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performatus.net 1 Inhumas, ano 3, n. 14, jan. 2015 ISSN 2316-8102 (DES)MONTAGENS DO CORPO: COLECIONANDO REVERSOS POR DETRÁS DO ESPELHO André Rosa Priscilla Davanzo, Coleção . Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Março de 2015. Fotografia de José Caldeira/ Teatro Municipal Rivoli

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Inhumas, ano 3, n. 14, jan. 2015

ISSN 2316-8102

(DES)MONTAGENS DO CORPO: COLECIONANDO

REVERSOS POR DETRÁS DO ESPELHO

André Rosa

Priscilla Davanzo, Coleção. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Março de 2015.

Fotografia de José Caldeira/ Teatro Municipal Rivoli

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Tales Frey (Cia. Excessos), Reverso. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Março

de 2015. Fotografia de José Caldeira/ Teatro Municipal Rivoli

Desaprovando plenamente os métodos tradicionais de organizar o conhecimento e a experiência humana, a geografia do monstro é um

território ameaçador e, portanto, um espaço cultural sempre contestado. (COHEN: 2000, p. 32)

Lanço-me, nesta escrita, com o desafio de pensar em uma totalidade

vivida de corpo e numa corporalidade que busca descrever e inscrever os

interstícios entre uma arte e uma filosofia do corpo encarnado em performance.

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Escrever com a performance torna-se um trabalho intenso e, ao mesmo tempo,

instigante, pelas fissuras que, ao longo desses pontinhos pretos, uma

concepção de corpo (trans)ficcionado nos artefatos artísticos – Coleção, de

Priscilla Davanzo e Reverso, de Tales Frey – geram formulações para um corpo

desmedido e seus agenciamentos na percepção do mundo e das coisas.

Interessa-me, aqui, as relações desses construtos performativos, numa possível

desmontagem do corpo, por meio dos trânsitos entre corpos e objetos e de um

reposicionamento dos poderes desconhecidos do corpo em performance: o ato

de suturar e o ato de deformar histórias como experiências de totalidade de um

corpo monstruoso. A arte como ato de resistência, desvinculada da comunicação

e da representação funcional do sujeito no mundo, torna-se espaço de vínculos e

potências que subvertem as epistemologias hegemônicas de controle e

apagamento do próprio corpo.

Os objetos na arte não são distintivos de identidades e de linguagens

fixas, mas enunciam circuitos de questões e substâncias secretas que

“sangram” na experiência estética, enquanto materialidades de uma percepção

da realidade, dada pelo como o corpo franqueia as percepções. Então, o que

aprendemos ou apreendemos do acontecimento estético? Um artefato artístico

como acontecimento remete-nos, imediatamente, a pensar no transitório, no

efêmero e no liminar que o próprio construto convoca, impossibilitando separar

as coisas do seu modo de aparecimento. Ao decorrer do processo de

sistematização do pensamento ocidental, com prioridade para uma estrutura

racional objetiva, definimos as coisas e não as percebemos como se apresentam

no mundo. O ato de definir algo se relaciona com o enquadramento das funções,

enumerando suas propriedades, especificidades e difere totalmente da operação

de fruição. Ao solicitar do corpo uma reconfiguração da experiência do estético

no acontecimento e uma (trans)contextualização, a fruição não dissocia as

análises das experiências, residindo nos entrecruzamentos; outras maneiras de

proceder ao corpo vivido. Ou ainda nos leva a pensar a análise e a escrita através

da desaparição da experiência e nos rastros que convocam percepções do

mundo. Merleau-Ponty percebe, na obra de Cézanne, que o artista se torna

presença na obra, na medida em que, ao pintar uma paisagem, uma parte dele

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já está nela, no envolvimento e na incorporação do corpo à experiência da

própria paisagem. Mas me instiga pensar também o pós-acontecimento, a pós-

experiência, em outros pontos de vista da análise e da descrição, palavra um

tanto arbitrária para a percepção, para dar conta de tudo o que o meu corpo

vivido ainda rearticula e reverbera no desaparecimento da experiência, como

uma ontologia da ausência que procura (re)encenar o corpo encarnado, agora

como escrita. Por isso, talvez, seja uma escrita rebolativa, nas minhas tentativas

de vivenciar a experiência de uma filosofia da percepção na fruição estética

dessas performances. E, ao descrever a experiência do corpo vivido, já não é mais

a experiência do corpo vivido que está em jogo mas sim outra, que ao escrever e

inscrever contagia-se com rastros e mesclas de muitas experiências, que

transitam pelo meu corpo. Assim, esta escrita em performance não é mera

descrição do acontecimento, mas experiências do meu corpo em potência.

