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DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CF/88 Pg. 27 1. Considerações preliminares A bela e expressiva frase do teólogo, filósofo, antropólogo e paleontólogo Frances Pierre Teilhard de Chardin 1 , escolhida para figurar no início deste livro, encerra múltiplos sentidos e suscita outras tantas interpretações, correndo até mesmo o risco de sujeitar-se à crítica de um excessivo antropocentrismo. Contudo, não sendo o nosso intento empreender uma análise do pensamento citado, guiou-nos prioritariamente a maneira pela qual o autor soube expressar, ao menos no nosso sentir, a umbilical e genética convergência e vinculação (mas não necessária fungibilidade) entre as noções de dignidade, vida e humanidade que também nós recolhemos como diretriz nuclear do nosso estudo. Assim, ainda que a dignidade - ao menos não nesta passagem - não tenha sido expressamente referida, ela encontra-se latente e pressuposta no texto, como de resto, em tudo que diz com a essência do ser humano. Por sua vez, passando a centrar a nossa atenção na dignidade da pessoa humana, desde logo há de se destacar que a íntima e, por assim dizer, 1. P. Teilhard de Chardin, O Fenômeno Humano, p. 11. Pg. 28 indissociável - embora altamente complexa e diversificada 2 - vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constitui, por certo, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo. Tal ocorre mesmo nas ordens constitucionais onde a dignidade ainda não tenha sido expressamente reconhecida no direito positivo e até mesmo - e lamentavelmente não são poucos os exemplos que poderiam ser citados - onde tal reconhecimento virtualmente se encontra limitado à previsão no texto constitucional, já que, forçoso admiti-lo - especialmente entre nós - que o projeto normativo, por mais nobre e fundamental que seja, nem sempre encontra eco na práxis ou, quando assim ocorre, nem sempre para todos ou de modo igual para todos. De qualquer modo, acreditamos - recolhendo aqui a lição de Carmen Lucia Antunes Rocha - que a previsão no texto constitucional acaba por ser imprescindível, muito embora por si só não tenha o condão de assegurar o devido respeito e proteção a dignidade. 3 Com efeito, diante do compromisso assumido formalmente pelo Constituinte, pelo menos - nas hipóteses de violação dos deveres e direitos decorrentes da dignidade da pessoa - restará uma perspectiva concreta, ainda que mínima, de efetivação por meio dos órgãos jurisdicionais, enquanto e na medida em que se lhes assegurar as condições básicas para o cumprimento de seu desiderato. Por outro lado, se virtualmente incontroverso o liame entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, o consenso, por sua vez - como logo teremos oportunidade de demonstrar -, praticamente se limita ao reconhecimento da existência e da importância desta vinculação. Quanto ao mais - inclusive no que diz com a própria compreensão do conteúdo e significado da dignidade da pessoa humana na e para a ordem

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

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O AUTOR EXPLORA O TEMA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E EXPLICITA, MINUCIOSAMENTE, SOBRE A DIGNIDADE E OS DIREITOS CONTIDOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. UM BOM LIVRO PARA ESTUDANTES DE MESTRADO E PROFISSIONAIS.

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DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOSFUNDAMENTAIS NA CF/88Pg. 271. Considerações preliminares

A bela e expressiva frase do teólogo, filósofo, antropólogo epaleontólogo Frances Pierre Teilhard de Chardin1, escolhida para figurar noinício deste livro, encerra múltiplos sentidos e suscita outras tantasinterpretações, correndo até mesmo o risco de sujeitar-se à crítica de umexcessivo antropocentrismo. Contudo, não sendo o nosso intentoempreender uma análise do pensamento citado, guiou-nos prioritariamentea maneira pela qual o autor soube expressar, ao menos no nosso sentir, aumbilical e genética convergência e vinculação (mas não necessáriafungibilidade) entre as noções de dignidade, vida e humanidade quetambém nós recolhemos como diretriz nuclear do nosso estudo. Assim,ainda que a dignidade - ao menos não nesta passagem - não tenha sido

expressamente referida, ela encontra-se latente e pressuposta no texto,como de resto, em tudo que diz com a essência do ser humano.

Por sua vez, passando a centrar a nossa atenção na dignidade dapessoa humana, desde logo há de se destacar que a íntima e, por assimdizer,1. P. Teilhard de Chardin, O Fenômeno Humano, p. 11.

Pg. 28indissociável - embora altamente complexa e diversificada2 - vinculaçãoentre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais jáconstitui, por certo, um dos postulados nos quais se assenta o direitoconstitucional contemporâneo. Tal ocorre mesmo nas ordensconstitucionais onde a dignidade ainda não tenha sido expressamentereconhecida no direito positivo e até mesmo - e lamentavelmente não sãopoucos os exemplos que poderiam ser citados - onde tal reconhecimentovirtualmente se encontra limitado à previsão no texto constitucional, já que,forçoso admiti-lo - especialmente entre nós - que o projeto normativo, pormais nobre e fundamental que seja, nem sempre encontra eco na práxis ou,quando assim ocorre, nem sempre para todos ou de modo igual para todos.

De qualquer modo, acreditamos - recolhendo aqui a lição de CarmenLucia Antunes Rocha - que a previsão no texto constitucional acaba por serimprescindível, muito embora por si só não tenha o condão de assegurar o

devido respeito e proteção a dignidade.3

Com efeito, diante docompromisso assumido formalmente pelo Constituinte, pelo menos - nashipóteses de violação dos deveres e direitos decorrentes da dignidade dapessoa - restará uma perspectiva concreta, ainda que mínima, deefetivação por meio dos órgãos jurisdicionais, enquanto e na medida emque se lhes assegurar as condições básicas para o cumprimento de seudesiderato.

Por outro lado, se virtualmente incontroverso o liame entre adignidade da pessoa e os direitos fundamentais, o consenso, por sua vez -como logo teremos oportunidade de demonstrar -, praticamente se limitaao reconhecimento da existência e da importância desta vinculação.

