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Dicionário Bíblico: um manuscrito de António Pereira de Figueiredo: no centenárioda morte do autor

Autor(es): Carreira, José Nunes

Publicado por: Instituto Oriental da Universidade de Lisboa

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Universidade de Lisboa

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DICIONÁRIO BÍBLICOUM MANUSCRITO DE ANTÓNIO PEREIRA DE FIGUEIREDO No centenário da morte do autor

A segunda metade do século XVII viu aparecer dois grandes dicio- nários temáticos, 0 Grand Dictionnaire Historique, de L. Moreri (1674) e0 Dictionnaire Historique et Critique, de P. Bayle (1697). E em breve se alargariam perpectivas e horizontes: a ânsia iluminista de saber, e saber pelos méritos e capacidades da razão, deu no século seguinte, 0 das Luzes, a Cyclopaedia, or an Universal Dictionnary of Art and Sciences (1728) e a famosa Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (tomo I, Paris 1751), dirigido, como se sabe, por Diderot e d’Alembert: para não falar na Encyclopaedia Britannica (1768 ss). Teologia e Ciências Bíblicas não foram imunes ao movimento intelectual e editorial. Surgiu um Dictionnaire de Théologie, cuja versão italiana deu azo a um panfleto de Luís António Verney acusando 0 tradutor de igno- rante e plagiário(1). E já em 1731 um luterano convertido, Paulo Merz, dera à estampa 0 primeiro dicionário bíblico.

A voga dos dicionários contagiou mais de um erudito no Portugal de Setecentos. Não foi só 0 famoso Vocabulário Português e Latino, em 8 volumes, de Rafael Bluteau, com Suplemento do mesmo em dois volumes. Produziram-se, pelo menos, dois dicionários bíblicos - 0 de Francisco de Jesus Maria Sarmento, com 0 título de Tesouro bíblico ou Dicionário histórico, etimológico e bibliográfico da Sagrada Escritura, Lisboa 1785, e 0 manuscrito inédito de António Pereira de Figueiredo Dicionário histórico, teológico, etimológico e crítico (Anexo à Bíblia Sa- grada, traduzida da Vulgata ou versão latina).

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NOTAS E COMENTÁRIOS

O oratoriano da confiança do Marquês de Pombal, depois de aban- donar a Ordem (1769) oficial maior das línguas na Secretaria dos Negó- cios Estrangeiros e da Guerra e membro da Academia Real das Ciências desde 1779, era senhor de invulgar inteligência e cultura. Foi teólogo, latinista, polemista, compositor, historiador e sobretudo incansável tradu- tor da Bíblia latina (Vulgata) para português. Tanto mais estranha que, no Catálogo das obras impressas e manuscritas publicado três escassos anos após a sua morte (1797) se omita completamente esta faceta, a que lhe grangearia maior divulgação nos séculos seguintes. Talvez por se lhe escapar ou se apagar na avalanche de tão rica e variada produção - «as imensas produções deste Génio vasto» no dizer do autor(2).

Em capítulos separados lá vêm:- Obras de Gramática Latina e Latinidade, algumas com três, sete e

dez edições (10 impressas; 3 manuscritas).- Obras de Rethorica, Eloquência e Linguagem Nacional (17 impres-

sas; 3 manuscritas).- Epigramas e inscrições (20 impressas).- Obras de História (13 impressas; 29 manuscritas, entre estas dois

catálogos das obras do próprio).- Obras de Teologia e várias matérias Eclesiásticas (18 impressas,

algumas delas traduzidas noutras línguas; 9 manuscritas).- Traduções de Português para Latim (10 impressas).- Obras de Música (26).De temática bíblica, obviamente entre as obras de Teologia, meneio-

nam-se Os Livros Apócrifos da Escritura Sagrada, traduzidos e Ilustrados e ainda um Index ou Lexicon Bíblico. Reza 0 Catálogo: «Esta Obra, que Pereira prometeu na Advertência que se acha no fim do Tomo XVII do Testamento Velho, está completa em poder de Jorge Bertrand, e se há de imprimir como fazendo parte, e continuação da mesma tradução do Testamento Velho.»(3)

A expectativa gorou-se até hoje, pois não consta que 0 Lexicon tenha visto alguma vez a luz da estampa, nem onde teria ido parar 0 manu- scrito. Na biblioteca da Academia das Ciências não se encontra(4). Mas, na Primavera de 1978, o Dr. José Luís Aparicio adquiriu uma cópia do manuscrito num leilão do Porto por 1500$00. Um cólofon a lápis reza: «Acabado em 924; 11 mãos de papel a 1900 = 20900.»

Não há tempo de esmiuçar uma obra de 542 fólios, repartidos em dois grossos volumes (I: A-l 256 folhas; II: J-Z 286 folhas), e que se espraia

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NOTAS E COMENTÁRIOS

por história, teologia, etimologia, crítica e moral. Apraz-me tão só fazer a apresentação global e algumas observações sobre 0 primeiro qualificativo- «histórico» - do Dicionário da Bíblia Sagrada.

Se não errei na contagem, são duas mil e setenta e nove entradas, assim distribuídas:

A = 395; B = 119; C = 119; D = 69; E = 154; F = 24; G = 90; H = 105;I = 34; J = 138; L = 89; Μ = 284; N = 88; O = 26; P = 83; Q = 2; R = 31 ; S = 139; T = 66; U = 5; V = 11; X = 3; Z = 15.

