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Desvios de Conduta da Administração Pública Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Econômico da Universidade Federal da Bahia. Celso Luiz Braga de Castro

Desvios de Conduta da Administração Pública · exerce prerrogativas que lhe são conferidas indevidamente, ora faz uso indevido daquelas que, com legitimidade, lhes são outorgadas,

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Desvios de Conduta da Administração Pública

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Econômico da Universidade Federal da Bahia.

Celso Luiz Braga de Castro

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DESVIOS DE CONDUTA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Introdução

O primado da legalidade na ambiência da

administração pública tem sido enfatizado em toda literatura clássica como

garantia da efetividade dos direitos de cidadania.

Tornou-se corrente afirmar que, enquanto a relação

do particular com a lei é simplesmente de não-contradição, ao revés, o

administrador público deve pautar sua conduta subsumido ao ordenamento,

ficando estabelecido, pois, um vínculo de conformação.

Isso não tem impedido que a visão prismática do

Estado se faça pela ótica preferencial da relação de Poder.

A partir dos textos constitucionais, encontramos

nítida a ênfase da potestade tripartida em Executivo, Legislativo e Judiciário,

enquanto no âmbito administrativo, larga parte do estudo jurídico tem se

debruçado sobre os poderes da administração.

A presente dissertação parte do pressuposto de que o

Poder é simplesmente um meio e não um fim em si mesmo.

Sua posição é ancilar ao papel de maior relevância

que se concede a um ente público, qual seja o cumprimento do dever.

Todo Poder que não seja devoto de uma função

social revela-se como opressor e conspira contra o Estado de Direito.

Na axiologia jurídica, o primado da liberdade cede

espaço à autoridade, tanto quanto esta devolva, em troca, o grau necessário de

segurança e de bem-estar à sociedade.

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Consideramos, a partir daí, uma medida inevitável,

segundo a qual todo Poder é mero instrumento de cumprimento do dever e só

nesta medida e com esta restrição é que ganha foros de legitimidade.

Para que não se exceda no seu raio de ação,

desvirtuando-se da destinação que lhe é própria, imperioso é que seja vigiado

e controlado.

Apesar de tudo, os que se acercaram de parcela de

mando cuidaram historicamente de hipertrofiá-la em conotações que variam

de grau ao longo da história da humanidade.

Sob o império do absolutismo, o reinado confundia-

se com a soberania, não havendo qualquer espaço reivindicatório deferido aos

súditos.

Prevaleceram, por muito tempo, as máximas “quod

principi placuit habet legis vigorem” (A vontade do príncipe tem força de lei)

“the king can do no wrong” ou “le roi ne peut mal faire” (o rei não pode

cometer erros).

O princípio da legalidade que veio a ser consagrado

não afastou o fantasma da opressão.

Sua pauta é um avanço sensível, mas o seu

estreitamento conceitual pode transformá-la em uma verdadeira cortina, capaz

de interditar a visão mais nítida de aspectos patológicos no comportamento

público que não são flagráveis, “prima facie”, como uma violência direta a

própria lei.

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As resistências a um controle que alce vôo para além

da “lex”, exibem-se protegidas, não raro por falsos dogmas, dentre eles, quiçá,

o mais forte - o da separação dos Poderes.

O certo é que a veneração do Poder em altar mais

nobre do que aquele em que se processa o culto da liberdade é,

provavelmente, a fonte mais rica dos desvios de conduta sobre os quais se

debruça esse trabalho.

Em uma contribuição ao estudo do que

denominaríamos, em sentido amplo, “teoria da arbitrariedade”, procuraremos

desfiar as mais pujantes manifestações do descaminho da administração.

O ponto de abertura dá-se, exatamente, a partir do

estudo genérico da figura do arbítrio, marca reveladora do descompasso entre

a administração e o interesse público e de cuja figura se emergirão as demais

outras.

A sequência de trabalho enfrenta uma reabordagem

do chamado desvio de finalidade, apontando-lhe nunces novas, questionando-

lhe aspectos, dados como assentados.

Em seguida cuida-se do desvio de procedimento,

figura quase ignorada no nosso sistema jurídico, não obstante o seu relevo, a

sua significação e a necessidade do aprofundamento do seu estudo.

Em especial, foi dado destaque ao silêncio

administrativo, como manifestação específica da inércia administrativa

genérica por se revelar como pauta de procedimento juridicamente reprovável

por parte da administração.

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Agindo ou omitindo-se a administração pública ora

exerce prerrogativas que lhe são conferidas indevidamente, ora faz uso

indevido daquelas que, com legitimidade, lhes são outorgadas, conspirando

em um e em outro caso contra o interesse público.

Nesses descaminhos, encerramos a dissertação com

o estudo do enriquecimento ilícito, meio pelo qual a administração

desequilibra as relações societárias, operando uma injustiça na distribuição da

carga pública e traduzindo uma forte quebra no princípio do tratamento

igualitário entre os cidadãos.

A dissertação teve, como propósito básico, o enfeixe

sistematizado de figuras que estão a merecer um tratamento teórico

uniformizado, para que melhor se possa compreender os seus pontos comuns

e em sequência desenvolver uma profilaxia adequada.

Sempre sentimos falta de um estudo sistematizado

do que denominamos emanações patológicas da administração, um pouco a

exemplo do que se dá no direito civil com a chamada “teoria dos vícios” nos

negócios jurídicos – essa é a despretensiosa contribuição que julgamos poder

oferecer nessa área tão palpitante do direito administrativo.

A ótica de enfrentamento levou em conta,

deliberadamente, aspectos estruturais de cada uma das figuras, de modo a se

delinearem os traços mais significativos, as evidências mais palpáveis, os

sinais mais visíveis, deixando-se de lado cogitações mais pontuais ou

setorizadas.

O direito positivo brasileiro é trazido com

frequência, mas sobretudo, como exemplo e como forma de inserção no

contexto maior do direito administrativo em geral.

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O estudo da jurisprudência mereceu destaque

especial pela nossa íntima crença em que o direito mais pulsante é aquele

efetivamente praticado nos tribunais.

De outro lado, abandonamos um pouco a dedução

para construirmos categorizações a partir de um processo indutivo, tomando-

se em conta as realidades emergentes.

Afinal, o direito administrativo, historicamente, foi

construído mais pelos juizes do que pelos doutrinadores.

Nesta hora, o que fizemos foi juntar esforços.

Bem sabemos que a abordagem de segmentos não

explorados ou pouco visitados, envolve riscos muito grandes.

O primeiro desses riscos concerne em não se

encontrar a reflexão crítica prévia, como termômetro capaz de aferir o acerto

ou desacerto das nossas ilações.

O segundo entrave conecta-se, exatamente, à

imperfeição metodológica na abordagem, já que as trilhas não se encontram

abertas.

Um último ponto que nos acorre, diz respeito à

dificuldade na busca das fontes que, por natural, se tornam inexistentes ou

escassas.

Estamos convencidos desses obstáculos, mas, por

igual, alentados com a possibilidade de trazer algo com alguma valia.

Menos pelos acertos que esse trabalho possa conter,

mas, muito mais pela provocação que possa gerar uma reflexão global e

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sistematizada sobre os desvios de conduta da administração pública e a busca

dos corretivos adequados, encontramos o alento para idealizá-lo.

Que venha a crítica! Será mais do que bem vinda.

Será essencial.

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CAPÍTULO I

DA ARBITRARIEDADE -

Tomaremos, como arbitrária, a ação administrativa

não lastreada em uma causa racional e eficiente à sua adoção.

Nesse sentido, a expressão é colhida, também, como

gênero do qual são espécies todos os desvios de conduta - daí o porquê da

primazia da abordagem que se concede agora.

A arbitrariedade, como um vírus que destrói o

organismo social, aloja-se, de forma quase sempre disfarçada, em atitudes ou

ações revestidas de um grau de aparente credibilidade.

Pretende-se demonstrar que determinadas categorias

aceitas como suporte de uma doutrina geral do direito administrativo não

estão imunizadas contra a inoculação arbitrária, revelando-se, muito ao

contrário, como terreno propício a sua disseminação.

Da Razoabilidade -

Abandonemos os fetichismos, para

compreendermos, com mais facilidade, que, em torno da matéria, o cerne da

questão está em que a solução jurídica busca a razoabilidade, como critério

de interpretação, excludente da arbitrariedade.

A conduta administrativa será arbitrária se não vier

atrelada a um traço de razoabilidade cuja presença é o aval absoluto e

indispensável de sua legitimidade.

É o que desejamos estabelecer, para maior alcance

do conceito da arbitrariedade, o contra ponto com a razoabilidade de tal sorte

que a presença de uma exclua a da outra.

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O enfrentamento de tal postura reclama um estudo

da natureza do direito, de ordem a encontrá-lo como ciência dedicada ao

comportamento humano, do que resultante, necessariamente, da sensibilidade

aos valores que são intrínsecos ao alvo de enfoque.

Efetivamente, nas ciências ideais, como nas naturais,

a perspectiva da valoração, não contribui absolutamente para a riqueza do

conhecimento distintamente do saber da cultura, cuja compreensão passa

necessariamente por esse patamar.

Se alguém tece considerações estéticas sobre a

figura geométrica, considerando, o círculo como símbolo da perfeição, em

nada acresce a descoberta matemática das propriedades que tal figura guarda.

Na mesma trilha, é irrelevante, do ponto de vista do

naturalista, que se projete conceito de formosura sobre um certo animal ou de

horripilância em relação a outro, porquanto, efetivamente, a tal segmento

específico só importarão classificações de ordem biológica, tais como, a

filiação a uma determinada espécie, a um certo gênero ou mesmo a um dos

três reinos.

Com a cultura na qual se insere a massa de

modelagem do jurista, passa-se fenômeno inteiramente diferente.

Nenhum hermeneuta do direito conseguirá realizar a

subsunção da norma à conduta, se não fotografar os valores que circundam o

trajeto interligatório entre o fato e a norma em questão.

Daí, para conceituar um procedimento como furto, o

operador jurídico verificará que, na comunidade onde se desenvolve a

incriminação de tal prática, considera-se reprovável a subtração da coisa

alheia móvel.

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Esse conceito de reprovabilidade não é

absolutamente o do agente, mas aquele inerente aos valores societários

imantados.

Não fosse isso, poderíamos ter posturas inteiramente

díspares, como a de um juiz, supostamente marxista extremado, que

considerasse toda propriedade como algo de coletivo, não vendo mal algum

em que se tomasse para uso coisa que necessariamente não seria privada, mas

destinada ao desfrute comum de todos.

Esse hipotético juiz absolveria o acusado de tal

conduta.

Ao revés, um julgador, devoto rigoroso do

capitalismo, veria na agressão à propriedade individual o mais hediondo dos

crimes, aconselhando-se a impor a pena capital ao transgressor desse ícone

sagrado.

Devemos convir, em qualquer circunstância, que,

independentemente do perfil ideológico, enquanto juízes, um e outro, em uma

comunidade como a nossa, não podem desconsiderar a ilicitude da conduta

como por igual e não lhes cabe o exarcebamento da pena além do marco

legal.

Com esse raciocínio, quer-se demonstrar que a tarefa

no Direito não é a de projetar valores sobre determinado objeto, mas

encontrar aqueles que lhe são próprios.

Nessa linha de exposição, veremos que o

administrador e o juiz não são absolutamente sujeitos de vontade, mas

intérpretes sensíveis de matizes sociais impregnados na vigência societária

com a força da juridicidade.

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Vai daí que não se pode conceder uma liberdade

ontológica de escolha da administração na prática de determinados atos, mas

antes só se lhe pode admitir o dever de interpretar, coerentemente, o que

recomendam as instâncias normativas – essa premissa é tão válida nas

condutas vinculadas quanto nas discricionárias.

Se a norma condominial proibir que se criem

animais de quaisquer espécies em unidades residenciais, agirá

desarrazoadamente o síndico do edifício que proíba a manutenção de um

simples aquário, embora a regra repressora seja de caráter fechado.

Do mesmo modo, não terá fundo de razoabilidade a

construção de uma escola de primeiro grau em uma área onde

comprovadamente inexista demanda escolar, malgrado se possa entender que

a previsão de edificação de prédios escolares ensejaria conduta discricionária.

Não deve causar espanto a idéia de que

administrador e juiz estejam convocados permanentemente a fixar

procedimentos discriminatórios, porque esse é exatamente o papel da norma.

Fundamental é discutir-se a razoabilidade ou não do ato de discriminação, isto

é, o seu assentamento em bases legítimas.

Essa idéia vem claramente exposta por Moris

Forkosch, Professor de Direito Constitucional da Brooklyn Law School: “The

right to legislate implies the right to classify... From the very necessities

of society, legislation of a special character, having these (police power)

objects in view, must often be had in certain districts... Special burdens

are often necessary for general benefits... In other words, general

legislation which applies to all persons (or property), and gives or takes

equally from all, is contrasted with special legislation which applies to

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less than all, and gives or takes special burdens to or from this special

group” (1)

Percebe-se, então, que o antídoto contra a

arbitrariedade é exatamente a razoabilidade na decisão, seja ela administrativa

ou judicial.

No sistema norte americano, a idéia da razoabilidade

tem fincado marcas na busca de um critério que, embora aplicado a uma

situação, seja por igual estampado em situações análogas.

Devemos à jurisprudência norte-americana a

construção da categoria doutrinária das chamadas classificações suspeitas,

que são aquelas que não derivam de uma base lógica, mas antes emergem de

fatores absolutamente aleatórios ou incontroláveis.

Nessa linha, estariam os discriminativos

relacionados a sexo, credo, cor e outros tantos. A nítida repercussão

pragmática desse arcabouço reside em inverter-se a presunção de

constitucionalidade do ato legislativo.

Classificações suspeitas, como se passou a

denominar um mecanismo discriminatório espúrio, envolveriam a resultância

de um efeito a partir de uma causa absolutamente não aceitável.

O que importa é saber que a arbitrariedade emerge

não do processo distintivo em si mesmo, mas do critério inaceitável da

distinção.

A Corte Constitucional Italiana tem buscado

estabelecer um critério de racionalidade de modo a admitir ou não as 1 Apud. Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Devido Processo Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil, p.156.

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discriminações legislativas ante o princípio formal da igualdade de todos

perante a lei.(2)

San Tiago Dantas a respeito da razoabilidade das

classificações legislativas oferece-nos um exemplo, segundo o qual seria

aceitável dispensar-se de um determinado exame um cientista de notório saber

em uma área específica, ao mesmo tempo em que se teria por inadmissível

dispensá-lo do pagamento de impostos por esse mesmo motivo. Na primeira

situação uma discriminação razoável, na última um procedimento arbitrário.

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Há que se estabelecer, portanto, um divisor de águas,

a partir do qual se estabeleça que um ato administrativo (ou legislativo) é

arbitrário pelo atrelamento desarrazoado de causas inadmissíveis a

conseqüências inaceitáveis. Em contrapartida, é razoável quando se suporta

em uma premissa eficiente que instigará um efeito adequado.

Veja-se, no particular, interessante aresto em que se

considerou arbitrária a exigência de uso de uniforme por servidor público,

quando tal fardamento em nada aproveitava ao desenvolver das atividades. A

Corte julgou desarrazoada a pretensão do ente administrativo.(4)

Por um Critério de Razoabilidade Excludente da Arbitrariedade -

Afinal, o que deve ser considerado razoável e o que

deve ser tido por arbitrário na administração pública?

2 Biscaretti di Ruffia, Diritto Costituzionale, p.719. 3 “ A lei que isentasse de concurso o premiado com a mais alta distinção científica seria aceita pela consciência geral como lei justa; se, porém, dispensasse esses mesmos premiados de pagarem o imposto de renda ou, ainda mais, se lhes retirasse o direito de voto, sente-se que a provisão seria arbitrária, e indaga-se se o Poder Judiciário pode recusar-lhe aplicação por motivo constitucional.” (Problemas de Direito Positivo, p.56) 4 “Administrativo. Servidor civil. Obrigatoriedade do uso de uniforme. A obrigatoriedade do uso de uniforme sem qualquer vinculação com a operacionalidade da função exercida ou qualquer relação de razoabilidade com o interesse público ou funcional é exigência descabida e arbitrária que vicia o ato por ausência de legitimidade”. (DJ 04.10.91, pag.24460)

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Um recurso à psicologia existencial nos leva,

necessariamente, a convir que a estabilização das relações humanas repousa

em laços básicos de confiança em condutas de futuridade a partir de um

histórico anterior.

A experiência antecedente é sempre o grande

conselheiro no que tange à previsibilidade do acontecimento futuro, e a nossa

linha de ação acomoda-se quando as coisas acontecem dentro desse grau de

previsível apoiado na nossa vivência histórica.

Tem-se dito, sem contestação, que o conhecimento

do passado é a melhor forma de enfrentamento do futuro, porque há sempre a

idéia de um movimento cíclico na existência que reproduz os fatos já

acontecidos.

Não é por nada que a visão hegeliana da tese,

antítese e síntese, ganhou tanto prestígio, exatamente pelo significado de que

o extrato sintético não é mais do que um desdobramento de processos

antecedentes.

Admita-se que uma visão pós-moderna do direito

busca reconstruir uma escala em que se contemple a tese, a antítese e a

convivência; esta última, como momento de equilíbrio, no qual é possível

sustentar-se a sociedade sem aguardar novas verdades, relativizando-se as

visões já postas.

De tudo resulta a busca de um binômio

confiança/estabilidade, em que o primeiro elemento projeta o segundo.

Embora consideremos sempre arriscado o recurso à

metodologia de outras ciências, não fugimos em busca da construção do

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razoável a um conceito de progressão que revela, exatamente, um

encadeamento confortável do espírito lógico.

Se no exercício de progressão matemática simples

enuncio 2, 4, 6, 8, nutrimos a segura esperança de que o leitor continue o

nosso enunciado inscrevendo os dígitos 10, 12, 14, 16..., sucessivamente.

Se não quebramos essa ordem, não incluímos

bruscamente um elemento estranho, (41.p.ex.) processo uma atitude razoável

e, portanto, posso dizer que o dígito 12 não foi incluído arbitrariamente.

A sedimentação desses conceitos deverá impedir a

sobrevivência maldita do que denominaremos “crônica de uma liberdade mal

contada da administração pública”.

A Liberdade na Administração Pública: Um Mito Perigoso -

É hora de dizermos algumas palavras sobre o que se

tem chamado de liberdade plena, liberdade restrita ou margem de liberdade na

administração pública.

Radicalizemos. A administração não tem, nunca,

nenhuma liberdade.

O ponto de partida para essa afirmação categórica

decorre da avaliação lógica do poder.

O seu caráter instrumental emerge da circunstância

já afirmada que toda potestade reduz a carga de liberdade, valor primacial no

ordenamento jurídico, porque diz com a sua própria carga de existência.

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Não há direito, se não há liberdade, na medida em

que a perspectiva da licitude ou da ilicitude supõe uma relação contigencial e

não necessária.

Não é possível, por óbvio, juridicizar a conduta dos

animais que percorrem um mesmo traçado, nem a dos vegetais que

desenvolvem-se no ciclo repetitivo ao longo da história.

Só o homem é ator e sujeito do Direito, porque pode

ser livre; daí a liberdade ser a essência da energia jurígena.

É inequívoco então reconhecer-se que a

administração pública ao estabelecer parâmetros e limites, para garantir a

liberdade de uns, cerceia a de outros.

Nesse ato constritor da liberdade a que

denominamos poder, que se aparelha para o cumprimento do dever

administrativo, não pode haver liberdade de nenhuma espécie e em sentido

próprio.

Ninguém tem a liberdade de tirar a liberdade alheia.

Por essa norma, qualquer flanco que induza a liberdade na administração

envolveria um caráter opressor.

Se tiver alguém a liberdade de interditar uma rua

quando deseje e se a interdito, baseado pura e simplesmente nessa liberdade,

não faço outra coisa senão oprimir os seus moradores e desgarrar-me do papel

de administrador.

Afinal, ad-ministrar significa ministrar para alguém

e em proveito de alguém. Em contrapartida, a liberdade se exercita em

proveito próprio e pessoal.

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Se essas colocações epistemológicas não bastassem,

valeria recorrer ao argumento de que ao se admitir alguma liberdade na

administração, nenhum recurso seria permitido em relação aos atos do

administrador, porque a liberdade que exercito é irrevisível por terceiros.

A conclusão ,é portanto, óbvia. A exercitação dos

poderes administrativos não tem qualquer grão de liberdade a tal ponto que o

administrador possa, mas não deva, porque se tiver possibilidade é porque

terá o dever de realizar.

Descarte-se, em direito administrativo, a faculdade

que não seja prestação, para se prestigiar a doutrina italiana que ensina

encontrar-se o administrador público em pleno estado de “doverosità”.

De tudo se infere que liberdade na administração é,

desenganadamente e em qualquer porção, arbitrariedade.

Enfrentemos, agora, a questão das condutas

vinculadas e das discricionárias com o objetivo de demonstrar uma certa

manipulação conceitual nesses segmentos, capaz de permitir a prática do

arbítrio.

Atos discricionários e atos vinculados, eis uma

dicotomia tão ao gosto da doutrina tradicional que nos desafia a dissecá-la,

para evitar os descaminhos que estamos a perseguir.

Em sede vinculada, o modelo a ser seguido

encontra-se pré-ajustado e delineado na própria lei, de modo que a

racionalidade do ato administrativo decorreria do seu exato cumprimento,

enquanto que o arbítrio emergiria do seu desvio.

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Logo, se o contribuinte do imposto sobre a renda

tem um determinado ganho, submeter-se-á ao pagamento de um valor,

segundo uma alíquota pré-fixada, sem que se cogite de qualquer outra

alternativa.

Do mesmo modo, aquele aprovado em primeiro

lugar em concurso público deve ser chamado com preferência sobre os

demais, única postura juridicamente admissível.

Diz-se que é fácil perceber quando o procedimento

foi legítimo ou, ao revés arbitrário, desafiando nesse caso os corretivos

judiciais sem causar maior polêmica.

Toda a dificuldade, contudo, exibir-se-ia no

momento em que a preceituação normativa não comportasse uma hipótese

fechada mas, ao contrário, uma situação, hipoteticamente aberta.

É exatamente quando o comportamento não se acha

plenamente dirigido e que, portanto, pode se referir a uma ação discricionária,

o momento mais vulnerável para inocular-se na ação administrativa o viés da

arbitrariedade.

Necessário, pois, redefinir conceitos, aprimorar

esquemas lógicos de modo a não permitir a presença de “corpo estranho” por

força de uma indefinição epistemológica.

O primeiro passo consiste em estabelecer a real

distância, abandonando, sem receio, velhas concepções entre “ato vinculado e

ato discricionário”.

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Descarte-se de plano a idéia de que pode haver

vinculação plena, isto é, prática de ato exatamente idêntico, em sua dimensão,

àquele capitulado na norma.

Por mais que o legislador tenha se esforçado para

preconizar uma determinada solução, nem sempre será esta realmente

possível ante a variável imensa da liberdade humana que comporta uma

interpretação jurídica inteiramente diferenciada da exegese normativa “in

abstracto”.

Essa convicção resulta de uma melhor teoria do

direito que entende que a exata interpretação é da conduta e não da norma.

Tomemos a seguinte situação real:

Deverá o juiz alterar o prenome de uma pessoa,

segundo a lei brasileira, quando tal indicativo a exponha ao ridículo, ou ainda

quando se verifique erro de grafia no assentamento?

Noticiou a imprensa nacional que determinada

brasileira, mantida sob a guarda do serviço de proteção a testemunhas do

governo americano, corria perigo de vida ao prestar depoimento contra a

máfia daquele país, pretendendo, por isso, transferir-se para o Brasil,

naturalmente incógnita, tendo realizado operação de plástica facial, ao tempo

em que iria requerer a alteração dos elementos de sua identidade.

À luz dos termos expressos da lei, tal pleito não

poderia ser agasalhado, tendo em vista o limitado espaço concedido ao

julgador.

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Concordarão todos – sem hesitação - que a negativa

a tal pretensão importaria em desprestigiar o direito à vida - o de maior grau

na escala dos contemplados no ordenamento jurídico.

Contraposta, por esse ângulo, a norma ao fato, a

solução jurídica deve-se amoldar à realidade, não se devendo ter por

injurídica a conduta do magistrado que dê trânsito ao petitório.

Com esse singelo exemplo, pretende-se mostrar que

não há conduta plenamente vinculada, do que são indícios suficientes, a teoria

da imprevisão, da inexigibilidade da conduta diversa, da aferição da

capacidade contributiva, dentre outras suscetíveis de ensejar a exata

qualificação jurídica, diante de um “standard” pré-concebido.

Inúmeras outras situações poderiam ser levantadas

em que o aparente cumprimento da lei, na sua concepção abstrata, resultaria

em plena agressão à harmonia do ordenamento jurídico.

Considere-se que, por uma questão de legalidade

estrita, não é dado a um motorista trafegar em sentido contra-indicado em

uma determinada artéria. Além do risco natural de vida, praticará uma

ilegalidade pré-definida.

A ilegalidade não estará presente, logicamente, se

esse condutor estiver a bordo de uma ambulância ou de um carro qualquer,

em busca de agilizar trajeto com o fim de conduzir um acidentado a uma casa

de saúde.

Nesse caso, o ordenamento jurídico, longe de

anatemizar a contra-mão, descerá sobre ela suas bençãos, porque naquela

circunstância, no encontro de valores, a obediência ao indicativo de tráfego

ficou superada em relação à proteção à vida.

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Multiplicados poderiam ser os exemplos, a partir dos

quais a modelagem legal, por mais inflexível que pareça, cede espaço a uma

conduta vivenciada de modo atual, como a mais adequada.

Afinal de contas, “dura lex, sed lex” não passa de

um adágio de boa rima, mas de pouca consistência.

Vinculatoriedade e discricionariedade são, como

pretendemos demonstrar, muito mais uma questão de grau, do que de

qualidade.

A arbitrariedade, como já vimos, pode residir, quer

nos atos vinculados, exatamente, às vezes sob o argumento de se estar

cumprindo a literalidade da lei, quanto pode se verificar nas chamadas

condutas discricionárias em que o “tatbestand” acha-se potencialmente aberto.

É exatamente, todavia, no campo da

discricionariedade que proliferam os atos arbitrários com mais vigor.

Vale, pois, aperfeiçoar-se o conceito da

discricionariedade para se evitar, justamente, que nela o arbítrio se aloje.

Discricionariedade Revisitada -

O primeiro aspecto que deve chamar a atenção será

o da adoção de condutas dirigidas ou herméticas que gerariam atos vinculados

e, ao contrário, a existência no texto legal de remissões a condutas não

delineadas ou a escolhas múltiplas e compatíveis.

Não é de se supor, como bem percebe Celso Antônio

Bandeira de Mello(5), que o legislador tenha revelado extrema preocupação

com a conduta adequada em certas situações, de tal modo a prever a 5 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, p.32

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ocorrência de fatos com seus exatos desdobramentos e, por outra parte tenha,

mostrado inteira indiferença pela solução que lhe venha a dar o administrador.

Não parece admissível que o fato de tornar a licença

para construir em ato vinculado, isto é, ensejando de antemão ao administrado

cotejar a sua possibilidade, sem margem de esquiva para a administração,

traduza-se numa preocupação de resultado pela instância legislativa, enquanto

que, ao exigir autorização para criação de uma escola, dependente da análise

de fatores circunstanciais não pré-estipulados, sintonize com um desinteresse

pelo desfecho.

Seria inteiramente vesga a ótica que estabelecesse a

distinção entre atos vinculados e discricionários, conferindo aos primeiros alta

importância, enquanto aos últimos baixa significação.

O lógico e intuitivo é concluir-se que o legislador

imagina sempre a conduta ideal, traçando parâmetros ora mais fechados, ora

mais abertos relativamente aos supostos fácticos dos efeitos jurídicos

derivados.

O certo é que, em qualquer circunstância, a exata

solução jurídica só se plenifica com a impactação do fato à norma hipotética,

produzindo-se, então, o direito.

É falso, além de malicioso, o mito de que a

discricionariedade resultaria no propósito de conceder-se liberdade de ação

para o administrador, negada nos atos vinculados.

Ao permitir-se, como ocorre, o manejo flexível do

orçamento pelo Executivo, não se pode imaginar que os gastos na

administração pública não mereçam um controle mais acurado.

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O fenômeno é simplesmente o de que o

aprisionamento da despesa poderia gerar, segundo as circunstâncias,

resultados indesejados, decorrentes de um planejamento rígido que não se

tornasse adaptável aos eventos factuais.

Ainda que a administração pública possa dispor de

verbas para investir em segurança, age, ilegalmente, o administrador que faça

construir um presídio feminino com alojamentos substancialmente superiores

ao contingente previsível de infratoras a serem abrigadas.

Outra conclusão não resta senão a de que a busca da

otimização do resultado é que leva, em um determinado momento, a

preestabelecê-lo com traços mais nítidos e, em outros, a fixá-lo “a posteriori”,

assegurando uma interação mais rica. Disso deflui a absoluta inexatidão no

sentido de que a discricionariedade se reflita, ontologicamente, em uma

margem de escolha.

Demonstrar-se-á, a seguir, que essa suposta margem

é absolutamente inocorrente, quando a largueza das hipóteses, na concepção

abstrata da norma, reduz a solução concreta a uma postura única.

Nos moldes da Constituição Brasileira, o ensino é

livre à iniciativa privada e sujeito a autorização e sistemas de avaliação e de

controle de qualidade por parte do Estado.

Em outros países, como na Espanha, (Constituição,

art.27) regras semelhantes estão postas.

Dir-se-á que, nesses modelos políticos, conferiu-se

discricionariedade na outorga necessária ao funcionamento de

estabelecimentos escolares.

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A primeira tentação é a de se afirmar que, nesse

caso, confere-se liberdade ao Estado na avaliação necessária à autorização de

criação de uma escola.

Agora, suponhamos que um empreendedor voltado

com a preocupação altruística da qualidade de ensino, apresente entre nós um

projeto acadêmico para uma Faculdade de Direito, com professores, todos

eles portadores do grau de doutor, com as mais modernas instalações, os mais

sofisticados equipamentos, turmas reduzidas e tudo mais quanto se pudesse

imaginar em termos de excelência.

Submetido tal projeto aos órgãos competentes,

caberia perguntar se estaria eventualmente aberto à negativa de autorização.

A resposta será necessariamente única. É dever do

Estado assegurar o funcionamento de tal escola sem quaisquer outras

conjecturas, sob pena de completa traição à ideologia da norma.

Com isso, pretende-se fixar a idéia de que, em dados

momentos, a decisão converge para um único vetor, não deixando qualquer

alternativa ao administrador.

De outro modo, teríamos que admitir que o

legislador deixou de ser uma instância valorativa da sociedade para transmiti-

la ao administrador.

Tomemos um outro paradigma que nos diz bem de

perto do exercício da tarefa docente na Universidade: Com o propósito de se

estabelecer um ordenamento no processo de verificação de aprendizado dos

alunos fixou-se a realização de exames periódicos em datas unificadas para

todos os discentes.

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Acudiu, em boa hora, à Instância Universitária a

previsibilidade de que algum aluno não pudesse comparecer em determinada

ocasião ao exame designado.

Fixou-se, então, uma Resolução pela qual o

estudante seria admitido a realizar a prova em segunda chamada em caso de

doença comprovada pelo serviço médico da instituição ou por motivo

relevante a critério do professor.

Vê-se, aí, que a norma criou dois pressupostos, um

deles de caráter vinculado e um outro de natureza discricionária.

Quanto ao primeiro, não há dúvida de que o

interessado enfermo, comprovando, por atestado, tal circunstância, fará a

prova.

Em caso contrário, tudo dependeria do critério do

mestre.

Agora, imagine-se que o seu discípulo dirija-lhe

explicação na qual demonstre que não pôde acorrer ao teste, porque, quando

se dirigia ao estabelecimento escolar, foi compelido a dar socorro a um

acidentado, levando-o a um hospital, de tal sorte que só se desvencilhou de tal

missão a desoras.

Não se quer imaginar a possibilidade de que um

lente venha a negar uma segunda chance, escudado na premissa de que tudo

dependeria de um seu critério e, como tal, produto de uma vontade.

Soa evidente que uma negativa de tal ordem seria

despropositada e ao que nos interessa, flagrantemente ofensiva ao

ordenamento jurídico.

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A expressão critério, nesse caso, não deixou

margem a que a única conduta possível fosse a admissão da segunda

chamada.

Há de se admitir, por esse raciocínio, que a ação do

administrador envolve uma interpretação única e razoável, para além da qual

remanescerá o puro arbítrio.