Quanto ao mais - inclusive no que diz com a própria compreensão doconteúdo e significado da dignidade da pessoa humana na e para a ordem

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 jurídica - trata-se de tema polemico e que tem ensejado farta discussão emnível doutrinário e até mesmo jurisprudencial. De fato, como bem averbouAntonio Junqueira de Azevedo, o acordo a respeito das palavras "dignidadeda pessoa humana" infelizmente não afasta a grande controvérsia em tornodo seu conteúdo. 4 Além disso, em se levando em conta que a dignidade,

acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, 52. Tal como aponta A. Gewirth, "Human Dignity as the Basis of Rights", in: M. J. Meyer e W. A. Parent(Ed), The Constitution of Rights, p. 10.3. Cf. C. L. Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social , in:Interesse Público nº 4, p. 26.4. Cf. A. J. de Azevedo, "Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana", in: Revista dosTribunais, vol. 797, março de 2002, p. 12.5. Neste sentido, o entendimento de M-L Pavia, Le principe de dignité de la personne humaine: umnoveau principe constitutionnel, in: R. Cabrillac/M.A.Frison-Roche/T. Revet (Dir), Droits el LibertésFondamenleaux , p. 105.

Pg. 28cuida-se de assunto de perene relevância e atualidade, tão perene e atualfor a própria existência humana. Aliás, apenas quando (e se) o ser humanoviesse ou pudesse renunciar a sua condição é que se poderia cogitar daabsoluta desnecessidade de qualquer preocupação com a temática oraversada. Todavia, justamente pelo fato de que a dignidade vem sendoconsiderada (pelo menos para muitos e mesmo que não exclusivamente)qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e certosde que a destruição de um implicaria a destruição do outro, é que orespeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas aspessoas) constituem-se (ou, ao menos, assim o deveriam) em metapermanente da humanidade, do Estado e do Direito.

É precisamente sobre as relações entre a dignidade da pessoa

humana e os direitos fundamentais que pretendemos tecer algumasconsiderações, destacando pelo menos parte das inúmeras facetas eproblemas que este casamento feliz - mas nem por isto imune a crises etensões - desafia a todos os que se ocupam de seu estudo.Pg. 312. Conteúdo e significado da noção de dignidade da pessoa humana2.1. Antecedentes: algumas notas sobre a dignidade da pessoa noâmbito da evolução do pensamento ocidental

Antes de nos fixarmos na dimensão jurídico-constitucional dadignidade da pessoa humana, objeto precípuo deste trabalho, e mesmosabedores de que aqui estaremos apenas oferecendo uma abordagemgenérica e inevitavelmente incompleta, especialmente considerando tudo oque já se escreveu sobre o tema, cumpre seja empreendida a tentativa deuma aproximação com o conteúdo e significado da própria noção dedignidade da pessoa, 6 já que anterior ao seu reconhecimento no âmbito dodireito positivo e até mesmo determinante desta. Ademais, importa lembrarque também para a dignidade da pessoa humana aplica-se a noção referidapor Bernard Edelman, de que qualquer conceito (inclusive jurídico) possuiuma história, que necessita ser retomada e reconstruída, para que se possarastrear a evolução da simples palavra para o conceito e assim apreender oseu sentido. 7 Assim, sem adentrarmos, ainda, o problema do significado

que se pode hoje atribuir a dignidade da pessoa humana, cumpre ressaltar,de

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6. Cumpre registrar que o termo dignidade, aqui empregado como relacionado à pessoa humana,costuma ser utilizado em outras situações, de tal sorte que se fala até mesmo em dignidade decertos cargos, funções, instituições. De outra parte, considerando a perspectiva jurídico-constitucional deste ensaio, convém sinalar também, que mesmo no tocante ao conceito e conteúdoda noção de dignidade da pessoa humana, foi no âmbito da literatura jurídico-constitucional que, emregra, acabou concentrando-se a coleta de material bibliográfico, muito embora a inserção gradativa,ao longo das diversas edições, de aportes filosóficos.

7. Cfr. B. Edelman, "la dignité de la personne humaine, un concept nouveau", in: M.-L. Pavia et T.Revett (Dir). la dignité de la personne, p. 25.

Pg. 32início, que a idéia do valor intrínseco da pessoa humana deita raízes já nopensamento clássico e no ideário cristão. Muito embora não nos pareçacorreto, inclusive por nos faltarem dados seguros quanto a este aspecto,reivindicar - no contexto das diversas religiões professadas pelo serhumano ao longo dos tempos - para a religião cristã a exclusividade eoriginalidade quanto à elaboração de uma concepção de dignidade dapessoa, o fato é que tanto no Antigo quanto no Novo Testamento8 podemosencontrar referências no sentido de que o ser humano foi criado a imageme semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu aconseqüência - lamentavelmente renegada por muito tempo por parte dasinstituições cristãs e seus integrantes (basta lembrar as crueldadespraticadas pela "Santa Inquisição") - de que o ser humano - e não apenas oscristãos - é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendoser transformado em mero objeto ou instrumento. 9 

No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-seque a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com aposição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimentopelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em uma

quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir aexistência de pessoas mais dignas ou menos dignas. 10 Por outro lado, já nopensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que, por serinerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido deque todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção estaque se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdadepessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seusatos e seu destino), bem como à idéia de que todos os seres humanos, noque8. Basta lembrar aqui a conhecida passagem do livro de Genesis, de que Deus criou o Homem a suaimagem e semelhança, para governar sobre os demais seres vivos e sobre a terra (Genesis 1: 26).

 Tal idéia, de resto, volta a aparecer de modo emblemático na Tragédia Grega Antígona, de Sófocles,na passagem onde o Homem é apresentado como maior milagre na terra e como senhor de todos osseres vivos.9. C. Starck, in: Bonner Grundgesetz , p. 34-35, destacando, todavia, que não se haverá de encontrarna Bíblia um conceito de dignidade, mas sim, uma concepção do ser humano que serviu e até hojetem servido como pressuposto espiritual para o reconhecimento e construção de um conceito e deuma garantia juridíco-constitucional da dignidade da pessoa, que, de resto, acabou passando por umprocesso de secularização, notadamente no âmbito do pensamento Kantiano.10. Cf., dentre tantos, Podlech, in: Alternativ Kommentar, vol. I, p. 275. Aliás, também hoje aindacostuma se fazer uso desta dimensão específica da dignidade, razão pela qual, na literatura francesa,há quem utilize a expressão "dignité honneur". Neste sentido, v., entre outros, B. Maurer, Notes surle respect de la dignité humaine... ou petite fugue inachevée autour d'un theme central, in: A.Seriaux el., al. Le Droit, la Médicine el l'Etre HUmain, p. 188.

