a redistribuição de rendimentos e a escolarização da população. DESIGUALDADES DE RENDIMENTO Desde, pelo menos, os finais dos anos 80, a sociedade portuguesa caracteriza-se pelo agravamento das desigualdades de rendimento que atingem níveis muito elevados no início do século XXI. Nos anos mais recentes (até 2009), identifica-se uma certa atenuação dos valores, que, apesar de tudo, ainda se mantêm muito elevados quando comparados com a média europeia. Utilizam-se vários índices para medir o grau de desigualdade de rendimento, dos quais se destacam o S80/S20 e o coeficiente de Gini. O S80/S20 é um "rácio de percentil" calculado a partir da diferença entre o rendimento monetário líquido por adulto equivalente recebido pelos 20% da população que detém níveis mais elevados de rendimento e o rendimento auferido pelos 20% com um nível de rendimento mais baixo. Como se pode observar no Gráfico 1, em 2009 o rendimento dos 20% mais ricos

Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

  • Upload
    hathien

  • View
    273

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

1

Desigualdades como problema: que políticas?

Renato Miguel do Carmo, Frederico Cantante, Margarida Carvalho Observatório das Desigualdades

Este texto pretende fazer uma análise geral sobre os níveis de desigualdade social que teimam

em persistir na sociedade portuguesa e que afetam um conjunto diferenciado de sectores.

Encara-se as desigualdades como um problema estrutural na sociedade portuguesa, cujos

antecedentes são muito anteriores à atual crise económico-financeira. Contudo, chama-se a

atenção para o papel importante de algumas políticas públicas e o impacto positivo, mas ainda

incompleto, que tiveram na atenuação de certos desequilíbrios estruturais. Por fim, focam-se

os riscos sociais que emergem da presente crise e das respetivas medidas de austeridade, e

apontam-se algumas recomendações tendo por base relatórios publicados recentemente por

duas organizações internacionais.

ANTECEDENTES DO PROBLEMA

As desigualdades sociais são multidimensionais e afetam diferentes sectores da sociedade. No

entanto, considera-se que as desigualdades de rendimento e as desigualdades escolares

detêm uma importância acrescida, na medida em que estas se encontram profundamente

relacionadas. Por exemplo, a sociedade portuguesa ainda se caracteriza por um enorme défice

de escolarização e pelo baixo nível salarial de parte substancial da população empregada

(principalmente as que detêm menores níveis de escolarização e de qualificação). Como

iremos ver pelos dados apresentados, esta interdependência é muito vincada. Daí que as

políticas mais eficazes, mas não exclusivas, de redução das desigualdades são aquelas que

incidem de forma mais direta sobre a redistribuição de rendimentos e a escolarização da

população.

DESIGUALDADES DE RENDIMENTO

Desde, pelo menos, os finais dos anos 80, a sociedade portuguesa caracteriza-se pelo

agravamento das desigualdades de rendimento que atingem níveis muito elevados no início do

século XXI. Nos anos mais recentes (até 2009), identifica-se uma certa atenuação dos valores,

que, apesar de tudo, ainda se mantêm muito elevados quando comparados com a média

europeia.

Utilizam-se vários índices para medir o grau de desigualdade de rendimento, dos quais se

destacam o S80/S20 e o coeficiente de Gini.

O S80/S20 é um "rácio de percentil" calculado a partir da diferença entre o rendimento

monetário líquido por adulto equivalente recebido pelos 20% da população que detém níveis

mais elevados de rendimento e o rendimento auferido pelos 20% com um nível de rendimento

mais baixo. Como se pode observar no Gráfico 1, em 2009 o rendimento dos 20% mais ricos

Page 2: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

2

em Portugal (5º quintil) era 5,6 vezes superior ao dos 20% mais pobres (1º quintil). Na Lituânia

o valor desta medida de desigualdade é de 7,3 e em Espanha e na Letónia é de 6,9. A Noruega,

a Eslovénia e a Hungria são os países europeus analisados neste gráfico que apresentam níveis

de desigualdade mais baixos entre estes dois quintis: 3,4.

O Gráfico 2 contém informação relativa à evolução do S80/S20 em Portugal e na UE-27.