Em especialíssimas circunstâncias, pode-se imaginar

a impossibilidade existencial de vir o Judiciário a detectar, dentre as

possibilidades em jogo, qual delas realiza com mais precisão o desígnio

normativo em um dado momento.

Continuar-se-á negando a possibilidade de escolhas

múltiplas, muito embora, nesse caso, por mera insuficiência instrumental, não

seja dado ao Judiciário substituir o administrador sem a segurança de estar a

realizar um juízo corretivo.

Tão somente nesses casos é que o Poder Judiciário

não anulará a ação tomada, sem que isso signifique a sua impossibilidade de

adentrar ao exame amplo e profundo da deliberação acolhida, exatamente

para concluir pela existência de mais de uma opção não descartável, segundo

uma ótica aguçada, como adequada à situação.

Cumpre acrescentar que as posições de vanguarda

têm admitido o controle judicial, mesmo nas ações administrativas mais

delicadas, quais sejam aquelas que, além de envolverem uma diagnose,

também concentram um alto grau de prognose, como se dá no chamado

“exercício do planejamento”.

No direito alemão, proliferam as situações de

controle judicial em hipóteses, dessa ordem, como a de verificação de

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necessidade de construção de escolas, de edificação de pistas rodoviárias, de

interferência no sistema de trânsito.

À guisa de exemplo, Antonio Francisco de Souza

nos traz o seguinte e valioso depoimento: “ ...os tribunais administrativos

alemães têm exercido o seu controle, por exemplo, nos seguintes casos:

Verificação ou não da necessidade de construção de uma escola;

necessidade de descongestionamento do trânsito de uma estrada; fixação

de um limite de velocidade; determinação do número necessário de

partidas paralelas aos caminhos-de-ferro para o descongestionamento do

trânsito; alteração de sentido de uma estrada; orientação e gestão de uma

estrada; construção de uma pista para aviões; construção de um

cruzamento, de uma passagem subterrânea ou de uma ponte;

características técnicas de uma estrada; escolha do troço de uma

estrada”.6

É evidente que, nessas circunstâncias, a mensuração

do ato administrativo dá-se dentro de determinados limites, com o fim de se

afastar a arbitrariedade.

Nesse sentido, os tribunais investigam se a causa da

escolha é eficiente, se os métodos de avaliação foram rigorosos, se é

sustentável a valoração dos interesses individuais frente aos interesses

públicos, se é proporcional o equilíbrio entre os interesses em causa, se existiu

ou não um juízo de ponderabilidade.

Obviamente, o auxílio de dados estatísticos, de

cálculos probabilísticos, de estudos socio-econômicos são fundamentais ao

preenchimento da idéia de sustentabilidade jurídica da decisão tomada.

6 Conceitos Indeterminados no Direito Administrativo, pag.154/155

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Essa postura é colocada de antemão para

verificarmos o quanto se acha perdida no tempo a concepção de controle

administrativo, ainda vigente em muitos sistemas, dentre os quais se inclui o

brasileiro que, por vezes freqüentes, estabelece a insindicabilidade plena,

quando não resvala para a idéia da discricionariedade técnica, isso tudo sem

falar no apelo aos conceitos indeterminados, objeto de uma reflexão mais

demorada nas páginas vindouras...

Da Chamada Discricionariedade Técnica -

Dentre as diversas tentativas de subtrair ao controle

do Poder Judiciário os atos discricionários que, como temos visto, reclamam,

bem ao contrário, maior profundidade na incursão, exatamente para aclarar a

existência de uma ou de mais opções e se entre várias existe a mais adequada,

descortina-se o apelo à chamada discricionariedade técnica.

A expressão é originária de Bernatzik, eminente

Professor da Escola de Viena que, nos idos de 1886, em obra sob o título

“Rechtsprechung um materielle Rechtskraft”7, capitulou determinadas

soluções administrativas como resultado de um complexo processo de

encadeamento que não se resolveria em puro silogismo, a administração

pública desataria as suas decisões, projetando um estado de multivalência

inabalável pelo Poder Judiciário.

O pensamento foi, durante muito tempo, prestigiado

nos tribunais austríacos, vindo depois a cair em declínio.

Tudo, não obstante, fez fortuna entre os países que

compõem o chamado sistema francês, dentre eles Itália, Espanha, Portugal e o

próprio Brasil.

7 Apud. Antonio Francisco de Souza, Conceitos Indeterminados no Direito Administrativo, pag. 34

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Ainda recentemente, o Superior Tribunal de Justiça

recorreu a essa espécie de categorização, ao entender que, em tema de

concurso público de provas, o Poder Judiciário não pode substituir os

examinadores “quanto aos objetivos fontes e bases das questões”.

Acentuou a Corte que, na elaboração e avaliação das

provas, agem as comissões com discricionariedade técnica.8

É verdade que, nesse tema específico, mesmo a

Alemanha, que desponta em uma posição de dianteira em relação aos demais

sistemas jurídicos, sempre manteve certa reserva, mantendo sobre a hipótese

um controle restrito.

Sucede que, em decisão tomada em 17/04/1991, o

Tribunal Administrativo Federal Alemão ampliou consideravelmente a sua

ingerência sobre a matéria, examinando aspectos, como sustentabilidade

técnica das respostas dos candidatos, dentre outros temas.

Com efeito, não é admissível do ponto de vista

lógico, que a discricionariedade técnica possa ter, como suporte, a dificuldade

que os tribunais venham a ter ao analisar o acerto ou desacerto da

administração.

Se há matéria técnica a ser examinada, para tanto

existem os peritos que, na sua função, prestarão apoio aos órgãos judicantes.

8 “Administrativo - Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional (Edital ESAF/CRS/DPMF/N.35/84) - Concurso público - forma, critérios e conteúdo dos quesitos - competência da banca examinadora - alcance da apreciação judicial. 1. Em tema de concurso público de provas, é cediço que o Poder Judiciário, aprisionado a verificação da legalidade, não deve substituir os examinadores quanto aos objetivos, fontes e bases de avaliação das questões. As Comissões examinadoras organizam e avaliam as provas com discricionariedade técnica. 2. Edital escoimado de ilegalidade. 3. Recurso improvido.” (STJ, RESP-0011211, Turma 01, DJ 26.09.1994)

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Ainda em Portugal, a escusa da discricionariedade

técnica tem servido, como fonte de alheamento da Corte judicante em certos

aspectos.

Tome-se, a exemplo, a seguinte passagem: “as

decisões que se situam no domínio da discricionariedade técnica da

Administração são judicialmente insindicáveis, sem prejuízo da ocorrência

de desvios de poder, ou em relação a qualquer aspecto vinculado de

incompetência, vício de forma ou violação de lei, e, bem assim, os casos

extremos em que o critério adoptado pela Administração se mostre ou se

revele manifestamente desacertado e inaceitável”9

A inclusão da idéia de erro manifesto gera um outro

tipo de problema, qual seja a de se saber quando uma deliberação

administrativa está equivocada e, ainda com isso, deva ser mantida tão

somente, porque o engano não é manifesto. Mesmo assim, deve ser

considerada como um marco do descortinamento das decisões

administrativas, sombreadas pelo véu da discricionariedade técnica.

Estamos tentando mostrar que a discricionariedade é

o manto preferencial no qual a arbitrariedade busca abrigo. Quanto mais se

puder elastecer a idéia de discricionário, mais se protegerá o arbítrio.

Vai daí que, de um modo geral, sem receio de erro,

podemos afirmar que nas letras nacionais e, em grande escala, nas alienígenas

tem-se buscado inserir o fenômeno da indeterminabilidade conceitual no

elenco que projeta a discricionariedade.

9 Acórdãos Doutrinais n.228, p.1.420 e n.192, p.1.155 — Supremo Tribunal Administrativo

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Nosso trabalho, agora, é estabelecer os diferenciais

cabíveis para inibir mais um avanço do arbítrio sob uma fantasia, claramente

identificável.

Discricionariedade e Conceitos Indeterminados -

A questão da indeterminação conceitual, embora

transite pelos mais diversos cantões do Direito, colhe acesa importância na

área do Direito Administrativo. É que nas questões civis haverá um único

tribunal a plenificar o conceito, enquanto nesse específico ramo do direito

público, em um dado momento, cabe à administração avaliá-lo e, em um

segundo instante, ao Judiciário perquirir a correção de tal avaliação.

Parece paradoxal que, ao mesmo tempo em que as

demandas sociais fazem proliferar a regulamentação abundante dos diversos

aspectos da conduta, venha a proliferar em larga escala a técnica relativa ao

uso dos conceitos indeterminados.

Urgente, relevante, perigoso, grave, notório,

substancial são expressões utilizadas amiúde, sem que, de logo, se possa dar

um aprisionamento conceitual unificado.

Nem por isso deve-se imaginar que essa

indeterminação de conceito signifique abdicação do legislador em favor da

esfera administrativa.

Ao contrário, a pretensão à abrangência cria

conceitos elásticos, exatamente com o fito de abrigar situações imprevisíveis

ou, no mínimo, de difícil previsibilidade.

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De igual modo, o uso dos conceitos indeterminados

é propício a preservar a atualização dos padrões jurídicos que, pelo seu caráter

modular, adaptam-se com mais facilidade à evolução temporal.

Nesse compasso, resgatam-se, com mudança de

conteúdo intrínseco, expressões, como “substâncias tóxicas”, “serviços

essenciais”, “segurança pública” e outras tantas, cuja amplitude e dimensões

serão dadas em função da época que regulará a vigência societária.

É óbvio que a busca do “numerus clausus”, nas

direções acima, teria contribuído para a imprestabilidade de normas que

desapareceriam na poeira do tempo.

Disso não decorrerá, jamais, que tais conceitos

possam se afirmar como peças meramente estilísticas, esvaziadas de juízos

normativos, como, lamentavelmente, têm sido tratadas, na prática, por boa

parcela da doutrina e até da jurisprudência.

Em primeiro lugar, urge reativar o discurso, segundo

o qual a determinação ou indeterminação de conceitos é uma questão muito

menos de substância mas, sobretudo, de escala.

Mesmo os signos classicamente tidos como

determinados, exibem-se distintos, quando acareados com a realidade factual

que lhes muda o semblante.

As conceituações indeterminadas jamais perdem um

determinado grau de precisão.

Tomemos a noção de coisa, objeto do estudo dos

direitos reais, no campo do direito civil.

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Tal idéia, por mais aprisionada que possa parecer,

como elemento de corporificação física, abrangerá talvez o entendimento de

corrente elétrica, a tal ponto de se falar especificamente no furto de energia.

O significado de coisa pode também abranger a obra

de construção civil, cujo valor é mensurável pela quantidade de material

empregado, pela metragem de edificação, ao mesmo tempo em que alberga a

idéia de um livro que será mais ou menos valioso em função da contribuição

intelectual, que revele, e nunca da sua massa ou volume.

A tecnologia, por sua vez, provoca distúrbios na

conceitualização do legislador. Como definir-se morte? A morte cerebral, a

falência múltipla dos órgãos, o estado chamado meramente vegetativo?

Não há, pois, nem a elasticidade plena, nem a

inelasticidade absoluta, tratando-se a questão, fundamentalmente, de uma

variação de grau.

Classificação importante proposta por Martin

Gonzalez, pertinente aos conceitos jurídicos, vale ser aqui reproduzida.

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A transcrição supra demonstra, sem dúvida

nenhuma, um enfrentamento claro e determinado da categorização dos

conceitos jurídicos o que, por si só, a torna valiosa.

Sem embargo disso, não emprestamos a nossa

concordância quanto à estreiteza relativa aos conceitos indeterminados e,

sobretudo, quanto à concepção de que estes, em sentido próprio, não

comportam determinação.

Firme-se que a indeterminação provoca,

necessariamente, a determinabilidade, porque se algo é indeterminável não

tem porque habitar o mundo jurídico, cuja carga de objetividade se revela

como pressuposto da estabilidade das relações sociais.

Velha regra de hermenêutica, aliás, ensina-nos que a

lei não contém expressões ou palavras inúteis do que resultariam, afinal, os

conceitos indeterminados, se fossem privados da apropriação de qualquer

sentido.

Exemplos múltiplos nos vêm a mente para

demonstrar que o caráter indeterminado, quando posto diante de uma

situação, resolve-se em clara e plena determinabilidade.

Todos concordarão que são relevantes para um

professor o estudo e a pesquisa.

Ninguém duvida de que é perigoso dirigir um

veículo em velocidade incompatível com uma determinada via.

Diante de um prédio em incêndio é urgente a sua

desocupação.

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As obras sociais de Irmã Dulce são benéficas à

população pobre.

Uma cidade infestada por cólera vive um grave

problema de saúde.

A educação é decisiva para o desenvolvimento.

Vê-se, aí, que a indeterminação na hipótese não

impediu uma apropriação induvidosa e única do significado de relevante,

perigoso, urgente, benéfica, grave e decisiva.

Nessas situações, não podemos conceber qualquer

discricionariedade, mas tão somente o desafio a uma interpretação da qual não

se pode afastar o administrador.

Nem ao menos a chamada “zona cinzenta”, onde a

aplicabilidade dos conceitos possa ser tarefa de mais difícil alcance, consegue

convertê-los em “conceitos discricionários”.

Não se negue - é bom prevenir - a possibilidade de

que o legislador queira instituir a conduta discricionária e, para isso, valha-se

de conceitos indeterminados.

Tal postura será meramente acidental, jamais

essencial.

Sobre a matéria, o melhor tratamento que

encontramos de António Francisco de Sousa, justifica que lhe chamemos, de

novo, à colação: “A autoridade legiferante ao aplicar conceitos

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indeterminados pode ter todas as intenções, menos a de atribuir “ipso

facto” um monopólio de interpretação e aplicação a administração”.10

Efetivamente, nos conceitos indeterminados, temos

uma pauta de valores já cristalizados que impõem um mero juízo de

acertamento na feliz expressão que nos vem da doutrina italiana.

O tratamento igualitário que, de regra entre nós, se

tem dispensado a ambas as categorias, deve-se provavelmente à circunstância

de que o legislador, quando pretende conferir discricionariedade à

administração pública, com alguma freqüência, instrumenta o administrador

com conceitos indeterminados, embora não seja isso uma “conditio sine qua

non”.

Vejamos a hipótese traçada na Constituição

Brasileira, no seu art. 37, onde se estabelece que os cargos em comissão

independem de concurso e, por isso, podem ser providos por livre nomeação,

e os seus titulares são destituíveis “ad nutum”.

A exceção aberta ao princípio do concurso público e

da estabilidade no cargo foi trabalhada, simultaneamente, com um conceito

indeterminado e com uma previsão de conduta discricionária.

Em primeiro lugar, temos a idéia de cargo em

comissão, cuja apreensão conceitual não está entregue ao administrador mas,

por igual, ao juiz e ao cidadão comum.

Que se deve entender por cargo em comissão? Será

qualquer cargo que a lei o considere? Se valer tal raciocínio, não haveria por

que estabelecer-se o conceito, bastando a lei determinar os cargos que

deveriam ser de livre nomeação e exoneração. 10 op cit., pag.80

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Não é verdadeiro o raciocínio.

Inconstitucional será a lei que torne em comissão

cargos que, em essência, não tenham essa qualidade.

É freqüente assistirmos a burla do legislador com o

propósito de afrontar a universalidade do acesso.

Verifiquemos, de pronto, que, “a priori”, podemos

conceber os cargos em comissão como aqueles que atribuem encargos

relevantes e específicos aos seus titulares, distintos das atribuições rotineiras.

A rigor, o titular de um cargo em comissão expõe a

administração a riscos nas atividades de planejamento e de política

administrativa.

Essa exposição é legítima e não poderia deixar de

ser de outra forma, tendo em vista a ação de vanguarda que deve desempenhar

a administração.

Se um presidente de comissão de licitação “escolhe”

um determinado produto dentro de critérios razoáveis de ponderabilidade,

mesmo quando se demonstre que a “escolha” não foi a melhor, não se há que

responsabilizá-lo, porque esse é um risco inerente à sua atividade.

Não se dará ao mesmo com o vigilante, o tesoureiro,

o motorista, porquanto, embora todos possam pôr a malogro o patrimônio

público, só o conseguirão se agirem com conduta reprovável.

Logo, é lícito perceber-se que não pode a lei criar

como cargos em comissão ou de confiança aqueles destinados a atividades,

como as descritas no último parágrafo.

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Note-se que o conceito é indeterminado, mas, nem

por isso, impossível de ser preenchido.

Já agora, configurar o verdadeiro cargo em

comissão, se a lei o determinar, o administrador terá a perspectiva de proceder

à indicação do seu titular, bem como de efetuar o desligamento.

Verificou-se, aí, a conjugação de um conceito

indeterminado com uma conduta discricionária.

Nunca é demais insistir que essa discricionariedade

não se dá em favor do agente administrativo. Ao contrário, é feita para

ampliar-lhe a responsabilidade. Sim, porque o agente nomeado em tais

condições constitui-se em verdadeiro “alter ego” do nomeante.

A crítica que se possa fazer sobre o nomeado,

projetará reflexos sobre o administrador dirigente que, por isso, prestará

contas de forma mais responsável pela sua atuação pública, não valendo o

argumento de que não contou com auxiliares capazes ou afinados com sua

direção de modo a propiciar-lhe um trabalho mais profundo.

Veja-se, então, que mesmo essa escolha,

aparentemente livre, pode se encaminhar para um leque mais restrito de

opções, tendo-se em conta uma determinada conjuntura.

Por seu turno, a chamada exoneração “ad nutum”

não chega a ser fiel à literalidade da expressão latina.

Seria um contrasenso jurídico exonerar-se um

servidor sem um motivo real, ainda que não necessariamente declarado.

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É tanto que, podendo ser o desligamento imotivado,

se a administração o motiva, prende-se inquestionavelmente às razões

declaradas, como tem sido pacificado no nosso entendimento Pretoriano.

O exemplo trazido pretendeu exatamente estabelecer

a distinção necessária entre indeterminação conceitual e ação discricionária.

Permitimo-nos aclarar essas idéias com a

exemplificação dúplice da utilização de um conceito determinado para

suportar uma ação discricionária e, de outro lado, a da referência de um

conceito indeterminado para ensejar uma conduta vinculada.

No primeiro caso, veja-se na Constituição Brasileira

que os Tribunais Regionais Eleitorais têm na sua composição dois integrantes,

necessariamente Juízes de Direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça.11

Nesse caso, ninguém tem dúvida quanto ao conceito

de Juiz de Direito, por abranger aqueles investidos, regularmente, na carreira.

Conceito claramente determinado.

A escolha dos dois contemplados que integrarão a

Corte Eleitoral envolve discricionariedade.

Vamos a segunda hipótese.

No âmbito penal, existe a categoria dos

inimputáveis, aí compreendidos aqueles que, por características biopsíquicas,

mostram-se inaptos a compreender a natureza da ação delituosa praticada. Eis

um conceito indeterminado a ser preenchido, quiçá, com forte auxílio da

psiquiatria.

11 Art. 120, § 1º, alínea “b”, Constituição Federal Brasileira de 1988

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Esgotado o preenchimento conceitual, segue-se uma

conduta plenamente vinculada, qual seja a inaplicação de pena.

Afaste-se, nessa ordem, de uma vez por todas, o

pretenso atrelamento da indeterminabilidade conceitual com a

discricionariedade administrativa, porque esta só resultará na exata medida

em que a lei o estabeleça, como forma não de conferir liberdade, mas como

meio de avaliar, contemporaneamente, aos fatos a conduta mais adequada.

Em mais uma tentativa de exorcizar o mito da

liberdade na administração pública, sob os mais variados pretextos, queremos

evidenciar, ainda uma vez, que a discricionariedade envolve instrumentos

apurados, anulação de atos e resposabilização do agente, quando desviado do

espectro exegético que a lei lhe concede. Não cabe, pois, o escudo da

indeterminabilidade conceitual.

Em suma, a indeterminação de conceitos em nada

confere amplitude de ação ao administrador, mas tão somente postura de

interpretação.

Se, em outras passagens, a Lei confere um espaço de

tráfego, mesmo que o faça a partir de conceitos precisos ou de alta precisão,

essa é uma outra questão.

Não se busque, então, o afastamento do Poder

Judiciário, seja a troco de situações delineadas a partir de conceitos

indeterminados, seja mesmo quando se está diante de discricionariedade.

De nada valeria o cânone constitucional imantado

nos países contemporâneos da inafastabilidade da intervenção judicial, se

pudesse valer a esquiva de decisões insondáveis em face do seu caráter

personalíssimo.

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Page 42: Desvios de Conduta da Administração Pública · exerce prerrogativas que lhe são conferidas indevidamente, ora faz uso indevido daquelas que, com legitimidade, lhes são outorgadas,

Com isso não se quer e não se pode impedir uma

ação administrativa flexível e dinâmica a ponto de garantir-lhe não só a

perspectiva de atualidade com os fatos, mas ainda a de futuridade no

horizonte da história.

Nesse passo, devemos conceder, claramente, que a

massa de modelagem do administrador é necessariamente jurídica, não

havendo lugar para atos políticos, excluídos de apreciação ou congêneres.

Somente uma insuficiência teórica levaria a não se

perceber que aquilo que é político, moral, religioso ou estético comporta uma

visão prismática por parte do operador do direito que lhe retirará um estrato

resultante do empírico dialético entre a norma e a conduta.

No direito alemão, após um breve hiato provocado

pelo regime nacional socialista, consolidou-se a idéia de que os conceitos

jurídicos indeterminados comportavam interpretação ampla e ilimitada dos

tribunais administrativos.

Os Conceitos Indeterminados nos Tribunais -

A apropriação interpretativa de conceitos

indeterminados ganhou especial relevância no direito francês,

tradicionalmente mais reticente no particular, a partir do chamado caso

Gomel. Trata-se de um precedente emblemático.

Até então, o Conselho de Estado vinha mantendo a

chamada Teoria do Controle Mínimo, de modo a anular tão somente os atos

em que a qualificação jurídica dos fatos exibissem erro manifesto.

No precedente em tela, pleiteou-se uma licença de

construção em uma determinada área em Paris que foi recusada por atentar

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contra a perspectiva monumental que exibia a “Praça Beauvau”, segundo a

autoridade administrativa, o que impediria a edificação pleiteada. O Conselho

de Estado negou o caráter monumental da praça e autorizou a construção.

Naquela oportunidade considerou o Conselho que: “

la place ne saurait être regardée dans son ensemble comme une

perspective monumentale”.12

Como se observa, o Conselho exercitou controle

pleno, não se intimidando ante a possibilidade de encontrar o efetivo conceito

jurídico de perspectiva monumental.

É oportuno ressaltar que o Supremo Tribunal

Federal Brasileiro, pelo conduto do Ministro Aliomar Baleeiro, no julgamento

do RE-62731, considerou inconstitucional o Decreto-Lei que vedava a

purgação de mora em locações.13

12 Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, 10ª edição, p.160 13 “DECRETO-LEI NO REGIME DA CONSTITUIÇÃO DE 1967. 1. A APRECIAÇÃO DOS CASOS DE 'URGÊNCIA' OU DE 'INTERESSE PÚBLICO RELEVANTE', A QUE SE REFERE O ARTIGO 58, DA CONSTITUIÇÃO DE 1967, ASSUME CARÁTER POLÍTICO E ESTÁ ENTREGUE AO DISCRICIONARISMO DOS JUÍZOS DE OPORTUNIDADE OU DE VALOR DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, RESSALVADA APRECIAÇÃO CONTRÁRIA E TAMBÉM DISCRICIONÁRIA DO CONGRESSO. 2. MAS O CONCEITO DE 'SEGURANÇA NACIONAL' NÃO É INDEFINIDO E VAGO, NEM ABERTO AQUELE DISCRICIONARISMO DO PRESIDENTE OU DO CONGRESSO. 'SEGURANÇA NACIONAL ENVOLVE TODA A MATÉRIA PERTINENTE À DEFESA DA INTEGRIDADE DO TERRITÓRIO, INDEPENDÊNCIA, SOBREVIVÊNCIA E PAZ DO PAÍS, SUAS INSTITUIÇÕES E VALORES MATERIAIS OU MORAIS CONTRA AMEAÇAS EXTERNAS E INTERNAS, SEJAM ELAS ATUAIS E IMEDIATAS OU AINDA EM ESTADO POTENCIAL PRÓXIMO OU REMOTO. 3. REPUGNA A CONSTITUICAO QUE, NESSE CONCEITO DE 'SEGURANÇA NACIONAL', SEJA INCLUÍDO ASSUNTO MIÚDO DE DIREITO PRIVADO, QUE APENAS JOGA COM INTERESSES TAMBÉM MIÚDOS E PRIVADOS DE PARTICULARES, COMO A PURGAÇÃO DA MORA NAS LOCAÇÕES CONTRATADAS COM NEGOCIANTES COMO LOCATÁRIOS. 4. O DEC.-LEI N. 322, DE 7.4.1967 AFASTA-SE DA CONSTITUIÇÃO QUANDO SOB COLOR DE 'SEGURANÇA NACIONAL' REGULA MATÉRIA ESTRANHA AO CONCEITO DESTA. 5. AS SITUAÇÕES JURÍDICAS DEFINITIVAMENTE CONSTITUÍDAS E ACABADAS NAO PODEM SER DESTRUÍDAS PELA LEI POSTERIOR, QUE, TODAVIA, GOZA DE EFICÁCIA IMEDIATA QUANTO AOS EFEITOS FUTUROS QUE SE VIEREM A PRODUZIR.” (STF, Tribunal Pleno, RE 62731, julgamento: 23/08/1967)

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A Corte considerou que não estava preenchido o

conceito de segurança nacional de modo a autorizar, segundo a carta

constitucional vigente, a expedição de um édito daquele porte.

O Tribunal acentuou que, longe de se estar diante de

uma questão afeta à segurança, tratava-se: “de assunto miúdo de direito

privado”.

É bem verdade que, àquela época, entendeu-se que a

urgência e relevância envolveriam discricionariedade ao contrário de

segurança nacional que se resolveria em conceito indeterminado.

Soa claro que a distinção não pode prosperar, mas há

que se levar em conta a excepcional situação em que vivia o país sob a égide

do regime militar, instaurado em 1964, não sendo razoável esperar-se avanços

maiores.

Há que se comemorar, no episódio, a introdução

clara de um conceito indeterminado como não condizente com a

discricionariedade.

Muito mais recentemente, a mesma Corte Brasileira,

ao interpretar o requisito do notório saber para preenchimento de vaga de

conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins negou a existência

de tal requisito em relação a um pretendente, muito embora se estivesse diante

de um conceito claramente indeterminado.14

14 “ Necessidade de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o ofício a desempenhar. Precedente histórico: parecer de Barbalho e a decisão do Senado. AÇÃO POPULAR. A não observância dos requisitos que vinculam a nomeação, enseja a qualquer do povo sujeitá-la a correção judicial, com a finalidade de desconstituir o ato lesivo a moralidade administrativa”. (RE-nº.167137, DJ em 20.04.95)

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Percebe-se, por esse lance, que a indeterminação de

conceito vem sendo captada na sua acepção própria e não naquel’outra que

importa em atribuir discricionariedade.

Diagnose e Prognose - O Habitat da Discricionariedade -

A falsa interpenetração de uma discricionariedade

em sede de conceitos indeterminados restou, em propósito deste modesto

trabalho, positivada nas linhas antecedentes.

Como o arbítrio é indefensável e a

discricionariedade até exigível, utiliza-se a última como porta-estandarte do

primeiro, buscando-lhe abrir portas por quaisquer caminhos que sejam.

Alargar os limites da discricionariedade para além

da sua configuração técnica é resquício do estado irresponsável que quer

proteger a arbitrariedade a todo custo.

Quando, então, se tenta resolver a questão dos

conceitos indeterminados que, por si só, excluem a discricionariedade

renitentes, alguns procuram estender os tentáculos desta última em “locus”,

absolutamente inaceitável, qual seja o da simples diagnose.

Para aclarar o discurso, importa uma salutar

decomposição da norma naqueles momentos flagrados na doutrina alemã,

quais sejam o do “tatbestand e rechstfolge” a indicar um pressuposto

normativo e uma estatuição, respectivamente.

Veja-se a norma: matar alguém alguém, pena de seis

a vinte anos. Há aqui um suposto fáctico do qual desata uma conseqüência .

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É evidente que, em qualquer situação, a

identificação desse suposto fáctico jamais pode abrir espaço à

discricionariedade.

Os fatos não comportam, senão, a apuração da sua

ocorrência.

A ação administrativa que deles decorra, esta sim,

pode ser alvo de uma providência discricionária.

Digamos, pois, que o administrador público, antes

de agir, está sempre chamado a diagnosticar a situação de modo que o seu

atuar se dê em consonância com o diagnóstico feito.

Na tarefa de diagnose, o administrador ou o juiz não

têm qualquer prioridade temporal.

Cuida-se de mero juízo de constatação cuja precisão

ou imprecisão podem comprometer a atuação seguinte.

Nesse teor, verifique-se – com ênfase - não cabe

qualquer espaço de decisão quanto ao que seja substância tóxica, quanto à

idéia de perigo comunitário, quanto ao conceito de monumento histórico-

cultural.

Desenvolvamos o nosso discurso a partir da última

figuração exemplificativa.

Levemos em conta que devem ser tombados os bens

que representem papel significativo para o patrimônio histórico-cultural de

uma comunidade.

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Caberia perguntar, então, se o ato de tombamento é

decisão exclusiva da administração pública.

Imaginemos a Cidade do Salvador, onde desponta,

como símbolo, a Igreja do Senhor do Bonfim, situada na chamda Colina

Sagrada, para onde acorrem turistas e a própria população, dia a dia, ano a

ano, em festejos religiosos ou profanos, mas, marcadamente culturais e

inafastáveis da história.

Não sendo um bem estatal, perguntar-se-á se poderá

ser demolido ou se haverá lugar para uma ação judicial própria em que se

exija o reconhecimento da sua importância no contexto da cultura baiana, de

tal sorte a lhe impor o tombamento.

Não hesitamos em afirmar tal possibilidade.

Se é dever do Estado preservar os bens artísticos,

culturais e históricos, não lhe é dado negar esta característica em relação ao

templo cogitado.

Com isso, pretende-se demonstrar que a

conceituação não é tarefa da administração e, nem ao menos, do legislador.

O papel da administração, enquanto discricionária,

será sempre o de atuar na prognose, ou seja, no que tange às providências a

serem tomadas, sendo certo, embora, que a diagnose já lhe é condicionante.

É que os conceitos jurídicos não são apenas

conceitos de ser, mas também de dever-ser.

Reconhecer que alguém é locatário importa em

admitir que deve pagar o aluguel. Se é depositário, entende-se reconhecer que

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deve restituir a coisa quando solicitada. Se é analfabeto urge saber que, ao

Estado, exige-se que lhe propicie a educação e daí por diante.

É, portanto, necessário que se trabalhe com cuidade

esta dupla relação diagnose - prognose para que ela se faça imune ao fantasma

sempre presente da arbitrariedade.

Da Discricionariedade nos Tribunais Brasileiros -

Reservamos sobre o tema discricionariedade um

espaço para uma amostragem da ótica pretoriana quanto à matéria, face a

nossa crença de que o Direito vivo se produz nos pretórios.

Nesse compasso, cabe dizer que os Tribunais

brasileiros, de certo modo, ainda se revelam reticentes quanto a um

aprofundamento maior nos atos discricionários, ressalvada a hipótese do

desvio de poder ou de finalidade, que será objeto de tema específico.

Em decisão do Superior Tribunal de Justiça, tomada

em 23 de maio de 1994, percebe-se clara referência ao controle limitado à

hipótese de abuso, entendendo-se que em caso de autorização e

funcionamento de sociedade seguradora, “a discricionariedade foi entregue à

administração pública”.15

15 ADMINISTRATIVO - SEGUROS - AUTORIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DE SOCIEDADE SEGURADORA - VINCULAÇÃO E DISCRICIONARIDADE DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA - CÓDIGO CIVIL, ART. 20 - DECRETOS-LEIS 73/66, 60459/67, 1115/70 E 83383/79 - PORTARIAS NS. 289/70 - MIC -, 607/79 E 234/84 - CNSP - 1. A AUTORIZAÇÃO PARA FUNCIONAMENTO DE SOCIEDADE SEGURADORA CONDICIONA-SE AOS CRITÉRIOS DA CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE, CONSUBSTANCIANDO A DISCRICIONARIEDADE, CUJA OBSERVÂNCIA FOI ENTREGUE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 43, "A" E "B", DECRETO-LEI 60459/67). O ADMINISTRADOR É QUE DEVERÁ APRECIAR SOBRE OS FATORES DE ADMISSIBILIDADE E FUNCIONAMENTO DA SEGURADORA, FICANDO O ABUSO, SE DEMONSTRADO, SUJEITO AO CRIVO DO JUDICIÁRIO. 2. A COMPROVAÇÃO PARA EXPEDIÇÃO DE CARTA PATENTE (ARTS. 75 E 76, DECRETO-LEI 73/66) REFERE-SE AO CUMPRIMENTO DE FORMALIDADES LEGAIS OU EXIGÊNCIAS FEITAS NO ATO DE AUTORIZAÇÃO. 3. A AUTORIZAÇÃO NÃO ESPANCA O EXAME DA CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE DO FUNCIONAMENTO DA SOCIEDADE, CONFORME PRUDENTE ANÁLISE DO ADMINISTRADOR, ISENTO DO TIMBRE OU INTUITO DE

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Em posição mais à frente, percebe-se que essa

mesma Corte permitiu-se examinar a existência de interesse público em

exigência de edital que restringiu a participação de concorrentes.16

Da mesma sorte, a Corte assentou entendimento de

que: “ Discricionariedade atribuída ao administrador deve ser usada com

parcimônia e de acordo com os princípios da moralidade pública, da

razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de desvirtuamento”.17

É evidente que, por absoluto alinhamento à corrente

francesa mais conservadora, encontramo-nos muito longe das investidas dos

tribunais alemães, sinopticamente noticiadas acima.

