Dialogismo e Polifonia

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    DILOGO INCONCLUSO:OS CONCEITOS DE DIALOGISMO E POLIFONIA

    NA OBRA DE MIKHAIL BAKHTIN

    Patrcia Marcuzzo*

    RESUMO: Dialogismo e polifonia so dois conceitos importantes na obra de Bakhtin acerca dos quais a

    crtica atual tem debatido com frequncia (ver, por exemplo, os trabalhos de BRAIT, 1996, FARACO,1996, BARROS, 2003 e BEZERRA, 2008). No entanto, muitas vezes, eles so utilizados como sinnimos

    em alguns trabalhos (BARROS, 2003, p. 5; EMERSON, 2003, p. 164). Portanto, o objetivo do presente

    artigo discutir os conceitos de dialogismo e polifonia a partir de uma reviso da literatura, buscando

    definir e distinguir tais conceitos.

    PALAVRAS-CHAVE:DialogismoPolifoniaBakhtin

    ABSTRACT:Dialogism and polyphony are two important concepts in Bakhtins workwhich have been

    often discussed by the critics (see, for example, BRAIT, 1996, FARACO, 1996, BARROS, 2003 and

    BEZERRA, 2008). However, they are frequently adopted as synonyms in some works (BARROS, 2003, p.

    5; EMERSON, 2003, p. 164). Thus, the objective of the present paper is to discuss the concepts of

    dialogism and polyphony based on a review of literature, aiming at defining and distinguishing these

    concepts.

    KEY-WORDS:DialogismPolyphonyBakhtin

    CONTEXTUALIZAO

    Em Problemas da potica de Dostoivski, Mikhail Mikhailovich Bakhtin fazuma observao original obra do grande romancista russo. Contrapondo-se aoscrticos anteriores do autor, Bakhtin destaca que Dostoivski reencena, na obra literria,aquilo que seria a prpria essncia da linguagem: o dialogismo. Alm disso, segundoBakhtin, nenhum desses crticos teria sido capaz de enxergar, na obra do romancista,aquilo que realmente poderia distingui-la e que seria a sua grande contribuio para aarte do romance e para a teoria da linguagem: a polifonia, nome que Bakhtin toma

    emprestado da Msica para nomear a inovao na relao autor/heri presente na obrade Dostoivski (FARACO, 2008, p. 48).

    Portanto, essas duas inovaes a palavra dialgica no interior de um desenhopolifnico (dialogismo) e o heri plenivalente (polifonia) constituem o ncleo tericoda obra Problemas da potica de Dostoivski (EMERSON, 2003, p. 162) e seconfiguram em dois conceitos-chave importantes na obra de Bakhtin acerca dos quais acrtica atual tem debatido com frequncia (ver os trabalhos de BRAIT, 1996; FARACO,1996; BARROS, 2003; BEZERRA, 2008, para citar alguns exemplos).

    * Mestre e doutoranda em Letras-Estudos Lingusticos/Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),

    [email protected]. Agradeo a leitura dos pareceristas da revista Cadernos do IL.

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    MARCUZZO, Patrcia. Dilogo inconcluso: os conceitos de dialogismo e polifonia na obra de Mikhail Bakhtin.

    Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 36, junho de 2008. Disponvel em: http://www.seer.ufrgs.br/cadernosdoil/. 3

    Tendo em vista que, muitas vezes, polifonia e dialogismo so utilizados comosinnimos, conforme destacam Barros (2003, p. 5) e Emerson (2003, p. 164), discuto,no presente artigo, esses dois conceitos a partir de uma reviso da literatura. O objetivo

    tentar mostrar pontos de contato entre esses dois conceitos para, ento, distingui-los.Este artigo est dividido em quatro sees, alm desta Contextualizao. Inicialmente,abordo o conceito de dialogismo e, em seguida, o conceito de polifonia. Posteriormente,busco distinguir esses dois conceitos. Por fim, apresento breves consideraes finais guisa de fechamento deste trabalho.

