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Priscila Farfan faz um trabalho onde aborda o trabalho de uma comunidade terapeutica em seus aspectos de reinserção. Primeiro é preciso desitoxixar o individuo e depois ele se reinsere na sociedade.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DESINTOXICAR E REINSERIR: PERPECTIVAS NO TRATAMENTO DOS
USURIOS DE DROGAS
Priscila Farfan Barroso
Porto Alegre
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Priscila Farfan Barroso
DESINTOXICAR E REINSERIR: PERPECTIVAS NO TRATAMENTO DOS
USURIOS DE DROGAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para a obteno do
ttulo de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Daniela Riva Knauth
Coorientadora: Profa. Dra. Paula Sandrine Machado
Porto Alegre
2013
Priscila Farfan Barroso
DESINTOXICAR E REINSERIR: PERPECTIVAS NO TRATAMENTO DOS
USURIOS DE DROGAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para a obteno do
ttulo de Mestre.
Aprovado em de de 2013.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Ely Mendes Ribeiro - PUCRS
____________________________________________________________________
Profa. Dra. Ceres Gomes Victora UFRGS
_____________________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Djambolakdjian Torossian - UFRGS
_____________________________________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Daniela Riva Knauth
____________________________________________________________________
Coorientadora: Profa. Dra. Paula Sandrine Machado
Aos envolvidos na temtica sade
mental: usurios, profissionais e
pesquisadores.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, gostaria de agradecer a todos que contriburam direta ou indiretamente
para a realizao desta dissertao.
Agradeo Profa. Daniela Knauth e Profa. Paula Sandrine no s por aceitarem a
orientao, mas sobretudo pela parceria, ateno, seriedade e confiana ao longo da pesquisa.
No mesmo sentido, agradeo aos professores pelas oportunidades de discusso sobre a
temtica durante as aulas e seminrios do PPGAS/UFRGS: Ana Luiza Carvalho da Rocha,
Cornelia Eckert, Viviane Vedana, Bernardo Lewgoy, Fabola Rohden, Cludia Fonseca,
Ondina Leal, Elizabeth Zambrano, Andra Fachel Leal, Ceres Victora e Carlos Steil. Profa.
Soraya Vargas Cortes, que aceitou minha participao em suas aulas de discusses tericas
sobre polticas pblicas, e Rose Feij, pela ateno e pacincia dispensada, ambas do
Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E
Ana, que revisou todo o trabalho.
Aos colegas do mestrado da UFRGS que me acalmaram com conversas e cafs, que
contriburam com ideias e que partilharam das incertezas durante a dissertao. E aos colegas
da PUCRS que me apoiaram a partir da proximidade temtica ou mesmo do momento
comum, como Vincius, Luana, Janana, Angela, Silvia, Milena e Osman.
De modo geral, agradeo aos chefes e profissionais com quem trabalhei durante a
dissertao, no BIEV/UFRGS, na Revista Ensaios/UFF, no SIMERS e na Secretaria Estadual
de Sade/RS, que foram compreensivos em relao aos compromissos acadmicos, sendo os
dois ltimos empregos fundamentais para o meu interesse na rea da sade.
Agradeo aos profissionais de sade das duas instituies pesquisadas pela
receptividade, ateno e possibilidade de partilhar do cotidiano de trabalho, assim como
agradeo aos usurios destes servios por aceitar minha presena entre eles.
Agradeo minha me Clia e ao meu pai Srgio por me darem fora, amor e
investirem em mim em todos estes 27 anos. E por ltimo, mas no menos importante,
agradeo ao Renan, por me mostrar que a convivncia uma arte
gostosa/desafiadora/reveladora de ser vivida.
A PEDRA
O distrado, nela tropeou,
O bruto a usou como projtil,
O empreendedor, usando-a construiu,
O campnio, cansado da lida,
dela fez assento.
Para os meninos foi brinquedo,
Drummond a poetizou,
Davi matou Golias...
Por fim;
O artista concebeu a mais bela escultura.
Em todos os casos,
a diferena no era a pedra.
Mas o homem.
Antonio Pereira Dias Neto
RESUMO
O objetivo desse estudo compreender os elementos acionados para interveno e tratamento
aos usurios de drogas no contexto do que estamos considerando como dois modelos de
ateno com nfase: hospitalar e psicossocial. Diante de uma suposta epidemia do crack, as polticas pblicas de sade estabelecem novas orientaes a partir dos modelos existentes, a
fim de que cada vez mais esses usurios sejam percebidos como doentes mentais. Com base
na Antropologia da Sade, pretende-se analisar os modelos de ateno vigentes, no mbito da
sade mental, tendo como foco dois servios de sade no Rio Grande do Sul - Brasil. Esses
modelos so constitudos por concepes e propostas teraputicas que perpassam a
composio da equipe profissional e a estrutura institucional. Foram contrastados os
simbolismos presentes em cada modelo a partir da discusso sobre a desintoxicao, o uso de
medicamentos, a reinsero social e a abordagem multidisciplinar na proposta teraputica dos
servios de sade. Os acionamentos em questo refletem aspectos da autonomia, da
credibilidade e do comprometimento aos usurios de drogas.
Palavras-chaves: Modelos de ateno sade. Drogas. Antropologia da sade. Polticas
pblicas.
ABSTRACT
The aim of this study is to understand the elements utilized for intervention and treatment to
drug users in the context of what we are considering as two models of care with emphasis:
hospital and psychosocial. Faced with an alleged "crack epidemic," the public health policies
establish new guidelines from existing models, so that increasingly these users are perceived
as mentally ill. Based on the Anthropology of Health, aims to analyze existing models of care
within the mental health, focusing on two health care facilities in the Rio Grande do Sul -
Brazil. These models consist of concepts and therapeutic approaches that involve their
professional team composition and institutional structure. We contrasted the symbolism
present in each model from the discussion of detoxification, drug use, social reintegration and
multidisciplinary approach in the proposed therapeutic health services. The drives in question
reflect aspects of autonomy, credibility and commitment to drug users.
Keyworks: Models of health care. Drugs. Anthropology of Health. Public Policies.
SUMRIO
1 INTRODUO ............................................................................................................ 9
2 O USURIO DE DROGAS E A ATENO NA SADE MENTAL ........................ 11
2.1 Polticas de sade e o uso de drogas: breves consideraes .................................. 11
2.2 O usurio de drogas como doente mental ............................................................. 14
2.3 A epidemia do crack e as propostas de modelos de ateno ................................. 16
2.4 Pensando as drogas atravs de conceitos da loucura e de instituies ................. 19
2.4.1 A crtica europeia s instituies de doentes mentais ............................................. 19
2.4.2 O comportamento desviante e os usurios de drogas ............................................. 22
2.4.3 A Antropologia e o estudo das concepes de sade/doena .................................. 26
3 ALGUMAS REFLEXES METODOLGICAS E A INSERO EM CAMPO ....... 30
3.1 Percurso metodolgico ............................................................................................ 32
3.1.1 Modelo de ateno com nfase hospitalar ............................................................. 39
3.1.2 Modelo de ateno com nfase psicossocial ........................................................... 51
3.2 Quando o campo o servio de sade ................................................................... 58
4 CONCEPES DE SADE/DOENA SOBRE USURIOS DE DROGAS ............. 63
4.1 Por que os sujeitos usam drogas ............................................................................ 64
4.1.1 Fatores biolgicos/genticos .................................................................................. 64
4.1.2 Fatores sociais/ambientais .................................................................................... 70
4.1.3 Fatores psicolgicos/individuais ........................................................................... 76
4.2 Entre os pesos dos fatores e o uso de drogas ......................................................... 80
5 POSSIBILIDADES TERAPUTICAS PARA USURIOS DE DROGAS ................. 82
5.1 Aspectos das propostas teraputicas ...................................................................... 82
5.1.1 Desintoxicao ........................................................................................................ 83
5.1.2 Prescrio da medicao ...................................................................................... 91
5.1.3 Reinsero social .................................................................................................. 94
5.1.4 Abordagem multidisciplinar .................................................................................. 98
5.2 Modelo de ateno em discusso .......................................................................... 104
6 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 106
REFERNCIAS .......................................................................................................... 109
APNDICE A Roteiro de Entrevista ......................................................................... 117
9
1 INTRODUO
O crack tem sido cada vez mais pautado pela mdia, tanto em relao disseminao
dessa droga no cenrio brasileiro, quanto vinculao do seu uso, a questes de
criminalidade, violncia e pobreza. Os discursos enfatizam o carter epidmico do consumo
de crack, justificando a emergncia da temtica como problema social que deve ser
enfrentado pelas polticas pblicas.
Nos ltimos vinte anos foram criados diversos servios de sade para ateno aos
usurios de drogas, no mbito da sade mental, a partir de novas polticas pblicas de sade.
A constituio, ento, de uma epidemia do crack, como discute Melotto (2009), mobilizou
diversos atores, abrindo espao para uma discusso que tenciona as diretrizes das polticas
pblicas alinhadas com as propostas da Reforma Psiquitrica, resultando em novos
encaminhamentos que evidenciam os usurios de drogas como doentes mentais.
Os modelos de ateno sade mental vigentes se apropriaram dessa discusso em
construo para propor estratgias de interveno e tratamento a partir de premissas diversas
que reforam ainda mais este debate. Identificaram-se duas propostas teraputicas em disputa:
o modelo de ateno com nfase hospitalar, que voltado ao atendimento do usurio no
mbito do hospital; e o modelo de ateno com nfase psicossocial, que enfatiza o
acolhimento do usurio a partir do vis ambulatorial. Buscando as especificidades destas
propostas teraputicas, o presente estudo procurou apreender as representaes e prticas
sociais dos profissionais envolvidos diretamente no atendimento aos usurios de drogas a
partir dos dois modelos de ateno oferecidos na rede de ateno em sade mental no Rio
Grande do Sul. Nesse sentido, investigou-se a forma como os profissionais de dois servios de
sade representativos das propostas teraputicas percebem a relao entre o usurio de drogas
e a sade mental.
