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DESVENDANDO OS MANTRAS: UM MERGULHO NA HISTÓRIA DA ÍNDIA E SUA RELAÇÃO COM O KAMA SUTRA ANDRÉ LUIZ PORTANOVA LABORDE* RESUMO O presente artigo tem o objetivo de investigar qual o papel da religião para a formação da sociedade indiana. Nesse sentido, encaminha a discussão sobre o contexto histórico e sua ligação com o sagrado, como forma de salvaguardar a discussão acerca do simbolismo que permeia o Kama Sutra. Nessa análise, discorremos sobre esse processo de construção em torno da religião, como forma de balizar a representação histórica que verifica a investigação entre hinduísmo, budismo e tantrismo como formas de legitimar a sedimentação do Kama Sutra enquanto literatura. PALAVRAS-CHAVE: História, Índia, metafísica, religião, representação e signo. 1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS Para nós, ocidentais, a história da Índia ainda se mostra por detrás de um tênue véu que aos poucos se revela pelos novos investimentos historiográficos. A civilização indiana nasceu em um contexto marcado por invasões, num constante renascer de identidades que marcam e caracterizam a população hindu. Está imbricada também na história da Índia uma relação bastante profunda entre religião e filosofia, que corresponde a uma lógica bastante diversa e distante para nós, ocidentais, entretanto se apresenta também de forma sedutora. Acontece na civilização indiana, ou melhor, no modo de pensar oriental, a emergência de uma metafísica que tem por finalidade explicar essa mística em que está imbuída toda a história da Índia. Na realidade essa magia faz parte de toda a construção do pensamento indiano, e é o que o torna tão fascinante para a investigação científica. O objetivo sublinhado neste momento é tentar identificar como essa complexa civilização se desenvolveu, percebendo o seu contexto histórico e constatando também quais são as suas mediações com o * Licenciado em História; Mestrando em Educação Ambiental – FURG Biblos, Rio Grande, 19: 25-41, 2006 25

DESVENDANDO OS MANTRAS: UM MERGULHO NA HISTÓRIA DA ÍNDIA E SUA RELAÇÃO COM O KAMA SUTRA

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O presente artigo tem o objetivo de investigar qual o papel da religião para a formação da sociedade indiana. Nesse sentido, encaminha a discussão sobre o contexto histórico e sua ligação com o sagrado, como forma de salvaguardar a discussão acerca do simbolismo que permeia o Kama Sutra. Nessa análise, discorremos sobre esse processo de construção em torno da religião, como forma de balizar a representação histórica que verifica a investigação entre hinduísmo, budismo e tantrismo como formas de legitimar a sedimentação do Kama Sutra enquanto literatura.

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  • DESVENDANDO OS MANTRAS: UM MERGULHO NA HISTRIA DA NDIA E SUA RELAO COM O KAMA SUTRA

    ANDR LUIZ PORTANOVA LABORDE*

    RESUMO O presente artigo tem o objetivo de investigar qual o papel da religio para a formao da sociedade indiana. Nesse sentido, encaminha a discusso sobre o contexto histrico e sua ligao com o sagrado, como forma de salvaguardar a discusso acerca do simbolismo que permeia o Kama Sutra. Nessa anlise, discorremos sobre esse processo de construo em torno da religio, como forma de balizar a representao histrica que verifica a investigao entre hindusmo, budismo e tantrismo como formas de legitimar a sedimentao do Kama Sutra enquanto literatura.

    PALAVRAS-CHAVE: Histria, ndia, metafsica, religio, representao e signo. 1 CONSIDERAES INICIAIS

    Para ns, ocidentais, a histria da ndia ainda se mostra por detrs de um tnue vu que aos poucos se revela pelos novos investimentos historiogrficos. A civilizao indiana nasceu em um contexto marcado por invases, num constante renascer de identidades que marcam e caracterizam a populao hindu.

    Est imbricada tambm na histria da ndia uma relao bastante profunda entre religio e filosofia, que corresponde a uma lgica bastante diversa e distante para ns, ocidentais, entretanto se apresenta tambm de forma sedutora. Acontece na civilizao indiana, ou melhor, no modo de pensar oriental, a emergncia de uma metafsica que tem por finalidade explicar essa mstica em que est imbuda toda a histria da ndia. Na realidade essa magia faz parte de toda a construo do pensamento indiano, e o que o torna to fascinante para a investigao cientfica.

    O objetivo sublinhado neste momento tentar identificar como essa complexa civilizao se desenvolveu, percebendo o seu contexto histrico e constatando tambm quais so as suas mediaes com o

    * Licenciado em Histria; Mestrando em Educao Ambiental FURG

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  • sagrado. Busca-se tambm o entendimento de mundo da civilizao hindu nessa trajetria grifada pela histria.

    O Kama Sutra, nesse contexto, somente serve de pano de fundo para a fundamentao do estudo em torno da histria e da religio. Nesse sentido, destacamos o valor das relaes entre o processo de formao historiogrfica e a constituio religiosa hindu. O Kama Sutra enquanto objeto de pesquisa e anlise ficar para outro momento o que pretendemos aqui justamente entender qual o papel da religio para a formao sociocultural da ndia, e quais dessas religies rodeiam o universo pensado na literatura a respeito do amor oriental. 2 CONTEXTO HISTRICO

    O perodo que marca o incio da civilizao indiana investigado a partir de registra importantes descobertas a respeito da ndia com as escavaes arqueolgicas que tiveram incio na dcada de 20 (1922), no vale do Indo, no Sind, no Punjab e no Beluquisto1. Essas escavaes trouxeram tona a existncia de povos com origens e denominaes ainda no esclarecidas, que remontariam a mais de trs milnios a. C. O estudo acerca dessas populaes remete-nos Idade do Cobre, quando estas construram cidades fortes, desenvolvendo um projeto urbano funcional e bastante arrojado.2

    Os habitantes do vale do Indo empregavam a roda para o transporte e tambm como torno para a fabricao de cermica, e foram os primeiros a usar em larga escala tijolos cozidos nas construes. Tal como na Mesopotmia, cujas cidades floresceram poucos sculos antes, em Harappa3 tambm havia um sistema prprio de escrita (EDWARDS, 2000, p. 126).