I

Para Antonio Pereira de Figueiredo como para qualquer autor de um Dicionário Bíblico moderno história é, antes de mais, história bíblica. Mas, então com agora, esta implica a história profana e universal em que se enquadra. A Bíblia, tanto 0 Antigo como 0 Novo Testamento, nasceu num processo histórico longo e doloroso. O próprio «credo» é histórico tanto para Judeus como para Cristãos. Confessam os primeiros: «Meu pai era um arameu errante» (Dt 26,5); contrapõem os últimos: «Creio em Jesus Cristo... (que) padeceu sob Pôncio Pilatos», 0 procurador romano da Judeia entre 26 e 36. História do Antigo Testamento é inseparável da grande história mundial que se desenrolou no Próximo Oriente entre 1500 a. C. e 0 advento do Cristianismo: Abraão insere-se nas migrações aramaicas que varreram a Ásia Anterior nos últimos séculos do 2o milénio pré-cristão. Moisés liga-se a Ramsés II e às suas construções no Delta (Ex 1,11). Roboão assiste impotente à passagem e pilhagem do faraó Sheshonq (1 Re 14,25: 925 a. C.), numa Judá fragilizada pela separa- ção e rivalidade do Reino do Norte. O reino separado de Israel é pisado, esquartejado e finalmente arrasado e engolido pelos Assírios (2 Re 17,1-6: conquista de Samaria por Salmanassar V, em 722 a. C.). Judá, após humilhante sujeição a Assírios e Neobabilónios, sucumbe na vora- gern expansionista de Nabucodonosor II (queda de Jerusalém em 587/6 a. C.). O fundador do império persa, Ciro, mal entrado em Babilónia (539) concede aos exilados judeus que regressem à pátria e até subsidia a reconstrução do templo de Jerusalém (santuário de um Deus estranho numa remota e ignota província). As últimas veleidades de independên- cia política dos Judeus palestinenses esbracejaram entre as lutas de Ptolemeus e Selêucidas pelo domínio da Siria-Palestina.

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O Novo Testamento nasce sob o signo de Roma no apogeu da expan- são imperial. Dois dos seus imperadores entram mesmo no evangelho de Lucas (2,1 : Augusto; 3,1 : Tibério). Pôncio Pilatos, autoridade romana, tem presença marcante nos quatro relatos evangélicos da Paixão.

Figueiredo não 0 ignora e faz desfilar no Dicionário os grandes nomes da História Antiga. O relevo depende naturalmente das conotações bíbli- cas. Compare-se 0 tratamento dado a Ramsés (II) com 0 que merece Nabucodonosor. O Egípcio contenta-se com quatro linhas escassas: «Rei do Egypto, 0 qual, pouco antes da saída dos Israelitas, poz 0 seu nome a uma das cidades que obrigou aqueles a edificar (Ex I v. 11).» A informação sobre Nabucodonosor (II) espraia-se por oito páginas, reple- tas quase exclusivamente de história bíblica. Contenção e reserva marca os imperadores assírios: 7 linhas para Salmanassar (V), 16 para Sena- querib, 8 para Assarhaddon. O neobabilónio Nabopolassar, «pai do grande Nabucodonosor», ocupa somente 10 linhas e 0 persa Dario não vai além das 29. Até Alexandre Magno se tem de contentar com 13 linhas, ocu- padas na sua maior parte com as «profecias de Daniel», onde apareceria «sob a figura de um leopardo que tem quatro azas, por causa da sua força e da rapidez das suas conquistas; e sob a figura de um bode que corre por toda a parte com tanta ligeireza e tão subtil que parece não tocar com os pés na terra.» Mas termina com uma visão mais histórica que proféti- ca: «Deus 0 havia destinado para destruir a monarquia dos persas no Oriente e para estabelecer a dos Gregos.» Sucinto é 0 tratamento de Augusto (6 linhas), «sucessor de Júlio César», «que decretou 0 recensea- mento em consequência do qual S. José e a Sagrada Familia foram obri- gados a fugir para Bethlem, onde nasceu Jesu-Chrísto». Já 0 simpático Ciro, «fundador do império dos Persas e destruidor dos Chaldeus, (que) é bastante conhecido da história profana» merece duas boas páginas.

Nem sequer é necessário inferir a sujeição aos dados bíblicos no tratamento das grandes figuras da história profana. O autor enuncia claramente 0 seu critério. Em Ciro: «Não trataremos aqui senão com referência à história sagrada». Quanto a Dario: «Tem havido muitos príncipes deste nome. Referir-nos-hemos somente àquele de que fala a Escriptura». E logo aceita de mão beijada as confusões e erros históricos do Livro de Daniel, que faz entrar em cena um misterioso «Dario, 0 Medo» (Dan 6,1), anterior a Ciro (6,28), mas «filho de Xerxes, da linhagem dos Medos» (9,1). Os historiadores desconhecem tal personagem e os exe- getas carregam nela uma crux interpretum. Para Figueiredo não há pro-

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blema: «Darío, o Medo, é 0 mesmo que Cyaxara, filho de Astiago, 0 tio de Cyro». E acrescenta dados cronológicos e mais confusão com 0 Dario histórico (522-486), que organizou 0 império em satrapias: «Este príncipe (Dario, 0 Medo), tendo subido ao trono de Babilonia, no ano de 3442 do mundo (para Figueiredo = 562 a. C.), nomeou cento e vinte satrapias para governarem as diferentes provincias dos seus estados.» Ora em 562 terminava o longo e esplendoroso reinado de Nabucodonosor II em Babi- lónia e não teve por sucessor nenhum Dario, medo ou babilónico, mas sim Amei Marduk (561-560), 0 Evil Merodach do Antigo Testamento.