No particular, em relação à ação administrativa

genérica, a imunidade ao controle parece ser atônica.

Exemplificativamente, o Superior Tribunal de

Justiça entendeu que existe para o Executivo um “gozo de total liberdade e

discricionariedade para eleger as obras prioritárias a serem realizadas

ditando a oportunidade e conveniência desta ou daquela obra não sendo

dado ao poder judiciário obrigá-lo a dar prioridade a determinada tarefa do

poder público”.18

ABUSO. 4. RECURSO PROVIDO. (STJ, RESP 6245/DF, DATA DA DECISÃO: 20/04/1994, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 23/05/1994 PG: 12555) 16 ADMINISTRATIVO - LICITAÇÃO - EDITAL - CLÁUSULA RESTRITIVA - DECRETO-LEI 2.300/86 (ART. 25, PARÁGRAFO 2., 2, 1ª PARTE). 1. A EXIGÊNCIA EDITALÍCIA QUE RESTRINGE A PARTICIPAÇÃO DE CONCORRENTES, CONSTITUI CRITÉRIO DISCRIMINATÓRIO DESPROVIDO DE INTERESSE PÚBLICO, DESFIGURANDO A DISCRICIONARIEDADE, POR CONSUBSTANCIAR "AGIR" ABUSIVO, AFETANDO O PRINCÍPIO DA IGUALDADE. 2. RECURSO IMPROVIDO. (Superior Tribunal de Justiça, RESP 43856/RS, DATA DA DECISÃO: 07/08/1995, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 04/09/1995 PG: 27804) 17 RESP 79761, STJ - DJ 09.06.97 18 RESP 138901, STJ - DJ 17.11.97

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“Venia concessa”, se existem prioridades; elas, por

si mesmas, impõem um dever de preferência, inibindo a liberdade do

administrador.

Em síntese, a idéia de controle de conveniência e

oportunidade, quando embutida em conceitos jurídicos indeterminados,

encontra-se em um estágio que, a exemplo do português, muito aquém do que

seria de se desejar do ponto de vista defendido nesta despretensiosa

monografia.

Já há luzes claras, como se notará, lançadas no

sentido de que a arbitrariedade já é flagrada nas diversas situações jurídicas e

poderá ser coibida se, com clareza, se vier a adotar uma sistemática teórica

que venha a extremar os pontos que separam discricionariedade de conceitos

indeterminados, expurgando-se ainda idéias de liberdade na administração ou

posições superadas, como a da discricionariedade técnica ou, ainda, a da

discricionariedade no âmbito da diagnose.

A Arbitrariedade Enfrentada em seus Esconderijos - Uma Perspectiva de

Síntese -

No decorrer deste capítulo, propusemo-nos a

mostrar, como desvio de conduta da administração, a arbitrariedade.

Oferecemos, como indicativo à mensuração do grau

de arbítrio, a relação inversa com a razoabilidade.

Cuidamos de espantar falsos lastros de alojamento

do arbítrio, especialmente no campo da discricionariedade, sob os seus

diversos matizes, dos conceitos indeterminados e da indiferenciação entre a

diagnose e a prognose.

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Resta a necessidade de positivar-se um conceito que

preferimos fosse extraído pelo método indutivo a partir da abordagem dos

precedentes já noticiados e dos “encapsulamentos” expostos.

Deitadas as premissas, sem rodeios, poderemos

afirmar que é arbitrária a conduta, com ou sem apoio em texto legal expresso,

que resulte da vontade do administrador e não dos elementos de

ponderabilidade que contemplem a vertente diretriz única do interesse

público.

Será sempre arbitrária a conduta -

independentemente da intenção do agente - o que se verá depois, quando

resulte não de uma mensuração das exatas expectativas sociais, mas da

produção de uma vontade exposta ou oculta, com “prius” para o

administrador, e não, para o administrado.

Político, Presidente da República Brasileira, auto-

proclamado cultor da língua portuguesa, Jânio Quadros cunhou frase famosa

aqui reproduzida: “Fi-lo porque qui-lo”.

Não fosse o arremessado da linguagem, estaria aí a

mais pura expressão da arbitrariedade na administração pública, exteriorizada

na ação movida pura e simplesmente pelos antecedentes psíquicos do agente.

Arrisquemos uma frase de efeito. A vontade em

direito privado é excelência. Em direito público, excrecência.

A partir daqui abriremos o capítulo seguinte com o

estudo do desvio da finalidade, o mais conhecido heterônimo metamórfico em

que se disfarça a arbitrariedade.

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CAPÍTULO II

DESVIO DE FINALIDADE

A primeira questão que se nos afigura relevante é a

de retornar-se ao conceito de poder para, afinal, encontrar-se o momento em

que a autoridade se desvia desse poder por não cumprir a finalidade para a

qual foi instituído.

É evidente que não estamos cuidando aqui do vício

primário de ausência de competência, porque, nesse caso, colheríamos o ato

em plena ilegalidade por pressuposto de validade.

Assente-se, pois, que a autoridade, para desviar-se

da finalidade do ato, deverá ser formalmente competente para praticá-lo, já

que, de outra forma, não caberia cogitar da figura.

É bem verdade que se poderia distinguir uma

chamada competência formal daquilo que, com amplitude, denominaremos

competência material.

Em um sentido muito amplo, caberia imaginar que o

agente que pretende cobrar tributos indevidos não teria tal prerrogativa, já que

a lei lhe confere esse atributo especificamente, quando se está diante de um

ato legítimo.

Incompetente seria a autoridade para interditar a

construção de um imóvel que estivesse a se erguer em conformidade com o

ordenamento.

Pensamos, sem embargo, que a radicação da

competência na materialidade do ato traria, apenas, a utilidade pragmática

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para envolver, com mais facilidade, a interferência do Poder Judiciário que se

sente mais confortável, quando investiga um vício de natureza externa.

Isso não obstante, continuamos a manter o conceito

clássico de que a competência se dá “in abstracto”, embora possamos,

perfeitamente, conceber uma idéia de competência material que diz respeito

diretamente à legitimação.

Cuidando-se de competência formal, cabe indagar

quando é bem manejada ou quando é mal esgrimida.

O primeiro suposto lógico que nos vem a mente é o

de que a idéia de administração se contrapõe à de “dominus”. O administrador

não é senhor, mas agente delegado que exerce suas atribuições em nome de

outrem.

Nesse diapasão, cabe-lhe ao agir, indagar sempre

quanto ao fim a ser perseguido.

Ao contrário do direito privado, em que o móvel

central é a vontade, aqui a pedra de toque é o interesse público, traduzido em

uma teleologia especificamente normatizada.

Daí porque, se é válido o princípio ontológico,

segundo o qual tudo que não está proibido está facultado, para que ele se

complete é necessário acrescer-se que, para administração, tudo que não está

facultado, está proibido.

Evidentemente, ninguém questionaria o particular

que estacionasse o seu veículo onde não houvesse proibição expressa. Ao

contrário, cabe sempre perguntar ao agente de trânsito, com base em que ele

emite uma ordem proibitiva de parada de um automóvel.

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Ainda, como prolegômeno de uma concepção

axiológica do Poder, permitimo-nos desenvolver o raciocínio que contempla a

idéia de que a potestade é restritiva da liberdade o que, aliás, já enunciamos

antes.

Vale dizer que, quanto mais estou submetido ao jugo

de outrem, menos livre me encontro.

Na tábua de valores jurídicos, é inequívoco que a

liberdade sobrepõe-se hierarquicamente ao Poder.

Por isso, o cidadão, ao submeter-se à administração,

abre mão de parcela da sua liberdade que há de ser a mínima eficiente à causa

da organização social.

Sempre, pois, que o administrador transpõe, com sua

força, a necessidade de ação eficiente, agirá com desvio.

Essa digressão nos permite afirmar de modo bem

simples que o desvio de finalidade ou de poder haverá sempre, quando se

ultrapassar a necessidade do cumprimento do dever.

Inequivocamente, o tratamento metodológico da

figura em exame que constitui espécie do gênero arbitrariedade, deve-se, nos

seus primórdios, ao Conselho de Estado da França.

A Evolução da Jurisprudência Francesa -

No sistema francês, como é notório, o Direito deve,

sobretudo ao pretório, o avanço nas construções dogmáticas sobre a matéria.

A partir da jurisprudência do “Conselho”, foram-se

fincando pilastras básicas que serviram ao alicerce da figura sob exame.

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O precedente invocado, como paradigma, é o

chamado caso “Lesbasts”.19

Cuidava-se de negativa do prefeito à pretensão do

proprietário de ônibus que desejava estacionar no pátio de uma estação

ferroviária na cidade de Fontainbleau.

A recusa do alcaide devia-se ao interesse em dar

cumprimento a contrato firmado entre a empresa ferroviária e outro

proprietário de ônibus ao qual se assegurava exclusividade no desembarque

local.

Entendeu o Conselho que o poder de polícia não

podia ser agitado, senão com o fim de guarnecer a ordem pública, jamais com

o intuito de tutelar interesses, mesmo que contratualmente protegidos.

Situação interessante é aquela em que, quando nos

idos de 1872, estabeleceu-se um monopólio estatal dos fósforos com o

propósito de economizar recursos na desapropriação das unidades produtoras,

o Governo decidiu fechá-las sob a alegação de que não tinham autorização

regular, invocando, para tanto, o poder de polícia.

A decisão foi anulada ao entendimento de que o ente

governamental não poderia, a pretexto de obter uma economia, utilizar-se de

motivação estranha, qual seja a não renovação da licença.20

Ainda sobre o tema, convém registrar que o

Conselho de Estado desde 1935, pelo menos vinha recusando aplicabilidade a

Decretos Leis que exorbitassem da fonte legitimadora da sua edição.21

19 “Lesbats, Rec. 209, concl. L’Hôpital : les préfets ne peuvent <<régler l’entrée, le stationnement et la circulation des voitures publiques ou particulières dans les cours dépendant des stations de chemins de fer>>, que <<dans un intérêt de police et de service public>> et non pour assurer l’exécution d’un contrat entre une compagnie de chemins de fer et un entrepreneur de voitures publiques”. (In. op cit, pag.27) 20 CE 26.11.1875, Pariset. Rec 934.

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No exemplário, ainda deve ser anotada decisão

anulada que importou em restringir a circulação em uma rodovia, não por

motivo de segurança, mas com o fim de redução dos gastos de sua

manutenção.22

Esse retrospecto é feito com o objetivo de enunciar

as bases em que se erigiu o desvio de poder, evidenciando, de logo, o nosso

intento de não associá-lo a uma atitude “mal intencionada”, necessariamente,

por parte do órgão estatal, como frequentemente tem sido a ênfase dada à

matéria.

Veja-se, propositadamente, que não pode ser

censurável a idéia de economizar recursos para o erário, como pontuado nos

casos anteriores.

Da Construção Dogmática do Desvio de Poder -

Feita a referência histórica à jurisprudência francesa,

pensamos que é hora de definirmos conceitualmente a figura, naturalmente

como um instante maior de consolidação de todo o trabalho pretoriano, já

agora com as achegas da doutrina que recolhe a experiência na fonte e projeta

novas dimensões, como semáforos, para o futuro.

Georges Vedel acentua que o desvio de poder

consiste no fato de que uma autoridade administrativa utilize seus poderes

com vistas a um fim distinto daqueles que lhe foram conferidos.23

Mais adiante, registra que o interesse público,

historicamente, sempre se submeteu às decisões administrativas.

21 CE 29.11.1935. (apud. Laubadère, André de, pag.105) 22 CE 12.11.1927. (apud. Laubadère, André de, pag.104) 23 Derecho Administrativo, Biblioteca Juridica Aguilar, pag.506/507.

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Em arremate, garante que a noção de violação da lei

que permite os controles dos motivos`, torna possível substituir ao controle

subjetivo, sempre delicado das intenções, o controle objetivo da existência

dos fatos ou de sua qualificação.

Essas observações têm extrema pertinência, porque,

sem dúvida, a referência à questão legal foi, apenas, uma necessidade

histórica de garantir tráfego ao controle, não correspondendo, hoje, a um

conceito doutrinário de maior precisão.

“Violação de Lei” nas origens francesas passou a

ganhar amplitude de incompatibilidade com o ordenamento jurídico,

considerado como um todo.24

Para Maurice Hauriou, o desvio de poder vai além

da simples ilegalidade, configurando-se como imoralidade administrativa.25

Sobre essa questão que tanta ênfase tem ganho no

direito brasileiro — a moralidade administrativa — lançaremos provocações

ao entardecer deste capítulo.

Sem dúvida nenhuma, se tomarmos como limite do

poder — e já o temos afirmado — o exercício do dever, devemos considerar,

de suma importância, o critério da proporcionalidade que nos permite aferir a

dosagem adequada do uso do poder em contemplação ao dever a ser exercido.

Daí, porque julgamos pertinentes as observações de

Laubadere, Venezia e Gaudemet, quando cogitam em torno da matéria do

controle da proporcionalidade que, ao seu sentir, pode exatamente mensurar a

correspondência entre a necessidade do ato praticado e o fim efetivamente

24 Op cit. pag.506/507 25 Précis élémentaire de droit administratif. Paris: Recueil Sirey, 1938

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buscado, encontrando-se nesta via um novo princípio geral do direito que

permitirá ao juiz alcançar as condutas discricionárias...26

Nos diversos sistemas jurídicos, tem-se reconhecido

as bases da doutrina francesa, permanecendo os conceitos em similaridade

com as matrizes históricas.

É nesse sentido que os italianos empregam

expressão “sviamento di potere” ou os autores de língua espanhola definem-

na como “desviación de poder”.

Na língua inglesa, a expressão é conhecida como

“abuse of discretion”.

Marcello Caetano pretende que seja o desvio de

poder o vício que afeta a prática discricionária consistente na utilização, pelos

órgãos competentes, de instrumentos legais com fins diversos daqueles

conferidos pela lei ou por motivos com esta incompatíveis.27

No direito brasileiro, Cretella Júnior, autor de

monografia específica sobre o assunto, descreve o desvio de poder, como “O

uso indevido que a autoridade administrativa competente faz do poder

discricionário que lhe é conferido, para atingir finalidade diversa daquela

que a lei explícita ou implicitamente preceituara.”28

26 “ qui permet au juge, même dans le cas de pouvoir discrétionnaire, d’apprécier si une décision administrative n’est pas disproportionnée et excessive eu égard à la situation qu’elle vise, pourrait à la rigueur être rattachée à l’idée de violation d’un nouveau principe général du droit, le principe de proportionnalité et être ainsi analysée autrement que comme une pénétration du juge dans l’exercice du pouvoir discrétionnaire”. (Traité de Droit Administratif, Tomo I, 12ª edição, pag.578) 27 Manual do Direito Administrativo, vol. I, pag.506 28 O Desvio de Poder na Administração Pública, Editora Forense, 4ª edição, p.31

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Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o desvio de

poder agiganta-se, quando a autoridade usa do poder discricionário para

atingir fim diferente que a lei fixou.29

Hely Meirelles tem o desvio de poder como aquela

hipótese em que: “a autoridade embora atuando nos limites de sua

competência pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados

pela lei ou exigidos pelo interesse público.”30

Celso Antonio Bandeira de Mello, que marca sua

visão por um caráter manifestamente teleológico, enxerga o desvio de poder,

como “o manejo de um plexo de poderes procedido de molde a atingir um

resultado diverso daquele em vista do qual está outorgada a competência.”31

Abuso, Excesso e Desvio -

Freqüentemente, tem-se usado as expressões abuso,

expresso e desvio com amplitude equivalente.

A boa metodologia científica recomenda a

submissão ao princípio da unidade conceitual, para se atender a uma precisão

estritamente lógica a uma relação de biunivocidade, de modo que cada

fenômeno seja denominado por um único termo e, ao mesmo tempo, esse

termo abranja um só fenômeno. Daí porque não parece perda de tempo que

nos detenhamos um pouco na busca de uma definição conceitual.

A expressão abuso de poder tem, no Brasil, prestígio

constitucional, tanto que se acha inscrita na Carta Atual (art. 5ª, LXIX), que

repete, sem maiores mudanças, as nossas últimas constituições.

29 Direito Administrativo, 6ª edição, editora Atlas, pag.181 30 Direito Administrativo Brasileiro, editora Malheiros, 20ª edição, pag.96 31 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2ª edição, editora Malheiros, pag.57

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Sem embargo disso pensamos que não seja a

vertente terminologicamente adequada para designar o quadro jurídico ora

sob comento.

Em primeiro plano, trata-se, a nosso ver, de uma

derivação de figura conceitual ainda não bem delineada em direito privado,

qual seja a do abuso de direito.

Se em nossa ótica, vemos sempre o poder vinculado

ao dever, o que é equivalente à prestação jurídica a ser realizada pelo Estado,

não gostaríamos de aproximar a relação do exercício de direitos ao de

poderes, porquanto os primeiros são fins em si mesmos e os últimos são, tão

somente, meios.

Acaso pudéssemos usar uma metáfora da astronomia

diríamos que os direitos são entes luminosos, enquanto os poderes são apenas

iluminados pela força e intensidade do raio da “doverositá”, para prestigiar

uma feliz locução do direito italiano, para a qual até aqui não conseguimos

encontrar tradução adequada.

É correto, então, dizer-se que o direito nasce sob o

signo da liberdade, enquanto o poder emerge num contexto limitado ao papel

que deva exercer na organização social.

Nesse viés, o abuso de direito configura-se em um

limite a ser posto ao absolutismo de uso de certas faculdades que, em

princípios livres, podem colidir com a convivência social harmônica.

Ao contrário, não é possível cotejar-se a abusividade

do poder em si mesma, senão que a sua pesquisa só derivaria da conclusão

oblíqua relativa à transcendência do dever.

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Simplificando, abuso de poder não é mais que

inexistência de dever a ele conectado.

Em razão dessa diferença genética, rejeitamos uma

aproximação do ponto de vista teórico que possa induzir uma mesma base de

origem.

Vejamos a seguinte proposta interessante: “O abuso

de poder afasta do ato administrativo a sua legitimidade, afetando,

também, profundamente, o princípio da legalidade. O excesso de poder,

por sua vez, caracteriza-se no ato da autoridade administrativa que

extrapola os limites de sua competência, invalidando assim os seus

efeitos. Por outro lado, o desvio de poder representa sempre algo diverso

daquilo pretendido pela lei, segue fins não queridos pelo legislador”.32

Apesar de significar uma tentativa hábil de

sistematizar as noções, pelas razões já elencadas, preferimos trabalhar em um

outro vetor.

Para nós, a expressão arbitrariedade

administrativa deve ser a que melhor responde pelo gênero das diversas

disfunções, produzidas pela ação pública.

Essa nossa preferência deriva da idéia de que

arbítrio significa algo que se produz, exclusivamente, a partir da vontade,

demonstrando, de pronto, o divórcio com o dever jurídico que emana

essencialmente do interesse público.

Ao pronunciar um ato, como arbitrário, já o

desqualificamos como originário de um interesse público, deslocando-se a

32 Abuso de Poder no Direito Administrativo, Nova Alvorada Edições, José Carlos Sousa Silva, pag.27

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pesquisa para o elemento finalístico, ao contrário de radicá-la no elemento

causal, qual seja o exercício do poder em si mesmo.

Arbitrária “lato sensu” é toda conduta que não se

afina ideologicamente com o ordenamento jurídico.

A partir daí, não proporemos mudanças substanciais,

para manter a historicidade das espécies, excesso de poder e desvio de poder.

Ambas, já matizadas como arbitrárias, distinguem-se, como acentuaremos, em

seu perfil.

No excesso, a autoridade administrativa vai além do

que se torna necessário ao cumprimento do dever, exercitando sobre o

cidadão uma carga restritiva, proporcionalmente maior do que o resultado a

ser buscado.

No desvio, a administração pública utiliza-se do

poder, atingindo um desiderato não contemplado, ou não admitido, pelo

ordenamento.

Acresça-se, além disso, que a arbitrariedade ao lado

de constituir gênero, em termos estritos, significa o mero manejo de uma

competência inteiramente abstrata que se desloca em uma direção, nem

hipoteticamente admitida pelo direito.

Exemplo disso é a chamada via de fato

administrativa, tão bem espelhada na chamada desapropriação indireta.

Tal “desapropriação” não passa de esbulho por parte

de quem se utiliza da “vis” pública sem perseguir um propósito regular, nem

ao menos na aparência, porque, exatamente, sob a regularidade aparente é que

se encastela o desvio de poder.

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Agora, cabe-nos dizer, pelas mesmas razões de

ordem finalística, já deduzidas acima, que preferimos desprezar a vertente

histórica que consagrou a expressão “desvio de poder”, para prestigiarmos a

tradição local que tem se valido do termo “desvio de finalidade”.

Essa postura permite, com muita clareza,

vislumbrar-se quando o administrador simula um projeto teleológico que não

corresponde ao real.

Finalidade Específica e Não-Genérica -

Primeiramente, vamos discutir se o fim público a ser

perseguido é o genérico, legitimando-se, nessa hipótese, o desvio que consiste

em deslocar-se a administração de um alvo específico para outro distinto,

ainda que ambos tenham natureza pública.

Para o desate da matéria, elegemos o campo das

desapropriações pela fertilidade maior do debate, com a ressalva naturalmente

de que as conclusões extraídas projetam-se, como um todo, à nossa visão da

figura do desvio “sub oculis”.

Cretella Júnior é categórico ao afirmar que o que

importa é o interesse público independentemente da sua especificidade.33

A jurisprudência pátria lhe faz companhia.

Inúmeras são as decisões que, especificamente em

casos de desapropriação, admitem a alteração do destino do bem

33 “ Na realidade, a moderna orientação do direito administrativo exige que o fim seja público. A finalidade pública, mesmo genérica, justifica a edição do ato. O que vicia, pois, o ato, inquinando-o de desvio de poder, é o fim privado, a vontade “distorcida” do agente público que deixa de ser “administrador” para tornar-se dominus. Editado por interesse público, o ato é lícito, mesmo se, especificamente endereçado à finalidade A, é depois, destinado ao fim B, desde que este seja público também” (O Desvio de Poder na Administração Pública, pag.47)

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expropriando, desde que a causa continue contemplada, como de utilidade

pública na Lei específica.

Não haveria, nesse quilate, desvio de finalidade,

caso se pretendesse desapropriar um bem com o fim de construir um hospital

e, por fim, resolvesse edificar uma escola pública.

É tradicional a jurisprudência da Suprema Corte

Brasileira nesse sentido, conforme se colhe de decisão, datada dos idos de

1970, que já se referia a posicionamento consolidado do Tribunal.34

Da pesquisa que aqui empreendemos, em diversas

fontes, inclusive em “internet”, esse entendimento persistiu, muito embora

pela vocação, eminentemente constitucional do Pretório, a matéria tenha

rareado no âmbito das suas cogitações.

A mesma postura tem sido adotada, de um modo

geral, no Superior Tribunal de Justiça, conquanto seja de se esperar uma

gradativa mudança que parece já se prenunciar.

Em decisão tomada em 30 de maio de 1994, aquele

Tribunal acentuou: “Administrativo. Desapropriação. - retrocesso.

descabimento quando o bem expropriado tem destino diverso do

declarado no decreto expropriatório, mantendo, porém, destinação

pública do mesmo gênero”.(n.grifos).35

Percebemos que, de algum modo, já há referência a

homogeneidade genérica quanto ao objeto de destinação o que, de certo

modo, significa um aprisionamento à administração pública.

34 “Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre inexistência do direito de retrocessão ou de perempção legal, quando modificada a destinação primitiva declarada no ato expropriatório, a coisa desapropriada ainda fora empregada para fins de utilidade pública, isto é quando a destinação não perder as características de utilidade pública”. (RTJ 57/46) 35 DJ 22.03.93

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De forma muito incisiva e já anteriormente dando

mostras desse avanço, a Segunda Turma do mesmo Tribunal afirmava: “O

imóvel ao qual não se deu o destino que motivou sua desapropriação deve

ser devolvido ao antigo proprietario, mediante a restituição do preço

pago devidamente corrigido”.36

Julgamos ser absolutamente impossível conceder-se

à administração pública a perspectiva de divorciar-se do fim específico para o

qual elegeu a desapropriação.

A utilidade pública só pode ser medida diante de um

objeto concreto e, se esse é transmudado, pode aquela desaparecer.

Verificaremos, adiante, quando examinarmos os

mecanismos de controle dos atos com vistas a flagrar-lhes o desvio, que foi

conquista do direito francês a interferência do ente judicante no conceito de

utilidade, de tal sorte a exigir dosagem e mensuração da chamada relação

custo/benefício, sem a qual não se chegará, senão, a uma idéia meramente

formal e rotular.

Não será possível discutir-se as vantagens e os

custos sociais da construção de uma rodovia, se, depois, as casas que vierem a

ser demolidas se destinarem à construção de uma fazenda-modelo.

Um impasse se abre; ou a incursão quanto à

utilidade pública será manifestamente epidérmica, ou a mudança de objeto há

de figurar como desvio impeditivo de desvendar-se a exata finalidade.

Com essa abordagem, queremos demonstrar que não

é suficiente, simplesmente, o interesse público genérico, mas a sua

36 DJ 20.05.94

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demonstração “in concreto”, de modo a entender-se que, ainda quando se

possa sustentar uma causa pública abstratamente, poderá ter havido desvio.

Por indisfarçável, ninguém negará a existência de

interesse público na construção de escolas. Em área sem demanda escolar,

essa construção poderá ser considerada um desvio de conduta.

Georges Vedel, enfrentando as várias espécies de

desvio de finalidade, destaca uma situação conexa; porém, com a presente,

qual seja a da existência ou não de desvio de finalidade, quando persista o

interesse público, cuja guarda não esteja entregue à autoridade praticante do

ato.37

Reportando-se a precedentes do Conselho de Estado,

admite-se a existência do desvio, quando um Alcaide, com o fim de impedir a

evasão escolar, limita o funcionamento de estabelecimentos de diversão.

O eminente publicista europeu levanta questão

aguda de extrema pertinência, quando uma medida que, intrinsecamente, não

deve buscar resultado financeiro, é concebida com tal fim.

Nesse quadro, estaria a alienação de bem público,

não porque desprovido de serventia, mas com o objetivo de coletar recursos

financeiros para o ente alienante.38

Insofismável que arrecadar recursos constitui fim

público, mas a questão está em saber se a administração pode sustentar o ato à

base da alegação de que o bem alienado não presta serviço relevante, quando

a sua intenção é outra.

37 Derecho Administrativo, Biblioteca Juridica Aguilar, pag.510. 38 op cit., pag.511

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Diga-se o mesmo, quando o administrador possa

estabelecer um teto de gastos financeiros com o funcionalismo público,

suscetível de provocar demissões em cargos que se revelam de extrema

validade no desempenho das funções estatais.

Em suma, queremos sustentar que, em qualquer

situação em que aja a administração pública, seu desiderato deve ser

claramente definido, sem cambialidades comprometedoras da exata apuração

da afinidade do ato com o fim perseguido.

Da Irrelevância da Intenção no Desvio de Finalidade -

Busquemos uma outra abordagem relevante, qual

seja a da indagação da pertinência do ato intencional na configuração do

desvio.

Segundo o sempre festejado Bandeira de Mello, o

que importa à existência do desvio é o descompasso entre a finalidade e o ato

praticado, ou seja, o desacordo entre a norma abstrata e a norma individual. (o

ato)39

Ao seu turno, Garrido Falla: “ Ahora bien, la

jurisprudencia francesa no solamente ha considerado finalidad espúrea

(por tanto, ajena al servicio) el interés personal del funcionario que actuó

en nombre de la Administración, sino que incluso ha considerado casos

de desviación de poder cuando se ha buscado un beneficio para la cosa

pública, pero no encaja exactamente dentro de la finalidad estricta de los

poderes que se utilizaron”40

39 op cit. pag.73 40 Tratado de Derecho Administrativo, vol.I, Madrid, 1985, pag.670/671

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Em uma linha subjetiva, Jean Rivero alerta, no

sentido de que o controle jurisdicional do desvio de finalidade, demanda do

juiz uma investigação das intenções profundas do seu autor.41

Com base nessa afirmativa, atribui-se a Hauriou a

radicação do tema no âmbito da moralidade – não se pode perseguir tal

proposta.

Afirmamos, sem hesitar, que o ingrediente

psicológico está freqüentemente presente no desvio de finalidade e responde,

seguramente, pelo índice de maior importância na incidência de tal vício.

Apesar de tudo, esse é um terreno da prova que não

diz respeito à ocorrência do fenômeno.

Pode haver desvio de finalidade com extrema boa fé

do agente, mas sem a visão adequada da finalidade da lei.

Suponha-se que um prefeito municipal de uma área

assolada pela seca resolva preencher cargos vagos na administração, movido

pelo propósito de prover a subsistência de determinadas pessoas

desempregadas, embora tais cargos estivessem em via de extinção por projeto

de lei, retirado da Casa Legislativa, que os considerava desnecessários.

Nesse caso, desvirtuou-se, completamente, a

finalidade do cargo público que não atende ao fim, inteiramente legítimo, de

propiciar a distribuição de renda.

Tem-se dito, aliás, que o fenômeno do empreguismo

no Brasil, ainda que por via imprópria, reduziu a concentração de renda e

permitiu a sobrevivência de grupos populacionais carentes.

41 Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 1981, pag.290

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Não deixará de existir o desvio de finalidade, já que

os cargos e empregos públicos destinam-se à prestação de serviços coletivos,

nunca, individualmente, aos seus titulares.

O nosso entendimento é, pois, no sentido de que a

relevância do motivo, que deve ser específico e não genérico, não se

confunde, absolutamente, com a investigação do móvel íntimo do agente

produtor do ato.

Desvio de Finalidade e Imoralidade -

Não poderíamos deixar de traçar um desenho em

torno da chamada imoralidade administrativa.

Compreensivelmente, com a ênfase constitucional

advinda da Carta Brasileira de 1988, seria na aparência surpreendente que, em

uma monografia, que se propõe ao exame dos desvios de conduta da

administração pública não houvesse um destaque em capítulo apartado sobre

a matéria.

A explicação que daremos aos que se frustrem em

tal expectativa é simples. Não estamos convencidos de que a chamada moral

jurídica tenha foros de autonomia, nem julgamos que, em um trabalho

científico, tenhamos que nos submeter às indiossincrasias do legislador, ainda

que do constituinte.

Diga-se, de passagem, que sempre professamos certa

aversão ao sectarismo da doutrina aos comandos legais, no sentido de

emprestar-lhes maior valor do que efetivamente têm.

Antes, um retrospecto, a justificar nossa posição: A

separação entre moral e direito correspondeu ao propósito de libertação dos

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povos que, desde a antiguidade, submetiam-se a imposições geradas sob

pretexto ético pelo império governamental.

A vontade do príncipe sempre encontrou a desculpa

do corolário moral para se imiscuir na liberdade dos cidadãos.

Desde o século XVIII, a humanidade vem,

marcadamente, exigindo que se lhe reserve uma área inteiramente livre da

intromissão do poder.

Pareceu que, após Kelsen, com a sua teoria pura do

direito, encontravam-se extremados os campos da juridicidade e da

moralidade.

Expressões, como bem comum do povo, obrigações

patrióticas, fidelidade ao regime, sempre constituíram buscas de

interferências, quando não se tinha claramente a idéia da administração –

enquanto serviço – posta como subalterna do interesse jurídico delineado para

comunidade.

A partir da separação entre os dois fenômenos, os

teóricos do direito cuidaram de traçar suas semelhanças e dessemelhanças

genéticas e de perfil.