    Essa descoberta em Harappa contribui para a constatao do

    cotidiano no vale do Indo. Reconhecemos nessas atitudes os primrdios

    1 Regies da ndia Vale do Indo. EDWARDS, Mike. A civilizao do Rio Indo. National Geographic Brasil, So Paulo: Abril, v. 1, n. 2, 2000. 2 As cidades eram estrategicamente fortificadas, com traado urbanstico funcional, banhos pblicos, mercados, adiantados sistemas hidrulicos e complexas redes de esgoto ao ar livre (id., Ibid., p. 120). 3 Harappa tambm considerada outra "capital" do Imprio do Indus, mas tinha algumas diferenas, como o fato de o celeiro estar localizado fora da cidade, pois a proximidade com o rio Ravi permitia que toda a vizinhana transportasse por via fluvial os gneros para serem estocados. O tradicional banho ritual dos hindus refletido pelos intrincados sistemas de fornecimento de gua de Harappa, assim como um organizado sistema de coleta de lixo.

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  • de uma civilizao que estava em desenvolvimento, provavelmente esse registro se remete populao drvida, que genuinamente, em tempos ancestrais, ocupava a regio que hoje temos por ndia.

    As escavaes no vale do Indo despertaram olhares sobre um modo de vida que provavelmente tenha permanecido incgnito durante muitos sculos. Foram encontrados sinetes, contendo um trao pictrico bastante sinuoso, com inscries que ainda atualmente esto em intenso estudo. Figuras que trazem a representao do cotidiano tambm vo auxiliar para conotar a respeito desse ambiente. Nesse sentido, destacam-se smbolos totmicos com animais4 e todo o imaginrio que se atribui mitologia indiana, suas vises de mundo, enfim o seu elo com o esprito e substancialmente com o transcendental.

    De acordo com Jung5, o maior cisma que existe entre o pensamento ocidental e oriental est no reconhecimento do esprito, onde na verdade se localiza uma de suas profundas distines. O sentido da espiritualidade que, em realidade, denotar atravs de uma relao arquetpica as leis que regem cada sociedade. Assim, para obter a compreenso do pensamento oriental, devemos nos despir de toda e qualquer ligao que amarre nossa visualizao de mundo segundo o prisma ocidental, e sim, partilhar de uma viso Animus-Anima6, para poder mergulhar de vez na histria da ndia.

    O perodo que ir demarcar o contexto histrico da ndia, do qual se tem registros na historiografia, se apresenta por volta do ano de 1300 a. C., marcado pela invaso ria7. Parte dos invasores rumou para o Ir, outra parte para a plancie indo-gangtica. Os rias dominaram toda a regio, expulsando, suprimindo e escravizando seus habitantes. Mesmo sendo a populao local superior dos rias, acabou sucumbindo melhor organizao poltica e militar do invasor.

    atribuda aos rias a diviso clssica da sociedade hindu em castas8: Brmanes (sacerdotes), Xtrias (guerreiros), Vxias

    4 Bois, elefantes e tigres eram retratados de forma realista, bastante semelhantes arte sumeriana da Caldia. A esttica tinha impressionantes pontos de contato com a poca clssica da prpria ndia. 5 Carl Gustav Jung mdico psiquiatra, conferencista e pesquisador dos fenmenos psicolgicos. Nasceu em Kesswill (Sua), 1875-1961 (ALMANAQUE ABRIL, 1996. p. 516). 6 Arqutipos da alteridade: a contraparte feminina no masculino, Animus, e a contraparte feminina no masculino, Anima. 7 rias ou arianos significa nobres em snscrito. Provinham do sul da regio que atualmente reconhecemos por Rssia. 8 A religio tem sua origem na revelao, transmitida pela tradio e preservada pela ortodoxia. [...] As castas e a sociedade hindu tradicional so uma s e mesma coisa. [...] Est ligada instituio social conhecida como sistema de castas, aparato de ordem

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  • (comerciantes), Sudras (camponeses e trabalhadores) e os Prias (os Intocveis, sem direitos na sociedade). Destaca-se tambm uma considervel contribuio cultural dos rias que foi o snscrito, tal como aparece nos Vedas9 demonstrando quo presente a religio na formao do Estado indiano.

    Alm disso, necessrio entender at aqui que a consolidao da histria indiana se d atravs de um processo invasor no princpio marcado pelos arianos e posteriormente ao longo de sua histria pelos muulmanos, mongis, ingleses, portugueses, entre outros povos em que uma cultura se mescla com a outra e produz uma diversidade de significados que iram compor a identidade da sociedade indiana. Nesse contexto se apresenta a imigrao ria, entrelaada populao local, formada por povos pastores que habitam a regio indo-gangtica, os drvidas ou drvidicos.

    Como em todo processo de assimilao cultural, ocorreram, em conseqncia, movimentos de resistncia, bem como mecanismos de incorporao da lgica dominante. correto afirmar que esse processo por vezes descrito como algo que veio consolidar a fundao desse estado, mas, como a ndia possua uma diviso poltica bastante similar da pennsula balcnica, algumas regies encaminharam sua histria de acordo com as doutrinas religiosas que seguiam.

