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CASELLA, Cesar Augusto de Oliveira. Dia da consciência negra: análise semiótica de uma charge de Angeli Temporis (ação), v. 13, n. 2, p. 27 - 40, jul./dez. 2013 DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA: ANÁLISE SEMIÓTICA DE UMA CHARGE DE ANGELI Cesar Augusto de Oliveira CASELLA *1 RESUMO Este artigo é uma análise semiótica da charge do cartunista Angeli, publicada na Folha de São Paulo do dia 20 de Novembro de 2006, que tem como mote o Dia da Consciência Negra. Parte-se da constatação que a Semiótica faz análises que buscam a descrição e a explicação dos mecanismos que engendram os sentidos do texto e de ela não ignora o homem, a História ou a sociedade, presentes na linguagem, ainda que use a imanência como princípio de análise. A base teórica advém, primordialmente, das leituras de textos de José Luiz Fiorin e Diana Luz Pessoa de Barros, consignados nas referências bibliográficas. O intuito último deste exercício é compreender, a partir da análise articulada entre o plano de expressão e o plano de conteúdo, como a charge de Angeli produz um fino e mordaz humor que se volta para o leitor, deixando-o a pensar sobre o tema. Palavras-chave: Semiótica, Angeli, análise de charges. SEMIÓTICA: HUMANITAS ET UNIVERSITAS Em “O projeto hjelmsleviano e a semiótica francesa”, José Luiz Fiorin (2003, p. 20) faz uma importante advertência quanto ao paradoxo de se criticar Hjelmslev por um excesso de formalismo ou por uma falta de historicidade justamente não levando em conta a dimensão histórica do projeto hjelmsleviano. Esquecemos ou tendemos a esquecer quando nos é propício que as teorias são criadas em ambientes culturais determinados, que teorias dialogam com outras teorias, que as teorias são parte de um universo discursivo que precisa ser retomado para que se entendam e se signifiquem as próprias teorias. No artigo, Fiorin (2003, p. 21) explica que o projeto hjelmsleviano se constituiu a partir de um ponto de vista imanentista, em oposição ao transcendentalismo existente na linguística de sua época. Assim, a sua proposta é substituir a premissa de que o conhecimento linguístico é um meio para a compreensão do que é exterior à linguagem pela de que o estudo da linguagem é um fim em si mesmo. * Universidade Estadual de Goiás E-mail: [email protected]

Dia da consciência negra: análise semiótica de uma charge de Angeli

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    27 Temporis (ao), v. 13, n. 2, p. 27 - 40, jul./dez. 2013

    DIA DA CONSCINCIA NEGRA: ANLISE SEMITICA DE UMA CHARGE DE ANGELI

    Cesar Augusto de Oliveira CASELLA*1

    RESUMO

    Este artigo uma anlise semitica da charge do cartunista Angeli, publicada na Folha

    de So Paulo do dia 20 de Novembro de 2006, que tem como mote o Dia da

    Conscincia Negra. Parte-se da constatao que a Semitica faz anlises que buscam a

    descrio e a explicao dos mecanismos que engendram os sentidos do texto e de ela

    no ignora o homem, a Histria ou a sociedade, presentes na linguagem, ainda que use a

    imanncia como princpio de anlise. A base terica advm, primordialmente, das

    leituras de textos de Jos Luiz Fiorin e Diana Luz Pessoa de Barros, consignados nas

    referncias bibliogrficas. O intuito ltimo deste exerccio compreender, a partir da

    anlise articulada entre o plano de expresso e o plano de contedo, como a charge de

    Angeli produz um fino e mordaz humor que se volta para o leitor, deixando-o a pensar

    sobre o tema.

    Palavras-chave: Semitica, Angeli, anlise de charges.

    SEMITICA: HUMANITAS ET UNIVERSITAS

    Em O projeto hjelmsleviano e a semitica francesa, Jos Luiz Fiorin (2003, p.

