Didier Dominique Cerqueira Dias de Moraes

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    Visualidade do livro didtico no Brasil:

    o design de capas e sua renovaonas dcadas de 1970 e 1980

    DIDIER DOMINIQUE CERQUEIRA DIAS DE MORAES

    DISSERTAO APRESENTADA FACULDADE DE EDUCAO

    DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO PARA A OBTENO DO TTULO DE MESTRE

    LINHA DE PESQUISA LINGUAGEM E EDUCAO

    ORIENTADOR PROF. DR. NILSON JOS MACHADO

    SO PAULO, 2010

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    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e DocumentaoFaculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    371.34 Moraes, Didier Dominque Cerqueira Dias deM827v Visualidade do livro didtico no Brasil: o design de capas e sua

    renovao nas dcadas de 1970 e 1980 / Didier Dominique CerqueiraDias de Moraes; orientao Nilson Jos Machado. So Paulo: s.n., 2010.182 p.; il.; graf.

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao.rea de Concentrao: Linguagem e Educao) - - Faculdade deEducao da Universidade de So Paulo.

    1. Livros didticos 2. Visualidade 3. Histria editorial 4. Design

    grfico 5. Histria do design grfico (Brasil) I. Machado, Nilson Jos,orient.

    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO,

    POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E

    PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

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    FOLHA DE APROVAO

    Didier Dominique Cerqueira Dias de Moraes

    Visualidade do livro didtico no Brasil: o design de capas e sua renovao nas

    dcadas de 1970 e 1980

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao

    da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre

    Linha de pesquisa: Linguagem e Educao

    Aprovado em

    BANCA EXAMINADORA

    PROF. DR.

    INSTITUIO

    ASSINATURA

    PROF. DR.

    INSTITUIO

    ASSINATURA

    PROF. DR.

    INSTITUIO

    ASSINATURA

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    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, ao Prof. Dr. Nilson Jos Machado, pelo estmulo inicial que se trans-

    formou em acolhida ao projeto e orientao precisa e cuidadosa durante todo o mestrado,

    pesquisa e redao da dissertao.

    Ao Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto, da Faculdade de Educao da USP, e ao Prof.

    Dr. Marcos da Costa Braga, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, pela leitura

    atenta, crticas e indicaes feitas no processo de qualificao, fundamentais para a con-

    figurao final da dissertao mas no obviamente por suas falhas , como tambm

    pela orientao fornecida em suas disciplinas para que os trabalhos finais alimentassem a

    dissertao.

    Prof. Dr. Rosa Iavelberg e Prof. Dr. Sonia Castelar, da Faculdade de Educao, e

    ainda Prof. Dr. Mayra Rodrigues Gomes, da Escola de Comunicaes e Artes da USP, que

    ministraram disciplinas e conduziram os trabalhos finais no mesmo sentido.

    Ao Prof. Dr. Francisco Incio Homem de Melo, da Faculdade de Arquitetura e Urba-

    nismo da USP,pelo incentivo primeiro e proposio do tema, bem como por sugestes

    bibliogrficas e imagticas e comentrios decisivos em vrios momentos.

    Aos designers Ary Almeida Normanha e Mrio Slvio Cafiero, pelos longos e detalha-

    dos depoimentos e pela cesso de vrias das imagens aqui reproduzidas. A Irami Bezerra

    da Silva, Carmem Lcia Campos, Joo Guizzo e Jiro Takahashi, pelas informaes forneci-

    das em depoimentos ou conversas. Ao professor e designer Sylvio Ulhoa Cintra Filho por

    informaes e indicaes bibliogrficas.

    s bibliotecrias Ivinin Varela e Roseane Paula Moreira, da Abril Educao, que faci-

    litaram o acesso Memria da Editora tica e a documentao iconogrfica realizada. ATnia Silva, bibliotecria do IBEP, que propiciou a consulta ao acervo da Companhia Editora

    Nacional. A Walber Lustosa, Ivani Bastos e Vanessa Umbelina, bibliotecrios da FEUSP, que

    facilitaram a pesquisa e a documentao fotogrfica na Biblioteca do Livro Didtico.

    Prof. Dr. Marcia de Paula Razzini e Prof. Dr. Maria Rita Toledo, da Pontifcia Uni-

    versidade Catlica de So Paulo; Prof. Dr. Samira Youssef Campedelli e Prof. Dr. Maria

    Aparecida Baccega, da Escola de Comunicaes e Artes da USP; a Luiz Tonolli e Carlos

    Mendes Rosa, da Editora tica; a Fernanda Costa da Silva, da Abril Educao; aos profes-

    sores Valdemar Vello, Francisco Plato Saviolli, Francisco Marto de Moura, Avelino Antonio

    Correa e Amadeu Marques; a Cntia Trigo, Vera Saviolli e Sntia Mattar a todos pela ines -

    timvel colaborao.Aos designers Marcello Araujo e Sara Goldchmit pela cesso de imagens para re-

    produo, mas tambm pelas discusses sobre design suscitadas pelo trabalho com livro

    didtico. Aos designers Eliana Troia e Celso Longo, tambm por essas discusses, que ser-

    viram para alimentar as preocupaes e as ideias aqui contidas.

    A todos os colegas de trabalho editorial e em arte da Editora Scipione, que por im-

    possibilidade de serem citados fao representar por Aurlio Gonalves Filho, Maria Teresa

    Buco Porto e Sergio Suwaki Yutaka, por propiciarem a discusso quase cotidiana dos temas

    e assuntos relacionados edio e arte do livro didtico e muito ensinarem, alimentando

    tambm este trabalho.

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    RESUMO

    Moraes, D. D. C. D. Visualidade do livro didtico no Brasil: o design de capas e sua re-

    novao nas dcadas de 1970 e 1980. Dissertao de mestrado. Faculdade de Educao

    da Universidade de So Paulo. So Paulo, 2010.

    At o final da dcada de 1960, o livro escolar brasileiro era em sua maioria produzido

    dentro dos padres tcnicos e visuais da indstria livreira tradicional em relao estreita e

    participando do que se conhece como cultura escolar, em que a linguagem visual como

    modo de conhecimento e construo de significados no era devidamente reconhecida

    e valorizada. Com raras excees, a visualidade do livro didtico no tinha como refern-

    cia a produo grfica de melhor qualidade que aparecia em livros de literatura e outras

    mdias e no era produto de mtodo projetual mais rigoroso e qualificado. Na dcada de

    1970, com a expanso da indstria cultural e dos meios audiovisuais e o surgimento de

    novas referncias de gosto particularmente para a juventude, a visualidade do livro did-tico praticada ficou ainda mais distante de seu pblico. As editoras existentes e as novas

    que surgiram com a expanso do ensino em todos os nveis, mesmo quando percebiam

    as mudanas de gosto ocorridas, ou no davam importncia para esse fato, ou no sabiam

    como atualizar as linguagens de sua produo, ambos os aspectos sendo decorrentes da

    pouca cultura visual de seus dirigentes e do no reconhecimento do modo visual como

    expresso vlida de conhecimento e do design como recurso para despertar o interesse

    pelo aprendizado e ferramenta de promoo de vendas. Ser a editora tica, por seu pro-

    jeto editorial de insero na produo de cultura mais ampla e de resposta s demandas

    decorrentes da vida poltica e cultural do momento vivido pelo pas, que trar para o livro

    didtico as mesmas preocupaes com visualidade que precisava ter com seus produ-tos destinados ao pblico mais amplo. Assim, a editora promove uma profissionalizao

    na produo visual, com a contratao de designers e ilustradores experimentados em

    outras mdias impressas, estas j bastante profissionalizadas na produo de linguagens

    que atingiam diversos pblicos. A importncia dada s capas, como meio de seduo

    para obter adoo entre os professores e adeso entre os estudantes, pela identificao

    com o universo visual desses segmentos, vai gerar uma renovao sem precedentes na

    visualidade do livro escolar e vai impulsionar editoras concorrentes a faz-lo. As solues

    grficas originais de Ary Normanha, com a participao de Mrio Cafiero, vo oferecer ao

    pblico a experincia com os significados criados pela linguagem visual em dilogo com

    o modo verbal, como atividade prpria de uma cultura e de um aprendizado integrais. Apar da ampliao da cultura imagtica e das referncias de gosto, as capas documentadas

    e analisadas mostram um momento em que o design do livro didtico se equiparou ao

    melhor design encontrado em outros veculos da cultura no Brasil.

    Palavras-chave:livro didtico, visualidade, histria editorial, design grfico, histria do de-

    sign grfico no Brasil.

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    ABSTRACT

    Moraes, D. D. C. D. Visualidade do livro didtico no Brasil: o design de capas e sua

    renovao nas dcadas de 1970 e 1980. [Schoolbook visual image in Brazil: cover design

    and its renovation in the 70s and 80s] Dissertao de mestrado. Faculdade de Educao daUniversidade de So Paulo. So Paulo, 2010.

    Until the end of the 1960s, Brazilian schoolbooks were in its majority produced according

    to the technical and visual standards of the traditional publishing industry, in close relation to

    what is known as school culture, by which the visual language as a way of acquiring know-

    ledge and creating meanings was not duly recognized and valued. With a few exceptions, the

    visual presentation of schoolbooks had no compare with better quality graphics that turned

    up in literature books and other media. Moreover, it was not the result of a more rigorous and

    qualified, thoughtful design. In the 70s, with the expansion of cultural industry and audiovisual

    media and the emergence of new taste trends particularly among the youth, the visual imageof schoolbooks drifted apart from its public even more. The existing publishing houses and the

    ones founded during the spreading of education in all levels would either dismiss this fact or

    not know how to update the language of their books even if they have noticed that changes in

    taste had occurred. These issues were due to the scarce graphical knowledge of the publishers

    and their non-recognition of the visual aspect as a valid expression of knowledge and of the

    design as a means for arousing the interest in learning and as a sales promotion tool. Amongst

    the biggest publishing houses in Brazil, tica was the one that treated textbooks with the same

    graphic concerns it has had for its products aimed to a broader public, once it had embarked

    on the project of participating in the wider cultural production, responding to the demands

    of cultural and political scenes in that particular period the country was living in. Thus, ticapromoted the professionalization of graphic design in the schoolbook area by hiring designers

    and illustrators experienced in other media that were already developing languages that rea-

    ched a diverse public. Considered as a way to conquer teachers and its students through their

    identification with its visual image, the book cover gained a significance that would generate an

    unseen renewal in the graphic design of schoolbooks and impelled ticas competitors to do the

    same. The original graphical solutions introduced by Ary Normanha, with the collaboration of

    Mrio Cafiero, would make the public experience meanings provided by the dialogues between

    visual language and verbal language, an outcome of a more comprehensive culture and lear-

    ning. Besides their enhanced appeal and the cultural imagery they bring about, the book covers

    registered and analyzed herein show a moment when the design of the schoolbooks was of thesame quality as the design found in other cultural media in Brazil.