    Em funo disso, para melhor entender o processo de ocupao e povoao da ndia, torna-se inevitvel um passeio ao redor das religies que compem esse mosaico que o territrio indiano. Atravs desse percurso iremos mergulhar e entender os estgios de compreenso do processo histrico, bem como conhecer e desfrutar da simbologia que est incutida na anlise dessas religies que atravs de um contexto scio-histrico vo nos revelar alguns dos encantos dessa sociedade calcada em mantras. 3 RELIGIOSIDADE COMO CENRIO DA HISTRIA

    impossvel perceber a configurao da histria indiana sem antes tentar entender o papel que a f exerce na sua construo. O misticismo oriental vai simbolizar a verdadeira faceta dos hindus. Nossa meta verificar atravs da relao religiosa como a sociedade hindu se organiza. Sua forma de compreender a arte, a poltica, a cultura, vislumbrando um todo complexo mas ao mesmo tempo harmonioso. social e cultural que regula a sociedade hindu. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicaes. So Paulo: Edusp, 1992. 9 As primeiras grandes obras de literatura e de religio hindus. As quatro escrituras vdicas (Rg, Yajur, Sama e Atharva-vedas).

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  • Fundamentalmente, ao falar em religio, devemos conceitu-la para poder inserir essa temtica no mbito cientfico. Segundo mile Durkheim, A religio (...), longe de ignorar a sociedade real e de no lev-la em conta, a imagem dela, reflete todos os seus aspectos, mesmo os mais vulgares e repulsivos (DURKHEIM, 1996, p. 464). Dessa maneira, percebemos que a inclinao religiosa hindu faz parte da histria, pois revela dimenses simblicas que abarcam o sagrado no seu processo de formao, porque um dos elementos essenciais da religio o de revelar a histria atravs dos mitos.

    Ento, percebe-se a religio como elemento que agrega e aglutina inmeras informaes acerca da comunidade que a elege, servindo por vezes como lei que determina e rege suas aes e reaes. Portanto, a histria est totalmente imiscuda e envolta pela gide do fenmeno religioso. Nessa medida, denota-se claramente sua influncia, pois a sociedade hindu, mesmo sendo repleta por diversas crenas religiosas, partilha de uma mesma concepo universal: o significado de esprito.

    Mesmo divergentes, a maioria das religies de tronco oriental se configura por uma lgica bastante particular. Iremos versar aqui sobre as influncias do budismo, do hindusmo e do tantrismo para poder melhor elucidar as questes que esto em torno da histria que compe o cenrio vivificado pelo Kama Sutra. Todavia, sabemos da existncia de inmeros cultos e seitas religiosas orientais10, mas a respeito do presente estudo entendemos que estas se aproximaram das possveis respostas que a pesquisa tenta encaminhar.

    Para aquele que v na religio uma manifestao natural da atividade humana, todas as religies so instrutivas, sem exceo, pois todas exprimem o homem sua maneira e podem assim ajudar a compreender melhor esse aspecto de nossa natureza (DURKHEIM, 1996, p. 4).

    A religio assume, dessa forma, um carter instrumentalista. No

    caso da ndia, identificamos em Durkheim uma aproximao mais tenra no que se refere compreenso da manifestao natural. Nesse sentido, vlido ressaltar que o pilar da sociedade hindu se debrua como vimos acima na metafsica que remete construo histrica sob a gide do sagrado.

    Partimos do pressuposto de que a ndia, em seu processo 10 No Oriente existe uma gama significativa de religies que disputam os mesmo espaos e que dividem atenes entre a populao. Podemos citar: Hindusmo, Bramanismo, Jainismo, Budismo, Tantrismo, Taosmo, Xintosmo, Sik; os movimentos Bhakti, Shivasmo e Hare Krishna.

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  • histrico, tem seu auge com a invaso das tribos rias, por volta de 1300 a. C., na qual emerge a constatao historiogrfica no territrio indiano. Os rias, povos nmades vindos do Ir, ocuparam a regio do Punjab e dominaram a j decadente civilizao dos hindus, absorvendo-lhe numerosos elementos.

    Assim, se d o incio Perodo Vdico (1500-c. 500 a. C.), narrado nos Vedas, hinos sagrados de diferentes pocas, escritos em snscrito. O Rig-Veda descreve as lutas dos rias contra os drvidas, no Vale do Indo, proporcionando uma idia sobre a vida e sociedade desse tempo; os trs outros Vedas Sama-Veda, Yajur-Veda e Atharva-Veda , seguidos pelos Brahmanas Upanishads, narram a fase da conquista da Plancie Indo-Gangtica, quando, atravs da sntese rio-dravdica, surge o Hindusmo, com sua sociedade dividida em castas e varnas ou ordens. O Perodo Vdico se encerra no final do sc. VI a. C., quando surgiram novas ideologias e religies que transformaram o ambiente intelectual do pas.

    [...] Quando a Terra estava se formando, a ndia era uma ilha e ao chocar com o continente deu-se a formao do Himalaia. incrvel pensar que esta cadeia de montanhas tenha sido praia um dia, mas foram encontrados fsseis de animais marinhos e conchas em suas terras. Isto ocorreu h vinte ou trinta milhes de anos atrs, antes do aparecimento de humanos na terra (ELIADE, 1997).

    A narrativa apresentada se refere construo simblica que

    permeia o universo do misticismo oriental. Eliade nos mostra o valor da representao no que tange formao da ndia, denotando o papel do mito nesse processo de recuperao histrica.