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diz com a sua natureza, são iguais em dignidade. 11 Com efeito, de acordocom o jurisconsulto, político e filósofo romano Marco Túlio Cícero, é a

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natureza quem prescreve que o homem deve levar em conta os interessesde seus semelhantes, pelo simples fato de também serem homens, razãopela qual todos estão sujeitos as mesmas leis naturais, de acordo com asquais é proibido que uns prejudiquem aos outros,12 passagem na qual(como, de resto, encontrada em outros autores da época) se percebe a

vinculação da noção de dignidade com a pretensão de respeito econsideração a que faz jus cada ser humano. Assim, especialmente emrelação a Roma notadamente a partir das formulações de Cícero, quedesenvolveu uma compreensão de dignidade desvinculada do cargo ouposição social - é possível reconhecer a coexistência de um sentido moral(seja no que diz as virtudes pessoais do mérito, integridade, lealdade, entreoutras, seja na acepção estóica referida) e sociopolítico de dignidade (aquino sentido da posição social e política ocupada pelo indivíduo). 13

No que diz com a concepção vigente neste período (mas que, de certaforma, segue presente nos dias de hoje, quando se fala na dignidade decargos e funções, na honra e imagem da pessoa no seu contexto social,etc.), importa destacar, recolhendo aqui a lição de Paolo Becchi, que nomundo romano antigo, a noção de dignidade humana adquire -precisamente por influência do pensamento de Cícero, primeiro a ressaltarambas as acepções - um duplo significado, visto que, por um lado o homempossui uma dignidade que decorre de sua posição mais alta na hierarquiada natureza, já que é o único ser racional dentre os animais, o que lheassegura uma posição especial no universo (sentido absoluto da dignidade),11. Entre nós, v. as belas páginas de F. K. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos,especialmente p. 11 e ss., retratando a evolução da noção de pessoa humana e sua dignidade.

  Também discorrendo sobre a evolução da noção de dignidade humana, v., E. R. Rabenhorst,Dignidade Humana e Moralidade Democrática, p. 13 e ss. No mesmo sentido, v. R. Zippelius, in:

Bonner Kommentar, p. 8-9. Referindo-se ao pensamento do filósofo e político romano Cícero. Também M. Renaud, A dignidade do ser humano como fundamentação ética dos direitos do homem,in: Brotéria nº 148 (1999), p. 137. Destaca o pensamento de Cícero, informando que este filósofoestóico conferiu a dignidade um sentido mais amplo, fundado na natureza humana e na posiçãosuperior ocupada pelo ser humano no cosmos. Neste contexto, O. Höffe. Medizin olme Ethik, p. 60,lembra que na China, por volta do século IV a.C., o sábio confucionista Meng Zi afirmava que cadahomem nasce com uma dignidade que lhe é própria, atribuída por Deus, e que é indisponível para oser humano e os governantes. Também G. Peces-Barba Martinez, la dignidad de la persona desde lafilosofia dei derecho, p. 21 e ss., oferece uma série de referências demonstrando que a noção dedignidade da pessoa, ainda que não diretamente referida sob este rótulo. Já se encontravasubjacente a uma série de autores da antiguidade, inclusive além das fronteiras do mundo clássicogreco-romano e cristão ocidental.12. Cf.. M. T. Cícero, Dos Deveres. Livro 111. VI. 27, p. 137.13. Cf.. C. M. Ruiz, "The Idea of Human Dignity", in: Jahrbuch des öffentlichen Rechts - Neue Folge,vol. 50, 2002, p. 282-4, que, de resto, apresenta a evolução da noção de dignidade na esfera dopensamento teológico e filosófico.

Pg. 34ao passo que, já em outro sentido, relativo, a dignidade está vinculada aposição social do indivíduo, posição esta que poderá ser alterada ao longode sua existência. 14 Na primeira fase do cristianismo, quando este haviaassumido a condição de religião oficial do Império, destaca-se opensamento do Papa São Leão Magno, sustentando que os seres humanospossuem dignidade pelo fato de que Deus os criou a sua imagem esemelhança, e que, ao tomar-se homem, dignificou a natureza humana,além de revigorar a relação entre o Homem e Deus mediante a voluntária

crucificação de Jesus Cristo.15

Logo depois, no período inicial da IdadeMédia, Anicio Manlio Severino Boécio, cujo pensamento foi (em parte)

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posteriormente retomado por São Tomás de Aquino, formulou, para aépoca, um novo conceito de pessoa e acabou por influenciar a noçãocontemporânea de dignidade da pessoa humana ao definir a pessoa comosubstância individual de natureza racional.16

Mesmo no auge do medievo - de acordo com a lição de Klaus Stern - a

concepção de inspiração cristã e estóica seguiu sendo sustentada,destacando-se Tomás de Aquino, o qual, fortemente influenciado tambémpor Boécio, chegou a referir expressamente à expressão "dignitas humana",secundado, já em plena Renascença e no limiar da Idade Moderna, pelohumanista italiano Pico della Mirandola, que, partindo da racionalidadecomo qualidade peculiar inerente ao ser humano, advogou ser esta aqualidade que lhe possibilita construir de forma livre e independente suaprópria existência e seu próprio destino. 17 Com efeito, no pensamento de

 Tomás de Aquino, restou afirmada a noção de que a dignidade encontra seufundamento na circunstância de que o ser humano foi feito a imagem esemelhança de Deus, mas também radica na capacidade deautodeterminação inerente a natureza humana, de tal sorte que, por forçade sua dignidade, o ser humano, sendo livre, por natureza, existe emfunção da sua própria vontade. 18 Já no contexto antropocêntricorenascentista e sem

14. Cf. P. Becchi, "O princípio da dignidade humana", in: Revista Brasileira de EstudosConstitucionais, vol. 7, julho/setembro 2008, p. 192-93.15. Cf. V. c. F. dos Santos, A Dignidade da Pessoa Humana nas Decisões Judiciais: uma Exploração da