Nesse contexto, concebeu-se o conteúdo da moral

com espectro mais amplo, reservando-se ao direito o chamado mínimo ético.

Não se nega, como na figura abaixo, a existência de

uma interseção sem que isso importe na perda de identidade das áreas e no

método de tratamento:

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Com efeito, é conquista assente de que, enquanto a

moral, pela sua maior amplitude, gera uma maior indefinição, o direito, pelo

seu conteúdo mais restrito, propicia, exatamente, uma compreensão mais

adequada.

Fique assente, como regra epistemológica, que a

extensão alargada importa no estreitamento da compreensão, sendo a

recíproca verdadeira.

A generalidade guarda íntima parceria com a

superficialidade de abordagem, enquanto a especificidade deságua em uma

carga maior de profundidade.

Em uma ilustração meramente didática, podemos

facilmente perceber que uma fotografia aérea, embora muito mais abrangente,

é, por isso mesmo, muito menos precisa em pormenores do que o registro

fotográfico individuado – imagine-se - de um certo monumento em uma

cidade.

O direito, necessariamente, logra a precisão e a

certeza, porque se auto-impõe a restrição, sublimando a perspectiva da

largueza.

Igualmente, a fonte de emanação da norma jurídica

revela uma importância ímpar, porquanto a legitimidade do seu enunciado

decorre substancialmente da autoridade do enunciante, ao contrário do que se

passa com a moral.

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Nesse percurso, "amai-vos uns aos outros" que é

uma máxima da moral cristã não perderia a sua força, se fosse um ensino

maometano.

Ao contrário, se o legislador estadual, entre nós,

instituir a pena de morte, não caberá se discutir do seu acerto ou desacerto,

porque, de pronto, a imprestabilidade da estatuição emergirá de um vício de

competência, do mesmo modo que, em matéria penal, a reserva é da União.

A esse aspecto se diz que, enquanto o direito está

submetido ao princípio dinâmico formal, a moral só acha apoio em uma base

estático-material.

Não se podem - é evidente - transplantar valores da

autonomia para processos de heteronomia.

Há, ainda, a questão da intersubjetividade, como

divisor de águas, bem claro, entre ambos os campos.

O direito tem sempre a marca da bilateralidade,

correspondendo cada ação a uma reação, isto é, considerando que ao meu

dever de fazer corresponde a legítima faculdade de alguém me exigir.

Ao contrário, a conduta moral não pode ser imposta

ou reclamada, no máximo, esperada, sem outra conseqüência mais concreta

que não a censura difusa pela frustração da expectativa.

Assim posta a matéria em tema de epistemologia,

cabe também um diferencial do ponto de vista sociológico.

Referimo-nos às questões da interatividade social.

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A moral propõe um processo de assimilação,

enquanto que o direito se contenta com uma acomodação social, onde os

fatores da organização humana convivam em um sistema heteronomamente

posto.

Ninguém tem dúvida de que a lei não pode abrigar

todas as vertentes da realização jurídica, até mesmo porque tornou-se

tradicional o estudo das fontes do direito, nela se incluindo a legislação, como

uma entre outras.

Nessa linha, é extremamente preocupante que se

pretenda reingressar com um processo de interpenetração, ainda que sob nova

roupagem da moral no âmbito do direito.

Essa tentativa pode ser até sintonizada com a

percepção histórica de que a lei, em si mesma, revela-se como vetor

insuficiente ao direcionamento da sociedade.

Não há, jamais, como justificar um retrocesso pela

simples captura do sentido da insuficiência da lei.

Em primeiro lugar, essa crise de angústia pela hipo-

suficiência legal acha-se mais presente no espírito dos normativistas

arraigados que querem exaurir a interpretação do direito na própria norma.

Para nós que acreditamos que a exegese se dá na

conduta, não há esse pânico, quando percebemos o transmudamento natural

da configuração do modelo hipotético da norma em uma interpretação mais

rica e diferenciada a partir do seu impacto com os fatos.

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Se nos permitirmos uma metáfora, diremos que a

fagulha da norma em contato com o combustível dos fatos faz explodir a

realidade jurídica.

Nesse processo de interação mútua, é natural que

tanto a norma quanto o fato se modifiquem para dar lugar ao direito.

Vejamos uma hipótese do enunciado teórico ora

formulado: Sabemos que os prédios públicos escolares têm destinação

específica, constituindo disfunção do administrador cedê-los para outras

finalidades que não lhes são próprias.

Uma enchente em determinada metrópole brasileira

levou ao desabrigo inúmeras famílias, ao que o prefeito de então, valendo-se

da boa coincidência de que a época era de férias escolares, utilizou diversos

educandários como teto transitório para guarnecer as pessoas desafortunadas

que perderam suas casas, enquanto se buscava a solução mais permanente.

Não temos dúvida em dizer que a solução jurídica

foi inteiramente acertada e quando, muito a propósito, escolhemos uma

situação onde a pauta comportamental do administrador já se encontrava

abstratamente prevista na norma.

A compreensão do evento dá-se, pura e

simplesmente, com o instrumental da razoabilidade, mecanismo de matiz

próprio do direito, sem que se precise aludir a uma moralidade da conduta.

Parece que estamos diante de um falso dilema,

segundo o qual devendo ser a lei produzida exclusivamente pelo Estado e

resolvendo-se toda emanação jurídica na legalidade estrita, qualquer ícone

valorativo, encontrado fora da produção estatal, estaria a se aproximar de um

signo meta jurídico ou, mais precisamente, de valor moral.

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A moralidade seria, então, complemento da dicção

jurídica estatal.

Não é o que pensamos.

Não temos drama de consciência em aceitar energias

nitidamente jurídicas sem natureza obrigatoriamente estatal, como é o caso do

interesse público, que não seja o da administração, daí porque denominado

interesse primário.

É oportuno, aliás, dizer-se que esse infeliz

atrelamento do público ao estatal, como forma de dar ao primeiro amplitude

jurígena, tem-se prestado a toda uma sorte de descaminhos.

Mercê, aliás, dessa falsa aproximação é que ainda se

estabelecem verdadeiros anacronismos, como é o caso entre nós da

classificação de bens, cujo caráter público, equivocamente, só se atribui

quando estes pertencem ao Estado, ainda quando tal pertinência seja

meramente casual, como se dá com aqueles de natureza dominical.

Ao contrário, chega-se à inconseqüência de

considerar-se privado o bem tombado, cuja destinação social é manifesta,

mas, por não ter o Estado, como titular, não é dado como público.

Já passa da hora de se estabelecer a distinção entre

público e estatal com a clareza que possa justificar o atual estágio do direito

administrativo.

Bem a propósito, quem o desejar, poderá encontrar,

sem dificuldade, uma babel arquitetônica na Carta Brasileira de 1988, em

relação ao binômio público/estatal. Basta direcionar-se à leitura tomada só a

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exemplo nos arts.173 § 1º, inciso II, 175 § 1º, inciso I, 188 e 223 da referida

Carta.42

Não conseguimos, francamente, entender a

identificação necessária entre o público e o estatal, até porque resvalaríamos

em uma inevitável tautologia, ao afirmarmos, como é corrente, que o Estado

deve perseguir os fins públicos o que, em última análise, resultaria em dizer

perseguir os fins estatais...

A única explicação possível com a qual atinamos,

será a de que para se dar uma entronização jurídica ao conceito de público,

far-se-ia necessário albergá-lo como fruto da atuação estatal.

Já passa da hora de se perceber que não há

materialmente, sob o ponto de vista do direito, como se distinguirem relações

essencialmente públicas, ou fundamentalmente privadas, senão que sobre

todas as relações jurídicas é possível deitar-se um enfrentamento público ou

submetê-las a uma reflexão privativística.

Veja-se, a propósito, a intimidade, como valor que

desperta uma idéia clara de privado, mas que, raciocinada publicamente,

emerge, como garantia de sustentação de uma sociedade livre.

Ao contrário, a educação, como fenômeno que atrai

os publicistas, por ser elementar dever do Estado, do ângulo pessoal do

interesse de um certo estudante em ser sucedido profissionalmente, torna-se

um enfrentamento privado.

42 No art.173, percebe-se que as empresas ali denominadas públicas deverão ter regime de direito privado (inciso II). Em contrapartida à contemplação do art.175 ver-se-á que as empresas privadas que explorem serviços públicos submeter-se-ão a contrato especial de direito público. No leque dos desencontros o art.188 diferencia terras públicas e devolutas, sinalizando para possibilidade de que estas últimas, embora estatais, não sejam públicas. Uma pergunta ao fim: O que significa complementaridade “dos sistemas privado, público e estatal”? (art.223 CFB)

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O âmago, pois, está em estabelecer-se, segundo

critério que se projete, as implicações individuais ou os reflexos

transindividuais indisponíveis na relação, criando-se, em um caso, a ótica

privada e, em outro, a visualização pública.

Como diria o poeta, “questão só de peso e medida,

questão só de hora e lugar... mas isto são coisas da vida”.

Voltemos ao ponto. Do mesmo modo, como não se

vislumbrava um arcabouço lógico capaz de resgatar a razoabilidade para o

mundo do direito, tentou-se dar-lhe hospedagem no âmbito da moral como

forma de compartimento, pelo menos, do mundo ético genérico, ao qual

ambas as formas vivenciais (moral e direito) são afiliadas.

Uma preocupação inteiramente inútil, já que

podemos falar de um sentido de “público” e de “razoável” com plena força

jurídica, sem um necessário atrelamento a uma carga estatal.

Afirmemos, sem receio, que as energias jurídicas,

produzidas no mundo contemporâneo, não brotam necessariamente do Estado,

mas podem resultar, de igual modo, de organizações não governamentais para

nos utilizarmos de segmentos que tanta e tão merecida atenção têm recebido

nos últimos tempos.

A questão será a de se reconhecerem as condições

necessárias para a produção da norma jurídica eficaz.

Se estas estão postas, aí estará o germen do direito,

sem se abandonar qualquer perspectiva de rigorismo na sua definição

conceitual.

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Se o grupamento se acha tão fortalecido a ponto de

gerar normas às quais a sociedade se submete heteronomamente, não há

dúvida de que aí se atinge o estágio de vigência jurídica.

Em suma, a negação de que o direito seja corpo

anexo da moral ou que nele deva incluir "in natura" os seus pressupostos, não

importa, nem de longe, em fincar a distinção com base em que a realidade

jurídica derive unicamente da ação estatal.

Vejamos, agora, como a moralidade adentra o

campo do direito administrativo sob a perspectiva histórica:

Seguramente, como já afirmado, foi Hauriou que em

primeiro, incluiu o aspecto da moralidade administrativa, como fórmula

suscetível de abrigar o desvio de finalidade.

Segundo o autor, a moralidade administrativa seria a

métrica pela qual se haveria de aferir a existência, ou não, do desvio de

finalidade para além dos parâmetros da estrita violação da lei.

Confere-se, no particular, forte acento intencional o

que terminaria por traduzir o desvio de finalidade no intuito do administrador

praticar o ato em desconformidade com os seus fins institucionais.

Fosse essa a questão, poder-se-ia abandonar como

regra autônoma, a moralidade ante a sedimentação de figura própria no direito

administrativo, qual seja o desvio de finalidade.

Como já sustentamos que tal desvio independe do

elemento intencional, poderíamos pensar na imoralidade, como qualificadora

do desvio, em razão do móvel psicológico do agente.

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Essa questão afigura-se-nos melhormente solvida

com o enfrentamento da improbidade, que é mácula pertinente ao agente, e

que, por via reflexa, se projeta na administração.

De tudo que temos dito, voltamos a reprisar a

desinfluência do recurso à moralidade, como instância de controle da

administração pública, na medida em que se dispõe de instrumentos jurídicos,

plenamente adequados, com muito maior grau de precisão.

Muito embora seja frequente a alusão à vontade da

administração pública, merecendo de boa parte da doutrina, inclusive,

tratamento especial, chegando Marienhoff a atribuir-lhe a qualidade de

pressuposto “sine qua non” de validade do ato administrativo, ousamos

estabelecer posição inteiramente distinta.43

Não é possível apropriação de um elemento próprio

do direito privado, regulador da liberdade, para efeito de transposição ao

direito público.

Conceba-se que só há vontade autônoma e que se

costumou dizer que a base do direito comum era exatamente a autonomia da

vontade.

Pois bem, não é possível, sem forte arranhão teórico,

acobertar-se uma possível vontade no plano da movimentação heterônoma da

instância administrativa, cujo norte magnético é o interesse da coletividade.

Se ao Estado cabe ministrar os interesses dos

cidadãos, os seus atos não podem refletir vontade em sentido próprio, porque

a isso equivaleria desnudá-la de todo conteúdo “interior” que terminaria por

esvaziá-la. 43 Tratado de Derecho Administrativo, pag.282

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O móvel em direito administrativo é o interesse

público, e esse interesse impõe-se ao administrador sem se lhe indagar a

vontade.

Emanação administrativa e iniciativa pública não

podem ser confundidos com ato de vontade, que é, “utima ratio”, expressão

de liberdade.

Por conseguinte, o vício psíquico do agente público

não é aquele que lhe atormenta a vontade, mas, exatamente, a sua exercitação,

ocupando o espaço do interesse.

Não cabe indagar, para efeito de validade do ato

administrativo, se o agente agiu de boa ou de má fé, porque, se na sua atuação

não se demonstra a prévia existência do juízo de ponderação e razoabilidade,

aí se pode identificar vício de conduta.

Não se desvia da finalidade o administrador, pura e

simplesmente, quando se inclina no sentido de conspirar contra o fim

ideológico da lei. Desvia-se, sobretudo, quando, antes de agir, não ponderou

as causas e as conseqüências da sua ação.

Nesse caso, há que se falar em arbitrariedade

administrativa por ausência de conduta que trafegue na via da razoabilidade.

Se o administrador está na contramão do caminho do

razoável, pouco importa que seja um condutor malicioso ou desatento; o certo

é que realiza uma disfunção administrativa.

A imoralidade administrativa resolve-se

insofismavelmente na arbitrariedade que, por sua vez se traduz na ausência de

ponderação e de razoabilidade.

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Essa ausência tanto pode emergir da lei quanto da

ação administrativa. Sempre se terá um resultado arbitrário.

Vejamos uma situação concreta que nos sirva de

arremate a esses posicionamentos.

Passaremos a exibir um quadro real, onde

claramente se identifica o núcleo da arbitrariedade pela completa ausência da

razoabilidade, sem que seja preciso convocar o paradigma da moralidade.

A Universidade Federal da Bahia (Brasil), por via do

seu Regimento, alterou as regras de concurso para o cargo de professor titular,

de modo a apontar como critério preferencial de julgamento a avaliação sob

forma de memorial, a ser apresentado e sustentado pelo candidato à

titularidade.

Em sede de exceção, admitiu a perspectiva de defesa

de tese diante de certas peculiaridades, devidamente justificadas.

Ilogicamente, para uma e outra forma de avaliação,

adotou-se o mesmo prazo para o cumprimento das exigências concursais.

Sabendo-se que um memorial é retrospectiva de

atividades já realizadas e que são noticiadas em documento analítico que

permitirá aos examinadores investigar a história acadêmica do candidato,

afigura-se razoável a fixação de um prazo de 120 dias.

Quando, em contrapartida, se exige do postulante a

elaboração de um alentado trabalho de pesquisa com características de

originalidade e de relevante contribuição para a ciência, torna-se inteiramente

desarrazoado compelir-se o disputante a uma dieta temporal de 120 dias.

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O critério da razoabilidade levanta-se forte para

mostrar que, não só a experiência histórica, como o próprio desencadeamento

de uma tese, nas suas diversas etapas, desde a formulação da hipótese,

passando-se à coleta de dados, e o seu processamento, revelam a inteira

implausibilidade de um desfecho acadêmico desta ordem em exíguo espaço

de tempo.

Quem quer que esteja diante de tal situação poderá

verificar que o pressuposto inicial de um trabalho, pode vir depois de meses a

ser abandonado, porque a experiência não está a confirmar os pressupostos

iniciais, recomendando, às vezes, a todo um recomeço.

Nesse caso, a fixação em 120 dias vem a ser

tecnicamente rotulada como arbitrária, não necessariamente porque tenha

resultado de ato imoral ou de má fé de quem quer que seja, mas apenas

porque não suportada em qualquer critério de ponderação e de logicidade que

possa lhe garantir o “certificado de razoabilidade”.

Bastará que o agente normativo não possa responder

em que critérios se louvou para adotar essa norma, para que ela resvale no que

a doutrina americana denomina de “classificação suspeita”.

Veja-se que, do exame laboratorial dessa norma,

tudo está a indicar que houve pura e simples desatenção ao porte e garbo de

uma tese, de modo a que não se cuidou de cogitar de um tratamento

adequado.

Com absoluta segurança, tem-se a arbitrariedade

detectada pela lente principiológica da razoabilidade.

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Em arremate, não é possível, pois, trazer-se para o

direito público uma moral que teria necessariamente de “despsicologizar-se”,

perdendo de tal ordem a sua essência que se tornaria irreconhecível.

O controle jurídico dos atos administrativos devido a

certeza e para não criar falsas prisões nem falsas liberdades, deve afastar-se

de um elemento de alta valia e indispensável em nossa vida individual, qual o

padrão de moralidade, mas sem significado científico em um ramo, cujas

pretensões são mais modestas que o da moral.

Tivesse o constituinte, de modo expresso,

consagrado a razoabilidade, obteria resultados mais positivos e de maior rigor.

Desvio de Finalidade por Omissão -

Não vemos nenhuma dificuldade em admitir que a

administração pública se desvie dos seus fins, quando se omita na prática de

uma conduta que a rigor seria devida.

É evidente que lhe cabe interferir o mínimo

necessário nas liberdades públicas, detectando-se, com muito mais freqüência,

a prática do vício sob análise, quando da ocorrência de ações indevidas.

Dar-se-á, inolvidavelmente, que, em certos

momentos, o atuar administrativo é indispensável à consecução do fim

público, pelo que o se omitir revela, evidentemente, um descaminho.

Coerentes com o que vimos sustentando, não temos

porque falar em omissão premeditada, deliberada ou intencional para

caracterização do desvio, a não ser se a omissão inaceitável já o configura.

Basta, portanto, que o absenteísmo, de modo

específico, produza um fim ideologicamente inaceitável pelo direito.

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Imagine-se que o Estado declara de utilidade pública

um bem cuja desapropriação é realmente necessária para o fim de realização

de obras de contenção de encostas, visando a evitar desabamentos de imóveis

em áreas íngremes ou perigosas.

A partir da decretação, há uma justa expectativa de

que essa desapropriação se consume e as obras se realizem.

Pode acontecer que o agente estatal deixe consumar-

se o prazo de caducidade da declaração, por entender que o valor de avaliação

da área não condiz com o seu intento de desembolso.

Verificou-se, aí, que não foi a desnecessidade que

teria produzido a omissão, mas uma causa alheia ao seu trajeto e, por isso

mesmo, configuradora de desvio.

Da mesma sorte, a dívida ativa, inscrita para fins de

cobrança judicial que se deixa prescrever pela ausência da propositura da ação

competente, revela desvio, em nada influindo a causa.

Pode bem ser que o órgão jurídico tenha deixado

resvalar o crédito tributário na prescrição para beneficiar determinado

contribuinte, pode bem se dar que o propósito tenha sido o de instituir uma

anistia mais ampla e por via transversa, o certo é que se descarrilou nesse

compasso da expectativa de conduta que lhe era juridicamente exigível.

Mais uma vez, o elemento intencional sinalizará

para a existência ou não de improbidade o que, na verdade, constitui outra

face da moeda.

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Em busca da pragmaticidade, queremos realçar a

existência no sistema pátrio de dois antídotos utilizáveis contra o desvio sob

forma de omissão.

O primeiro, mais antigo, o da ação popular que pode

ser agitada tanto para remediar, quanto para prevenir atos lesivos, praticados

pela administração.

Meirelles admite, claramente, a possibilidade dessa

ferramenta para impedir que se abra mão de um privilégio do Estado ou deixe

perecer um direito por incúria administrativa. Ainda com sobra de razões,

aceita tal ação para que se possa compelir a administração a não lesar o

interesse público, traduzido nos valores jurídicos expressos no ordenamento.

44

A ação popular instrumentaliza-se à semelhança dos

meios propiciados pelo modelo francês, como medida de ampla legitimação,

ali caracterizada, como hipótese de “ouverture”.

O segundo instituto mais novo na nossa tradição,

advindo da Carta de 1988, mandado de injunção, notabiliza-se por divisar,

com clareza, o desvio por omissão na atividade normativa.

Sua amplitude é muito menor, tanto quanto, seus

efeitos têm sido muito mais modestos.

Enfatize-se nele a clara percepção da hipótese de

desvio ou frustração do cumprimento da norma exatamente pelo ato omissivo

da regulamentação.

44 Mandado de Segurança., editora Malheiros, 17ª edição, pag.91/92

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O uso da ação popular guarneceria a proteção contra

os efeitos nefastos da caducidade da declaratória de utilidade pública, da

isenção indevidamente concedida ou da perspectiva prescricional afrontosa ao

patrimônio financeiro do Estado nos casos, primordialmente, elencados.

Quanto à abstenção regulamentar do último dos

exemplos, a profilaxia seria dada pela injunção.

Urge, significativamente, distinguir, para não

reduzirmos qualquer inação ao desvio de finalidade, a omissão que frustra ou

desvirtua um resultado, diretamente previsto, da inércia genérica que resulta,

em termos gerais, em outra figura qual à da ineficiência administrativa.

Omite-se, com desvio de finalidade, o administrador

que deixa de prorrogar um contrato, dando margem à interrupção de serviços

essenciais com o propósito de substituir o contratado ou com qualquer outro

que não diga respeito à estrita expectativa do serviço público.

Omite-se, por ineficiência, o Estado, quando deixa

de construir a escola necessária, permitindo o alastramento do analfabetismo.

A questão da inércia administrativa ganhará exame

acurado em capítulo à parte, denominado silêncio administrativo.

Do Desvio de Finalidade nos Atos Legislativos -

A resistência, no mundo jurídico, às mudanças é

uma grande marca, inclusive pelo perfil ontologicamente conservador do

próprio direito.

Nessa seara, conquanto se fale amiúde em desvio de

finalidade no ato administrativo, são raras e apoucadas as referências a tal

disfunção no ato legislativo.

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As incidências são múltiplas, não obstante.

Na doutrina, desta feita, são os italianos que

ostentam a posição de vanguarda na análise do tema, destacando-se o

pionerismo de Santi Romano para quem os atos legislativos conhecem

fronteiras cuja desatenção importa no mesmo vício de desvio de finalidade

aplicável aos atos administrativos em geral.

Reportamo-nos, alhures, à precedente do Supremo

que considerou desvio um decreto-lei, quando, ao pretextar existência dü

matéria relativa à segurança nacional, regulamentou simples questão de

purgação de mora.

O Supremo Tribunal Federal já tem tradição no

enfrentamento do chamado desvio de finalidade decorrente de atos

legislativos.

Veja-se o Mandado de Segurança nº.7.243, no qual,

em sessão de 20.01.1969, consideraram-se nulas leis do Estado do Ceará que,

ao término de um mandato governamental, resultou na sensível ampliação dos

quadros do funcionalismo público.

Ao comentar tal precedente, Caio Tácito anotou,

com propriedade, que a competência legislativa não pode ser exercitada senão

em prol da coletividade, jamais para atender a interesses partidários.45

Frequentemente, como já temos dito, deparamo-nos

com situações que enriquecem o exemplário dos atos afetados por desvio no

seio do legislativo.

45 Revista de Direito Administrativo, 59/347

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Vem-nos, ainda, à lembrança lei municipal na

Cidade do Salvador que condicionava à autorização dos sindicatos

interessados a abertura do comércio nos dias de domingo.

Essa lei, evidentemente, estava vazada por manifesto

desvio, porque o fortalecimento dos sindicatos não é competência do

Município, cujos legisladores entregaram o interesse público à

representatividade da facção trabalhadora.

O já citado Caio Tácito, entre nós grande prócer da

sustentação do desvio no ato legislativo, analisando hipótese idêntica

anunciou que: “A toda evidência a lei municipal, visando a beneficiar o

movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo,

caracterizado como desvio de finalidade”46

Curiosíssimo caso tivemos oportunidade de

acompanhar, relativo a uma determinada empresa que investia contra a

municipalidade, porque esta concedeu alvará para instalação de um posto de

combustível, concorrente do autor, cuja localização a menos de mil metros de

um outro que lhe pertencia era vedada, expressamente, por lei municipal.

Naturalmente, dita lei, visando à disciplina do uso

do solo urbano e atenta às características peculiares desse tipo de comércio

norteou-se em critérios de segurança para estabelecer um padrão mínimo de

distância, evitando, em conseqüência, uma alta concentração de derivados de

petróleo em áreas próximas.

46 RDA 160/460

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Embargada a obra atentatória à postura municipal,

eis que veio o Município a editar lei, excepcionando a regra geral com alcance

restrito àquela única situação.47

De modo bastante extravagante, a referida lei

autorizou o Poder Executivo: “a aprovar projeto de construção de um

posto de serviço de abastecimento de veículos em terreno de propriedade

da Petrobrás Distribuidora S/A., situada a rua Edistio Pondé, 143, Stiep,

subdistrito de Amaralina, independentemente de aplicação dos critérios

de compatibilidade locacional”.(art.1º)

Com base na nova lei e para prosseguir no seu

desiderato, o posto concorrente logrou liminar que foi cassada pelo Tribunal

de Justiça do Estado da Bahia, ao acolher a tese de que o casuísmo legal era

despropositado, ferindo todo princípio de razoabilidade e evidenciando o

desvio.48

Naquela oportunidade, o Professor Josaphat

Marinho emitiu parecer que, em citação de Bidart Campos, referiu-se ao caso

nos seguintes termos: “Quando os órgãos do poder exercem a função

administrativa devem movimentar-se sobre a mesma regra de não dar a

uns o que se nega a outros em igualdade de circunstâncias ou vice-versa e

evitando as discriminações arbitrárias”49

Como se percebe, não há maior motivo para isentar

o legislador da sindicância relativa ao cumprimento das finalidades do

interesse público, agasalhadas no ordenamento jurídico.

47 Lei Municipal n.3.678 de 25/11/1986 48 Auto Posto Budião X Petrobrás, processo n.1991/86, MS 85/87. 49 Parecer datado de 05/06/1987, in arquivo

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Os princípios guardam inequívocas supremacias

sobre as leis e se estas os ferem, restam contaminadas.

Examinaremos, em seguida, a perspectiva do desvio

de finalidade dos atos de progênie jurisdicional.

Desvio de Finalidade nos Atos Judiciários

O desvio de finalidade no ato jurisdicional é, ainda,

tema pouco conhecido no âmbito da doutrina e da jurisprudência.

O objeto da nossa reflexão estará focado naquelas

situações em que o Poder Judiciário, agitando uma competência genérica, atua

em descompasso com o fim reservado a essa atuação.

Frequentemente, pode-se notar uma tendência

altruística, no sentido de evitar o rigor da lei, embora com um manejo

claramente inadequado de determinado instituto.

Ultimamente, vem se observando a utilização

imprópria de provimentos cautelares que, autenticamente, terminam por

tutelar, com antecedência, o direito vindicado.

Pensamos que tal desvio, nessa hipótese, em grande

escala, se deve à novidade da tutela antecipada, cujos contornos não estão

ainda muito bem assimilados, percebendo-se uma clara zona fronteriça entre a

tutela e a cautela.

Não duvidamos que a prescrição possa estar a ser

usada contra crimes instituídos no nosso ordenamento pátrio, inteiramente

desajustados à nossa realidade social.

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“Verbi gratia”, certos crimes ambientais trazem, no

seu bojo, punição altamente elevada e em inteira assintonia com a situação do

agente que, muitas vezes, o pratica por necessidade até famélica.

Não é de se estranhar que o julgador assoberbado de

serviços relegue o julgamento de tal matéria, evitando uma pena que geraria

um desequilíbrio social por intermédio da prescrição.

Nesse caso, sem dúvida, o instituto prescricional foi

desviado do seu real propósito.

Situação concreta é a do estelionato por emissão de

cheque sem fundos onde se pacificou o entendimento jurisprudencial no

sentido da extinção da punibilidade, quando o emissor honra o pagamento do

documento emitido até a denúncia.

A natureza de crime formal seria impeditiva de tal

largueza que se concede, nesse caso, à interpretação da extinção da

punibilidade que, no caso, está manejada de modo ideologicamente não

afinado com o modelo da lei.

Relevante, ainda, é notar-se que, muito embora os

tribunais se recusem a impedir a produção da prova desnecessariamente

deferida, não rara vez o seu acolitamento foi instrumentado para poupar o

julgador de uma decisão mais imediata sobre a qual deseja ele refletir com

mais vagar.

Não perdemos, aqui, a oportunidade de atentar para

um desvio de finalidade frequente no que tange ao instituto da revelia, que

gera, como efeito, a presunção de veracidade dos fatos alegados pela parte

autora.

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Sucede que a administração pública não pode

confessar, nem da sua incúria se deve extrair qualquer outra consequência, a

não ser a responsabilidade do agente administrativo.

Sucede que, à larga, o judiciário trabalhista

brasileiro, por diversos dos seus juízes, tem-se utilizado da contumácia do

Estado para produzir-lhe afetação patrimonial na consonância com o pedido

do autor.

Trata-se, evidentemente, de uma finalidade obtida

em desacordo com a ideologia da figura processual, já que, nem mesmo a

transação se admite, restrito que está o seu campo aos direitos patrimoniais

disponíveis.

Desvio de Finalidade em Ação do Ministério Público -

Não temos porque inadmitir a hipótese,

considerando que sua incidência abarca as instituições públicas como um

todo.

Entre nós, Rogério Lauria Tucci cogita em um título

inteiro de sua obra relativa ao “Devido Processo Legal e Tutela Jurisdicional”,

da utilização por parte do Ministério Público da Ação Civil Pública de forma

abusiva.

Efetivamente, o instituto de largo alcance no direito

processual brasileiro tem sido claramente desvirtuado da sua finalidade

constitucional e legal, qual seja a da tutela dos interesses difusos, coletivos,

homogêneos, legalmente tutelados.

De modo frequente, com bastante elasticidade, tem-

se visto o denodado órgão do Ministério Público ampliar o papel da Ação

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Civil Pública, convertendo-o na expressão de Kazuo Watanabe na “panacéia

geral” para toda e qualquer situação.50

O Superior Tribunal de Justiça tem tido

oportunidade de recusar o uso de tal ação, como sucedâneo de Ação Direta de

Inconstitucionalidade ou para tutela de interesses de grupos, ainda que

numerosos, mas individualizáveis. 51/52

Aprouve-nos trazer singular exemplo em que o

Supremo Tribunal Federal colheu o “parquet” na prática de tal desvio.

A hipótese foi trabalhada no Habeas Corpus n.69889

do Espírito Santo em que foi Relator o Ministro Celso de Mello e paciente

G.C.M.

A situação pode ser resumida da seguinte forma.

O Tribunal de Justiça Capixaba, apreciando recurso

do Ministério Público Militar contra absolvição do réu pelo Conselho

Permanente de Justiça Militar de Vitória, determinou que o paciente fosse

submetido a novo julgamento por entender que a decisão de primeira

instância produziu-se em contrariedade à prova dos autos.

50 Controle Jurisdicional em Mandado de Segurança contra atos judiciais, São Paulo, editora RT, 1980, pag.105. 51 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. REVOGAÇÃO DA LEI QUE A INSTITUIU. EXTINÇÃO DO PROCESSO. APURAÇÃO DOS VALORES COBRADOS INDEVIDAMENTE. AÇÃO PRÓPRIA. REVOGADA A LEI INSTITUIDORA DO TRIBUTO QUESTIONADO, OS PEDIDOS SE ESVAZIARAM, A NÍVEL DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA RESULTANDO NA CORRETA EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO. NÃO SE PRESTANDO A AÇÃO CIVIL PÚBLICA A AMPARAR DIREITOS INDIVIDUAIS E NEM SE DESTINANDO A REPARAR PREJUÍZOS A PARTICULARES, A RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS PELOS CONTRIBUINTES DEVE SER PLEITEADA EM AÇÃO AUTÔNOMA.” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RESP 94445/MG, SEGUNDA TURMA, DJ DATA: 02/09/1996 PG: 31064) 52 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MENSALIDADES ESCOLARES - REPASSE DO AUMENTO DOS PROFESSORES - MINISTÉRIO PÚBLICO - PARTE ILEGÍTIMA. NÃO SE CUIDANDO DE INTERESSES DIFUSOS OU COLETIVOS, MAS DE INTERESSES INDIVIDUAIS DE UM GRUPO DE ALUNOS DE UM DETERMINADO COLÉGIO, AFASTA-SE A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO”. (Superior Tribunal de Justiça, RESP 35644/MG, Primeira Turma, DJ DATA: 04/10/1993 PG: 20519 RSTJ VOL.: 00054 PG: 00306)

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Rebelou-se o “parquet” contra tal decisão, por

entender que caberia à Corte de Segundo Grau absolver ou condenar, jamais

remeter o réu a novo julgamento. Em tendo procedido por essa forma, nula

seria tal decisão, de tal sorte que o habeas corpus vindicava que o tribunal

impetrado tivesse sua decisão nulificada e outra viesse a proferir de conteúdo

meritório.