    20) faz uma importante advertncia quanto ao paradoxo de se criticar Hjelmslev por um

    excesso de formalismo ou por uma falta de historicidade justamente no levando em

    conta a dimenso histrica do projeto hjelmsleviano. Esquecemos ou tendemos a

    esquecer quando nos propcio que as teorias so criadas em ambientes culturais

    determinados, que teorias dialogam com outras teorias, que as teorias so parte de um

    universo discursivo que precisa ser retomado para que se entendam e se signifiquem

    as prprias teorias.

    No artigo, Fiorin (2003, p. 21) explica que o projeto hjelmsleviano se constituiu a

    partir de um ponto de vista imanentista, em oposio ao transcendentalismo existente na

    lingustica de sua poca. Assim, a sua proposta substituir a premissa de que o

    conhecimento lingustico um meio para a compreenso do que exterior linguagem

    pela de que o estudo da linguagem um fim em si mesmo.

    * Universidade Estadual de Gois

    E-mail: [email protected]

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    Fiorin (2003, p. 22) mostra tambm que o projeto hjelmsleviano se ope, com a

    noo de sistema, tradio humanista de estudos que nega a existncia de constncia

    nos fenmenos humanos e a possibilidade de uma interpretao sistemtica deles. Alm

    disto, mostra (FIORIN, 2003, p. 23) que o projeto hjelmsleviano de base dedutiva,

    opondo-se ao mtodo indutivo dos estudos lingusticos anteriores. Expondo estes e

    alguns outros princpios hjelmslevianos, Fiorin estabelece uma tradio de pensamento

    lingustico que, a partir de Hjelmslev, volta-se para Saussure e avana para a Semitica

    greimasiana. Uma tradio de estudos lingusticos imanentista, formal e sistemtica.

    Ao final do texto, Fiorin estabelece as disjunes e conjunes entre Hjelmslev e

    Greimas e escreve que:

    A semitica desloca a categoria de totalidade da descrio do plano de contedo das

    lnguas naturais para a descrio e explicao dos mecanismos que engendram o texto.

    Pensando a significao como a criao e/ou a apreenso de diferenas, a semitica

    procurar determinar no o sistema da lngua, mas o sistema estruturado de relaes que

    produz o sentido do texto. (FIORIN, 2003, p. 48)

    Assim, a Semitica

    [...] adota um ponto de vista imanentista para a anlise do texto, no por negar que ele sofra

    determinaes scio histricas, mas por estabelecer para si como tarefa inicial conhecer os

    mecanismos de estruturao textual; as leis que regem a construo do discurso, que se

    manifesta num texto. (FIORIN, 2003, p. 49)

    Dessa perspectiva a Semitica se mostraria empirista, pois explica como se

    produz e se interpretam os textos; preditiva, pois pretende explicar como se estruturam

    no s os textos existentes mas todos os que podem vir a existir; dedutiva, pois se

    organiza como um clculo; formal, pois estuda o conjunto de relaes que produz o

    significado entendendo que a substncia resultado das formas lingusticas.

    A anlise semitica do texto, escreve Fiorin (2003, p. 49), um exame do

    conjunto de relaes que produz o significado e para isto estuda-se a forma do contedo

    (o como o texto diz o que diz) incorporando-se a o sentido j formado, a substncia

    do contedo (o 'aquilo que o texto diz'). Entretanto, no h somente o contedo, h

    tambm a expresso. A manifestao, a presentificao da forma na substncia,

    pressupe a semiose, que une a forma da expresso do contedo (FIORIN, 2003, p.

    49).

    A consequncia, vista a partir de Greimas e Courts, a de que a manifestao

    a postulao do plano da expresso, quando da produo do enunciado e a atribuio

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    de um plano do contedo, quando de sua leitura (FIORIN, 2003, p. 49-50). De modo

    que,

    [...] a semitica greimasiana aborda o texto como unidade de descrio e o concebe como a

    manifestao decorrente da relao interdependente entre um plano de expresso (PE) e um

    plano de contedo (PC). O PE compreendido como a instncia textual que se organiza por

    meio dos componentes prprios da materialidade a partir da qual cada linguagem se

    constitui; o PC, pelo contrrio, um processo que se desenvolve em nvel abstrato.

    (SANTOS, RUIZ e SIGNORI, 2011, p. 10).