Para isso, proponho uma reflexão sobre um corpo e um modelo de

corporalidade que só aparece na totalidade vivida, por meio da distinção entre

corpo desmedido e corpo objetivo, na medida em que o envolvimento torna-se

fundante para que o corpo tome conta do mundo e o mundo seja corpo, numa

perspectiva encarnada e não geométrica do conhecimento. A Fenomenologia,

como uma possível filosofia do corpo, percorre os seus poderes desconhecidos

que, apesar de mim, enquanto pensamento do que me acontece como corpo,

sempre sou corpo que faz de mim mundo e coisas. A arte reivindica seu espaço

de conhecimento do mundo e das coisas pelo seu próprio corpo, “na paisagem

que pensa em mim e eu sou a sua consciência” (MERLEAU-PONTY: 1948, p. 20).

Ao germinar, enquanto corpo e mundo que se enunciam e anunciam na própria

paisagem, o olhar do artista está nela e, concomitante, ela nasce no seu olhar.

Mas antes de trilhar as filigranas desses corpos em performance, faz-me

fundante problematizar a ideia de desmontagem solicitada nesta escrita. Termo

este utilizado em diversos contextos, mas um em especial que o torna

multivocal, dentro das políticas e vivências queer, onde as próteses atuam não

apenas como performatividade dos corpos, mas como o próprio corpo, desviante

e não incorporado pela produção da norma, produzindo uma imagem desviada,

excessiva, uma citação subversiva, tradução hiperbólica, revelando os

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mecanismos de produção do que é aceitável enquanto sexo e corpo. Nas

produções artísticas, propicia um dispositivo estético que coloca em discussão e

inverte as regulações entre cópia e original, que emanam e jorram numa

glamourização de recortes, montagens, colagens, contestações das estéticas

dominantes. A desmontagem do corpo proposta aqui, permeado pelas suturas e

deformações, deflagra um corpo repleto de fissuras, inacabado, aberto e

franqueando espaços de constituição através dos vínculos e das redes que se

instauram como conhecimento na vivência deste corpo no mundo e do mundo

como corpo. O corpo se constitui como tal na sua relação contínua entre o que é

ser mundo e corpo, na medida em que ser corpo é ser infectado/contaminado

pelo mundo. Desmontar um corpo não se relaciona com as partes que o integra;

se assim o fizesse, sublinharia os mesmos procedimentos e mecanismos

realizados na dissecação, que mostram e denotam as especificidades, na

exortação e execução de um corpo funcional e asséptico ao mundo e às coisas,

caracterizado por um pensamento hegemônico de corpo objetivo. Desmontar o

corpo traz à cena os avessos, os excessos, o escancarar das dobras do corpo,

tornando-o todo envolvimento. Abrir as pregas do corpo. Um corpo desmontado,

um corpo contaminado pelos laços que o faz corpo no mundo.

No existe un método para los desmontajes, no es posible fijarlos en un esquema que osifique el cuerpo vivo de la escena. Cada creador elige las estrategias desde las cuales acceder o regresar a ese encuentro reflexivo y a la vez artístico con su propio material. A través de diversas experiencias, los desmontajes han integrado el discurso pedagógico, las demonstraciones verbalizadas, las explicaciones teóricas, y también se han materializado como desensamblares visuales y conceptuales. (DIÉGUES: 2010, p. 145)

Então, numa articulação conceitual, numa coreorgia de corpos

desmontados, reenceno percepções e vivências dessas duas performances com

algumas pitadas teórico-práticas provocativas. Lançar-me ao emaranhado dos

conceitos faz parte da brincadeira de se conhecer os investimentos culturais e

sociais e constitui-se em uma abordagem com intenção de compreender como

eles navegam e tran(s)itam nos interstícios de uma experiência de totalidade de

corpo. Em vez de negar o caráter ficcional desta escrita, trato de brincar aos

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ventos com os conceitos, como numa orgia, em uma bacanal, onde os corpos

perdem seus contornos e suas materialidades se rarefazem, rompendo uma

lógica racionalista de causa/efeito, binarismos que comportam modelos de

classificação, hierarquizando corpos, pessoas, povos, cosmologias...