    Entre os vrios reformadores religiosos que pregaram novas orientaes dentro do contexto do Hindusmo, destacam-se Buda (Prncipe Sidarta Gautama), precursor do budismo, e o filsofo e reformador social Mahavira (540-468 a. C.), ltimo profeta jaina11, que deu origem ao Jainismo. Tais filosofias partilhavam desse intenso perodo marcado na histria da ndia atravs da relao ntima com a religio. Logo aps, destaca-se o perodo que compreende a Dinastia Mauria, que dar nova configurao para a civilizao indiana.

    Os persas, sob o comando de Ciro e Dario I, anexaram a regio do Indo. Os gregos, com Alexandre Magno, ocuparam, de 327 a 325 a. C., o Punjab e o Sind, anexando vrios reinos hindus, como os de Taxila e Porus. O Imprio Mauria foi fundado por Chandragupta Mauria, que

    11 O Jainismo, junto com o budismo, contestou a opresso proporcionada pelos brmanes.

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  • derrotou os filhos do rei Nanda e expulsou os gregos do Punjab, tornando-se senhor de Mgada. Deteve as invases das foras de Sleuco, em 305 a. C., levando-as a bater em retirada.

    Durante um curto perodo de tempo (sculos V a. C. a III a. C.) os persas tomaram o noroeste da ndia. Um jovem prncipe iniciou uma dinastia (o Imprio Mauria) e seu neto, Ashoka, acabou sendo o governante que mais marcou a ndia antiga, pois viajou por toda ela, tornando-se muito popular. Nos sculos seguintes, vrios reinos se formaram, todos independentes, e com caractersticas culturais e lnguas diferentes (ELIADE, 1997).

    O imperador Chandragupta foi sucedido por seu filho Bindusara

    (298-c. 274 a. C.), que expandiu e consolidou o Imprio, e por seu neto Asoka, o "rei monge", que dominou o Kalinga, ocupando toda a ndia, com exceo dos reinos de Chola e Pandya, do Sul. Asoka foi um dos maiores e mais famosos dos soberanos da ndia. Seus editos, gravados em rochas, mostram-no como adepto do Budismo. O Imprio Mauria no sobreviveu por muito tempo a Asoka. No se sabe se seus sucessores governaram todo o imprio ou apenas partes dele. Finalmente, em 185 a. C., Pushyamitra, comandante militar, assassinou seu senhor, fundando a dinastia Sunga (185 72 a. C.).

    Nossa explanao em torno da histria da ndia se encerra no que tange pesquisa, neste momento, pois a partir de agora iremos decodific-la e identific-la atravs dos discursos que as religies vo deixar emergir a respeito da matria scio-histrica que floresceu na cultura indiana, ou seja, no que ela pode auferir e fazer aluso ao Kama Sutra, pois se faz necessrio contextualizar o momento histrico que abarca a narrativa, para poder ento encaminhar a possvel explicao acerca da sua importncia enquanto literatura. 4 O HINDUSMO

    O Hindusmo se situa entre as grandes mitologias arianas, lembrando muito a mitologia grega. No entanto, observa-se no hindusmo a presena de um princpio supremo, absoluto e infinito que podemos identificar por Brahmam12. Este revela toda a essncia da

    12 O ncleo da experincia espiritual hindusta a f em um absoluto, o Brahmam, a nica realidade verdadeira, incriada, fonte primeira e fim ltimo de toda forma do cosmo, concebido tambm como um deus supremo pessoal (Trimurti: Brahma/ Vishnu/ Shiva) Brahmam o Uno e tambm o Tudo. Na realidade o Hindusmo se apresenta pantesta na forma, mas monotesta na essncia, pois todas as representaes (deidades/deuses)

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  • religio. Mesmo sendo o Brahmam o princpio absoluto, percebemos uma bipolaridade de potncias em relao figura do Atmam, que a manifestao desse Brahmam dentro do ser humano (essncia/alma). Por sua vez o Atmam o princpio universal que ilumina todo o indivduo emprico, o sopro de eternidade contido em toda forma da existncia que se transforma (MASSIMO, 2005, p. 25).

    Ocorre na experincia hindusta uma sucesso infinita de manifestaes (vidas) em um ciclo de renascimentos que so regidos pelo Karma13, a lei da retribuio dos atos, porm o Atmam permanece e se envolve nesse ciclo. O objetivo da existncia a busca interior que permita ao ser humano compreender que o infinito em ns (Atmam) e o absoluto (Brahmam) so a mesma realidade.

    A tica hindusta perpassa todas as esferas da vida, reverenciando-as com leis de pureza e os rituais, na convico de que o significado da existncia e a harmonia do mundo esto regrados por uma lei verdadeira e eterna: eis o Dharrma. Alis, a ordem do cosmos se percebe na ordem social, ou seja, na vida do indivduo se refletem os preceitos dos vedas, uma vez que estes regulam a vida e auxiliam a manuteno da relao Dharma/karma.

    Todo pensamento hindusta atravessado pelo sentido do conflito e, ao mesmo tempo, da unio ltima entre bondade da regra sagrada e o valor criativo da desordem, entre a beleza da vida e ao sentido de seu carter ilusrio, entre desejo e renncia (MASSIMO, 2005, p. 26).