    Keywords:textbooks, visual images, publishing history, graphic design, history of graphic de-

    sign in Brazil.

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    SUMRIO

    APRESENTAO .................................................................................................................................. 11

    PARTE I O LIVRO DIDTICO E SUA VISUALIDADE NA DCADA DE 1970 .....................15

    1 A pesquisa sobre o livro didtico no Brasil ...................................... ................... 17

    1.1 Incio e expanso da pesquisa sobre o livro escolar 17

    1.2 Dificuldades da pesquisa e definio do objeto 19

    1.3 A pesquisa no Brasil 21

    1.4 A pesquisa sobre visualidade 23

    2 O livro didtico como objeto de pesquisa em design ..................... .............. 26

    2.1 Design e projeto 27

    2.2 O livro didtico nos congressos de pesquisa em design 29

    3 Livro didtico, visualidade, design e cultura ................................ ...................... 30

    3.1 O carter de uso do livro didtico 30

    3.2 A pgina (apenas) de texto 31 3.3 A pgina do livro escolar 37

    3.4 A tradio visual do livro didtico brasileiro 41

    3.5 Visualidade e sociedade 44

    3.6 Escola e visualidade 46

    3.7 Design e livro didtico 48

    3.8 Os papis da capa 50

    4 Capas de livros didticos nos anos 1970: um panorama ........................ ...... 53

    4.1 O crescimento da indstria editorial didtica na dcada de 1970 53

    4.2 A cultura de massas e os novos meios audiovisuais 55

    4.3 As capas da dcada 57

    4.4 1. grupo: as capas tradicionais ou vernaculares 58

    4.5 2. grupo: a visualidade oscilante das capas novas sem projeto 64

    4.6 3. grupo: as capas inovadoras ou com projeto 70

    4.7 Uma concluso parcial 80

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    PARTE II A RENOVAO CONCRETIZADA: AS CAPAS DA EDITORA TICA ..................81

    1 A expanso da Editora tica e a busca da atualizao visual ...................... 83

    2 Os designers e suas referncias .......................................... ........................ ............ 89

    2.1 Ary Normanha e o design de revistas 89

    2.2 A experincia de Mario Cafiero: a ilustrao e edio de revistas 92

    2.3 A Escola de Nova York e o design-ilustrao 94

    3 Os primeiros projetos ..................... ........................ ........................ ........................ .... 96

    3.1 Os livros no-didticos 96

    3.2 A procura de uma linguagem para os dois atores

    do universo escolar, o aluno e o professor 100

    4 As capas dos livros didticos ........................... ........................ ........................ ......104

    4.1 As montagens fotogrficas 104

    4.2 A ilustrao e a fotografia referencial 127

    4.3 O cartum e a ilustrao de humor 148

    4.4 A tipografia nas capas da tica 158

    5 Esclarecimentos complementares ......................... ........................ .....................163

    5.1 O alcance da renovao visual das capas da tica 163 5.2 O design do miolo 165

    5.3 Sobre a leitura das capas 167

    CONCLUSES ....................................................................................................................................169

    1 Design de capas nos anos 1970 e 1980: uma sntese ................................. ..170

    2 Algumas reflexes possveis ........................ ........................ ........................ ..........174

    2.1 Livro didtico, produto da indstria cultural

    portador de contedos: tem que comunicar 174

    2.2 Papel pedaggico do design: ensino de uma

    linguagem e transmisso da cultura visual 175

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 177

    Fontes das imagens ..........................................................................................................................182

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    APRESENTAO

    O presente trabalho incursiona numa rea que se descobriu bastante nova dentro

    da pesquisa sobre o livro didtico no Brasil: o da sua configurao material e visual.

    Mais restrito ainda, focaliza um de seus aspectos, a capa, embora aborde secun-

    dariamente tambm a visualidade de seu corpo interno, ou seja, as pginas que

    suportam o contedo textual e imagtico. Restringindo ainda mais o foco, aborda

    a produo de capas de um determinado perodo e, dentro dela, a produo de

    uma determinada editora e de seus designers. Cada uma dessas escolhas precisa

    ser antecipadamente justificada, embora se acredite que a leitura do trabalho o

    far por si prpria.

    Em primeiro lugar, hoje consenso que o livro didtico, pela sua presena

    obrigatria e por largo perodo na educao e formao das pessoas, merece ser

    objeto de reflexo e pesquisa, tanto em enfoques pragmticos relativos a seu usoatual na vida escolar como em enfoques histricos e tericos mais abrangentes.

    Essa compreenso se reflete na quantidade crescente de estudos no pas sobre a

    histria do livro didtico, sua produo e sua relao com as disciplinas e prticas

    escolares.

    Tambm se reconhece que a imagem e os meios visuais de expresso cada

    vez mais ocupam lugar central na experincia e na comunicao dos indivduos

    entre si e com as instituies sociais, em alguns casos at substituindo prticas an-

    teriormente apoiadas nos modos exclusivamente verbal e escrito. At por fazerem

    parte j da vivncia infantil contempornea, so considerados meios necessrios educao, que no pode abrir mo deles nas prticas de ensino e aprendizagem.

    No entanto, a quase inexistncia de pesquisas sobre a materialidade e a visua-

    lidade do livro didtico parece indicar no ser ainda suficientemente reconhecido

    que o livro didtico, como objeto material portador de informao visual, com uma

    presena to constante e num perodo de formao e amadurecimento das pes-

    soas, exera efetivamente algum papel na educao delas para alm do contedo

    disciplinar apresentado na forma de palavras e imagens impressas.

    Em segundo lugar, e no desconectado desse ainda apenas suposto papel

    educativo, a visualidade materializada em um determinado livro didtico produ-to complexo do cruzamento de inmeros fatores, como interesses institucionais,

    polticos e educativos, prticas sociais e profissionais, tecnologias e materiais dis-

    ponveis, demandas pedaggicas, mercadolgicas e culturais e tudo o mais que

    caracteriza o livro didtico como mercadoria e produto material e simblico. No

    entanto, o que de maneira geral tem marcado a visualidade do livro didtico em

    diversos perodos uma distncia e em alguns casos uma oposio visualidade

    encontrada nos demais produtos impressos e manifestaes culturais da socieda-

    de em que se insere. Aqui j se pode pensar se ele educa ou no visualmente, se

    ele favorece a compreenso dos cdigos produzidos por todos os nveis da cul-

    tura ou se se coloca em oposio a eles, para alm, como se disse, dos contedosdisciplinares que veicula. E do ponto de vista da eficcia de sua visualidade para a

    Apresentao 11

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    transmisso desses contedos, se sua identificao ou no com a visualidade vi-

    gente serve para mobilizar afetivamente ou desinteressar o estudante pela apren-

    dizagem.

    Por fim, preciso justificar o perodo escolhido para a apresentao e anlise

    da visualidade dos livros e particularmente das capas, bem como a produo es-

    pecfica analisada.A dcada de 1970 reconhecidamente a da expanso da indstria cultural no

    Brasil ligada ao crescimento da urbanizao e insero mais profunda do pas

    nos processos econmicos e sociais mundiais , consolidando o que se iniciou

    na dcada anterior e mostrando uma profissionalizao dessa produo e de seus

    agentes, seja na produo voltada para as amplas massas e com qualidade esttica

    duvidosa e alienante, seja na produo com contedo e preocupaes estticas e

    de contestao das condies vigentes. A sociedade consome o que se lhe ofere-

    ce, mas a despeito da censura e da represso poltica por parte do regime, tambm

    resiste e luta por direitos, liberdade e cultura, e nesse terreno encontra obstculosmas tambm os supera em realizaes de alta inventividade em todos os campos

    da arte e da comunicao.

    Como decorrncia da prpria expanso do ensino em todos os nveis, acentu-

    ada tambm nesta dcada, a indstria do livro didtico se expande no pas e, nesse

    quadro poltico e cultural, precisa configurar seu produto em acordo com o que

    supe ser a demanda de seu pblico e conforme as novas condies tecnolgicas

    da indstria grfica. Em um regime visual determinado agora pela presena da te-

    leviso e da imprensa de massa, que se expandem naqueles anos, no vai ocorrer

    nem uma adeso pura e simples s caractersticas de linguagem decorrentes dapresena desses meios nem uma ruptura total e imediata com a visualidade do

    livro escolar anterior a eles. Embora seus agentes reconheam com maior ou me-

    nor conscincia novas demandas na esfera simblica por parte de um pblico que

    se educa tambm pela televiso e pelas revistas, essa percepo inicialmente

    difusa e se d num terreno em que pesam a prpria tradio visual e as condies

    tecnolgicas e de formao dos profissionais de produo do livro escolar e a rela-

    o deste com a cultura escolar.

    As capas dos livros, alm da funo de proteo e identificao de uma obra,

    precisam cada vez mais assumir a funo de persuadir seu pblico, num momento

    de aumento da competio e de transformao nas referncias visuais e de gosto.

    Dentre as editoras, a tica se destaca por melhor compreender essa nova situao.

    As novas capas, mais do que o livro como um todo, por sua referncia s lingua-

    gens dos meios de comunicao e suas qualidades especficas, dialogaro melhor

    com seu pblico, professores e alunos, e propiciaro uma forte identidade e marca

    de contemporaneidade editora, impondo um novo padro, que ser perseguido

    pelas demais concorrentes, resultando de forma geral numa atualizao da lingua-

    gem visual do livro didtico brasileiro e na sua aproximao com os demais produ-

    tos da indstria cultural.

    Alm da investigao de algumas relaes entre visualidade e educao ma-terializadas no livro didtico, que dizem respeito rea da educao, este trabalho

    12 Apresentao

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    Apresentao 13

    visa tambm oferecer uma contribuio pontual pesquisa em histria do design

    e da cultura material no Brasil. Pesquisa de carter bastante recente, so tantos os

    objetos a serem investigados que o livro escolar ainda figura como mais um a me-

    recer ateno, o que j justificaria a documentao e interpretao empreendidas.