Nas grandes capitais da Antiguidade Oriental começo por reconhecer a clarividência de separar a lenda da história no caso de Babilónia. Há uma entrada para «Babel ou Babylonia» da lenda (sabemo-lo hoje), onde se terá dado a confusão das línguas (Gn 11), «por ocasião de construi- rem esta torre»; outra para «Babylonia» da história, «cidade famosa, capital da Chaldea, da qual fala muitas vezes a Escriptura.» Está, é certo, intimamente ligada à anterior, pois «foi edificada por Nemrod, no lugar onde a célebre torre tivera começo». Mas é sintomático que se lhe dê tratamento próprio e separado, pois dela é que falam os livros históricos e proféticos da Bíblia e «toda a autoridade». Dá-se a espessura das muralhas, segundo Heródoto (não referido); de Diodoro Siculo (também omitido) tomam-se os «jardins suspensos» e da lenda grega a figura de Semiramis (evocando a histórica Sammuramat da Assíria, séc. IX-VIII a. C.). O resto é da Escritura: 0 oráculo de Isaías (c. 13) cumpriu-se quan- do «Cyrus, a quem Isaías tinha apontado duzentos anos antes como instrumento da vingança de Deus... ali entrou depois de ter cercado toda a volta do rio, e tornou-se seu soberano». São Pedro chama Babilónia a Roma (1 Ped 5,13), «porque (esta cidade) fora infectada pelos erros e idolatria de todas as nações».

Comparada a Babilónia, Nínive tem pouco relevo (8 linhas). E não fal- tavam referências bíblicas à capital neo-assíria, tão falada nos profetas (Is 37,37; Na 1-3; Sof 2,13-15 e todo 0 Livro de Joñas), nos livros hístóri- cos (2 Re 19,36; Tob 1,11) e até na pregação de Jesus (Mt 12,41 par.).

Melhor sorte teve Mênfis, «em hebreu Noph ou Moph», que ocupa quatro páginas e meia. Figueiredo dá a palavra sobretudo aos profetas, citando Isaías (19,11-13), Jeremias (43,10-13 com certa liberdade e sem referir o lugar; cf. 46,14) e Ezequíel (29,18-19). Ainda poderia juntar Oseias (9,6). Mas prefere enveredar pela história profana: «Muitos tempos depois (de Ezequiel), Cambise, rei da Pérsia, e filho de Cyro,

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tornou-se senhor do Egypto, depois de ter tomado Pleusa, que era a chave do país. Psammenita, rei do Egypto, marchou ao seu encontro com um soberbo exército; Cambyse 0 derrotou, e aqueles que poderam (sic) escapar-se salvaram-se em Memphis, onde Cambyse os perseguiu, e enviou pelo rio um navio de Mytelene para os obrigar a entregar-se; porem os Egypcios, no auge do furor, mataram o parlamentário, caindo sobre a gente que 0 navio transportava. Pouco depois, Cambyse asse- nhoreou-se da praça e mandou degolar publicamente a maior parte dos nobres, isto é, igual número ao daqueles que haviam sido sacrificados, pertencentes ao navio de Mytelene. Naquele número entrou 0 filho mais velho de Psamenite. Quanto ao rei, Cambyse conservou-lhe a vida, tra- tando-o com alguma consideração; porém, sabendo que ele conspirava contra 0 seu reinado, mandou matá-lo pouco depois.

O Egypto esteve sob 0 domínio dos Persas até Artaxerxes. (...)Tendo Alexandre 0 Grande conquistado 0 Egypto sobre os Persas, e

edificado Alexandria, tratou de embelezar e enriquecer soberbamente esta cidade, que tornou depois capital de todo 0 Egypto. Memphis perdeu a consideração que gozara e, depois de sofrer várias alternativas, caiu em poder dos Arabes que a destruíram.»

Assim termina a entrada «Memphis». Mas não a história do Egypto, já antes prolongada para além da conquista muçulmana: «Os antigos reis do Egypto primavam em embelezar esta cidade, que subsistiu com grande brilho e opulência até ao tempo em que os Arabes conquistaram 0 Egypto no tempo do Califa Omar, no ano 18 ou 19 da Egyra. Amron-Ben-As, que a tomou à força de armas, mandou edificar junto a esta uma outra cidade á qual deu 0 nome de Fustha, por causa de ter estado naquele lugar, e por muito tempo, a tenda de um general daquele nome. Os Califas Fatimas que se tornaram senhores do Egypto, edificaram uma outra a que deram 0 nome de Cahera, que quer dizer vitoriosa e que hoje é co- nhecida pelo nome de Cairo. Os sultões Mammellus, da dinastia dos Circassianos, tendo mandado edificar um soberbo castelo sobre a mar- gem oriental do Nilo fizeram, pouco a pouco, com que a cidade do Cairo mudasse de lugar, isto é, que houvesse uma nova com este nome, de sor- te que aquela edificada pelos Fatimas se chama hoje 0 Velho Cairo. É pre- ciso saber que a antiga Mesr ou Memphis era situada na margem ociden- tal do Nilo e que tudo quanto os Arabes edificaram foi do lado do oriente.»

Para a história antiga regista-se, a começar, que Mênfis foi «cidade muito notável do Egypto, situada cerca de quinze milhas alem da sepa-

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ração do Nilo e do principio do Delta. Acima de Memphis, para 0 lado do sul, estavam as célebres pirâmides, duas das quais passavam por mara- vilhas do mundo. Memphis foi por muito tempo habitação de reis do Egypto, até aos Ptolomeus que começaram a residir em Alexandria. Memphis está hoje totalmente destruída.»

O crítico moderno pode registar não só a correcta localização de Mênfis («na margem ocidental do Nilo») e do Cairo («tudo quanto os Arabes edificaram foi do lado do oriente»). A lenda liga a fundação do primeiro aglomerado árabe à tenda do general (Fostat). A história confir- ma a origem e 0 significado («vitoriosa) do Cairo: os Fatímidas quiseram erguer uma capital capaz de rivalizar com a abássida Bagdad. Note-se finalmente que muito do que 0 Dicionário conta de Cambises no Egipto remonta a Heródoto (111,13-14).

