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VIRTUDES DEMOCRÁTICAS DA INTERNET* Por Dominique Cardon Resumo: Como caracterizar as formas políticas da revolução internet? Nesse ensaio o autor coloca em evidência as tensões que transpassam a rede das redes, notadamente a igualdade radical dos internautas, a visibilidade extrema das subjetividades, a produção das novas solidariedades, a construção da legitimidade. Observação: Este texto é o esboço de uma apresentação feita na mesa redonda “Internet e renovação democrática” (com Daniel Bourgnoux e Patrice Flichy), conduzido por Caroline Broué no fórum “Reinventar a democracia” (organizado pela ‘Republique dês idées em Genebra, 9 de maio de 2009) Com relação à questão do lugar da Internet na renovação das figuras da democracia muitas respostas, diversas e contraditórias, podem ser dadas. Então, considerando a internet como um todo, seja objeto técnico, mídia, espaço público, suporte ou instrumento político, assume-se o risco de reunir coisas tão diferentes que se produz uma enorme generalização sobre esse improvável objeto sem, contudo, chegarmos a especificá-lo. Gostaria, contudo, de assumir o risco adiantando, sem muitas precauções, seis proposições relativas à experiência da democracia na internet. De fato por história, as escolhas tecnológicas que direcionaram sua concepção, na maneira como as comunidades de desenvolvedores imaginaram sua governança, os tipos de uso que foram desenvolvidos, a internet incorporou um código político particular, uma forma de escolha democrática que lhe é, se não for própria, pelo menos suficientemente idiossincrática para lhe estar associada. Daí que a diversidade das práticas políticas que se desenrolam na rede das redes impede a produção de um único modelo. Mas nos parece que no seio dessa multiplicidade podemos divisar uma infraestrutura de união, um horizonte normativo comum e esse exercício de pensamento não será vão se pudermos ajudar a identificar as características mais virtuosas da forma política da internet frente às mudanças em curso. 1

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Tradução de artigo de Dominique Cardon sobre política e internet.

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VIRTUDES DEMOCRÁTICAS DA INTERNET*

Por Dominique Cardon

Resumo: Como caracterizar as formas políticas da revolução internet? Nesse ensaio o autor coloca em evidência as tensões que transpassam a rede das redes, notadamente a igualdade radical dos internautas, a visibilidade extrema das subjetividades, a produção das novas solidariedades, a construção da legitimidade.

Observação: Este texto é o esboço de uma apresentação feita na mesa redonda “Internet e renovação democrática” (com Daniel Bourgnoux e Patrice Flichy), conduzido por Caroline Broué no fórum “Reinventar a democracia” (organizado pela ‘Republique dês idées em Genebra, 9 de maio de 2009)

Com relação à questão do lugar da Internet na renovação das figuras da democracia muitas respostas, diversas e contraditórias, podem ser dadas. Então, considerando a internet como um todo, seja objeto técnico, mídia, espaço público, suporte ou instrumento político, assume-se o risco de reunir coisas tão diferentes que se produz uma enorme generalização sobre esse improvável objeto sem, contudo, chegarmos a especificá-lo. Gostaria, contudo, de assumir o risco adiantando, sem muitas precauções, seis proposições relativas à experiência da democracia na internet.

De fato por história, as escolhas tecnológicas que direcionaram sua concepção, na maneira como as comunidades de desenvolvedores imaginaram sua governança, os tipos de uso que foram desenvolvidos, a internet incorporou um código político particular, uma forma de escolha democrática que lhe é, se não for própria, pelo menos suficientemente idiossincrática para lhe estar associada. Daí que a diversidade das práticas políticas que se desenrolam na rede das redes impede a produção de um único modelo. Mas nos parece que no seio dessa multiplicidade podemos divisar uma infraestrutura de união, um horizonte normativo comum e esse exercício de pensamento não será vão se pudermos ajudar a identificar as características mais virtuosas da forma política da internet frente às mudanças em curso.

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Sendo assim destacaremos seis virtudes democráticas caracterizando elas em função das críticas que lhe são feitas por conta das categorias do espaço da política representativa. Opondo à forma política da internet à forma política representativa tradicional esperamos expor as virtudes e as armadilhas. Numerosos trabalhos já colocaram em evidência a ideologia “liberal-libertária” da rede das redes, apoiando-se notadamente sobre as biografias e representações dos pioneiros da internet(1). Outras implantaram, com perspectivas múltiplas, a metáfora da rede-rizoma para desenhar os contornos de uma outra política de web, feita de subjetividades, de exílios e de novas formas do comum. Aqui pretendemos sobretudo nos determos sobre o tratamento particular que a internet reserva à quem toma a palavra em público.

As seis virtudes políticas da internet

Virtudes Armadilhas

1 A pressuposição da igualdade A exclusão dos imóveis

2 A liberação das subjetividades A despolitização narcisística

3 O espaço público em suas bases O fim da vida privada

4 A força da cooperação fraca A fragilidade dos engajamentos

5 A auto-organização A burocracia processual

6 A legitimidade ex-post A quebra da diversidade

As três primeiras virtudes democráticas da forma política na Internet, sobre as quais nos debruçamos, são consequência do processo de ampliação radical do espaço público que as favoreceu. Há muito tempo este papel da Internet é o mais considerado. Ela acabou desestruturando o espaço firmemente controlado e o conteúdo da expressão pública ao abri-lo em favor de novos postulantes. A web liberou a palavra, dando a impressão de contestar a autoridade daqueles que monopolizavam o acesso ao espaço público – jornalistas, homens de política e experts. Podem ser tirados três ensinamentos desse alargamento que toca respectivamente na definição dos públicos (pressuposição da igualdade), a diversidade de expressões (a liberação da subjetividade) e a porosidade entre a conversação ordinária e a discussão pública (o espaço público em suas bases).