O Relator, após reconhecer a legitimação em tese do

órgão ministerial, entendeu que ao réu pudesse ser mais interessante ser

submetido a novo julgamento em primeiro grau do que enfrentar a instância

maior com a natural redução das chances de recurso.

O Ministério Público, por via oblíqua, agitava o

remédio constitucional com o fim de suprimir uma instância que, ainda

quando irregularmente, foi aberta em favor do acusado.

Nessa oportunidade, salientou o Relator: “A

impetração do habeas corpus com desvio de sua finalidade jurídico-

constitucional, objetivando satisfazer, ainda que por via reflexa, porém de

modo ilegítimo os interesses da acusação descaracteriza a essência desse

instrumento exclusivamente vocacionado a proteção da liberdade

individual”53

Esse precedente destaca a amplitude com que se

pode flagrar o desvio de finalidade, independentemente, como temos

ressaltado, da boa ou má intenção do agente que, no caso, iniludivelmente,

procurava defender os interesses da sociedade.

O Remédio Judicial Adequado -

- Origens -

53 HC 69889-1-ES, 02.02.93, DJU 01.07.93

94

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A noção de desvio de finalidade desafia o exame dos

limites traçados pelo Poder Judiciário à sua apreciação, porque de nada

adiantaria se identificar um vício de conduta sem ser possível prescrever o

remédio correlato.

Nessa linha, achamos oportuno dar ênfase aos

mecanismos de controle, tomando, como ponto de partida, o modelo francês,

por motivos já evidenciados.

Podemos destacar que o controle dos atos

administrativos na França exige, ordinariamente, a existência de um ato

administrativo em sentido próprio, que não seja compreendido nos atos

políticos.

Do primeiro requisito, temos uma visão clara,

porque aqui, também, não se admite o controle difuso da lei em tese, muito

embora tal controle seja exercitável nas chamadas leis, meramente formais,

que correspondem a um ato administrativo em sentido material.

No que tange aos atos políticos, os tribunais

brasileiros também têm feito essa diferenciação, sendo certo que a Corte

francesa vem evoluindo cada vez mais no sentido de restringir o conceito de

ato governamental, de modo a alargar a proteção judiciária.

Precedente importante em relação a essa tendência

costuma ser considerado o chamado caso “Gombert” cuja decisão, tomada

pelo Conselho do Estado em 28 de março de 1947, entendeu que a concessão

de indulto não tinha natureza política”54

54 Les Grands Arets de la jurisprudence administrative, M. Long, P. Weil, G. Braibant, P. Devolvé, B. Genevois, 10ª edição - Sirey, pag.18

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Desenvolveu-se, na França, um peculiar sistema

classificatório de controle ali estabelecido que diferencia a incursão da Corte

segundo os graus mínimo normal e máximo.

Muito embora não haja uma separação

extremamente rigorosa entre as três categorias de intervenção, é possível

estabelecer-se alguns traços diferenciais.

Pelo sistema do controle mínimo, o Tribunal se

limita a examinar, estritamente, a questão da legalidade do ato, de modo

muito proximo ao que chamaríamos, aqui, de incursão sobre os vícios

formais.

Trata-se de uma investigação, manifestamente

superficial, onde é bastante limitado o raio de atuação do pretório.

A rigor, a conceituação de controle mínimo poderia

ser feita pela via negativa, qual seja à daquele que não se exercita senão

quando é possível identificar-se na ação administrativa o erro manifesto.

A doutrina do erro manifesto tem, como premissa, a

existência de uma conduta facilmente indentificável como equívoca pela

administração, no sentido de que o tribunal não se imiscui, a não ser que a

prática da administração se revele aberrante em relação aos fatos.

Acobertadas sob esse manto de quase

invulnerabilidade, estão em geral as decisões administrativas que demandam

apreciações técnico-científicas, como colhe mencionar o conceito de

incapacitação para o trabalho, o caráter tóxico de uma determinada

substância, a segurança de um determinado empreendimento.

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No Brasil, a experiência de controle mínimo foi

revivida, substancialmente, nos chamados atos administrativos disciplinares,

em relação aos quais a jurisprudência sempre manteve uma postura não

intervencionista.

Repetiremos à exaustão que não comungamos com

essas ressalvas que guardam, inclusive, o matiz da discricionariedade técnica

sobre a qual nos debruçamos.

Além do chamado controle mínimo, em uma escala

maior, admite-se o controle normal que se restringe à qualificação jurídica dos

fatos.

Nesse passo, é necessário dizer-se que os arestos

franceses incorporam o sentimento majoritário alemão, no sentido de que

quanto à avaliação dos fatos, não há espaço para a administração.

A qualificação desses é um problema jurídico que

deve ser enfrentado no mesmo plano de investigação pela administração e

pelo tribunal.

Tome-se, como exemplo, o caso Gomel já referido

em outras linhas que bem reflete a amplitude da avaliação.

Para se ter uma idéia das situações de aplicabilidade

do chamado controle normal, nada melhor que a técnica da amostragem.

Vamos lá. Aptidão psíquica de candidatos (C.E.

19.12.1947); habilitação para concurso (C.E. 10.06.1983); interdição de

filmes ou de livros (C.E.20.12.1967); proteção de monumentos históricos

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(C.E.29.01.1971); condições de acesso ao serviço público (C.E.25.06.1969). 55

Cabe, ainda referir-se, ao chamado controle pleno,

onde, praticamente, se pode dizer que a Justiça Administrativa se investe no

papel da administração, realizando uma reconstituição do ato, como se fossem

os juízes administradores, de modo a corrigir-lhe defeitos em quaisquer fases.

O controle dessa natureza é adotado com o propósito

de proteger as chamadas liberdades públicas e a garantia da propriedade

privada.

Para ilustrar a hipótese, utilizamos a metodologia do

“estudo de caso”, elegendo aresto que não só parece bem representativo, mas

que tem, ainda, o mérito de melhor aclarar nossa posição, anteriormente

adiantada, quanto ao controle do desvio de finalidade, relativamente à

utilidade pública. É o caso conhecido como “Ville Neuvelle Est”.

Cuidava-se da pretensão do Ministério Nacional de

Educação de construir um Centro Universitário, acoplado de unidades

habitacionais à sua volta, de modo a evitar uma interferência indevida entre o

núcleo urbano original e a base universitária.

Para implantação do projeto, seriam demolidas cerca

de 250 casas.

Constituiu-se uma comissão de proprietários que se

contrapôs à medida, ensejando a que a administração reduzisse o número de

áreas desapropriadas.

55 Themis Les Grands Decisions de la Jurisprudence, Lachaume, Jean-François, pag.385

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Persistiu, de toda forma, o inconformismo dos

associados que alegavam que bastaria uma pequena alteração no projeto de

uma via rodoviária, para reduzir-se a necessidade de demolição a menos de 80

casas.

Os moradores ganharam, em primeira instância,

valendo-se do argumento, periférico, da ocorrência de vício formal.

A matéria subiu ao exame do Conselho de Estado,

que, embora tenha reconhecido a existência da utilidade pública, passou a

enfrentar a matéria no seu cerne.

Naquela feita, entendeu a Corte que, para se chegar

ao conceito de utilidade pública, necessário seria o balanceamento entre as

relações custo/benefício, considerando-se os elementos financeiros, os

inconvenientes sociais e os demais interesses públicos em disputa.56

Sem dúvida, com esse avanço retirou-se de uma

zona cinzenta o conceito de utilidade pública que, ainda hoje, parece se fincar

como barreira indevassável no direito brasileiro.

A relação “coût-avantages” leva à mensuração da

proporcionalidade entre o ato e as suas conseqüências.

Efetivamente, de nada valeria falar-se em utilidade

pública, se qualquer decisão tivesse que ser acolhida como tal.

Pesquisas revelam que as Cortes têm sido

parcimoniosas ao negar a utilidade pública, preferindo, naturalmente, na

dúvida, acompanhar o critério do administrador. 56 “Cons. qu’une opération ne peut être légalement déclarée d’utilité publique que si les atteintes à la propriété privée, le coût financier et éventuellement les inconvénients d’ordre social qu’elle comporte ne sont pas excessifs eu égard à l’intérêt qu’elle présente”. (Themis Les Grande Decisions de la Jurisprudence, pag.387)

99

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Feitas essas reportagens, reservamo-nos na parte

final deste capítulo a uma análise pontual de algumas decisões dos tribunais

nacionais em torno do controle administrativo.

A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA -

Ao longo desta exposição, temos tido a oportunidade

de cotejar decisões judiciais que marcaram o ordenamento jurídico

estrangeiro, tanto quanto o pátrio.

Agora, destacadamente, enumeramos arestos

nacionais que, ao nosso ver, traduzem posições importantes no âmbito do

controle.

Os pronunciamentos são acompanhados de breves

comentários a seguir:

Atos de Tribunais de Contas -

Frisamos, em primeiro lugar, a posição de controle

mínimo no que tange a atos dos Tribunais de Contas.

Em verdade, a natureza judicialiforme das suas

decisões, a própria estrutura orgânica dessas Cortes, em muito assemelhada ao

Poder Judiciário, reflete uma tendência a não se adentrar ao âmago dos seus

pronunciamentos, contentando-se os Tribunais com a apreciação formal.

O Superior Tribunal de Justiça enfatizou que: “É

logicamente impossível desconstituir ato administrativo aprovado pelo

Tribunal de Contas sem rescindir a decisão do Colegiado que o aprovou; e

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para rescindi-la é necessário que nela se constatem irregularidades formais

ou ilegalidades manifestas”.57

Competência material e formal. Moralidade Administrativa

No sentido de valorizar a intenção do agente,

posição a que não aderimos, mas trabalhando muito bem a questão da

competência material, distinta da formal, encontramos outra decisão em que

se afirma: “ O desvio de poder pode ser aferido pela ilegalidade explícita ou

por censurável comportamento do agente, valendo-se de competência

própria para atingir finalidade alheia àquela abonada pelo interesse

público, em seu maior grau de compreensão e amplitude. A análise da

motivação do ato administrativo, revelando um mau uso da competência e

finalidade despojada de superior interesse público, defluindo o vício

constitutivo, o ato aflige a moralidade administrativa, merecendo

inafastável desfazimento”.58

Das “astreintes”

De matiz francesa, a figura das “astreintes” pode

operar bons resultados no controle da administração pública.

Vejamos o seguinte aresto do Supremo Tribunal

Federal: “a autoridade que se desvia do poder de polícia por desídia ou

protelação em ações a que está obrigada pode submeter-se a ação

cominatória”.59

É bem de ver-se que a imposição de multa contra a

administração ainda não tem entre nós aceitação pacífica.

57 RESP 0008970/91, DJU 09.03.92 58 STJ - RESP 0021156/92, DJ 10.10.94, RSTJ vol.73, pag.191 59 STF AG 38984 - RTJ vol.0039-3

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Não é prudente, de toda sorte, descartar-se tal

procedimento, por não vislumbrarmos incompatibilidade nas relações

jurídicas estatais com a aplicação da multa, tendo em vista o princípio do

Estado responsável.

Permita-se, no particular, que consideremos que a

destinação dos recursos dela advindos, atenta a sua natureza, deveria ser dada

a um fundo específico, jamais revertida em favor do particular.

Essa é uma outra questão.

O Judiciário não pode jamais estar atado aos

caprichos de uma administração irresponsável que, muita vez, utiliza-se da

proteção que o ordenamento lhe confere com o propósito de inviabilizar a

eficácia dos veredictos pronunciados.

Com essas passagens, satisfazemo-nos no percurso

do tema relativo ao desvio de finalidade, reservando o capítulo seguinte a uma

figura, ainda pouco íntima do ordenamento brasileiro e até de certa forma,

sem o destaque necessário em outros sistemas jurídicos, malgrado a sua vital

importância na concepção de uma doutrina dos desvios para a qual pretende

contribuir esse trabalho.

Convidamos o leitor à discussão do desvio de

procedimento.

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CAPÍTULO III

DO DESVIO DE PROCEDIMENTO

Noções conceituais -

A figura de contemplação desse capítulo tem

inequívoca relação parental com o desvio de finalidade, embora guarde

características que permitem uma clara diferenciação.

Para Geoges Vedel, o desvio de procedimento

consiste no fato de vir a administração utilizar meios distintos daqueles para

os quais estaria legalmente intitulada.

Salienta que tal desvio é uma mera variação do

chamado desvio de poder.60

Como já adiantamos, não é esse o nosso

pensamento.

Ao nosso ver, o desvio de procedimento tem marcas

inconfundíveis que não lhe permitem simplesmente considerá-lo um apêndice

do desvio de finalidade.

Não sem razão, o Conselho de Estado Francês

cunhou a expressão própria “detournement du procedure”, distinguindo-a do

chamado “detournement du pouvoir”.

Parece-nos que num apanhado sintético, poderíamos

dizer que o desvio de finalidade existe quando um fim aparentemente

legítimo, guarda um desiderato, em essência, não tolerado pelo ordenamento.

60 Derecho Administrativo, pag.510

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No desvio de finalidade, como já se viu, o fim

externo não tem consonância com o fim interno, gerando o que temos

chamado de incompatibilidade ideológica.

Situação diversa acontece com o desvio de

procedimento, onde a administração persegue um objetivo legítimo, mas

trilha caminhos tortuosos.

De logo, admitamos que possa existir uma zona

fronteiriça, o que só realça a idéia de que são, em princípio, conceitos

distintos.

No direito brasileiro, já é antiga a súmula do

Supremo Tribunal Federal Brasileiro, com o seguinte enunciado: “É

inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para

pagamento de tributos”.61

Ninguém nega ao Estado, ao contrário, exige-se

dele, que cobre e, com eficiência, os tributos que lhe são devidos. Não, assim,

por meios vexatórios ou por formas inaceitáveis.

No caso, a liberdade do exercício da atividade é

golpeada, porque, em lugar de promover a execução fiscal, o ente público

impede o comerciante de vender o seu produto.

Aí temos um fim legítimo e um meio espúrio.

Não podemos admitir no Estado democrático de

direito o princípio maquiavélico, segundo o qual os fins justificam os meios.

61 Súmula 323

104

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A demonstração do que faremos, remonta a um

discurso lógico que toma como ponto de partida, a circunstância de que toda a

administração é, em si mesma, uma atividade meio.

Os fins são, sem dúvida, o bem-estar social, o

convívio equilibrado e harmonioso da sociedade, a garantia dos valores

jurídicos da vida, da paz, da ordem, da segurança, da liberdade, numa

remissão axiológica, absolutamente necessária.

Passa-se a afirmar que todo ato interventivo é

abstratamente considerado um ato indevido, porque alfineta a liberdade

humana.

A intervenção, portanto, não se justifica auto-

referenciadamente, ou seja, com um valor em si mesmo.

Se o fim da administração é propiciar os meios de

subsistência de uma sociedade equilibrada, cabe monitorar-se, de perto, a

ação para que ela não se revele desmedida.

A ninguém interessa, é óbvio, que, em nome da

segurança, possa a polícia invadir domicílios, aleatoriamente, mesmo que em

busca de um delinquente.

É preciso, portanto, extremo cuidado na verificação

da exatidão dos meios empreendidos pelo administrador, porque o seu

controle é pressuposto da própria garantia social.

O Direito Francês -

Vejamos, na França, os exemplos clássicos que

deram origem ao estudo da matéria.

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O já mencionado, Georges Vedel, aponta algumas

situações que foram classificadas, como desvio de procedimento pelo

Conselho de Estado.

O primeiro exemplo nos advém de decisão proferida

em 1947, em que se considerou desvio de procedimento a utilização do

instituto da requisição de uso de terreno para alojamento de serviço público de

caráter permanente, quando, a rigor, o meio a ser usado seria o da

desapropriação.62

Percebe-se, sem dificuldade, que não está em

questão a necessidade ou não de se ter o imóvel que, por óbvio, atenderá a

uma função pública.

O ponto fulcral está em que o meio pelo qual foi

obtido era hábil, apenas, para garantir a posse transitória, nunca a definitiva.

Tem-se, então, um fim legítimo por um caminho

inadequado.

Esse diferencial é que tornará relevante o

estabelecimento de uma conceitualização, apartada da categoria, exatamente

porque o tratamento jurídico tenderá a ser diverso.

No desvio de finalidade, o objetivo poderá ser

podado, enquanto no desvio de procedimento é o caminho que deve ser

62 “L’exemple typique est celui de l’emploi de la réquisition à la place de Pexpropriation. Lorsque l’Administration ne dispose pas des crédits nécessaires à la réalisation d’une expropriation, elle peut être tentée de procéder à una simple réquisition d’usage du terrain sur lequel elle implante ses bâtiments, quitte pour elle, à exproprier le terrain, le jour où elle disposera des crédits. Il y a là un détournement de procédure puisque la réquisition est utilisée dans un but autre que celui auquel elle doit normalement servir en matière immobilière. En effet, la réquisition d’immeubles ne peut avoir pour objet que de procurer à l’Administration l’usage temporaire du terrain et non sa possession définitive, qui ne peut résulter que de l’expropriation (C.E. 4 juillet 1947, Navalo, Rec., 297) De même, constitue un détournement de procédure, l’utilisation de la procédure de réquisition à l’égard d’une entreprise pour opérer une nationalisation détournée de celle-ci (C. E. 6 juin 1947, Société provençale de Construction navale, S., 1947. 3.69, concl. J. DEVOLVÉ). Vedel, Georges - pag.340 - CE Navalo, REC

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interceptado, nada impedindo, ao contrário, tudo recomendando que a

administração, por via adequada, volte a perseguir o mesmo intento.

Vejamos, agora, um caso clássico levado à Corte da

França que envolveu a “Sociedade Frampar”, como ficou conhecido o

paradigma.63

Durante a guerra da Algéria, a administração

determinava, frequentemente, a apreensão de jornais e periódicos, cuja

circulação não julgava oportuna.

É verdade que, mesmo em sede administrativa, a

apreensão poderia ser efetuada, quando se verificasse grave prejuízo à ordem

pública.

O prefeito local receava, porém, não poder

demonstrar o pressuposto necessário a sua atuação de ofício, do que resultaria

a conseqüência do dever de indenizar os jornais prejudicados.

Com o propósito, então, de furtar-se à censura do

tribunal administrativo, valia-se de outro meio, invocando não o grave

tumulto público, mas indícios de crime.

Com tal proceder, esquivava-se da possível

increpação de que o seu atuar, não ancorado em situação de urgência,

configuraria via de fato suscetível de repressão.

Em se cuidando de crime contra a segurança do

Estado, caberia ao prefeito apreender o material criminoso necessário à

evidência do delito, encaminhando à Procuradoria da República a quem

caberia a persecussão penal. 63 Les Grands Arets de la jurisprudence administrative, M. Long, P. Weil, G. Braibant, P. Devolvé, B. Genevois, 10ª edição - Sirey, pag.576

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O Conselho de Estado, não obstante, ao apreciar a

apreensão dos jornais France Soir e Paris-Presse, entendeu que apesar da

invocação de norma de caráter penal, permanecia subjacente ação, meramente

administrativa.

Foi decisiva para a conclusão a circunstância de que

acaso pretendesse o chefe da comuna colher material para o procedimento

penal, bastar-lhe-ia apreender alguns exemplares, jamais toda a tiragem.

Com a apreensão integral, ficou caracterizada não a

prática de um meio procedimental, mas de um fim, em si mesmo, buscado por

uma via oblíqua.

Entendeu a Corte que apesar da remessa do material

ao representante do "parquet", tal circunstância não elidia a configuração de

prática indevida.

A partir daí, a Justiça administrativa buscou

identificar, claramente, a finalidade do ato de apreensão para qualificá-lo,

como de natureza penal ou administrativa, inibindo o câmbio entre uma e

outra medida.

Da mesma sorte, o caso Brunne envolveu a situação

em que um aluno indisciplinado teve rebaixadas suas notas, como forma de

dar azo a sua expulsão do estabelecimento. 64

Nesse caso, não se discute o direito do educandário

de se desvencilhar do pupilo avesso às normas internas, mas o certo é que não

se pode admitir que, ao invés de processo administrativo, valha-se a

administração de meio inidôneo.

64 Op cit pag.30

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Note-se que, aqui, claramente, detecta-se um fim

legítimo e um meio inadequado, exatamente o traço diferencial entre o desvio

de finalidade e o desvio de procedimento.

Traçados esses precedentes históricos, urge

compreender que, no direito pátrio, o solo tem sido fértil a essa modalidade de

desvio, ora emergente da própria lei, ora decorrente do ato administrativo.

Precedentes na Jurisprudência Brasileira -

Eis, a seguir, alguns exemplos notórios de desvio de

procedimento a partir da própria exegese inadequada da Constituição Federal.

Estipula a Carta Magna que a União não poderá reter

parcelas de tributos por ela arrecadados, mas pertencentes aos Estados e

Municípios.

Essa regra sofre exceção na hipótese de ser um dos

entes federados devedor da União, quando, então, se justificará a retenção do

repasse de verbas.

O primeiro pressuposto é óbvio. A União tem direito

a receber aquilo que lhe devem. O segundo questionamento deve merecer

reflexão, ou seja, como se operacionalizará essa cobrança.

É evidente que não poderá haver desprezo à regra do

devido processo legal, daí porque não é de se imaginar que o próprio ente

credor, ao seu talante, avalie o montante do seu crédito e, ao mesmo tempo,

busque com suas próprias forças recuperá-lo, sem ensejar qualquer chance de

discussão pelo ente federativo.

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Sempre percebemos que o direito de retenção só

pode ser admitido como medida de aparelhamento da execução, devidamente

formalizada, substituindo-se ao modo usual do precatório.

A questão, lamentavelmente, não tem sido vista com

muita tranquilidade.

Constata-se, amiúde, que o Instituto Nacional de

Seguridade Social (INSS) procede unilateralmente a levantamentos de débitos

de instituições públicas (Municípios, Estados).

Nada de anormal, se, não fosse a circunstância de

que, não recebendo pagamento do qual se acha titular, o Instituto submete os

supostos devedores ao constrangimento da retenção das verbas federais que

lhe são devidas, inibindo a possibilidade de defesa.

Instalado o caos financeiro pela retenção desses

valores, os entes terminam por confessar dívidas, às vezes inexistentes, outras

vezes, superdimensionadas e, em multiplicadas oportunidades, prescritas.

Tudo isso pratica-se invocando o santo nome da

Constituição.

É uma situação tão estravagante que Municípios e

Estados ficam inferiorizados em relação aos direitos dos particulares. Estes,

quando se lhes imputa uma dívida, podem questioná-la no Judiciário, sem

receio de afetação do seu patrimônio ou aguardar que o suposto ente credor

ajuize a ação que julgar conveniente, quando, então, provocará o debate sobre

a existência da dívida, sua extensão e seus limites.

Municípios e Estados não têm esse privilégio.

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A questão tem se multiplicado em todo contexto

nacional.

Em ações deflagradas na Justiça, vem se sustentando

que é impossível obter-se a cobrança de créditos com afastamento da

intervenção do Poder Judiciário.

Com efeito, a Constituição assegura que ninguém

será privado de seus bens sem o devido processo legal.

De um modo geral, o Judiciário de primeiro grau no

nosso Estado tem se mostrado amplamente sensível à questão.

Junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região,

podemos colher a seguinte decisão, expressivamente ementada: “Para

obrigar o Município a quitar dívida com a Previdência Social não pode o

Tesouro Nacional bloquear as cotas do FPM a que tem o Município direito.

A cobrança deve ser feita mediante a devida ação proposta perante o Poder

Judiciário. Se assim não for teremos uma atuação ‘manu militari’”.65

Em seminário realizado pela Fundação Prefeito

Faria Lima, com a participação das mais ilustres figuras nacionais do direito

constitucional e administrativo, nela se incluindo o Ministro Carlos Mário

Velloso, hoje do Supremo Tribunal Federal, pronunciando-se sobre o tema:

“Justo título será o judicial, ou seja uma sentença do Poder Judiciário;

tratar-se-á então se for o caso de execução por título judicial que apurou

quantia certa e não por valor temerariamente apurado, sem qualquer

garantia para o Município de justeza ou cabimento”.66

A conclusão traçada reflete um aspecto relevante. 65 Agravo de Instrumento nº.92.01.22154-1-DF - Agravante Fazenda Nacional, Agravado Município de Salto Grande. 66 RDP vol.83, pag.244

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Ninguém defenderá a inadimplência em relação às

parcelas devidas à Previdência Social. Vai, daí, uma crucial diferença entre o

direito de cobrar e os meios pelos quais se efetivam a cobrança.

O estado democrático de direito não pode conviver

com tais métodos que privilegiam os interesses secundários (da

administração) em detrimento dos considerados primários (os do Estado,

como titular do interesse público).

Volte-se a insistir que o fim é legítimo e o meio

inadequado, mas que o meio para a administração não pode afetar direito de

conteúdo finalístico do administrado.

Temos, pois, um rico exemplo de desvio de

procedimento que não se caracteriza como desvio de finalidade, exatamente

porque é nobilíssimo o fim de assegurar-se a solidez da instituição que

ampara a velhice e o trabalhador no ocaso da sua vida.

Diante dessas posições, mais se nos agiganta a

convicção de que os franceses, embora tivessem aberto caminho à distinção,

terminaram por não lhe dar a ênfase necessária.

Prossigamos.

É hora de trazer um outro singular exemplo

judicializado.

A justiça do trabalho, no Brasil, tem por fim a

composição de litígios entre empregados e empregadores, mesmo que esses

sejam pessoas de direito público.

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Particularmente, sempre propagamos que o

tratamento dispensado ao servidor público, ao modelo da legislação

trabalhista, é equivocado e distorcido.

Em verdade, no direito brasileiro, instituiu-se um

direito de proteção à classe trabalhadora suscetível de municiá-la com armas

adequadas ao enfrentamento da opressão do capitalismo hipertrofiado.

Os atores em cena seriam, portanto, o trabalhador e

o capitalista.

Exatamente por faltar no serviço público essa figura

última, por não se permearem as relações a partir da chamada "mais valia" é

que o figurino da legislação trabalhista nunca foi capaz de vestir bem o

vínculo travado com o setor público.

Arriscamo-nos até a dizer que, em um quadro

conjuntural brasileiro de recrutamentos motivados por injunções políticas as

mais diversas, formou-se um largo contingente de servidores públicos que,

antes de serem explorados pelo "empregador público" em verdade, exploram-

no.

O certo é que os pleitos trabalhistas desses

servidores têm projetado uma enorme carga financeira para a administração

pública, porquanto juízes do trabalho, além de conferir-lhes os direitos

materiais, o que é perfeitamente admissível, dão, além disso, aos entes estatais

tratamento processual manifestamente incompatível com a sua estrutura.

Um fenômeno muito comum é o da aplicação dos

efeitos da revelia, extraindo-se uma confissão de todo inaceitável, ante a

indisponibilidade do direito público como, aliás, já registramos em outra

passagem.

113

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O certo é que formaram-se ao longo dos anos

sentenças com vultosa carga de condenação contra o erário.

A partir daí, passaram a existir substanciais

dificuldades à execução desses julgados que comprometiam larga parte do

orçamento público.

Os juizes trabalhistas, com razão, desejavam o

cumprimento dos seus julgados, tanto porque entendiam que os créditos dos

empregados, reconhecidos em decisões definitivas, não poderiam ser feridos,

quanto mais, ainda, porque não seria possível desmerecer-se a autoridade do

Poder Judiciário.

Diante desse quadro, passaram a enxergar, no

instituto do precatório, um instrumento insuficiente, porque, na maioria das

vezes, os prefeitos deixavam de incluir a verba correspondente à condenação

no seu orçamento.

Para isso, criou-se a engenhosa e perversa forma do

sequestro indiscriminado das verbas municipais, fossem quais fossem as suas

origens e independente de destinação específica.

Se havia um crédito de empregado a ser recebido,

ainda que não existisse reserva orçamentária, a Presidência do Tribunal

Trabalhista determinava o sequestro de numerário destinado à construção de

um hospital, à edificação de uma escola ou a investimento em saneamento

básico e por aí a fora.

Punha-se, inquestionavelmente, em periclitação a

própria ordem jurídica, determinando-se, inclusive, o desvio das rendas

públicas, figura caracterizadora, em tese, de delito penal.

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O Município via-se desapossado dos seus recursos

por uma violenta atitude, por mais defensável que fosse o intento de

prestigiar-se a decisão judicial.

No Estado da Bahia, palco dos episódios narrados,

agitaram-se, sem êxito, ações no âmbito da própria justiça laboral, na tentativa

de conter um escancarado desvio de procedimento.

Frustrados aqueles caminhos, identificou-se o

desvio, como modalidade interventiva anômala e indireta na esfera municipal.

Da natureza de intervenção, não se poderia pôr

dúvida, porquanto o ato abrupto de invasão da esfera financeira do ente

federado destruia-lhe a autonomia.

O Judiciário trabalhista passava a ser o gestor das

finanças municipais, substituindo-se os prefeitos.

Nada tinha o ato de sequestro de semelhante com o

procedimento de execução, formatado à base da instituição do precatório.

Quanto à situação anômala, também parecia estar

evidente. A União não poderia intervir no Município, muito menos pela

esdrúxula forma adotada.

Entre nós, em caso de descumprimento de decisão

judicial trabalhista, o remédio adequado seria a provocação do Tribunal de

Justiça Estadual que, nesse caso, examinados os pressupostos regulares, daria

curso ao processo interventivo constitucional.

Com o saudável propósito de evitar o protelamento

na satisfação de uma decisão, a Corte Trabalhista atuou fortemente com

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invasão de competência, em manejo de medida inadequada e em ordenamento

de providência probida pela tutela penal.

Bem a tempo, o Tribunal de Justiça da Bahia, apesar

de entendimento em sentido contrário de diversos dos seus mais ilustres

membros, externou posição, impedindo a consumação dos desarrazoados atos.

No acórdão oriundo da Reclamação Constitucional

n.1774/94, o Tribunal de Justiça declarou a nulidade dos atos do Presidente do

Tribunal Regional do Trabalho, com a seguinte ementa: “Reclamação

Constitucional. A execução trabalhista não confere à Justiça

especializada compentência para intervir no Município, atribuição

privativa da Corte Estadual art.35, inciso IV da Constituição Federal. O

sequestro indiscriminado de verbas em afronta ao art.100 parágrafo 2º

da Carta Magna reveste-se de caráter materialmente interventivo,

cabendo ao Tribunal de Justiça preservar sua exclusiva prerrogativa, na

guarda da autonomia municipal. Reclamação acolhida”.67

Dita interferência só foi possível ante o

reconhecimento de que o órgão trabalhista usurpava competência do Estado

que convinha ser repelida pelo exercício da própria ação constitucional.

A esse acórdão pioneiro seguiram-se outros, mas a

questão continua controvertida no âmbito da Corte, não especificamente

quanto à ilegitimidade do ato da autoridade trabalhista, mas quanto à

possibilidade de o Tribunal de Justiça desfazê-lo.

Quanto a nós, não temos dúvida do acerto da

decisão, sob o ângulo formal, porque não pode o Poder Judiciário abandonar a

67 Diário do Poder Judiciário, 10/10/1996

116

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guarda da autonomia municipal, notadamente quando se exige sua presença

ante a ação do agressor externo.

O dever de vigilância convoca a Corte de Justiça a

repelir a ingerência no Estado, pouco importa venha ela do ente federal.

Aliás, a idéia do pacto federativo supõe a

formulação de que cada esfera da federação tem o direito de proteger a sua

incolumidade contra outra.

Uma simples visão histórica no direito

constitucional americano demonstra as inúmeras posições de defesa dos

Estados contra a União.

Destaquem-se os princípios limitativos, como o da

imunidade recíproca, o da não-intervenção, dentre outros tantos.

O estudo de caso, repetidamente adotado, presta-se

ao reforço de toda a nossa argumentação no sentido de evidenciar a

característica do desvio de procedimento, como um descaminho na

persecução de um fim, objetivamente legítimo.