II

Passando à história bíblica, verifica-se que 0 Dicionário não faz jus a um dos seus títulos programáticos - «crítico» - , pois ignora por comple- to a incipiente crítica literária do Pentateuco. Após observações avulsas de Ibn Ezra, Jerónimo da Azambuja e Espinosa, o contemporâneo Jean Astruc, médico de Luís XIV, publicava em 1753 as suas famosas Conjectures sobre as fontes de Moisés para 0 Livro do Génesis: a História das Origens basear-se-ia em dois documentos, um dos quais chama a Deus Elohim e outro Javé (ou Jehová, como se lia ao tempo). Para Figueiredo as coisas são mais simples: «Moysés foi 0 autor deste livro (Génesis), por ele composto depois da promulgação da Lei» (sub «Genesis»).

A crítica histórica é igualmente fruste, cabendo às personagens a importância que lhes dá a Bíblia, sem distinguir entre figuras da lenda próxima do mito (Adão, Abel, Caim, Noé), das provavelmente históricas (Abraão, Isaac, Jacob), das históricas transfiguradas pela lenda (Moisés, Josué), dos inequivocamente históricos reis de Israel e de Judá. Numa palavra, reproduzem-se os dados da Bíblia, como se todas as persona- gens fossem históricas no mesmo grau. É certo que há duzentos anos não se poderia esperar muito mais. Não se duvidava que Abraão «nasceu em Ur, cidade da Chaldea» nem do ano do seu nascimento (2008 do mundo). Hoje nega-se com relativa segurança uma coisa e

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outra (na cronologia erradíssima não pode haver mesmo qualquer dúvi- da). Apesar de toda a abertura ao lluminismo, Figueiredo arregalaria os olhos de espanto e incredulidade, se alguém lhe sugerisse que Abraão, Isaac e Jacob podem ser de épocas e lugares distintos, sem qualquer ligação genealógica (não partilho a opinião de que podem não ter existi- do, mas por razões históricas e não de pretensa heterodoxia).

A tradição bíblica de Moisés, aceite sem pestanejar pelo autor, dava para um romance (com as reconstituições críticas faziam-se vários!). O Dicionário tem aqui uma das mais volumosas, se não a mais volumosa das entradas - quarenta fartas páginas de texto. Salientam-se ordenada- mente as dez pragas do Egipto e, em coluna bem destacada, as dezoito estações do grupo de Moisés entre Kadesh Barnea e Écion Geber. Completa-se a tradição bíblica com informações colhidas em Flávio Josefo, S. Clemente de Alexandria e rabinos.

Moisés, ora bem parecido e galante, cativando olhares femininos por onde quer que passa, ora chefiando poderoso exército egípcio pela Etió- pia adentro? É 0 que se lê em Josefo. Mas Figueiredo é mais que reti- cente. Antes de fornecer a informação suplementar da Bíblia, adverte: «Josefo embelezou a história de Moysés, mas julga-se, com bastante fundamento, que nada foi acreditado do que dizia entre os Judeus.» E encerra com outras palavras sábias: «Porém Moysés, nos seus livros, não refere tais particularidades». E passa à tradição bíblica, que lhe não merece qualquer reserva.

Para ter uma ideia do caminho percorrido pela crítica nestes últimos duzentos anos, cito um historiador moderno e moderado: «Ninguém sabe exactamente quem foi Moisés.»(5) «O reconhecimento de que 0 conjunto da tradição é multifacetado e carregado de ideais e sentimentos obriga 0 historiador a especial contenção. Moisés está no resplendor crescente da história da salvação israelita e em tal grau que a sua figura histórica difi- cilmente se depreende por detrás deste resplendor.»(®) A história do nascimento (Ex 2,1-10) «não é histórica». «Não sabemos nada de certo sobre a origem de Moisés. Mas, com segurança a roçar a probabilidade, sabemos todavia que nasceu no Egipto, pois seu nome é egípcio.»(׳׳) «Mas com isso de modo algum está respondido à pergunta ‘quem foi Moisés’.»(8)

Sempre é mais alguma coisa do que só a existência de um túmulo de Moisés na Transjordânia, único dado histórico seguro para outro grande historiador de Israel (M. Noth).

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Não se aproveitará então nada do Dicionário para a reconstituição da história bíblica? A conclusão seria apressada.

Se a grande parte das informações bíblicas sobre os reis de Israel tem consistência, provindo de arquivos da corte e do templo, não é ocioso reproduzi-las. Até da história geral há algo a aproveitar.

O começo da «grande e famosa monarquia» neobabilónica situa-se, de facto, em Nabopolassar (sub «Chaldea»). Correcto é o ano da inde- pendência do Babilónio em relação aos Assírios: 626 a. C. (= 3378 do mundo). Também há dados correctos de mistura com alguma dose de confusão. Demétrio (I), Soter foi, de facto, «rei da Syria, filho de Seleuco (IV), Philopator», e «estava em Roma quando morreu seu pai». Não foi, porém, «seu tio», mas seu sobrinho Antíoco que «se apoderou do trono». É verdade que «fugiu de Roma» e «matou Antiocho... que sucedera a seu pai» (sub «Demetrio - Soter»). Só que este não é Antíoco «Epifãnio», cognome de Antíoco IV, mas sim Antíoco V.