1. A pressuposição da igualdade

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A Internet manifesta, no seu nível mais elevado, a “pressuposição da igualdade” que o ideal democrático visa quando ele reivindica, contra toda partilha, “a parte sem parte” no espaço da palavra pública(2). A autoridade do estatuto, como tal, não recebeu mais que uma fraca legitimidade quando ela não é mais que o objeto de um processo de liberação pendente ou de uma contestação implícita. Entretanto essa pressuposição de igualdade não é, como no processo eleitoral, uma ficção útil destinada a manter isoladas as características sócio-econômicas dos indivíduos afim de produzir uma contagem igualitária de opiniões. A pressuposição de igualdade na Internet – desse ponto de vista a Wikipédia é exemplar - visa não valorizar, nem hierarquizar as pessoas senão pelo que fazem, produzem e dizem, e não a partir do que elas são. A Internet incorporou de uma maneira particularmente sensível essa idealização democrática que convida todos e cada um a colocar na prática uma ou outra de suas competências, tão diversas quanto sejam. É a primeira lição democrática que devemos à experiência da Internet. Na pressuposição de uma igualdade de todos ela leva o mais longe possível e refutação de examinar as qualidades e posição das pessoas , instaurando mecanismos de socialização e correção, afim de integrar, sem concessões nem paternalismo, as novas personagens no espaço de expressão da rede das redes.

A exclusão dos imóveis

Essa pressuposição de igualdade valoriza, entretanto, de maneira excessivamente liberal, as responsabilidades individuais dos atores. Como em toda a forma de rede a promoção dos que agem é extraordinariamente excludente. Os móveis desqualificam os imóveis. Os ágeis contornam os enraizados. Os farsantes ocupam o espaço dos artesões conscientes e modestos. Própria ao universo das redes (3) essa tensão ataca tão profundamente a própria infraestrutura dos engajamentos na Internet que seus efeitos são raramente abordados. O que dizer se cada convite à participação ativa contém, ele próprio, a desqualificação dos silenciosos e dos passivos? Atrás do horizonte democrático do “todo-participativo” se reproduz as inegualdades que têm por origem a desigual distribuição dos capitais sócio-culturais de nossa sociedade.Torna-se, entretanto, possível obter correções dessas inegualdades ocultas se aceitamos expandir a noção de participação em formas de expressão menos exigentes social e culturalmente. Nesse olhar

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a lição democrática a que nos convida essa pressuposição de universalidade das competências é a reabilitação das formas ínfimas, incompletas, fúteis e murmurantes, de participação. O que a Internet nos mostra é que é possível fazer emergir uma grande variedade de definições de qualidade das pessoas, sem, entretanto, lhes organizar imediatamente sob as asas de uma legitimidade produtora de desqualificações simbólicas.

2. A liberação das subjetividades

Nos espaço público tradicional, o da imprensa, do livro, do rádio e da televisão, a restrição do distanciamento é tão forte que pode se transformar num instrumento de exclusão à luz de numerosas formas de tornar as palavras mais subjetivas, mais interessadas, mais irresponsáveis, mais brincalhonas ou mais violentas (4). A ampliação do acesso ao espaço público na Internet é de alguma forma “paga” pela ausência de restrições no distanciamento que estabeleceram formas do discurso público (político, jornalístico, intelectual) estabelecidas no horizonte regulador da razão, do autocontrole, da argumentação e do desapego frente aos interesses particulares. Sem romper com os ideais regulatórios (ao contrário, eles se encontram às vezes reforçados e reafirmados por certas formas de debate na Internet), a rede das redes também cria armadilhas, torna visível e encoraja a expressão de todo tipo de subjetividades. É uma nova “partição do sensível”, falando novamente como Jacques Rancière, que estima a Internet tornar visível de repente, para o desgosto de muitos, uma pluralidade e uma diversidade expressiva antes invisível. A Internet nos ensinou que para expandir o círculo da expressão pública é necessário tolerar os enunciados na primeira pessoa, os pontos de vista assumidos, as vozes irrisórias, os pontos de vista, as afirmações peremptórias, comentários arriscados, poéticos, malucos, engraçados e vibrantes.A web não é, assim, um espaço público unívoco, transparente e suave. Em razão de sua grande plasticidade os usuários acabam promovendo inúmeras maneiras de associar sua identidade à informação. A interação “distanciada” entre identidade civil e informação de interesse geral que constitui a forma legítima de expressão pública na nossa concepção de espaço público não ocupa mais que um lugar muito específico, mesmo que bem visível. E será perigoso e redutor considerar a web apenas dessa perspectiva que a transforma em não mais que um espaço de informação, de circulação da idéias e avaliação crítica. Expostas,

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as formas de participação cidadã na web são submetidas a uma vigilância crítica permanente, submetidas pela manipulação dos atores públicos.Mas os internautas também apreenderam que certas propostas devem ficar ocultas nas zonas obscuras e fechadas da Internet e que outras podem florescer nos espaços intermediários, num tom cinza, onde, por estarem públicas fica difícil imaginar que têm um caráter semi-clandestino (5). O que nunca se comentou é que essa plasticidade das formas de visibilidade está na origem da diversidade, da vitalidade e da criatividade dos jogos de conversação que os internautas souberam demonstrar depois da invenção da World Wide Web; sem dívida abrigaram nas zonas cinzas as experimentações estilísticas e narrativas mais ricas. Assim uma transparência completa da própria Internet, abolindo os espaços cinza a fim de trazer luz aos motores da pesquisa constitui-se em real ameaça para os que detêm a palavra e que souberam se afirmar e proliferar por conta daqueles que tem sua visibilidade limitada.