    BAKHTIN E O DIALOGISMO

    O conceito de dialogismo fundamental para se compreender a obra de Bakhtinporque permeia a sua concepo de linguagem e, quem sabe, mais do que isso, sua

    concepo de mundo, de vida (BARROS, 2003, p. 2). No entanto, antes de conceituardialogismo na obra de Bakhtin, importante entender o conceito de discurso na obra dofilsofo russo, tendo em vista que esses dois conceitos esto intrinsecamenterelacionados. Para Bakhtin, discurso

    a lngua em sua integridade concreta e viva e no a lngua como objetoespecfico da lingustica, obtido por meio de uma abstrao absolutamentenecessria de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas so

    justamente esses aspectos, abstrados pela lingustica, os que tm importnciaprimordial para nossos fins. (BAKHTIN, 2008, p. 207)

    Nesse trecho, Bakhtin apresenta a sua concepo de discurso, ou seja, alinguagem em ao e tambm faz uma crtica a Saussure, o qual entendia a lnguacomo um sistema de formas, estvel e imutvel, abstrado das relaes sociais(BAKHTIN, 1986, p. 85). Para Bakhtin, a verdadeira substncia da lngua constituda

    justamente nas relaes sociais, via interao verbal, realizada por meio da enunciaoou das enunciaes (ibid., p. 123). A partir disso, o discurso (a lngua em suaintegridade concreta e viva) no individual porque se constri entre, pelo menos, doisinterlocutores que, por sua vez, so seres sociais; e se constri como um dilogo entrediscursos, ou seja, mantm relaes com outros discursos que o precederam(BARROS, 1996, p. 33). aqui que entra o dialogismo, entendido como a condio dosentido do discurso (BARROS, 2003, p. 2).

    No entanto, importante ressaltar que o conceito de dialogismo em Bakhtin noest atrelado ideia de um dilogo face a face entre interlocutores, mas sim entrediscursos, j que o interlocutor s existe enquanto discurso (FIORIN, 2006, p. 166 ).Fiorin acrescenta tambm que por isso todo enunciado possui uma dimenso dupla,pois revela duas posies: a sua e a do outro (ibid., p. 170).

    Alm disso, importante destacar que o termo dilogo/dialogismo utilizado detrs modos diferentes na obra de Bakhtin, conforme afirmam Morson e Emerson (2008),o que pode causar certa confuso para quem procura compreend-los. Por isso, a seguir,destaco essas trs diferentes acepes antes de definir dialogismo e monologismo.

    O termo dilogo/dialogismo utilizado em Bakhtin

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    como uma descrio da linguagem que torna todos os enunciados, pordefinio, dialgicos; como termo para um tipo especfico de enunciado,oposto a outros enunciados, monolgicos; e como uma viso do mundo e daverdade (seu conceito global). (ibid., p. 506)

    Embora o termo dilogo/dialogismo receba acepes diferentes na obra dofilsofo russo, dependendo do contexto em que empregado, este tem uma relao deunidade na medida em que engloba a ideia de Bakhtin sobre linguagem e, mais do queisso, homem e vida (BARROS, 1996, p. 26). O carter dialgico o fato unificador detodas as atividades linguageiras (FARACO, 1996, p. 122). Alm disso, esse conceitodefine o ser humano, pois o outro imprescindvel para sua concepo: impossvelpensar no homem fora das relaes que o ligam ao outro (ibid., p. 122). Assim, paraBakhtin, a alteridade a condio da identidade: os outros constituem dialogicamente oeu que se transforma dialogicamente num outro de novos eus (ibid., p. 125), no sentidode que uma pessoa deve passar pela conscincia do outro para se constituir (id., 2008, p.43). No entanto, neste trabalho, procuro enfatizar a segunda acepo apontada porMorson e Emerson (2008) as formas de discurso dialgicas e monolgicas , tendoem vista que esse o vis do campo de estudos lingusticos.

    guisa de definio, o monologismo se refere a um discurso nico, definitivo euniforme. O monologismo no deixa revelar os outros discursos que permeiam a prticadiscursiva. Na anlise de Bakhtin sobre os romances, aqueles considerados monolgicosapresentam uma nica voz, a do prprio autor do romance. No universo monolgico, aspersonagens no tm mais nada a dizer, pois j disseram tudo, e o autor, de sua posiodistanciada e com seu excedente de viso, j disse a ltima palavra por elas e por si(BEZERRA, 2008, p. 192). Desse modo, nas obras monolgicas, o poder direto designificar pertence exclusivamente ao autor (MORSON; EMERSON, 2008, p. 255).Assim, essas obras

    podem transmitir a posio do autor de vrias maneiras. s vezes uma dadapersonagem pode express-la; outras vezes a verdade do autor podedispersar-se por uma variedade de personagens. Em algumas obras, ela podeno receber expresso direta ou explcita; no obstante, a verdade do autorpermeia toda a estrutura da obra, que no pode ser compreendida sem ela(ibid., p. 254).