 Tradição Kantiana no Estado Democrático de Direito Brasileiro, dissertação de mestrado, SãoLeopoldo, UNISINOS, 2007, p. 15-16.16. Cf., mais uma vez, os desenvolvimentos, devidamente documentados com referências extraídasda obra de Boécio, de V. C. P. dos Santos, A Dignidade da Pessoa Humana nas Decisões Judiciais...,

p.16-17.17. cf. K. Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, vol. III/l, p. 7.18. Cf. M. Herdegen, "Neuarbeitung Vali Art. 1 Abs.1 - Schutz der Menschenwürde", in: MaunzDürig,Grundgesetz Kommentar, p. 7, mediante referência direta a trechos extraídos da obra de Tomás deAquino (no caso, a sua Summa Theologica)

Pg. 35renunciar à inspiração dos principais teóricos da Igreja Católica, GiovanniPico della Mirandola, no seu opúsculo sobre a dignidade do homem, ao

  justificar a idéia da grandeza e superioridade do homem em relação aosdemais seres, afirmou que, sendo criatura de Deus, ao homem(diversamente dos demais seres, de natureza bem definida e plenamenteregulada pelas leis divinas) foi outorgada uma natureza indefinida, para quefosse seu próprio árbitro, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser eobter aquilo que ele próprio quer e deseja. 19 Para a afirmação da idéia dedignidade humana, foi especialmente preciosa a contribuição do espanholFrancisco de Vitória, quando, no século XVI, no limiar da expansão colonialespanhola, sustentou, relativamente ao processo de aniquilação,exploração e escravização dos habitantes dos índios e baseado nopensamento estóico e cristão, que os indígenas, em função do direitonatural e de sua natureza humana - e não pelo fato de serem cristãos,católicos ou protestantes - eram em princípio livres e iguais, devendo serrespeitados como sujeitos de direitos, proprietários e na condição de

signatários dos contratos firmados com a coroa espanhola.20

Foiprecisamente no âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e

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XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia dodireito natural em si, passou por um processo de racionalização elaicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade detodos os homens em dignidade e liberdade.

Muito embora na obra de Hugo Grócio e Thomas Hobbes, dois dos

autores mais destacados do período (em especial no que diz com opensamento político e jurídico) a dignidade tenha sido objeto de referência,foi apenas em Samuel Pufendorf que se pode constatar um passo efetivoem termos de ruptura com a tradição anterior e a elaboração do que sepode considerar uma primeira formulação tipicamente secular e racional dadignidade da pessoa humana, com fundamento na liberdade moral comocaracterística distintiva do ser humano, 21 ainda que elementos de talconcepção, como já demonstrado, possam ser reconduzidos adesenvolvimentos anteriores. Com efeito, ao passo que para Grócio adignidade humana se manifesta no âmbito do direito a sepultura, no queguarda relação com o respeito com o cadáver, 22 para Hobbes, a dignidade,numa acepção que remonta em parte ao período clássico, no sentido dadignidade como representando o valor do indivíduo no contexto social, estáessencialmente19. Cf.. G. Picco della Mirandola, Discurso sobre a dignidade do homem, p. 52-3.20. Cf. M. Kriele. Einführung in die Staatslehre, p. 212.21. Cf., aponta, por todos, P. Bechi, "O princípio da dignidade humana", p. 194 c ss.22. Cf. referência de P. Bechi, idem, p. 194.

Pg. 36vinculada ao prestígio pessoal e dos cargos exercidos pelos indivíduos,cuidando-se, portanto, de um valor atribuído pelo Estado e pelos demaismembros da comunidade a alguém. 23 Recorrendo às palavras do próprio

Hobbes, "o valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é seupreço; isto é, tanto quanto seria dado pelo uso de seu poder. Portanto nãoabsoluto, mas algo que depende da necessidade e do julgamento deoutrem. Um hábil condutor de soldados é de alto preço em tempo de guerrapresente ou iminente, mas não o é em tempo de paz. Um juiz douto eincorruptível é de grande valor em tempo de paz, mas não o é tanto emtempo de guerra. E tal como nas outras coisas, também no homem não é ovendedor, mas o comprador quem determina o preço. Porque mesmo queum homem (como muitos fazem) atribua a si mesmo o mais alto valorpossível, apesar disso seu verdadeiro valor não será superior ao que lhe foratribuído pelos outros"24 Logo mais adiante, Hobbes afirma que "o valorpúblico de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que oshomens vulgarmente chamam dignidade. E esta sua avaliação se exprimeatravés de cargos de direção, funções judiciais e empregos públicos, oupelos nomes e títulos introduzidos para a distinção de tal valor”, 25 Assim,ainda que não se vê aprofundar o tópico, verifica-se que - embora comoutro significado e fundamentação - a noção de reconhecimento,posteriormente desenvolvida em Hegel e muitos dos sucessores, assimcomo a tradicional vinculação entre honra, imagem e dignidade, de algumaforma se faz presente durante toda a trajetória de afirmação e reconstruçãoda noção de dignidade da pessoa humana.

 Já para Samuel Pufendorf, a noção de dignidade não está fundadanuma qualidade natural do homem e tampouco pode ser identificada com a

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sua condição e prestígio na esfera social, assim como não pode serreconduzida à tradição cristã, de acordo com a qual a dignidade éconcessão divina. Pufendorf sustenta que mesmo o monarca deveriarespeitar a dignidade da pessoa humana, considerada esta como aliberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme

o seu entendimento e sua opção. 26 Neste sentido, como bem registra PaoloBechi, a concepção de Pufendorf distingue-se da de outros pensadores daépoca, como é o caso de Pascal, pois este reconduz a dignidade àcapacidade ra-23 V. aqui também a síntese de P. Bechi, "O princípio da dignidade humana", p. 194.24 Cf. T. Hobbes, Leviatã, capítulo X, p. 54.25 Cf. T. Hobbes, idem, p. 54.26 Cf. também M. Kriele, Einführung in die Staatslehre, p. 214, bem como Podlech, AlternativKommentar, vol. I, p. 275. Para C. Starck, Menschenwürde als Verfassungsgarantie..., p. 460,Pufendorf fundamenta sua concepção de dignidade na natureza social do ser humano, considerandoa dignidade da pessoa humana como a base da liberdade eticamente vinculada e da igualdade doshomens.