A despolitização narcisística

A abertura na direção de uma diversidade de detentores da palavra que o anonimato, útil instrumento de desinibição, agora reforça, parece abrir uma Caixa de Pandora e libertar os conteúdos de status incerto, desconhecido, proibido e sem precedentes no espaço público tradicional. Mas essas subjetividades têm lugar no espaço público? Não abrimos o espaço de visibilidade comum às propostas privadas, pessoais ou familiares, geralmente dentro da sociabilidade daqueles que são próximos e que não têm pertinência no espaço público? A descompartimentalização dos detentores da palavra fez aparecer expressões onde a forma, a qualidade e o interesse parecem muito afastados de toda preocupação pública. A efervescência subjetiva da web não é, portanto, a marca de uma forma de desengajamento político no sentido de um culto narcisístico e consumista de individualidades triunfantes?De mais a mais essas interrogações servem frequentemente como ponto de entrada ao desenvolvimento de uma crítica pontuando a normalização das produções amadoras e o desvio de suas potencialidades na direção de uma proposta, em si própria, anestesiante. A massificação da expressividade popular na web contribuirá de um lado, na alienação da subjetividade dos indivíduos sob a cobertura de uma expressividade conformista, estratégica e exibicionista e, de outro lado, na transformação das produções

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individuais benévolas em mercadoria, em decorrência dos novos vetores do capitalismo internacional (6). Portanto, rompendo a barreira entre expressão privada e pública, essas críticas testemunham uma concepção muito restringente e homogeneizante da participação cidadã, transformando o espaço público num simples prolongamento do espaço representativo do governo e das mídias frente a um círculo escolhido de cidadãos esclarecidos. Então as novas formas de expressão da Internet não buscam apenas abrir o espaço público “oligárquico” a uma periferia de novos locutores. Elas pluralizam e distribuem diferentemente as formas de palavra política, apurando as linguagens e ocupando os espaços que política convencional não sabe reconhecer.

3. O espaço público em sua base

Em numerosos usos participativos da Internet, notadamente nas plataformas das redes sociais, não se dirigem a um agregado anônimo unificados e uma ficção abstrata e destacada como figura o público na arquitetura normativa do espaço público, mas a um grupo mais ou menos circunscrito de próximos. Claro, eles falam em público. Mas a seu ver, esse público, existindo uma fronteira absolutamente instransponível, é limitado a uma zona de ‘interconhecimento’, um lugar mais ou menos fechado, um território que conservará as proposições antes que evaporem. O espaço público da internet é feito de uma multidão de conversações em enxame, convergentes, que se articulam umas com as outras numa lógica de aproximação em que ninguém pode prever até onde vão. O embaralhamento dos níveis de visibilidade está no âmago das práticas de expressão das pessoas na Internet. O que normalmente vai por canais diferentes, a comunicação interpessoal, de um lado e o assumir a palavra em público, de outro, é normalmente (de forma prática) reunificado pelo indivíduos num processo de produção de identidades que associa a relação a si e a relação ao mundo. No seu Facebook, seu blog ou sua conta Tweeter, os usuários falam eventualmente de eventos pessoais, próximos ou familiares e comentam atualidades, fazem circular as informações e enriquecem a discussão pública. Eles mesclam os níveis de linguagem, os tipos de discurso e os públicos diferentes, o que contribui para tornar mais visíveis, e certamente públicos, os centros de interesse, as opiniões e os eventos, que não existem ou são mal percebidos pela mídia dos profissionais. Essa porosidade entre os espaço de conversação e o espaço público está na raiz das novas formas de mobilização e organização da ação coletiva. A forma política da

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Internet nos apresenta assim uma concepção heróica e unitária do “público” e atenta a agregação dos públicos como uma dinâmica de encadeamento de conversações que alargam e se somam para abandonar seu isolamento e ganhar a atenção comum (7).

O fim da vida privada

Essa porosidade entre o espaço da sociabilidade e o espaço públco tem, entretanto, o risco de expor informações pessoais a todos. À “vigilância institucional” do Estado e das empresas, entorno da qual se organiza o essencial do debate sobre informações pessoais, se superpõe hoje uma “vigilância interpessoal” de um novo tipo(8). Com a “democratização” dos instrumentos de observação que as plataformas relacionais distribuem a seus utilizadores, o NewsFeed do Facebook é, sem contestação, o emblema desse novo panoptismo horizontalizado, a exposição de si é um risco que se assume perante os próximos, a família, os colegas, os empregados, os amantes ou os vizinhos.A profecia ‘deluziana’ da passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle assume aqui todo sentido, já que ,descentralizada e distribuída, a vigilância transforma-se num controle que todos exercem sobre os outros e sobre si mesmo. Assim, uma das dificuldades políticas dos que denunciam as sociedades de vigilância é ter hoje conta do fato de que o controle político do mercado de perfis se mistura cada vez mais profundamente no ‘hubris’ curioso das auto-vigilâncias. Como se assegurar da credibilidade dos cidadãos para denunciar os riscos da vigilância institucional quando eles de forma deliberada e consciente tornam públicas informações pessoais e desenvolvem uma insaciável curiosidade pelas informações enviadas por outros?Ao transformar as formas do “tomar a palavra” e torná-las mais plásticas e porosas, a Internet favorece a circulação de informações, visando basicamente uma “transparência” de nossa sociedade. Contribui para colocar em evidência uma série de conteúdos retidos por barreiras técnicas, jurídicas, institucionais ou comerciais. Mas essa liberação de conteúdos que subverte as fronteiras tradicionais da economia do conhecimento (9) e alarga os espaços da crítica ao oferecer novos recursos para a verificação “cidadã” é também inseparável de uma maior circulação de informações sobre os indivíduos. Com efeito, uma das particularidades das formas de troca alargadas na Internet é que as pessoas e os conteúdos são cada vez mais anexados uns aos outros e que são justamente as anexações que favorecem os

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efeitos da circulação, da parceria e da difusão. Mesmo se, contrariamente a certas crenças, as informações pessoais estão visíveis na Internet, longe de revelar a intimidade das pessoas, são muito mais revelação de sua atuação estratégica. É incontestável que o espaço público alargado da Internet está num embate, por sua vez, contra o segredo das informações e contra a invisibilidade das pessoas.