Em Coleção, Priscilla recolhe objetos de pessoas nas ruas e, ao recontar a

história do encontro com cada objeto, fricciona o tempo e o espaço, costurando

em seu próprio corpo cada objeto, num processo de transmutação da relação e

presentificação objeto/corpo, e elabora as narrativas que a constitui no

compartilhar mundos com o seu corpo. Já em Reverso, Tales tem a nudez de seu

corpo sobre um espelho, onde o reflexo é revertido e projetado, deformando os

contornos com o mundo e recriando dimensões dissonantes e distorcidas de sua

materialidade, ao som/ruído da história de sua vida contada por sua mãe, numa

cronogênese às avessas da sua existência enquanto corpo no mundo.

O que seus urros nos prometem, articulando-se com os nomes de existência, de carne, de vida, de teatro, de crueldade, é, antes da loucura e da obra, o sentido de uma arte que não dá ocasião para obras, a existência de um artista que não é mais a via ou a experiência que dão acesso a outra coisa além delas próprias, de uma palavra que é corpo... (DERRIDA: 1994, p. 115)

Corpos que transbordam e explodem a dicotomia sujeito/objeto por

justamente pensar o corpo como uma totalidade encarnada da experiência em

performance. Merleau-Ponty dizia que Cézanne, ao pintar, era a paisagem. Da

mesma maneira, Priscilla se metamorfoseia em todas as histórias, afetos,

encontros com cada pessoa que lhe oferta algo. Este algo ofertado, não é

meramente um objeto, já que esteve no outro enquanto mundo e corpo e agora

está nela, construindo corporalidades estéticas diferenciadas do fazer corpo no

mundo e nas coisas. Aqui se autoapresenta o primeiro poder do corpo, a sua

capacidade em não reconhecer objetos. O corpo tem o poder de negar a

separação objetiva que orientou toda a ciência moderna e filosofia secular para

um conhecimento corporal que se organiza do maior para o menor, sendo que,

mesmo no mais ínfimo, a ideia totalitária de corpo absoluto ainda está

presente. Essa visão objetiva da vida coloca-nos o imperativo que nos diz que

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para se conhecer o objeto é necessário a produção de um conhecimento que

coloca o sujeito em face do mundo. Desejar conhecer o objeto já constitui, em si

mesmo, a falha e o abandono do próprio poder do corpo que se dá pelo contato,

pela contaminação do objeto com o corpo que irradia a possibilidade de

conhecê-lo. Temos um olhar vigiado e direcionado por uma ideia de mundo

estável, fixo, completamente autocentrado e regulado pelo próprio conceito e

atuação da dissociação, defendida por uma segurança ontológica de ser sujeito

independente e livre do mundo. Essa independência de ser sujeito alicerçada

pelo culto de uma subjetividade calcada na individualização, faz com que

Natureza e Cultura se mantenham em posições opostas, proporcionando um

fetiche do olhar as coisas sempre lá, fixas e determinadas. Quando eu enquanto

corpo não me relaciono mais com objetos e sou capaz de percebê-los nessa rede

de interações, as seguranças explodem e abrem espaços para outros

agenciamentos desejantes de ser corpo e conhecimento no mundo.

Ao eliminar todo e qualquer véu e toda e qualquer mediação, o ato encarnado deve assinar o corpo, assinalando ao sujeito a sua tomada de corpo [...] A diferença entre a arte corporal e o sujeito encarnado tende a desaparecer, se sairmos da representação estética para nos embrenharmos numa arte de existir. (ANDRIEU: 2004, p. 30)

Mas perceber que o corpo franqueia espaços com outros corpos, mundo e coisas,

e que o corpo já reconhece, em laços e vínculos, sua estranha e surpreendente

capacidade de estar nas coisas, e elas nele, sem mesmo ainda tê-lo elaborado

como pensamento, aflora do corpo e do conhecimento uma experiência que não

nega e desloca um eu de outros corpos: os atos de suturar e de deformar como

incorporações de um corpo envolvido nas coisas, pelas contaminações e

posições desse corpo em performance no mundo. Estou ligado às coisas desde o

início pelo corpo que não vê objetos e me dá acesso ao mundo e, ter acesso, é a

ligação com o mundo, onde, por sua vez, tenho corpo.