A presente dissertao est organizada em quatro captulos. No captulo 1
contextualiza-se, a partir de categorias histricas e sociais, o modo como os usurios de
drogas foram sendo includos nas polticas de sade, mais especificamente na rede de ateno
da sade mental, determinando, assim, modelos de ateno especficos a esses usurios. A
seguir, apresenta-se um levantamento terico sobre os estudos nas reas de Sociologia e
Antropologia que questionam as prticas de ateno adotadas nas instituies para doentes
mentais, chegando at os estudos que questionam o uso de drogas como comportamento
desviante.
10
No captulo 2, expe-se o percurso metodolgico, enfatizando as questes ticas do
trabalho de campo e apresentando os servios de sade pesquisados, os quais esto vinculados
a dois hospitais do Rio Grande do Sul, bem como os profissionais que l atuam. Tendo em
vista a especificidade da etnografia em servios de sade, fao uma breve reflexo
considerando algumas estratgias e dificuldades em campo.
No captulo 3, evidenciam-se as concepes dos profissionais de sade em relao aos
fatores biolgicos, sociais e individuais que procuram explicar por quais motivos os sujeitos
usam drogas. Nesse sentido, a anlise sobre os elementos acionados por estes profissionais
tambm permitem a reflexo sobre a proposta teraputica de cada servio de sade.
Contrastam-se as concepes dos profissionais das duas instituies procurando semelhanas
e diferenas entre elas.
No captulo 4, busca-se compreender as propostas teraputicas para o tratamento dos
usurios de drogas vinculados aos servios de sade em questo, visando s especificidades
do modelo de ateno com nfase hospitalar e do modelo de ateno com nfase psicossocial.
Analisa-se a constituio de cada modelo de ateno a partir das concepes, propostas
teraputicas e prticas cotidianas para se apontar os contrastes entre os mesmos. As categorias
micas sero destacadas em itlico
Assim, visando levantar os elementos presentes no debate sobre a temtica do crack,
pretende-se contribuir com reflexes sobre as polticas pblicas de Sade Mental voltadas
para usurios de lcool e outras drogas no mbito nacional e estadual, de modo a evidenciar as
problemticas envolvidas e as propostas em questo.
11
2 OS USURIOS DE DROGAS E A ATENO NA SADE MENTAL
Minha primeira incurso no tema sobre a ateno aos usurios de drogas no mbito da
sade mental foi a partir de leitura de leis, portarias, manuais, notcias, dados sobre leitos
hospitalares, propostas teraputicas, novos servios de sade, at chegar discusso basilar
sobre a reestruturao da rede de ateno da sade mental atravs das propostas da Reforma
Psiquitrica1. Nesse incio, parecia evidente que a reforma, com seus desdobramentos
especficos nos mbitos nacional, estadual e municipal, questionava o modelo de ateno
hospitalocntrico2 vigente at os anos 80, no qual se baseava o atendimento aos pacientes da
sade mental, e apostava nas aes alternativas em consonncia com as ideias da luta
antimanicomial3.
O objetivo da luta antimanicomial era de desmantelar a lgica que criava e sustentava
os manicmios, por compreender que esses locais foram erguidos com base na excluso,
estando na contramo dos princpios da cidadania. Assim, os reformistas almejavam fechar
os hospitais psiquitricos que se assemelhavam a depsitos de loucos, e propunham que os
pacientes fossem atendidos por novos servios reconhecidos como servios substitutivos4
que visavam integrao do paciente na comunidade, e no o seu isolamento. Assim, o
paciente seria percebido como um sujeito que no pode ser mais ser enclausurado em um
hospital especializado (ou manicmio), mas que pode viver e se tratar fora de uma
instituio total (GOFFMAN, 2008), tendo seus direitos garantidos.
2.1 Polticas de sade e o uso de drogas: breves consideraes
Quando surgiu a discusso sobre a Reforma Psiquitrica no Brasil, em meados dos
anos 80, o foco era a doena mental e no o uso de drogas. No Rio Grande do Sul, a Lei
Estadual n 9.716, de 07 de agosto de 1992, estabeleceu uma Reforma Psiquitrica com o
1 A Reforma Psiquitrica foi definida pela Lei 10. 216, de 06 de abril de 2001 conhecida como Lei Paulo Salgado e prope como diretriz a reformulao do modelo de ateno sade mental, transferindo o foco centrado na instituio hospital para uma rede de ateno psicossocial. 2 Modelo de assistncia centrado no hospital tem o mdico como organizador do atendimento. Est voltado para
o cuidado individual e aposta na cura atravs da perspectiva medicalizante. 3 Movimento social, de carter antimanicomial, iniciado pelos trabalhadores da sade mental no final dos anos
80 que, junto com a Reforma Sanitria Brasileira, visava transformaes profundas nos servios psiquitricos
existentes, do qual decorre a criao da Lei 10.216. 4 Servios criados para viabilizar o tratamento na rea da sade mental atravs de locais abertos, com atuao
interdisciplinar e vis de incluso do social, podendo ser: centro de convivncias, centros de sade, residenciais
teraputicos, leitos de internao psiquitrica em hospital geral, etc.
12
objetivo de diminuir leitos psiquitricos em hospitais especializados e aumentar a ateno
integral, no mbito da sade mental, atravs de uma rede integrada com novos servios aos
que padecem de sofrimento psquico (RIO GRANDE DO SUL, 1992, p.1).
Consequentemente, aos poucos, os servios substitutivos foram sendo estruturados e
regularizados na esfera do Sistema nico de Sade (SUS). E no s no Rio Grande do Sul,
como tambm em outros estados, como foi o caso de So Paulo, cujo primeiro Centro de
Ateno Psicossocial (CAPS) do Brasil foi inaugurado em maro de 1986 (BRASIL, 2004,
p.12). Porm, apenas aps quase dez anos foi instituda uma Reforma Psiquitrica Nacional,
atravs da Lei Federal n 10.216, de 06 de abril de 2001, da qual nos valemos at hoje
(BRASIL, 2001).
Somente no final dos anos 80 que os usurios de drogas comearam a ganhar
visibilidade na rea da sade pblica devido epidemia do HIV/AIDS, em funo da
transmisso do vrus pelo uso de drogas injetveis. Uma das estratgias adotadas no Brasil e
em outros pases para responder a esse cenrio, conforme desmembrado no artigo de Piccolo e
Knauth (2002) sobre a pauperizao da AIDS e as estratgias para reduzir a incidncia de
casos nessa populao, foi a Reduo de Danos.
De acordo com Domanico (2006), a Reduo de Danos configura-se como estratgia
preventiva de danos sociais e de sade, podendo ter feies diferentes, mas visando diminuir
danos relacionados s prticas vulnerveis. As diretrizes da Reduo de Danos esto
preconizadas na Poltica de Ateno Integral a Usurios de lcool e Outras Drogas do
Ministrio de Sade, de 2003, e seguem atuantes.
A Reduo de Danos vinculou-se aos programas de preveno transmisso de
HIV/AIDS e, juntos, traaram estratgias para reduzir a incidncia de casos de AIDS atravs
de orientaes para minimizar efeitos negativos e outras intervenes na forma do uso de
drogas, como o estmulo para a troca de seringas, a distribuio de camisinhas, orientaes
sobre cuidados de sade, entre outros. Todavia, no final dos anos 90, com a diminuio do
uso de drogas injetveis em detrimento do aumento do uso de drogas inaladas e fumadas em
um contexto de poliuso, essas aes tornaram-se defasadas e emergiram outros desafios, de
acordo com Bastos (2010, p.38):
[...] observamos uma mudana pronunciada das cenas de uso, com reduo proporcional do consumo de opiceos e a ascenso do poliusurio, que
combina de forma seqencial ou consome simultaneamente diferentes
substncias, tanto lcitas, como o lcool e os medicamentos sem prescrio, como diferentes drogas via de regra, de diferentes classes farmacolgicas ilcitas. Essas incluem os estimulantes, como a cocana e o crack, os
13
solventes, como o lana perfume, os desinfetantes e produtos base de
gasolina e ter, alm de alucingenos variados e as denominadas design
drugs, que incluem o ecstasy e alguns outros produtos ditos anfetamina-like.
Assim, o atendimento desses usurios nos servios de sade passa a ter maior
visibilidade por complicaes decorrentes do uso de drogas, e novas estratgias de abordagem
so incentivadas.
Em 2001, foi realizado o I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas
Psicotrpicas no Brasil (CARLINI, 2002) pelo Centro Brasileiro de Informaes sobre
Drogas (CEBRID)5, patrocinado pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD)
6, que
subsidiou o texto de preparao dos profissionais e gestores de sade pblica para a III
Conferncia Nacional de Sade Mental com dados epidemiolgicos sobre o consumo de
drogas. Assim, o texto chamava a ateno para o aumento do nmero de internaes
psiquitricas por uso de lcool e outras drogas, das internaes gerais e consultas
ambulatoriais por complicaes clnicas como cirrose e AIDS, a diminuio da idade de incio
do consumo de drogas, o crescimento da violncia relacionada ao abuso, inclusive acidentes,
consequncias no trabalho, como, por exemplo, o aumento do absentesmo e a queda da
produtividade.
Visando dar conta desse novo contexto, as questes discutidas no mbito da Reduo
de Danos se apresentavam como estratgia para uma nova abordagem dos usurios de drogas
na rea da sade pblica, j que a internao com o objetivo de abstinncia total do uso de
drogas era um desafio iminente.