A descoberta do comum

Servindo de apoio ao processo de alargamento do espaço público, três outras virtudes democráticas de internet agregam pela maneira como aparecem (a força das cooperações fracas), funcionam (a auto-organização) e se legitimam (a legitimidade ex-post) as formas coletivas na web. Com efeito, a Internet produz coletivos sensivelmente diferentes daqueles que emergem no mundo real – o que não significa que ela não as abrigue, reproduzindo-as na rede, as formas coletivas tradicionais. Mas nosso objetivo aqui é expor as especificidades da forma da Internet quanto aos seus limites. É também por essa maneira de produzir as solidariedades num contexto de individualização expressiva que a Internet pode reivindicar uma forma política própria. Sua marca própria, a mais inovadora, leva à inversão, quase sistemática, das etapas dos processos de formação dos grupos. As operações de filtragem, de seleção, de agregação, de coordenação, de incorporação dos valores comuns pelos indivíduos e de legitimação no interior do espaço público não se dão à priori, mas à posteriori (10). Esse deslocamento, se quisermos ser bastante cuidadosos, tem efeitos muito fortes sobre a economia da ação coletiva.

4. A força das cooperações fracas

As “comunidades” da Internet são eletivas. Não têm nada a haver com a imagem de aldeia e tribo que certos pesquisadores querem ressuscitar usando um vocábulo comunitário, a fim de fortalecer a alma ou um enraizamento territorial nos coletivos de Internet. Elas se apresentam muito mais como o resultado coletivo de uma soma de ações individuais que, inicialmente, não foram ou foram pouco orientadas pelo gênero de intenção geralmente pronto a se empenhar ordinariamente com vistas a preocupação de se engajar nos valores partilhados por uma comunidade. Elas, as comunidades, não resultam então do modelo tradicional da comunidade de destino, de identidade ou de pertinência o que

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pressupõe a existência, nos indivíduos, de um valor ou atributo incorporado a eles antes do seu engajamento.As maiores partes dos coletivos de Internet são a consequência emergente de interações oportunistas onde a premissa é a exposição pelos indivíduos de sua identidade, de seus gostos, de suas atividades e de suas obras. Os indivíduos começam por tornar públicos seus interesses expressivos. Os outros capturam as atrativas privacidades oferecidas pelos indivíduos expostos como forma de iniciar uma interação entre eles. Dessa forma se dão as cooperações “fracas” (11). É o tecido do engajamento nos qual as pessoas se deixam prender que contribui para lhes revelar os interesses e as intenções que elas não sabem ou podem formular inicialmente. Elas se deixam assim redefinir pelas interdependências suscitadas por terem exposto suas individualidades. Não é senão em raras ocasiões que essas “cooperações fracas”, ao fim de um longo trabalho de consolidação e reforço das ligações em os participantes fazem aparecer as normas e os valores que os atores adotam como atributos de identidade se engajando explicitamente, envolvendo-se com as tarefas coletivas (12). Então as cooperações “fracas” da Internet poderão efetivamente se transformar em “fortes” e dotar-se de recursos e instrumentos de ação, como os coletivos do mundo real.

A fragilidade dos engajamentos Reconhece-se nesse modelo de ação coletiva o enfraquecimento da capacidade de reação intencional da ação finalizada que inspirou as críticas da racionalidade instrumental e alimentou a reabilitação das dimensões criativas da atividade (13).Atenuando a capacidades de reação instrumentais da ação no benefício de componentes expressivos, as formas de engajamento na web realçam as lógicas de realização do Eu, o mesmo tempo que as articulam na formação do coletivo público. Dizer que os atores descobrem na interação o sentido de seu engajamento e produzem assim a sua identidade é o centro das éticas das discussões e alimenta os debates atuais sobre o ato de reconhecimento.Mas isso que torna possível a Internet é uma soma original entre afirmação expressiva e ação coletiva, que se percebe como a atitude de se opor logo que se dá atenção as “cooperações fortes”. Efetivamente este modelo de ação dá um papel importante a afirmação expressiva que parece diminuir e deslocar a intencionalidade coletiva das consciência dos sujeitos. A exibição

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envolverá agora o esquecer do coletivo, como deploraram os numerosos negadores da cultura individualista dos engajamentos instáveis e líquidos (14). Esta moda de constituição de coletivos voluntários, auto-organizados, horizontais pode parecer essencialmente frágil e desorganizada. A pretensão, algumas vezes ilusória, de produzir reagrupamentos ao acaso, sobre uma base voluntária e eletiva, e em favor de uma mobilização autolimitada e temporalizada, constitui o limite da maior parte dos processos de ação coletiva que têm a web como suporte. E inútil, entretanto, opor a expressividade e o projeto comunitário, dramatizando a oposição entre o indivíduo e o coletivo. Parece, com efeito, mais pertinnente insistir sobre a maneira como o “expressivismo” (15), bem longe do narcisismo solipsista, incorpora sempre a interação e o reconhecimento do outro no seu projeto. Assim, pode conduzir às formas originais e novas, postas em comum.

5. Virtudes da auto-organização

Agora que o mercado e o Estado monopolizam a organização das grandes formas de ação coletiva, com a internet, dado a drástica baixa dos custos de colocar em ação os sistemas de auto-organização em larga escala, autorizam os indivíduos a criar formas coletivas onde nem o mercado nem o Estado assumem a iniciativa. Clay Shirky sustenta que o mundo informático subverte a sequência temporal da ação coletiva. Nos modelos tradicionais de formação do coletivo os indivíduos que partilham os valores comuns estabelecem entre eles os mecanismos de coordenação com o intuito de partilhas os recursos. Nos modelos de “cooperação fraca” a sequência é inversa: Os indivíduos partilham sistematicamente os recursos, afim de descobrir pessoas com as quais possam se coordenar para produzirem juntos valores comuns.Então, sustenta Clay Shirky, esta inversão do processo de produção dos coletivos permite coordenações em larga escala e sobre temáticas que não serão percebidas, nem previstas no raio da ação coletiva planificada. A coordenação, em primeiro lugar, muito mais custosa que a parceria, pois reclama uma sincronização de ação, obriga a um alinhamento de planos da ação e impõe restrições temporais sobre o desenrolar das atividades associadas (16). A formação de coletivos no mundo real instala a coordenação antes de existir a parceria. O que será partilhado entre os membros revelará exclusivamente os produtos das ações de cada um e que foram planificados quando do trabalho prévio de coordenação. Na internet encontrar a parceria é prévio à coordenação, quando isto