    Dessa maneira, o pensamento hindu encarna alguns preceitos

    morais como: tica, esttica, virtude/f. Assim, entende-se essa organizao entre conflito e unio como um espelho da relao sagrado/profano, deus/homem, cu/terra. Enfim, a particularidade metafsica indiana representa esse movimento nas suas inter-relaes com a sociedade e substancialmente com a histria. acabam sendo manifestaes do supremo que o Brahmam. Ento, podemos dizer que o Hindusmo monotico, pois visa ao alcance e ligao do eu/alma (Atmam) com o eu superior Brahmam. 13 Da raiz Kr: fazer, obra, ao, rito, execuo. a lei da ao e divide-se em trs momentos ou etapas, a saber: Sanchita-Karma (Sanchita: acumulado, amontoado) o resultado de todas as nossas aes passadas, mas que ainda no comearam a germinar, amadurecer e transformar-se na colheita de uma vida; Prarabda Karma (da raiz Prakk: antecipado; e arabda: comeando) o Karma escolhido e acumulado no passado, mas que j comeou a produzir frutos na forma de acontecimentos presentes. a parte do Sanchita que vai ser vivida no momento atual. Agami-Karma (Agami: vindouro) o destino que ainda no temos assumido, aquele que, sendo efetuado (semeado) agora, ser includo em Sanchita. Sintetizando, Karma a lei de ao e reao, de causa e efeito. ROHDEN, Huberto. Bhagavad-Gita. So Paulo: Martin Claret, 2005.

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  • O hindusmo vai nos revelar uma viso bramnica no mundo; mesmo tendo vrias fases, o hindusmo se centrou desde seus primrdios nos preceitos vdicos de explicao da vida. Portanto, aqui elencamos o processo de construo desse pensamento e investigamos tambm qual a sua importncia para o nosso estudo. Entretanto, j adiantamos que a religio hindu, mesmo em sua diversidade de enfoques, est presente e faz parte do processo de construo da mentalidade indiana e substancialmente da oriental.

    Dessa forma, a presena do Kama Sutra enquanto literatura, nesse cenrio permeado pelo hindusmo, vai ser colocada de lado de forma providencial, pois o hindusmo, sendo basicamente liderado pelo princpio bramnico, em sua essncia no vai querer dar vazo a uma literatura que possa dividir a ateno da sociedade encorajando outro tipo de busca.

    Mesmo assim, dentro do hindusmo se menciona o papel do Kama Sutra atravs da sua atribuio figura de Shiva. Existe nessa religio a representao da figura do Brahmam associada a Trimurti14, que uma espcie de trade que tem o carter de sustentculo simblico para os hindus. Essa trimurti percebida atravs das figuras de Brahma, o criador, Vishnu, o preservador e Shiva, o destruidor e transformador. A Shiva relegado o domnio do sexo como forma de yoga15, ou seja, como mecanismo de alcance ao sagrado, uma vez que se apresenta como chave transcendncia do esprito.

    Portanto, os cultos a Shiva esto ligados diretamente a alguns preceitos do Kama Sutra e em especial ao papel da mulher nesse processo. A presena da figura das Shaktis16, que, junto ao cortejo de Shiva, so reconhecidas por Um, Durg e Kali17 vai acentuar e, de certa forma, revelar a grande diferena da visualizao da mulher nesse contexto oriental.

    Outro conceito a respeito da composio do pensamento em torno do hindusmo que vale a pena realar a constituio do significado de realidade. Sob a tica do hindusmo, o mundo em sua

    14 Trimurti: Brahma/ Vishnu/ Shiva. Sachchidnanda (Sat Chit Ananda) ser, conscincia, felicidade Representao da realidade ltima, transcendncia. Trindade Hindu. STODDART, William. O hindusmo. So Paulo: Ibrasa, 2004. p. 32. 15 Yoga: Da raiz Yuj: Unir. Unio, conexo, harmonia, relao. a perfeita unio do homem com a divindade. Patanjali define yoga como a arte de suspender ou deter as funes da mente. ROHDEN, op. cit., p. 141. 16 Shakti: Elemento feminino que compem o princpio do universo (masculino/feminino) na trimurti hindu. Consortes. CAPRA, Fritjof. O Tao da fsica. So Paulo: Cultrix, 1998. p. 74. 17 Shakti de Shiva: Parvati (Um, Durg e Kali) so suas representaes. STODDART, op. cit., p. 35.

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  • plena configurao se apresenta falso (Maya), uma percepo18 ilusria, dessa maneira Brahmam o verdadeiro princpio das coisas (real).

    O termo maya (o relativo) geralmente usado com o significado de o falso (ou ilusrio). Maya, contudo, pode tambm ser considerado positivamente como Krishna Ll: jogo divino, arte divina, magia divina ou aparncia. No processo que leva manifestao, o Ser (shvara) polariza-se em um princpio ativo ou masculino, Purusha, e em um princpio passivo ou feminino, Prakriti. Da interao desses dois princpios parentais nasce a existncia ou manifestao (samsra ou Jagat) (STODDART, 2004, p. 29).

    Em suma, a contribuio do hindusmo neste estudo tange a esse

    carter representativo que acabamos de apresentar. No entanto, sabemos que ainda se revelam inmeras lacunas acerca da religio. Entretanto, no se pretende esgotar aqui essa discusso; ao longo do trabalho ainda recorreremos a essa abordagem, porm cabe lembrar que o referido sistema religioso denota uma infinidade complexa de nuances a respeito do tema, a qual se tentar elucidar de acordo com a necessidade da nossa questo de pesquisa. 5 O BUDISMO

    A origem do budismo19 remonta ndia do sculo VI a. C., uma poca de considerveis mudanas, inclusive no cenrio econmico e social. Traduz-se por um movimento (Sramana) de ruptura religiosa e filosfica. Em seu teor, o budismo ope-se radicalmente, apresentado pelos brmanes; mesmo que em sua essncia partilhe de alguns aspectos, formalmente se mostra contrrio s imposies do sistema de castas.