    J o dialogismo explicado por Bakhtin a partir da anlise dos romances deDostoivski. Nesses romances, no h o apagamento de vozes em detrimento da vozautoritria do autor. Como afirma Bakhtin:

    Assim, pois, nas obras de Dostoivski no h um discurso definitivo,concludo, determinante de uma vez por todas. (...) A palavra do heri e apalavra sobre o heri so determinadas pela atitude dialgica aberta face a simesmo e ao outro. (...) No mundo de Dostoivski no h discurso slido,morto, acabado, sem resposta, que j pronunciou sua ltima palavra(BAKHTIN, 2008, p. 291-292).

    Desse modo, as obras do romancista russo so dialgicas, na medida em queresultam do embate de muitas vozes sociais (BARROS, 2003, p. 5-6). Conformedestaca Faraco (1996, p. 124), essas vozes so manifestaes discursivas semprerelacionadas a um tipo de atividade humana e sempre axiologicamente orientadas

    apresentam uma atitude valorativa dos participantes do acontecimento a respeito do que

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    ocorre em relao ao objeto do enunciado, em relao aos outros enunciados, emrelao aos interlocutores (RODRIGUES, 2005, p. 161).

    Bakhtin destaca que essas relaes dialgicas entre discursos

    no so lingusticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas nametalingustica, subentendo-a como um estudo ainda no-constitudo emdisciplinas particulares definidasdaqueles aspectos da vida do discurso queultrapassamde modo absolutamente legtimoos limites da lingustica. Aspesquisas metalingusticas, evidentemente, no podem ignorar a lingustica edevem aplicar os seus resultados. A lingustica e a metalingustica estudamum mesmo fenmeno concreto, muito complexo e multifactico o discurso,mas estudam sob diferentes aspectos e diferentes ngulos de viso. Devemcompletar-se mutuamente e no fundir-se. (BAKHTIN, 2008, p. 207)

    Para Bakhtin, as anlises dialgicas no so lingusticas no sentido rigoroso dotermo porque a Lingustica se dedica ao estudo da linguagem propriamente dita, com

    sua lgica especfica na sua generalidade, como algo que torna possvel a comunicaodialgica (BAKHTIN, 2008, p. 209). De acordo com o filsofo russo, na lngua vistacomo objeto da Lingustica a partir da perspectiva saussuriana, no h e nem pode haverquaisquer relaes dialgicas, pois elas so consideradas

    impossveis entre os elementos no sistema da lngua (entre os morfemas, aspalavras, as oraes, etc.), entre os elementos da lngua no texto e mesmoentre os elementos do texto e os textos no seu enfoque rigorosamentelingustico. (RODRIGUES, 2005, p. 156)

    Para o estudo das relaes dialgicas, Bakhtin prope ento a Metalingustica,uma nova cincia criada pelo filsofo para dar conta da anlise dessas relaes. No

    entanto, conforme afirma Brait (2006, p. 58), embora oferea uma tica diferenciada,Bakhtin no exclui a Lingustica na anlise dessas relaes. Ao contrrio, Bakhtinrecomenda aplicar os seus resultados (ibid., p. 58). A Lingustica se encarregaria defazer uma anlise interna, ou seja, da lngua, enquanto a Metalingustica se encarregariade fazer uma anlise externa, j que as relaes dialgicas so entendidas por Bakhtincomo extralingusticas. Conforme explica Brait (ibid., p. 58):

    O trabalho metodolgico, analtico e interpretativo com textos/discursos sed, como se pode observar nessa proposta de criao de uma nova disciplina,ou conjunto de disciplinas, herdando da lingustica a possibilidade deesmiuar campos semnticos, descrever e analisar micro e macro

    organizaes sintticas, reconhecer, recuperar e interpretar marcas earticulaes enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indiciam suaheterogeneidade constitutiva assim como a dos sujeitos a instalados. A partirdo dilogo com o objeto de anlise, chegar ao inusitado se sua forma de serdiscursivamente, sua maneira de participar ativamente de esferas deproduo, circulao e recepo, encontrando sua identidade nas relaesdialgicas estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos.