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que fica visível, público e acessível à todos não fez parte de uma deliberação inicial. É sobre o princípio das formas sociais mais inovadoras da internet, o software de uso livre, que a Wikipédia, o Creative Commons, os API (Appication Interface Protocol) abertos etc. são desenvolvidos para produzir o comum a partir do engajamento heterogêneo. Em segundo lugar, a consciência do coletivo é mais custosa que a coordenação, na medida em que ela supõe que uma instância de regulação sobreponha o interesse coletivo sobre os interesses individuais (17). No mundo real, os coletivos “possuem’ por conta de que as pessoas que reúnem já possuem um sistema de valores e de interesses suficientemente próximos para serem estimuladas a se coordenar. No mundo virtual, os valores partilhados são uma produção resultante de interações entre os participantes que incorporam progressivamente as identidades e as crenças coletivas. Mas, sobretudo, em razão da diversidade e da hetegenidade dos participantes, os coletivos de internet se definem menos pelos valores partilhados do que pelos procedimentos comuns. De fato, as formas coletivas em rede desenvolvem os modos de institucionalização e os sistemas de regulação que se distinguem dos coletivos políticos ordinários por um alto grau de rotinização (18). Em primeiro lugar, o perímetro dos coletivos é particularmente impreciso e a variabilidade dos níveis de engajamento em seu interior muito elevada. Esta inexatidão de fronteiras do coletivo é consequência da heterogeneidade dos atores, da falta de consistência dos custos de entrada e da diversidade dos critérios de pertinência. Em segundo lugar, esses coletivos são (relativamente) não-centrados e delegam muito raramente ao centro o direito de falar em nome do coletivo e representá-lo. Enfim, as maiores partes dos procedimentos decisórios envolvem alguma forma de consenso ou compromisso.

Essas características conduzem a uma regulação essencialmente rotineira, por ser geralmente difícil definir positivamente os valores substanciais da comunidade. Sob esse olhar o caso da governança da Wikipédia constitui uma forma a mais focada, refinada e sutil de regulação rotineira (19). Mas esse modelo se encontra igualmente no espaço das normalizações técnicas da internet (Icann, W3C etc.), nas comunidades de software de uso livre e nas numerosas formas comunitárias que apareceram na web.

A BUROCRACIA NORMATIVA

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Rendendo-se ás evidências necessárias devido a obrigação de respeito do pluralismo das identidades e das diversidades do engajamento, as formas da auto-organização dos coletivos na internet fazem, entretanto, aparecer os tipos de autoridade e de governança eventualmente problemáticos e dificilmente sustentáveis. Inicialmente eles criam uma instabilidade contunua das regras de funcionamento e de decisão da comunidade. Eles favorecem na sequência a constituição de inegualdades entre os mais engajados na vida das comunidades e dos outros. Eles engendram enfim uma burocracia normativa que pode parecer dificilmente tolerável, sobretudo para os que entraram à pouco (20). No mundo do software de uso livre particularmente, mas de maneira mais geral na reunião das comunidades on-line, a ameaça do “garfo”(fork), quer dizer da cisão da comunidade e seu desdobramento em projetos paralelos, submetidos à formas de governanças diferentes, constitui o horizonte onipresente de todas as comunidades on-line da internet. A crítica da desordem da internet, de sua natureza fundamentalmente dispersa, múltipla e “proliferante”, dissimula sempre a nostalgia da ausência da autoridade (21), a se considerar as reiteradas tentativas (Nupédia, citizendium) e sempre dificultadas, de qualificar os artigos da Wikipédia, demandando aos experts que coloquem fim à incessante participação dos profanadores. De fato, a vocação dos dispositivos normativos que se afirmam nos espaços coletivos da internet é de substituir as formas de autoridade substanciais que regem a parceria dos participantes e dos poderes pelo espaço público ”oligárquico”..6. A legitimidade ex-post

O espaço público tradicional é o resultado de um longo processo de profissionalização e de domesticação dos locutores que deram origem ao nascimento da produção do status reservado àqueles que “tomam a palavra” em público, em organização sindical da imprensa e da edição e nos instrumentos jurídicos de proteção da liberdade de expressão.As exigência reguladas da publicidade administram um controle à-priori (o sacro-santo papel de defensores -gate-keepers- das mídias e das edições) dos enunciados antes de estarem visíveis. O espaço público tradicional se dá como público porque as informações tornadas visíveis a todos foram objeto de uma seleção prévia por profissionais submetidos às normas deontológicas que se formam nos mesmos tempos que o direito

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permite punir, transformando em invisíveis as propostas que se contrapõem às regras. Esse modo de produção do espaço público pelas mídias de informação modernas assegura então a visibilidade e a publicidade dos enunciados, conjuntamente.

Então o que chega da Internet coloca em jogo, no sentido das concepções tradicionais do espaço público, expõem justamente uma separação entre as duas noções. Os enunciados podem ser acessíveis (ou seja, potencialmente visíveis) sem entretanto se verem dotados imediatamente e intrinsecamente, padronizados por, se podemos dizer, um caráter público. Abolindo a dupla etapa de seleção das qualidades dos enunciadores e do controle à priori de seus enunciados, visibilidade e publicidade não são mais, empiricamente, sinônimas.

A atribuição de um caráter de importância a um enunciado não resulta de uma seleção prévia por um corpo especializado, mas é a consequência de uma hierarquização ex-post efetuada pelos internautas em função de sua posição na estrutura das reputações expostas (22). É o trabalho efetuado pelo internautas para ligar as propostas e lhes conferir a notoriedade que produz esta forma de visibilidade particular na qual as propostas “legitimas” são aquelas que aparecem “no alto” das hierarquias (motoras das pesquisas, da classificação dos blogs, dos arquivos de atualidades dos portais de informação, dos agregadores de news etc.). Os discursos ostensivos que fiquem colados “em baixo” nessa hierarquia, pouco ou nada vistos, não recebem o mesmo caráter público.