    A identificao dos profissionais responsveis por esses projetos e sua formao

    e metodologias de trabalho tambm podem contribuir para a compreenso doprocesso de insero do profissional designer nos vrios campos de atividade pro-

    jetual e de institucionalizao de sua profisso.

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    PARTE IO LIVRO DIDTICO E SUA VISUALIDADENA DCADA DE 1970

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    1 A pesquisa sobre o livro didtico no Brasil 17

    1 A PESQUISA SOBRE O LIVRO DIDTICO NO BRASIL

    Na busca de precedentes e referncias para a pesquisa que se pretendia fazer, cen-

    trada na configurao material e visual do livro didtico em uma poca que se

    sups decisiva para a configurao do livro didtico atual, procedeu-se a um le-

    vantamento da pesquisa sobre o livro didtico j feita no Brasil tanto do ponto devista de sua histria como de sua materialidade e visualidade. Essa pesquisa sobre

    a pesquisa permitiu um contato com o estado da arte da pesquisa acadmica no

    Brasil tanto nas reas da histria e prticas de uso do livro didtico no Brasil, como

    nas reas de histria e de metodologia de projeto em design grfico, e levou

    constatao da quase inexistncia de pesquisas sobre a visualidade do livro didti-

    co e certeza da necessidade de se emprenderem trabalhos dessa natureza.

    A pesquisa permitiu tambm uma conceituao mais precisa do objeto inves-

    tigado, bem como informaes objetivas e referncias bibliogrficas usadas para

    o desenvolvimento do prprio trabalho. Por isso, optou-se por apresentar aqui osresultados dessa pesquisa sobre pesquisa nos dois campos, o da histria e prticas

    de uso do livro didtico e o de sua histria como objeto da cultura material.

    1.1 Incio e expanso da pesquisa sobre o livro escolar

    A mencionada raridade de trabalhos sobre a visualidade e materialidade do livro

    didtico parece se dever ao carter recente da pesquisa sobre as edies didticas

    no s no Brasil, mas no contexto mundial. Segundo Alain Choppin, pesquisador

    do Institut National de Recherche Pdagogique, na Frana, e talvez a mais impor-

    tante autoridade acadmica na rea, h apenas trinta anos ela praticamente inexis-

    tia na maior parte dos pases. At ento, a banalidade do livro escolar e sua funo

    delimitada escola e ao perodo de formao dos indviduos no lhe outorgavam

    o status de livro, merecedor de constar dos acervos de bibliotecas e de ser objeto

    de investigao acadmica. Foi apenas a partir dos anos 1970 que o interesse por

    ele cresceu:

    Aps terem sido negligenciados, tanto pelos historiadores quanto pelos bibligrafos, os

    livros didticos vm suscitando um vivo interesse entre os pesquisadores de uns trinta

    anos para c. Desde ento, a histria dos livros e das edies didticas passou a constituir

    um domnio de pesquisa em pleno desenvolvimento, em um nmero cada vez maior depases, e seria pouco realista pretender traar um estado da arte exaustivo sobre o que

    foi feito e escrito e, mais ainda, do que se pesquisa e se escreve atualmente pelo mundo.

    (CHOPPIN, 2004, p. 549)

    Sobre as razes da expanso da pesquisa sobre o livro didtico:

    Uma das razes essenciais a onipresena real ou bastante desejvel de livros

    didticos pelo mundo e, portanto, o peso considervel que o setor escolar assume na

    economia editorial nesses dois ltimos sculos. impossvel para o historiador do livro

    tratar da atividade editorial da maior parte dos pases sem levar isso em conta: em um

    pas como o Brasil, por exemplo, os livros didticos correspondiam, no incio do sculoXX, a dois teros dos livros publicados e representavam, ainda em 1996, aproximada-

    mente 61% da produo nacional. (CHOPPIN, cit., p. 551)

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    18 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    Ainda segundo o professor Choppin, outras razes seriam:

    1) o interesse dos historiadores pelas questes relacionadas educao e a consti-

    tuio de centros de pesquisa a respeito;

    2) o interesse dos povos pela recuperao ou construo das identidades culturais,

    a partir dos processos de descolonizao e, mais recentemente, da fragmenta-

    o da Unio Sovitica;3) o progresso das tcnicas de armazenamento de dados e documentos;

    4) o reconhecimento da planetariedade e complexidade do livro didtico como

    produto cultural, situado no cruzamento da cultura, da pedagogia, da produo

    editorial e da sociedade e de suas funes (referencial aos programas curricula-

    res, instrumental para a aprendizagem, ideolgica como instrumento de afirma-

    o e valores dominantes, documental para o estudante construir suas prprias

    ideias).

    No levantamento que faz sobre o estado da arte na pesquisa do livro didtico,

    novamente Choppin referncia, apresentando e refletindo sobre as categoriasdessas pesquisas. Embora mencionando que em uma pesquisa possa haver uma

    sobreposio de posturas,

    [...] podemos nos arriscar a distinguir duas grandes categorias de pesquisa:

    aquelas que, concebendo o livro didtico apenas como um documento histrico igual

    a qualquer outro, analisam os contedos em uma busca de informaes estranhas a

    ele mesmo (a representao de Frederico II da Prssia, ou a representao da ideologia

    colonial, por exemplo), ou as que s se interessam pelo contedo ensinado por meio

    do livro didtico (histria das categorias gramaticais, por exemplo);

    aquelas que, negligenciando os contedos dos quais o livro didtico portador, o con-

    sideram como um objeto fsico, ou seja, como um produto fabricado, comercializado,distribudo ou, ainda, como um utenslio concebido em funo de certos usos, consu-

    mido e avaliado em um determinado contexto. (CHOPPIN, cit., p. 554)

    Assim, no primeiro caso, no se trata da histria do livro didtico, mas de como

    um tema histrico foi apresentado por esta mdia. O livro didtico tomado como

    documento para a pesquisa em histria, externa sua existncia. J no segundo

    caso, o livro didtico tomado em si, como objeto e produto fabricado e consumi-

    do num contexto prprio, tratando-se, portanto, de sua histria. Nessa categoria:

    [...] ao contrrio, o historiador dirige sua ateno diretamente para os livros didticos,

    recolocando-os no ambiente em que foram concebidos, produzidos, distribudos, utili-

    zados e recebidos, independentemente, arriscaramos a dizer, dos contedos dos

    quais eles so portadores. (CHOPPIN, cit., p. 554. Destaque meu)

    A nfase da pesquisa sobre livro didtico, na maioria dos pases, se deu e ainda

    se d principalmente sobre a anlise dos contedos, a imagem da sociedade que

    os livros apresentavam em perodos determinados, os autores, a permanncia dos

    ttulos, a histria das editoras, a histria dos mtodos etc. Um aspecto particular

    identificado em pesquisas em todo o mundo o papel que os livros didticos

    tiveram na construo da identidade nacional, na formao das naes, como, por

    exemplo, o trabalho de Hector Cucuzza na Argentina, Yo argentino: la construccin

    de la Nacin en los libros escolares (1873-1930), para citar apenas um dentre outros.

  • 7/26/2019 Didier Dominique Cerqueira Dias de Moraes

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    1 A pesquisa sobre o livro didtico no Brasil 19

    Outras pesquisas investigaram o uso dos livros como instrumento do Estado em

    perodos de dominao ditatorial ou de ocupao estrangeira. H estudos tambm

    sobre a influncia local de obras estrangeiras (Cuore, de De Amicis, por exemplo,

    traduzido em diversas lnguas). Mas, de maneira geral, pode-se afirmar que as pes-

    quisas de cunho histrico tm um carter nacional e se ocupam majoritariamente

    dos ltimos dois sculos, justamente o perodo de formao das nacionalidadese das naes modernas, em que os livros didticos foram instrumentos da cons-

    truo e inculcao dos chamados mitos fundadores dessas naes. No entanto,

    Choppin aponta para resultados comuns s pesquisas de inmeros pases e em

    diversos perodos:

    Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didticos corresponde a

    uma reconstruo que obedece a motivaes diversas, segundo poca e local, e possui

    como caracterstica comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que,

    em seu sentido amplo, conceberam o livro didtico gostariam de que ela fosse, do que

    como ela realmente . Os autores de livros didticos no so simples espectadores de

    seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente. O livro didtico no um sim-

    ples espelho: ele modifica a realidade para educar as novas geraes, fornecendo uma

    imagem deformada, esquematizada, modelada, frequentemente de forma favorvel: as

    aes contrrias moral so quase sempre punidas exemplarmente; os conflitos sociais,

    os atos delituosos ou a violncia cotidiana so sistematicamente silenciados. E os histo-

    riadores se interessam justamente pela anlise dessa ruptura entre a fico e o real, ou

    seja, pelas intenes dos autores. (CHOPPIN, cit., p. 557)

    A atualidade dessa perspectiva de pesquisa ainda se justificaria a partir de uma

    constatao tambm universal a respeito do alcance do livro didtico:

    Uma vez que so destinados a espritos jovens, ainda maleveis e pouco crticos, e po-dem ser reproduzidos e distribudos em grande nmero sobre todo um territrio, os

    livros didticos constituram-se e continuam a se constituir como poderosos instrumen-

    tos de unificao, at mesmo de uniformizao nacional, lingustica, cultural e ideolgi-

    ca. (CHOPPIN, cit., p. 557)

    1.2 Dificuldades da pesquisa e definio do objeto

    Embora no seja o objetivo aqui levantar exaustivamente o percurso das pesqui-

    sas, importante mencionar as dificuldades que elas encontraram desde seu in-

    cio, porque foram as mesmas que apareceram tambm neste trabalho. A primeiradelas diz respeito definio do prprio objeto, que se expressa em lxico varia-

    do, sem correspondncia exata entre as diferentes lnguas. Etimologicamente, h

    diversas origens para sua designao, com termos baseados no contexto escolar

    (schoolbook), na forma material (mannuel, manual), na autoridade do texto (text-

    book), na funo (livro didtico), por exemplo.