    Desse modo, conforme afirma Faraco (1996, p. 121), Bakhtin o primeiropensador contemporneo a tratar e analisar a linguagem sem a necessidade de divorci-la da materialidade da vida social. Isso possvel a partir das concepes de Bakhtinacerca do discurso e, principalmente, do dialogismo.

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    Na prxima seo, discuto o conceito de polifonia. Para tanto, tento recuperar ocaminho analtico percorrido pelo filsofo russo, apresentando as anlises por elerealizadas dos romances de Dostoivski.

    BAKHTIN E A POLIFONIA

    A inovao na relao entre autor e heri, Bakhtin denominou,experimentalmente, de polifoniaque, segundo Faraco (2008, p. 48), certamente umdos temas mais difceis do seu pensamento. A ideia de polifonia foi to radical paraBakhtin que foi responsvel por causar uma verdadeira mudana de paradigma nahistria do romance (EMERSON, 2003, p. 161).

    Para chegar ao conceito de polifonia, Bakhtin analisa desde a primeira obra deDostoivski Gente Pobreat seu ltimo romanceOs Irmos Karamazov. Bakthindestaca que, desde Gente Pobre, percebe-se a representao do discurso do outro na

    forma de sua antecipao no monlogo de um dos personagens (BAKHTIN, 2008, p.235). Em O Duplo, obra que Bakhtin comenta depois de Gente Pobre, h um dilogointerior de um personagem cindido em trs vozes dissonantes. Conforme analisa ofilsofo russo:

    Usando a nossa imagem, podemos dizer que isso ainda no polifonia, mastambm j no homofonia. A mesma palavra, a mesma ideia e o mesmofenmeno j so aplicados por trs vozes e em cada uma soam de mododiferente. (ibid., p. 253)

    No entanto, Bakhtin destaca que essas vozes ainda no teriam se tornado

    plenamente autnomas, vozes reais, trs conscincias com plenos direitos (ibid., p.254).J emMemrias do Subsolo, a palavra do outro comea a tomar outra estatura.

    Ainda que a obra tenha sido composta na forma de uma confisso do personagemprincipal, em todo momento, percebe-se, segundo Bakhtin, a presena angustiante dooutro. Assim, o discurso eminentemente dialgico:

    (...) todo o estilo da novela se encontra sob a influncia fortssima e todo-determinante da palavra do outro, que atua veladamente sobre o discurso dedentro para fora, como no incio da novela, ou, enquanto rplica antecipadado outro, introduz-se-lhe diretamente no tecido (...). Na novela no h uma spalavra que se baste a si mesma e ao seu objeto, ou seja, nenhum discurso

    monolgico. (ibid., p. 265)

    O monlogo do homem do subsolo sempre voltado para o outro. Por meiodo uso da antecipao da rplica dos outros, essa personagem mantm sempre a ltimapalavra para si, simulando uma autonomia em relao ao outro que, na verdade, elanunca consegue atingir. Como afirma Bakhtin (ibid., p. 266), graas a essa relao coma conscincia do outro se obtm um original perpetuum mobile da polmica do hericom o outro e consigo mesmo.... Nesse sentido, a obra poderia continuarindefinidamente.

    O objetivo da confisso do homem do subsolo libertar-se do poder exercidopelo outro sobre si mesmo, a fim de alcanar o caminho para si mesmo (ibid., p. 268).