Verifica-se que em Portugal tem existido uma tendencial diminuição do valor desta medida de

desigualdade de rendimento desde 2003. Nos países da UE-27 o valor médio desta medida

manteve-se estacionário ao longo do período 2004-2009.

Page 3: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

3

No que diz respeito ao coeficiente de Gini1, verifica-se também uma certa atenuação. O

Gráfico 3 ilustra a evolução do coeficiente de Gini em Portugal e na União Europeia. Tal como

foi referido relativamente ao rácio S80/S20, é possível observar que o valor do coeficiente de

Gini para Portugal tem vindo a conhecer uma progressiva diminuição nos últimos anos, o que

significa uma diminuição do nível de desigualdade monetária.

1 Indicador sintético de desigualdade na distribuição do rendimento que assume valores entre 0 (quando todos os

indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo). Esta escala pode também variar entre 0 e 1.

Page 4: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

4

O Gráfico 4 permite formular uma análise sobre a porção do rendimento bruto (antes do

pagamento de impostos) detido pelos 0,1%; 0,5%; 1%; 5% e 10% mais ricos entre 1976 e 2005.

Ao contrário da informação que resulta da aplicação de inquéritos a amostras da população

(como o EU-SILC), estes dados baseiam-se em informação fiscal. A ideia fundamental que

emerge da análise deste gráfico prende-se com o aumento da porção do rendimento detido

pelos grupos mais ricos da população portuguesa. Entre 1976 e 1982 a porção do rendimento

total controlado por estes subconjuntos da população diminuiu progressivamente. De 1989,

ano em que passa a haver novamente informação disponível, até 2005 a porção do

rendimento detido pelos quantis mais ricos aumentou de forma relativamente constante.

Em 1976 os 0,1% mais ricos controlavam 1,3% do rendimento total, valor que aumenta para os

2,5% em 2005; essa evolução é de 5,0% para 6,4% entre os 0,5% mais ricos; de 7,9% para 9,8%

no grupo dos 1% mais ricos; de 21,1% para 26,0% entre os 5% mais ricos; e de 31,7% para

38,3% no grupo dos 10% mais ricos. O ano de 2005 é, aliás, o momento deste período de

referência no qual os vários subconjuntos da população em análise detêm uma parte mais

significativa do rendimento total.

Page 5: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

5

DESIGUALDADES SALARIAIS

Dentro das diversas componentes do rendimento disponível a disparidade salarial é a que mais

contribui para as desigualdades de rendimento. Segundo o último relatório da OCDE (2011),

Divided We Stand2, em média os salários representam 75% do rendimento disponível por

agregado familiar. Este dado é particularmente expressivo em Portugal, visto que o nosso

tecido laboral ainda é muito caracterizado pelo peso e a relevância dos baixos salários e pela

grande dispersão remuneratória.

As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm informação referente ao ganho mensal

bruto dos trabalhadores portugueses, que contempla, para além da remuneração base, as

prestações regulares e as prestações extraordinárias. Os valores apresentados estão expressos

em Euros e a preços constantes, o que permite controlar o efeito da inflação.

2 OECD (2011), Divided We Stand. Why Inequality Keeps Rising, Paris, OECD Publications.

Page 6: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

6

O Gráfico 5 apresenta a evolução do ganho médio mensal discriminada por quintil, ou seja,

por grupos que agregam cada 20% dos trabalhadores: no 1º quintil estão os 20% de

trabalhadores com os ganhos médios mais baixos e no 5º quintil encontram-se os

trabalhadores com os ganhos médios mais elevados, portanto, os 20% de trabalhadores mais

ricos em termos de ganho.

É notável a distância cada vez maior entre o 5º quintil e os restantes. De um ganho médio de

1.034 Euros em 1985, este quintil passou a auferir 2.237 Euros em 2009.

O 1º, 2º e 3º quintis apresentam ganhos médios não muito distantes uns dos outros e, ao

longo dos anos, a distância entre eles mantêm-se praticamente inalterada. Já o 4º quintil vê o

seu ganho médio mensal distanciar-se dos três quintis inferiores mas, ainda assim, mantém-se

muito longe do 5º quintil.