    A primeira dificuldade relaciona-se prpria definio do objeto, o que se traduz muito

    bem na diversidade do vocabulrio e na instabilidade dos usos lexicais. Na maioria das

    lnguas, o livro didtico designado de inmeras maneiras, e nem sempre possvel

    explicitar as caractersticas especficas que podem estar relacionadas a cada uma dasdenominaes, tanto mais que as palavras quase sempre sobrevivem quilo que elas

    designaram por um determinado tempo. (CHOPPIN, cit., p. 549)

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    20 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    A indefinio de fronteiras tambm dificultaria a caracterizao desse objeto:

    catecismos, vulgarizao cientfica, lazer poderiam estar includos. Circe Bittencourt

    assim define o que so livros didticos: todos os impressos com inteno didtica,

    que constituem um gnero que rene muitos gneros (cartilhas para aprender a

    ler, antologias, manuais, paradidticos etc.) e participam da circulao de ideias:

    Para os pesquisadores de livros o livro didtico toda obra produzida com a intenode ser material escolar, ou seja, a ser utilizado em sala de aula. O livro didtico e os deno-minados paradidticos acabam sendo, na verdade, livros didticos. Um exemplo dessadimenso do livro didtico pode ser fornecida pelos clssicos ou religiosos como os OsLusadas, a Bbliae outros. Ao serem editados especialmente para servir a fins pedaggi-cos, ou seja, quando sofrem adaptaes de linguagem ou alteraes no contedo, trans-formam-se em livros didticos. [...] Um clssico da literatura quando adaptado, mesmoque apenas incluindo exerccios a serem feitos por alunos, torna-se igualmente um livrodidtico. (BITTENCOURT, 1995, p. 389)

    Outra definio bastante abrangente a de Joo Batista Arajo e Oliveira: livro

    didtico o livro adotado na escola (OLIVEIRA, 1984, p. 11).Assim, diversas obrasde Monteiro Lobato escritas entre 1920 e 1940 poderiam ser caracterizadas como

    obras didticas, bem como toda uma literatura atual produzida em funo dos

    contedos curriculares e divulgada sobretudo no meio escolar.

    No entanto, qualquer que seja o subgnero tomado dentro desse gnero

    abrangente que o define, o livro didtico apresentaria uma complexidade mpar,

    que faz dele um objeto de mltiplas facetas, na tica de Circe Bittencourt, que

    assim resumimos:

    O livro didtico , em primeiro lugar, uma mercadoria que obedece lgica

    de produo e de comercializao determinadas pelas tcnicas disponveis e porinteresses de mercado; mais especificamente, um objeto da indstria cultural.

    Mas tambm um depositrio de contedos escolares que realiza uma transposi-

    o do saber acadmico para o saber escolar no processo de explicitao curricu-

    lar. Em terceiro lugar, um instrumento pedaggicocom uma larga tradio, que

    elabora as estruturas e as condies de ensino para o professor e que produz

    uma srie de tcnicas de aprendizagem (BITTENCOURT, 1995, p. 72). Por fim, o

    livro didtico um importante veculo portador de um sistema de valores, de uma

    ideologia, de uma cultura (BITTENCOURT, 1997, p. 72. Grifos da autora). Essa com-

    plexidade do livro didtico como produto cultural o que determina a validade de

    vrias abordagens de pesquisa realizadas nos mais diversos campos, da histria

    economia, da sociologia pedagogia, da poltica ao design.

    No entanto, essa definio contm em si uma restrio. Esse livro complexo,

    que transpe o saber acadmico para contedos curriculares a serem ensinados

    e que veicula o prprio mtodo e tcnica de aprendizagem no qualquer livro

    adotado na escola, e, sim, unicamente aquele que se prope como instrumento ou

    ferramenta de ensino de um contedo abrangente estabelecido pelos programas

    curriculares de cada disciplina. Dessa definio de livro didtico ficam na prtica

    excludos outros tipos de livros usados na escola, aos quais cabe com propriedade

    o rtulo de paradidticos, pois tm uma funo auxiliar aos propriamente didticose ao contedo curricular.

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    1 A pesquisa sobre o livro didtico no Brasil 21

    Assim, Kazumi Munakata, nas concluses de sua tese de doutorado, Produzin-

    do livros didticos e paradidticos, ressalta o carter de usodo livro didtico como

    intrnseco sua constituio:

    Pois, a rigor, livro didtico no para ser lido como se l um tratado cientfico posturaadotada por muitos crticos do contedo dos livros didticos. Livro didtico para usar:

    ser carregado; ser aberto; ser rabiscado (no, isso no pode, o livro no pode ser consu-mvel!); ser dobrado; ser lido em voz alta em alguns trechos e, em outros, em silncio; ser

    copiado (no se pode consumi-lo!); ser transportado de volta a casa; ser aberto de novo;ser estudado. Raros livros didticos [.. .] so efetivamente lidos de cabo a rabo, do mesmomodo que ningum l um dicionrio ou uma enciclopdia de A a Z [...].

    Objeto para ser usado, o livro didtico implica no uma relao direta e imediata do

    aluno e do professor com o contedo, esse mundo platnico de formas inteligveis, masantes de atividades, prticas e fazeres, numa situao efetiva de ensino e aprendizagem.(MUNAKATA, 1997, p. 203-204)

    Essa definio importante para este trabalho, pois particulariza o livro did-

    tico dentre os demais e a base para se identificar sua materialidade e visualidadeespecficas.

    Voltando questo das dificuldades envolvidas na pesquisa sobre o livro di-

    dtico, alm da ausncia em acervos e bibliotecas preciso mencionar a disperso

    das fontes e de trabalhos produzidos avulsamente, abordando aspectos muito par-

    ticulares e diversos, muitas vezes sem clareza de objetivos e suficiente qualidade

    cientfica, havendo principalmente poucas obras de sntese:

    A segunda dificuldade diz respeito ao carter recente desse campo de pesquisa: as obrasde sntese ainda so raras e no abrangem toda a produo didtica nem todos os pe-

    rodos; a produo cientfica que trata especificamente da histria da literatura e dasedies didticas constitui-se essencialmente de artigos (geralmente captulos de livros)publicados em revistas ou livros (de uns tempos para c tambm em sites) onde, namaior parte das vezes, ningum pensaria em procur-los; ainda preciso alertar que

    fazer um recenseamento dessa produo partindo apenas de ttulos de artigos ou delivros mostra-se fonte de desiluses e de incertezas. (CHOPPIN, cit., p. 549)

    1.3 A pesquisa no Brasil

    No entanto, apesar das dificuldades mencionadas e do carter recente das pes-

    quisas sobre o livro escolar, em palestra proferida no simpsio internacional Livro

    Didtico Educao e Histria, ocorrido em novembro de 2007 em So Paulo, o

    professor Choppin chamou a ateno para o grau de maturidade hoje atingido

    pelas pesquisas, relacionando trabalhos importantes em diversos pases, entre eles

    o de Circe Bittencourt, a partir de 1993 no Brasil, e a constituio de bancos de

    dados integrados (Emmanuelle na Frana, Edisco na Itlia, Livres no Brasil, entre

    outros) e sites de pesquisa em mais de quarenta pases, que renem a documen-

    tao das obras e bibliografia da maneira mais extensiva possvel, permitindo ao

    pesquisador superar o trabalho artesanal e fornecendo condies de pesquisa an-

    tes inexistentes. No Brasil, a maturidade das pesquisas sobre o livro didtico pode

    ser constatada por trabalhos que abrangem todos os contedos acima referidos,alm da mencionada tese de doutoramento de Circe Bittencourt, que, focalizando

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    22 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    os manuais de histria brasileiros de 1820 a 1910, analisa o livro didtico em toda

    a sua complexidade de produto cultural e mercadoria, abrangendo de sua con-

    cepo autoral e editorial at sua utilizao como instrumento pedaggico por

    professores e alunos.

    H, assim, um conjunto de trabalhos que abordam aspectos relevantes na

    compreenso da gnese do livro didtico no Brasil, suas transformaes em relaos demandas de cada novo projeto de organizao escolar ou plano de aquisio e

    distribuio governamental, sua contribuio para a difuso da leitura ou adequa-

    o a programas especficos das disciplinas, seu papel como veculo de ideologias,

    particularmente dos segmentos dirigentes da sociedade a partir do controle do Es-

    tado e suas instituies, dentre as quais a escola, seu carter de mercadoria voltada

    para o lucro de segmentos empresariais etc.

    A maior parte dos trabalhos diz respeito, como era de se esperar, s relaes

    entre cultura escolar e livro didtico, mais precisamente, ao contedo expresso nos

    livros em relao ao conhecimento construdo em cada disciplina cientfica, mastambm h trabalhos sobre o uso do livro e veiculao dos contedos nas aulas.

    A leitura, os contedos gramaticais e o ensino de Histria so os mais abordados,

    seguidos dos de Cincias e de Matemtica.

    Mas h tambm investigaes que relacionam a histria dos livros histria

    das prprias disciplinas, como, por exemplo, o trabalho de Marcia Razzini, O espelho

    da nao: a Antologia Nacional e o ensino de portugus e de literatura (1838-1971) 1.

    O estudo das origens e da longa presena dessa obra didtica de Fausto Barreto

    e Carlos de Laet no ensino secundrio no s revela seu papel na implantao da

    cultura brasileira na escola, mas permite a compreenso do prprio surgimento

    das disciplinas de Lngua Portuguesa e de Literatura no currculo nacional. Em co-

    municao apresentada na 26. Reunio Anual da ANPEd Associao Nacional de

    Ps-Graduao e Pesquisa em Educao, afirma a autora:

    O livro didtico pode se constituir tambm em fonte privilegiada para a contextualizaode prticas escolares, ocupando papel de destaque na recente histria das disciplinasescolares e na histria do currculo. Nesse sentido, o livro didtico considerado umespao de memria para a histria da educao na medida em que reflete, ao mesmotempo, uma imagem sistmica da escola que ele representa e uma imagem da socie-dade que o escreve e que o utiliza, seja atravs da materializao dos programas comosuporte curricular que ele , seja atravs das imagens e valores dominantes da socie-

    dade que ele veicula, seja ainda atravs das estratgias didticas e prticas de ensino-aprendizagem que ele expressa [...] (RAZZINI, 2003.)

    Se a histria das editoras e suas edies j conta com uma obra de flego

    como O livro no Brasil: sua histria, de Laurence Hallewell (2007), a histria das edi-

    toras e suas edies especificamente didticas j mais rara e encontra dificul-

    dades na precria conservao de acervos, tanto dos livros como de informaes

    comerciais. S muito recentemente as editoras vm se preocupando em organizar

    seus acervos com vistas a oferec-los para pesquisadores, como fez a Editora Na-

    cional, que encarregou a historiadora Maria Rita de Almeida Toledo dessa tarefa

    e posteriormente transferiu seu acervo para a Universidade Federal de So Paulo.Outro exemplo a doao do acervo de documentos comerciais e administrativos

    1Tese de doutorado, Instituto de Es-

    tudos de Linguagem, UniversidadeEstadual de Campinas. Campinas:2000.