Pg. 37cional, de pensamento, do ser humano, ao passo que Pufendorf vincula adignidade à liberdade moral, pois é esta - e não a natureza humana em si -que confere dignidade ao homem. 27 Foi, contudo, com lmmanuel Kant, cujaconcepção de dignidade parte da autonomia ética28 do ser humano, que, decerto modo, se completa o processo de secularização29 da dignidade, que,de vez por todas, abandonou suas vestes sacrais. 30 Com isto, vale notar,não se está a desconsiderar a profunda influência (ainda que expurgada dafundamentação teológica) do pensamento cristão, especialmente dosdesenvolvimentos de Boécio e São Tomás de Aquino (notadamente no quediz com a noção de pessoa com substância individual de natureza racional e

da relação mesmo entre liberdade e dignidade) sobre as formulaçõeskantianas.31

Construindo sua concepção a partir da natureza racional do serhumano, Kant sinala que a autonomia da vontade, entendida como afaculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com arepresentação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seresracionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da naturezahumana. 32 Em síntese e no que diz com o presente tópico, é possívelacompanhar Thadeu Weber quando refere que autonomia e dignidadeestão, notadamente no pensamento de Kant, intrinsecamente relacionadose mutuamente imbricados, visto que a dignidade pode ser consideradacomo o próprio limite do exercício do direito de autonomia, ao passo queeste não pode ser exercido sem o mínimo de competência ética. 33

Com base nesta premissa, Kant sustenta que "o Homem, e, dumamaneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não27 CF., novamente, P. Bechi. "O princípio da dignidade humana", p. 194-95.28 Sobre a conexão entre as noções de autonomia, liberdade e dignidade em Kant, V., entre nós,especialmente e por último T. Weber, "Autonomia e Dignidade da Pessoa Humana em Kant", in:Direitos Fundamentais & Justiça, nº 9, out./dez, 2009, p. 232 e ss.29 Sobre as distinções entre uma concepção religiosa (cristã) e laica (secular) de dignidade, v.,dentre outros, as ponderações de P. Cliteur e R. van Wissen, "Human dignity as the foundation forhuman rights", in: Rechtstheorie 35 (2004), p. 160-61, apontando duas diferenças essenciais: a) deacordo com a tradição laica, a dignidade é autônoma, no sentido de não derivada de um criador; b)

para a tese secular, a dignidade é "completa", já que não se a pode deduzir de uma percepção dossentidos, que seria própria do pensamento cristão.

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30 Cf. G. Frankenberg. Autorität und Integration, p. 270, lembrando que a partir de Kant (emboracom desenvolvimentos anteriores) o ponto de arquimedes da moderna compreensão de dignidadepassou a ser a autonomia ética, evidenciada por meio da capacidade de o homem dar-se as suaspróprias leis.31 Cf. bem lembra V. C. F. dos Santos, A Dignidade da Pessoa Humana nas Decisões Judiciais...,p.131.32 Kant. Fundamentos da Metafísica dos Costumes, in: Os Pensadores, p. 134 e 141. De acordo com

a versão original em alemão, Kant, Grundlegung Zur Metaphysik der Sitten, especialmente, p. 59 e69.33 Cf. T. Weber, "Autonomia e Dignidade da Pessoa Humana em Kant", op. cit.. 233.

Pg. 38simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a elemesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem semprede ser considerado simultaneamente como um fim... Portanto, o valor detodos Os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é semprecondicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossavontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas

um valor relativo como meio e por isso se chamam coisas, ao passo que osseres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue jácomo fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode serempregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medidatodo o arbítrio (e é um objeto de respeito)”. 34 

Ainda segundo Kant, afirmando a qualidade peculiar e insubstituívelda pessoa humana, "no reino dos fins tudo tem ou um preço ou umadignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez delaqualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima detodo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem eladignidade... Esta apreciação dá, pois a conhecer como dignidade o valor deuma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo opreço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquercoisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade”. 35

Neste contexto, comentando a distinção entre dignidade (como valornão mensurável economicamente) e coisas, passíveis de quantificaçãoeconômica, Jeremy Waldrom observa que tanto a expressão latina dignitasquanto o termo alemão würde (de acordo com o autor, ambos utilizados porKant sem que haja clareza a respeito de serem sempre utilizados34. Kant. Fundamentos..., p. 134-35. Para conferência com o original em alemão (cf. Kant,Grundlegung..., p. 59-60)35. Kant, Fundamentos..., p. 140. De acordo com o original em alemão. (Kant, Grundlegung... p. 68-

69).Pg. 39como sinônimos) não significam "naturalmente", sem que lhes sejaoutorgado tal sentido técnico-filosófico, o mesmo que um valor sem preço,no sentido de um valor intrínseco, infungível, próprio de cada ser humano,cuidando-se, ainda na acepção de Waldrom, de um uso eminentementeestipulativo da expressão dignidade, que implica o reconhecimento de queos seres humanos possuem um valor com certo caráter normativo, mas nãoutilitário. 36 Se, na esteira do que igualmente sugere Waldrom, a concepçãode Kant (que concilia e relaciona a dimensão axiológica – dignidade comovalor intrínseco - com a noção de autonomia e racionalidade e moralidade,concebidas como fundamento e mesmo conteúdo da dignidade) se revelamais adequada para uma fundamentação dos direitos humanos e

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fundamentais do que para a determinação do seu conteúdo (dos direitos),isto é, para a identificação de quais são exatamente esses direitos, 37 équestão que aqui deixaremos em aberto. Mais adiante, todavia, ainda quenão se pretenda aprofundar tal perspectiva, já na esfera da construção deum conceito jurídico - constitucional de dignidade da pessoa humana, sendo

apontados alguns elementos que permitem identificar, em linhas gerais,não apenas um possível âmbito de proteção da dignidade na sua condiçãode princípio e fundamento de direitos fundamentais, mas também suasconexões com os diversos direitos fundamentais consagrados no planoconstitucional.