    Na abordagem semitica do texto, segundo Fiorin (2003, p. 50), leva-se em conta

    o princpio hjelmsleviano de que a anlise deve mostrar as invariantes e as variantes.

    Concebe-se o texto como algo que tem uma estruturao o que explica que ele seja um

    todo de sentido e, ao mesmo tempo, como manifestao de singularidades algo da

    ordem do acontecimento correlacionando-se invariantes e variabilidades. O que nos

    traz o percurso gerativo de sentido, um percurso que vai das invariantes s variantes,

    das estruturas mais simples e abstratas s mais complexas e concretas (FIORIN, 2003,

    p. 50). Um percurso que se faz em nveis, desde o fundamental, passando pelo narrativo

    e chegando ao discursivo, todos passveis de receber uma descrio metalingustica

    apropriada. Este percurso deve ser entendido como um modelo hierrquico, em que se

    correlacionam nveis de abstrao diferentes do sentido (FIORIN, 2003, p. 50).

    O que se quer analisar as regularidades e mostrar, a partir delas, a construo das

    especificidades, num processo de complexificao crescente. Depois de analisar, num

    processo da abstrao, as estruturas mais simples, faz-se o percurso inverso e procura-se

    reconstruir as estruturas mais concretas e complexas. Hjelmslev diz que a forma contrai

    uma funo com a substncia. Nela, a primeira a constante e a segunda, a varivel. Por

    outro lado, afirma que o que substncia, de um ponto de vista, forma de outro. Esses

    princpios so levados em conta na construo do percurso gerativo. O nvel fundamental

    uma forma, realizada de maneira varivel, pelo nvel menos narrativo, que, por sua vez,

    uma forma, realizada de modo varivel, pelo nvel discursivo, que, por seu turno, uma

    forma, manifestada, de modo varivel, por um plano da expresso (FIORIN 2003 p. 51).

    Insere-se, por fim, a questo da enunciao. A Semitica entende que a passagem

    das estruturas mais profundas e simples s mais superficiais e concretas se d pela

    enunciao (FIORIN, 2003, p. 51). Uma enunciao entendida no sentido

    benvenistiano, de discursivizao da lngua, o que nos leva a lembrar o que uma

    espcie de justificativa que a Semitica no se pretende uma teoria do enunciado,

    apenas deseja integrar a enunciao e o enunciado em uma teoria geral.

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    Pouco a pouco, a semitica vai ampliando seu objeto, de forma a reintegrar tudo o que

    inicialmente descartara. A semitica operou uma reduo metodolgica provisria de seu

    campo de atuao. No entanto, nunca ignorou a Histria, o homem, as determinaes

    sociais presentes na linguagem. Pretende apenas que a imanncia d uma base mais slida

    para estudar o que transcendente linguagem, juntando imanncia e transcendncia numa

    unidade superior. A semitica, como o projeto hjelmsleviano, se atribuiu a seguinte

    finalidade: humanitas et universitas (FIORIN, 2003, p. 51-52).

    V-se, acompanhando minimamente a exposio e as argumentaes de Jos Luiz

    Fiorin, que a Semitica de que ele fala tem um conceito amplo de texto, que tenta

    integrar o interior e o exterior, o constante e o varivel, a imanncia e a

    manifestao. Entende-se, de imediato, as dificuldades de tal empresa. Compreende-

    se, ainda, que a Semitica francesa uma teoria para a abordagem do texto,

    apresentando princpios e mtodos, mas que ela no perfeita, pronta e acabada,

    como escreve o mesmo Jos Luiz Fiorin em outro artigo:

    O fazer terico da Semitica Francesa, como alis de qualquer domnio do conhecimento

    aspectualizado imperfectivamente, o que significa que no constitui ela uma teoria pronta e

    acabada, mas um projeto, um percurso. No est facta, mas in fieri. Por isso, a todo o

    momento, est repensando-se, modificando-se, refazendo-se, corrigindo-se (FIORIN, 2002,

    p. 131).

    Obviamente, ao acompanhar Fiorin, deixamos de mencionar e adotar outras

    perspectivas existentes acerca da Semitica, afastando-nos da possibilidade de traar um

    panorama ou um histrico da rea.