A marca do historiador nota-se sobretudo na ossatura cronológica que domina a apresentação das personagens. Não admira, pois 0 autor deu à estampa um Compêndio das Épocas e sucessos mais illustres da História Gerais. Quem entra de chofre no Dicionário sem ter lido o Com- pêndio tem de ficar baralhado. Tudo se refere em anos do mundo, da cronologia bíblica que enceta na criação. Aarão «nascera no Egypto no ano 3430 da criação do mundo» (sub «Aarão»), Abraão «nasceu... no ano 2008 do mundo» («Abram»), Que datas lhes corresponderão em datação absoluta fixada em Cristo? Pelo «annus mundi» da era de Constantinopla, Abraão teria nascido em 2500; pela era judaica em 1753 a. C. Qual 0 cômputo de António Pereira de Figueiredo? Em vão 0 procurei ao longo de todo 0 1o volume do Dicionário. Até chegar a «Jesu- -Christo»: «Concebido por obra do Espírito Santo no seio de uma Virgem chamada Maria, nasceu numa mangedoura em Bethlem, aonde a Virgem e José, seu esposo, tinham vindo para se inscreverem no arrolamento ordenado por Augusto, no ano do mundo 4000, quatro anos antes da era vulgar.» Finalmente! Para ter a equação com a datação absoluta hoje corrente, basta subtrair 0 «annus mundi» a 4004.

No século XVIII já se sabia que 0 início da era cristã, ou de Cristo, calculado no século VI por Dionisio 0 Exíguo ( t 556), estava errado em quatro anos(10). E também aqui havia um pequeno erro: no ano da morte de Herodes Magno (4 a. C.), Jesus era já nascido e poderia ter até dois anos (cf. Mt 2). Com menos certeza, apontaria uma data entre 8 e 6

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«antes de Cristo», entre Abril e Outubro (meses secos em que caíam todas as grandes festas religiosas dos Judeus e mal se imaginam os Romanos pragmáticos a pô-los a peregrinar de terra em terra no mau tempo do Invernó).

Foi também no século XVIII que a cronologia técnica preocupou seriamente os historiadores. Depois dos trabalhos de Mabillon e suces- sores, apareceu a monumental Art de vérifier les dates, publicada por beneditinos em 1750 e reeditada em três volumes entre 1783 e 1787. É ainda no mesmo século que se instala 0 hábito de prolongar a era cristã para 0 passado e contar os anos «antes de Cristo». Além da observação que Jesus nasceu «quatro anos antes da era vulgar», só notei mais duas datações «antes de Cristo» no Dicionário: no nascimento de Moisés («antes de Jesu-Christo, 1567») e na guerra de Acab contra Ben Hadad («Ben Adad») de Damasco («893 antes de Christo» (sub «Michéas»).

Vejamos a cronologia do Dicionário Bíblico, confrontada com cronolo-gias actuais(11):

D ic io n á r io M o d e r n o s

AssíriosAssarhaddon: m. 3378 AM (= 668 a. C.) 669

BabilóniosNabopolassar: rei 3378 (= 626 a. C.) 626

PersasCiaxares («Dario 0 Medo»)(12): rei 3442 (= 562) 614Ciro: n. 3405 (= 599) c. 580<13)Dario: rei 3482 (= 522) 522

SelêucidasAntíoco III Magno: rej 3781 (= 223) 223Antíoco IV Epifânio: m. 3840 (= 164) 164Demétrio I: m. 3854 (= 150) 150

Em oito datações da história mundial, seis estão correctas (despre- zando a diferença de 1 ano que se verifica de historiador para historia- dor): morte de Assarhaddon, fundação da dinastia neobabilónica por Nabopolassar, subida ao trono de Dario e de Antíoco III, morte de An- tíoco IV e de Demétrio I. Para os finais do século XVIII é obra!

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NOTAS E COMENTÁRIOS

Para a história de Israel já assinalámos a cronologia de Abraão: nasci- mento em 2008 do mundo, ou seja, 1996 a. C. Em Moisés, Figueiredo fornece as duas cronologias: nasceu no ano do mundo 2433, equivalente a «antes de Jesu-Christo 1567», com base no nascimento de Cristo no ano 4000 do mundo, quatro anos antes da era vulgar, como vimos.

Um salto rápido à discussão científica actual dá a dimensão das dú- vidas e probabilidades. Ainda há duas-três décadas historiadores e orien- talistas de respeito situavam Abraão no século XVIII a. C. (época de Hammurabi)(14), ao lado dos que 0 baixavam para 0 tempo dos Hurritas (séc. XVI)(15) ou mesmo de Amarna (séc. XIV)<16). A ligação dos patriarcas aos Arameus (até na tradição bíblica) torna cada vez mais provável uma data à volta do século XIII a. C., não muito longe de M o is é s ( 17). Só uma visão fundamentalísta (não crítica nem científica) da história bíblica man- terá as cifras de Figueiredo. Este tinha pelo menos a desculpa de não dispor dos estudos históricos e literários que obrigam a distinguir figuras da lenda próximas do mito (Adão, Noé) das lendas carregadas de história de Abraão, Isaac e Jacob.

Com a monarquia pisamos terreno mais firme. Lancemos outra vez mão do Dicionário, confrontado com os modernos.

Monarquia Unida(União pessoal)

D ic io n á r io M o d e r n o s

David: m. 2999 AM (2989?= 1015 a. C.?) 965Salomão: rei 2990 (1014)<18> 965

Se a data da morte de David estivesse correcta, Figueiredo situá-la- -ia nove anos depois (!) da subida de Salomão ao trono. Parece uma co- -regência demasiado longa para 0 que se deduz de 1 Re 1-2. O mais provável é o autor ter escrito 2989 (1015 a.C:) e contado só um ano de co-regência.