    18 O poder csmico que faz possvel a existncia fenomnica e as percepes da mesma. De acordo com a filosofia hindu, somente aquilo que imutvel e eterno merece o nome de realidade; tudo o que est sujeito a mudana e que, portanto, tem princpio e fim, considerado Maya. s vezes tida por iluso. ROHDEN, op. cit., p. 135. 19 Junto ao jainismo, contestou a autoridade dos brmanes. Movimento de libertao, que teve como lder Sidarta Gautama. Religio calcada nas Quatro Nobres Verdades: a primeira coloca a existncia da dor como ligada ao perptuo fluxo das coisas; a segunda mostra no desejo a causa da dor; a terceira faz da supresso do desejo o nico meio de suprimir a dor; a quarta enumera as trs etapas pelas quais preciso passar para chegar a essa supresso: a retido, a meditao e, enfim, a sabedoria, a plena posse da doutrina. Atravessadas essas trs etapas, chega-se ao trmino do caminho, libertao, salvao pelo Nirvana. DURKHEIM, mile. As formas elementares da vida religiosa. So Paulo: Martins Fontes, 2000. p.12.

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  • Tambm o budismo renegava os sacrifcios e a lgica sagrada que eles implicavam; renegava a existncia de um deus personalista ou de um princpio absoluto e refutava a tradio sacra da revelao contida no Veda. A ordem monstica que tinha se formado em volta de Buda, que no se importava com as divises de casta, recolocava em discusso a relao entre especialista e laico, propondo uma concepo diversa da experincia religiosa (MASSIMO, 2005, p. 83).

    Antes de nos atermos ao budismo, e propriamente no que ele se

    refere ao Kama Sutra, necessrio um breve comentrio a respeito de seu baluarte Buda , a fim de reconhecermos sua importncia para a constituio da histria indiana. O prncipe Sidarta20 (Siddhartha) Gautama foi quem deu a configurao primordial para aquilo que hoje identificamos por budismo. Buda nasceu em torno do ano de 566 a. C.; seu pai, Suddhodana, era chefe do cl dos Sakya e governava o estado oligrquico de Kapilavatsu, na plancie do Himalaia nepals.

    O jovem prncipe Sidarta casou-se aos dezesseis anos com sua prima Yasodhara e vivia em um lugar repleto de belezas e fortunas, onde a verdadeira face do mundo no o atingia, pois o pai no queria que seu filho to belo sofresse com as mazelas do mundo. No entanto, em determinado momento da vida, Sidarta avista um velho mendigo e decide romper os muros do palcio, deixando para trs toda a fortuna para conhecer, alis, reconhecer o mundo como ele realmente . A partir desse rompimento, ou melhor, desse desapego material, que se balizam os fundamentos do budismo enquanto filosofia.

    Sua contribuio em relao ao Kama Sutra foi justamente abalar os alicerces do hindusmo bramnico, dando espao emergncia de novas filosofias que pudessem ocupar ou retomar o seu espao entre os indianos. Entretanto, apenas serviu para dividir as atenes da populao em relao f, pois o budismo de certa forma se configura sob a gide da renncia e da negao da vida e dentre estes aspectos o culto ao sexo no foi to difundido pelos budistas.

    A mais alta experincia espiritual para o budismo o Nirvana, a libertao do Samsara, a extino definitiva do eu. expresso, sobretudo, pala negao do estado puro alm do bem e do mal e de todos os fatores que vinculam o ser corrente de transmigraes, se configura como o absoluto Nada, o qual transcende as mais altas etapas da experincia mstica. A busca da iluminao no se percebe atravs da figura de um Deus nem de uma fora, mas sim atravs do processo da meditao que a eleva do desejo fsico busca do nirvana. 20 O Buda: precursor do budismo. MASSIMO, Raveri. ndia e extremo Oriente: via de libertao e da imortalidade. So Paulo: Hedra, 2005.

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  • O budismo [...] apresenta-se, em oposio ao bramanismo, como uma moral sem deus e um atesmo sem natureza. Ele no reconhece um deus do qual o homem dependa [...] sua doutrina absolutamente atia [...]. De fato, o essencial do budismo consiste em quatro proposies que os fiis chamam as quatro nobres verdades (DURKHEIM, 1996, p. 12).

    Em sua nfase terica, o budismo dispe de uma variedade de

    escolas21 que qualificam e enfatizam consideravelmente sua doutrina religiosa, e com certeza tem muito a nos revelar enquanto filosofia e fonte de estudo. Mas, em especial, ser atravs do budismo tntrico que vamos nos aproximar mais do nosso objeto de estudo.

    O budismo tntrico a corrente mais radical (o Sahaja), fundada em Bengala entre os sculos VIII e X com os ensinamentos dos mestres Saraha e Kanha, e representou um evidente cisma na religio. Suas tcnicas consistiam em exerccios transgressivos envoltos por artes mgicas, utilizando as prticas sexuais (como yoga), respaldando-se sob a premissa de que o homem prisioneiro do desejo, mas no prprio desejo pode encontrar a libertao (MASSIMO, 2005, p. 123).

    Nesse sentido, denota-se uma espiritualidade alheia aos cnones seguidos pelos outros ramos do budismo, pois revela uma espontaneidade que se ope condio da vida nos monastrios, afirmando uma nova via da experincia da libertao interior22. Existe ainda uma outra corrente do budismo tntrico que foi absorvida pela experincia monstica que se denomina por voto de Bodhisattva23, que cedia s normas seculares do Vinaya. A prtica da experincia tntrica foi exposta sob a gide de uma proposta de conhecimento dos mistrios rarefeitos; as meditaes mais inebriantes eram reservadas queles que tinham sublimado certos nveis de iniciao.