Na perspectiva da Reduo de Danos, a abstinncia to difcil de ser alcanada no
precisa ser o nico objetivo, sendo possvel melhorar a qualidade de sade e de vida do
usurio atravs de medidas como a diminuio de uso dessas substncias e a utilizao de
materiais menos prejudiciais para o consumo de drogas. Em relao ao consumo de crack, por
exemplo, sugere-se a possibilidade de substituio dos cachimbos de alumnio por outros
materiais, o uso de manteiga de cacau nos lbios para evitar rachaduras decorrentes do fumo
facilitando a instalao de doenas, o estmulo ao consumo de drogas afastado dos locais de
compra e venda para minimizar riscos, entre outras orientaes de cuidados com a sade do
5 Centro vinculado Universidade Federal de So Paulo UNIFESP, que iniciou suas atividades em 1978
atravs de pesquisas epidemiolgicas sobre o consumo de drogas para subsidiar aes de polticas pblicas nesta
rea. 6 Atualmente, chamada de Secretaria Nacional de Polticas sobre Drogas - SENAD e est vinculada ao Ministrio da Justia desde 2011. Essa secretaria foi criada em 1993, chamada Secretaria Nacional de
Entorpecentes, sendo vinculada ao Ministrio da Justia. Depois, foi substituda pela Secretaria Nacional
Antidrogas criada em 1998 e vinculada a Casa Civil da Presidncia da Repblica (LEAL, 2006).
14
usurio (DOMANICO, 2006). As aes de Reduo de Danos se configuram como propostas
teraputicas no s aos usurios que vo aos servios de sade, como tambm queles que
esto em territrios onde o consumo de drogas acontece com frequncia e os profissionais de
sade se deslocam at l as chamadas buscas ativas. Estas ltimas so estratgias
importantes para complexificar as possibilidades de atendimento dos usurios atravs do
conhecimento emprico das diversas condies que podem favorecer o uso de drogas.
Somam-se a isso os princpios da Reduo de Danos que consideram os aspectos para
a manuteno da autonomia do sujeito, enfatizando o posicionamento dos profissionais de
sade sobre o uso de drogas e as singularidades das questes sobre esse uso; e a
corresponsabilidade do sujeito para que ele se perceba como agente do processo de consumo,
e no como vtima da droga, da condio social ou de uma doena.
A partir de 2003, as aes de Reduo de Danos foram incorporadas como diretrizes
do Ministrio da Sade para Ateno Integral aos Usurios de lcool e Outras drogas
(BRASIL, 2003) e da Poltica de Sade Mental (BRASIL, 2005) com o objetivo de abarcar
maior quantidade de usurios. O novo contexto de poltica pblica enfatizava as negociaes
entre os usurios e os profissionais de sade, de modo que a abstinncia total no se
apresentava mais como a nica possibilidade de tratamento.
2.2 O usurio de drogas como doente mental
Essas novas ideias e definies ultrapassaram o mbito da sade, demarcando tambm
articulaes mais claras entre prticas jurdicas e prticas mdicas sobre a questo das drogas,
uma vez que tratar o usurio sabendo que ele continua usando drogas uma forma de lanar
novas questes na rea jurdica sobre as definies e os limites entre quem usurio de
drogas e quem traficante. O primeiro passa a ser percebido pelos profissionais de sade
como doente, que no deve ir preso por causa da dependncia desencadeada pela doena
e/ou por problemas psquicos, e o segundo como criminoso, que deve pagar por suas aes
malevolentes relativas aos lucros obtidos com a venda ilegal de droga. Assim, a definio que
era jurdica, passa a ser questionada tambm pela rea da sade. Cabe lembrar que a discusso
sobre a questo das drogas um processo proporcionado tambm pela abertura poltica
brasileira e a partir de uma reviso das normas de enfrentamento das guerras s drogas pela
sociedade (PASSOS; SOUZA, 2011).
No Brasil, a questo das drogas foi tradicionalmente tratada como uma questo de
justia, e consequentemente, de polcia. Atualmente, a diferena entre a definio de
15
usurio e de traficante dada pela lei de drogas, a Lei Federal 11.343/2006, ao
determinar no art. 28 que quem porta drogas sem determinao legal poder sofrer penas, tais
como advertncia sobre o uso das drogas, prestao de servios e/ou medida educativa de
comparecimento programa educativo (BRASIL, 2006). Nesse sentido, diferencia-se da
antiga lei de entorpecentes, a Lei Federal n 6.368/1976, na qual o usurio era considerado
criminoso ou traficante ainda que esse julgamento continue passando pela deciso da
autoridade policial no momento em que se flagra o sujeito em uso ou porte de drogas (FIORE,
2012, p.16-17). Na nova lei, o usurio passa a ser considerado doente, o que acaba por
responsabilizar o sistema de sade e de assistncia social disponvel pelo
atendimento/tratamento do sujeito.
Para Carneiro (2002), a demonizao do drogado perpassa a construo poltica do
Estado e da Medicina em uma concepo contempornea que elucida o uso de droga ou
lcool, como era mais comum no mais como uma questo de mau carter ou falta de
autocontrole do indivduo, mas como uma questo na qual o sujeito desenvolve a doena do
vcio que foi sendo definida no sculo XIX. A estratgia de enquadrar o usurio como doente
d legitimidade para a Medicina atuar e recoloca o problema na esfera social, mas isto no
significa que ele no seja, tanto no senso comum como entre os profissionais de sade,
considerado desviante um sem-vergonha. O tratamento para o desviante no mais a
cadeia, mas o tratamento mdico.
A referncia padro para os profissionais de sade a Classificao Internacional de
Doenas, j na 10 edio (CID-10) publicada e atualizada pela Organizao Mundial de
Sade (OMS) desde 1893. Nela, o uso de drogas considerado um problema de sade
mental7. A CID-10, de 1993, define os transtornos mentais e comportamentais devido ao uso
de substncias psicoativas como doenas mentais estipulando quais so essas substncias
psicoativas8 e destacando os critrios sintomticos para identificao diagnstica.
A essa classificao, acrescentou-se o Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM), uma publicao da American Psychiatric Association que, desde 1952,
descreve sintomas de transtornos mentais e os agrupa de acordo com as sndromes. O DSM-I,
publicado em1952, preconizava o alcoolismo e a dependncia de drogas como consequncias
do transtorno de personalidade socioptica. E o DSM-II sustentou essa configurao. Em
7 Michel Foucault (1978) apresenta registro de tratamento de usurios de drogas no interior de instituies
psiquitricas desde o sculo XIX. As drogas utilizadas eram: o pio, o nitrato de amila, o clorofrmio e o ter. 8 Entre elas o lcool, os opiceos, os canabinides, os sedativos, os hipnticos, a cocana, os estimulantes como a
cafena, o fumo, os solventes volteis e as outras substncias psicoativas.
16
1964, a OMS definiu mais claramente a dependncia9 como doena especfica. Assim, em
1982, na publicao do DSM-III, mudanas significativas foram apresentadas para definio
do diagnstico de abuso de substncias psicoativas. E ento, no DSM-IV de 1994 foram
definidos os critrios para o diagnstico do abuso de substncia, diferenciando-se das
publicaes anteriores que consideravam o abuso como categoria residual da dependncia.
Poucas referncias nos ajudam a chegar a essas concluses, como Almeida (2007) e Jaber
(2004).
Enquanto transtorno mental, cabe Psiquiatria e Psicologia o atendimento dos
usurios de drogas. Assim, como pacientes da sade mental, os usurios de drogas podem ser
atendidos em hospitais psiquitricos ou em hospitais gerais com ala psiquitrica. Esse ponto
complexificou-se no final dos anos 90, quando a ateno aos usurios de drogas na rede de
sade mental tornou-se uma discusso pblica em funo da repercusso da temtica na
mdia, vinculando o uso de drogas tanto violncia e criminalidade, como condio de
vulnerabilidade do usurio que passa a ser percebido como doente.
Os encaminhamentos dos usurios para as instituies de sade aumentam cada vez
mais. Entretanto, os novos servios substitutivos so instalados em uma velocidade menor do
que so fechados os leitos psiquitricos em hospitais especializados, onde os usurios tambm
poderiam ser atendidos. Ou seja, esse descompasso refora o debate sobre as propostas
teraputicas vigentes e tenciona a reestruturao da rede de ateno em sade mental.
2.3 A epidemia do crack e as propostas de modelos de ateno
a partir de 2009 que o crack comea a ganhar visibilidade enquanto poltica
pblica especfica, apesar dessa substncia j estar associada s questes de sade, assistncia
social e segurana pblica h mais tempo. Nos jornais, telejornais e revistas nacionais e
estaduais, e mais especificamente no material analisado no ano de 2011 em dois jornais de
grande circulao no Rio Grande do Sul (BARROSO, 2012), atravs do argumento de uma
suposta epidemia do crack, como discute Melotto (2009), desencadeou-se, no palco da
mdia, a emergncia de um debate amplo no mbito da sade pblica sobre o que fazer com
os usurios de drogas?. Duas propostas antagnicas se apresentaram ao debate: a proposta de
internao compulsria dos usurios de drogas enquanto um dever do Estado e a que defende
a autonomia dos sujeitos na busca e deciso pelo tratamento e pelo findar, ou no, o uso de
9 O termo dependncia substitui a ideia de adio e hbito que relacionava o uso de drogas como vcio na tentativa de enfatizar a categoria biomdica ao invs da categoria moral (WHO, 1964).
17
drogas. Ou seja, em um contexto de desinstitucionalizao dos pacientes psiquitricos,
ressurgiu o argumento da necessidade da criao de mais leitos para internao dos usurios
de drogas. Este argumento influenciou o surgimento de planos emergenciais em mbito
nacional, estadual e municipal para instalao de leitos e aparatos institucionais especficos
aos usurios de drogas na rede de sade mental.
Rui (2012) sugere que a ampla divulgao da mdia sobre o crack na poca gerando
comoo nacional fez com que o governo federal tomasse medidas efetivas no ano seguinte.
O principal decreto que amarra as novas diretrizes e as tendncias institucionalizantes para
os usurios de drogas - o Decreto n 7.179/2010, regulamentado pelo presidente da
Repblica do Brasil, que instituiu o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras
drogas, enfocando a preveno do uso, o tratamento e a reinsero social de usurios,
promovendo o enfrentamento do trfico de crack e outras drogas ilcitas e estabelecendo seu
Comit Gestor para discutir essas questes (BRASIL, 2010). Nesse sentido, cada vez mais
esse vai sendo um ponto apropriado legalmente pela rea da sade, como expe a Portaria
3.088/2011, que instituiu a rede de ateno psicossocial para pessoas com transtornos mentais
em decorrncia do uso de crack, lcool e outras drogas no SUS (BRASIL, 2011a).