Reino de Judá

D ic io n á r io M o d e r n o s

Roboão: campanha de Sheshonq 3083(= 921 a.C.)(19) 925(2°) Abias: m. 3083 (= 921) 911Asa: m. 3090 (= 914) 871Josafat: rei 3090 (= 914) 871

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NOTAS E COMENTÁRIOS

Joram: m. 3119 (= 885)Ocozias:Atália:Joás: 3126-3166 (= 878-838)Amasias: m. 3194 (= 810)Azarias:Jotam: m. 3262 (= 742)Acaz: m. 3278 (= 726)Ezequias: rei 3277 (= 727)Manassés: m. 3361 (= 643)Amon: m. 3355 (3365? = 639?)Josias: rei 3363 (= 641)Joacaz: m. 3395 (= 609)JoaquimJoyakin (Jeconias): deportado 3405 (= 599) Sedecias

842842-841841-835835-796785770-749743727727643640639609609-597597597-586

Mais uma vez há um erro de cópia ou lapsus calami de Figueiredo. Amon não pode ter morrido antes do pai a quem sucedeu no trono. Logo não em 3355 do mundo (649 a.C.); leia-se 3365 do mundo e teremos a data certa (639 a.C.).

Na monarquia de Judá, as datas estão bem próximas das actuais. Nem as maiores diferenças se podem considerar propriamente escan- dalosas: cerca de 50 anos a mais para Salomão e 10 anos para Abias; pelo meio, Asa, Josafat e Joram são antecipados em 43 anos. Ainda no princípio do séc. VIII a. C. Amasias (796-785) está sobredatado em 25 anos (morte em 810, segundo Figueiredo). Só na segunda metade desse século é que as datas se tornam mais plausíveis para critérios actuais. Há mesmo correspondências exactas: princípio do reinado de Ezequias em 727 e o fim dos reinados de Manassés e Joacaz em 643 e 609 res- pectivamente. Diferenças de um a quatro anos são desprezíveis: fim do reinado de Joatam em 742 (por 743), de Acaz em 726 (por 727) e Amon no corrigido 639 (por 740); princípio do reinado de Josias em 641 (por 639), invasão de Sheshonq em 921 (por 925).

Reis de Israel

D ic io n á r io

Jeroboão I: m. 3050 AM (= 954 a.C.) Nadab

M o d e r n o s

910910-909

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Baasa: m. 3074 (= 930) 886Ela 886-885Zimri (Zamri) 885Omri (Amri): m. 3086 (= 918) 874Acab: m. 3107 (= 897) 853Ocozias 853Joram: 3108-3120(23) (= 896-884) 854-842Jeú: 3120-3128 (= 884-876) 841-813Joacaz: m. 3148 (= 856) 799Joás: m. 3179 (= 825) 748Jeroboão II: m. 3220 (= 784) 748Zacarias 748-747Sellum 747Menahem: m. 3243 (= 761) 736Pekahya 736-734Pekah (Faceu) -v 734-732Oseias 732-722

Saltam à vista as deficiências e lacunas desta cronologia no Dicioná- rio de Figueiredo. Enquanto se omitia toda a referência cronológica em apenas cinco reis de Judá (Ocozias, Atália, Azarias, Joaquim e Sedecias; em Roboão ainda se data a invasão de Sheshonq), quase metade dos reis de Israel (9 em 19) é totalmente esquecida para efeitos de datação. É certo que a monarquia do Norte foi muito mais turbulenta que a do Sul, com atentados e eliminição física dos reis a suceder-se vertiginosa- mente. Para quê esforçar-se um homem por situar no tempo quem não chegou a aquecer 0 trono! Mas os erros são de maior monta: 44 anos de excesso para 0 século X a. C.; entre 41 (Joram) e 79 (Joás) no século IX; passando pelos 63 em Jeú (fim do reinado em 876 por 813) e 57 em Joacaz (morte em 856 por 799). Só no século VIII é que 0 erro por exces- so se reduz a 36 (morte de Jeroboão II em 784 por 748) e 25 (morte de Menahem em 761 por 736) anos. É a maior aproximação. Jamais ocorre uma coincidência ou erro desprezível.

Como pôde António Pereira de Figueiredo ser tão preciso na fun- dação da dinastia caldaica de Babilónia por Nabopolassar (626 a.C.) e na morte de Assarhaddon (629 a.C.) e errar tanto nos reinados de Israel?! Para além dos dados menos fiáveis relativos às monarquias de Israel, pesou sem dúvida a ausência de dinastia estável no Reino do Norte.

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Do regresso de Babilónia a Herodes(Segundo Tempo)

D ic io n á r io M o d e r n o s

Esdras: «chegou à Judéa» em 3537 (=467)A SM ONEUS

458

SimãoJoão Hircano: m. 3898 (= 106) Aristóbolo I Alexandre Janeu - Salomé Alexandre - Aristóbolo II

142-135/4135/4-104104-103103-7676-6767-63

Herodes Magno: m. 4001 (= 3 a.C.) 4 a. C.

São, assim, escassíssimos os dados cronológicos para o período que medeia entre o regresso dos exilados de Babilónia e o nascimento de Jesus. Talvez fosse escasso 0 próprio apoio ou até a substância da fonte bíblica. Figueiredo sabe que Esdras chegou à Judeia no ano 3537 do mundo, equivalente a 467 a. C., apenas nove anos acima da mais alta data actualmente proposta (458 a.C.). Só um dos Asmoneus, João Hir- cano, é contemplado com data, aliás substancialmente correcta. O ano da morte de Herodes falha num ano (3, por 4 a.C.).