Relativamente ao 4º quintil, é de sublinhar que enquanto em 1985 o seu ganho médio se

encontrava acima do ganho médio para o total dos trabalhadores (579 Euros era o ganho

médio deste quintil, enquanto o ganho para o total de trabalhadores era de 535 Euros), em

2009 o ganho médio destes 20% de trabalhadores é inferior à média global (1.001 Euros esta,

999 Euros aquele).

Isto significa que no ano de 2009 há apenas 20% de trabalhadores (o 5º quintil) que auferem

um ganho igual ao superior ao ganho médio total, o que aponta para ganhos muito elevados

neste grupo, que fazem com que a média total aumente.

Page 7: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

7

DESIGUALDADES ESCOLARES

Portugal caracteriza- se por um enorme défice de escolarização, designadamente ao nível do

secundário e superior. Esta situação tem impactos consideráveis na persistência das

desigualdades sociais. O Quadro 1 apresenta a proporção de população (entre os 25 e 64 anos)

que concluiu pelo menos o ensino secundário. Em Portugal somente 31,9% tinha, em 2010,

concluído no mínimo este nível de ensino. Apenas Malta regista um valor mais baixo.

Os seis Estados-Membros nos quais a percentagem da população com idade entre os 25 e os

64 anos que concluiu pelo menos o ensino secundário é mais elevada fazem parte do grupo

dos 10 países que integraram a União Europeia (UE) em 2004. Na Lituânia, na República Checa

e na Eslováquia o valor deste indicador supera mesmo os 90,0%, para uma média da UE de

72,7%. A Alemanha e a Finlândia são os países da UE-15 mais bem colocados.

Em termos médios, os homens apresentam para este indicador um valor ligeiramente mais

alto do que as mulheres nos países da UE-27 (73,7% contra 71,8%). Todavia, esta relação

inverte-se em bastantes Estados-Membros: por exemplo, em Portugal a percentagem de

mulheres com idade entre os 25 e os 64 anos que concluiu pelo menos o ensino secundário é

cerca de seis pontos percentuais superior à dos homens (35,1% contra 28,6%).

Embora Portugal esteja mal classificado no que a este indicador diz respeito, a verdade é que

nos últimos anos houve uma evolução significativa do mesmo . De facto, entre 2000 e 2010 o

Page 8: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

8

seu valor aumentou cerca de 12 pontos percentuais, evolução próxima da que se verificou em

Malta no mesmo período. Apesar desta melhoria, o resultado apresentado por Portugal em

2010 é 60,1 pontos percentuais inferior ao registado na Lituânia e 40,8 pontos percentuais

inferior ao que se observa em termos médios na UE-27. É de destacar, ainda, a evolução que

este indicador conheceu em Espanha entre 2000 e 2010: um aumento de 14 pontos

percentuais.

Page 9: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

9

A informação apresentada no Gráfico 6 ilustra a relação existente entre o nível de escolaridade

concluído e a pertença a cinco categorias de rendimento (quintis). Verifica-se que em 2008

cerca de 67% dos indivíduos que concluíram o ensino superior pertenciam ao grupo dos 20%

mais ricos (5º quintil). No caso dos que concluíram o ensino secundário ou pós-secundário e

dos não foram além do 9º ano esse valor é de 32,8% e 12,8%, respectivamente. Por outro lado,

enquanto mais de 40% dos indivíduos que concluíram no máximo o 9º ano de escolaridade

integravam os dois quintis de rendimento mais baixos, apenas 8% dos que concluíram o ensino

superior estão nessa situação.

O IMPACTO DE ALGUMAS POLÍTICAS

POLITICA EDUCATIVA E ACÇÃO SOCIAL ESCOLAR

As desigualdades têm um impacto sistémico e raramente se relacionam apenas com um sector

da sociedade e da economia. Por isso, as políticas que visam a redução das desigualdades são

por natureza multissectoriais. De entre estas destacam-se as políticas que incidem sobre a

redução da pobreza (designadamente, o rendimento social de inserção e o complemento

solidário de reforma), as políticas de educação e de promoção do sucesso escolar, as políticas

de emprego e de apoio à situação de desemprego, as políticas redistributivas que visem a

equidade fiscal e salarial. Embora algumas destas políticas possam não ter como objetivo

Page 10: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

10

direto as desigualdades, a eventual redução poderá ser uma consequência indireta da sua

implementação.