É, então, a leitura pelos internautas e sua decisão de se ligar e fazer circular esta tomada da palavra, mais que a outra, ou seja a recepção, que designa aos outros a proposta digna de ser reconhecida como tendo um caráter público e partilhável. Estabelecer uma ligação é emitir um voto (23). As classificações produzidas por esse processo de “hierarquização pela multidão” tem certa base estatística (24), mas essa estatística não é precedida, como na audiência de televisão, de uma operação de consulta à base representativa. Trata-se, de fato, de uma soma de ações voluntárias, mais ou menos “refletidas’. As hierarquias estatísticas da Internet somam operações ativas de apreciação e julgamento e não de estímulo. Esse modo de produção de avaliações coletivas na Internet constitui de qualquer forma , sua razão prática é um de seus tesouros mais preciosos...e mais ameaçados.

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A quebra de diversidade

De fato, o modo de legitimação “pela massa” não pode fazer esquecer outra realidade mais complexa e interior na formação da notoriedade na Internet. A estrutura de ligação entre os sites dá a perceber uma paisagem extremamente desigual e hierárquica. Os efeitos da concentração de autoridade (“hubs”), das estratégias de visibilidade desenvolvidas pelos atores e da estruturação desigual das ligações existentes têm um papel decisivo nas classificações do universo estatístico (25). A implantação na tela dos computadores de instituições do espaço público tradicional (agências de imprensa, jornais on line, blogueiros influentes e próximos do mundo midiático, portais dos atores da Internet) estrutura fortemente, pelas escolhas das publicações e pelas operações de ligação, a hierarquia dos enunciados mais visíveis. Em consequência, se não se presta atenção aos resultados das hierarquias da informação, a agenda da internet não apresentará resultados diferentes daquela da mídia (26). A Internet participativa não fará mais que reproduzir os espaços legitimados dos gate-keepers tradicionais.

Por outro lado os algoritmos de “filtragem colaborativa” que constituem se podemos dizer os dispositivos eleitorais da Internet, encontram-se, de forma crescente, submetidos às deformações sistemáticas sob pressão dos interesses comerciais das plataformas de pesquisa à procura de um improvável modelo econômico. A riqueza da web é de haver sabido fazer existir, sob as mensagens dominantes, um espaço intermediário onde é permitido dizer, partilhar e discutir os sujeitos e os conteúdos que até então não circulavam bem pelo espaço público. O risco de uma “refeudalização do espaço público” (27) na internet é de se ver os lideres da hierarquia do ranking excluírem a diversidade da web e corromperem os instrumentos cooperativos que permitem assegurar a visibilidade. Vítimas de sua inventividade e de seu refutar o assumir os formatos standards de legibilidade que são impostos na web, as propostas podem assim serem vítimas de um processo de invisibilização. Uma das críticas que pode ser feita às tecnologias produção de rankings na Internet é de não disporem de instrumentos suficientemente sutis para enriquecerem a diversidade dos critérios de avaliação e de não saberem levar avante os enunciados que não correspondam à métricas dos algoritmos de reputação. Assim, se pode esperar que se desenvolva uma análise crítica dos funcionamentos dos algoritmos de classificação com o

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fim de ajudar a “longa cauda”, o fenômeno mais radicalmente “democrático’ da Internet, não se vê-la desagregar e desaparecer, como é o caso de certos enunciados no espaço público tradicional, mas a permanecer, se enriquecer e vibrar. A virada ideológica da massificação da Internet está em via de se transformar sob o efeito de um profundo e súbito movimento de massificação dos usos. O desenvolvimento dos blogs e das redes sociais, a generalização dos usos da web pelos jovens de todas as origens sociais, a penetração dos instrumentos de informática num número cada vez maior de esferas da vida social, a diversificação comercial, lúdica, prática ou funcional da rede das redes, brevemente a rotinização das práticas de internet, constituem uma virada importante e um desafio intelectual decisivo.

As produções teóricas que pensaram a forma política da internet estão voltadas para isolar as especificidades, generalizando as propriedades de cooperação, de abertura e horizontalidade de sua infraestrutura na prática dos usuários (28). Desenvolvedores de softwares de uso livre, ativistas do bem comum imaterial, profetas da inteligência coletiva, advogados dos downloaders de custo zero, apóstolos da liberdade de expressão e das transformações de identidade, militantes de uma informação alternativa foram os primeiros teóricos da forma política da Internet. De uma maneira particularmente original e sem dúvida muito rara na história das grandes invenções tecnológicas, eles souberam articular um protocolo técnico, um modelo de inovação coletiva, uma cultura de trocas, um esquema de governança horizontal, formatos jurídicos abertos, uma reivindicação de extraterritorialidade etc. num modelo político e cultural que exerceu uma influência muito profunda no uso e na trajetória da Internet.

Então essa configuração intelectual deve sua força a correspondência que ela permite facilmente estabelecer entre a valorização das normas de abertura e de criatividade e a realidade das práticas dos usuários. Esta correspondência obtida notadamente pelo fato de que os promotores de uma internet aberta e cooperativa foram, assim, os primeiros (e os mais hábeis) utilizadores da internet e que constituíram uma comunidade de utilizadores com propriedades muito homogêneas (brancos, homens, ocidentais e cultos), como é testemunhado com frequência pelas enquetes sociográficas sobre aqueles que foram a avant-garde, os desenvolvedores de programa livres.