Cabe enfatizar que, atualmente, a ampliao e a qualificao da rede de ateno em
sade mental se tornaram prioridades do governo atravs da criao da Linha de Cuidado em
lcool, Crack e Outras Drogas (BRASIL, 2011b). As diretrizes dessa proposta trazem
aproximaes e distanciamentos com as premissas da Reforma Psiquitrica, elementos que a
presente dissertao busca analisar.
A hiptese inicial era de que os questionamentos tambm perpassavam o atendimento
dado aos usurios de drogas nos servios da sade mental, no somente enquanto normativa
de poltica pblica, mas como dinmica de trabalho entre os profissionais, pacientes e espao
institucional. Ou seja, parecia haver algo fundamental no debate que no se encontrava nas
leis, portarias, notcias, bancos de dados da rea da sade, mas que era essencial para
conhecer e compreender como estavam sendo percebidas e aplicadas essas novas diretrizes
nacionais sobre a questo do atendimento de usurios de crack, no mbito da rede de sade
mental, atravs das prticas e articulaes dos profissionais, que apareciam paralelas
Reforma Psiquitrica.
Enquanto direcionamento da poltica pblica, os servios de sade se apropriam das
novas diretrizes, mas como enfatiza Ingram et all. (2007), novos elementos tambm desenham
uma poltica pblica e contribuem com uma institucionalizao das prticas que apresentam
certos valores para as populaes-alvo, reforando aes especficas e dando visibilidade aos
18
governos que se pautam pelos cuidados envolvidos na questo das drogas. Nesse sentindo, as
perspectivas de interveno vigentes, como o modelo de ateno hospitalar e o modelo de
ateno psicossocial, disputam a configurao da legitimidade social das suas prticas nos
servios de sade, a partir das respostas que do problema social envolvendo o crack.
Assim, o interesse desta dissertao a configurao dos modelos de ateno
diferenciados para usurios de droga na rede de ateno sade mental, a partir do cotidiano
de trabalho de instituies que se pautam por essas novas caractersticas das polticas
pblicas, que em meio a um processo de desinstitucionalizao para uns, parecem visar
institucionalizao para outros.
Aqui, considera-se modelo de ateno no como um programa especfico, mas como
uma representao da realidade de sade, [na qual] se procurar destacar as racionalidades
que orientam as aes de sade, conduzindo adoo de uma dada combinao de
tecnologias ou de meios de trabalho em cada situao concreta (PAIM, 2008, p. 539), sendo
que pode variar de acordo com o servio de sade e os respectivos profissionais. a partir
desse foco nos modelos de ateno que refletiremos sobre como est sendo pensado o
tratamento dos usurios de drogas na sade mental.
Os modelos de ateno sade discutidos a partir do Arthur Kleinman (1980), que
mdico psiquiatra com treinamento em Antropologia, como sistemas de cura so entendidos
como sistemas culturais, uma vez que atravs deles se estabelecem crenas e normas de
conduta para responder s demandas socialmente organizadas e vinculadas noo de doena,
legitimando, assim, alternativas teraputicas. Deste modo, interessa compreender os
dispositivos dos sistemas de cura acionados pela demanda de atendimento, pelo
conhecimento tcnico dos profissionais e pelo aparato institucional envolvidos nas propostas
de polticas pblicas em questo que direcionam e produzem os resultados efetivos. O
objetivo no apontar conflitos entre os modelos, explicitando afastamentos entre a Reforma
Psiquitrica, mas compreender o que est em jogo quando se pensa em modelo de ateno
para usurios de drogas em um contexto de tendncia desinstitucionalizao.
A partir da literatura antropolgica pretende-se compreender as construes
simblicas presentes nos modelos de ateno e que tem efeitos concretos no processo
teraputico, como preconiza Csordas e Kleinman (1996). Logo, nesta dissertao, estudam-se
as perspectivas dos profissionais de sade que atuam em instituies integrantes da rede de
ateno sade mental para o atendimento dos usurios de drogas, a fim de compreender
como esse tratamento concebido. Interessa conhecer a configurao dessas concepes que
levam em considerao a formao profissional, a especialidade da rea, as experincias
19
profissionais, mas tambm a atuao no processo de trabalho a partir das instituies em
questo.
2.4 Pensando as drogas atravs de conceitos da loucura e de instituies
Considerou-se relevante traar um breve panorama terico, no mbito da Sociologia e
da Antropologia Social, sobre a doena mental como objeto de estudo, at chegar discusso
dos estudos sobre usurios de drogas.
2.4.1 A crtica europeia s instituies de doentes mentais
Um dos autores clssicos que provocam a pensar a temtica discutida nesta dissertao
Michel Foucault. Na Frana dos anos 60, ele iniciou o debate sobre a interveno da
sociedade na temtica da doena mental, analisando a configurao dos discursos
vinculados ao estabelecimento das disciplinas de sade e das especialidades mdicas. Em seus
estudos, o autor considerou, principalmente, como ocorreu o reconhecimento da doena
mental na sociedade como um fenmeno patolgico e como o tratamento perpassava as
instituies sociais. Para Foucault (1975), esses locais caracterizavam-se por serem
instituies disciplinares, uma vez que no contexto institucional transcorriam processos
normativos e controladores pautados pelo regime de poder disciplinar, produzido
estrategicamente para moldar o comportamento dos indivduos.
Em Histria da Loucura, de 1961, Foucault apresentou a loucura enquadrada a partir
de concepes biomdicas, atravs das quais se criaram propostas de atendimento e
tratamento em instituies psiquitricas, visando conter aspectos do comportamento desviante
dos indivduos, sendo essas, muitas vezes, local de enclausuramento eterno. As anlises de
Foucault (1975) contribuem no que se refere consolidao histrica da Medicina mais
especificamente da Psiquiatria e da Psicologia - e construo da identificao e configurao
da doena mental difundida atravs do discurso das reas psi.
Nikolas Rose (2008) atualiza essa discusso a partir do contexto de molecularizao10
e medicalizao11
da doena/sade mental como forma de precisar o discurso, e analisa a
Psicologia como uma cincia social preocupada com os critrios de normalidade e
anormalidade. O estudo baseia-se em inmeros projetos polticos de controle dos indivduos,
10 Referente ao controle da vida a nvel molecular. 11 Referente apropriao dos modos de vida pela Medicina.
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de modo que a Psicologia, enquanto disciplina, foi sendo tomada pelas reas da
Neurologia/Neuroqumica que passaram a identificar e objetificar no crebro o que mental
constituindo, assim, tecnologias sociais para o estudo da mente/crebro. Rose (2006) destaca
que o legado das ideias de Foucault, mais do que a crtica ao modelo mdico, a negao da
realidade da loucura ou a denncia do poder psiquitrico, foi a separao do poder e da
verdade das formas hegemnicas, a fim de suscitar que tambm os pacientes da sade mental
estabelecessem seu direito - e poder - sobre o tratamento que eles recebem.
O psiquiatra italiano Franco Basaglia, que inspirou a Reforma Psiquitrica Brasileira,
bebeu nessas ideias de Foucault, mas o considerava pessimista por abordar a instituio
psiquitrica atravs da estrutura da excluso e por condenar a possibilidade da reforma
(BASAGLIA apud FREITAS; RIBEIRO, 2006). No final dos anos 60 e no incio dos anos 70,
Basaglia partiu dessa discusso para propor o lema contra o pessimismo da razo, otimismo
da prtica concretizando suas ideias na defesa de uma psiquiatria alternativa atravs da
crtica Psiquiatria tradicional e consequentemente s instituies psiquitricas. Ele
argumentava que os estudos da Psicologia tradicional reproduziam a velha gesto
manicomial e, por sua vez, funcionavam como depsitos de indivduos, e no como local
de tratamento e cura, como propunham os mdicos da poca (BASAGLIA, 1979, p. 85). A
crtica basagliana enfatizava o manicmio como local de controle do comportamento de
indivduos considerados desviantes, como o pobre, o louco e o deficiente. O autor props uma
psiquiatria alternativa atravs de servios de atendimento abertos e de uma nova relao
entre mdico-paciente, comparando experincias de vrios pases em outros tratamentos que
se apresentavam como alternativa ao manicmio.
Basaglia foi precursor da Reforma Psiquitrica Italiana, e sua ideias tiveram
repercusses no Brasil durante a dcada de 70. A perspectiva basagliana apostava no discurso
teraputico de reinsero social e criticava as tendncias medicalizantes da poca.
Conforme analisa Ferrazza (2009) referindo-se medicalizao do social, a descoberta
dos psicofrmacos nos anos 50 no modificou, de fato, a assistncia psiquitrica. Segundo a
autora (FERRAZZA apud BIRMAN, 2000) o uso da clorpromazina conferiu legitimidade
Medicina psiquitrica por atuar na organicidade da loucura, deixando os pacientes menos
agitados - tornando a enfermaria silenciosa-, de modo a contribuir com a permanncia deles
em um contexto manicomial. Essas questes intensificaram a crtica ao modelo
hospitalocntrico e incentivaram a implantao de uma rede extra-hospitalar (BRASIL, 2005).
No final dos anos 60 e em meados dos anos 70, Erving Goffman e Howard Becker
foram dois dos socilogos da Escola de Chicago, nos Estados Unidos, que se aproximaram
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das discusses de Foucault e Basaglia por tratarem do mesmo objeto emprico: o
comportamento desviante. Ambos se vincularam perspectiva do Interacionismo Simblico
que compreendia os comportamentos sociais a partir da interao social, e no de esquemas
pr-estabelecidos.
O interacionismo simblico constitui uma perspectiva terica que possibilita
a compreenso do modo como os indivduos interpretam os objetos e as
outras pessoas com as quais interagem e como tal processo de interpretao conduz o comportamento individual em situaes especficas.