O Dicionário abunda em «cativeiro» - dois assírios e quatro babilóni- cos. Os primeiros teriam ocorrido sob Tiglat-Piléser III (a que chama, como se esperava, Teglat-Falasar) em 3267 do mundo (737 a.C.) e sob Salmanassar Vem 3283 (721 a.C.). Este ocorreu efectivamente, em rela- ção com a queda de Samaria (722) e fim do Reino do Norte. Do cativeiro promovido por Tiglat-Piléser III 0 Antigo Testamento nada sabe. Mas, curiosamente, a data proposta (737 a.C.) corresponde à primeira incur- são do Assírio para ocidente e pagamento do primeiro tributo por parte dos Judeus (Menahem de Israel, em 738 a.C.).

Os quatro cativeiros de Judá em Babilónia seriam os de:Joaquim, em 3398 (606 a.C.);Nabucodonosor, em 3401 (603);Jeconias(24), em 3406 (598);Sedecias, em 3416 (588).

O suposto cativeiro de 606 a. C. talvez se infira da derrota dos Egíp- cios em Karkemish (605), em que 0 Caldeu, vencedor, «tomou 0 pesado

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NOTAS E COMENTÁRIOS

tributo do pais de Hatti (Síria)» (cf. 2 Re 24,1); o de 603 a. C. pode-se relacionar com a subida de Nabucodonosor ao trono de Babilonia, em que se repetiu a dose: Nabucodonosor «atravessou o país de Hatti como dominador. Todos os reis do pais de Hatti vieram perante ele, e ele rece- beu o seu pesado tributo.»«25) Aqui Figueiredo «sabe» mais do que os modernos.

Os dois últimos não precisam de ser inferidos, para não dizer imagi- nados - ocorreram em 597, por altura da primeira rebelião de Jerusalém, e em 587/6, em ligação com a última em que 0 Caldeu liquidou cidade e reino. Tomada Jerusalém a 2 de Adar do ano sétimo de Nabucodonosor (16 de Março de 597), seguiu-se a substituição do rei vencido e a depor- tação da gente válida (os 10 000 deportados de 2 Re 24,14 talvez sejam exagero). O cativeiro que coroou a derrota de Sedecias em 587/6, apelidado habitualmente de «segunda deportação», pôs ponto final em seiscentos anos de vida política independente em Canaã. São estes os únicos referidos na Bíblia e nos modernos historiadores de Israel.

Jerusalém, interpretada como «visão da paz», seria reerguida por Ciro em 3468 do mundo (536 a.C.), mas outra vez conquistada e saquea- da por Antíoco Epifânio em 3831 (173 a.C.). «Gozou de uma longa paz até ao reinado de Hircan e de Aristobulo, quando Pompeu a cercou com um grande exercito, por espaço de três meses, no fim dos quais arrasou as muralhas.» Tito arruinou finalmente aquela «soberba Jerusalém, que fora a rainha do Oriente e a sede da religião durante mil e cem anos, depois que David e seus descendentes se assentaram no seu trono» (sub «Jerusalém»),

* * *

Parecerá deveras modesto ou pouco brilhante 0 balanço final da dimensão histórica do Dicionário da Bíblia Sagrada. A verdade é que dificilmente 0 autor, ou outro por ele na sua época e em Portugal, conseguiria fazer melhor. A idade de ouro dos estudos bíblicos portugue- ses passara, já lá ia um bom século. Deixavam-se agora os textos origi- nais esquadrinhados com tanto afã por Azambujas e Foreiros, Figueirós e Sotomaiores. Passara a euforia crítica do Renascimento e voltava-se à veneranda e tardo-antiga/medieval Vulgata. Não se vislumbra a menor dúvida sobre a autenticidade mosaica do Pentateuco, ao contrário do que sucedia nos comentários de Jerónimo da Azambuja (1556); não se empreende nenhum estudo literário das fontes de Moisés, diferente­

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mente do que se fazia na França de Luís XIV; nem se discute a autenti- cidade da segunda parte de Isaías (cc. 40-66), posta em causa na Alemanha por Eichhorn em 1783<26> e por Döderlein em 1789(27>.

Em História, as limitações eram gerais e sem fronteiras. Estavam por decifrar 0 egípcio hieroglífico e as escritas cuneiformes. Fontes para a História Antiga, só a Bíblia e os clássicos (Heródoto, Estrabão, Diodoro Siculo), povoados de fantasias e lendas, coados em séculos de tradi- ção/traição. Só em 1886 (cem anos depois de Figueiredo!) aparecia pela primeira vez uma história do Egipto faraónico assente em fontes primá- rias<28).

Na cronologia, são mais de admirar os acertos do que os erros do Dicionário. O terreno é tão escorregadio que se deve estender a toda a história pré-clássica 0 que E. Hornung afirma da Egiptologia: «De bom grado se deixa 0 campo aos poucos especialistas, que empregam méto- dos muito diversos e muitas vezes chegam a resultados inteiramente diferentes.»(29)

Para dar uma ideia da complexidade da matéria, bastará recordar que 0 início do ano oscilou entre a Primavera e 0 Outono; que na Ásia vigo- rou o calendário lunar e no Egipto 0 solar; no Egipto, 0 primeiro ano de reinado se contava da subida ao trono e na Mesopotâmia só do primeiro dia do ano seguinte (depois do ano de acessão, com os meses após a subida ao trono contados para 0 rei anterior). Lembremos finalmente as co-regências um pouco por todo 0 lado. As «certezas» dos modernos compreendem três cronologias alternativas para a Ásia, com margem de 120 anos(30). Para ficarmos dentro da história de Israel: não está encer- rado 0 debate sobre 0 ano (587 ou 586 a.C.) em que os Babilónios toma- ram Jerusalém, pondo termo ao que restava de reino hebraico(31).