    O objetivo aqui foi o de ressaltar as aberturas da Semitica, para a Histria e para

    a reconfeco terica existentes mas nem sempre vistas e situ-la como complexa e

    processual, dinmica e acolhedora de novas anlises.

    Pode-se dizer que o objetivo foi o de ressaltar que o in fieri condio sine qua

    non para o humanitas et universitas.

    A ANLISE SEMISSIMBLICA E A CHARGE DE ANGELI

    Berenice Baeder (2007) se dedicou a analisar semioticamente uma charge de

    Angeli, diferente da nossa, e, valendo-se de uma abordagem semissimblica, mostra de

    que maneira as categorias do plano da expresso visual (topolgicas, eidticas e

    cromticas) se associam s categorias do plano do contedo na sintagmatizao textual

    do objeto-desenho. Em seu artigo a autora procura, ainda, identificar alguns dos efeitos

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    de sentido produzidos pela charge.

    Uma anlise que do tipo que se adqua ao objeto, j que a charge um sistema

    semissimblico, os quais passaram a ser abordados com mais frequncia pelos estudos

    semiticos, conforme nota Diana Luz Pessoa de Barros:

    Os sistemas semi-simblicos podem ser denominados poticos e ocorrem no texto literrio,

    na pintura, no desenho, na dana, no quadrinho ou no filme, que procuram obter os efeitos

    acima mencionados de recriao da realidade, de adoo de um ponto de vista novo na

    viso e no entendimento do mundo. Os estudos semiticos no podem, portanto, deixar de

    lado, e no mais o fazem, os procedimentos da expresso que fabricam tais efeitos

    (BARROS, 2005, p. 77).

    Abaixo reproduzimos a charge de Angeli que motivou este trabalho.

    Fig. 1: A charge de Angeli

    No exerccio de anlise semitica que vir a seguir procura-se justamente

    descrever a articulao entre os planos da expresso e do contedo, alm de fazer ver

    que o plano da expresso traz sentido em si mesmo.

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    O PLANO DA EXPRESSO E O PERCURSO DE LEITURA

    Originalmente, a charge de Angeli aparece na pgina intitulada Opinio, da Folha

    de So Paulo, jornal de grande circulao e influncia no Brasil. Opinio a segunda

    pgina do dirio, isto , o verso da primeira pgina. O leiaute da pgina coloca a charge

    em meio aos editoriais e aos colunistas, portanto em meio a uma massa de textos

    escritos, mas em uma posio central, na metade superior da folha. Destaque duplo,

    portanto: espacial, pois a charge situa-se no centro superior da pgina, e visual, pois

    trata-se de um desenho colorido em meio a uma massa de letras pretas organizadas em

    linhas sobre fundo claro.

    A charge, v-se, facilmente identificada na pgina. Por essas caractersticas ,

    via de regra, o primeiro texto a ser lido. Ao primeiro passar de olhos pela pgina do

    jornal a nossa ateno imediatamente tomada pelo desenho-texto.

    Focando na Figura 1, percebe-se que a sua leitura demanda um percurso algo

    singular. Ao invs de nos atermos ao desenho da esquerda para a direita, de cima para

    baixo, iniciamos a leitura de baixo para cima, da direita para a esquerda. Obedecemos a

    uma estratgia plstica construda pelo cartunista. O enunciador impe percepo do

    enunciatrio uma certa performance do olhar.

    Fig. 2: incio do percurso de leitura

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    O que atra o olhar, primeiramente, so os elementos soltos e com cor destacada

    no canto inferior direito do desenho, como vemos na Figura 2, acima. Deste modo,

    fixamo-nos primeiro na regio inferior direita, para depois percorrermos o desenho em

    direo parte superior. Entram em jogo certas oposies entre categorias formais

    plsticas: claro/escuro (a areia da praia/os vendedores ambulantes); isolado/agrupado

    (os vendedores ambulantes/os banhistas e os prdios); estaticidade/mobilidade (os

    banhistas e os prdios/os vendedores ambulantes); branco/preto (os banhistas/os

    vendedores ambulantes). So estas oposies que do destaque e ateno para a

    figurativizao dos vendedores ambulantes negros e o resultado que eles tomam a

    cena de imediato.