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    1 A pesquisa sobre o livro didtico no Brasil 23

    da mais antiga editora em atividade no pas, a Francisco Alves, para a Universidade

    Federal Fluminense, constituindo o Centro de Memria Editorial Brasileira, dirigido

    pelo pesquisador Anbal Bragana.

    Numa direo contrria aos trabalhos que se ocupavam em denunciar ge-

    nrica e abstratamente o comprometimento ideolgico dos livros didticos e sua

    insuficincia de contedo em relao ao conhecimento cientfico, a tese de dou-torado de Kazumi Munakata, j citada, tem o mrito de examinar a concretude do

    processo de produo do livro escolar no Brasil na dcada de 1990. Com base em

    entrevistas com profissionais de importantes editoras e com exame direto das con-

    dies e dos aspectos tcnicos envolvidos na edio e na editorao, o trabalho

    apresenta as prticas efetivas de seus agentes e contribui para a sua compreenso

    como produto da indstria cultural com papel fundamental na educao do pas,

    com todas as contradies que isso implica. Ideias e sua materialidade especfica

    so apresentados como resultantes de condies e prticas concretas investigadas

    nos editoriais e departamentos de arte das editoras.Dado o papel do Estado brasileiro na circulao dos livros didticos, pesquisas

    se ocupam dessas relaes em cada momento da histria do pas. Com o alcance

    e as dimenses que tomaram as compras governamentais a partir dos anos 1990, a

    poltica do livro didtico particularmente analisada em trabalhos mais recentes.

    Tm sido tambm objeto de pesquisas, ainda que em bem menor grau, o im-

    pacto das tecnologias na produo dos livros e materiais a ele associados (cd-rom

    etc.), bem como a influncia dos livros na prpria constituio dessas tecnologias.

    1.4 A pesquisa sobre visualidade

    Sobre o que diz respeito diretamente ao escopo deste trabalho, de se notar a

    quase ausncia de pesquisas sobre os aspectos materiais e grfico-visuais do livro

    didtico. O importante simpsio internacional Livro Didtico Educao e Histria,

    realizado em 2007 em So Paulo, d uma radiografia bem precisa a respeito. Dos

    176 artigos apresentados em suas comunicaes e constantes do caderno de re-

    sumos, apenas um trata diretamente de aspectos da configurao visual do livro

    didtico2e quatro versam sobre iconografia encontrada principalmente em livros

    de Histria.

    O II Seminrio Brasileiro Livro e Histria Editorial, do LIHED Ncleo de Pes-

    quisa sobre Livro e Histria Editorial no Brasil, da Universidade Federal Fluminense,

    realizado entre 11 e 15 de maio de 2009, expressou a importncia da pesquisa so-

    bre o livro didtico em seus mltiplos aspectos dentro da pesquisa sobre a histria

    dos livros e das editoras. Dentre conferncias, colquios, mesas redondas e co-

    municaes tratando de temas como prticas de leitura, cultura letrada, duzentos

    anos do livro no Brasil, relaes culturais/editoriais entre Frana e Brasil, bibliotecas,

    produo, mercado, profissionalizao, gneros de livros, direitos autorais e mui-

    tos outros, houve espao privilegiado para os temas relacionados ao livro escolar.

    Colquios e mesas redondas especficas sobre livros e leitura na escola, bibliotecasescolares, histria das editoras, acervos de livros didticos, cartilhas, alfabetizao e

    2BOCCHINI, Maria Otilia. Legibilida-de visual e projeto grfico na avalia-

    o de livros didticos pelo PNLD.

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    24 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    formao de professores, livros de Histria e Geografia, educao de jovens e adul-

    tos, poltica educacional e mercado escolar foram realizados, com a apresentao

    de 32 comunicaes ou palestras. Um nmero bastante expressivo, mas em que

    apenas dois textos tratavam de aspectos grficos do livro escolar.3

    Sobre esta predominncia da anlise do contedo textual, parece no ser uma

    caracterstica exclusiva da pesquisa desenvolvida no Brasil. Segundo Choppin:Por razes que dizem respeito formao de pesquisadores e carncia de instrumen-tos apropriados, as anlises dos livros didticos, independentemente de suas problem-ticas, ficam tradicionalmente restritas ao menos no Ocidente anlise de texto. Oprivilgio quase exclusivo conferido anlise textual, mesmo considerando que desdeo final do sculo passado a parte do livro destinada iconografia no tenha deixado decrescer, se solidificou pelo desenvolvimento de mtodos e de instrumentos de anliseslingusticas, destacando a anlise lexicomtrica. Foi no final dos anos 1980, com os avan-os da semitica, o impulso da histria das mentalidades e o interesse pelas questesde vulgarizao das cincias, que recorreu a muitos esquemas e grficos, que o livrodidtico deixou de ser considerado como um texto subsidiariamente enfeitado de ilus-

    traes, e para que a iconografia didtica e a articulao semntica que une o texto ea imagem tenha sido levada em conta. (CHOPPIN, cit., p. 599)

    Assim, pesquisas sobre o livro didtico como objeto em si, portador de uma

    configurao, feita de papel e tinta (Monteiro Lobato), mas tambm por formatos,

    tamanhos, letras, margens e imagens, so ainda bastante raras, embora essa confi-

    gurao seja prpria e muito particular do livro didtico como gnero especfico.

    Tambm tm sido negligenciadas as caractersticas formais dos livros didticos. A orga-nizao interna dos livros e sua diviso em partes, captulos, pargrafos, as diferenciaestipogrficas (fonte, corpo de texto, grifos, tipo de papel, bordas, cores, etc.) e suas varia-

    es, a distribuio e a disposio espacial dos diversos elementos textuais ou icnicosno interior de uma pgina (ou de uma pgina dupla) ou de um livro s foram objeto, se-gundo uma perspectiva histrica, de bem poucos estudos, apesar dessas configuraesserem bastante especficas do livro didtico. Com efeito, a tipografia e a paginaofazem parte do discurso didtico de um livro usado em sala de aula tanto quantoo texto ou as ilustraes. (CHOPPIN, cit., p. 599. Grifo meu.)

    Mas os aspectos materiais e visuais do livro didtico podem aparecer em tra-

    balhos desenvolvidos com outros objetivos e motivaes. Antonia Terra Fernandes

    (2004) obtm relatos orais em busca de reconstruir o cotidiano escolar e identificar

    a importncia do livro didtico para as geraes que frequentaram a escola entre

    as dcadas de 1940 e 1970, e neles aparecem as lembranas da materialidade evisualidade dos livros:

    Como explica Pierre Nora, entre as inmeras especificidades da memria, ela se enrazano concreto, no espao, no gesto, na imagem, no objeto (1993, p. 9). Dessa forma, oslivros tambm so lembrados por suas materialidades (como seus aspectos fsicos cor,grossura, capa dura, etc.), pelas disciplinas a que se referem (portugus, histria, admis-so, etc.) e por terem formatos distintos de acordo com a srie:

    O livro de geografia era um livro pequeno, capa dura. Os mapas eram todos debico de pena, preto-e-branco. (Entrevistado 1)

    E eu me lembro muito bem da escola, da cartilha tinha uma menina de tranadesenhada na capa, no era foto [...] E a em outubro a gente recebia o primei-

    3So eles: Aline Frederico, Parme-tros para o projeto grfico de dicion-

    rios infantis ilustrados; Isabel CristinaAlves da Silva Frade, Livros brasileirosde alfabetizao: entre ordenamen-

    tos grficos e a escolarizao da es-crita. Final do sculo XIX e incio do

    sculo XX.

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    1 A pesquisa sobre o livro didtico no Brasil 25

    ro livro de leitura. Desse eu tenho uma vaga lembrana dele... no sei se era damesma autora ou no. As gravuras eram geralmente bico de pena, no eram foto-grafias e no eram coloridas. Mesmo os do ginsio, que depois voc me pergun-tou, das gravuras. O livro de cincias era bastante ilustrado, mas geralmente comdesenhos mesmo, que eram feitos com nanquim e depois para editar e tudo. E agente no tinha essa coisa de livro colorido de fotografia, nada assim.

    [...] Ento do primrio para o ginsio notei essa diferena dos livros. Um capadura, parecia livro de adulto e a gente tinha uma certa venerao com os livros.(Entrevistado 3)

    H lembranas de imagens especficas e do estilo das ilustraes:

    O livro de Histria Sagrada trazia sugestes. Por exemplo: uma figura que ocupa-va uma pgina inteira, em bico de pena, era a fuga de Jos, do Egito. As imagenssagradas dos livros didticos se transformavam em painis do artesanato popular.(Entrevistado 1)

    Essa era preto-e-branco... a histria de uma famlia chegando em Porto Alegre,

    num navio, pelo Guaba. Ento era a famlia, voc via o navio, a famlia no convsdo navio, Porto Alegre e a ponte. (Entrevistado 5)

    Assim, como objeto portador de uma materialidade e de uma visualidade,

    pode-se supor que o livro didtico veicule mais do que o contedo escrito em suas

    pginas. Em se tratando de livros escolares, com uso continuado e localizado nos

    anos de formao do indviduo, lcito acreditar-se que sua configurao tambm

    ensine alguma coisa e tenha alguma consequncia tanto na predisposio ou no

    para um convvio com os livros em geral aps a vida escolar, como no gosto ou

    formao esttica geral.

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    [...] Qualquer que seja o grau de imaginao artstica esbanjado no design de objetos, eleno feito para dar expresso criatividade e imaginao do designer, mas para tornaros produtos vendveis e lucrativos. Chamar o design industrial de arte sugere que osdesigners desempenham o principal papel na produo, uma concepo errnea, quecorta efetivamente a maioria das conexes entre design e os processos da sociedade.(FORTY, 2007, p. 11 e 13).

    A histria do design como histria do design exclusivamente modernista, em

    que no caberiam todos os demais objetos desenhados, produzidos e efetivamen-

    te consumidos pela sociedade, estaria, segundo Rafael Cardoso, pautada pelas pr-

    prias necessidades de afirmao social de uma nova categoria profissional:

    Como em toda profisso nova, a primeira gerao de historiadores do design teve comoprioridades a delimitao da abrangncia do campo e a consagrao das prticas e dospraticantes preferidos da poca. Sempre que um grupo toma conscincia da sua identi-dade profissional, passa a se diferenciar pela incluso de uns e pela excluso de outros,e uma maneira muito eficaz de justificar essa separao atravs da construo de ge-

    nealogias histricas que determinem os herdeiros legtimos de uma tradio, relegandoquem fica de fora ilegitimidade. As primeiras histrias do design, escritas durante operodo modernista, tendem a impor uma srie de normas e restries ao leitor, do tipoisto design e aquilo no, este designer e aquele no [...]. (CARDOSO, 2004, p. 12-13.)