O mundo aparece como ele é no aparecimento do corpo. Então, por que

se relacionar com as coisas no mundo, por uma ação de sobrevoo? Um sujeito de

sobrevoo é aquele pautado pela ideia da integralidade, e ele baliza todos os seus

conhecimentos nessa idealização. A suspensão dessa idealização de ver o

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mundo possibilita que eu possa viver qualquer coisa e ela em mim, enquanto

corpo que irradia os sentidos das coisas, numa descentralização e radical

possibilidade de conhecer porque sou corpo. Os dois performers, Priscilla e Tales,

reivindicam o corpo como espaço de conhecimento do meio de seus corpos, que

emanam uma percepção de vida e potência que ultrapassa um realismo

científico e subjuga todo o conhecimento através de um esquema binário da

vida. Priscilla inscreve histórias e experimenta relações com a sua própria

história, constituindo um diário com o seu corpo, fazendo com que,

simultaneamente, signifique a sua existência no espaço, sem o deslocamento

no tempo, ao “externalizar” a sua história na necessidade de viabilizar outros

corpos. É um viver no espaço sem a dependência de uma cronologia, da mesma

maneira que Tales evoca a consumação de um sujeito pelo seu corpo, não para

renascer, mas para ser no próprio ato de percepção de si e da sua imagem,

negociando um pacto entre o meu e o seu corpo, com o que nos envolve, apesar

de nós mesmos, para mostrar em pequenos gestos, que deformam a imagem

idealizada de um corpo, que é impossível limitá-lo ao fechamento com o

externo. A relação privado e público instaurada em todas as estruturas sociais

refere-se a um corpo como construto cultural e político consubstanciado pelas

ingerências e articulações de um capital associado ao patriarcado e ao

colonialismo marcam fronteiras e cortes precisos nas máquinas desejantes do

socius, forjando uma normalidade de corpo aceitável e palatável a partir de uma

noção de anormalidade, monstruosidade e diferença que dão, ao mesmo tempo,

limite, advertência e fascínio para a existência, consolidação e manutenção de

um corpo biopolítico.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. (FOUCAULT: 1989, p. 82)

Uma desidentificação do ser sujeito independente do mundo e das coisas

corresponde a uma teoria que não se funda por legitimar o reconhecimento de

subjetividades, pelo risco epistemo-político da própria condição em que o ato de

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reconhecer o Outro se configura, marcado pelos contingentes de um capital

digital e virtual. Acreditando em um modelo de reconhecimento baseado numa

troca não comercial de dons, como capacidade de devolver ao outro o que ele é,

sem pedir nada em troca, o ato de reconhecer se coaduna com as memórias e as

identidades do corpo, perfazendo novos agrupamentos de apresentações de

uma subjetividade que não se caracteriza pelo fechamento da interioridade que

fomenta e articula noções perversas e vigiadas de corpo, mas por uma abertura e

desobediência epistêmica, ao que Walter Mignolo nos convoca quando afirma

que toda a concepção ideológica da existência de um centro e de uma periferia

pautou a edificação de um corpo racializado e sexualizado.

Nessa classificação, assegura-se que os direitos existam para alguns

corpos e que, ao agenciar conceitos, legislam, articulam e submetam a uma

produção epistemológica hegemônica, através de uma “sobrevalorização da

unidade do corpo como lugar identificável do sujeito, superfície inalienável e

material indisponível” à crise (ANDRIEU: 2004 p. 21). Forjou-se, com isso, uma

identidade fixa, permitida e permissiva de corpo, em que os diretos recaem em

um corpo privado e universal, e sua interioridade, protegida pelo familiarismo,

possa viver em dissonância com o corpo social.

A dicotomia entre corpo individual e social causa um interdito na

construção subjetiva de corpo pela ausência de identificação do sujeito com as

máquinas desejantes investidas socialmente. O corpo como lugar garantido e

assegurado do sujeito encerra-se em si próprio, como se tudo o mais fosse

exterioridade e periferia de um corpo que é centro do mundo. Alienação social

que incorpora as normas na construção de um corpo, pelo capitalismo cyber

informacional, através de uma incessante reiteração das (pseudo)liberdades do

sujeito, pelas premissas do “bem-estar social” e “bem-comum”, enquanto a

colonialidade do poder, saber e ser, conformada por um festejo global das

informações, camufla, nas ideias de hibridismo e multiculturalismo, a

manutenção requerida pelas classificações e trocas monetárias, sexuais, raciais,

religiosas, de Nação etc., que determinam quais são os corpos que transitarão

ou desaparecerão nessas economias desejantes.