(CARVALHO; BORGES; RGO, 2010, p. 148)
Entretanto, os estudos de Goffman, Foucault e Basaglia convergiram a partir do peso
que atribuem ao contexto institucional na temtica sobre o tratamento da doena mental. J
Becker e Foucault focaram a discusso no que entendido como normal ou anormal na
sociedade, analisando como se d o reconhecimento do comportamento desviante.
Diferente da argumentao atravs de dados histricos de Foucault e da reflexo
militante de Basaglia, Goffman realizou pesquisas sociolgicas e trabalhos de campo em
instituies sociais, no incio dos anos 60, a fim de estud-las como instituies totais. Para
o autor, elas so instituies com tendncia de fechamento, sendo que seu fechamento ou
o carter total
simbolizado pela barreira relao social com o mundo externo e por
proibies sadas que muitas vezes esto includas no esquema fsico por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arames farpados, fossos, gua,
florestas ou pntanos. (GOFFMAN, 2008, p. 16)
Para focalizar aspectos desse conceito, cabe explicitar que o adjetivo totais enfatiza
o fato de os indivduos desempenharem diferentes afazeres como a realizao das refeies,
das prticas de lazer e de repouso em um mesmo espao fsico, bem como da observao e
dos constrangimentos de outros indivduos, sendo eles pacientes ou profissionais da
instituio. Em outras instituies essa caracterstica no determinante, j que se realizam
diferentes atividades em espaos dispares como o lazer na praa, o trabalho no escritrio e o
descanso em casa.
Desse modo, interessa o estudo do autor em questo, mais especificamente quando ele
se dedica reflexo sobre instituies psiquitricas tambm chamadas, naquela poca, de
manicmios - como instituies totais. O foco de Goffman o mundo do internado e o
mundo da equipe dirigente (GOFFMAN, 2008). Essa interessante reflexo sobre a relao
entre indivduo e sociedade na perspectiva interacionista colocada pelo autor fundamental
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para o estudo de como as concepes biomdicas se concretizam atravs da instituio, de
modo a garantir a mortificao do eu do internado na intimidade da vida hospitalar, fazendo
com que a instituio tenha tambm alguma ao sobre o indivduo. Sendo assim, como
enfatiza Ferreira (2012, p. 84) as pesquisas de Goffman e Foucault nos auxiliam a
problematizar quando, historicamente, se produziram os processos sociais de individualizao
a que ainda estamos submetidos, mesmo que implicitamente.
2.4.2 O comportamento desviante e os usurios de drogas
Essa perspectiva se aproxima de alguns estudos sobre sociologia do desvio12
,
desencadeados pela Escola de Chicago, produzindo os primeiros trabalhos sobre a questo das
drogas e os usurios de drogas, como o do socilogo Howard Becker. Seu estudo clssico
entre os outsiders enfatizava a compreenso das dinmicas de coeso social
(DURKHEIM, 1977; SIMMEL, 2006) considerando os padres de comportamento desviante
partir da noo de que grupos sociais estabelecem o que considerado infrao s regras. Os
usurios de drogas seriam considerados desviantes por efetivarem o uso de substncias
psicoativas na contramo do que proclamam as regras sociais. Para Becker (2008, p. 22), o
desvio visto como produto de uma transao que tem lugar entre algum grupo social e
algum que visto por esse grupo como infrator de uma regra, de modo que quem se desvia
no est fora da sociedade, pelo contrrio, considerado por alguns - desviante
justamente por que est dentro da sociedade. Essa anlise do autor contribui com a ideia de
que o social tambm produz o comportamento considerado desviante, ultrapassando a noo
de que esse comportamento no pertence ao social.
Assim, o uso de drogas visto como comportamento desviante - sendo considerado
um sintoma de deficincia na sade mental - uma vez que esta rotulao leva em considerao
o fato de que essas substncias tm potencial para interferir na estabilidade, e dessa forma, na
funcionalidade da sociedade (BECKER, 2008). Logo, essa concepo compreende que os
usurios de drogas ameaam os pontos de estabilidade social, e por isso so considerados
outsiders, ou seja, aqueles que se desviam das regras estabelecidas pelos grupos - e a se
questiona que grupos so esses. Assim, o autor estuda alguns casos de usurios de maconha e
apresenta os padres de comportamento desviantes, considerando os empreendimentos
12 Esses estudos partem da noo de que o desvio no qualidade prpria do comportamento individual, e sim reside na interao entre quem comete um ato e aqueles que reagem a ele (BECKER, 2008).
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morais (BECKER, 2008, p. 167) nas interaes entre as pessoas, que acabam por constituir
novas regras.
no contexto dessas pesquisas que, nos anos 70, alguns antroplogos brasileiros
avanaram nessa discusso. Um deles o antroplogo Gilberto Velho (2002), que reconheceu
a influncia de Becker e Goffman, da Escola de Chicago, na anlise do cotidiano e das
relaes interpessoais a partir de pesquisas com nfase interdisciplinar - como os trabalhos
com reas psi -, dos estudos urbanos e da discusso da temtica indivduo e sociedade.
Velho (1974, p.27) tambm apostou em uma crtica patologia social atravs da
discusso sobre o desvio na sociedade, enfatizando que o rtulo da inadaptao
desconsidera padres e regularidades existentes, de leituras particulares sobre a vida, e
simplifica o entendimento da realidade a partir da ideologia de um grupo de indivduos. Para
o autor, o desviante um indivduo que faz uma leitura divergente dentro da sua cultura,
sendo considerado anormal em uma rea de comportamento, mas podendo ser considerado
normal em outras reas. A contribuio da anlise feita por Velho para a Antropologia
Social de que atravs do comportamento desviante devem ser percebidos aspectos da
lgica do sistema sociocultural. A nfase de anlise do desvio como categoria moral.
O autor alerta que nos estudos da rea da Antropologia preciso reconhecer e dar
importncia para comportamentos considerados desviantes - como o doente, os
marginais, os usurios de drogas, entre outros - como algo prprio da marca
sociocultural, e no algo do indivduo (VELHO, 1974). Essa perspectiva desvincula-se da
excepcionalidade do individual e por sua vez do psicolgico para ser tratado no
mbito do sistema sociocultural. Sendo assim, a tese de Velho (1998) sobre as camadas
mdias brasileiras, a partir da utilizao das drogas, destaca que a viso de mundo no
monoltica, sendo ento cheia de ambiguidades e com fronteiras flutuantes. Ao relativizar o
conceito de desvio, o autor percebe que para falar do uso de drogas acionam-se smbolos de
diferenciao que remetem a representaes diversas, residindo a problemas estruturais da
sociedade brasileira que ultrapassam o universo emprico pesquisado.
Outros antroplogos brasileiros tambm se preocuparam com a questo das drogas no
contexto urbano do mundo contemporneo.
Nos anos 80, o antroplogo Edward MacRae contextualizou o consumo de drogas no
Brasil e participou de debates pblicos visando refletir sobre o problema das drogas na
atualidade, de modo a criticar o senso comum sobre a temtica e a destrinchar as
possibilidades de compreenso sobre o assunto a partir do reconhecimento da noo de
rituais sociais e de modalidades de uso presentes nesse consumo (MACRAE, 1987). O
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autor j questionava o vis repressivo e policialesco do controle sobre o uso de drogas,
representado pelas leis que definiam medidas a serem tomadas na abordagem dos usurios.
Explicitando, assim, a necessidade de se pensar em maneiras alternativas para minimizar as
questes de alta periculosidade para o indivduo e para a sociedade - do uso de drogas
vinculadas ao trfico, ao crime e pobreza.
Cabe dizer que MacRae no s analisou essa temtica, mas tambm estimulou a
discusso sobre outras formas de atendimento aos usurios de drogas, como por exemplo, a
partir da perspectiva da reduo de danos. nesse contexto que ele se vincula a organizaes
no governamentais e prope a discusso sobre a descriminalizao das drogas, trazendo ao
debate a constituio scio-histrica do uso de substncias ilcitas, de modo a apresentar os
imbricamentos presentes nas concepes do senso comum sobre o uso e os usurios de drogas
(MACRAE, s.d). Seu engajamento na desconstruo do senso comum dessa temtica tambm
estimulou estudos sobre a questo das drogas pela Antropologia e pelas cincias humanas de
forma mais geral.
Este antroplogo dedicou-se aos estudos das drogas alucingenas a partir do uso
dessas substncias como a auyasca - em contextos religiosos no Brasil (LABATE;
MACRAE, 2010). Esta uma faceta cada vez mais discutida por autores que estudam a
temtica das drogas (LABATE, 2002) problematizando o uso de drogas em rituais e as
experincias de alterao da conscincia. Nos anos 2000, o antroplogo Eduardo Viana
Vargas (2006, p. 584) tambm deslocou a questo do por qu do uso das drogas para refletir
sobre quais so as experincias do uso de drogas. Foi a partir desse princpio que autor
discutiu como legtimo o uso de drogas na sociedade brasileira.
O esforo de Vargas o de desconstruir a explicao culpabilizadora do indivduo, ou
dos pais e mes, ou da sociedade sobre o uso de drogas como errtico, e enfatizar o interesse
nesse fenmeno como um evento proporcionado e estimulado pela onda que d o uso de
drogas. Esse uso est envolto no em uma ou outra ao, e sim em alter-aes. As alter-aes
desafiam a perspectiva que explica o uso de drogas atravs da categoria controle, a fim de
propor que as experincias da onda compem misturas e combinaes de gentes e agentes,
e no representam somente o controle/descontrole de um sobre o outro. Ou seja, para tratar a
questo das drogas, o autor chama a ateno que mais uma vez, no a inverso do consenso
moral, mas a afirmao eticamente sustentada, ao modo de Spinoza, da pluralidade imanente
dos modos de existncia (VARGAS, 2006, p. 607).
25
Considerar a partilha moral envolvida na temtica necessidade desse campo de
discusso, uma vez que drogas tm mltiplos significados e cada qual acionado conforme
seu vis argumentativo.