    2.1 Design e projeto

    Hoje possvel ter clareza de que design no prerrogativa do objeto desenhado

    segundo os cnones do modernismo informado pelas vanguardas artsticas e rea-

    lizado pela indstria de ponta, mas est envolvido em toda a produo de objetos

    por toda e qualquer indstria, mesmo antes de sua completa mecanizao. Parahaver design basta que haja a existncia de uma etapa claramente definida de pre-

    parao de modelos, matrizes e instrues de execuo, separada de uma etapa

    seguinte de fabricao propriamente dita, como forma de garantir a produo de

    objetos por outros trabalhadores, com o mnimo de variao possvel, caracterizan-

    do uma primeira diviso bsica e necessria de trabalho na indstria, e procurando

    responder a necessidades e anseios do pblico a que pretende atingir para se rea-

    lizar como mercadoria (cf. CARDOSO, 2004, p.14-16 e FORTY, 2007, p. 48-59).

    Ou seja, como estabelece Renato De Fusco, identifica-se a presena do de-

    sign quando os fatores projeto, produo, vendae consumo integram um s

    processo unitrio e final, como eventos ou momentos sequenciais relacionados e

    dependentes entre si (DE FUSCO, 1993, p. 144-161).

    Mesmo sem utilizar exatamente esta formulao, Adrian Forty mostra como

    as condies estipuladas por De Fusco so preenchidas na produo de cermica

    de Josiah Wedgwood, na Inglaterra do sculo XVIII, sob o regime de manufatura,

    antes, portanto, da substituio da ferramenta pela mquina promovida pela pri-

    meira revoluo industrial. Forty descreve os eventos e a pesquisa tecnolgica e

    inclusive esttica empreendida por esse capitalista, a introduo pioneira de pro-

    cedimentos e diviso de trabalho e, em particular, a atividade dos que considera os

    primeiros designers, numa produo ainda baseada na manufatura, portanto antesat do emprego de mquinas movidas a energia trmica (FORTY, 2007, p. 43-59).

    2 O livro didtico como objeto de pesquisa em design 27

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    28 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    Segundo essa mesma concepo, talvez se possa dizer que a produo do li-

    vro antecedeu a da cermica quanto presena do design, isto j no Renascimento

    e no surgimento do capitalismo comercial e da idade moderna. Enquanto suporte,

    o livro mudou pouco nesses 500 anos, conservando algumas caractersticas pra-

    ticamente inalteradas apesar das grandes diferenas na forma de produzi-lo, essa,

    sim, transformada pela revoluo industrial e o que se seguiu a ela. Mas desde aatividade de Aldo Manuzio, em finais do sculo XV, certamente o livro uma das

    primeiras mercadorias produzidas em escala mais ampla, ainda que artesanalmen-

    te, e que envolvia toda uma atividade de planejamento de grande complexidade,

    desde a traduo ou produo de originais de texto, o desenho e a produo pr-

    via dos caracteres tipogrficos, a definio de formato e campo a receber a impres-

    so, a produo e escolha de papis e tintas que interagissem adequadamente, a

    construo de uma matriz e o processo de produo de cpias, e a encadernao

    final5. No mnimo pode-se dizer que uma atividade manufatureira que antecipa

    procedimentos que s se generalizaro com a revoluo industrial, e que inaugura,ainda que timidamente, a era da reprodutibilidade tcnica, com todas as consequ-

    ncias para a cultura e a arte e que se aprofundaro mais tarde com a ampliao da

    escala de tiragem e com os novos suportes e meios de comunicao.

    No entanto, se se pode dizer que sempre existe design no caso da produo

    de livros e outros produtos, nem sempre existe projeto em sua acepo plena. No

    caso de uma capa de livro, mas tambm do seu interior, as instrues para reprodu-

    o esto consubstanciadas na prpria matriz, que ser reproduzida tecnicamen-

    te sem mais interferncia de trabalhadores, a no ser no controle da reproduo

    com base em uma prova-referncia da matriz. Assim, toda a concepo do projetoest concentrada nessa matriz, que pode ou no ter sido desenvolvida de forma

    a responder aos principais aspectos de produo, circulao e significado cultural

    com a conscincia, a intencionalidade e o domnio dos meios que caracterizam o

    exerccio do projeto. Se a reprodutibilidade exige algum grau de planejamento e

    projetao, outros aspectos decisivos no campo da circulao e do consumo, en-

    volvendo, portanto, o imaginrio e o simblico, podem estar sendo ignorados.

    Algumas situaes exemplificam o enfraquecimento do sentido de projeto.

    Procedimentos estandardizados podem ser aplicados automaticamente e sem

    reflexo a produtos particulares, sem considerar suas caractersticas especficas e

    contextos diferenciados de uso. Hbitos produtivos podem se tornar vcios crista-

    lizados que no acompanham e no percebem as transformaes tecnolgicas

    ocorridas no prprio processo produtivo, o que vai aparecer como inconsistncia

    de linguagem no prprio objeto. Tambm, a linguagem pode se apoiar em mode-

    los j superados por outras referncias produzidas socialmente e principalmente

    no se vincular a qualquer projeto ou inteno cultural que se afirme na sociedade,

    resultando em solues esvaziadas de sentido e deslocadas. Por fim, por razes

    relacionadas histria de um determinado segmento produtivo, a atividade de

    projeto pode estar sendo exercida por profissionais no qualificados para traduzir

    as complexas relaes entre projeto, produo, venda e consumo envolvidas nodesign de um produto.

    5Enric SATU (2005) traa o perfilde Aldo Manuzio, intelectual italianoque se tornou editor, tipgrafo e co-merciante de livros, impulsionando ainveno de Gutemberg na constru-o do livro moderno, agenciando acriao de fontes tipogrficas, entreas quais o itlico, inventando a bro-chura e o livro de pequeno formatopara a popularizao dos clssicosgregos e latinos que ele e outroshumanistas traduziu, e apresenta

    um panorama da produo livreirae das atividades envolvidas nos seusprimrdios.

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    6 So Paulo: Cosac Nafy, 2005.

    7So Paulo: Cosac Nafy, 2006.

    8Elisabelle Costa, Jos Fbio Luna,Igor Colares e Solange Coutinho.Um estudo sobre a linguagem visual

    grfica nos livros didticos pernam-bucanos ao longo das dcadas de

    1860 a 1990.

    2.2 O livro didtico nos congressos de pesquisa em design

    Apenas a partir dessa compreenso do design alm da dimenso esttica, ou me-

    lhor, de que a prpria dimenso esttica resultado de condies de produo

    em sentido amplo, que est sendo possvel constituir uma histria do design

    como histria da cultura material das sociedades industriais e abranger toda uma

    produo annima, tanto quanto a produo autoral, do desenho de objetos que

    povoam nossa vida cotidiana. E, como histria da cultura material, essa histria do

    design pode compor e integrar a histria das prprias sociedades.

    Assim, no Brasil, um marco fundamental o lanamento do livro O design bra-

    sileiro antes do design: aspectos da histria grfica: 1870-1960, organizado por Rafael

    Cardoso, que apresenta artigos sobre outros objetos do design grfico brasileiro

    at ento negligenciados, como as cartas de baralho, os rtulos litogrficos, livros

    e revistas, entre outros6. Esta publicao foi seguida por outras, como o O design

    grfico brasileiro anos 60, organizado por Chico Homem de Melo, que abarcou

    revistas, capas de livro, discos, cartazes,identidade visual e o ensino de design da-quela dcada7.

    Entre os muitos objetos produtos ou impressos a terem sua genealogia

    e materialidade ainda investigadas, o design do livro e o do livro didtico em par-

    ticular comeam muito timidamente a ser objeto de pesquisa, como revelam os

    nmeros dos ltimos congressos de pesquisa em design.

    No 4. Congresso Internacional de Pesquisa em Design, organizado pela ANPED

    (Associao Nacional de Pesquisa em Design) e realizado em outubro de 2007, de

    90 artigos apresentados,entre 10 de histria ou semitica do design, nenhum se

    ocupava especificamente do design de livros, e entre 10 de design grfico, designinformacional e comunicao visual, trs tratavam diretamente de livro, um de ca-

    tlogos tcnicos e um de design da informao em situaes didticas.

    No 8. Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, orga-

    nizado pela AEND (Associao de Ensino e Pesquisa em Nvel Superior de Design

    no Brasil) e realizado em outubro de 2008, num universo de 548artigos, 51 dedi-

    cavam-se histria do design, dos quais 8 tratavam do livro, e dentre eles apenas

    dois do livro didtico.

    O 4. Congresso Internacional de Design de Informao, organizado pela SBDI

    (Sociedade Brasileira de Design da Informao) e realizado em setembro de 2009,teve cinco trabalhos relacionados escola ou ao livro, com um deles tratando dire-

    tamente do livro didtico sob o ponto de vista de sua linguagem e histria.8

    J no 5. Congresso Internacional de Pesquisa em Design, da ANPED, realizado

    em outubro de 2009, foram dois os trabalhos sobre livro infantil, nenhum sobre

    livro escolar especificamente.

    Este quadro mostra que a pesquisa da histria dos objetos materiais e sua vi-

    sualidade se iniciou no Brasil, mas que h muito a fazer em todos os campos, e que

    o livro didtico, a que se dedica este trabalho, um deles.

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    30 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    3 LIVRO DIDTICO, VISUALIDADE, DESIGN E CULTURA

    Antes de apresentar os resultados da pesquisa sobre as capas de livros didticos na

    dcada de 1970, faz-se necessrio empreender um esforo de explicitao de al-

    guns raciocnios que envolvem conceitos de campos diversos que sero utilizados

    na anlise visual das capas. No se trata de uma exposio terica generalizadora eabrangente sobre leitura de imagem nem da definio dos elementos componen-

    tes do objeto livro e de tudo o que est envolvido no seu design, o que pode ser

    encontrado em obras temticas e manuais tcnicos; mas apenas de um exerciccio

    de reconhecimento do que determinadas conformaes visuais presentes em p-

    ginas de livros podem comunicar, para alm do contedo escrito, como forma de

    sensibilizar para o fenmeno visual e seu potencial informativo. Tambm se tenta

    buscar na tradio do livro didtico brasileiro em sua relao com a cultura escolar

    e com a cultura em geral as razes do que vai se chamar insensibilidade ou ignorn-

    cia do fenmeno visual como modo de conhecimento e produo de significado,que se acredita estar na base da inconsistncia da maioria das solues de capas

    do perodo analisado.