    21 O Budismo se apresenta atravs de escolas filosficas: Stupa; escola Theravda; tradio Mahyna; Bodhisattva; Praja; escola Yogcra; Budismo Tntrico; Budismo Chins; Budismo Japons; Budismo Tibetano e o Bom. O Zen (MASSIMO, 2005). 22 O cnone tibetano classifica os tantra segundo quatro categorias: os kriytantra, centrados nas cerimnias e nos ritos cotidianos; os Carytantra, que ensinam a conduta correta e constituem um preldio meditao; os Yogatantra, que explicam as tcnicas bsicas de concentrao mstica, e por fim os Anuttarayogatantra, que revelam as vises mais puras e luminosas de contemplao (id., ibid., p. 125). 23 No Mahyna a iluminao torna-se a verdadeira base da busca espiritual. [...] O fim do percurso do bodhisattva no mais a fuga do ciclo dos renascimentos e a extino, objetivos finais do arhat. [...] O Bodhisattva considera o Nirvana um fim interior e aspira a um tipo de libertao final diverso e mais alto, entendido como condio de paz e de clareza interior, na qual o iluminado no est nem atado extino nem ao ciclo dos renascimentos (id., ibid., p. 119-120).

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  • Os textos da nova corrente, os tantra, guardam a verdade mais profunda revelada diretamente pelo Buda supremo Mahvairocana e transmitida em segredo de mestre a discpulo fora do ensinamento dos sutra cannicos. Trata-se, portanto, de uma sabedoria inicitica que se nega ao profano: por isso os textos usam deliberadamente uma linguagem obscura, rica em smbolos misteriosos24 (MASSIMO, 2005, p. 124).

    Nessa medida, a relao que fazemos em direo ao Kama

    Sutra, tanto o tantrismo hindusta como o budista, por mais distintos que paream, ambos partilham da premissa de que os sentidos, alis, a paixo do ser humano (a energia corporal e mental), reporta-se iluminao.

    Como ocorre para o hindusmo, a tradio tntrica enriquece o pensamento mstico com o simbolismo sexual. O conhecimento, que em seu estado latente ainda no foi despertado para a verdade, simbolizado por uma mulher que espera conjugar-se e no rito tntrico personalizada por uma prostituta de casta baixa visualizada pela mente do iniciado como uma deusa (MASSIMO, 2005, p. 126).

    Enfim, compartilhando toda essa atmosfera que vamos

    mergulhar intensamente em nosso foco de anlise. Depois de toda essa contextualizao, encontraremos no Tantrismo propriamente dito os suportes indispensveis para a realizao da pesquisa. O budismo tntrico em muito contribuiu para a sedimentao do simbolismo de potncia da unio dos dois sexos, masculino e feminino (animus-anima) nessa empreitada da busca do significado do amor oriental. Apesar de revelar uma viso um tanto distante da ndia, serve de impulso para uma melhor compreenso acerca do prprio Kama Sutra. 6 O TANTRISMO

    A realidade do tantra25 hindusta baseia-se em uma face distinta, em parte, por aquela ilustrada no Veda. Suas razes so um tanto envoltas por brumas. Sabe-se que teve forte influncia de ascetas

    24 O masculino representado pelo smbolo do despertar, e a unio dos dois realiza a experincia da mente iluminada que souber ir alm de toda distino, entre idia e ato, entre mal e bem, entre relativo e absoluto (id., ibid., p. 126). 25 A disciplina fsica e mental para a libertao utiliza no incio as tcnicas de Hathayoga, que combinam posies do corpo, controle da respirao e exerccios de contemplao. [...] Os caminhos que trazem em si o poder divino so os mantras (sons sagrados), os mandla (diagramas do universo) e os mudras (gestos de mos e posies do corpo que simbolizam gestos metafsicos) (id., ibid., p. 76).

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  • errantes de origem drvida que cultuavam seu desenvolvimento pleno, mais associado ao que podemos identificar de hindusmo vdico26. postulado por antigas prticas de povos autctones (dravdicos) que possuam uma cultura ancestral dos invasores arianos. Alm disso, era regido por vises msticas, propiciadas por xams centro-asiticos atravs de yogas.

    Essa doutrina religiosa encontrou repouso em alguns princpios dos Vedas, como no Atharva e Yajur Veda. O tantra se difundiu em regies de fronteira, no Kasmir, a Bengala (por isso a experincia budista), o Assam, que eram reas onde a influncia bramnica no obteve muito respaldo. Aps os primeiros tempos da era crist, o tantrismo ocupou espao e se configurou como religio autnoma. Entre os sculos Vi e VIII, aparece bem radicado na tradio indiana, e difunde-se tambm nos centros de cultura e de saber tradicional do hindusmo, que testemunharam o florescer da literatura tntrica culta (MASSIMO, 2005, p. 74).

    Sobretudo, temos a respeito dessa literatura a presena da cultura shivasta (Shiva-gama) bem como as Vaisnava Samhit vishnustas, que so textos que revelam um altssimo teor a respeito da revelao espiritual profunda (Sruti vdica), em que o tantrismo encontra um carter filosfico e ritual passado de mestre a iniciado. A finalidade mais acentuada da doutrina tntrica conseguiu atingir em dado momento toda a ndia, onde exerceu influncia em todas as tradies religiosas.

    A resposta do tantrismo constitui-se numa nova perspectiva: o mundo era a realidade, a existncia estava ligada ao desejo e o fim ltimo do desejo era um retorno ao Absoluto. A viso tntrica no contrapunha desejo e salvao; no negava os sentidos e os sentimentos, mas propunha control-los segundo uma ascese gradual e valoriz-los numa perspectiva de conhecimento e libertao que poderia ser atingida j aqui na terra, nesse corpo (MASSIMO, 2005, p. 74).