É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica maisexpressiva - nacional e alienígena - ainda hoje parece estar identificando asbases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação dadignidade da pessoa humana. 38 Até que ponto, contudo, tal concepçãoefetivamente poderá ser adotada sem reservas ou ajustes na atual quadrada evolução social, econômica e jurídica constitui, sem d·vida, desafiofascinante, que, todavia, refoge aos estreitos limites deste estudo. Assim,poder-se-á afirmar - apenas para não deixar intocado este ponto - que tantoo pensamento de Kant quanto todas as concepções que sustentam ser adignidade atributo exclusivo da pessoa humana - encontram-se, ao menos36 Cf. J. Waldrom, "Dignity and Rank", op. cit., p. 211-214,37 Cf. novamente, J. Waldrom, "Dignity and Rank", op. cit., p. 214.38 Apenas a título ilustrativo, a concepção Kantiana de dignidade da pessoa encontrou lugar dedestaque, entre outros, nos seguintes autores. Entre nós, v., por exemplo, as recentes e preciosascontribuições de C. L. Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa..., p. 23 e ss, e F. K.Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 19 e ss., assim como os trabalhos de F.Ferreira dos Santos, Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, p. 20 e ss., e J. Afonsoda Silva, A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, in: RDA nº 212, p. 89 e

ss. Na literatura lusitana, v., dentre outros, J. Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, p.188, bem como, por último, P. Mata Pinto, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, in:Portugal-Brasil ano 2000, p. 151, sem falar na expressiva maioria dos autores alemães, alguns dosquais já referidos.

 ____________________________________________________________________________  _ Pg. 40em tese, sujeitas a crítica de um excessivo antropocentrismo, notadamentenaquilo em que sustentam que a pessoa humana, em função de suaracionalidade (não é à toa que Blaise Pascal, já em meados do século XVII,chegou a afirmar que "não é do espaço que devo procurar minha dignidade,mas da ordenação do meu pensamento"39) ocupa um lugar privilegiado em

relação aos demais seres vivos. 40 Para, além disso, sempre haverá comosustentar a dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numaépoca em que o reconhecimento da proteção do meio ambiente como valorfundamental indicia que não mais está em causa apenas a vida humana,mas a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formasde vida existentes no planeta, ainda que se possa argumentar que talproteção da vida em geral constitua, em última análise, exigência da vidahumana e de uma vida humana com dignidade, tudo a apontar para oreconhecimento do que se poderia designar de uma dimensão ecológica ouambiental da dignidade da pessoa humana.

 Tais questionamentos, por sua vez, nos remetem a controvérsia emtorno da atribuição de dignidade e/ou direitos aos animais e demais seresvivos, que, de resto, já vem sendo reconhecida por alguma doutrina. Sem

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que se vê desenvolver o ponto, desde logo nos parece que a tendênciacontemporânea de uma proteção constitucional e legal da fauna e flora,bem como dos demais recursos naturais, inclusive contra atos de crueldadepraticados pelo ser humano, revela no mínimo que a própria comunidadehumana vislumbra em determinadas condutas (inclusive praticadas em

relação a outros seres vivos) um conteúdo de indignidade. Da mesmaforma, considerando que nem todas as medidas de proteção da naturezanão humana têm por objeto assegurar aos seres humanos sua vida comdignidade (por conta de um ambiente saudável e equilibrado), mas já dizemcom a preservação - por si só - da vida em geral e do patrimônio ambiental,resulta evidente que se está a reconhecer a natureza um valor em si, isto é,intrínseco. Se com isso se está a admitir uma dignidade da vida para alémda humana, tal reconhecimento não necessariamente conflita (nem mesmopor um prisma teológico, ousaríamos sugerir), com a39. B, Pascal. Pensamentos, 113 (348). p, 40, Igualmente destacando a importância da razão para adistinção entre o homem e os demais seres. Pascal (ob, cit.. p, 39. 111(339), averba que "Posso até

conceber um homem sem mãos, sem pés, sem cabeça, pois é só a experiência que nos ensina que acabeça é mais necessária do que os pés, Mas não posso conceber um homem sem pensamento,Seria uma pedra ou um bicho",40. O que se percebe, neste contexto, na esteira da lição de F Moderne, la dignité de la personnecomme principe constitutionnel dons les Constitutions Portugaise et Française, in: J, Miranda (Org.).Perspectivas Constitucionais - Nos 20 anos da Constituição de 1976, vol. I. p, 199, é que a concepçãode dignidade da pessoa humana como constituindo qualidade distintiva do ser humano, por serdotado de razão e consciência, encontra-se vinculada a tradição do pensamento judaico-cristão,traduzindo, ademais, uma evidente noção de superioridade do ser humano.

Pg. 41noção de dignidade própria e diferenciada - não necessariamente superior emuito menos excludente de outras dignidades - da pessoa humana, que, aevidência, somente e necessariamente é da pessoa humana. 41

Verifica-se, portanto, que também nesta perspectiva a dignidade dapessoa humana (independentemente, no nosso sentir, de se aceitar, ounão, a tese da dignidade da vida não humana) há de ser compreendidacomo um conceito inclusivo, no sentido de que a sua aceitação não significaprivilegiar a espécie humana acima de outras espécies, mas sim, aceitarque do reconhecimento da dignidade da pessoa humana resultamobrigações para com outros seres e correspondentes deveres mínimos eanálogos de proteção. 42

De outra parte, a concepção kantiana, ao menos se interpretadarestritivamente, acaba por remeter a pergunta (que, de resto, ainda não

obteve resposta consensual) sobre o início e o fim da dignidade da pessoa,além de toda uma gama de outros questionamentos que aqui não temoscondições nem temos a intenção de desenvolver e que tanta relevância41 Dentre a doutrina disponível (e as referências não indiciam concordância com o conteúdo dosaportes de cada autor), remetemos - a título exemplificativo - inicialmente ao clássico e altamentecontroverso contributo de P. Singer. Ética Prática, especialmente p. 65 e ss. Dentre osdesenvolvimentos mais recentes, v. o instigante, mas equilibrado artigo de C. Sunstein, "The rights of animaIs", in: The University of Chicago Law Review, vol. 70, 2003, p. 387 e ss., onde, embora não setenha reconhecido propriamente uma dignidade dos animais, admite a possibilidade de se atribuircertos direitos a determinadas categorias de animais, a depender, especialmente, de suascapacidades. Revelando seu ceticismo em relação ao reconhecimento de uma autonomia dosanimais em relação ao próprio ser humano, o autor prefere enfatizar a idéia de que os animais têmdireito a uma vida decente, livre de sofrimento e maus-tratos, o que, de qualquer modo, não semostra completamente incompatível com alguns componentes da própria noção de dignidade.