    Depois de percebermos as quatro figuras ao canto direito, acompanhadas por um

    pequeno triangulo azul representando o mar, nosso olhar procura o restante do desenho

    e na massa roscea imediatamente superior vai distinguido as muitssimas figuras de

    banhistas. No topo, continuando o percurso, o olhar encontra uma infinidade de prdios

    enfileirados, formando o paredo arquitetnico tpico das praias brasileiras altamente

    urbanizadas. O movimento, de baixo para cima, parece guiado por uma escala cromtica

    que vai das cores mais vibrantes para as mais pastis.

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    34 Temporis (ao), v. 13, n. 2, p. 27 - 40, jul./dez. 2013

    Figura 3: oposies formais elementares

    Esquematicamente e operando com as oposies formais elementares do plano

    de expresso poderamos transformar o desenho na Figura 3, exposta anteriormente.

    Desvela-se ento, plenamente, o desenho-charge. Uma praia, altamente

    urbanizada e repleta de banhistas rosados em que quatro vendedores ambulantes

    negros movimentam-se tentando atrair a ateno da massa roscea imvel. Apesar das

    figuras dos vendedores ambulantes negros serem valorizadas plasticamente pela

    enunciao pois de incio a elas que nosso olhar lanado por meio das oposies

    formais mostradas na figura 3 no plano geral do texto, no enunciado enunciado, a

    massa roscea e pastel de banhistas e prdios que ganha importncia, por causa de sua

    posio na topologia do desenho: a regio superior. Assim temos, posicionalmente, o

    agrupamento rosceo-pastel 'por cima' e os isolados pontos negros 'por baixo'.

    Posicionamentos que no parecem ser inocentes ou acidentais, mas sim uma estratgia

    de composio.

    A figurativizao da regio superior se mostra paulatinamente. No de imediato

    que vemos todos os guarda-sis, o que faz cada um dos banhistas ou o hotel no paredo

    arquitetnico ao fundo. Temos uma 'viso em massa', uma quase indeterminao, que se

    ope frontalmente s figuras da regio inferior direita, mais bem determinadas: elas

    vestem shorts de cores variadas e carregam, pendurados, utenslios bem identificveis.

    Podemos nos apoiar no exame de Baeder (2007). Aqui, como l, temos uma

    problematizao decorrente da relao que a charge faz entre as categorias plsticas em

    oposio (estilo pictrico na poro superior/estilo linear na poro inferior) e as

    categorias semnticas em oposio (brancos/negros), ainda que estas categorias

    semnticas s existam neste nosso exame.

    Uma operao plstica, no plano da expresso, que faz com que os negros

    apaream individualizados e em minoria enquanto os brancos rosados de sol

    aparecem massificados e em maioria. Uma operao que instaura pelo menos dois

    conflitos: em primeiro lugar, a enunciao destaca algo diferente daquilo que o

    enunciado enunciado afirma, uma chama a ateno para a figurativizao inferior e o

    outro pe em relevo a figurativizao superior; em segundo lugar, a relao

    semissimblica que se estabelece entre as categorias plsticas (pictrico/linear) e as

  • CASELLA, Cesar Augusto de Oliveira. Dia da conscincia negra: anlise semitica de uma charge de Angeli

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    categorias semnticas (branco/negro) no tradicional, isto , no temos uma maioria

    negra 'por baixo' e uma minoria branca por cima.

    Ao final do exame do plano de expresso e do estabelecimento de um percurso de

    leitura, vemos que a charge apresenta como efeito importante uma forte tenso gerada

    pela aproximao de duas figurativizaes, ambas com suas caractersticas plsticas e

    com seus contedos, s quais se confere pesos equivalentes, isto , estabelece-se uma

    tensa oposio cara a cara.

    CONSCINCIA VERSUS ALIENAO

    Ao exame desta tenso plstica e espacial talvez possamos acrescer o exame da

    oposio fundamental da charge: conscincia versus alienao. O Dicionrio Caldas

    Aulete (2007) define 'alienao' como falta de conhecimento e desinteresse pelo que

    acontece na sociedade, no pas, no mundo. No mesmo dicionrio, 'conscincia'

    definida como estado em que uma pessoa tem percepo do que se passa a sua volta e

    dentro da sua mente.