Nesta linha o sector da educação é dos mais relevantes. De facto, uma política de

universalização do sistema de ensino tem como objetivo direto o aumento dos níveis de

escolaridade e de formação das populações, mas uma das suas consequências a prazo poderá

ser o decréscimo das desigualdades sociais, designadamente por intermédio da promoção de

percursos de mobilidade social ascendente.

Dada a relação clara entre desigualdades de rendimento e desigualdades escolares, considera-

se que as políticas de educação que incentivem o acesso generalizado ao ensino são essenciais

para a redução continuada e estruturante do grau das desigualdades que persiste na

sociedade portuguesa. A este respeito, o esforço de universalização dos vários níveis de ensino

efetuado desde Abril de 1974 representa um caminho fundamental, mas ainda incompleto,

para uma real democratização do ensino em Portugal. A regulamentação de Lei de Bases do

Sistema educativo em 1986 e as sucessivas atualizações (em 1997 e 2005) significam exemplos

estruturantes no sentido da consolidação do ensino Público em Portugal. As políticas de ação

social escolar nas suas diversas componentes (auxílios económicos, comparticipação em

refeições, serviços de cantina, transportes, alojamento, manuais e material escolar, e pela

concessão de bolsas de estudo) têm detido um papel relevante na garantia de um ensino

tendencialmente gratuito e democrático.

Por este motivo, as políticas que visam a redução do abandono escolar são particularmente

importantes. Portugal detém ainda níveis preocupantes de abandono escolar e formativo

precoce, embora se tenha observado uma redução relevante nestes últimos anos3. A taxa de

abandono precoce de educação e formação em Portugal diminuiu 16,2 pontos percentuais

entre 1999 e 2010. Apesar dessa diminuição, o valor deste indicador em Portugal continua a

assumir uma expressão bastante elevada comparativamente aos níveis verificados na UE-27 e

UE-15: em 2010, a taxa de abandono precoce de educação e formação em Portugal era,

respetivamente 14,6 e 13,2 pontos percentuais, superior à registada em termos médios nesse

conjunto de países. Em 2000, essa diferença era de 26,0 e 24,3 pontos percentuais. O Gráfico 7

demonstra também que a diminuição anual do valor deste indicador em Portugal acentuou-se

desde 2006.

Verifica-se que no conjunto de países da UE-27 apenas Malta apresentava, em 2010, níveis de

abandono precoce de educação e formação superiores a Portugal (36,9% contra 28,7%).

Espanha apresenta um resultado muito próximo do português: 28,4%. O quarto país com um

resultado mais elevado é a Itália, embora bastante distante do verificado em Malta, Portugal e

Espanha. O valor médio para os países da UE-27 situou-se nos 14,1%.

3 O abandono precoce de educação e formação refere-se à população com idade entre os 18-24 anos que concluiu

no máximo a escolaridade básica e não está a estudar ou a receber formação.

Page 11: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

11

POLÍTICA REDISTRIBUTIVA E SALARIAL

A política redistributiva é a que mais diretamente pode ter consequências na redução das

desigualdades de rendimento. Esta poderá contemplar diferentes valências desde a

progressividade fiscal até à maior equidade salarial. Relativamente a esta última vertente,

considera-se a que a política de aumento continuado do salário mínimo poderá provocar um

impacto considerável para uma tendencial igualização das remunerações auferidas. A este

respeito o acordo estabelecido em 2007 em âmbito de concertação social que definia um

aumento gradual do salário mínimo até ao montante de 500 euros em 2011 representou um

exemplo importante de uma política redistributiva com impactos diretos na diminuição da

dispersão salarial e no aumento do poder de compra nos escalões de rendimento mais baixos.

Como se pode ver no Quadro 2, desde 2002 o valor do salário mínimo passou de 348 Euros

para 485 Euros mensais, o que equivale a um aumento nominal de 137 euros. Neste período o

aumento nominal mais significativo aconteceu em 2010, ano em que o salário mínimo

aumentou 25 euros face ao ano anterior. Contudo, foi em 2009 (ano em que o valor da

inflação foi negativo) que se registou um aumento real do salário mínimo nacional mais

elevado: 6,4%.