    A relevncia do tantrismo para o estudo do Kama Sutra o fato

    de justamente significar o valor de uma tradio que atravs da f, da mstica e da iluminao consegue convergir essa experincia em verdade absoluta. A busca da verdade espiritual e do amor transcendental est intimamente ligada a esse ideal tntrico de ver/ perceber o universo. Por isso o Kama Sutra27 ilustra to bem essa

    26 Pode-se dizer que o hindusmo vdico se reporta era de conhecimento drvidico (pr-brmane). STODDART, op. cit., p. 33. 27 O Kama Sutra ou Aforismo sobre o amor a obra mais importante, a mais clebre da

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  • realidade, pois conota uma viso sistemtica muito prxima da filosofia proposta no tantra.

    Para Jung, os arqutipos da alteridade Animus-Anima regulam toda relao polarizada, pois so regidos por uma complacncia de um encontro igualitrio de potncias. No tantra identificamos, em certa medida, exemplos dessa mediao. No esplendor da realidade tntrica existe um aspecto masculino e um outro feminino e seu simbolismo representado atravs da unio sexual. Portanto, percebendo esse movimento de evoluo csmica percebemos que essa interao proporciona o equilbrio entre o espao do sagrado e sua cosmoviso. O princpio masculino do absoluto (Visnu e Siva, dependendo da seita) permanece imvel e recolhido. A Skti, princpio feminino ativo, a energia do incio e do fim do universo, que produz e extingue o universo (MASSIMO, 2005, p. 75).

    Assim, percebemos no tantrismo elementos que daro suporte tambm discusso acerca das questes de gnero que sero enfocadas tambm nesta pesquisa. Nossa premissa terica era explicar como seu deu o processo histrico-cultural ao redor da ndia no que tange narrativa do Kama Sutra. Em uma tentativa de poder reconhecer o cenrio que se construiu essa histria, isto , identificar as premissas (religiosas) que serviram de sustentculo tanto da histria hindu como da possibilidade de verificar a manifestao de tal filosofia. Enfim, o tantra nos indicou a direo a percorrer e, ainda mais, nos revelou que possvel visualizar no Kama Sutra uma verdadeira lio de amor (oriental) e substancialmente a reconhecer o papel da religiosidade nesse processo de investigao histrica. 7 CONSIDERAES FINAIS

    A relao que podemos estabelecer entre histria hindu e religio como cenrio ao Kama Sutra se percebe no estudo das trs filosofias citadas. O Hindusmo, o Budismo e o Tantrismo configuram essa representao que cede espao literatura.

    literatura hindu. Seu autor, Vatzyayana, viveu o I e o IV sculo da era crist. O Kama Sutra composto por cerca de duzentos e cinqenta versetos que versam sobre moral sexual, precedido de um curso de filosofia para uso de ambos os sexos numa busca incessante pelo amor universal. Kama deus do amor e Sutra lies. L-se ento: Lies de amor. A recomendao do texto associar o Dharma ao prazer sensual como forma de unir-se ao sagrado. As lies do Kama Sutra no que tange a yoga e os mudras so os mecanismos de se atingir a realidade divina. VATZYAYANA. Kama Sutra: O livro sagrado dos brmanes da ndia. Trad. Isidoro Liseux. So Paulo: Edies e Publicaes do Brasil, 1930.

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  • O Kama Sutra, em sua essncia, revela um dos maiores exemplos da metafsica hindu, que a representao do amor. A concepo de amor oriental est intimamente ligada transcendncia, o elo que une Atmam a Brahmam.

    Essa transmigrao do Atmam (eu/alma), no Kama Sutra, se d atravs da unio sexual. A unio representa o ato devocional (bhakti-yoga) em direo a Brahmam, que instaura a sintonia da harmonia.

    O tantrismo em sua essncia o que mais concebe o significado primordial do Kama Sutra. Atravs dos Mudras e da yoga que se realiza o ritual de alcance da verdadeira personalidade de deus (Brahmam). Alm disso, em termos operacionais, podemos dizer que o tantrismo revela a prtica metodolgica do processo. O Hindusmo em seu cerne primordial (Atmam/Brahmam) regula essa relao. E o Budismo define e configura atravs de sua fundamentao os preceitos dessa representao simblica.

    Por isso foi necessrio recorrer a essas trs doutrinas religiosas para entendermos o palco de possibilidades instaurado pelo Kama Sutra. O contexto histrico da construo dessa narrativa atravessa a ndia sob a gide dessas trs doutrinas. A populao hindu, mais precisamente do vale do Ganges, viu o Kama Sutra florescer em seu esplendor e pode desfrutar de seus ensinamentos para alcanar a essncia do deus.

    obvio que poderamos explorar muito mais a narrativa, mas a nossa inteno aqui era entender a relao simblica que se confere entre a formao sociocultural da ndia e a manifestao religiosa que to significativa para os hindus. Nessa medida, compreendemos que a obra literria Kama Sutra de Vatzyayana representa um marco cultural no ambiente indiano, pois revela a mais pura face do amor.

    Assim, emblemtica a presena da religio para a histria indiana, tornando-se um axioma que calca toda e qualquer relao nascida no oriente. Atravs dessa lgica, envolta por um misticismo, que vai se balizar a sociedade hindu. Em uma tentativa de buscar o entendimento de seu processo de evoluo histrica, o Kama Sutra para a ndia um esteio que regula, ao menos em algumas regies, a sua interveno no campo do sagrado, bem como no seu desempenho perante a vida. REFERNCIAS CAPRA, Fritjof; STEINDL, David. Pertencendo ao universo. So Paulo: Cultrix, 2004. CAPRA, Fritjof. O Tao da Fsica. So Paulo: Cultrix, 1998. CARRIRE, Jean-Claude. O Mahabharata. So Paulo: Brasiliense, 1991.

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