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Hoje a massificação dos usos da Internet impõe uma mudança de escala que, mantido o resto sem mudanças, parecerá com a maneira pela qual a democratização dos públicos escolares trouxe tensão aos ideais educacionais “republicanos”. O espaço de prática de um grupo com forte homogeneidade social e cultural é agora objeto de investida de populações mais e mais heterogêneas social e culturalmente. Elas se multiplicam em todas as direções, transbordam em universos diferentes, se comprometem com comerciantes em todo o mundo, exibem os indivíduos sob diversas facetas, encorajam os comportamentos oportunistas, miméticos, infantis, aceleram tanto as produções da alta cultura, tanto como a mais trivial, absurda ou vulgar, facilitam a cooperação e o calculismo, o original e o simulacro, a criatividade e a standartização. As categorias políticas que serviram para definir a Internet na origem se encontram retidas por uma barreira devido ao processo de massificação dos usos da rede das redes.

Do wiki ao Facebook

A fenda que se abriu entre os ideais do militantes da Internet e as atividades dos novos praticantes conduz os questionamentos, a incertezas, em direção a um tipo de nostalgia conservadora, remetendo ao inferno do comércio e do embrutecimento cultural os novos usuários da rede. Alguns militantes mais ativos da internet aberta, anteriormente prontos a ver na menor reviravolta técnica ou semiótica o sinal de um devenir-sujet, e de uma resistência às imposições políticas e culturais, deploram hoje a hetero-determinação e a reificação dos indivíduos. Por uma estranha pirueta intelectual eles trocaram Deleuze-Guattari em prejuízo de Adorno-Horkheimer, sem se darem conta que esta mudança de paradigma se deveu à transformação morfológica do público da Internet, sob o efeito da chegada de jovens usuários do meio popular (29).

Esse desajuste entre os ideais da Internet política e as práticas da web não é novo. Ele faz de qualquer forma parte de sua história, constantemente alimentada por uma conflitualidade fecunda entre a Internet de mercado e a Internet que não é de mercado. Mas como mostrou Jonathan Zittrain (30), tal mudança de escala nos usos leva a tornar esses deslocamentos mais aparentes. Aumentam consideravelmente os riscos de se ver certas escolhas tecnológicas mais estruturantes na organização da Internet postas em causa em nome da segurança e da obrigação de qualidade que devem ser

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oferecidas aos novos usuários, menos competentes para enfrentar as searas técnicas da rede. Uma tensão cada vez mais forte se faz assim existir entre os militantes da Internet para primeira era e seus filhos. Entre os parceiros do wiki e os apostadores do Face, entre os que estabelecem códigos para as comunidades e os costumizadores de página do My Space, etc.

Certamente a diferença entre gerações foi profundamente ampliada pela chegada de empresas comerciais no universo das práticas de trocas da Internet. Certamente elas aumentaram a diferenciação entre os ideais de criatividade e inteligência coletiva e a dimensão prosaica, às vezes narcisística e frequentemente conformista das novas formas de expressão na web. Estas formas de exposição pública da identidade pessoal dos novos praticantes, sem ser muito diferente daquelas dos mais antigos, apresenta riscos em termos de proteção da vida privada, em razão da mudança de escala dos dados publicados e da monopolização dos dados por atores privados.

Mas o argumento que insistimos em defender é que é preferível reaprender e reafrimar os princípios da forma política da Internet nas suas origens, com o fim de acolher a diversificação dos públicos da Internet, ao contrário de se opor, assumindo uma atitude reacionária, condescendente ou elitista. Então, corretamente vistos, as práticas dos novos públicosda Internet não são sem relação com as idéias dos pioneiros. Mas é preciso para sublinhar a continuidade tirar alguns ensinamentos dos trablhos de estudo cultural que já aparecem em outros domínios, a questão da avant-garde e da cultura de massas. Mais que nunca o princial embate político da Internet é o da democratização.

Notes[1] . Ver, por exemplo, Flichy (Patrice), L’imaginaire d’Internet, Paris, La Découverte, 2001 ou, mais recentemente: Turner (Fred), From Counterculture to Cyberculture. Steward Brand, the Whole Earth Network, and the Rise of Digital Utopianism, Chicago, The University of Chicago Press, 2006.

[2] . Rancière (Jacques), La mésentente. Politique et philosophie, Paris, Galilée.

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[3] . Boltanski (Luc), Chiapello (Eve), Le nouvel esprit du capitalisme, Paris, Gallimard, 1999.

[4] . Esta questão foi muito claramente posta em evidência pela crítica feminista do L’espace public de Jürgen Habermas. Ver Fraser (Nancy), “Rethinking the Public Sphere : A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy”, in Calhoun (Craig), dir., Habermas and the Public Sphere, Cambridge, MIT Press, 1992, p. 109–142.

[5] . Sobre a web em tons cinzas, ver Cardon (Dominique), « Le design de la visibilité. Un essai de cartographie du web 2.0 », Réseaux, n° 152, 2008, p. 93-137.

[6] . Como se percebeu nos debates sobre a qualidade das produções culturais populares esta crítica pode assumir um caráter conservador [Keen (Andrew), The Cult of the Amateur : How Blogs, MySpace, YouTube and the Rest of Today’s User Generated Media are Killing Our Culture and Economy, New York, Doubleday, 2007] ou « progressista » [Petersen (Søren Mørk), “Loser generated Content : From Participation to Exploitation”, First Monday, vol. 13, n° 3, 3 march 2008].

[7] . Ver Latour (Bruno), « Le fantôme de l’esprit public. Des illusions de la démocratie aux réalités de ses apparitions », prefácio a Lippman (Walter), Le public fantôme, Paris, Demopolis, 2008.

[8] . Bradwell (Peter), Gallagher (Noël), We no longer control what others know about us, but we don’t yet understand the consequences, London, Demos, 2007.

[9] . Moulier-Boutang (Yann), Le capitalisme cognitif. La nouvelle grande transformation, Paris, Editions Amsterdam, 2007.

[10] . Sobre esta inversão frente ao modelo “Publish, then filter”, ver Shirky (Clay), Here Comes Everybody. The Power of Organizing without Organizations, New York, The Penguin Press, 2008, chap. 4.