    Contudo, no uso da evasiva, artifcio empregado pelo heri para manter a possibilidade

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    de mudana do sentido ltimo de seu discurso, percebe-se, segundo Bakhtin, a contnuadependncia do heri em relao ao olhar do outro (ibid., p. 268-269). O discurso dohomem do subsolo, em virtude dessa sua dependncia em relao ao outro,

    integralmente um discurso-apelo, uma vez que, para ele, falar apelar para algum

    (ibid., p. 274). Como afirma Bakhtin:

    O momento de apelo inerente a todo discurso em Dostoivski, ao discursoda narrao no mesmo grau que ao discurso do heri. No mundo deDostoivski no h, de um modo geral, nada de concreto, no h objetos,referentes, h apenas sujeitos. Por isso, (...) h apenas o discurso-apelo, odiscurso que contata dialogicamente com outro discurso, o discurso sobre odiscurso, voltado para o discurso. (ibid., p. 274)

    Do mesmo modo que o homem do subsolo, Rasklnikov, personagem

    principal da obra Crime e Castigo, de Dostoivski, tambm realizaria um discurso-apelo. No entanto, nos romances do escritor russo, segundo Bakhtin, percebe-se,

    diferena das obras anteriores, uma dialogao interior mais viva e refinada (ibid., p.275).

    Como caracterstica do discurso interior de Rasklnikov, cada personagem seriaenglobada por ele no como um carter ou tipo, mas como smbolo de alguma diretrizideolgica. Assim, seu discurso interior se desenvolveria como uma espcie de dramafilosfico (ibid., p. 276).

    Uma vez que, nos romances de Dostoivski, h vrias vozes em conflito, surgecomo tarefa de suas personagens romanescas encontrar sua voz e orient-la entreoutras vozes, combin-la com umas, contrap-la a outra ou separar a sua voz da outra qual se funde imperceptivelmente (ibid., p. 277). Isso o que determinaria o discursodo heri nos romances dostoivskianos.

    Desse modo, Dostoivski chega polifonia. Para o filsofo russo, nas obras deDostoivski,

    a voz do heri sobre si mesmo e o mundo to plena como a palavra [...] doautor; no est subordinada imagem objetificada do heri como uma desuas caractersticas mas tampouco serve de intrprete da voz do autor. Elapossui independncia excepcional na estrutura da obra, como se soasse aolado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com asvozes plenivalentes de outros heris. (BAKHTIN, 2008, p. 5)

    A partir da inovao autor/heri, a polifonia pode ser entendida como a

    multiplicidade de vozes equipolentes, as quais expressam diferentes pontos de vistaacerca de um mesmo assunto (ibid., p. 4 e 38-9). Elas so equipolentes na medida emque mantm com as outras vozes do discurso uma relao de absoluta igualdade comoparticipantes de um grande dilogo inconcluso (id., 2003, p. 348). Essas vozesrepresentam uma multiplicidade de conscincias e seus mundos que se combinam numaunidade de acontecimento (id., 2008, p. 5) e no so apenas objetos do discurso deautor, so tambm sujeitos de seus prprios discursos (BEZERRA, 2008, p. 195).Assim, a essncia da polifonia consiste

    no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais,combinam-se numa unidade de ordem superior homofonia. E se falarmosde vontade individual, ento precisamente na polifonia que ocorre a

    combinao de vrias vontades individuais, realiza-se a sada de princpio

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    para alm dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontadeartstica da polifonia a vontade de combinao de muitas vontades, avontade do acontecimento (BAKHTIN, 2008, p. 23).

    Nas obras polifnicas, o autor continua presente, mas atua como

    o regente do grande coro de vozes que participam do processo dialgico. Masesse regente dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ourecria, mas deixa que se manifestem com autonomia. (BEZERRA, 2005, p.194)

    A presena de uma multiplicidade de vozes, no romance e nos textos em geral,tem a funo de marcar diferentes pontos de vista acerca de um determinado assunto.No entanto, Bakhtin no prope uma metodologia de anlise das estratgias de polifoniautilizadas nos textos, tendo em vista que esse no era seu objetivo. Mais do que isso,conforme afirma Faraco (2008, p. 49), a polifonia no recebeu um acabamento

    conceitual, de modo que o termo vale hoje mais pela seduo derivada de livresassociaes do que como categoria coerente de um certo arcabouo terico. Portanto,conforme destaca Barros (1996, p. 37), cabe aos estudiosos do texto examinar as

    estratgias, os procedimentos, os recursos que fazem de um texto dialogicamenteconstitudo por discursos monofnicos oupolifnicos.