Page 12: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

12

O salário mínimo nacional é potencialmente operante na estrutura da distribuição do

rendimento ao regulamentar o limite inferior das remunerações do trabalho. É uma medida

política dirigida directamente ao mercado de trabalho e às relações laborais. Mas o Estado

intervém também na redistribuição do rendimento a jusante desse campo. Desde logo através

da taxação progressiva dos rendimentos (progressividade essa que não se aplica aos

rendimentos de capital) e da transferência de rendimentos monetários para as famílias. O

Quadro 3 apresenta informação relativa ao peso que as transferências de rendimentos

monetários do Estado para os agregados domésticos assumem nos países da UE-27, Islândia e

Noruega no ano de 2007, tendo em linha de conta o quintil de rendimento de pertença desses

mesmos agregados (quando se analisa a informação empírica a partir de quintis os dados são

divididos em subconjuntos de 20%).

Um primeiro olhar sobre o Quadro 3 permite concluir que a grandeza relativa do valor das

transferências monetárias do Estado para os agregados domésticos é maior nos quintis mais

pobres. Mas essa grandeza é bastante diferenciada no universo de países em análise. Em

Portugal as transferências monetárias do Estado para os agregados domésticos que se

situavam no quintil da base (20% mais pobres) da distribuição representavam 20% do

rendimento bruto destes agregados. Este valor é inferior ao registado em termos médios nos

países da UE-27 (24%) e muito afastado do observado nos países do norte da Europa e na

Irlanda. O valor deste indicador em Portugal para os demais quintis e é semelhante à média da

UE. É também interessante referir que nos países do norte da Europa e na Irlanda as

transferências monetárias do Estado têm um peso relativo elevado não só no rendimento

bruto dos agregados domésticos do quintil da base da distribuição, mas também nos demais

subconjuntos da população (nomeadamente no 2º e 3º quintis).

Page 13: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

13

MAIS PROBLEMAS E CONSTRANGIMENTOS

O DESEMPREGO

Neste momento, o desemprego atinge níveis altíssimos tornando-se num dos problemas mais

marcantes da nossa sociedade que a prazo poderá ter implicações claras no aumento das

desigualdades e também da pobreza.

O INE estima que a taxa de desemprego em Portugal no 1º trimestre de 2012 tenha sido de

14,9%, 2,5 pontos percentuais acima do valor homólogo de 2011 e 0,9 pontos percentuais

acima do verificado no trimestre anterior. De acordo com estes dados, 819,3 milhares de

indivíduos encontravam-se nesse período numa situação de desemprego. A taxa de

desemprego das mulheres foi de 15,1% e a dos homens de 14,8%.

É entre a população com idade entre os 15-24 que este indicador atinge um valor mais

elevado, situando-se nos 36,2%, ou seja, 154,4 milhares de indivíduos. Isto significa que face

Page 14: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

14

ao período homólogo de 2011 o número de desempregados pertencentes a esta faixa etária

aumentou 24,6%.

A taxa de desemprego entre quem não foi além do 9º ano de escolaridade foi estimada em

15,4%, a da população que concluiu no máximo o ensino secundário ou pós-secundário atingiu

os 16,9% e entre a população com formação superior o valor deste indicador foi de 11,2%. Em

termos homólogos, destaca-se a evolução dos números do desemprego para a população com

escolarização intermédia: a taxa de desemprego aumentou 3,8 pontos percentuais e o número

de desempregos cresceu 43,5% (de 140,0 mil para 200,9 mil). O número de desempregados

que concluíram um nível superior de ensino aumentou também bastante: 37% (de 84,5 mil

para 115,8 mil indivíduos).

O Algarve continua a ser a região NUTS II com a taxa de desemprego mais elevada, tendo

atingido os 20,0% neste trimestre. Na região de Lisboa e na Região Autónoma da Madeira este

indicador também já ultrapassou os 16%.