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Como mestiza, eu não tenho país, minha terra natal me despejou; no entanto, todos os países são meus porque eu sou a irmã ou a amante em potencial de todas as mulheres. (Como lésbica não tenho raça, meu próprio povo me rejeita; mas sou de todas as raças porque a queer em mim existe em todas as raças.). Sou sem cultura porque, como uma feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas de origem masculina dos indo-hispânicos e anglos; entretanto, tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados. (ANZALDUÁ: 2007, p. 707)

Assim, o corpo nu de Tales põe em cena o ser sujeito, nas diferenças que

a nudez nos convoca, por uma política cultural, onde ser sujeito está

intrinsecamente relacionado ao interdito da nudez. Interdito este que provoca

uma transgressão, por não dissociar Natureza de Cultura. A nudez em

Reverso investe o corpo no desmedido espaço da sua ontologia enquanto ser,

para (re)desenhar, rabiscar e rasurar a cada pequeno e sutil movimento do

performer, o quão disforme se constitui a nossa própria existência, o poder de

conhecer e irradiar a nossa percepção mutante de mundo, enquanto nos

fazemos corpo no próprio mundo. Coleção, por sua vez, utiliza de uma

biotecnologia da sutura, corpo como modo e lugar de inscrição, onde a

experimentação e a participação do seu próprio corpo tornado espaço coletivo de

inscrição, nos faz pensar em um conhecimento que se coloca em situações de

risco com o corpo. No que consistem esses riscos? Ao injetar e alinhavar cada

relação mundo/objetos com seu corpo, o rasgo da agulha na pele mobiliza uma

abertura total dos poros para as políticas que conformam o sujeito em

biotecnologias de apropriações e transformações corporais, desterritorialidades

do corpo no espaço público, de uma desidentificação do ser universal para uma

apresentação das monstruosidades, das dissidentes e múltiplas formas de

existir enquanto corpo no mundo e nas coisas. É necessário contrapor a

normalização por uma agenda política de identidades, quando apagam as

diferenças e promovem sua higienização, na produção de um corpo normal. Os

agenciamentos percorridos por Tales e Priscilla escapam à normalidade. Pelos

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corpos desviantes, dissonantes, deformados e, por serem assim, monstruosos,

colocam em discussão e fazem explodir as políticas de representação, de

produção e de saberes que ainda se fazem no empoderamento dos discursos em

prol de uma política igualitária e representativa de corpo.

Se o corpo social pretende, através de suas políticas de saúde e tecnologias científicas, dar uma ordem de prisão, o indivíduo encontra, através da perfuração de si próprio, as dobras necessárias para encarnar o seu ser [...] Também, através dessas práticas que nos parecem “anormais”, se indica simultaneamente um limite e uma possibilidade de ser diretamente o seu corpo, dando-lhe a matéria e a maneira pretendidas pelo sujeito. (ANDRIEU: 2004, p. 32-35)

E assim outro poder desconhecido do corpo se revela, o de não se

perceber como sujeito de sobrevoo, como corpo fantasma, massa translúcida

que atravessa as coisas sem ser tocado e transformado. Cada objeto que

Priscilla arremessa em seu corpo adere à sua pele, não somente como veste, que

reveste a epiderme, mas como aquilo que transveste na sua corporalidade, em

um reverso de histórias que sibilam na ponta da agulha o espaço de inscrição,

como constante redefinição de uma subjetividade enquanto corpo. As histórias,

a agulha, a linha, os objetos não se tornam meros adereços, mas são corpos

infectados pelo mundo e pelas coisas, mesmo antes de tê-los costurado em si,

numa transmutação contínua de ser corpo e mundo. Esse ato de desmontar o

corpo, abrindo fendas, escancarando as pregas e vertendo fluxos, estabelece um

possível encontro entre uma filosofia e uma arte do corpo desmedido, de um

corpo que não existe sem estar no mundo e ser corpo, justamente por se fazer

no meio das coisas, e, ao fazê-lo assim, nas filigranas da existência, ainda se

percebe corpo. Um corpo que se pensa do menor para o maior e que transborda

em nós, numa experiência total de fazer o mundo corpo. A deformação da

imagem de corpo se constitui no poder do próprio corpo em reconfigurar, a todo

o momento, as proporções que o definem como corpo e as dimensões

estabelecidas como entidade fantasmagórica de uma pretensa fixidez de corpo.