    De fato, alguns estudiosos da linguagem tm se dedicado aos estudos dosdiscursos monofnicos e polifnicos, dentre os quais se destacam os trabalhos de J.Authier-Revuz, D. Maingueneau e O. Ducrot. No entanto, para Barros (ibid., p. 38),foram sem dvida os estudos de Ducrot que introduziram, de modo efetivo esistemtico, as reflexes de Bakhtin sobre dialogismo e polifonia nas reflexeslingusticas atuais.

    Na prxima seo deste texto, tento distinguir dialogismo e polifonia,destacando pontos de contato entre esses dois conceitos para ento distingui-los.

    DIALOGISMO VERSUS POLIFONIA

    Dialogia foi o termo que Bakhtin mais usou para descrever a vida do mundo daproduo e das trocas simblicas, composto por um universo de signos (RONCARI,2003, p. X). O termo dialogismo se refere, conforme explorado ao longo desse trabalho,ao princpio constitutivo da linguagem e de todo discurso, enquanto que a polifonia

    pode ser entendida como uma estratgia discursiva acionada na construo de um texto(BARROS, 2003, p. 5-6).

    Nos textos polifnicos, as vozes se mostram; nos textos monofnicos, elas seocultam sob a aparncia de uma nica voz (ibid., p. 6). Assim, o termo polifnico empregado para caracterizar certo tipo de texto, aquele em que se deixam entrevermuitas vozes, por oposio aos textos monofnicos, que escondem os dilogos que osconstituem (ibid., p. 6). Para produzir um efeito de polifonia,

    o autor projeta o discurso em primeira pessoa, isto , o sujeito da enunciaoatribui a palavra e o saber a um narrador, mas ao mesmo tempo em que fazessa delegao, o sujeito da enunciao, por meio de outra ou de outrasvozes, desqualifica o narrador como sujeito do saber, mais precisamente, do

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    saber interpretar. No h, dessa forma, no discurso, uma voz confivel que

    possa interpretar e resolver a ambiguidade narrativa. (id.,1996, p. 40)

    Portanto, os textos so dialgicos porque resultam do embate de muitas vozes

    sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes oualgumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o dilogo mascarado, euma voz, apenas, faz-se ouvir (id., 2003, p. 6).

    CONSIDERAES FINAIS

    Neste trabalho, tentei conceituar e distinguir dialogismo e polifonia, doisconceitos-chave na obra de Bakhtin e fundamentais para o campo de estudos dalinguagem, os quais, muitas vezes, so utilizados como sinnimos. O dialogismo defineas relaes linguageiras, as prticas discursivas e, mais do que isso, a viso de mundo

    de Bakhtin. J a polifonia se refere multiplicidade de vozes em um texto, seja eleliterrio ou no. A polifonia pressupe uma multiplicidade de mundos, ou seja, vriossistemas de referncia, vozes plenivalentes e pontos de vista ideolgicos acerca domundo (BAKHTIN, 2008, p. 38-39).

    Assim, de fato, esses dois conceitos so diferentes na obra de Bakhtin, conformeapontado ao longo deste texto. Dialogismo se refere ao princpio constitutivo dalinguagem, enquanto a polifonia uma estratgia discursiva, conforme destaca Barros(2003). O dialogismo resultante de um embate de vozes, enquanto a polifonia ameno a essas vozes em um texto. Assim, todo texto , por essncia, dialgico, masnem todo texto polifnico.

    Pode-se apontar, pelo menos, duas razes para uma certa confuso em torno

    desses conceitos: 1) as trs diferentes acepes que Bakhtin apresenta para o conceitode dialogismo e 2) as relaes muito prximas entre os conceitos. Desse modo, cabe aosestudiosos da linguagem examinar os recursos e as estratgias que tornam um textodialgico e/ou polifnico.

    REFERNCIAS

    BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemasfundamentais do mtodo sociolgico na cincia da linguagem. Traduo Michel Lahude Yara Frateschi Vieira, com a colaborao de Lucia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique

    D. Chagas Cruz. 3 ed. So Paulo: Hucitec, 1986.BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Problemas da potica de Dostoivski. TraduoPaulo Bezerra. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2008.BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuies de Bakhtin s teorias do texto e dodiscurso. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristovo; CASTRO, Gilberto (Orgs.)

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