A essa altura parece claro o nosso posicionamento

de que as instituições públicas desviam-se tanto contra o cidadão, quanto em

desfavor de outros entes públicos, o que é forma ainda mais grosseira de

atingir, em bloco, um universo muito maior de cidadãos, representados pela

entidade política vitimada.

Não fique, de qualquer modo, a impressão de que o

circuito atinge apenas os dois casos exemplares.

Desvio de Procedimento a Partir da Legislação -

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Sem a tradição de um exame mais aprofundado da

patologia na administração pública, às vezes, é o próprio legislador quem

propõe a prática de condutas maculadas.

É o caso da nossa lei de licitações.

Dentre os requisitos para que alguém possa

participar de um processo licitatório, mister se faz a chamada prova da

regularidade fiscal.

Por esse meio, devem ser rejeitados na competição

para celebração de contratos administrativos aqueles que estejam em débito

com tributos federais, estaduais, municipais e com as contribuições sociais

públicas (INSS, FGTS).

Voltamos ao mesmo ponto.

É natural que o Estado pretenda receber os seus

tributos de forma adequada e tempestiva, porque são a fonte do equilíbrio

financeiro que, em última análise, produz a organização social.

Vai, daí, uma grande distância entre esse propósito

legítimo e o meio espúrio de constranger-se o contribuinte a tais pagamentos

com a asfixia, decorrente da impedibilidade no exercicio de suas atividades.

Se uma empresa, basicamente, presta serviços ou

fornece bens cujo consumidor é exclusiva ou predominantemente o Estado,

poderá ser levada à falência por não poder participar de licitações sempre que

se lhe atribua um suposto débito - ainda que não real - pouco importa.

Para afastar o débito imputado, deverá depositar

valor ou oferecer garantias suficientes em defesa, ainda que o débito, afinal,

venha a ser julgado insubsistente.

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A lei, no caso, fez tábula rasa da norma

constitucional federal, que assegura a liberdade no exercício de qualquer

atividade ou profissão, ressalvadas, exclusivamente, as limitações que

decorram de capacidade do agente.68

De modo substancialmente grave, ultrapassou os

limites do devido processo legal pelo qual está adstrita a cobrar os seus

débitos pela via da execução. (Art. 5º, LIV, CF)69

Nessa linha, é desarrazoada qualquer exigência do

teor noticiado, embora, na prática, tal exigência venha sendo realizada com

extremo vigor.

Imagine-se a situação de desequilíbrio entre o

particular e a administração pública, quando esse não esteja em dia com o

imposto, mas que, simultaneamente, seja credor de parcela vencida junto a

própria administração pública, em valor mais que suficiente para quitação do

tributo.

Restrito o sistema de compensação, esse fornecedor

ou prestador de serviço terá sido vítima da própria torpeza administrativa.

Não vemos, pois, como admitir tal procedimento em

desvio manifesto ao padrão de conduta, esperado do administrador no Estado

de Direito.

As situações multiplicam-se.

68 Art. 5º, inciso XIII “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” 69 “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”

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A Ordem dos Advogados do Brasil exige dos

profissionais, a ela vinculados, o pagamento pontual das suas anuidades. Nada

demais.

O que é estranhável é que não se permita ao

advogado em débito exercer o direito político de voto nas eleições da sua

diretoria. Tal direito é inalienável e não pode ser condicionado por motivos

meramente financeiros.

Frise-se, inclusive, o caráter público que permeia a

relação jurídica entre o advogado e a ordem, a não justificar o alijamento do

direito de voto à simples questão do pagamento de anuidade.

É um péssimo exemplo vindo de uma instituição que

prioriza o acertamento judicial das soluções.

Enfrentaremos, agora, um ponto deveras polêmico,

pela sua longa tradição judicial, qual seja a aplicação da deserção no

julgamento dos processos por motivo do não pagamento das custas judiciais.

Pensamos que as custas devam existir, tendo em

vista que, a rigor, não há nada que se possa denominar como propriamente

gratuito.

A chamada justiça gratuita não é, senão, a diluição

difusa dos custos do Judiciário por toda a população.

Sabe-se que, nos sistemas capitalistas, as camadas

mais pobres passam ao largo do Poder Judiciário, porque não têm

propriedades, nem alugam imóveis, nem possuem veículos, nem têm como

indenizar a quem quer que seja, nem têm terras, nem são credores, nem

ninguém os aceita como devedores, nem ao menos se casam para se

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divorciarem, tampouco possuem herança a deixar. O máximo que lhes

aproxima de tal Poder é a perseguição pela justiça criminal. Se a Justiça é

gratuita, essa camada pagará por ela nos impostos embutidos nos preços,

inclusive dos gêneros de primeira necessidade.

Há, em contrapartida, os que, como próprio móvel

do desempenho de suas atividades industriais, de serviço ou comerciais,

fazem desaguar milhares de ações na Justiça, que lhes propicia resultados

financeiros apreciáveis, não sendo de se aceitar que o custo desses serviços

seja entregue a toda a comunidade.

Feitas essas considerações laterais, é hora de

afirmar-se que o instituto da deserção se nos afigura como desvio de

procedimento, ainda que imposto por lei.

Se nenhuma lesão se exclui da apreciação do Poder

Judiciário, não é possível erigir-se, como pressuposto de excepcionalidade, o

não pagamento das custas, como causa impediente do direito ao julgamento.

Não pode a parte sofrer grave revés que em nada se

liga com o seu direito material, mas que somente alimenta o propósito de

arrecadar do Estado.

Essa arrecadação, que justificamos, não pode ser

feita ao sacrifício do exame da pretensão da parte.

Fica-nos até a impressão de que o alívio da

sobrecarga do Poder Judiciário conta com a deserção, como aliado.

A primeira pergunta a ser feita será aquela pertinente

a que fim atende a deserção.

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Não será, seguramente, um meio adequado à

percepção dos valores das custas, até porque poderiam estas serem exigidas

no início da demanda para fazer face às despesas integrais.

Se não é esse o móvel, restaria possível imaginar-se

como um meio de reduzir o número de demandas.

Mas se é certo que a redução dos conflitos e do fardo

que pesa sobre o Poder Judiciário é uma meta a ser perseguida, nunca ao

custo da imposição da deserção.

Os que trabalham com o princípio da razoabilidade,

a que se tem acrescido o da adequabilidade, podemos ver, claramente, que

falta uma conexão aceitável entre a causa e o efeito, notadamente se se tem

em conta que a omissão pelo pagamento é, frequentemente, fruto da desídia

do advogado intimado, enquanto que a conseqüência pelo não julgamento é

da própria parte litigante.

Frente a frente um fim plausível - reduzir-se o

volume de processos - e um meio inadmissível - sonegar-se o duplo grau de

jurisdição, que é uma garantia inerente ao direito de defesa.

Não convém alongar mais o exemplário que teve por

objetivo tornar aguda a distinção e evidenciar a identidade própria do desvio

de procedimento.

Parece-nos que logramos extremar as fronteiras

entre o desvio de finalidade e o desvio de procedimento, pelo menos aos

limites propostos nesta monografia.

Da Invalidade do Ato Incidente em Desvio. Impossibilidade de

Convalidação. Exceção à Regra -

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Vimos adotando, sempre, a perspectiva de enfrentar

os corretivos adequados às manifestações patológicas sob estudo, de modo

que não devemos fugir ao questionamento quanto às conseqüências desatadas

a partir da prática do desvio procedimental.

Quanto ao desvio de finalidade, há um consenso

doutrinário e jurisprudencial no sentido de que se trata de invalidade não

sanável, na exata medida em que o próprio vício se desnuda, como

protagonista e face mais vísivel do próprio ato.

Por essa sorte, eliminado o desvio, o próprio ato não

se produziria.

Já no desvio de procedimento, cabem algumas

considerações que lhe peculiarizam, justificando, inclusive, um apartamento

categórico a partir de uma diversidade de efeitos.

Nessa linha, queremos distinguir, no âmbito da

administração, os chamados procedimentos de caráter meramente

instrumental, daqueles que envolvem uma finalidade a ser perseguida.

Dentre os operadores do direito, encontramos

excelente trabalho de Margarita Beladiez Rojo, intitulado “Validez y eficacia

de los actos administrativos”70

A autora começa por afirmar, com inteira razão, o

papel institucional do procedimento no direito administrativo e anota que, em

face das prerrogativas próprias da administração, inclusive a garantia da auto-

executoriedade, só se legitimam os seus atos, quando em estrita obediência à

forma procedimental, porque, de outro lado, estar-se-ia a realizar um desvalor

jurídico, representado pela insegurança projetada na cidadania. 70 Margarita Beladiez Rojo, Validez y eficacia de los actos administrativos, 1994

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Invocando direito espanhol, afirma que a forma, por

ser um requisito essencial ao ato jurídico, é suficiente a desencadear a

nulidade desse por desapreço àquela.

A exceção que se abre — pontua a autora — deve-se

unicamente à formalidade administrativa que se revele, exclusivamente, como

instrumento de consecução da legalidade do ato fim, mas cuja ablação não

resulte nesse comprometimento.

É sobre o mesmo viés que se inclina Weida

Zancaner em obra que marca as letras jurídicas nacionais pela precisão

conceitual na cogitação de tema tão desafiante.

A professora paulista distingue as manifestações

procedimentais que não envolvam um conteúdo finalístico e, por isso, seriam

convalidáveis, daquel’outras que “desvirtuam a finalidade em razão da qual

foi instaurado o procedimento” e por isso não podem ser contempladas com

a convalidação.71

Permitimo-nos exemplificar com regras pertinentes

ao procedimento licitatório que asseguram o prazo de recurso contra

determinadas decisões, cuja dispensa é possível, se todos os licitantes abrirem

mão do lapso prazal.

É preciso – bem se sabe - muita cautela no exame da

natureza do procedimento, porque, no mais das vezes, o que é forma para a

administração, é conteúdo para o administrado e, nesse caso, o vício de forma

termina por ser um vício essencial e nulificante.

71 Da Convalidação e invalidação dos atos administrativos, Zancaner, Weida, pags.71 e 75

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Na maioria das vezes, a administração pública ao

cumprir determinada formalidade, está realizando um fim específico tal qual

está obrigada.

Em abono a esse entendimento, a justiça hispânica

agita a questão constitucional que impõe a seleção no serviço público segundo

o princípio do mérito, da capacidade e da publicidade. (art.103, XX e XXIII,

CE).

Verificando-se que a administração escolheu alguém

para um determinado posto, o mais qualificado que seja, se não obedecer as

regras imanentes à publicidade, a nomeação resultou inválida.

Nesse caso, foi violada uma garantia material de

acesso universal ao serviço público que não se traduz em um simples

postulado instrumental.

Não é difícil conceber-se a atividade meio do Estado

como a perseguição de um fim para o cidadão.

A garantia de que ninguém será preso, senão por

ordem de autoridade judicial competente, nas situações legalmente

estabelecidas, não permite que se considere mera formalidade o

aprisionamento do cidadão com desprezo de tal regra.

Dir-se-á que a garantia da liberdade é

principiologicamente, inclusive, superior ao próprio fim, eventualmente

buscado, a prisão de um suposto infrator.

Nesse caso, do ponto de vista axiológico, a conduta

final da administração perde em grau de importância à proteção da cidadania.

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De igual modo, assegurar-se a ampla defesa em um

determinado caso concreto suplanta, em termos de valor, a própria idéia de

punição que possa resultar de um ato administrativo com desprezo de tal

formalidade.

Se a administração despreza regras procedimentais

que envolvem garantias públicas, instala-se o pânico, atingindo-se a própria

organização societária, matiz maior da arquitetura jurídica.

Em preciosa síntese, a cientista ibérica adverte: “los

distintos trámites del procedimiento, en cuanto elemento formal de todo

acto administrativo, además de garantizar la legalidad material o de fondo

de la resolución, tiene otras finalidades asignadas tan relevantes o más para

el interés público que el directamente perseguido por el acto final. Por esta

razón, parece necesario reconocer que la forma tiene un valor para el

Derecho, y más en concreto para el Derecho Administrativo”.72

Eis aí um aspecto essencial, em que não se receia

afirmar a superioridade axiológica da conduta meio em relação ao ato fim, só

reforçando a nossa sustentação de que a concepção de público pode repousar

no atendimento a uma expectativa individual.

Forma marcante de pontuar essa doutrina encontrou

a Constituição Brasileira, no art.5º, inciso LVI, ao inadmitir o aproveitamento

da prova colhida de forma ilegal.73

Com tal postura pretendeu-se garantir o cidadão

contra atuação invasiva do Estado, a tal modo que a Carta Magna

desestimulou esse manifesto desvio de procedimento, conferindo à prova que

dele resulte o caráter de inutilidade. 72 op cit. pag.131 73 “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”

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Essa concepção, oriunda do direito americano,

radicaliza-se mais, quando sequer se admite a elucidação de um fato cuja base

de informação, tenha sido oriunda da prova ilícita. (fruits of poisoned tree).

Depois disso, cabe-nos proclamar a impossibilidade

de convalidação do ato, eivado de procedimento, com a ressalva cabível, o

que o diferenciará do desvio de finalidade, no sentido de que a administração,

desfeito o caminho tortuoso, poderá voltar a perseguir o seu objetivo,

recompondo a sua trajetória, segundo os canônes adequados.

Essa recomposição é, muitas vezes – alerte-se -

bastante problemática, porque será possível identificar, a posteriori, a

transmutação do que se deu sob a forma de desvio de procedimento em desvio

de finalidade.

Considere-se a hipótese, nos casos anteriormente

aventados, do aluno que teve suas notas reduzidas, como meio de eliminá-lo

da escola, recuperando sua permanência, venha a ser alvo de procedimento

formal disciplinar, caso o educandário, antes de apurados os fatos, já esteja

munido do objetivo de eliminá-lo.

Nesse caso, o processo não terá atingido o fim da

apuração, mas perseguido a forma de legitimar a punição.

De igual, o comerciante que tem apreendidas as suas

mercadorias e consegue liberá-las ao demonstrar que esse não é o meio de se

lhe cobrar tributo, passa a ser alvo de uma sistemática fiscalização que visa,

muito mais, a embaraçar-lhe a atividade do que detectar eventual infração à

norma tributária.

Temos notícia de situação em que a administração

pública ao ver anulado um flagrante lavrado, busca e obtém no Judiciário a

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decretação de uma prisão preventiva que mal esconde a perspectiva de

restaurar, por via oblíqua, o proceder inadequado na etapa anterior.

Em tese, a busca do fim legítimo não deve ser

inviabilizada tão somente porque o caminho escuso foi interceptado, se este

pode ser recomposto.

É hora de arrematar o capítulo para afirmar, na

esteira de toda a argumentação, que o desvio de procedimento não se resgata

nem se recupera, na medida em que o meio para a administração é o fim para

o cidadão, com a ressalva possível que as normas de procedibilidade,

meramente instrumentais, podem ser desprezadas, quando a conduta

equivalente da administração produza o mesmo efeito, sem qualquer

comprometimento a direitos autônomos que o abandono procedimental possa

gerar.

Também é óbvio que, se em tal espécie de desvio, o

fim é legítimo, poderá voltar a ser perseguido com todas as ressalvas que a

observação empírica nos permitiu traduzir nas linhas acima.

Fechamos mais um capítulo, porque agora queremos

mostrar que a administração não só se desmerece quando age, mas também se

apequena quando resta inerte. Pronto. Estamos avisando que o nosso próximo

tópico de abertura é a inércia administrativa, especificamente sob a

modalidade silencial.

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CAPÍTULO IV

DO SILÊNCIO ADMINISTRATIVO

Inércia Administrativa Genérica -

A exploração que passamos a fazer, revela, como

pressuposto, a idéia de que a administração pública tem o dever de agir,

exatamente porquanto da sua atividade é que resultará a organização e o

equilíbrio do Estado e da vida dos cidadãos.

Afinal de contas, o ad/ministrar, significando atuar

por alguém, demanda sempre uma atividade permanente e ativa, em busca da

manutenção do equilíbrio comunitário e do desenvolvimento das aspirações

da comunidade.

A administração deve, pois, agir para conseguir os

seus fins e, se não o faz, compromete a sua inteireza, e o seu próprio perfil

ontológico.

Nestes termos, o omitir-se traduz-se em quadro

patológico de extrema gravidade.

Isso, não obstante, no direito pátrio, não se tem dado

o correto e aprofundado tratamento à prática abstencionista, cuidando-se

quase sempre da análise dos atos positivos, quer do ângulo da sua perfeição,

quer dos reflexos na responsabilidade do Estado.

A legislação, por seu turno, quase sempre tenta

remediar a omissão administrativa pela simples responsabilização dos agentes

públicos, punindo-se o malfeitor, sem a rigor, corrigir o mal.

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Em uma classificação que remonta à Roma Antiga,

declaram-se perfeitas as sanções, quando cogentemente se obtém a prestação

não realizada pelo modo natural. Ao contrário, são menos que perfeitas

aquelas que se limitam a impor cargas valorativas negativas ao responsável

pelo ilícito.

Ora, o cidadão, diante da administração, guarda a

expectativa de que esta cumpra o seu dever e não é razoável que se frustre,

ainda quando se venha a punir o agente relapso.

A inércia administrativa caracteriza-se, quando a

administração descura-se dos seus deveres e encargos constitucional e

legalmente previstos.

Essa situação exibe-se no dia-a-dia, ora pela

ineficiência da máquina estatal, ora pela má condução da coisa pública e,

outras vezes, pela culpa ou dolo do servidor ou agente.

Em tais casos, haverá dano à coletividade reparável,

segundo a hipótese concreta por meio de indenização civil.

Particularmente, centraremos o debate em uma

perspectiva mais reduzida, qual seja a da inércia específica, resultante do não-

pronunciamento governamental em face de ato provocativo do administrado.

Essa modalidade singular tem sido conhecida na

doutrina sob a rotulação de “silêncio administrativo”.

Origens e Precedentes no Direito Comparado -

Costuma-se estabelecer, como origem legal ao

tratamento do silêncio administrativo, um Decreto de 02 de novembro de

1864, editado em França, pelo qual seriam consideradas negadas todas as

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pretensões dirigidas aos Ministros que, no prazo de 04 meses, não obtivessem

resposta.

Posteriormente, a Lei de 17 de julho de 1900, no seu

art. 3º, estendeu o tratamento jurídico a todos os reclamos veiculados perante

qualquer órgão da administração pública.

Na Espanha, essa questão surge por força do

impacto gerado pela Ordenança Real de 09 de junho de 1947 que estabeleceu,

como condicionante de acesso à via judicial, o prévio afrontamento da

Instituição pública.

Consoante explicitado em tal norma, a exigência se

fazia necessária de tal modo a permitir que o governo pudesse reparar seus

atos e obter soluções mais adequadas, antes de ser submetido à instância

judicial.

Diante disso, a jurisprudência passou a alertar de

modo firme quanto à necessidade de uma posição terminativa da

administração de modo a não inibir o exercício do direito de ingresso em

juízo.

Mas, só a partir de 1924, é que se estabeleceu a

possibilidade de ultrapassagem da via administrativa, quando o silêncio, por

decurso de prazo, seria interpretado, em princípio, negativamente, isto é, no

sentido de recusar procedência à reclamação.

Na Itália, em 1934, a Lei Comunal e Provincial

estabeleceu a admissão do silêncio, como forma negativa de resposta ao

pleito.

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Na Argentina, pelo Código de Procedimentos (Lei

nº.19.549), estabeleceu-se o princípio da denegação tácita pelo silêncio.

O mesmo diploma legal contemplou, em caráter

excepcional e mediante previsão expressa, a perspectiva de que a atitude

silenciosa viesse a ser interpretada de modo positivo, isto é, em favor do

administrado.

Estabelecidas essas premissas, vamos verificar quais

a acepção e o significado do silêncio administrativo e sua importância na

formação do Estado de Direito.

Conceitos e Distinções -

Trabalharemos com a hipótese conceitual segundo a

qual deve-se ter por silêncio administrativo, em sentido estrito, a atribuição de

um significado de outorga ou negativa de um pedido ou recurso, uma vez

transcorrido o prazo estabelecido para a administração pronunciar-se.

Nesse compasso, estabelecem-se duas categorias

claramente distintas, quanto à repercussão do silêncio, que podem ser

identificadas, como silêncio negativo e silêncio positivo.

O primeiro, como já se pontuou, resulta em admitir-

se, como rechaçada, a pretensão que não foi respondida ou resolvida no tempo

previsto em Lei.

Cumpre de plano indagar-se qual o proveito que

resultaria para o administrado na extração de tal exegese.

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Se examinarmos a Lei de Mandado de Segurança no

Brasil74, lê-se, no seu art. 5º, o descabimento do remédio heróico contra ato

que caiba recurso administrativo e a que se atribua efeito suspensivo.

O Legislador, claramente, convidou a parte a residir

com anterioridade na instância administrativa, inibindo a exercitação da ação

judicial, se aquela via enseja a suspensão da eficácia do ato.

A questão complica-se – é de se ver - quando

exercitado o recurso administrativo cabível, a administração não lhe confere

solução, procrastinando o desate da matéria posta ao seu crivo em situação de

insegurança e desconforto para o interessado.

Nesse caso, se, induvidosamente, o silêncio puder

ser interpretado como negação do pedido, pelo menos a parte poderá agitar a

via judicial em busca da estabilidade da relação.

À falta de lei específica, muitas vezes, tem-se

percorrido o tormentoso caminho de buscar-se a Justiça tão somente para

obter-se a pronúncia administrativa e, a partir do resultado obtido, encetar-se

nova lide judicial.

Por essa forma, a doutrina do silêncio negativo

representa avanço no campo das relações entre administrado e administrador.

O segundo ponto que deve ser investigado consiste

em saber se é possível adotar-se o silêncio negativo sem previsão legal.

O nosso entendimento inclina-se pela afirmativa,

lastreado na circunstância de que a ausência de pronunciamento deve,

74 Lei 1.533 de 31 de dezembro de 1951

133

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inequivocamente, merecer uma interpretação, considerando-se que se trata de

uma conduta que produz efeitos na órbita do administrado.

Certo é que a nossa Constituição assegura o direito

de petição.75

Logo, é evidente que ao direito de pedir corresponde

o direito de obter a resposta e, ao considerar-se que essa resposta poderá ser

positiva ou negativa, é possível interpretar-se a ausência de manifestação

explícita em um sentido ou em outro.

Logo, quando a Constituição estatui que nenhuma

lesão se exclui da apreciação do Poder Judiciário, esta lesão pode advir tanto

de atos, como de comportamentos.

Chegaremos, pois, à conclusão de que, em regra, a

administração, quando não explicita o seu posicionamento, assume

comportamento do ponto de vista lógico, equivalente ao da negativa,

presumidamente.

Não se ignora que, no plano privado, em princípio,

deve prestigiar-se a máxima latina, segundo a qual: “ qui tacet utique non

facetur”, porque o particular, salvo as determinações legais ou contratuais,

não está obrigado a se manifestar.

Ao contrário, o órgão público diante do direito de

petição tem o dever correspondente de resposta, na medida em que não lhe é

dado o “non liquet”.

75 Art. 5º, XXXIV, alínea “a” CF - São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: “O direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder”.

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Ora, considerando-se que a resposta é um direito

abstrato de quem pede, há que se contornar a ausência dela por alguma forma

que não seja a mais gravosa de compelir o pronunciamento.

O nosso raciocínio encaminha-se em termos de

remédio administrativo a encarar o mutismo do agente público, em princípio,

como negativa ao pleito, como passaremos a sustentar.

Se o administrado necessita do “placet”

administrativo para um determinado modo de atuar ou para a obtenção de um

resultado (“verbi gratia” licença, autorização) e, se não o obtém, pode-se

perfeitamente encontrar, como solução pragmática, o resultado não

concessivo, ou seja, de negativa do pleito.

Trata-se, evidentemente, de uma construção

terapêutica a combater tal desvio administrativo, mas frise-se, não uma

presunção propriamente dita, senão que, no máximo, a extração dos efeitos

equivalentes.

A nossa ilação é, pois, no sentido de que se deva

conferir ao silêncio característica negativa, sempre quando a natureza do ato o

comporte e a lei não vede, expressamente, tal interpretação ou não lhe atribua

outro efeito.

Voltamos a enfatizar que, diante do dever expresso

de provocar a administração, evitando-se querelas judiciais prematuras, deve

ser oferecida a contrapartida de equilíbrio para o cidadão, no sentido de

romper a barreira do silêncio com o recolhimento de um entendimento

significante, de modo a lhe poupar o que antes se lhe queria evitar — o

exercício de uma ação judicial direta — agora a deflagração de duas: uma,

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com o fim de romper o silêncio e outra, com o objetivo de questionar a

decisão.

Trata-se, substancialmente, de construção

dogmática, artificial, mas absolutamente necessária, como medida

compensatória à busca de uma situação mais cômoda para o interesse do

cidadão que, afinal, é o interesse público primário.

Frisamos a nossa posição de que a dispensa de lei

específica que preveja a extração de efeitos do silêncio pode ser dispensada à

luz do princípio de equilíbrio das partes em suas relações contenciosas para o

qual está sensível a Constituição.

Cabe agora saber se a lei não fixa um prazo para

manifestação administrativa, até quando se deve aguardar o desfecho da

postulação.

O problema não é singelo, tendo em vista a

dificuldade de uniformização temporal para o proferimento das decisões, face

a diversidade de grau de complexidade de cada matéria.

Não será, jamais, a lacuna legal que haverá de

reduzir a pó o direito assegurado constitucionalmente.

Nesse caso, há de se buscar o critério da

razoabilidade com o qual tanto temos convivido ao longo desta dissertação.

Estabeleça-se, pois, que à falta de lei, deve-se

entender que a manifestação administrativa deve ser exercitada, segundo as

circunstâncias, em prazo RAZOÁVEL.

Aí está um conceito plenamento suscetível de ser

aprisionado factualmente, de modo a permitir-se saber, com relativa margem

136

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de segurança, se o ente público extrapolou ou não, em termos de tempo, a

medida do que se poderia aceitar, como adequado, no conjunto das

circunstâncias.

Sem prazo preestabelecido, força é convir que a

resposta a ser dada deve ser proferida, como querem os de língua inglesa “as

soon as possible”, vale dizer, logo que possível.

De qualquer modo, não se poderá perder o horizonte

das raízes históricas no direito comparado, suscetíveis de instrumentar a

interpretação analógica.

Como já fixado no direito francês, estabeleceu-se

um prazo de 04 meses, no máximo, para qualquer solução.

Na Espanha, idêntico lapso foi adotado pelo

regulamento administrativo de 1954.

O mesmo ciclo temporal foi estabelecido na Itália.

No Brasil, podemos desenvolver o discurso por via

indireta.

É que a ação mandamental está sujeita a prazo

decadente de 120 dias, quando o ato administrativo não mais pode ser atacado

por essa via.

Fixou-se um período máximo de tolerância para o

administrado. Usando-se o mesmo parâmetro e para se criar um critério

isonômico, a mesma regra poderá ser aplicada quanto ao silêncio da

administração, estabelecendo-se, assim, tal período, em qualquer hipótese,

como o máximo admissível para a pronúncia tempestiva.

137

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Isso não quer dizer que, dadas as circunstâncias, não

possa o prazo ser substancialmente menor, quando a demanda encaminhada

não envolva maior complexidade, como é o caso, exemplificativamente, do

fornecimento de simples certidões, sobretudo, quando já se dispõe de sistema

computadorizado.

A razoabilidade será aferida ademais tanto em

função da natureza da tarefa a ser empreendida pelo órgão público, quanto

diante da urgência ou da utilidade da outorga ou do deferimento pretendido.

Daí não se poder permitir prazo tal que torne inútil o

pronunciamento.

O que é preciso insistir é no fato de que a ausência

de previsão legal nem impede a adoção do silêncio negativo nem, muito

menos, o entendimento da existência de um lapso prazal.

Urge agora contemplar a chamada figura do silêncio

positivo de aplicação menos frequente, exatamente pelas peculiaridades de

que se investe.

Haverá silêncio positivo, quando a abstenção

administrativa possa importar em concessão da pretensão deduzida.

Fiorini, em sua obra “Tratado de Derecho

Administrativo”, traz o depoimento, no sentido de que no sistema argentino,

enquantï o silêncio negativo é a regra, o silêncio positivo decorre sempre de

lei.76

76 Fiorini Bartolomé, Derecho Administrativo, pag.439. “El vencimiento del plazo de silencio induce a interpretar que hay negativa a lo solicitado, es lo que la doctrina denomina principio negativo a lo solicitado por el administrado”

138

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Essa observação pode, a grosso modo, ser

generalizada nos sistemas jurídicos contemporâneos que dão tratamento à

matéria.

Garrido Falla já havia assinalado a perspectiva do

risco de uma outorga emergente de silêncio positivo vir a ser invalidada

judicialmente, chegando a afirmar que a jurisprudência mais recente das

Cortes Espanholas inclina-se por negar validade aos atos decorrentes de

silêncio positivo, mas que tenham como causa uma situação ilegal.77

Outros questionamentos têm sido levantados, como

sucede quando se busque um benefício por parte da entidade pública que

dependa diretamente da sua interferência, como é o caso da promoção de um

funcionário.

Não se vê outra alternativa senão a do acionamento

do Judiciário para tais hipóteses.

Não será igual, quando se cogitar de licença para

prática de uma determinado ato, cujo exercício dependerá apenas do

particular desde que o Estado não o obstacule.

É a situação especificamente da licença para

construção ou edificação, quando o interessado há de buscar a aquiescência

pública, que se desatará em procedimento inteiramente vinculado.

Muito especificamente, a legislação do Município de

Salvador, Bahia, num dos poucos exemplos encontradiços a tal respeito,

permite que o munícipe inicie a construção, se decorrido o prazo à obtenção

do Alvará, este não foi concedido.

77 Tratado de Derecho Administrativo, Garrido Falla, pag.693

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Embora possa, por muitos, ser considerado um

avanço, e estarmos em sua companhia, não há negar a existência de alguns

transtornos decorrentes de tal postura.

É facilmente perceptível a dificuldade de

comercialização de um imóvel cuja licença de construção não foi

expressamente concedida devido à insegurança de que se nutrirão os espíritos

dos adquirentes em potencial.

Tudo isso porque, em verdade, como bem assinalado

na doutrina, para configuração do silêncio positivo, é necessário que o ato

vindicatório se encontre em estrita conformidade com a lei.

Mais do que isso, que o requerimento não apreciado,

deve ter sido instruído com todos os documentos que possibilitariam sua

regular apreciação.

Afora esses aspectos, gera-se uma outra dificuldade,

qual seja a de se ir a juízo para pacificação do direito deduzido, quando, por

presunção legal, já tiver sido acatado.

Como anota com propriedade Ernesto Garnica: “Sob

a perspectiva do interessado a efetivação do silêncio positivo é sobretudo

duvidosa. Quando seja discutível se o pedido se acomoda ou não à

legalidade o interessado se opta por atuar, ver-se-á submetido a um

inevitável risco; como anotou Santamaria Pastor, o interessado se

encontrará ante o dilema de fazer ou não fazer o uso do silêncio sem que ao

menos possa em princípio provocar os tribunais para que aclare a sua

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situação, já que não pode atuar como demandante para que se confirme um

ato presumido, por silêncio positivo”.78

Ainda é de se registrar que o silêncio positivo deve

ser restrito àquelas situações resultantes de procedimentos e atos vinculados,

de tal sorte a emprestar-lhes um mínimo grau de certeza.

Andou bem, no particular, o Código de

Procedimentos Administrativos da Espanha, quando, no seu art. 95

estabeleceu a existência de silêncio positivo em relação a recursos

administrativos pendentes, quando a decisão de origem é favorável ao

administrado.

Nesse caso, tendo sido a relação jurídica acertada na

instância inferior, não se justifica que se lhe impeça a executoriedade por

conta da passividade do órgão hierárquico de maior grau.

É de registrar-se, por fim, o nosso sentimento de que

ao se cuidar de silêncio positivo, deveremos contar com lei expressa, ao

contrário do que defendemos quando se cuida de silêncio negativo.

De Outras Modalidades de Silêncio -

A dicotomia simplista entre silêncio negativo e

silêncio positivo não abrange todo leque de situações que, juridicamente,

merecem estudo.

Inafastavelmente, há de se ter presente que em

determinadas situações, não se poderá cogitar nem de interpretação negativa,

nem de interpretação positiva, por estrita impossibilidade lógica, devendo-se,

78 El Silencio Administrativo en el Derecho Español, editora Civitas S/A., 1992, pag.179

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nesse caso, limitar-se o legislador a estabelecer a responsabilização do agente

retardatário.

Como tal será, quando o ato administrativo resulte

de uma construção a ser elaborada pelo agente público.