Tal como se tem vindo a verificar em trimestres anteriores, cerca de metade da população

desempregada (aproximadamente 416 mil indivíduos) encontra-se nessa situação há mais de

um ano. Aliás, quase 230 mil indivíduos encontram-se numa situação de desemprego há mais

de dois anos.

De realçar o facto de os valores do desemprego poderem estar subestimados, já que existem

202,1 mil desempregados que, tendo vontade de trabalhar e disponibilidade para tal, não

fizeram qualquer diligência para procurar trabalho. Por isso, são considerados inactivos

(inactivos indisponíveis). E cerca de 90 mil referiram que a razão que os motivou a não

procurar trabalho foi: considerarem que não tinham idade apropriada, que a sua instrução não

era suficiente, que não sabiam como procurar trabalho, que não valia a pena procurar ou que

não havia empregos disponíveis (inactivos desencorajados).

Page 15: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

15

O IMPACTO DAS MEDIDAS DE AUSTERIDADE

A presente crise económica e social e as respetivas políticas de austeridade poderão agravar

drasticamente as desigualdades. Um estudo recente4 simulou os efeitos das medidas de

austeridade no rendimento dos agregados domésticos, tendo em conta a distribuição desse

recurso monetário por subconjuntos da população dos respetivos países. A análise focou-se

em três áreas de austeridade onde se registaram alterações nas políticas públicas: os impostos

diretos, as transferências monetárias para as famílias e pensões, e os salários no sector

público. De acordo com este estudo, Portugal é um dos países em que as políticas de

4 Social Situation Observatory (2011), “The distributional effect of austerity measures: a comparison of

six EU countries”.

Page 16: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

16

austeridade relacionadas com as transferências monetárias para as famílias e pensões mais

afetaram os grupos da base da distribuição do rendimento.

O rendimento disponível dos 10% mais pobres em Portugal diminuiu 6% devido às medidas de

austeridade. Este é o segundo valor mais elevado entre os seis países da União Europeia que

registaram piores performances ao nível da evolução do défice público, do PIB ou do emprego,

entre 2007 e Junho de 2011. Apenas a Irlanda regista uma diminuição mais pronunciada do

rendimento deste decil. Mas enquanto neste país a diminuição do rendimento dos grupos da

metade superior da distribuição foi proporcionalmente mais elevada face à verificada entre os

grupos mais pobres, em Portugal os efeitos da austeridade foram regressivos:

“Portugal é o único país com uma distribuição claramente regressiva, com perdas percentuais

que são consideravelmente maiores no primeiro e segundo decil do que no topo da

distribuição.” (p. 19 do relatório. Tradução própria)

Em Espanha e na Estónia os efeitos da austeridade no rendimento são similares entre os

grupos de rendimento considerados, tal como no Reino Unido – embora neste caso o

rendimento dos 10% mais ricos tenha sofrido uma diminuição percentual acentuada. A Grécia

é o único entre os seis países considerados que regista uma clara progressividade na perda de

rendimento.

O esforço de consolidação orçamental em Portugal entre o ano de 2009 e Junho de 2011

representou 3% do rendimento total disponível pelas famílias anterior ao início do período de

austeridade. No Reino Unido o valor desse indicador é de 1,9%, na Grécia de 2,2%, em Espanha

de 2,7%, na Estónia de 6,2% e na Irlanda de 8,1%.

Tal como foi referido, os resultados apresentados neste estudo têm como limite temporal

Junho de 2011 – excluem, portanto, as medidas de austeridade já implementadas pelo atual

governo.

Page 17: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

17

AS RECOMENDAÇÕES DA OCDE E DA OIT

O débil crescimento do emprego nos países desenvolvidos e a fraca produtividades nas regiões

em desenvolvimento representam uma ameaça para uma recuperação generalizada e limitam

as perspetivas de desenvolvimento económico. São cada vez mais os elementos que apontam

para um cenário negativo na relação entre o mercado de trabalho e a macroeconomia, em

particular nas economias desenvolvidas: o desemprego elevado e o fraco crescimento dos

salários diminuem a procura de bens e serviços, corroendo ainda mais a confiança das

empresas, que hesitam em investir e contratar. Para que uma recuperação durável da

economia e do emprego possa acontecer é necessário romper com este ciclo negativo.