    3.1 O carter de uso do livro didtico

    A configurao visual de qualquer livro escolar, diferente da de qualquer outro

    tipo de livro, revela inequivocamente seu carter de uso especfico voltado para

    a escola ou para o estudo individual determinado pela escola. Isto aparece j nas

    primeiras coletneas de textos para leitura e estudo produzidas no sculo XIX no

    Brasil, em que algum tipo de organizao, cronolgica ou temtica, e a presenade comentrios e notas explicativas explicitam visualmente seu propsito. Aparece

    tambm nas primeiras cartilhas brasileiras, em que a apresentao das unidades

    silbicas, indo das mais simples s mais complexas, com seus respectivos exem-

    plos na forma de vocbulos e frases, referenciados a uma ilustrao, resultam em

    pginas com desenho diferenciado e especial. E certamente aparece nos livros de

    disciplinas que no podem prescindir de informaes visuais que complementam,

    interpretam ou traduzem as informaes veiculadas pelo texto propriamente dito.

    Em suma, o livro didtico deve ser produzido em adequao a parmetros que se imagi-

    na constitutivos de um instrumento auxiliar do processo de ensino e aprendizagem. Issoimplica uma srie de critrios j apontadas: contedo adequado ao currculo, legibilida-

    de e inteligibilidade apropriados ao pblico-alvo; subdiviso da obra em partes, comotexto propriamente dito, boxes, resumos, glossrio, bibliografia, atividades e exerccios

    etc., segundo uma estrutura de organizao adequada aprendizagem; e, sobretudo,subordinao do estilo do texto e da arte grfica a esse objetivo de servir de instrumento

    auxiliar de ensino/aprendizagem. (MUNAKATA, 1997, p. 100)

    Embora sejam um caminho para se chegar chamada cultura letrada, ou par-

    tam de algum grau dela para adentrar reas especficas do conhecimento, esses

    livros se diferenciam visualmente das obras tpicas que caracterizam a cultura letra-

    da j conquistada e estabelecida. Ou seja, aquelas cujas pginas so preenchidasunicamente com texto corrido.

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    3 Livro didtico, visualidade, design e cultura 31

    Mesmo as coletneas j apresentam uma interrupo no texto densamen-

    te composto, com introdues, comentrios e questes que evidenciam grafica-

    mente sua finalidade didtica. As cartilhas ilustradas vo bem mais longe em sua

    liberdade com a composio tipogrfica convencional, denotando a tentativa de

    se produzirem meios que permitam ao aprendiz chegar aquisio da escrita e da

    leitura. E, se as pginas de obras de Geometria no podem prescindir de constru-es grficas, as de Geografia ou Cincias procuram reproduzir o que se observa

    na natureza para ilustrar ou mesmo chegar aos conceitos expressos no texto es-

    crito. E as de Histria procuram fornecer alguma contextualizao ou imagens de

    seus personagens como recurso para facilitar a apreenso dos conhecimentos ou

    valores veiculados. De qualquer maneira, visualmente no h como confundir uma

    obra escolar com outra que no apresente esse compromisso ou finalidade.

    3.2 A pgina (apenas) de texto

    A estrutura visual do livro formado apenas por texto composto parece bastantecomum, estamos acostumados a ela porque constitui a forma da grande maioria

    dos livros e gneros que conhecemos, dos romances aos livros de autoajuda, dos

    ensaios s obras de divulgao cientfica e at de parte dos livros escolares mais

    antigos ou atuais voltados para os cursos superiores. O que ela contm de informa-

    o parece que se restringe apenas sequncia de palavras que precisaremos ler

    para extrair os significados.

    Mas a pgina cheia de texto que achamos to natural que no conseguimos

    imaginar que pudesse ser diferente para determinados contedos foi construda

    pela histria e por isso j nos diz algumas coisas antes da leitura que faremos doscaracteres nela impressos.

    9Um estudo rico e completo dessaobra e sua importncia para a afir-mao da nacionalidade, bem comoas caractersticas e autores das vriasedies em sua relao com o ensinoda lngua e da literatura nos vriosperodos da educao no Brasil feito por Mrcia Razzini em sua tesede doutorado O espelho da nao: a

    Antologia Nacional e o ensino de por-tugus e de literatura (1838-1971),j mencionada na Introduo.

    Pginas, capa e rosto

    daAntologia Nacional,

    de Carlos de Laet e

    Fausto Barreto. 19.

    ed., 1934, Francisco

    Alves (1. ed., Paulode Azevedo,1895).

    Apresentava

    ordem cronolgica

    inversa, do perodo

    contemporneo ao

    medieval, notcias

    biobibliogrficas antes

    do primeiro excerto

    de cada autor e notas

    explicativas (estas

    apenas aps a 25. ed.,

    de 1945).9

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    32 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    A primeira coisa que nos comunicada que, diferentemente de uma revista

    ilustrada ou de um livro escolar, essa pgina com apenas texto traz a marca da cul-

    tura letrada no sentido mais pleno. Parece bvio e coisa de pouca importncia, mas

    com a expanso da imprensa de massa no sculo XIX sob diferentes modalidades

    jornais e revistas ilustrados e principalmente o incio da presena da publicidade

    que os acompanhava esse carter de repositrio da alta cultura literria e prin-cipalmente da cultura humanstica foi num primeiro momento bastante reforado

    e transformado numa marca de distino social. Com o desenvolvimento da in-

    dstria cultural e a criao de gneros literrios populares, paralelamente alfabe-

    tizao como conquista social das massas, esse carter da pgina composta como

    veculo exclusivo da alta cultura pode ter sido em parte diminudo, mas ainda hoje,

    para muitos segmentos da populao, mesmo ler livros de autoajuda e romances

    ligeiros marca de distino cultural e social em relao a quem no tem acesso a

    eles ou no tem o hbito de leitura.

    A esse significado primeiro que uma simples pgina de texto comunica visu-almente outros podem ser acrescentados, conforme as variaes formais possveis

    dentro desse esquema bsico. Uma pgina muito densa, com texto composto em

    corpo pequeno, pouca margem e espao pequeno entre as linhas, antes que uma

    questo de economia ou equvoco tcnico pelas dificuldades que impe pode ser

    eficaz do ponto de vista de algo tambm importante que pretende comunicar,

    a autoridade do autor e a importncia e transcendncia de seu contedo, que

    estimula o leitor especializado e treinado a enfrent-lo como um desafio que valo-

    rizar seu esforo, ao mesmo tempo que infunde o respeito naqueles que nunca

    o lero.vidos pelas narrativas, raciocnios e imagens poticas resultantes da leitura

    como sequncia de palavras formadas por letras e formando frases e perodos, no

    nos damos conta da visualidade e materialidade dessa pgina de texto. Na verdade

    ela nos parece invisvel como forma, transparente, e geralmente bom que assim

    seja. Afinal, queremos viajar nas palavras, de preferncia elevados do solo, e no

    tropear em letras, manchas, texturas e outras pedras encontradas pelo caminho.

    Mas, para que essa nossa viagem tranquila acontea, preciso que algum veja

    primeiro que ns esses materiais, escolha os mais adequados e os organize visual-

    mente. Esse algum sempre uma pessoa real com um treino e habilidade espe-

    cficos, mas o que interessa nesse momento a existncia na cultura, ou na nossa

    cultura, desse tipo de pgina, e o significado que ela contm e transmite. Primeiro

    de tudo, a prpria eficincia e favorecimento da leitura que essa pgina parece

    oferecer e que implica um trabalho tcnico para obt-la tambm um significado

    cultural, um fato da cultura.10

    No caso de muitos livros escolares do final do sculo XIX e comeo do XX no

    Brasil, mesmo que dirigidos a crianas em fase de alfabetizao ou recm-alfabeti-

    zadas, essa configurao de pgina os inscreve no universo da cultura letrada, que

    faz com que o prprio processo de adquiri-la no pressuponha nenhuma facilita-

    o atravs de uma organizao visual especial e mais amigvel. A escola aindaera para poucos e a educao era coisa sria a ser obtida arduamente, que o diga

    10 Na verdade, a neutralidade eregularidade do texto impressodeterminadas por seu processotecnolgico seriam um aprofunda-mento de uma tendncia contida naprpria escrita desde suas origens.Para Pierre Lvy, a escrita rompe acircularidade do tempo mtico dasculturas orais e instaura o tempohistrico, linear, as noes de pas-sado, presente e futuro. O registroescrito distancia os momentos e ascondies concretas da redao e daleitura de um texto e com ele surgetambm a construo de discursosque bastam a si mesmos, de carteruniversal e atemporal, o chamadoconhecimento terico. Na formaimpressa, a escrita parece adquiriruma neutralidade ideal para o re-gistro indiferenciado de narrativas econhecimentos de diversas origens,campos, enfoques e intenes, re-forando a potencialidade da escritaem geral de separar as circunstnciasem que os discursos so produzidos

    das circunstncias de sua recepo eapresentar as ideias em sua supostapureza.

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    3 Livro didtico, visualidade, design e cultura 33

    Graciliano Ramos. Como parte dessa cultura transmitida pelo texto, a invisibilidade

    de sua forma era tambm um pressuposto.

    Mesmo destinada apenas leitura de seu contedo lingustico e despojada

    de imagens ou elementos grficos, a pgina de texto composto antes de tudo

    e sempre visual. O texto formado por letras que tm determinada estrutura

    construtiva, com relaes entre os vazios e os cheios que as tornam mais pesadasou mais leves, com inclinaes ou orientao vertical mais acentuada que induzem

    a maior ou menor velocidade de movimento dos olhos na leitura, com caracters-

    ticas plsticas que as relacionam a perodos histricos ou reas de conhecimento.

    Mesmo uma pretendida neutralidade no deixa de corresponder a um estado de

    esprito e predisposio psicolgica, e, como j dissemos, encarna um significado

    cultural fundante das sociedades ocidentais, a autoridade do texto escrito.