    Temos, portanto, uma oposio entre a percepo ou a ignorncia do que se passa

    a nossa volta, na sociedade, no pas, no mundo.

    Em Elementos de anlise do discurso Jos Luiz Fiorin (2011, p. 113) escreve

    que a isotopia oferece ao leitor um plano de leitura do texto, uma vez que a isotopia

    impede que o leitor 'leia o que quiser' ou que 'leia qualquer coisa' em um texto. A

    isotopia tem a ver com a coerncia do texto, com a sua boa organizao e as

    virtualidades significativas presentes no texto (FIORIN, 2011, p. 112).

    Diana Luz Pessoa de Barros (2005, p. 71) escreve que a reiterao dos temas e a

    recorrncia das figuras no discurso tem o nome de isotopia e que ela que assegura,

    pela repetio, a linha sintagmtica do discurso e sua coerncia semntica. So dois os

    tipos de isotopia, portanto: a isotopia temtica e a isotopia figurativa. A repetio de

    unidades semnticas abstratas, em um mesmo percurso temtico a isotopia temtica.

    a ela que se procura quando se l um texto e busca-se o tema que costura os diferentes

    pedaos do texto. A redundncia de traos figurativos e a associao de figuras

    aparentadas so caractersticas da isotopia figurativa. Esta recorrncia de figuras que

    atribui ao discurso uma imagem organizada e completa da realidade.

  • CASELLA, Cesar Augusto de Oliveira. Dia da conscincia negra: anlise semitica de uma charge de Angeli

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    Alm da construo, com esses ou outros princpios, dos percursos temticos e figurativos,

    necessrio examinar, na busca dos sentidos do texto, as relaes vigentes entre as vrias

    isotopias. Essas relaes estabelecem-se entre as isotopias figurativas de um mesmo texto,

    cada uma delas pressupondo uma linha de leitura temtica. Dessa forma, por meio das

    relaes verticais entre isotopias figurativas, ligam-se tambm os diferentes percursos

    temticos do discurso (BARROS, 2005, p. 71-72).

    Pareceu-nos haver, na charge de Angeli em tela, dentre outras isotopias passveis

    de serem levantadas e examinadas, uma isotopia figurativa da alienao. Construda esta

    isotopia, isto , instaurando-se o sentido de alienao a partir da recorrncia de traos

    figurativos, estabelece-se o confronto fundamental com a ideia de 'conscincia', trazida

    pelo ttulo da charge.

    Esta isotopia marcada pelos seguintes traos: a massificao das pessoas cujo

    conceito prximo ao de alienao, pelo menos em seu uso crtico presente na massa

    humana roscea em contraste com os quatro pontos negros e que cria uma oposio

    entre a maioria e a minoria; a indiferena das pessoas e do paredo de prdios ao fundo,

    que no tem a ateno atrada pelos chamados vocais dos vendedores ambulantes; a

    imobilidade pensa-se, via de regra, que os alienados no se movimentam por no

    saberem as reais condies em que vivem dos banhistas e dos prdios em confronto

    com a mobilidade dos vendedores ambulantes que caminham pela praia; a diverso dos

    banhistas rosas na praia em oposio ao trabalho dos ambulantes negros.

    A alienao est cara a cara com a conscincia tambm no ttulo da charge. o

    sinal de dois pontos, portanto um sinal grfico que coloca o que vem antes e o que vem

    depois em uma relao obrigatria, o que separa a palavra feriado o dia em que no

    se trabalha ou em que no se estuda e que traz consigo a possibilidade da diverso, do

    alheamento, da alienao da palavra conscincia.

    O CARTUNISTA E A DATA COMEMORATIVA

    Como vimos no incio deste artigo, a partir dos textos de Jos Luiz Fiorin, a

    Semitica no abre mo do histrico e do social, das determinaes sociais da

    linguagem, mas tenta os incorporar na anlise de uma maneira diferenciada, que parte

    da imanncia como uma base slida. A Semitica, desta perspectiva, visa uma unidade

  • CASELLA, Cesar Augusto de Oliveira. Dia da conscincia negra: anlise semitica de uma charge de Angeli

    37 Temporis (ao), v. 13, n. 2, p. 27 - 40, jul./dez. 2013

    superior, mais complexa, que una imanncia e transcendncia.

    Pode-se ver que a Semitica no nega o histrico e o social tambm pela relao

    significao/sentido, como mostram Santos, Ruiz e Signori (2011, p. 16-17): a

    significao compreendida como o resultado da manifestao textual, da inter-relao

    entre o plano de contedo e o plano de expresso e o sentido emerge das inter-relaes

    textuais, da relao do texto cm outros textos. E elas esto obrigatoriamente vinculadas:

    Se, por um lado, cada texto o resultado de uma operao de especificao (engendrando a

    significao), por outro sustentado pela simplicidade de uma oposio semntica,

    permitindo-lhe estabelecer relaes com outros textos, a partir das quais o sentido gerado.

    O especfico, pois, necessrio para a constituio da significao, enquanto o geral

    orienta-se para a constituio do sentido. E o mais importante: significao e sentido

    pressupem-se mutuamente (SANTOS, RUIZ e SIGNORI, 2011, p. 16).

    possvel, ento, dizer que a insero dos dados histricos, sociais e culturais,

    feita por meio de inter-relaes textuais. Assim, o sentido da charge em exame de

    Angeli dado pela sua relao com vrios outros textos.

    Arnaldo Angeli Filho que assina seus trabalhos como Angeli um dos mais

    famosos e prestigiados cartunistas brasileiros. Tem como um dos pontos fortes as

    charges, que so publicadas no jornal Folha de So Paulo, para o qual trabalha desde

    1973. tambm o criador de uma galeria de personagens icnicos, tais como a R

    Bordosa, os Skrotinhos, Wood & Stock, Los Trs Amigos em parceria com os

    cartunistas Glauco e Laerte e Bob Cuspe. Lanou na dcada de 1980 a revista Chiclete

    com Banana, sucesso editorial que influenciou culturalmente toda uma gerao de

    brasileiros. Seus trabalhos se destacam por um humor anrquico e urbano, com alta dose

    de crtica poltica e social.

    Como vimos, a charge aparece originalmente na pgina intitulada Opinio, da

    Folha de So Paulo, jornal de grande circulao e influncia na sociedade brasileira. O

    leiaute da pgina a coloca em meio aos editoriais e aos colunistas, portanto em uma

    pgina forte, importante, que expressa contedo opinativo e polmico, do prprio jornal

    e de seus principais colaboradores. As charges da pgina geralmente possuem um

    contedo antenado com os fatos cotidianos e tem um humor irnico e mordaz.

    O Dia Nacional da Conscincia Negra foi estabelecido pela Lei n 10.639, de 9 de

    Janeiro de 2003, que alterou a Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Esta ltima a

    que estabeleceu as diretrizes e bases da educao nacional e a Lei n 10.639 incluiu no

  • CASELLA, Cesar Augusto de Oliveira. Dia da conscincia negra: anlise semitica de uma charge de Angeli

    38 Temporis (ao), v. 13, n. 2, p. 27 - 40, jul./dez. 2013

    currculo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura

    Afro-Brasileira. A data criada sob a rubrica outras providncias, isto , sua entrada

    se d sub-repticiamente. O artigo o 79-B e dispe que O calendrio escolar incluir o

    dia 20 de novembro como Dia Nacional da Conscincia Negra.

    V-se que no seu nascedouro a data tida como uma data escolar e que faz parte

    de um pacote maior de 'outras providncias'. O dia 20 de Novembro foi escolhido como

    uma homenagem a Zumbi, lder do Quilombo dos Palmares, que morreu nesta data, no

    ano de 1695. A homenagem resgata tambm a importncia do personagem histrico,

    representativo da luta dos negros contra a escravido no Brasil Colnia.

    Obviamente, o intuito da data servir como um momento de conscientizao e

    reflexo nas escolas do pas acerca da importncia da cultura dos povos africanos no

    estabelecimento da cultura brasileira, abrangendo-se os aspectos polticos, artsticos,

    gastronmicos, religiosos entre outros destas contribuies. A data serve tambm

    como lembrana de que antes da abolio oficial da escravatura, os negros escravizados

    resistiram e lutaram contra o regime escravocrata. Perceba-se que a charge de 2006,

    portanto prxima temporalmente da criao da efemride e que ela, desde sua criao,

    recebeu paulatinamente cada vez mais ateno, tornando-se pouco a pouco feriado em

    muitas localidades brasileiras e expandindo-se para uma Semana da Conscincia Negra.

    Toda esta rede intertextual deve ser levada em conta ao postularmos um sentido

    para o texto de Angeli em anlise. Rimos da charge, em um primeiro momento, mas

    logo percebemos um incmodo na nossa apreenso do texto. Incmodo ao vermos

    igualados, 'cara a cara', conflituosamente, as duas figurativizaes que nos apresentam

    uma minoria negra em movimento, tentando chamar a ateno de uma maioria roscea

    imvel, indiferente. Incmodo ao entendermos a isotopia da alienao e sua oposio ao

    conceito de conscincia, em oposio importncia de uma data direcionada para a

    reflexo e conscientizao de uma populao historicamente diminuda, maltratada e

    vtima de preconceito racial. Porm, um incmodo maior advm do fato de no

    podermos relacionar, pura e simplesmente, a poro inferior do desenho conscincia e

    a poro superior ao desinteresse, alienao.

    A fina ironia de Angeli est tanto em uma como noutra regio: os quatro negros

    so vendedores ambulantes, aproveitam a data comemorativa e trocam a conscincia de

    sua causa pela mercncia. Movimentam-se no por causa da conscincia racial mas sim

  • CASELLA, Cesar Augusto de Oliveira. Dia da conscincia negra: anlise semitica de uma charge de Angeli

    39 Temporis (ao), v. 13, n. 2, p. 27 - 40, jul./dez. 2013

    por causa do dinheiro, do lucro que podero auferir na data. Acabam submetidos

    massa roscea por outras vias, que passam pela diferenciao cultural e pela

    necessidade material advindas da no integrao social ao longo dos muitos anos que

    separam a abolio da escravatura dos dias atuais. Necessidade e diferenciao advindas

    de uma sociedade brasileira historicamente indiferente, desinteressada, alienada. Neste

    processo a charge joga para fora de si a contradio de aproveitar o dia da conscincia

    negra como um feriado, joga-a no colo do leitor, aquele que aproveita o feriado, aquele

    que se bronzeia na praia no dia 20 de Novembro, mas tambm aquele que usa a data

    como forma de obteno de ganhos submetendo-se massa.

    Angeli, em sua charge com suas estratgias plsticas e seu fino humor mordaz,

    com a constituio da oposio alienao/conscincia coloca-nos 'cara a cara' com a

    sociedade brasileira, coloca-nos 'cara a cara' com ns mesmos, incomodando-nos e

    pondo-nos a refletir.

    BLACK AWARENESS DAY: SEMIOTIC ANALYSIS ON A ANGELI'S CARTOON

    ABSTRACT

    This article is a semiotic analysis on Angeli's cartoon published in the newspaper Folha

    de So Paulo (November 20, 2006), which has as theme the Black Awareness Day. The

    article begins with the observation that semiotics is dedicated to analyzes that seek to

    make the description and explanation of the mechanisms that engender the sense of the

    text. The theoretical basis for the article comes primarily from texts by Jos Luiz Fiorin

    and Diana Luz Pessoa de Barros, contained in the references. The ultimate aim of this

    exercise is to understand, from an analysis articulated between the expression plane and

    content plan, as the Angeli's cartoon produces a thin and biting humor that turns to the

    reader, leaving him alone to think about the topic.

    Keywords: Semiotic, Angeli, cartoon's analysis.

    REFERNCIAS

    ANGELI. Feriado: dia da conscincia negra. Disponvel em: . Acesso em: 27 nov. 2012.

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    BRASIL. Lei N 10.639 de 9 de Janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de

    dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, para

    incluir no currculo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temtica "Histria e

    Cultura Afro-Brasileira", e d outras providncias. Disponvel em:

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