Nesta dissertao, interessam as drogas como substncias lcitas o lcool e
ilcitas o lol, a maconha, a cocana, o crack, o haxixe uma vez que so acusadas de causar
a dependncia qumica, e por sua vez, so drogas que afetam de forma pejorativa a moral de
quem as consome. E assim, o discurso para justificar a guerra contra as drogas estabelecido
por alguns pases.
Entretanto, deve-se considerar que h outros aspectos envolvidos nessa classificao
do que so drogas, conforme Vargas (2000, p. 2) nos alerta que:
preciso no esquecer que drogas so ainda todos os frmacos. Da o
problema das drogas no implicar apenas consideraes de ordem econmica, poltica, sociolgica ou jurdico-criminal, tendo sido considerado
um problema eminentemente mdico desde que se tornou em nossa sociedade, o que no faz assim tanto tempo, um problema de drogas. E as
implicaes desse vnculo entre drogas e medicina no so absolutamente desprezveis, j que os saberes e as prticas mdicas foram historicamente
investidos, entre ns, na posio de principais instrumentos de legitimao
da partilha moral entre drogas lcitas e ilcitas por fornecerem, para a sociedade em geral e com a fora da autoridade cientfica que costumamos
emprestar-lhes, os critrios para tal partilha.
E so alguns desses critrios que esto sendo discutidos. Assim, interessa a discusso
sobre as definies de drogas vinculadas anlise da construo social da dependncia dessas
drogas, como estudou o antroplogo Eduardo Mendes Ribeiro (1999) em sua tese. Ele fez um
primeiro levantamento scio-histrico das concepes que envolveram a construo social do
problema da dependncia das drogas, a partir do estudo do contexto gacho de atendimento a
usurios de drogas. O autor explorou as propostas de tratamento possveis no incio deste
sculo, a partir das concepes fundantes dos campos institucionais sobre a questo das
drogas. H no texto um interessante mapeamento das prticas teraputicas vinculadas ao
discurso cientfico ou religioso, atravs do qual o autor identificou que aes mais flexveis, e
por sua vez que tinham concepes mais maleveis sobre as drogas, podiam ser mais eficazes
no atendimento aos usurios no campo da sade. Ou seja, o que conforma o aspecto moral do
debate sobre drogas no uma discusso que rebatida e alimentada pelas instituies que
atendem esses usurios.
Em meados do ano de 2005, iniciou-se um novo contexto no qual se insere essa
temtica diante de uma suposta epidemia do crack (MELOTTO, 2009), de modo que se
26
reordena o debate a partir de uma nova substncia. E aqui destaca-se a questo porque ela
pauta primordial no contexto desta dissertao.
Um dos antroplogos que est frente dessa discusso Heitor Frgoli. A partir de
projetos de pesquisa sobre a gentrification do Bairro da Luz, ele se aproximou de usurios de
crack que habitavam essas territorialidades, conferindo tambm a esttica do espao urbano
de um lugar multifacetado. Atravs da Etnografia da e na chamada cracolndia, em So
Paulo, o autor se aproximou dos diferentes usos que usurios - ou no - de crack fazem
daquele espao como modality of itinerant territoriality and a field of relationships in a
multifaceted context marked by diverse situational variations (FRGOLI; SPAGGIARIS,
2011, p. 572). dialogando com essa temtica que nesse perodo foram feitas estudos em So
Paulo, como o de Taniele Rui (2012), no Rio de Janeiro, como o de Mariana Cavalcanti
(2007), e em Minas Gerais, como o de Luis Flavio Sapori e Regina Medeiros (2010).
2.4.3 A Antropologia e o estudo das concepes de sade/doena
Partindo dessas abordagens antropolgicas, esta dissertao tem como objetivo o
estudo das concepes de sade/doena sobre usurios de drogas e das dinmicas
institucionais envolvidas no atendimento dos mesmos na rede de ateno sade mental.
Deste modo, pode-se aproximar das representaes e das prticas sociais dos atores
envolvidos no atendimento de usurios de lcool e outras drogas nos servios de sade
oferecidos pela rede de ateno sade mental em duas instituies em Porto Alegre. Assim,
partimos da noo do desvio discutido pela Antropologia Urbana at chegarmos a uma
reflexo sobre a Antropologia da Sade e qui da Antropologia Mdica -, na qual as
noes de doena e sade so compreendidas como fenmenos culturalmente construdos e
interpretados.
O estudo da ou sobre sade/doena a partir das representaes sociais expressas
pelos discursos do antroplogo ou do nativo - e mesmo atravs da observao participante -
retoma a discusso clssica entre indivduo e sociedade. A perspectiva durkheimiana sobre a
representao social considera a preponderncia do pensamento social sobre o pensamento
individual, sendo o primeiro coercitivo em relao ao segundo. Entretanto, como
problematizar o conceito de representaes sociais de sade e doena de maneira a
abarcar a autonomia individual e seu acordo enquanto fenmeno coletivo?
A antroploga Claudine Herzlich (2005) compreende a sade/doena como um
fenmeno que ultrapassa a Medicina, logo o estudo deste a partir de representaes sociais
27
permite expressar a configurao social na qual ele ocorre. Ela defende a utilizao das
representaes sociais entendendo-as como realidade sui generis, considerando que esta
perspectiva ajuda a compreender situaes que se redefinem na sociedade, entretanto o
limite dessa noo tem que ser ponderado. A exacerbada generalidade do nvel de anlise das
representaes sociais pode desconsiderar sua construo social pautada em uma realidade
social e histrica em que esto em jogo as configuraes sociocognitivas globais articuladas
na interpenetrao entre o indivduo e o coletivo.
A autora ainda retoma a ideia de que a doena encarna a imposio social
(HERZLICH, 2005, p. 60), e nesse sentido, a representao social funciona como orientadora
de condutas, fazendo-nos refletir sobre a condio dos profissionais de sade que lidam
cotidianamente com os usurios de drogas. Assim, Herzlich concluiu na mesma reflexo que
o estudo dessas representaes de sade e de doena permite em princpio compreender por
que alguns problemas sobressaem em uma sociedade e a esclarecer alguns aspectos de sua
apropriao pela sociedade, como os debates e os conflitos que se desenrolam entre diferentes
grupos de atores. (2005, p.61-62)
O uso do conceito de representao social relevante para a compreenso do conjunto
de construes sociais envolvidas na noo de doena que supe tratamento dos usurios
drogas. Esse entendimento est pautado em uma definio mdica de doena como
entidade, destacando sintomas e sinais de alteraes fisiolgicas anormais que
pressupem a realizao de diagnstico e tratamento apropriado (HELMAN, 2003). Dessa
maneira, os profissionais das instituies de sade, definidos como principais atores desta
dissertao, explicitam em suas representaes sociais um pensamento que construdo em
uma relao entre indivduo e referencial institucional (DOUGLAS, 2007).
Um dos autores base para essa discusso Arthur Kleinman, que participa do Grupo
de Harvard, e pretende analisar os fatores scio-culturais atrelados ao campo da sade,
levando em considerao traos cognitivos e problemas de comunicao relacionados:
Os trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Harvard e, em particular, pelos
professores Arthur Kleinman e Byron Good, que se situam entre os principais representantes da corrente interpretativa em antropologia mdica,
fornecem os elementos-chave de um quadro terico e metodolgico para
anlise dos fatores culturais que intervm no campo da sade. Esses trabalhos ressaltam a importncia de considerar que as desordens, sejam elas
orgnicas ou psicolgicas, s nos so acessveis por meio da mediao
cultural. (UCHA; VIDAL, 1994, p. 500)
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28
Esse mdico-antropolgo visou o estudo de sistemas de cura, a fim de compreender,
a partir do contexto sociocultural, os mecanismos que definem os cuidados de sade
formulados atravs das relaes entre profissionais e pacientes. Assim, para abarcar os
meandros desses sistemas, o autor sugeriu o conceito de modelo explanatrio, definindo-o
como the notions about an episode of sickness ands its treatment that are employed by all
those engaged in the clinical process (KLEINMAN,1980, p. 105). partir desse modelo que,
como estudiosos sobre o assunto, pode-se acessar as explicaes sobre doena/sade e
tratamento que orientam profissionais e terapias disponveis, explicitando significados
pessoais e sociais sobre a experincia de doena. Segundo o autor, cabe determinar o modelo
explanatrio de quem trata e de quem tratado, para na sequncia captar similaridades e
divergncias no entendimento mais dinmico e plural de como so feitos os diagnsticos e
formulados os tratamentos no campo da sade.
Nesse mesmo grupo de pesquisa de Harvard est Byron Good, que tambm auxiliou
na reflexo sobre o objeto desta dissertao. O principal foco de Good (1994) a anlise da
doena como objeto de diagnstico e atividade teraputica, que tem sua formulao
constituda nas prticas clnicas e experincias comuns dos alunos de Medicina de Harvard.
Sua hiptese fundamental de que a Medicina formula o corpo humano e a doena de formas
culturalmente distintas. Entretanto, para Good o aspecto biolgico no externo, mas est
dentro da cultura. Para aprofundar esse ponto de vista, ele refletiu a partir do modo como se
conhece a realidade, contrapondo-se s perspectivas kantianas sobre as categorias de
entendimento a priori, que primavam pela busca de uma verdade universal e necessria. E se
aproximou de uma abordagem mais fenomenolgica, como prope Ernst Cassirer, que investe
em uma compreenso da realidade como forma simblica dada na captao do sensvel.