[11] . Aguiton (Christophe), Cardon (Dominique), 2007, “The Strength of Weak Cooperation : An attempt to Understand the Meaning of Web2.0”, Communications & Strategies, n° 65, 2007, p. 51-65. De maneira ligeramente diferente é o mesmo gênero de

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modelo que constituição das « comunidades » da internet que envolve o entendimento último da expressão “networked individualism” em Wellman (Barry), “Physical Place and cyber place : the rise of personalised netxorking”,Journal of Urban and Regional Research, n° 25, juin 2001, p. 227-252 et Castells (Robert), La galaxie Internet, Paris, Fayard, 2002.

[12] . Esse processo é muito bem descrito com relação à maneira como o engajamento individual na escrita de artigos na Wikipédia se numa toma crescente de responsabilidade e interesse coletivo da comunidade dos enciclopedistas. Ver Bryant (Susan), Forte (Andrea), Bruckman (Amy), “Becoming Wikipedian : Transformation of Participation in a Collaborative Online Encyclopaedia”, Proceedings of GROUP 2005, ACM Press, New York, NY, 2005, 1-10.

[13] . Joas (Hans), La créativité de l’agir, Paris, Cerf, 1999.

[14] . Bauman (Zigmunt), La vie liquide, Rodez, Le Rouergue/Chambon, 2006.

[15] . Allard (Laurence), Vandenberghe (Frédéric), « Express Yourself ! Les pages perso entre légitimation techno-politique de l’individualisme expressif et authenticité réflexive peer-to-peer », Réseaux, n°117, 2003, p. 191-219.

[16] . Shirky (Clay), Here Comes Everybody…, op. cit., p. 45.

[17] . Essa ligação entre institucionalização de uma governança coletiva e interiorização dos valores comunitários foi bem colocada em evidência no debate sobre a tragédia dos comuns.

[18] . Sob esse olhar os coletivos políticos que estão muito próximos do modo de regulação das cooperações na Internet são estruturas políticas inventadas por militantes alteromundistas por meio dos processos de fóruns sociais. Ver: Aguiton (Christophe), Cardon (Dominique), « De la cooptation à l’agglutination. Culture participative et formes organisationnelles des forums sociaux », in Neveu (Catherine), Cultures et pratiques participatives. Perspectives comparatives, Paris, L’Harmattan, 2007, p. 55-74.

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[19] . Cardon (Dominique), Levrel (Julien), « La vigilance participative. Une interprétation de la gouvernance de Wikipédia », Réseaux, n° 154, 2009, p. 51-89.

[20] . O’Neil (Mathieu), Cyberchiefs. Autonomy and Authority in Online Tribes, London, Pluto Press, 2009.

[21] . Weinberger (David), Everything is miscellaneous. The power of the new digital disorder, New York, Times Book, 2007.

[22] . Para uma análise detalhada deste mecanismo ver: Benkler (Yochai), The Wealth of Networks : How Social Production Transforms Markets and Freedom, New Haven, Yale University Press, 2006.

[23] . Loveluck (Benjamin), « Internet, vers la démocratie radicale ? », Le Débat, n° 151, septembre-octobre 2008 ; Origgi (Gloria), « La passion d’évaluer », La vie des idées[http://www.laviedesidees.fr/Sagesse...].

[24] . Sobre a ligação entre o ´numero e a qualidade na Wikipédia ver : Wilkinson (Dennis), Huberman (Bernard), “Assesssing the value of cooperation in Wikipedia”, First Monday, volume 12, number 4, April 2007.

[25] . Sobre as estas questões : Halavais (Alexander), Search Engine Society, Cambridge, Polity Press, 2009 ; Ippolita, La face cachée de Google, Paris, Manuels Payot, 2008.

[26] . Ver Hindman (Matthew), The Myth of Digital Democracy, Princeton, Princeton University Press, 2009 et Rebillard (Franck), Le web 2.0 en perspective. Une analyse socio-économique de l’Internet, Paris, L’Harmattan, 2007.

[27] . Esta expressão é empregada por J. Habermas para designar o momento onde, na segunda metade do século XIX, os interesses comerciais e a massificação do eleitorado restringiram, racionalizaram e « mercantilizaram » os princípios de publicidade que surgiram no século XVIII. Ver Habermas (Jürgen), L’espace public : archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise, Paris, Payot, 1997.

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[28] . Benkler (Yochai), The Wealth of Networks. How Social Production Transforms Markets and Freedom, New Haven, Yale University Press, 2006 ; Lessig (Lawrence), The Future of Ideas. The Fate of the Commons in a Connected World, New York, Random House, 2001.

[29] . Boyd (Danah), “Viewing American class divisions through Facebook and MySpace”, Apophenia Blog Essay, 24 juin 2007 [http://www.danah.org/papers/essays/...].

[30] . Zittrain (Jonathan), The Future of Internet. And how to stop it, New York, Yale University Press, 2008.

Alguns site sugeridos pelo autor :

Wikipédia : http://fr.wikipedia.org/wiki/Accueil

Fórum Social Europeu : http://www.fse-esf.org/

Observatório cidadão da atividade parlamentar: http://www.nosdeputes.fr/

La quadrature du net, organização de defesa da cidadania na net : http://www.laquadrature.net/

OpenStreetMap:um mapa do mundo com licença livre :http://www.openstreetmap.fr/

• Global Voices seleciona, traduz e difunde em 18 línguas blogs de todo o mundo : http://fr.globalvoicesonline.org/

Samizdat, empresa política de comunicação alternativa :http://www.samizdat.net

•Vecam dá aos cidadãos do mundo meios de compreender e se apropria da quantificação crescente da informação: http://vecam.org/

•Visa promover e defender o software de uso livre : http://www.april.org/

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Centro coletivo, reagrupador, de mídias independentes : http://www.indymedia.org/fr/

• Agoravox, mídia cidadã » : http://www.agoravox.fr/

•Nettime divulga as listas de difusão para constituir um discurso internacional na rede : http://www.nettime.org

*Tradução livre de matéria publicada no site La vie dês idées

Original em :

http://www.laviedesidees.fr/Vertus-democratiques-de-l-Internet.html?lang=fr

Demetrio Carneiro

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