Indispensável, de outra parte, a teorização de M. Nussbaum, Frontiers of Justice, especialmente nocapítulo 6, p. 325-407. No que diz com a recepção desta concepção pelo direito constitucionalposição, designadamente no tocante a uma noção ampliada e inclusiva de dignidade, vale mencionar

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o exemplo da Constituição da Suíça, onde foi inserido um dispositivo impondo ao Estado o dever derespeitar a dignidade da criatura e a segurança do Homem, dos animais e do meio-ambiente. Sobre otema (precisamente comentando o mencionado dispositivo) v., entre outros, o recente contributo deH. Zaborowski e C. A. Stumpf, "Menschenw Tde versns Würde der Kreatur", in: Rechtstheorie 36(2005), p. 91-115. No âmbito da literatura em língua portuguesa, priorizando a questão doreconhecimento de "direitos dos animais" v., por todos, F. Araújo, A hora dos direitos dos animais.Coimbra: Almedina, 2003. Já explorando a noção de uma dignidade da vida e de um mínimo

existencial ambiental, inclusive fazendo referência a nossas ponderações, v, T. Fensterseifer,"Dignidade e Ambiente: a dignidade da vida para além do animal humano", in: A. H. Benjamim(Org./Ed), Direitos Humanos e Meio Ambiente, vo1. I, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006,p. 915 e ss. Privilegiando a noção de um "mínimo existencial ecológico" v. ainda, no mesmo volume,a contribuição de C. A. Molinaro. "Mínimo existencial ecológico e o princípio de proibição daretrogradação ambiental", p, 427 e ss, T. Fensterseifer. Direitos Fundamentais e Proteção doAmbiente, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, esp. P. 31 a 92. Por último, v. C. A. Molinaro. F.L. F. de Medeiros: 1. W. Sarlet: T, Fensterseifer (org.). A Dignidade da Vida e os DireitosFundamentais para além dos Humanos, Uma discussão necessária. Belo Horizonte: Editora Fórum.2008.42 Cf. bem aponta D. Birnbacher, "Mehrdeutigkeiten im Begriff der Menschenwürde", p. 4 (acesso emhttp://www.gkpn.de/).

Pg. 42

tem assumido no âmbito da biotecnologia e do assim designado"biodireito", notadamente no que diz com a proteção jurídica do embrião (edo patrimônio genético da pessoa em geral) em face de toda a sorte demanipulações, 43 assim como nas questões vinculadas a dignidade no finalda vida, especialmente naquilo que envolve a discussão em torno daviabilidade e dos limites da eutanásia. 44 De qualquer modo, incensurável,isto sim, como teremos oportunidade de demonstrar no próximo segmento,é a permanência da concepção kantiana no sentido de que a dignidade dapessoa humana, esta (pessoa) considerada como fim, e não como meio,repudia toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do serhumano.

Se é verdade que as formulações de Kant sobre a dignidade (adespeito de uma série de críticas formuladas ao longo do tempo, a começarpela sempre lembrada advertência de Schopenhauer, para quem a fórmulade Kant é vazia de sentido, insuficiente e até mesmo problemática,podendo servir de fundamento para qualquer coisa)45 marcaram umaguinada decisiva no âmbito do pensamento filosófico e passaram ainfluenciar profundamente também a produção jurídica, também é certoque sempre existiram importantes contrapontos, dentre os quais cumpredestacar a noção desenvolvida por Hegel na sua Filosofia do Direito,sustentando, de certo modo, a partir de uma perspectiva escolástica - tal

qual encontrada em Tomás de Aquino - que a dignidade constitui - também(mas não exclusivamente, ao que nos parece) - uma qualidade a serconquistada. 46

43. No âmbito da vasta produção científica encontrada nesta seara, destacamos, a títuloexemplificativo e apenas considerando a produção monográfica nacional, para além dos já clássicostrabalhos de S. Ferraz, Manipulações Biológicas e Princípios Constitucionais, Porto Alegre: SergioFabris, 1991 e E. de Oliveira Leite, Procriações Artificiais e o Direito, São Paulo: RT, 1995, oscontributos mais recentes de J. M. L. de Meirelles, A vida humana embrionária e sua proteção jurídica,Rio de Janeiro: Renovar, 2000, M. C. C. L. dos Santos (Org.), Biodireito, São Paulo: RT, 2001, R. P. eSilva, Introdução ao Biodireito, São Paulo: L TR, 2002, M. C. C. Brauner, Direito, Sexualidade eReprodução Humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, H. H. Barboza, J. M. L. de Meirelles; V. P. Barreto(Org.), Novos Temas de Direito e Bioética, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, P. de Jesus L. Alarcon,Patrimônio Genético Humano e sua Proteção na Constituição Federal de 1988, São Paulo: MÉTODO,2004, M. Garcia, Limites da Ciência, São Paulo: RT, 2004; v., Sporleder de Souza. Bem jurídico - penal

e engenharia genética. São Paulo: RT, 2004, D. Sarmento e F. Piovesan (Coords.), Nos Limites daVida, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro: Lúmen

  Júris, 2007; S. R. Petterle. O Direito Fundamental a Identidade Genética na Constituição Brasileira,

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Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007; por último, v. I. W. Sarlet e G. S. Leite (org.) DireitosFundamentais e Biotecnologia, São Paulo: MÉTODO, 2008, e R. da Rocha. O Direito a Vida e aPesquisa com Células - tronco, São Paulo: Elsevier, 2008.44. A respeito deste ponto, v., dentre tantos - embora reconhecendo a ausência de unanimidade arespeito das conclusões do autor - R. Dworkin, El Domínio de la Vida, Barcelona: Arie, 1998.45. Neste sentido, v. as referências, dentre tantos, de D. Birnbacher, "Menschenwürde - abwägbaroder unabwägbar", p. 249 e ss.