Page 18: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

18

Nesse sentido, o recente relatório da OIT Global Employment Trends 20125 apresenta uma

série de medidas políticas que devem ser implementadas em termos mundiais e de uma forma

coordenada.

Em primeiro lugar, a OIT defende que “os efeitos impulsionadores induzidos pelas despesas

públicas e a criação de liquidez podem ser importantes de um país para o outro – se estas

forem utilizadas de uma forma coordenada – e permitiriam aos países que ainda dispõem de

uma certa margem de manobra apoiar tanto as suas próprias economias como a economia

mundial. São medidas de financiamento público coordenadas deste tipo que são necessárias

para apoiar a procura global a nível mundial e estimular a criação de empregos no futuro”

(tradução própria).

Em segundo lugar, é necessária uma regulamentação mais substantiva do sistema financeiro

para o restabelecimento da credibilidade e da confiança, o que permitirá aos bancos

ultrapassar o risco de crédito que alimentou esta crise. Uma reforma global dos mercados

financeiros, abarcando maiores margens de segurança nos sectores bancários nacionais,

ajudará o mercado de trabalho e o aumento da taxa de emprego.

Em terceiro lugar, a OIT sublinha a importância de as medidas de crescimento de emprego se

dirigirem à economia real. De facto, as medidas que têm sido tomadas até agora não

permitiram inverter o aumento de 27 milhões de desempregados desde o impacto inicial da

crise.

Em quarto lugar, é salientado que as medidas públicas de incentivo à economia não são

suficientes para um crescimento durável do emprego. O investimento privado deve ser

encorajado e os responsáveis políticos devem agir de maneira a reduzir o medo e a incerteza

que o travam.

Por último, a OIT frisa que, para serem eficazes, os planos de relançamento da economia não

devem comprometer a viabilidade das finanças públicas, aumentando ainda mais a dívida

pública.

No recente relatório Economic Policy Reforms 2012: Going for Growth6, a OCDE considera que

diminuição das desigualdades de rendimento e o fomento do crescimento económico são dois

objetivos das políticas públicas que podem ser alcançados de forma integrada. A promoção da

equidade na educação e o estímulo à conclusão do ensino secundário e superior surgem como

a primeira das estratégias a adotar, pois os recursos escolares são ao mesmo tempo um dos

principais fatores que explicam as desigualdades de rendimento e uma dimensão central para

o desenvolvimento económico dos países.

5 ILO (2012), Global Employment Trends 2012. Preventing a deeper jobs crisis, Publications of the

International Labour Office. 6 OECD (2012), Economic Policy Reforms 2012: Going for Growth, OECD Publications.

Page 19: Desigualdades como problema: que políticas? Renato Miguel ...observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/content/project/forum... · As bases de dados dos Quadros de Pessoal contêm

19

Uma segunda dimensão remete para a redução do hiato que existe entre os trabalhadores

com vínculos laborais sem termo (permanent contracts) e os que têm vínculos mais precários

(temporary contracts). Não só as remunerações do trabalho tendem a ser mais baixas entre

esta segunda categoria de trabalhadores, como a precariedade laboral tem implicações

negativas ao nível do enriquecimento do capital humano, dos processos de progressão

profissional e da exposição ao desemprego – condicionando, neste sentido, o crescimento

económico dos países.

Também as políticas fiscais são apontadas como um instrumento de política pública que pode

potenciar simultaneamente a redução das desigualdades e o crescimento económico. Por

exemplo, o aumento da taxação dos rendimentos de capital, um tipo de riqueza económica

que beneficia essencialmente os grupos mais ricos, favoreceria a diminuição das desigualdades

de rendimento e permitiria levar a cabo uma redução dos impostos sobre os salários.

O aumento das políticas ativas de emprego vocacionadas para a compatibilização entre as

qualificações profissionais dos trabalhadores e o tipo de qualificações requeridas pelo

mercado de trabalho, a promoção da integração dos imigrantes, a diminuição das

desigualdades de tempo de trabalho e de remuneração entre homens e mulheres são outros

exemplos de políticas duplamente estruturantes.