    As linhas que elas, letras, formam podem estar mais afastadas, individualizan-

    do-se como tais e marcando um determinado ritmo; ou juntas, reforando a qua-

    lidade de superfcie do texto impresso. Alm das linhas de texto, outras linhas sotambm vistas as quatro formadas pelos limites laterais e superior e inferior das

    linhas de texto, que podem ser mais definidas, conforme a distncia entre as linhas,

    ou mais quebradas e interrompidas, conforme as dimenses dos pargrafos, im-

    pondo uma percepo de ritmo variado ou um pulso regular. A superfcie resultan-

    te da reunio das linhas pode ser mais densa, mais escura ou clara, de tonalidade

    homognea, ou irregular e manchada, conforme a concentrao de determinados

    caracteres e palavras. E essa superfcie est dentro de outra, a folha de papel, com o

    inevitvel estabelecimento de uma relao de posicionamento e proporo entre

    ambas, ou melhor, entre duas manchas de texto e o termo mancha no escon-de seu significado visual e uma superfcie maior formada pela pginas direita

    e esquerda do livro aberto, complexizando essas relaes compositivas. O papel

    tambm possui sua textura, seus valores tteis, e a cor da tinta, bem como a carga

    de impresso, estabelecem diversos graus de contraste entre ambas as superfcies

    com efeitos plsticos e perceptivos diferentes. A impresso tipogrfica, alm de

    depositar a tinta, marca o papel e d textura e relevo pgina, percebidas pelo tato

    e pela vista.

    Voltando questo do desenho das letras, aqui tambm se manifesta a auto-

    nomia da linguagem visual e suas leis e da cultura plstica em relao cultura

    escrita. Ou seja, mesmo a servio da construo da forma dos signos do prprio

    cdigo da linguagem verbal, da cultura escrita, so as necessidades e processos de

    criao prprios da forma a ser percebida visualmente o que determina a constru-

    o plstica das letras. Assim, o desenho de tipos foi, e , uma atividade bastante

    especializada, que rene conhecimentos de forma e julgamento visual, de tcnicas

    de reproduo, suportes, meios e tintas.

    Cada fonte tipogrfica apresenta um desenho caracterstico e um produto

    no s do talento e trabalho de seu criador, mas tambm da tradio que o antece-

    deu, da cultura em que foi produzido e de determinadas necessidades e intenes.

    Cada um dos grandes desenhos de fontes j produzidos em primeiro lugar pre-serva conscenciosamente a tradio da escrita romana (no caso ocidental) pelas

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    34 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    necessidades de transmitir um cdigo que no pode ser modificado sob risco de

    instaurar a arbitrariedade na comunicao e em ltima instncia a destruio da

    prpria cultura, e, no entanto, inova e refresca a tradio. Tanto quanto as escritas

    cursivas anteriores imprensa revelam sua poca, as fontes tipogrficas so nitida-

    mente reconhecidas como renascentistas, barrocas, neoclssicas, romnticas, mo-

    dernas, ps-modernas, enfim, se alinham formal e espiritualmente com a culturaque as produziu, mesmo aquelas que em cada um desses momentos buscasse a

    neutralidade e invisibilidade. E embora seus criadores possam ter buscado desen-

    volv-las com critrios de adequao s caractersticas da lngua a que serviriam

    ocorrncia maior de determinadas letras, predomnio de ascendentes, descen-

    dentes ou maisculas, etc. e aos meios de reproduo e caractersticas do su-

    porte e das tintas, buscando a maior regularidade possvel para no tirar a ateno

    do contedo a ser lido, eles o fizeram informados pelo ambiente cultural em que

    viviam, informando-o tambm e tornando sua criao parte dessa cultura.

    Todos os elementos e configuraes materiais e plsticas presentes na simplespgina de texto certamente informam alguma coisa isoladamente, mas na verda-

    de aparecem combinados e sua percepo se d pela totalidade dos efeitos dessa

    combinao. E antes da leitura lingustica se realizar j esto a enviar mensagens

    que nosso sistema cognitivo trata de decodificar, numa velocidade infinitamente

    mais rpida que a da leitura linear feita da direita para a esquerda e de cima para

    baixo que buscamos na decodificao do cdigo lingustico. Essas mensagens

    certamente so de natureza e complexidade diferentes da mensagem escrita e

    uma no se reduz nem traduz a outra. No entanto, os dois modos de elaborao e

    transmisso de mensagens, o visual e o lingustico, comparecem juntos na cons-truo de significados propostos pela pgina impressa.

    Um mesmo original, editado de maneiras diferentes quanto a formato, dese-

    nho das letras, ocupao da mancha, paginao, resultar em livros diferentes, pois

    passar ideias diferentes de seu contedo e certamente ser destinado a pblicos

    diferentes.

    Numa pgina com desenho mais complexo, que combina texto, imagens e

    outros elementos grficos, parece mais evidente seu carter visual e que sua leitura

    no exclusivamente lingustica. Como so grandes as possibilidades de combi-

    nao bem como a variedade e as caractersticas que pode ter cada elemento

    desenho das letras, estilos das ilustraes e fotografias, uso de cores, organizao

    espacial etc. , a possibilidade de significados comunicados visualmente parece

    ser bem maior, e efetivamente . Por exemplo, o arranjo de elementos que identifi-

    cam uma publicao com um grupo de leitores com interesses comuns, ou o que

    predispe afetivamente para a leitura, criando o clima ou o cenrio grfico para

    a recepo do contedo textual que ser lido. Enfim, aqui tambm, contedos so

    transmitidos antes da leitura propriamente lingustica.

    Aqui cabe um paralelo com o texto falado: este nunca estritamente verbal,

    mas tambm visual, pois combina expresso facial, gestos e posturas corporais,

    que tambm comunicam contedos independentemente do que est sendotransmitido pelas palavras. Mais ainda, o prprio suporte sonoro das palavras co-

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    3 Livro didtico, visualidade, design e cultura 35

    munica contedos independentes delas prprias, dados pelo tom e volume da

    voz, timbres e inflexes, ritmos e nfases, a tal ponto que comum perceberem-se

    contradies entre um e outro, quando o discurso lingustico estrito afirma uma

    coisa e seu suporte sonoro e gestual indica outra.

    J vimos que o texto escrito tem tambm um forte componente visual: com-

    posto com fontes tipogrficas com desenho originado de consideraes estticas,psicolgicas e pragmticas e impresso em algum material, com determinado for-

    mato e com determinada ocupao desse formato. E tambm podemos acrescen-

    tar que esse componente visual pode veicular at contedos atribudos ao modo

    auditivo/sonoro, quando se diz que uma pgina ou pea grfica comporta um

    tom ou voz visualpara uma mensagem, e os contedos comunicados por essa

    voz tambm precisam estar adequados ao contedo lingustico sob risco deste

    ser contradito pelos primeiros. Essa associao entre diversos modos ou suportes

    de comunicao no simplesmente uma metfora feliz, mas revela a multimo-

    dalidadeenvolvida nas mais diversas manifestaes da comunicao humana11

    .No entanto, no que tange ao texto escrito e impresso, essa multimodalidade mui-

    tas vezes foi e largamente ignorada, como poderemos constatar no tratamento

    dado a miolos e capas de livros escolares.

    Os elementos ou materiais que constroem a visualidade de uma pgina (e de

    uma capa, um quadro, uma fotografia ou uma escultura) so articulados segundo

    lgicas e procedimentos prprios do modo visual e seus materiais, diferentes da

    lgica e dos procedimentos prprios do modo lingustico. Assim, a leitura de um

    ttulo, de uma legenda ou de um bloco de texto seguir o procedimento da leitura

    ocidental, no nosso caso, da esquerda para a direita e de cima para baixo, e seusignificado ser obtido pelas regras da gramtica que relacionam atributos e aes

    a sujeitos, segundo determinados procedimentos e no outros. Mas o momento e

    a sequncia em que a leitura desse texto ter incio, se antes ou depois de outros

    textos ou da percepo de outros elementos, e a importncia e o significado que

    seu posicionamento e relao com os outros materiais grficos transmitiro sero

    determinados por outro tipo de gramtica, o da linguagem visual12. Ou seja, tanto

    como uma forma em uma pintura abstrata, o todo poderoso texto, na pgina ou

    numa pea de comunicao, mais um elemento grfico e se submete lgica

    da composio visual e aos significados que ela, e s ela, capaz de construir.

    Isto ocorre porque, enquanto contedos veiculados pela escrita so acessados

    por um processo temporal mais lento, baseado na leitura sequencial e condiciona-

    da de unidades de significado dispostas linearmente, contedos veiculados visu-

    almente so acessados de maneira muito mais rpida, segundo trajetos do olhar

    mais flexveis propostos pelos contrastes e relaes espaciais presentes em cada

    caso concreto que o visualizador tem diante dos olhos. Essa caracterstica holsti-

    ca, mais espacial que temporal, da percepo visual, reconhecida empiricamente

    pelo senso comum e estudada pela psicologia cognitiva, justamente respons-

    vel pela percepo de contedos decisivos para a decodificao de mensagens e

    construo de significados. Como o componente visual de uma mensagem chegaprimeiro ao crebro, este pode reagir muito imediata e desfavoravelmente caso

    11 Peter BONNICI, em Visual Lan-guage: The hidden medium of com-

    munication, investiga e apresenta demaneira bastante didtica a noode voz visual.

    12 KRESS; LEEUWEN (cit., p. 20)admitem o emprstimo desse termoda lingustica apenas no sentido deque tanto como as mensagens es-critas, as manifestaes imagticasapresentam algumas regularidadesformais associadas a alguns sentidossocialmente codificados dentro deuma cultura, nunca como uma equi-valncia entre os processos internosde construo das mensagens dosdois modos. Ou, como pode ser vistoem SANTAELLA & NOTH, 1999, p.50-51, ao contrrio da sintaxe ver-bal, que articula atravs de regraspreestabelecidas um repertrio deunidades mnimas com valor deoposio (fonemas), uma sintaxevisual no existe a priori, mas seestabelece em cada manifestaoparticular. Ou seja, se h algum valorfuncional nos elementos que for-mam uma imagem (formas, cores,etc.), ele contextual, pois s podeser deduzido a partir da imagem

    percebida como totalidade. Em ou-tras palavras, cada imagem estabe-lece sua prpria sintaxe.

  • 7/26/2019 Didier Dominique Cerqueira Dias de Moraes

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    36 Parte I O livro didtico e sua visualidade na dcada de 1970

    o componente lingustico no esteja perfeitamente combinado com o primeiro,

    no aderindo mensagem