O excesso, a deformidade, não flutua. Ela não atravessa o corpo, ela o incorpora

e o envolve, e denuncia um inacabamento, que não se percebe como tal pela

herança epistemológica que determina as estruturas normativas de corpo

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estável, negando qualquer traço de dor, de degeneração, de secreções e de

disformias.

O corpo que Tales deforma é o corpo trans-nascido. Um corpo que, ao

nascer de novo e de novo e de novo, a cada performance compartilhada,

(re)conhece a vida, pela sua experiência de totalidade com esse mundo, seja

através do simples e contundente ato de respirar pela primeira vez ou do olhar

que se lança às coisas. O corpo já está no ar que respira, da mesma maneira que

o olhar de Tales está no espelho, fazendo com que ele seja corpo nas coisas e as

coisas lhe constituem como corpo. Ao olhar para si mesmo no espelho, longe de

um narcisismo reducionista, Tales percebe a própria imagem, porque seu olhar já

está na paisagem de si mesmo, e olhar para si é um ato de plena exterioridade

de sua corporalidade encarnada. A encarnação é o vivido existencial do sujeito

que se revolve no seu corpo. A nudez exposta ritualiza seu processo de

descoberta no mundo, pela exibição de um corpo com defeitos, que se renova no

prazer contínuo do despido, do desvelado. A imagem do ato difere do próprio ato

pelo voyeurismo implícito nessa relação, em que o ato redimensiona a sua

condição de poder perfurar o próprio corpo como matéria enquanto a imagem

projetada reorganiza novas sensibilidades e visibilidades de corpos

monstruosos.

Nas duas performances, a narração de histórias produz uma ficção do

tempo cronológico social, seja pela necessidade de reencenar pelo corpo do

performer as ações do tempo no espaço do próprio corpo, como também pelo

dinamismo com que cada narrativa ou história vivencia um envolvimento nele

mesmo. As histórias dos encontros, das fendas, dos laços e do entre

Priscilla/objetos/pessoas/mundo, também reverberam nas falas distorcidas da

mãe/imagem/filho/mundo propostas por Tales. O poder de percepção do corpo

é a única possibilidade que se apresenta como prevenção de uma ilusão

totalitária de mundo quando objetivo percebê-lo de fora, retirando meu corpo do

mundo e sobrevoando as relações e a vida. Se o corpo é o meu poder de

participação ativamente no próprio aparecer do mundo, então, em Coleção,

Priscilla germina nos poros que sangram da pele rasgada o seu

aparecer/inscrição de mundo ao envolver-se no desaparecimento do corpo de

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cada objeto. E Tales, em Reverso, germina pelas dobras e limites borrados da

sua paisagem de mundo encarnada no aparecimento do poder de um corpo

disforme. Não precisam de significados para seus signos, já que os corpos em

performance os explodem na sua capacidade de ser corpo que incorpora e diz, no

envolvimento com o mundo: sou o que vivo e não o que represento. O corpo não

dá voz. O corpo é voz! Não necessita de tradução e legendas.

Então, como acolher a realidade fictícia, não impor os mesmos esquemas

fixos, oriundos de modelos científicos de mundo, para deixar ser corpo em

potencialidades? Pensando em uma filosofia e arte que celebram as disrupturas

e os contrafluxos dos investimentos sociais, políticos e culturais, na capacidade

cambiante do corpo de (trans)incorporação, estendendo as lentes do corpo ao

corpo vivido em totalidade. Um corpo se faz aparecer no mundo pela sua

motricidade, pela sua capacidade de estar como corpo no mundo e nas coisas.