Não será possível, portanto, diante de uma licitação,

cujo resultado não foi declarado, de modo a proclamar-se vencedor um entre

vários concorrentes, lograr-se a atribuição de uma solução em favor de um ou

de outro, ultrapassando-se a organização estatal.

Em hipóteses tais, o remédio será mesmo compelir-

se o administrador a praticar o ato, já que não se concebe alternativa diversa.

O mesmo se diga em relação ao professor de

Universidade Pública que dispõe de um prazo para atribuição de notas a

determinadas provas, mas por não atendê-lo, não dará azo, a que se repitam

notas anteriores ou se venha a suprir a avaliação por outro modo.

Para esses casos, atribuímos o enlace conceitual de

atos administrativos insubstituíveis.

Poderíamos, ainda, falar no que rotularemos como

silêncio preclusivo, onde o decurso do tempo dispensa pura e simplesmente a

prática do ato.

Tal situação emerge no direito parlamentar

brasileiro, quando, exemplificativamente, uma comissão técnica deixa de

opinar, na oportunidade adequada, sobre certo projeto que, então, é

encaminhado a Plenário com supressão da instância.

Em algumas outras situações, a emissão de parecer é

dispensada, quando o parecerista transpõe a barreira temporal.

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Nesses casos, a formalidade é simplesmente

abandonada e a manifestação administrativa torna-se inexigível.

Da Manifestação Tardia da Administração -

Questão que vem à baila concerne na possibilidade

de vir o Estado a atuar em processo administrativo, findo o prazo que a lei lhe

concedeu e, quando, portanto, já se podem extrair os efeitos do silêncio.

Pensamos que a questão deve ser encaminhada em

torno da indagação relativa a quem aproveita os efeitos do silêncio.

Se concluímos que se trata de instituição de proteção

do administrado, não haverá dúvida de que este poderá se beneficiar da

solução tardia, quando se profira em seu favor, ainda quando o decurso de

prazo lhe pudesse autorizar a conclusão negativa.

Ao contrário, se a parte ao captar o sentido negativo

do silêncio já atuou na via judicial, não cabe à administração pugnar pela

improcedência da lide, porquanto a alçada da decisão foi transferida a outra

esfera.

Positive-se que o reconhecimento do pedido, ainda

que extemporâneo, deverá ser sempre levado em conta, mesmo em sede

judicial, quando a ação perderá o objeto, sem prejuízo da responsabilidade da

administração pelos danos causados.

Questão outra a ser deslindada é aquela em que o

silêncio negativo possa ter-se operado com afetação de direitos de terceiros

beneficiados pela não concessão.

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Nesse caso, estamos convencidos de não ser possível

a afetação de direitos, oriundos da presunção de não outorga, dado que não

podem ser prejudicados aqueles que agiram em boa fé.

É preciso que se tenha em conta que a relação

travada entre o administrado e a administração pública pode projetar efeitos

externos que devem ser resguardados.

Esse aspecto mais se flexibiliza, quando não

tenhamos prazo certo, fixado em lei.

De qualquer modo, em sede do direito brasileiro a

equação pode ser encontrada nos termos da súmula 473 do Supremo Tribunal

Federal, segundo a qual: “ S. 473 - A administração pode anular seus

próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles

não se originam direitos, ou revogá-los por motivo de conveniência ou

oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os

casos a apreciação judicial”.

No mesmo compasso, tal como se tivesse praticado

o ato de modo concreto, o administrador pode anular ou revogar os efeitos

emergentes da prática silencial, atendidas as consequências exteriorizadas na

súmula, cuja matiz doutrinária sabe-nos acertada.

Esse entendimento, deve-se ressaltar, prevalece tanto

em relação ao silêncio negativo, quanto ao positivo, sendo que nesse último

só será admissível a via anulatória em face do respeito devido ao ato jurídico

perfeito e acabado.

Não se olvide que o desfazimento dos atos,

sobretudo com afetação ao administrado, jamais dispensa a instauração de

regular processo onde se oportunize o direito de defesa.

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A anulabilidade dos atos não convive com a

perspectiva de sonegar-se a garantia de defesa do interessado em sua

manutenção, até para demonstrar que os vícios não se positivam ou que há o

dever do seu saneamento.

O Estágio Brasileiro -

Adiantamos, no início desse trabalho, o incipiente

tratamento dado à matéria no cenário nacional, onde a legislação esparsa e

não sistematizada está em companhia da ausência de maiores avanços na

construção científica do tema.

Homenageie-se a súmula 429 que admite,

genericamente, o uso de Mandado de Segurança contra omissão da

autoridade, sem, contudo, traçar, com maior clareza, a extensão do conceito

de tal conduta omissiva, nem precisar suas exatas consequências.79

De um modo geral, o tema vem tratado entre nós

com ênfase no direito de indenização ao prejudicado, à luz da teoria do abuso

de poder.

Da Nossa Jurisprudência -

Substancialmente, o enfrentamento do silêncio

administrativo no Brasil, tem-se voltado à perspectiva de inibir-se o fluxo

prescricional para o reclamo dos direitos, enquanto o Estado não se

pronuncia.80

79 Súmula 429 do STF: “A existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso de mandado de segurança contra omissão da autoridade” 80 “ADMINISTRATIVO. SILÊNCIO DA ADMINISTRAÇÃO. CONDUTA OMISSIVA, IMPORTANDO INADIMPLEMENTO DO DEVER DE PROVIDENCIAR SOBRE A MATÉRIA POSTA A SEU EXAME, NÃO DÁ ENSEJO À PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO ADMINISTRADO.” (Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº.115033, 02 - SEGUNDA TURMA, DJ DATA-11-03-88 PG-04749 EMENT VOL-01493-04 PG-00790)

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No particular, queremos nos referir à decisão em que

se enfrentou, de modo claro, a questão da existência do silêncio positivo em

tema de prorrogação de concessão de radiodifusão.

O STJ em certa feita decidiu: “O silêncio da

administração, frente ao pedido de renovar-se a concessão de radiodifusão

nem sempre implica em ela se prorrogar tacitamente. O art. 33, parag. 4 da

lei 4.171/1962 reclama interpretação em conjunto com o art. 2 da lei

5.785/1972: a prorrogação tácita da concessão de radiodifusão somente

ocorre, se a concessionária comprovar que está em dia com todas as

"exigências legais e regulamentares”.81

Nesse caso, houve a clara definição do

reconhecimento da existência de um silêncio positivo, com a restrição dos

seus efeitos em função da inexistência dos pressupostos de legalidade, em

consonância com a doutrina contemporânea nos países europeus.

Do Amparo por Mora -

Intitulamos o nosso discurso, que ora se inicia, com

uma expressão canonizada no Direito Argentino, a que se deve render as

ADMINISTRATIVO - PRESCRIÇÃO - SILÊNCIO DO ADMINISTRADOR. ENQUANTO PENDER, SEM RESPOSTA, REQUERIMENTO DIRIGIDO À ADMINISTRAÇÃO, NÃO SE INICIA O FLUXO PRESCRICIONAL EM FAVOR DESTA.” (Superior Tribunal de Justiça, RESP 6283/BA DJ DATA: 28/09/1992 PG: 16364 RSTJ VOL.: 00039 PG: 00358 ADMINISTRATIVO - PROCESSO CIVIL - SILÊNCIO DA ADMINISTRAÇÃO - INÍCIO DO PRAZO PRESCRICIONAL. 1. ENQUANTO PENDER SEM RESPOSTA REQUERIMENTO DIRIGIDO A ADMINISTRAÇÃO, O FLUXO PRESCRICIONAL EM FAVOR DESTA NÃO SE INICIA. 2. NAS OBRIGAÇÕES DE TRATO SUCESSIVO, A PRESCRIÇÃO EM FAVOR DO ESTADO INCIDE APENAS SOBRE AS PRESTAÇÕES NÃO REIVINDICADAS NO QUINQUÊNIO QUE ANTECEDEU O EXERCÍCIO DA AÇÃO (DECRETO 20.910/32 - ART. 3.)” (Superior Tribunal de Justiça, RESP 7374/BA, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 17/12/1992 PG: 24213) 81 Superior Tribunal de Justiça, RESP 65316/MG, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 17/03/1997 PG: 07433

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homenagens pela originalidade na busca de um sistema corretivo do silêncio

da administração.

A própria técnica de interpretação do silêncio em

sentido negativo ou positivo já constitui um avanço claro em defesa do

administrado, sendo importante realçar-se, sem embargo disso, que a postura

silenciosa gera entraves facilmente perceptíveis.

O legislador argentino, por via da Lei 19549 de 03

de abril de 1972, introduziu em seu Direito a figura do amparo por mora,

destinada a compelir a administração, a romper a inquietante barreira do

silêncio, como um meio mais efetivo de proteger o administrado contra a

incúria administrativa.

No art.28 da referida lei, intitulada “Lei Nacional de

Procedimentos Administrativos” instituiu o direito de o particular demandar a

administração pública para que esta emita um pronunciamento em matéria

que lhe diga respeito, cabendo ao juiz fixar um prazo razoável para tanto e a

ser obedecido sob pena de responsabilidade do agente.82

Chegou-se a discutir se naquelas hipóteses em que a

lei estabelecia uma eficácia própria ao silêncio seria cabível cogitar-se do

amparo por mora.

82 Art. 28: “El que fuere parte de un expediente administrativo podrá solicitar judicialmente se libre orden de pronto despacho. Dicha ordem será procedente cuando la autoridad administrativa hubiere dejado vencer los plazos fijados y en caso de no existir éstos, si hubiere transcurrido un plazo que excediere de lo razonable sin emitir el dictamen o la resolución de mero trámite o de fondo que requiera el interesado. Presentado el petitorio, el juez se expedirá sobre su procedencia, teniendo en cuenta las circunstancias del caso, y si lo estimare pertinente requerirá a la autoridad administrativa interviniente que, en el plazo que le fije, informe sobre las causas de la demora aducida. La decisión del juez será inapelable. Contestado el requerimiento o vencido el plazo sin que se lo hubiere evacuado, se resolverá lo pertinente acerca de la mora, librando la orden si correspondiere para que la autoridad administrativa responsable despache las actuaciones en el plazo prudencial que se establezca según la naturaleza y complejidad del dictamen o trámites pendientes.”

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A solução endereçou-se em sentido positivo, ou seja,

ao admitir-se que caberia ao administrado optar pelo silêncio exegético ou

demandar o pronunciamento expresso.

Bem certo é que a novidade argentina vem fazendo

fortuna em nosso parceiro do Mercosul pelo significado que tem de reprimir a

inércia da administração.

O chamado “juízo de amparo genérico” corresponde,

aproximadamente, ao nosso mandado de segurança, enquanto que o amparo

por mora tem feição especial.

Sua característica de celeridade tem lhe emprestado

grande importância em seu país.

O procedimento é bastante simplificado, resolvendo-

se em uma petição que o juiz, ao deferir, solicitará prontas informações à

administração sobre o alegado.

Quanto a tal despacho não cabe qualquer recurso.

As informações do administrador podem vir

acompanhadas de documentos, mas não comportam a provocação de dilação

probatória.

A decisão final fixa um prazo para o

pronunciamento explícito e, nesse caso, tem-se aberto questionamento quanto

à recorribilidade.

As conseqüências práticas do não-cumprimento da

decisão judicial resolvem-se na apuração da responsabilidade, embora já se

cogite da adoção das “astreintes” e, com uma ponta de vaidade natural,

Horacio Bay revela que, ao expor os contornos do instituto na Escola de

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Direito de Madrid e na Universidade de Roma, os professores daquelas Casas:

“Quedaron sorprendidos y encantados con el instituto, en el que

reconocieron, rápidamente, su gran importancia y la necessidad de su

incorporación a suas respectivas legislaciones”.83

Está aí um novo remédio de que, certamente, a

administração brasileira se encontrará carente.

O seu receituário pode já contar com a experiência

de quase trinta anos dos irmãos do Rio da Prata.

Adiantaremos o nosso trabalho, refletindo sobre

aspectos pouco visitados, mas significativos na diretriz central da monografia.

Entitularemos o capítulo seguinte, como

“Prerrogativas indevidas e uso indevido de prerrogativas”

83 Bay, Horacio D. Creo, Amparo por mora del la administración pública, 2ª edição, Prologo, pag.XII

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CAPÍTULO V

PRERROGATIVAS INDEVIDAS E USO INDEVIDO DE

PRERROGATIVAS -

Ousaremos tratar uma matéria sobre a qual não

conhecemos estudos específicos nem incursões mais aprofundadas. Apesar de

tudo, consideramos, de extrema relevância, o seu enfrentamento.

A titulação envolve uma questão nuclear, qual seja a

das prerrogativas da administração, tratadas sob duas vertentes.

A primeira resulta de concepções legislativas que,

em verdade, não instituem em favor dos entes públicos mecanismos

particularizados que lhes permitam alcançar o direito geral, mas confere

privilégios inaceitáveis.

Prerrogativas indevidas é como chamamos.

A segunda angulação diz respeito a um

posicionamento adequado no ordenamento jurídico, cujo manejo pela

administração revela-se incorreto, razão porque denominamos de “uso

indevido de prerrogativas”.

Cumpre, inicialmente, realçar o que se deve entender

por prerrogativas na administração pública.

Parece lógico que a partir de todo encaminhamento

dessa dissertação, não possamos conceber as prerrogativas públicas, senão

como posições especiais que permitam ao agente melhor visualizar o quadro

social, nele se locomover com mais facilidade, tudo em busca de um tráfego

mais adequado da sedimentação dos valores societários e da satisfação do

equilíbrio nas relações jurídicas.

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Nesse ponto, a supremacia do interesse público põe

os cidadãos como espectadores da administração, que pode ocupar posições

estrategicamente propícias à consecução do bem comum à coletividade.

Dentro dessa métrica, as prerrogativas são aceitáveis

ou inaceitáveis e, quando aceitáveis, podem ser sindicadas quanto à

adequação e à proporcionalidade no seu exercício.

Feita essa digressão preliminar, tomaremos o ponto

primeiro, aquele que está referido à concepção, a nosso ver, indevido de

prerrogativas que, antes de atender ao interesse público, conspiram contra ele.

Tomemos um tema recorrente que tem sido objeto

de seminários, encontros e estudos, consistindo, inclusive, em material

didático de ensino nas escolas superiores de Direito, qual seja a atuação da

administração pública junto ao Poder Judiciário.

A Administração Pública em Juízo -

Sempre nutrimos certa aversão à quebra do princípio

da isonomia que, se no campo do direito material é intolerável, em termos

processuais, chega a ser extravagante.

Provavelmente, não se tem dado a devida ênfase à

garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório que envolve, mais

do que uma promessa formal, o pressuposto da igualdade dos contendores no

processo, independentemente da qualidade do direito material que possa

exibir.

Pensamos, inclusive, que, até em nome da “equal

protection” seja possível atenuar a carga de oneração processual em favor de

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um dos lados mais debilitados na lide, exatamente como forma compensatória

do seu equilíbrio na relação.

Vemos com inteira naturalidade, as garantias

processuais do consumidor, do trabalhador, do alimentado em relação ao foro

da litigância, em prévia consideração à hiposuficiência.

Não vemos desmando na instituição de curador aos

interesses de menores, de ausentes, de revéis citados por edital, tudo em nome

da restauração de uma prática nivelatória.

Entendemos, mais, que todas essas distinções têm

fundo isonômico, cuja tradução real está no tratar igualmente a iguais e

desigualmente a desiguais.

Dizemos, então, que o “discriminen” tem base

constitucional à luz de toda teoria isonômica ou igualitária de proteção.

Essa forma de ver as coisas gerou-nos profundas

inquietações em relação à postura de preeminência que se confere aos

Estados, vale dizer, às instituições públicas, como um todo, nas relações

processuais.

Devemos, agora, reconhecer que a decisão de

incursionar sobre o assunto foi, em muito, motivada pelas lúcidas observações

que colhemos do Professor Carlos Ayres de Brito, da Universidade Federal de

Sergipe, que, em palestras e conferências, tem-se dedicado a espicaçar o tema

com a força dos juristas de escol, balanceada pela leveza do poeta nessa

simbiose que nele a todo instante se revela.

Pois bem. Acostumamo-nos a falar nos privilégios

da administração pública em juízo, no seu modo peculiar de atuar, com o seu

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manancial de prazos em dobro ou em quádruplo, com suas intimações

pessoais, com o seu duplo grau de jurisdição, com a perspectiva de desistência

desatempada, dentre outros mimos que a legislaçaõ processual lhe concede.

Afeita a toda sorte de mesuras, busca a

administração pública, cada vez mais, a ampliação desses seus dotes,

chegando, inclusive, a obter a impossibilidade de tutela antecipada e a

procurar prazos maiores para ação rescisória.

Até onde pretenderá chegar não se sabe.

A primeira consideração cabível é a de indagar a que

título e porque razão se concedem tais privilégios. Seguramente, não é a

hiposuficiência, porque ninguém melhor para se aparelhar ao enfrentamento

judicial do que o próprio Estado.

Se isso não se resolve por mácula ao ditame da

eficiência, muito menos será causa para projetar-se um favorecimento

processual.

Chega-se ao ponto hoje, no Brasil, de aludir-se a

uma verdadeira via “crucis” nas questões contra o Estado, onde o particular,

inferiorizado, enfrenta as garras do gigante.

Voltemos o discurso à questão da lógica do

ordenamento jurídico, para entendermos que o direito processual, como

qualquer outro, tem suas vertentes e recebe sua autoridade dos mandamentos

constitucionais.

Nesse caso, é substancial perseguir a modulação

constitucional para se cotejar se há autorização implícita ou explícita à criação

dessas vantagens.

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Tomamos a proposta do Professor Ayres de Brito e

visitamos a Constituição Federal Brasileira.

Como o lente sergipano, nada encontramos que

legitime os privilégios de tal quilate.

Bem ao contrário, a proteção constitucional em

matéria de processo revela-se, sobretudo, em relação ao cidadão.

Inicie-se o percurso a partir do título que rege os

direitos e garantias fundamentais.

No que tange aos direitos individuais, ali

encontramos alojados diversos dispositivos de natureza processual. Vejamos:

no inciso XIV do art.5º dispõe-se sobre a necessidade de lei que venha a reger

o processo de desapropriação, mas, de logo, outorgam-se garantias ao

indivíduo como a de que a referida lei não poderá conduzir à inexistência de

uma indenização prévia, justa e em dinheiro.

Logo, aqui, percebe-se que o ente protegido é o

cidadão e não, o Estado.

Ao inciso XXXIII, cuida-se de oferecer ao indivíduo

o direito à obtenção junto aos órgãos públicos de informações de seu interesse

particular, estabelecendo-se, inclusive, a obrigatoriedade de sanção ao Estado

em caso de recusa.

Dito dispositivo está intrinsecamente associado à

ação de “habeas data”, logo contemplada no inciso LXXII.

Sobreleva em repique a garantia do direito

individual contra o Estado, pelo municiamento do remédio processual.

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Por seu turno, os incisos LXI, LXII e LXIII, LXIV,

LXV e LXVI, embutem normas de processo penal, todas elas limitatórias da

ação do ente público.

No elenco das chamadas ações constitucionais,

deflui, claramente, que todas elas “habeas corpus, mandado de segurança,

mandado de injunção, ação popular” destinam-se à proteção da cidadania,

impondo-se, como freio ao Estado.

Ainda, o inciso LXXIV assegura a assistência

judiciária com isenção das custas às pessoas carentes, enquanto o LXXVII

configura a plena gratuidade para o “habeas corpus” e o “habeas data”.

Em sede da organização do Poder Judiciário,

vislumbra-se que, ao lado da imunidade material dos bens estatais, impõe-se

regra cogente ao cumprimento dos precatórios, impedindo o órgão público de

efetuar pagamento fora de sua ordem cronológica.

No âmbito da competência do Supremo Tribunal

Federal, contempla-se o cabimento de recurso ordinário no “habeas corpus”,

no mandado de segurança, no “habeas data” e no mandado de injunção,

exclusivamente na hipótese em que for denegatória a decisão.84

Vale dizer que se o Tribunal tiver deferido o pedido

em favor do autor, não é dado ao Estado o exercício do recurso ordinário,

hipótese restrita àquela em que houver sucumbência do particular.

Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça

utiliza-se da mesma técnica relativamente ao “habeas corpus” e ao mandado

84 Art.102, inciso II, alínea “a”.

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de segurança, somente processando recurso ordinário, quando o particular for

vencido.85

Em continuação, vai se verificar que a Carta Magna

abriu o leque à parte interessada para propor ações contra a União, na seção

em que tiver domicílio, onde tiver ocorrido o ato ou o fato que deu origem à

demanda, onde estiver situada a coisa, ou ainda, no Distrito Federal.86

Em contrapartida, as ações aforadas pela União

deverão sê-lo, exclusivamente, na seção judiciária onde o réu tem domicílio.87

No espaço reservado ao Ministério Público, vai-se

encontrar, expressamente, a proibição dos seus integrantes de representar em

juízo as entidades públicas.

Esse apanhado que, por certo, não é exaustivo, bem

serve para revelar que o perfil constitucional é o de proteção do cidadão

contra a arrogância do Estado, munindo-o de meios e instrumentos que lhe

facilitem a defesa e lhe permitam residir em juízo com garantias mínimas de

ombreamento com o contendor.

Nesse caso, como se explicar que a legislação

processual ordinária tenha invertido toda essa tônica registrada

constitucionalmente?

É fora de dúvida de que tanto o direito material,

quanto o processual submetem-se às normas constitucionais, das quais avulta

a regra da isonomia.

85 Art.105, inciso II, alíneas “a” e “b” 86 Art.109 § 2º 87 Art. 109 § 1º

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Justo por isso, não conseguimos encontrar

fundamento a essa diferenciação.

Em linha de extrema gravidade, editou-se a Medida

Provisória n.1577/97 que no seu art.4º e parágrafo único veio de ampliar de

dois para cinco anos o prazo para propositura de Ação Rescisória pela União,

Estados, Distrito Federal, Autarquias e Fundações Públicas, além de elastecer

em favor dos órgãos públicos as hipóteses da mencionada ação para

contemplar as desapropriações cuja outorga de indenização tivesse ocorrido

com preço, flagrantemente superior ao de mercado.

Inexcusável, que se trata de iniciativa

inconstitucional, porque decididamente, quebra de modo inaceitável qualquer

relação de equilíbrio entre as partes.

Ditas prerrogativas não se mostram somente no

processo judicial, entre nós, mas exibem-se, também, às claras em sede do

processo administrativo.

Diga-se de passagem que, nesse último segmento, o

nosso estágio ainda é bem modesto, sendo certo que só, recentemente, se

editou uma lei geral de procedimentos.

Não só isso, mas não receamos dizer que o processo

administrativo no Brasil vive uma fase ainda bastante embrionária sem a

valorização acadêmica, sem a credibilidade maior da cidadania, sem a

abordagem mais profunda na doutrina.

Enquanto em outros países multiplicam-se os

trabalhos nessa área, produzem-se nos tribunais precedentes valiosos. Neste

país, estamos ainda em uma fase bastante incipiente, mercê, talvez, da

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inexistência de órgãos contenciosos administrativos, independentes do Poder

Executivo.

Tomaremos, como exemplo de prerrogativas

indevidas no âmbito do processo administrativo, o chamado processo

disciplinar.

Dos Descaminhos do Atual Processo Disciplinar -

O art. 5º, inciso LV da nossa Carta vigente,

estabeleceu a garantia da ampla defesa com os meios e recursos a ela

inerentes, tanto nos processos desatados ante o Poder Judiciário, quanto

naqueles enfrentados no âmbito da administração.

Sérgio Ferraz, em artigo publicado na Revista

Trimestral de Direito Público, já alertava nos idos de 1993: “ Ora, somente se

pode pensar em efetiva realização do princípio democrático quando (e onde)

possa o administrado participar da feitura do querer administrativo ou da

sua concretização efetiva. Para tanto, imprescindível é que se assegure ao

cidadão o postular junto a administração com a mesma corte de garantias

que lhes são deferidas no processo jurisdicional”.88

A prática corrente está longe desse enunciado.

O falso dogma do informalismo, em boa hora, tem

sido rebatido por juristas de escol, destacando-se Maria Sylvia Zanella Di

Pietro, ao abordar a matéria, prefere referir-se ao princípio da obediência à

fórmula e aos procedimentos, destacando com o costumeiro acerto que a

88 Revista Trimestral de Direito Público, vol. 1, editora Malheiros, pag. 84, 1993

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maior rigidez no processo judicial tem produzido em relação ao

administrativo essa rotulação inadequada.89

Insista-se em que o processo administrativo é

formal, muito embora suas decisões possam ser revistas, quer no seio da

administração, quer na esfera do Poder Judiciário.

Tentar-se-á, agora, demonstrar a substancialíssima

violência que macula todo o processo disciplinar, estruturalmente na sua

própria origem, pela singular circunstância da criação das chamadas

comissões processantes “ad hoc” e pela simbiose entre o papel de ente

acusador e de julgador que desempenha a autoridade administrativa.

Inconstitucionalidade das Comissões Especiais -

No direito federal brasileiro, seguindo longa e velha

tradição, a autoridade superior ao indiciado constitui à sua livre escolha

comissão que irá instruir e, afinal, concluir pela procedência, ou não, do libelo

contra o servidor.

Ora, a garantia da ampla defesa está

indissociavelmente ligada a todo elenco que lhe constitui sustentáculo

indispensável.

Não terá havido ampla defesa se houve juízo ou

tribunal de exceção, nem tampouco se o instrutor do feito, com

pronunciamento em princípio vinculante, for escolhido para um determinado

fato e para um determinado funcionário e, mais ainda, submetido

hierarquicamente à autoridade que o designou.

89 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, pag.400/401

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Para comprometer todo o procedimento bastará que

a autoridade competente forme Comissão, segundo a sua afinidade, com os

membros, de tal sorte a influenciar no julgamento.

Não se pode esquecer ademais que, em boa parte das

vezes, o órgão acusador confunde-se com o próprio julgador em última

instância, qual seja a autoridade nomeante.

Isso basta para eliminar o mínimo de equilíbrio

possível na relação processual pela chamada quebra da igualdade de armas,

onde o que é prevalência do interesse público torna-se ditadura da vontade da

administração.

A nossa absoluta ausência de tradição em matéria de

processo administrativo gera uma pacífica acomodação quanto ao quadro,

quando em contrapartida nos anima ver que o professor Lorenzo Sánchez

Carnelli ao abordar, especificamente, o regime disciplinar dos funcionários

públicos na pátria uruguaia refere-se, expressamente, à designação de

instrutor (na ação procedimental) “alheio aos quadros funcionais da

administração, apontando escólios do Tribunal Contencioso Administrativo

configurados nas sentenças 394 e 400 de 22 de abril de 1992”.90

Entre nós, contentamo-nos, com essa fórmula

casuística inadequada de uma comissão para cada caso, para cada pessoa, de

livre nomeação pela autoridade às quais se subordinam.

É evidente que o simples caráter de subalternidade

retira a independência do instruir o feito, ao conduzir a prova, ao emitir um

relatório concludente.

90 Revista de Derecho Público, pag.57/58.

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Na doutrina estrangeira, Nedjati, em obra que já data

de 24 anos, estabelece, com base em precedentes judiciais, o que poderíamos

denominar de atuação administrativa judicialiforme, isto é, praticada pela

administração, mas com arcabouço e estrutura próprios das decisões judiciais.

Anota o autor, com precisão: “ For general

guidance it may be pointed out that functions which are similar to those of a

judge are often termed “quasi-judicial”. The term “judicial” is often used

however to include both the functions of a judge and functions similar to

those of a judge. The functions of an arbitrator or of an administrator, who

has to follow a judicial process before reaching a determination (as, for

instance, to grant a hearing, to consider objections and hold an inquiry) may

either be termed “judicial” or “quasi-judicial”. Bodies that may be

analogous to courts stricto sensu may be held to exercise “judicial” or

“quasi-judicial” functions. The more closely a statutory body resembles a

court of law, the more likely it is that that body will be held to act in a

“judicial” capacity.”.91

O mesmo autor, em outra passagem, adianta que à

luz do direito inglês tem se decidido que o exercício de funções de caráter

judicial independe de que o órgão exercente da função seja, necessariamente,

um tribunal integrante da estrutura judiciária.

Refere-se ele, nesse caso, ao dever de agir

“judicialmente”.

Fique assente que quando a administração impõe

sanções gravíssimas contra o servidor, ou simplesmente, passa a poder

eliminá-los dos seus quadros, é necessário que se tomem decisões, cercadas

de todas as garantias e imune de todos os vícios 91 Nedjati, Z. M., Administrative Law, pag.22

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Nessa esteira de raciocínio, andou bem a

Constituição Italiana que, no seu artigo 100, assegurou aos órgãos de decisão

na esfera administrativa plena independência perante os componentes do

governo.

À toda evidência, pois, emerge o processo

disciplinar brasileiro, como um exemplar perfeito do que denominamos nesse

trabalho de prerrogativas indevidas da administração.

Esse quadro torna-se, ainda, mais grave, quando

para fazermos uma referência ao modelo francês, podemos dizer que o

controle sobre a matéria exercitável pelos Tribunais encontra-se,

frequentemente, no chamado nível mínimo, reticentes que ainda estão os

juizes nacionais em uma incursão mais profunda sobre a matéria, ao

argumento da independência dos poderes.

A cura desse modelo de processo disciplinar, a mais

não poder, há que passar, necessariamente, por toda uma reformulação do

sistema, envolvendo, dentre outras providências, a criação de órgão

disciplinar autônomo em relação à esfera administrativa e à diferenciação

clara dos papéis do órgão acusado, instrutor — julgador, permitindo-se,

igualmente, uma defesa adequada que possa conduzir a uma apuração real e

não a uma legitimação de um desiderato, previamente estabelecido.

Nessa esteira, para não nos permitirmos um

alongamento maior, queremos dizer que o descrédito do processo

administrativo brasileiro transcende, em muito, o caso sob abordagem; daí,

porque pouca importância se tem conferido às suas decisões, com grave

prejuízo para credibilidade da administração pública.

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Para completar o quadro, a absoluta falta de uma

organização desses entes impede, inclusive, que se tenha um simples

ementário de seus precedentes para, no mínimo, reivindicar-se coerência nos

julgamentos, garantindo-se a segurança do administrado.

Certamente, também, por essas razões, é que os

profissionais do direito, entre nós, preferem enfrentar a via judicial pela baixa

confiabilidade na instância administrativa.

Toda essa situação configura um arcabouço legal

prenhe de prerrogativas indevidas concedidas à administração pública e que

vão, desde a nomeação e destituição livre dos membros de comissões à falta

de critério de escolha, à ausência de independência, gerada por processos

aleatórios de nomeação, contribuindo para carga de descrédito.

Não podemos, evidentemente, esgotar o elenco das

prerrogativas indevidas da administração pública, mas tão somente tomamos

um exemplário para permitir uma melhor situação temática.

Faremos, agora, uma breve exposição de outra

vertente pertinente às prerrogativa, a que rotulamos de “Uso indevido”.

Uso Indevido de Prerrogativas -

Nessa vertente, estamos cogitando de prerrogativas

que atendem, efetivamente, a uma necessidade de presença diferenciada na

administração pública. Apesar disso, tais prerrogativas são inadequadamente

manejadas, por excesso, por desproporcionalidade, por inoportunidade e em

suma, por fatores variados que desvirtuam a sua instituição.

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Tomemos o mais significativo exemplo de

prerrogativa material da administração, qual seja a da auto-executoriedade ou

para os franceses “privilege d’execución d’office”.

A continuidade do serviço público e o desiderato

constitucional, a serem perseguidos pelo ente da administração, requerem a

utilização de medidas interventivas sem a necessária provocação do

Judiciário, invertendo-se para o particular a perspectiva de questionar a

legitimidade do ato.

Deflui daí que a interdição de uma rua onde a pista

de tráfego possa produzir grave risco de acidente, é providência que há de ser

tomada de imediato, com as cautelas devidas, ao prudente critério da

administração.

Identicamente, a remoção de um veículo que esteja a

inibir o acesso a um prédio público também reclama uma ação pronta e direta

por parte do órgão governamental.

O mesmo se diga quanto à apreensão de alimentos

deteriorados que se destinariam ao consumo não pode aguardar a disputa na

via judicial.

Multiplicadas são as situações em que a

administração deve agir, de pronto, no âmbito da sua competência.

Trata-se de uma prerrogativa forte, mas

absolutamente necessária e inevitável.

Envolvendo manifestação de poder, deve conhecer,

naturalmente, limites, e a sua extrapolação constitui o desvio objeto da nossa

análise.