Dessa maneira, Good (1994) se apropria dessas ideias para pensar a Medicina como
formao simblica do mdico, que se organiza atravs da realidade e infere a noo de
doena a partir de um conhecimento simblico que construdo na mente humana por meio
dos sentidos. As falas que o autor traz para apresentar o ponto de vista desses alunos de
medicina evidenciam um estranhamento inicial na aprendizagem da linguagem mdica
diferenciada da linguagem cotidiana. Durante a faculdade, constri-se outra noo de corpo,
que o corpo natural, j desumanizado. Assim, o aluno aprende tcnicas voltadas para a
prtica mdica a partir de um rigor cientfico que considera a separao entre a subjetividade e
a objetividade. Entretanto, para os antroplogos entenderem a constituio de prticas
teraputicas e atividades de cura, cabe justamente estudar as experincias intersubjetivas
desses mdicos no processo formativo. J que a partir das atividades interpretativas, eles
29
constroem o conceito de doena, apropriado de forma pessoal e social de maneiras distintas
dentro de uma mesma cultura e, posteriormente, aplicadas em processos teraputicos.
na articulao do compsito histrico de questes da Antropologia Urbana e
Antropologia da Sade que esta dissertao foi desenvolvida. Os prximos captulos
abordaro, de fato, a discusso terica a partir de um teor etnogrfico sobre os modelos de
ateno para usurios de drogas no mbito da sade mental.
A etnografia foi realizada em dois servios de sade do Rio Grande do Sul que tem
caractersticas institucionais diferentes e representativas do debate desafiador na rea da sade
mental para usurios de drogas. Conhecer a dinmica de atendimento nesses locais significa
aproximar-se de experincias institucionais que so exemplos de propostas de atendimento.
De modo que etnografar as prticas dos profissionais desses servios de sade levar a refletir
sobre os desafios do cotidiano de atendimento dos usurios de drogas para alm da
experincia local e dos discursos correntes, dando conta de uma discusso maior.
30
3 ALGUMAS REFLEXES METODOLGICAS E A INSERO EM CAMPO
Este captulo apresenta o percurso metodolgico de insero em campo, ao mesmo
tempo em que explicita as configuraes das instituies de sade escolhidas para terem seus
modelos de ateno aos usurios de drogas analisados. A proposta de contextualizao do
universo emprico est atrelada compreenso da criao desses servios de sade especficos
e consequentemente, seus modelos de ateno para o atendimento aos usurios no mbito
da sade mental.
Cabe enfatizar que o projeto de pesquisa desta dissertao foi aprovado pelos Comits
de ticas em Pesquisa (CEP) das duas instituies estudadas13
, conforme as Normas e as
Diretrizes Nacionais e Internacionais de tica em Pesquisa do Conselho Nacional de Sade,
sobretudo no que diz respeito Resoluo 196/96 e suas revises (BRASIL, 1996).
Assim, como os principais pesquisados eram os profissionais dos servios de sade,
aqueles que concederam entrevistas individuais, a partir do roteiro de questes
semiestruturadas, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido possibilitando a
utilizao das informaes. Tanto para esses quanto para outros profissionais e para usurios
dos servios de sade que aceitaram minha observao/participao nos locais, ficou
estabelecido que no haveria identificao dos seus nomes, de modo a preservar suas
identidades.
Considera-se importante a compreenso da composio das equipes de profissionais
nos servios de sade e o entendimento de que h especificidades no atendimento aos
usurios e no desempenho de cada profissional, de modo que para se referir a eles sero
utilizados os ttulos de formao seguidos de nomes fictcios, e aleatrios, quando necessrio.
Desta maneira, evidencia-se como a atuao profissional ser apresentada: MedPsiq (mdicos
ou mdicas psiquiatras), ResPsiq (mdicos ou mdicas residentes da Psiquiatria), Psic
(psiclogos ou psiclogas), AssSoc (assistentes sociais), ResMult (nutricionistas, psiclogas,
enfermeiras e assistentes sociais residentes em residncia multiprofissionais), Enf
(enfermeiros ou enfermeiras), TecEnf (tcnicos ou tcnicas em Enfermagem), TerOcup
(terapeutas ocupacionais), EdFis (educadores ou educadoras fsicas), Nutr (nutricionistas),
VigSeg (vigilante e/ou segurana), ApAdm (apoio administrativo composto por
administradores e auxiliares administrativos) e SerGer (equipe da higienizao ou serventes
13
Nmeros dos documentos cadastrados no Sistema Nacional de Informaes sobre tica em Pesquisa envolvendo seres humanos SISNEP: CAAE - 0569.0.001.000-12 e CAAE - 0159.0.164.000-11.
31
gerais). J para os usurios de drogas atendidos nesses servios de sade utilizaremos
somente a designao de usurios. Esta escolha estratgica porque se refere tanto aos
usurios de drogas como aos demais usurios que utilizam o sistema de sade pblico,
deixando para analisar no captulo seguinte as nomenclaturas utilizadas pelos profissionais
para definir esses atendidos. Termos como dependente qumico, paciente, acolhido,
usurio de drogas, doente so modos de classificao que explicitam tambm a
compreenso e as concepes de quem os define, conforme ser analisado mais adiante.
Quando necessrio, ser utilizada somente a primeira letra dos nomes dos usurios atendidos
nos servios de sade, pois h uma rotao maior dessas pessoas nas instituies, fazendo
com que essa opo dificulte ainda mais a identificao dos mesmos. Ainda preciso dizer
que a identificao de gnero dos profissionais e dos usurios a partir do uso do artigo
definido singular o/a levar em considerao o sexo em questo, ou seja, a MedPsiq Nair
mulher e o L. homem, mas quando o artigo definido for referido no plural, considerar os
dois gnero indistintamente.
Como o objeto de pesquisa perpassa as estratgias empregadas no processo de trabalho
dos servios de sade de modo a compreender a constituio desses modelos, focou-se tanto
na observao participante quanto nas entrevistas com os profissionais dos servios de sade,
uma vez que interessa analisar, de maneira mais enftica, as propostas de atendimento aos
usurios. Durante as consultas individuais, atividades em grupo e momentos informais era
explicitada a minha condio de pesquisadora, de modo que eles tambm puderam autorizar
ou no atravs do consentimento verbal a observao/participao na consulta.
Assim, considera-se que os dados foram constitudos a partir uma relao
intersubjetiva com profissionais, usurios e familiares, sendo um dos instrumentos de
trabalho do antroplogo, como destaca Ruth Cardoso:
A relao intersubjetiva no um encontro de indivduos autnomos e auto-
suficientes. uma comunicao simblica que supe e repe processos
bsicos responsveis pela criao de significados e de grupos. neste
encontro entre pessoas que se estranham e que fazem um movimento de aproximao que se pode desvendar os problemas ocultos e explicitar as
relaes desconhecidas. (1986, p. 103)
Vale destacar que o processo de insero para participao nas atividades cotidianas
dos servios de sade abordados, apesar de autorizado pelos respectivos CEPs, era
constantemente negociado com os pesquisados. Lembramos assim, que as condies de
acesso s informaes sobre o funcionamento desses servios refletem as possibilidades e os
32
limites interpretativos explicitados na anlise qualitativa subsequente. Nesse sentido, nos
remetemos ao que diz Ruth Cardoso sobre o pesquisador: [ele] o mediador entre a anlise e
a produo da informao, no apenas como transmissor, por que no so fases sucessivas,
mas como elo necessrio (1986, p. 101). Podemos assim dizer que esta dissertao tambm
aponta para certa qualidade do encontro etnogrfico (OLIVEIRA, 1998) possibilitada pela
etnografia nos servios de sade, sendo esta uma especificidade do trabalho de campo que
ser destacada adiante.
3.1 Percurso metodolgico
Esta pesquisa antropolgica se valeu do mtodo etnogrfico aplicado ao contexto de
dois servios de sade vinculados a dois hospitais do Rio Grande do Sul.
Os servios foram escolhidos a partir das diferentes propostas de ateno aos usurios
de drogas, sendo que um deles tem embasamento em perspectivas biomdicas e o outro em
sade comunitria. Por isto, os mesmos foram designados a partir dos modelos de ateno
propostos: modelo de ateno com nfase hospitalar (MAEH) e modelo de ateno com
nfase psicossocial (MAEP).
As duas instituies hospitalares que respaldam as unidades pesquisadas so referncia
no atendimento sade mental e oferecem, alm da assistncia aos usurios, formao e
pesquisa aos profissionais de sade atravs de residncias, oficinas, cursos, seminrios e
palestras.
Do final de fevereiro de 2012 at o final de junho de 2012, realizei o trabalho de
campo nos servios de sade referentes ao modelo de ateno com nfase hospitalar, com
regularidade de uma vez por semana, acompanhando o cotidiano de trabalho dos meus
pesquisados durante, em mdia, seis horas por dia. A etnografia dessa instituio ficou
marcada por um processo de transio, uma vez que a unidade voltada para o atendimento dos
usurios de drogas, incluindo a internao e o ambulatrio, sofreu mudana na localizao
geogrfica, implicando em nova configurao de equipe e distinto processo de trabalho,
embora a concepo sobre os usurios tenha se mantido. Pode-se dizer que das dezessete idas
a campo, nove foram exclusivamente na nova unidade.
As duas unidades antes e depois da mudana estavam localizados em bairros
centrais da cidade, mas continuavam vinculadas estrutura do hospital. Tanto um espao
fsico como o outro apresentavam aquele branco hospitalar, os corredores asspticos e
alguns profissionais de jaleco circulando. Na internao, havia janelas grandes com grades e o
33
ambiente era silencioso; na sala de espera do ambulatrio usurios e familiares conversavam
enquanto aguardavam o atendimento, e nas salas de consulta havia uma maca, a mesa do
profissional, o computador para acessar o pronturio eletrnico, duas ou trs cadeiras e
aparatos de atendimento.
A observao ocorreu atravs da participao das discusses de casos - rounds,
reunies de equipe, tutoria, consulta individual, atividades em grupo, preceptoria, seminrios,
conversas informais, tanto no contexto da internao como no do ambulatrio. Nesse local, os
diferentes profissionais se reuniam pelo menos trs vezes por semana para discutir as
situaes dos internos, sendo que a conduo dos encontros era realizada por profissionais da
rea mdica; j no ambulatrio, a situao e os encaminhamentos aos usurios eram
direcionados a partir de tutorias dos psiquiatras durante a consulta. Os encontros eram
realizados em salas maiores no mesmo ambiente de atendimento dos usurios.