Assim, um terceiro poder do corpo oferece-nos um processo de promiscuidade,

uma orgia de corpos que se tornam corpos nas coisas. Mais do que um simples

deslocamento, o corpo tem o poder de pertencer ao mundo sem provocar

movimento ou mudança no espaço. A força dessa corporalidade reside nela

mesma, na medida em que dar sentido está ligado ao ato de existir, pois já sou

corpo. E ao dar sentido às coisas reelaboro uma existência coletiva e

micropolítica como corpo social que reivindica nas suas ações experiências de

percepção. Aquém de uma deslocação, o corpo constrói percursos inimagináveis,

trava relações surpreendentes na sua própria motricidade como ato de

(re)conhecer-se mundo. E se na motricidade do corpo o mundo aparece, então o

que é do movimento do corpo? O poder de intensidades. Assim, Tales e Priscilla

provocam, pela repetição de ações contínuas e, ao mesmo tempo, disjuntivas no

conjunto que enunciam, a ideia de um corpo que percorre e não se limita ao

espaço objetivo de transmissão entre estímulos e respostas. Tanto o corpo de

Tales como o de Priscilla são formas de participação local dos estímulos, na

medida em que tangenciam desejos, vontades, necessidades dos seus corpos de

evocarem seus poderes de (trans)ficção escancarados, e são formas de

participação global pela prerrogativa cultural e política do corpo em

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performance, pela qual se constrói outras desterritorialidades de corpos

dissidentes.

A performance e os estudos da performance nos permite olhar para todas as coisas como se constituindo mutuamente, de maneira que não dá para pensar sobre comportamento e práticas corporais sem pensar sobre performances disciplinares – como construímos gênero, como construímos raça, e como somos construídos como corpos – mas ao mesmo tempo há um aspecto verdadeiro e maravilhosamente libertador e contestatório, porque podemos performar de maneiras diferentes; a performance refere-se a uma ação, a uma intervenção, a uma quebra estrutural e a uma busca de novas alternativas. (TAYLOR: 2002-2013)

Quando Priscilla interrompe a performance, não se encerra, neste ato, a

sua forma de participação. Dessa imagem momentânea, fugaz e excessiva, um

devir corpo em potência está transitando mundos, pessoas e coisas. E mesmo

quando reencontramos Priscilla, após o acontecimento, as marcas deixadas na

sua carne percorrem caminhos e expõem nossa frágil subjetividade

enclausurada, e somos arremessados no mundo e nas coisas, da mesma forma

com que a agulha percorre o corpo e trilha poder e conhecimento entre os corpos

da performer e dos espectadores. São formas de participação no mundo em

formas de ser do corpo, que derretem como o corpo de Tales ao apagar,

vagarosamente, da luz. Sombras, luzes, a imagem que a retina ainda tenta

manter dos contornos do corpo, cedidos e confundidos, como em um ultrassom

espacial, onde corpo e mundo germinam juntos, e, ao ser, não há como

diferenciar corpo/feto de mundo/feto. Mas o pensamento teima em sedimentar

as linhas fronteiriças do corpo. Não dá. Ao apagar da imagem identificável de

corpo, Tales nos convida a “fazer ver como o mundo nos toca” (MERLEAU-

PONTY: 1948, p. 23).

Enfim, propor uma escrita/descrição coreórgica e performativa nos

entrecruzamentos de uma abordagem e possibilidade de fazer-se corpo

encarnado na sua totalidade vivida, propicia pensar o artefato artístico, nas

performances Reverso e Coleção, como ato de resistência. Deleuze nos convida,

pelos seus domínios e arranjos, a ultrapassar a negociação pactual da criação em

arte para além das fronteiras da representação informacional, e convergê-la nas

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intersecções a sua viabilidade e potência. Merleau-Ponty evoca a capacidade do

artista de (re)encenar os hábitos do corpo e sugere que, ao fazê-lo, conhece-se

através do mundo. Assim, os artefatos artísticos são um nó de auto-

apresentações vivas e vividas, “fazendo do interior do mundo o exterior do

corpo”. (MERLEAU-PONTY: 1948, p. 25)

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TAYLOR, Diana. Entrevista no livro digital What is the performance

studies? Disponível em: <http://scalar.usc.edu/nehvectors/wips/table-of-

contents-por>.

André Rosa _ Bolsista CAPES-Brasil. Doutoramento em Estudos

Artísticos – Teatrais e Performativos, da Universidade de Coimbra.

Ator/Performer/Encenador e Educador em Arte no Movimento Sem Pregas.

PARA CITAR ESTE ARTIGO

ROSA, André. “(Des)Montagens do Corpo: Colecionando

Reversos por Detrás do Espelho”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 3, n. 14, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor