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    DUAS LEITURAS SOBRE A

    TAREFA DO TRADUTOR

    DE WALTER BENJAMIN

    Josalba Ramalho V ieira

    Colgio de Aplicao - UF SC

    O TEXTO A TAREFA DO TRADU TOR de Walter Benjamin surgiu em

    1923, como prefcio s suas prprias tradues de poemas de Bau-

    delaire

    . Esta introduo pode ser encarada como um texto de um

    filsofo que, tendo passado pela experincia tradutria, deseja refletir

    sobre ela. Talvez por se tratar de uma voz de pensador falando sobre

    traduo, esse texto, que no tem mais que quinze pginas, suscite

    tantas consideraes ao ponto de se tornar um texto clssico. Escrever

    sobre o ensaio de Benjamin passou a ser quase um ritual de iniciao

    para quem deseja falar sobre traduo. Muitos j so os iniciados,

    dentre os quais destaco Paul de Man e Jacques Derrida. Tanto um co-

    mo o outro cumprem com o ritual de iniciao ao escreverem sobre o

    texto clssico, no entanto o fazem sob perspectivas distintas.

    O objetivo deste trabalho demonstrar como Paul de Man e

    Derrida apesar de compartilharem certos pressupostos tericos acerca

    da linguagem, chegam a diferentes leituras do texto A Tarefa do

    Tradutor . Pretende-se ainda mostrar que estas diferenas de leitura

    se do graas ao carter intrinsicamente contraditrio do conceito de

    origem em Benjamin, que possibilita que um eleja um aspecto do

    texto, enquanto o outro opte por um que lhe totalmente oposto. Pa-

    ra melhor entender as opes desses autores faz-se necessrio remon-

    tar ao conceito de origem dentro do pensamento filosfico de Ben-

    jamin.

    Para a maioria dos intrpretes de Benjamin, o conceito de origem

    designaria um lugar privilegiado no qual se d uma negao da

    modernidade, porque nele convergem tanto o impulso restaurador

    como o

    desejo vanguardista que caracterizam a filosofia benjam iniana

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    Josalba Ramalho Vieira

    de histria. O conceito de origem, como o entende Benjamin, exige

    tanto um retorno a uma harmonia anterior como uma reconsiderao

    utpica deste momento perdido

    . Os comentadores da obra de

    Benjamin so unnimes em perceber a contradio entre os aspectos

    nostlgico e revolucionrio do pensamento do filsofo alemo. Uns

    tentam resolver essa contradio optando por um dos aspectos, outros

    tentam m ostrar que esta contradio fundamental para a estruturao

    do pensamento de Benjamin, e como tal no pode ser eliminada.

    De acordo com Jeanne Marie Gagnebin, h trs aspectos funda-

    mentais que embasam o conceito de origem em Benjamin: 1) a opo-

    sio entre 'origem e `gnese'; 2) definio de origem como restau-

    rao inacabada e aberta; 3) a ligao entre 'origem' e 'destruio'3.

    A primeira caracterstica, a oposio entre origem e gnese, revela

    uma busca de uma temporalidade diferente daquela na qual o tempo

    linear, pois a noo de origem deve atender s seguintes condies:

    que a estrutura do presente permita a atualizao de um evento do pas-

    sado, e que se quebre a linha de tempo cronolgico para que se operem

    cortes no discurso linear da histria. A palavra origem em alemo

    (Ur-sprung)

    tambm quer dizer primeiro salto , por isso Benjamin

    considera a noo de origem como saltos ou recortes inovadores

    que interrompem a monotonia da histria oficial. Esses saltos pre-

    tendem salvar o passado esquecido, porm a salvao no se instaura

    nem exclusivamente pelo retorno a uma verdade perdida, nem m esmo

    somente por um desdobramento em direo ao progresso

    . Atravs

    desses dois aspectos simultaneamente que ela se instaura.

    A segunda caracterstica, que define a origem como restaurao

    inacabada e aberta, demonstra que a origem remete a um passado,

    mas isto s se d atravs da mediao, da lembrana ou da leitura

    dos signos. Dessa forma, no poderia haver reencontros imediatos

    com o passado. Ou seja, o conceito de origem traz em si um movi-

    mento de restruturao e reproduo, mas tambm de incompletude.

    A restaurao indica, desde j, o reconhecimento da perda. Benjamin

    diz que o movimento da origem s pode ser reconhecido por um

    lado, como restaurao e reproduo, e por outro, e por isso mesmo,

    como incompleto e inacabado 5.

    A terceira caracterstica, a ligao entre origem e destruio, se

    explica pelo fato de que a obra de salvao da origem , ao mesmo

    tempo, disperso e reunio, destruio e construo

    6

    . A noo de

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    origem em Benjamin se revela profundamente histrica, porque a

    restaurao da origem no pode se com pletar por um pretenso retorno

    s fontes, mas unicamente pelo estabelecimento de uma ligao nova

    entre o passado e o presente.

    Este movimento de restaurao e disperso que constitui a origem

    caracteriza vrios momentos essenciais da filosofia benjaminiana,

    inclusive sua teoria sobre a traduo. No ensaio A tarefa do Tradutor ,

    Benjamin afirma que a multiplicidade de lnguas o signo da sua

    incompletude e transitoriedade, pois cada lngua traz em si apenas

    uma promessa de completude. Assim, a tarefa do tradutor salvar

    na lngua m aterna, a lngua pura qu e est sob o feitio de um a lngua

    estrangeira

    7

    . O tradutor deve liberar a lngua aprisionada numa obra

    estrangeira atravs da sua nova criao desta mesma obra na lngua

    materna. Libertar a lngua pura romper as barreiras decadentes da

    prpria lngua. A traduo para Benjamin, como diz Flvio Kothe,

    algo como uma trans-construo do original , uma recriao in-

    terpretativa dele, tocando-o como uma tangente toca um crculo, em

    um s ponto

    8

    . Nesse sentido, todas as lnguas so, ao mesm o tempo,

    insuficientes e verdadeiras. Na traduo, a dinmica da origem e a

    necessidade de destruio se encontram, porque na traduo rompe-

    se a ordem habitual da lngua materna, para que se manifeste nela a

    ordem do original, ou seja, a lngua pura.

    Como vimos acima, o conceito de origem benjaminiano, que tam-

    bm influencia sua idia sobre traduo, contm caractersticas bas-

    tante contraditrias que poderiam ser resumidas em duas vertentes

    opostas: uma, caracterizada pelo aspecto revolucionrio de disperso,

    quebra, salto e abertura; e a outra, marcada pelo lado nostlgico de

    restaurao, salvao e retorno.

    Paul de Man opta pelo carter revolucionrio do conceito de ori-

    gem de Ben jamin, mas faz da sua prpria leitura do ensaio do pensador

    alemo um movimento de resgate. De Man tenta, em Sobre 'A Tarefa

    do Tradutor

    de Walter Benjamin, nos convencer de que Benjamin,

    j em 1923, antecipa uma viso descentralizadora sobre o conceito

    de origem e, conseqentemente, sobre a tarefa do tradutor 9 . Paul de

    Man deseja trazer o texto de Benjamin para dentro da sua prpria

    viso de linguagem, isto , ele quer ler no conceito de origem ben-

    jaminiano a descanonizao do original: A traduo canoniza, con-

    gela um original, e tamb m mostra no original uma m obilidade, uma

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    instabilidade que no se reparou a princpio

    . Assim com o a crtica,

    ou a histria, revelam que o original esteve sempre j desarticulado

    ... matam o original ao descobrir que o original j estava morto 11.

    Ou seja, a traduo, ao mesmo tempo que desarticula e desfaz o

    original, revela que o original esteve desde sempre desarticulado. A

    traduo mostra que a sensao de malogro que o tradutor sente est

    no no fato de a traduo ser considerada secundria, mas sim no

    malogro original, na desarticulao que j se encon trava no original.

    Seguindo o percurso que Paul de Man faz na sua leitura do texto

    de Benjam in, destacarei dois aspectos que se revelam problemticos:

    o primeiro diz respeito impossibilidade de traduzir; o segundo est

    ligado s imagens do poeta e do tradutor.

    No seu ensaio, Paul de Man se baseia principalmente na com-

    parao de tradues para o ingls e o francs do texto em alemo de

    Benjamin na tentativa de explorar o que seria a impossibilidade de

    traduzir. Ele pretende demonstrar que o texto de Benjamin uma

    prova desta impossibilidade. No entanto, as comparaes entre as

    tradues e o original no revelam o aspecto descanonizador, pelo

    qual De Man tinha optado, do texto de Benjamin. Ao contrrio, as

    comparaes feitas servem para mostrar o aspecto sagrado, intocvel

    do original. De Man canoniza o texto de Benjamin e o coloca acima

    das investidas dos tradutores. Ora, essa atitude parece paradoxal j

    que De M an deseja ver no texto de Benjamin a tese de descanonizao

    do original.

    O segundo aspecto problemtico na leitura que De Man faz ,

    justamente, a anlise sobre o tom messinico embutido na imagem

    do poeta como figura sagrada. Para manter-se fiel sua opo, e ser

    capaz de ler em Benjamin um pensador descentralizador e dessa-

    cralizador, Paul de Man acaba por negar tanto o aspecto proftico da

    imagem do poeta quan to a idia da lngua pura. Ora, tais negaes s

    so possveis porque De Man ignora os trechos nos quais Benjamin

    se inclina para o lado teolgico (em especial, o judaico) do conceito

    de origem.

    Ainda no propsito de permanecer fiel sua prpria leitura de

    Benjamin, Paul de Man explica porque a figura do tradutor, e no a

    do poeta, escolhida por Benjamin para ser o centro do artigo. Isso

    se deveria ao fato de o tradutor ser sempre falho e de nunca poder fa-

    zer o que o original faz. Por isso, o tradutor seria sempre obrigado a

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    Dua s leituras sobre A Tarefa do Tradutor ...

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    desistir da tarefa de encon trar o que havia no o riginal ( bom lembrar

    que a palavra

    ufgabe

    pode ser lida como tarefa , mas tambm como

    desistncia ). Ainda aqui a leitura de Paul de Man parece problemti-

    ca, pois, apesar de concordar com o fato de Benjamin poupar a figura

    do poeta, mantendo-o intocado e colocando o tradutor na berlinda,

    mantm sua opo pelo aspecto revolucionrio do conceito de origem.

    Para ele, a traduo se assemelha filosofia ou histria, pois no

    imita, nem reproduz o original do qual deriva, mas o desarticula.

    A leitura que Paul de Man faz desse texto de Benjamin parece

    uma espcie de tributo ao pensador alemo, pois quer homenagear

    Benjamin enxergando nele sua prpria viso sobre traduo tra-

    duo como desconstruo de originais essencialmente incompletos12.

    O texto de Paul de Man opta pelo aspecto vangardista

    da noo de

    origem em Benjamin e procura apontar-lhe um cerne descons-

    trutivista. Porm, contraditoriamente, o percurso adotado por Paul

    de Man canoniza o original de Benjamin e desqualifica as tradues

    feitas a partir do original em alemo. Isto indica que Paul de Man

    faz, na prtica, uma leitura conservadora e, na teoria, uma leitura re-

    volucionria do texto de Walter Benjamin.

    Jacques Derrida , em Des Tours des Babel , tomando o papel

    oposto ao de Paul de Man, tenta demonstrar que no cerne do texto A

    tarefa do tradutor est o aspecto nostlgico do conceito de origem '3.

    O percurso da leitura de Derrida passa pelo mito bablico e pela no-

    o de texto potico.

    A anlise do mito bablico leva Derrida a concluir que o pecado

    dos homens pr-bablicos foi querer construir um nome humano e

    impor uma nova ordem na terra

    4

    . Derrida mostra um Deus huma-

    nizado que, ao descobrir a insubordinao dos homens, envenena o

    projeto de construo da torre, semeando confuso e impondo seu

    nome e sua ordem a palavra Babel/bavel qer dizer tanto o nome

    prprio Deus como o nome comum confuso

    5

    Ressentimento

    e cime divinos destrem a torre e a unidade lingstica dos hom ens.

    Ele ao mesmo tempo impe e probe a traduo . Esse castigo divi-

    no serve para lembrar aos homens que o pod er de construir um nom e

    e impor uma ordem exclusivamente divino. Derrida conclui sua

    leitura do mito de Babel enfatizando que no possvel se falar da

    lngua de fora dela, que no h um lugar privilegiado de onde se pos-

    sa falar. Por isso, imprescindvel que ocorra confuses bablicas

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    na traduo, pois, necessria aps Babel, a traduo , ao mesmo

    tempo, possvel e impossvel.

    Aps a leitura do mito de Babel, Derrida admite que deveria co-

    mentar, no o texto A Tarefa do Tradutor , mas outro ensaio de

    Benjamin chamado Sobre a Lngua em Geral e Sobre a Lngua do

    Homem , de 1916, pois nesse texto Benjamin faz uma extensa

    referncia ao mito de Babel e uma teoria do nom e prprio. curioso

    que Derrida no ouse enfrentar a leitura que Benjamin faz do mito

    bablico. Talvez Derrida incorpore mais da leitura de Benjamin do

    que pode admitir. Porm essa uma questo para ser desenvolvida

    em outra ocasio.

    Para Derrida, no existe traduo no sentido de resgate, ela ser

    sempre um suplemento, um acrscimo que nunca complementar o

    original, posto que irremediavelmente incompleto. Da estarem

    traduo e original sempre ligados por uma dvida mtua. At aqui

    Derrida poderia estar repetindo a contraditria noo de origem de

    Benjamin. No entanto, podem-se vislumb rar algumas diferenas. No

    momento em que Derrida revela a base escolstico-fenomenolgica

    que sustenta a viso que Benjamin tem sobre o texto potico, percebe-

    se que D errida opta por privilegiar o carter nostlgico e conservador

    da noo de origem de Ben jamin. Derrida estabelece ligaes entre a

    lei divina, que probe os homens de se dar um nom e, a lei de Benjamin,

    que probe o tradutor de fazer o que fez o autor do original, e a lei do

    copyright, que probe que se faam cpias de um texto legalizado

    como original.

    Ao escolher o aspecto nostlgico da noo de origem em Benja-

    min, Derrida se ope diretamente leitura de Paul de Man. Para

    Derrida, Benjamin vo texto potico como algo intocvel, como um

    simulacro de uma verdade im utvel. Sendo assim, Benjamin no pode

    ser lido como um dessacralizador ou descentralizador de originais.

    O percurso que Derrida faz para ler Benjamin destruidor e revolu-

    cionrio, ao contrrio daquele percorrido por Paul de Man. Derrida

    comea desconstruindo o mito de Babel e humanizando Deus e vai

    terminar por desconstruir o misticismo embutido na noo de origem

    de Benjam in. Derrida parece desejar, revolucionariamente, tomar ele

    prprio o lugar divino de desconstrutor, quer seja do mito de Babel,

    quer seja do mito de Benjamin. Concluindo, Derrida e De Man passam

    pelo mesm o ritual de iniciao ao com entar o texto clssico de B enja-

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    min, mas enquanto Paul de M an se submete ao m essianismo do texto

    sagrado, Derrida rebela-se e tenta fazer sua prpria escritura.

    OT S

    W. Benjamin, The Task of the Translator ,

    Illuminations,

    (ed. Hannah Arendt,

    trad. Harry Zohn), N. Y.: Shocken Books, 1978. Citaes traduzidas por mim.

    J.

    M. Gagnebin, Notas sobre as Noes de Origem e Original em Walter

    Benjamin , 34 Letras, 516, setembro, 1989, p. 285.

    Gagnebin, op. cit., 287.

    Gagnenbin, op. cit., p. 288.

    W. Benjamin,

    Origem do Drama Barroco Alemo,

    (trad. Srgio Paulo

    Rouanet), So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 68.

    Gagnebin, Op, cit., p 112.

    Benjamin, The Task of the Translator , p. 80.

    Kothe,

    Para Ler Benjamin,

    Rio: Francisco Alves, 1976. p. 63.

    De Man, Sobre 'A Tarefa do Tradutor'de W alter Benjamin ,

    A Resistncia

    Teoria,

    Lisboa: Edices 70, 1979.

    De Man, op. cit., p. 112.

    De Man, op. cit., p. 113.

    Ver Shoshana Felman, Paul de Man 's Silence ,

    Critical Inquirer,

    University

    of Chicago Press, 15, pp. 704 - 44.

    Derrida, Des Tours de Babel ,in J. Graham(ed.)

    Difference in Translation,

    Ithaca: Cometi University Press, 1985.

    Derrida, op.cit., p. 169.

    Derrida, op. cit., p. 172.

    Derrida, op. cit., p. 170.