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A auto-executoriedade tem sido admitida de forma

restritiva ante a regra geral da inafastabilidade da apreciação do Poder

Judiciário, quando se torna condição indispensável a eficaz garantia do

interesse público, confiado pela lei à administração, consoante o sempre

oportuno e abalizado ensinamento de Bandeira de Mello.92

A doutrina, de um modo geral, costuma exigir a

alternância de dois requisitos a legitimar a auto-executoriedade, a saber: a) a

expressa previsão legal; b) a imperiosa necessidade da atuação pronta.

No particular, permitimo-nos fincar divergência com

o entendimento majoritário.

À primeira linha, entendemos que a situação

emergencial, capaz de suscitar perigo ou dano à sociedade, por si mesma,

autoriza o uso da auto-executoriedade, independentemente de autorização

legal que é, obviamente, implícita.

Esse caráter implícito resulta do que chamamos

“desiderato constitucional da administração”, que compreende,

genericamente, todo o rol das atividades que deve desenvolver.

Em sendo o seu dever prover a segurança e não

havendo outro meio senão demolir de imediato uma construção, não lhe cabe

outra possibilidade senão fazê-lo.

No caso, a autorização é manifestamente

constitucional, não cabendo falar de autorização legal, ao que nos arriscamos,

inclusive, a dizer que ainda que houvesse lei proibitiva seria essa

inconstitucional por impedir o livre funcionamento de um poder.

92 Curso de Direito Administrativo, pag.300

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Observado o critério da razoabilidade e da

proporcionalidade, configurada a imprescindibilidade e a urgência da medida,

aí estará configurada a auto-executoriedade.

Não é sobre esse aspecto que incide – vamos ver - a

nossa divergência. Ela se inaugura quanto ao segmento da doutrina que

estabelece a possibilidade do exercício da atividade auto-executória, desde

que haja autorização legal expressa.

Para nós, se a lei autorizar a prática auto-executória

da administração sem os pressupostos materiais, antecedentemente

levantados, será manifestamente inconstitucional, por afrontar a regra relativa

ao devido processo legal, segundo a qual ninguém será privado de sua

liberdade ou de seus bens, senão mediante processo próprio com a garantia do

contraditório e da ampla defesa.

Afigura-se-nos, pois, absolutamente impossível o

exercício da prática executória direta, fundada exclusivamente na lei.

Não vemos, portanto, como possa o legislador

autorizar a apreensão de bens para, com isso, satisfazer a dívida fiscal do

contribuinte omisso.

Não haverá, nesse caso, qualquer possibilidade de se

estabelecer a exclusão da via judicial.

Para nós, a equação pode ser simplificada nos

seguintes termos: a auto-executoriedade deflui da imperiosa necessidade de

atuação da administração pública, justificando-se o sacrifício, quando

estritamente indispensável à preservação de valores jurídicos materiais, do

contraditório e da ampla defesa.

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É irrelevante, portanto, a existência ou não de lei

para autorizar a auto-executoriedade, mas será exigível sempre a

indispensabilidade da atuação direta, mesmo que haja previsão de lei para o

exercício de tal prerrogativa.

Traçados esses contornos, vai se ver que o campo é

fértil ao chamado uso indevido, já que, nem mesmo o desenho doutrinário e

jurisprudencial, acha-se convenientemente emoldurado.

Daí, encontramos inúmeras situações que

absolutamente não justificam a auto-executoriedade, mas que, em seu nome,

são praticadas.

Nesse elenco: construções que não apresentam

perigo imediato ou, ao menos, mediato, edificadas já há bastante tempo, que

venham a ser demolidas; interdição de atividades constituídas há determinado

tempo sem que haja prejuízo visível para a administração; apreensão de

mercadorias, a pretexto do contribuinte se encontrar em débito; retenção de

veículos que não exibam pagamento de imposto; constrangimento a

pagamento de débitos, sob pena de vedação de atividades; negativa de licença

de construção a contribuinte em débito com o Município.

O elenco seria, em verdade, inesgotável face a

multiplicidade de situações criadas no dia-a-dia quando o ente público, a

pretexto do exercício de uma prerrogativa legítima, termina por

desencaminhá-la para um objetivo inadequado.

Eis aí uma situação exemplar do uso indevido de

prerrogativas.

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Tomemos outra situação, qual seja a função

regulamentar da administração pública “lato sensu”, envolvendo a sua

competência organizacional.

A expedição de instrumentos normativos desde o

decreto regulamentador da lei à simples ordem de serviço constituem

prerrogativas inalienáveis dos entes governamentais.

Embora esses instrumentos tenham finalidades e

direcionamentos precisos, não raro, extrapolam o seu raio de alcance.

De modo freqüente, os Tribunais, a partir do próprio

Supremo, têm reconhecido a inconstitucionalidade de portarias, que geram

obrigações ou direitos por invasão da reserva da Lei.93

Em sequência, na demonstração do que

consideramos uso indevido de prerrogativas, queremos visualizar a garantia

que tem o Estado da impenhorabilidade de seus bens, submetendo os seus

pagamentos à ordem cronológica de precatórios que devem ser incluídos no

orçamento no ano subsequente ao de sua apresentação.

Outra vez, estamos em que a prerrogativa concedida

é adequada, quando protege o patrimônio público e, ao mesmo tempo, garante

a planificação dos recursos, impedindo a interrupção de serviços essenciais.

Sucede que o instituto do precatório converteu-se em

uma via dolorosa de execução para o credor pelas múltiplas e intermináveis

dificuldades que se oferecem no momento da execução.

93 RECURSO EXTRAORDINÁRIO, nº. 96316, DJ DATA-19-11-82 PG-01786, Segunda Turma. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - MEDIDA CAUTELAR, n.349, DJ DATA-26-10-90 PG-11976 EMENT VOL-01600-01 PG-00035, Tribunal Pleno

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De um lado, a administração descuida-se, com

alguma frequência, da defesa dos seus direitos e depois tenta compensar a

incúria com a procrastinação indefinida na satisfação dos créditos.

De logo, flagra-se, na prática, que a própria inclusão

da condenação na verba orçamentária nem sempre se realiza, ou no mínimo

os valores são insuficientes.

A partir daí, somam-se anos a fio, sem que o

vencedor da ação encontre um meio de obter o resultado.

Nem se diga que a intervenção é uma das

possibilidades diante do ente público recalcitrante, quando não for

evidentemente a União.

Tal remédio, por tão violento, normalmente, não é

aplicado. A transitoriedade no comando faz com que os gestores utilizem-se

de todos os expedientes para retardar, afinal, o pagamento.

Questão também absolutamente relevante e que

contribui em muito para o desvio sob exame é a da fixação em montante fixo

do valor da condenação.

O Supremo Tribunal Federal traçou jurisprudência

firme no sentido de impedir o atrelamento da verba de condenação a índices

corretores o que fez com que todos os valores viessem a ser lançados pelo

montante histórico.

Acentuou a Corte: “A jurisprudência firmada pela

Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em tema de precatórios,

tem averbado de inconstitucionais - além da determinação de pagamento

em valor indexado - também as decisões que meramente admitem a

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possibilidade, em conta de liquidação, da equivalência do padrão monetário

em ORTN/OTN. A mera possibilidade de referência a tais fatores de

indexação estimulará procedimentos que, ao viabilizarem a atualização

automática dos valores devidos, certamente produzirão efeitos

incompatíveis com à exigência de liquidez e certeza que os precatórios

devem atender quanto à expressão monetária neles formalmente

mencionada”. 94

Em situação marcada por alta inflação, é fácil

perceber-se que os valores se corroiam entre a formação de um precatório e o

seu pagamento, criando-se, na prática, uma série infindável de precatórios

complementares.

Temos, pois, que a legítima prerrogativa terminou

por ser vivenciada, como uma fonte de tormento injusta contra o particular

diante do Estado.

Ao fim dessas observações, permitimo-nos concluir

o tópico com que abrimos esse capítulo, para anunciar, agora, a inauguração

de um outro que toca de perto o caso exemplar retro-noticiado — dos

precatórios — que bem poderão se situar na perspectiva de um

enriquecimento ilícito por parte da administração. É o que veremos.

94 Recurso Extraordinario, n.117648, DJ DATA-29-11-91 PP-17328 EMENT VOL-01644-02 PP-00301 RTJ VOL-00139-02 PP-00617

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CAPÍTULO VI

DO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

As Origens no Direito Privado -

A noção de enriquecimento ilícito é, sem dúvida

nenhuma, mesmo no campo do direito privado, extremamente controvertida,

pouco sistematizada e sem uma unificação dogmática mais sedimentada.

Sem que afirmemos tratar-se de uma instituição de

direito privado, é por esse campo que iniciaremos a nossa conversa, justo

porque a tradição de antiguidade concedeu primazia a esse setor do direito à

incursão sob temas que depois vieram a se revelar como comuns a toda

ciência jurídica, ou pelo menos, parcialmente aplicáveis a outros ramos do

direito.

A tradição napoleônica de que foram herdeiros

muitos sistemas civilistas, inclusive o brasileiro, encaminhou-se naturalmente

para a não referência ao assunto, menos por uma postura de omissão, mas,

essencialmente, por uma fidelidade ao modelo que adotou.

De tal ordem, considerada a causa, como parte

integrante do negócio jurídico, anulado aquele a que faltasse o requisito

causal, sempre se julgou não ser necessário o uso de outro recurso, já porque a

invalidez do ato negocial, desprovido de causa, projetava a restauração do

“statu quo ante”, restituindo-se as partes ao estado original.

Com esse mecanismo, supunha-se não ser necessário

outro instrumento para propiciar o reequilíbrio entre as partes.

De outro modo, um certo primado da autonomia da

vontade não era o palco adequado a que se introduzisse um elemento que não

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resultasse de uma relação contratual específica ou que fosse estranho à

vontade das partes.

A única porta de abertura que poderíamos encontrar

seria a chamada relação de “gestão de negócios”, admitida no nosso código

nos arts.1.331 a 1.345.95

Doutrinariamente, passou a se associar a “gestão de

negócios” a uma categoria denominada “quase contrato” que, a rigor, não

chega a esconder a insuficiência epistemológica na classificação.

Historicamente, o enriquecimento ilícito era sempre

pensado como a possibilidade de não ser o gestor reembolsado pelo que

despendeu em favor do “dominus”.

Natural, portanto, o elo estabelecido entre

enriquecimento sem causa e obrigação retributiva ao gestor.

Anote-se como verdadeiro que a configuração

jurídica do quase contrato, aliás, nunca guardou maior precisão.

Franck Moderne lembra que ele difere dos contratos

por não envolver uma manifestação bilateral de vontade e não se confundir

com os delitos, por não resultar de um ato ilícito.

Apesar de tudo, pondera que muitos são os que

contestam sua significação, atribuindo a Joserand a afirmativa de que se

trataria de um monstro legendário a ser banido do vocabulário jurídico.96

Ao que se tem notícia, o enriquecimento sem causa

só passou a ganhar referência autônoma a partir do art.812 do Código Civil

95 Código Civil Brasileiro 96 Les quasi-contrats administratifs, pag.02

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Alemão para o qual: “Quem por prestação de outro, ou de outro modo a

custa destes se enriquece sem causa está obrigado a restituição”.

Pareceu, então, que pelo próprio sistema abstrato

alemão, a perfeição dos negócios jurídicos não estando condicionada à causa,

deu lugar a que se construisse uma teoria da responsabilidade, desvinculada

do próprio vínculo contratual.

Pode-se, no entanto, dizer que nos diversos sistemas

contemporâneos, de um modo geral, a introdução de um conceito de

enriquecimento ilícito produziu-se a partir de um trabalho espaçado da

jurisprudência, repousando, sobretudo, na idéia de equidade e de justiça.

A evolução no trato da matéria veio a trazer uma

bifurcação entre a chamada “gestão de negócios”, como causa específica de

restituição e o “enriquecimento ilícito”, como princípio geral, dando lugar à

chamada ação de “rem in reverso”, que consistiria na transferência daquele

que se enriqueceu de todo proveito obtido à custa do empobrecido.

Nos propósitos limitados desta dissertação não

caberá uma discussão mais aprofundada quanto à sede do instituto, se em

direito privado, se em direito público, ou ao contrário, um princípio geral.

O Enriquecimento Ilícito no Direito Administrativo Francês -

Pretendemos, agora, trazer algumas considerações

que dificultaram o ingresso da figura no direito administrativo francês.

Admite-se que possa ter contribuído para a admissão

do conceito a lei de 22 de outubro de 1790 que estabeleceu o chamado

“princípio da distribuição da carga pública”, pelo qual o Estado deveria

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indenizar a todos os cidadãos que tivessem sofrido perdas em proveito de uma

utilidade pública.

Mais tarde, um processo de requisição imposto às

prefeituras em tempo de guerra, que veio a repercutir, de forma direta,

economicamente sobre os cidadãos, favoreceu à consciência no sentido de

que deveria haver lugar a uma indenização fora das relações de

contratualidade.

As objeções prosseguiram, mesmo depois desse

evento, quanto ao ingresso do enriquecimento ilícito no plano do direito

administrativo.

Dentre os argumentos em sentido contrário,

levantavam-se as normas pertinentes à proteção da Fazenda Pública, à

vinculação orçamentária dos gastos públicos, à impossibilidade de exercício

irregular da função pública, a que resultaria o gestor de negócios e, ainda, à

questão de não poder o juiz imiscuir-se no critério da administração para

aferir a existência de utilidade na atividade do gestor, circunstância

imprescindível à composição da figura jurídica da gestão do negócio.

Efetivamente, era difícil admitir-se que alguém

pudesse desempenhar atividades úteis à administração sem que, regularmente,

estivesse investido em alguma função ou autorizado por algum contrato.

Tais oposições acabaram encontrando alguma

resposta ou uma forma de acomodação.

Quanto à impossibilidade da existência de gastos

públicos não autorizados, Hauriou incumbiu-se de demonstrar que não se

podia permanecer sem distinguir as obrigações administrativas e os gastos

públicos. As primeiras nasciam de fontes específicas, inclusive

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independentemente de qualquer previsão. Já os gastos, estes sim, dependeriam

de previsão orçamentária.97

Essa concepção temos nós, hoje, quando

distinguimos obrigação de crédito.

Outra questão essencial, qual a de se indagar como

alguém poderia interferir no desempenho de função pública sem o

consentimento administrativo, passou a ser resolvida pela introdução do

conceito de “assentimento”, expressão menor, mas que, de qualquer modo,

induz à idéia de que a administração, de algum modo, sem que se autorize

expressamente, tolera ou permite, de modo tácito, a execução de

determinados serviços.

A partir daí, também, pode-se resolver a questão da

existência da utilidade pública no serviço realizado com base no chamado

“assentimento administrativo”.

Resolvidos esses obstáculos, pode-se encontrar a

fórmula que solucionava o problema crucial de não se deixar sem indenizar

aqueles que, de boa fé, haviam contribuído para a administração.

Nesse enfoque, parece correto afirmar-se que o

enriquecimento ilícito ingressa no direito francês, como uma gestão de

negócios devidamente temperada para o modelo da administração pública.

O Enriquecimento no Direito Espanhol -

Na Espanha, como nos dá conta Puig,98 não houve

uma rejeição plena ao princípio do enriquecimento injusto no direito

administrativo.

97 Apud., Puig, Manoel Rebollo, El enriquecimiento injusto de la administración pública, pag.54

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É certo que o Tribunal Supremo, muitas vezes, se

utilizou, sem a precisão necessária, ora dos conceitos da ação “in rem

reverso”, ora do regime da gestão de negócios.

Coincidentemente, o grande desenvolvimento da

temática no âmbito pretoriano dá-se nos anos 70, na mesma época do

desenvolvimento da questão, na Corte francesa.

O autor hispânico já citado, em alentada monografia

sobre o tema, revela que o Tribunal Supremo Espanhol veio de consagrar o

enriquecimento ilícito, como um princípio geral de direito.99

De outra forma, parece que no direito francês

enriquecimento ilícito, pragmaticamente, atrelou-se à idéia dos quase

contratos.

Cuidando do assunto, o já citado Franck Moderne

aponta situações específicas em que se admitiu o enriquecimento sem causa,

por via do recurso da gestão de negócios quando obras são executadas a partir

de um contrato que venha a ser anulado ou que não foi legitimamente

concluído; quando, após a cessação dos efeitos de uma relação contratual,

atividades são realizadas; quando o particular desenvolve trabalhos úteis, mas

distintos do padrão contratual; quando são realizados trabalhos suplementares,

em decorrência de situações excepcionais justificadoras.

Nossa Visão Quanto ao Enriquecimento Ilícito na Administração -

É necessário, agora, que efetuemos um traçado

menos histórico e mais analítico sobre a questão.

98 Puig, Manoel Rebollo, op cit. 99 “Numerosas son las sentencias de lo contencioso-administrativo en que así lo califican y las que lo aplican como tal. Modelo de ello es la de 12 de marzo de 1991 (Ar. 1987), que habla de la <<aplicación de los principios de la buena fe y de la evitación del enriquecimiento injusto, en cuanto informadores de todo el ordenamiento jurídico (arts. 1 CC y 11 LOPJ)>>.” op cit. pag.91

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É evidente que ninguém mais do que a

administração pública deve pautar-se por uma linha a não ensejar prejuízo

àqueles de quem recebe colaboração ou que, de qualquer modo, contribuem

para o benefício da coletividade.

O enriquecimento sem causa é, sem dúvida,

nenhuma fonte de restituição nos exatos limites do aproveitamento pela

administração.

Qualquer que seja a circunstância em que a

administração esteja se enriquecendo indevidamente, é mister que essa

situação se corrija até em nome do princípio do estado responsável.

Não há porque atrelar-se o enriquecimento ilícito à

gestão de negócios, porque, a nosso ver, nessa última hipótese, poder-se-á

verificar um enriquecimento sem causa, embora com solução específica.

Parece-nos que a velha figura do direito civil que

permitiu, de certo modo, a abertura da responsabilidade da administração

pública, deve ceder lugar a um princípio mais geral, segundo o qual não é

dado ao Estado enriquecer-se, de nenhum modo, à custa do esforço do

cidadão.

A contribuição que se deva dar ao Estado há de ser

uniforme e isonômica, daí porque os excessos contributivos dos particulares

devem ser podados.

Não é razoável, qualquer que seja a situação, ou o

pretexto, que o Estado receba mais dos seus cidadãos do que as contribuições

tributárias que lhes são devidas.

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Parece que o fundamento maior ao sancioamento do

enriquecimento sem causa é o do princípio da legalidade, que não permite ao

agente público impor qualquer carga, ainda que por via oblíqua que não tenha

caráter geral e natureza universal.

Sem sombra de dúvida, o campo dos contratos nulos

revela-se de enorme fertilidade na produção de enriquecimento ilícito da

administração pública a ser compensado nos limites do empobrecimento do

particular.

É de se registrar que proliferam as situações em que

o próprio Estado dá margem à nulificação de uma avença, quando a parte já

desenvolveu trabalhos, despendeu valores e contribuiu para realização de

obras e serviços e, por isso, deve ser indenizada.

No plano dos servidores públicos, também se

verifica que não é o fato de ter-se consumado uma investidura irregular que

dará margem a que o Estado se aproveite dos serviços prestados, sonegando a

remuneração correspondente.

Não se confine, de modo algum, a idéia do

enriquecimento sem causa à do contrato ilícito ou à das relações extra-

contratuais, mas derivadas originariamente de um contrato.

Muita vez, no curso da execução contratual, deverá

o Estado abster-se do enriquecimento ilícito face o particular.

Imaginamos a hipótese em que o preço dos bens ou

serviços contratados sofra alteração anômala nas suas bases.

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Nesse caso, a não recomposição do equilíbrio

econômico financeiro da relação importará também em enriquecimento sem

causa.

Nem se diga, seguindo-se a doutrina civilista, que,

nessa hipótese, a perda será creditada à álea natural dos contratos, porque, se

essa regra vale em direito privado, não prospera em direito público.

É que o contratante particular submete-se a um

processo licitatório onde é convidado a oferecer, como regra, o menor preço.

Fixando a sua oferta em patamar mínimo, não pode

suportar oscilações quaisquer que sejam. Essa é a contrapartida natural da

ausência de liberdade de contratar.

Não se olvide a circunstância de que a inexecução

contratual pode dar lugar ao enriquecimento ilícito. Dir-se-á que, nesse caso,

serão utilizados os remédios causais, ou seja, aqueles especificamente

previstos para a relação.

Ilustrativamente, se há um atraso no pagamento, já

devem estar previstos os juros e, se não estão, prevalecem os legais, de modo

que não se instalaria a figura do enriquecimento indevido pelo próprio

mecanismo de recomposição.

Pensamos que nem sempre é assim.

Interessante precedente do Tribunal Supremo da

Espanha, de 12 de fevereiro de 1990, traz notável contribuição a uma situação

relativamente frequente em que se defrontam os contratantes com órgãos

públicos no Brasil.

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Esse precedente, colhido no sempre recorrido

Manoel Rebollo Puig, vai a seguir resumido.

A Prefeitura de Telde contratou a realização de

prÏjetos, obras e serviços que ficaram a cargo de um particular. Contudo, após

os investimentos feitos por esse particular, a administração retardou o

pagamento, obrigando-o a recorrer ao sistema bancário, onde teve que arcar

com juros de mercado.

O Tribunal Supremo entendeu que a indenização

pela “mora” ia além dos juros contratuais para incluir todas as despesas

realizadas.

O aresto mereceu o seguinte comentário do autor

citado: “La larga cita era conveniente para poner de relieve que en

realidad el enriquecimiento sin causa no es la fuente específica de la

obligación declarada, que más bien encaja en la responsabilidad

contractual y que aquel concepto se utiliza aquí para reforzar la

argumentación o, quizá, para obviar la aplicación del artículo 1.108 CC,

que hubiera supuesto una condena limitada al interés legal. Con todo,

debe constar que no conocemos otras sentencias que se pronuncien en

esta línea invocando el enriquecimiento injusto y que, incluso en la

transcrita, el Tribunal Supremo simplemente razona que <<la

contratación administrativa no es una forma privilegiada de obtención de

créditos por el municipio convirtiendo en prestamista forzoso al

contratista>>.”100

Estamos em que agiu com acerto a Corte Espanhola,

porque não é possível exigir-se do particular que arque com despesas

decorrentes exclusivamente da mora do Estado. 100 Manuel Rebollo Puig, op cit. pag.130

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A Administração Pública Brasileira e o Enriquecimento Ilícito -

A administração pública brasileira, em relação ao

campo ora cogitado, é rico laboratório que nos permitirá conferir a

experimentação desses desvios nas mais variadas circunstâncias.

Em primeiro plano, enfrentaremos uma situação

relativamente constante, qual seja a de exigência de tributos inconstitucionais

ou ilegais que, uma vez declarados, não são restituídos a quem quer que seja,

sob o argumento de que no caso do comerciante teria havido repasse natural

ao consumidor final e, quanto a este, sua identificação é na prática impossível.

Trata-se de situação normatizada a partir do art.166

do Código Tributário Nacional.

Não temos dúvida de que há um enriquecimento

ilícito, embora seja também razoável admitir-se que possa ter havido, em

certos casos, transferência ao consumidor.

A solução simplista do código não convence,

porque, a rigor, o montante arrecadado deveria ser disponibilizado para

eventualidade de identificação do chamado contribuinte de fato.

De qualquer modo, não se pode deixar de reconhecer

que o comerciante, industrial ou prestador de serviço, deva ter experimentado

perda presumível pela oferta do produto a um preço maior do que praticaria se

não estivesse carregado da contribuição indevida.

Um mínimo de teoria econômica nos mostra a

elasticidade da procura que, em regra, é tanto maior quanto menor for o preço

e vice-versa.

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Não nos parece possível que a cobrança

inconstitucional do tributo possa manter incólume a administração.

Ainda em sede tributária, verificamos a frequente

tentativa de enriquecimento da administração, quando nos impostos de

natureza não cumulativa, por qualquer motivo, o contribuinte vem a lançar

tardiamente o crédito, tal como se dá quando é vencedor em uma demanda

que anula ou reduz a exigência do fisco.

Nesse caso, a não incidência de correção monetária

importará em franco enriquecimento sem causa.

Nesse sentido, já se pronunciou o Superior Tribunal

de Justiça Brasileiro: “Incide correção monetária sobre o crédito

tributário tardiamente aproveitado. Tal reajuste constitui mera

atualização de valores, no escopo de impedir o enriquecimento ilícito do

Estado em detrimento do contribuinte”.101

De outra feita, também podemos dizer que a Corte

Superior de Justiça flagrou a administração pública federal em tentativa

manifesta de enriquecimento ilícito.

Cuidava-se da hipótese de empréstimo compulsório

sob o consumo de combustíveis, instituído em determinada época.

Após ter arrecadado, pretendia a União condicionar

a devolução à prova do efetivo consumo pelo usuário o que, na prática,

impediria a restituição, considerando-se que são muito poucos os que obtêm

notas de venda e mantêm a guarda por longo tempo.

101 STJ, AGA-101090/RS, DJ 17.02.97.

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Para frear tal tentativa, a Corte construiu o

entendimento, segundo o qual: “É descabida a exigência da prova de consumo

de combustível, já que a devolução deve pautar-se pela média nacional de

consumos”.102

Em outra situação, esteve-se diante de servidor

desviado da sua função, para exercer outra de maior responsabilidade, sem

que a administração desejasse pagar o salário equivalente.

De volta, o Superior Tribunal de Justiça encontrou a

figura do enriquecimento sem causa. Tal se deu em julgamento que porta a

seguinte ementa: “A remuneração recebida pelo servidor é a

contraprestação pelos serviços prestados; não se pode desconsiderar o

desvio do mesmo para uma função técnica, distinta da qual foi

originalmente investido, e que exige certas atribuições e conhecimentos,

devendo ser equilibrado com o pagamento das diferenças salariais, sob

pena de locupletamento indevido do estado”.103

Com esses arestos, desejamos tão somente

evidenciar o múltiplo de situações em que a administração pública tende a

enriquecer ilicitamente, desprestigiando-se em termos de credibilidade

perante a própria sociedade.

É por isso mesmo que o enfoque dado ao

enriquecimento ilícito, revelado na resistência à composição das perdas

experimentadas pelo cidadão, revela-se como desvio de conduta de tal sorte a

merecer sua inserção na monografia que ora é apresentada, já que tal desvio é,

em última análise, uma conduta traduzida, também, no gênero da

102 RESP 69211/RN, DJ 11.12.95 103 STJ, RESP-11560/SP, DJ 12/04/93

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arbitrariedade, com o qual tivemos oportunidade de inaugurar esse

despretensioso trabalho.

Não tivemos, nem temos, a preocupação de

estabelecer um rol exaustivo de desvios, mas tão somente o de conferir uma

análise sistemática e uniformizadora da chamada patologia comportamental

administrativa, para o que lançamos mão das figuras que nos pareceram mais

significativas do ponto de vista do enriquecimento de uma teoria geral.

A partir daqui, pensamos que é hora de extrair as

conclusões mais gerais em relação à proposta de alinhamento, esboçada no

pórtico dessa dissertação.

Vamos pois, como convém a um trabalho com essa

meta, delinear, em conclusões, a síntese das raízes fincadas ao longo da

exposição, que no seu essencial, para gaudio dos examinadores, aqui se

encerra.

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CONCLUSÕES

A dissertação propõe-se ao estudo dos desvios de

conduta da administração pública, considerada a pauta de ação dos entes

governamentais, que embora não possa ser classificada como ilegalidade

“stricto sensu”, configura-se, inequivocamente, como afrontosa ao

ordenamento jurídico, desenvolvendo as seguintes linhas:

1) Considerou-se, inicialmente, a arbitrariedade,

como forma genérica de toda ação administrativa não lastreada em uma causa

racional e eficiente de sua adoção;

2) Assentou-se que o antídoto à discricionariedade

está na busca da razoabilidade, cuja marca essencial está em se encontrar o

nível de expectativas da sociedade em um dado momento, segundo sua tábua

de valores jurídicos próprios;

3) Estabeleceu-se a discriminação, como algo

essencial à normativização jurídica, importando, portanto, tão somente

distinguir o caráter racional ou ilógico do “discrimen”;

4) Verificou-se que, na discricionariedade,

encontrava-se campo fértil ao desenvolvimento da arbitrariedade mal

disfarçada, daí a necessidade imperiosa de se rever o estudo da categoria;

5) Com o propósito antecedente, descartou-se na

conduta discricionária, qualquer possibilidade de liberdade, já que a

administração está sempre incumbida de um processo de identificação dos

valores jurídicos e não, de escolha;

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6) Evidenciou-se a irrelevância da vontade como

elemento psicológico, a dar lugar ao interesse público, como verdadeiro

móvel da conduta administrativa;

7) Estabeleceu-se a crítica às falsas

discricionariedades, a exemplo da chamada discricionariedade técnica;

8) Procurou-se demonstrar a existência de conceitos

indeterminados que, em nada, se confundem com conduta discricionária e

nem são suscetíveis de projetá-la;

9) Estabeleceu-se a clara distinção entre a diagnose e

a prognose administrativa, extraindo-se, a partir daí, suas conseqüências;

10) Visitou-se a jurisprudência brasileira em relação

aos temas retro-enfocados;

11) Reabriu-se a discussão em torno do desvio de

finalidade, estabelecendo suas raízes históricas e sua construção no âmbito da

França;

12) Discutiu-se a chamada finalidade pública

genérica, distinguindo-se da específica, para assentar-se a ocorrência de

desvio ante o câmbio de finalidades, ainda que do mesmo gênero;

13) Descartou-se o elemento intencional, como

móvel necessário do desvio de finalidade, para situá-la, objetivamente, como

mera traição ideológica da lei;

14) Examinou-se a questão da moralidade

administrativa para, afinal, concluir-se quanto à sua imprecisão conceitual e

instrumental;

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15) Foram contempladas as diversas facetas do

desvio de finalidade, quer quando praticados em decorrência de ação, ou de

omissão, pelo Executivo, Legislativo, Judiciário e, inclusive, o Ministério

Público;

16) Apreciaram-se os remédios usuais contra o

desvio de finalidade pública e a incursão do Poder Judiciário, como forma

corretora do desvio;

17) Estudou-se o desvio de procedimento para

mostrar suas características apartadas do desvio de finalidade;

18) Evidenciou-se, no desvio de procedimento, uma

inadequação de meios, apesar da legitimidade dos fins;

19) Positivou-se a importância do procedimento para

o administrado, demonstrando-se que, até em certas circunstâncias, o valor

meio superava o valor fim;

20) Discutiram-se várias formas de desvio de

procedimento nos tribunais franceses e brasileiros;

21) Evidenciou-se a falta de sistematização

doutrinária sobre a matéria;

22) Cuidou-se de estudar o desvio de procedimento

à luz da teoria da conservação dos atos administrativos, para concluir-se da

impossibilidade de convalidação do ato eivado de tal desvio, salvo, quando o

procedimento tenha caráter meramente instrumental;

23) Abordou-se o silêncio administrativo, como

forma específica de inércia da administração;

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24) Foram classificadas as diversas formas de

silêncio, desde as tradicionais, como silêncio negativo ou positivo, até aquelas

resultantes de proposta da dissertação, como silêncio insubstituível ou o

silêncio preclusivo;

25) Considerou-se o empréstimo de eficácia ao

silêncio, como forma de defesa do administrado;

26) Estudou-se o “amparo por mora” no direito

argentino, como elemento corretivo do silêncio prolongado da administração,

considerando-se, ainda, a inexistência de institutos similares nos demais

ordenamentos jurídicos;

27) Trabalhou-se com as chamadas prerrogativas

indevidas da administração, consideradas aquelas que lhes são conferidas por

lei, mas que exorbitam a moldura constitucional;

28) Além das prerrogativas indevidas, tomou-se em

conta aquelas que, pertinentemente, são conferidas, mas, inadequadamente,

manejadas;

29) Demonstrou-se que essas prerrogativas, mal

equacionadas, resultariam em arbítrio, com eventual desdobramento,

inclusive, em enriquecimento ilícito, cujo estudo foi objeto em capítulo

apartado;

30) Ao último capítulo, reservou-se a questão do

enriquecimento ilícito visualizado como desvio de conduta da administração,

provocando um desequilíbrio na relação com os particulares;

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31) O enriquecimento ilícito foi examinado nas suas

bases originais do direito privado e considerado no seu interrelacionamento

com a gestão de negócios;

32) Discutiu-se, depois, concluindo-se

afirmativamente, pela possibilidade do ingresso da figura do enriquecimento ,

no âmbito do direito administrativo, com suas peculiaridades próprias;

33) A demonstração casuística revelou diversas

hipóteses consagradas, inclusive, na jurisprudência brasileira de

enriquecimento ilícito, no plano tributário, nas relações com servidores e no

âmbito dos contratos.

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