Em resumo: Nos finais do século XVIII, 0 Dicionário Bíblico de Antó- nio Pereira de Figueiredo representa um contribuo importante para his- tória bíblica e geral.

Notas

(1) Supplimento al t. I del Dizionario Theologico... Cf. A.A. BANHA DE ANDRADE, Verney e a pro- jecção da sua obra (Biblioteca Breve ICALP), Lisboa 1980, p. 85.

(2) F. M. T. DE ARAGÃO MORATO, Catálogo da obras impressas do P. António Pereira de Figueiredo, Lisboa 1800, p. 1.

(3) Ibid., pp. 66-67.

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NOTAS E COMENTÁRIOS

(4) Informação particular da bibliotecária D. Sara de Oliveira Serra Garcia.

(5) H. DONNER, Geschichte Israels und seiner Nachbarn in Grundzügen, I, Göttingen 1984, p. 108.

(6) Ibidem.

(7) Ibid., p. 109.

(8) Ibid., p. 110.

(9) Lisboa, na Regia officina typografica, 1783.

(1°) Cristo teria nascido no ano 754 ab urbe condita. A distância de mais de cinco séculos é de admi- rar a justeza do cálculo do monge romano, indignado com a era de Diocleciano corrente no seu tempo, «um homem que merecia mais 0 nome de tirano que de imperador.»

(11) Para 0 1° milénio a. C. são mínimas as oscilações entre os autores. Para a Mesopotâmia sigo J. OATES, Babylon (Ancient Peoples and Places, 94), London 1979; para Israel S. HERRMANN, «Geschichte Israels», em Theologische Realenzyklopödie XII, 712 e H. JAGERSMA, A History of Israel from Alexander the Great to Bar Kochba, Philadelphia 1986.

(12) Talvez as visões e histórias de Daniel tenham levado a colocá־lo no trono de Babilonia logo a seguir a Nabucodonosor (604-562).

(13) Fischer Weltgeschichte, IV, 15: entre 556-550 vence Astíages.

04) Cf. E.A. SPEISER, Genesis (AB 1), Garden City, N.Y, 1964, pp. XLIII-L; R. DE VAUX, Histoire ancienne d’lsrael, I: Des origines à l’installation en Canaan, Paris 1971, pp. 245-253.

(15) A. RASCO, «Migratio Abrahae circa a. 1650 a.C.», em Verbum Domini 35 (1957) 143-154.

(16) C.H. GORDON, entre outras trabalhos, «The Patriarchal Age», em Journal of Bible and Religion 21 (1953) 238-243.

(17) Depois de M. NOTH, Geschichte Israels, Göttingen 71969 (1a ed. 1950), p. 118 (no contexto das migrações aramaicas dos fins do 2o milénio pré-cristão), S. HERRMANN tanto na Geschichte Israels in alttestamentlicher Zeit, München 1973, p. 78 como na comunicação de 18 de Dezembro de 1985 à Academia das Ciências da Renânia-Vestefália («Israels Frühgeschichte im Spannungsfeld neuer Hypothesen»), H. DONNER,0. c. (n. 5), p. 81 diz que os argumentos tirados (sobretudo por R. de Vaux) dos antropónimos amoritas e dos usos e costumes do tempo de Hammurabi (séc. XVIII) e dos Hurritas de Nuzi (séc. XV) se enquadram no espaço vasto da cultura do Oriente Antigo do 2o milénio e principios do 1o milénio a. C.

(18) Sub «Bethsabea».

(19) Sub «Jerusalém».

(20) S. HERRMANN, Geschichte Israels... p. 247; trad, espanhola, Historia de Israel en la época del Antiguo Testamento, Salamanca ^1985, p. 257.

(21) Sub «Athalia».

(22) A cronologia do reinado de Ezequias é das mais controversas da historia de Israel. Os próprios dados do Antigo Testamento são inconciláveis uns com os outros. Contra a datação de S. Herrmann (727-698) há quem aponte 716/14 - 688/86 ou 697/96; ou um período de corregência com 0 pai (729/27 - 716/14) seguido do reinado próprio 716/14 - 700/698. Cf. F.J. GONÇALVES, L’expédition de Sennachérib en Palestine dans la littérature hebraïque ancienne, Louvain-la-neuve 1986, pp. 51-60.

(23) Por lapso, o autor (ou o copista) escreve 3210 para a morte de Joram, 0 que não condiz com os 12 anos que atribui ao reinado desse monarca nem com o inicio do reinado de Jeú.

(24) Sub «Ezechiel».

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NOTAS E COMENTÁRIOS

(25) Ambas as citações da Crónica de Babilónia.

(26) Einleitung in das Alte Testament III, 75-97.

(27) Esaias, 3a ed., pp. XII-XV.

(28) Ägypten und ägyptisches Leben im Altertum, de A. Erman.

(29) Einführung in die Ägyptologie. Stand, Methoden, Aufgaben, Darmstadt 1967, p. 126.

(30) Sobre os fundamentos das cronologias longa, média e curta cf. P. GARELLI, Le Proche-Orient asiatique. Des origines aux invasions des peuples de la mer (nouvelle Clio 2); Paris 1969, pp. 227- Exemplo de Hammurabi: 1848-1806 a. C. (cronologia longa); 1792-1750 (média); 1728-1686 .־239(curta).

(31) Cf. E. KUTSCH, «Das Jahr der Katastrophe: 587 v. Chr. Kritische Erwägungen zu neueren chro- nologischen Versuchen» (1974), em ID., Kleine Schriften zum Alten Testament (BZAW 168), Ber- lin/New York 1986, pp. 3-28.

José Nunes Carreira

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