Para as entrevistas individuais semiestruturadas foram escolhidos doze profissionais:
quatro da Psiquiatria, dois da Psicologia, dois do Servio Social, um da Enfermagem, um da
Educao Fsica, um dos tcnicos em Enfermagem e um dos responsveis pela segurana do
local. A escolha desses profissionais estava de acordo com a configurao da equipe
ampliada, de modo que no havia necessariamente uma equivalncia matemtica, mas sim
equivalncia simblica, atravs da qual o modelo biomdico era preponderante na deciso
sobre a proposta de ateno aos usurios de drogas, conforme veremos adiante. Cabe enfatizar
que desde quando iniciei o trabalho de campo na antiga unidade, os novos profissionais
contratados/concursados de algumas especialidades para a nova unidade j estavam
observando e atuando no atendimento a usurios, de modo que somente um dos que eu
entrevistei j era vinculado instituio, e todos os demais eram novos ali, mas com alguma
experincia na rea.
J o meu ingresso nos servios de sade do modelo de ateno com nfase
psicossocial ocorreu do final de maro at o fim do ms de junho de 2012. Como na
instituio anterior, realizei o trabalho de campo uma vez por semana, durante em mdia seis
horas dirias, totalizando quatorze sadas a campo. Essa unidade de sade havia acabado de
passar de dois para trs turnos de atendimento e tambm de instalar seis leitos no mesmo
local, configurando uma ateno aos usurios de 24 horas. Alm da ampliao, havia uma
previso de mudana de local um terreno maior e com uma quadra de esportes que ainda
no tinha se efetivado. Mesmo assim, houve mudana na configurao de trabalho, de modo
que o que marcou essa etnografia foi justamente o processo de consolidao da ampliao do
atendimento.
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Essa unidade estava localizada em um bairro perifrico da cidade, e no to prxima
do hospital de origem. Como em uma casa, a garagem se configurava na sala de atendimento
aos usurios e familiares e o ptio no espao de convivncia e circulao dos profissionais. As
salas de atendimento contavam com uma mesa, cadeiras e um computador e as salas de
atividades em grupo contavam com vrias cadeiras dispostas em crculo. Apesar do porto
basculante, as portas do interior da instituio no eram fechadas chave.
A observao nessa unidade de sade ocorreu atravs das discusses de casos,
reunies de equipe, tutoria, consulta individual, atividades em grupo, preceptoria, seminrios
e conversas informais, tanto com quem estava nos leitos de acolhimento14
como no
atendimento ambulatorial. Havia uma reunio de equipe por semana, sendo conduzida pelos
profissionais de nvel superior; os demais encontros tinham regularidade quinzenal, e algumas
discusses de caso eram realizadas informalmente pelos profissionais do turno.
Para as entrevistas individuais semiestruturadas foram escolhidos dez profissionais:
dois da Psiquiatria, um da Psicologia, um do Servio Social, um da Enfermagem, um da
Terapia Ocupacional, dois tcnicos de Enfermagem, um responsvel pela segurana do local e
um profissional de servios gerais. Os profissionais foram escolhidos por corresponderem
configurao da equipe proposta pelo servio de sade em questo, de modo que essa equipe
era menor que a representante do outro modelo e no estava centrada no atendimento
biomdico.
O roteiro de entrevista com os profissionais das duas instituies concentrou-se nos
seguintes itens: caractersticas sociodemogrficas, experincia em trabalho com sade mental,
concepes sobre usurios de drogas, atendimento aos usurios de drogas e relao com a
rede de ateno sade mental. Ainda havia um item sobre diferenas entre o atendimento
psiquitrico em geral e, em particular, dos usurios de drogas, entretanto, como as duas
unidades de sade abordadas eram especializadas no atendimento a usurios de drogas, nem
todos os profissionais tinham experincia em instituies que atendiam separadamente esses
dois pblicos para considerar elementos contrastantes entre eles. De modo que, quando
realizada a pergunta desse item, houve uma tendncia de respostas considerando o
atendimento aos usurios de drogas como um atendimento psiquitrico, sem demarcar
14 So leitos nomeados dessa maneira pelos servios de modelo de ateno com nfase psicossocial em
referncia aos leitos de repouso com finalidade de desintoxicao, nos quais os usurios podem ficar alguns dias, se essa for uma deciso deles junto com os profissionais de sade.
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diferenas claras. Logo, as respostas a essa questo foram deixadas de lado na maioria das
entrevistas.
Chamou a ateno a transio das perguntas do item sobre as caractersticas
sociodemogrficas para trabalho com sade mental, que solicitava aos pesquisados
informaes pessoais sobre o interesse na rea da sade mental at o trabalho atual naquela
instituio. Esta questo foi chave tanto para iniciar a entrevista a partir da trajetria
profissional entremeada histria de vida dos profissionais, fazendo com que os mesmos
procurassem em suas memrias as vinculaes pessoais ao tema que os levaram at ali
sendo mais um momento de elo entre o pesquisador e o pesquisado , como para
contextualizar, atravs das diferentes aprendizagens e atuaes dos profissionais, as respostas
em relao s concepes sobre os usurios de drogas. Conforme explicitado no trecho
transcrito de dirio de campo abaixo:
Dessa maneira que comeou a nossa entrevista, com um grau de intimidade
de quem vai confidenciar para o outro. Comeamos com bloco
sociodemogrfico, e nesse momento que vem a trajetria profissional dela ficando evidente a viagem no tempo que a enfermeira faz para me esclarecer seus trabalhos anteriores. Em um segundo momento, ela me disse
que no tem muitas experincias pessoais que a levaram para a sade mental,
mas depois as lembranas vo vindo tona, e ela vai citando uma srie de parentes que tiveram relao com drogas ou com quadro de doena
psiquitrica, fazendo com que ela mesma perceba nisso o seu envolvimento
com a temtica. Esta enfermeira tambm algum que mergulha no que diz, que conta com teso, que parece estar contente de se pensar, de falar de si.
Eu tento deix-la vontade, mas ainda s vezes atropelo sem querer, ou
mudo de um assunto para o outro abruptamente, quando poderia aproveitar para aprofundar algumas questes. Eu fico preocupada em seguir o
questionrio, mas vejo que no ser possvel, pois no meio para o final vou
ficando bem cansada e aquela parede amarelinha clara [da sala de consulta]
do hospital atrs dela me deixa tonta. (Dirio de campo, 30 de maio de 2012)
Dessa maneira, ainda que a dissertao no preveja um captulo especfico sobre o
interesse pessoal na rea da sade mental e a trajetria de trabalho do profissional, esse
material fez parte da anlise e contribuiu para a qualidade dos dados. Levar em considerao
os jogos da memria (ECKERT; ROCHA, 2000) acionados pelos entrevistados tambm
significa aproximar-se das trocas sociais e simblicas que constituram e constituem os
discursos e as prticas dos mesmos no atendimento de sade. As lembranas atualizam a
convivncia com memrias sociais, individuais e coletivas que so negociadas, processadas e
rearranjadas no discurso, e no apenas colocam em evidncia pontos vividos no passado de
forma nostlgica, assim como quem entrevista tambm direciona e intervm nesse rearranjo.
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preciso enfatizar que as entrevistas individuais com os vinte e dois profissionais
foram marcadas e realizadas nas ltimas idas a campo nos dois locais, de modo que, na
maioria dos casos, este foi o meu ltimo contato com eles. Todos quiseram ser entrevistados
na prpria instituio de trabalho, sendo que a maioria concedeu a entrevista em salas de
atendimento. Os dois representantes da rea de segurana das unidades deram a entrevista em
seus postos de trabalho, assim como o representante dos servios gerais. Um mdico
psiquiatra quis ser entrevistado na antessala do quarto do planto mdico e outros dois
mdicos concederam a entrevista em suas salas de pesquisa. O restaurante de uma das
instituies tambm foi o local escolhido por uma tcnica de enfermagem e uma mdica
psiquiatra. Somente dois dos pesquisados um assistente social e um psiquiatra pediram
que a transcrio da entrevista gravada fosse enviada para eles por e-mail para avaliao.
Entretanto, no houve retorno sobre a impossibilidade de uso das informaes. As entrevistas
duraram em mdia trinta minutos.
As observaes participantes foram sistemticas durante os turnos, acompanhando as
atuaes dos profissionais, de modo que atravs da aprovao do CEPs foi dado a mim livre
acesso aos corredores das duas instituies.
Na instituio do modelo de ateno com nfase hospitalar havia um carto com
minha foto, nome, matrcula, validade e descrio de pesquisadora psiq que me identificava
e autorizava a entrar e sair do local; e quando eu no estava com o carto, os seguranas da
portaria vinham me questionar. Contudo, l dentro, como os profissionais de ensino superior e
de ensino mdio da unidade utilizam jalecos ou uniforme e a mim no foi pedido a utilizao
desse traje, minha condio de estrangeira era identificada rapidamente pelos profissionais,
usurios e familiares de usurios. Assim, uma das estratgias utilizadas para acessar a
internao que chaveada era acompanhar os profissionais, ou quando estava sozinha,
esclarecer constantemente para os auxiliares administrativos que tambm portavam a chave e
ficavam prximos da porta, o que eu faria ali. O setor ambulatorial era mais acessvel, depois
de ingressar na instituio, uma vez que j havia ocorrido uma identificao formal no porto
da unidade. Todavia, para participar dos atendimentos eu pedia autorizao aos profissionais
que coordenariam a atividade em grupo ou realizariam o atendimento do usurio e/ou
familiares.
J na instituio do modelo de ateno com nfase psicossocial, fui alertada pela
assistente social que me apresentou as dependncias do local para no usar nenhuma
identificao formal como crach ou jaleco , pois ali se queria imprimir uma ideia mais de
casa do que de servio de sade, deixando menos explcito quem era profissional e quem
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era usurio. Entretanto, apesar de os profissionais de ensino superior no utilizarem essa
identificao, os tcnicos de enfermagem utilizavam jalecos e os representantes da segurana
e dos servios gerais usavam uniformes. Na fachada da unidade no havia identificao da
unidade de sade e os motivos dados pela assistente social para essa conformao eram de
que: como ali era um servio para atendimento de usurios de drogas, se o local