46. Cf. M. Herdegen, Neuarbeitung von Art. 1 Abs. 1- Schutz der Menschenwürde, p. 9.Pg. 43

Neste contexto, convém seja colacionada a lição de Kurt Seelmann,para quem o mais apropriado seria falar que ao pensamento de Begel (enão apenas na sua Filosofia do Direito) encontra-se subjacente uma teoriada dignidade como viabilização de determinadas prestações. Tal teoria,além de não ser incompatível com uma concepção ontológica da dignidade(vinculada a certas qualidades inerentes a condição humana), significa queuma proteção jurídica da dignidade reside no dever de reconhecimento dedeterminadas possibilidades de prestação, nomeadamente, a prestação do

respeito aos direitos, do desenvolvimento de uma individualidade e doreconhecimento de um auto-enquadramento no processo de interaçãosocial. 47 Como, ainda, bem refere o autor colacionado, tal conceito dedignidade não implica a desconsideração da dignidade (e de sua proteção)no caso de pessoas portadoras de deficiência mental ou gravementeenfermas, já que a possibilidade de proteger determinadas prestações nãosignifica que se esteja a condicionar a proteção da dignidade ao efetivoimplemento de uma dada prestação, já que também aqui (de modo similar -como poderíamos acrescentar - ao que se verificou relativamente aopensamento Kantiano, centrado na capacidade para a autodeterminaçãoinerente a todos os seres racionais) o que importa é a possibilidade de uma

prestação. 48

Na condição de um dos expoentes (se não o expoente) do idealismofilosófico alemão do século XIX, Begel - aqui na interpretação outorgada porCarlos Ruiz Miguel - acabou por sustentar uma noção de dignidade centradana idéia de eticidade (instância que sintetiza o concreto e o universal, assimcomo o individual e o comunitário), de tal sorte que o ser humano nãonasce digno - já que Begel refuta uma concepção estritamente ontológicada dignidade -, mas torna-se digno a partir do momento em que assumesua condição de cidadão. 49 Nesta perspectiva, não é a toa que na filosofiado Direito de Begel já se faz presente a concepção de que a dignidade é(também) o resultado de um reconhecimento, noção esta consubstanciada -não só, mas especialmente - na máxima de que cada um deve ser pessoa erespeitar os outros como pessoas (sei eine Person und respektiere dieanderen als Personen). 50 Tal reconhecimento, ainda que experimentado emum contexto concreto e determinado, não se mostra inconciliável com anoção de que o ser humano é como tal reconhecido independentementedas suas relações sociais, já que a capacidade47. Cf. K. Seelmann, "Person und Menschenwürde in der Philosophie Hegels", p. 141.48. Cf. K. Seelmann, idem, p. 142. A respeito das diversas dimensões da dignidade encontradas nopensamento de Hegel, v., ainda, as referências de O. Höffe, "Menschenwürde als ethisches Prinzip",in: Gentechnologie und Menschenwürde, p. 133.49. Cf. C. R. Miguel, "Human dignity: history of a n idea", p. 297-98.50. Cf. G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 36, p. 95.

Pg. 44

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 jurídica (a competência de ser sujeito de direitos) é igual em e para todasas pessoas, 51 de tal sorte que há mesmo quem - neste particularigualmente atrelado, ao que tudo indica, o pensamento de Hegel, vislumbrena capacidade de ser sujeito da atribuição de direitos (no sentido da noçãode personalidade jurídica) e não mero objeto de direitos a própria nota

distintiva da dignidade da pessoa humana.52 A despeito de alguns pontosem comum, já perceptíveis a partir destas, sumárias referências, Hegelafasta-se de Kant e, com isso, da expressiva maioria dos autores - entreoutros aspectos - notadamente ao não fundar a sua concepção de pessoa edignidade em qualidades (ou faculdades) inerentes a todos os sereshumanos, além de não condicionar a condição de pessoa, sujeito edignidade à racionalidade.53 Que as reflexões de Hegel acabaramalcançando uma influência nada desprezível nos desenvolvimentosposteriores, aqui não será objeto de análise, mas há de ser consignado,bastando já uma breve referência a ênfase dada por vários autores àdimensão histórico-cultural da dignidade, como é o caso de um NiklasLuhmann e um Peter Häberle, bem como a fundamentação da dignidade nacapacidade comunicativa do ser humano e/ou no reconhecimento recíproco,como dão conta, entre outros, as teorizações de Jürgen Habermas e AxelHonneth, o que será objeto de menção e algum desenvolvimento logo maisadiante.

Após tratada esta sombria evolução no âmbito da construção de umaconcepção filosófica e secularizada de dignidade, que encontrou em Kant oseu mais aclamado (mas não único) expoente, e mesmo considerando aexistência de diversos autores de renome, tais como Marx, Merleau-Ponty eSkinner, que tenham negado qualquer tentativa de fundamentação religiosa

ou metafísica da dignidade da pessoa humana,54

bem como apesar51. Neste sentido, a lição de K. Seelmann, "Person und Menschenwürde in der Philosophie Hegels", p.132-33.52. É o que se extrai das ponderações de S. Kirste, "A dignidade humana e o conceito de pessoa dedireito", in: I. W. Sarlet (org.), Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e DireitoConstitucional, 2a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, especialmente p. 194 e ss.53. Cf. também K. Seelmann, ob. cit., p. 143.54. Ao menos esta é a lição de C. Starck, Menschenwürde als Verfassungsgarantie..., p. 461-2. Nestecontexto, cumpre citar a posição de M. Kriele, Einführung in die Staatslehre, p. 215-6, para quem acorrente mais forte que se opôs a concepção da dignidade da pessoa humana (como sendo o valorintrínseco e intangível de todos os seres humanos) e dos direitos humanos dela decorrentes foi àética utilitarista, principalmente de Bentham, que justificou restrições e agressões aos direitoshumanos em função dos valores de natureza permanente da comunidade ou da humanidade em seutodo (o sacrifício eventual da felicidade de um ou de alguns justifica a maior felicidade da maioria),

de tal sorte que a doutrina utilitarista acabou servindo para justificar, por exemplo, praticas como aescravidão e o extermínio dos povos indígenas. Registre-se, ainda, que aqui não nos detivemos emaveriguar até que ponto a crítica tecida por Kriele é correta, já que acabamos não conferindo opensamento dos autores referidos. No que diz com a concepção behaviorista (Skinner) e marxista,cabe, neste ponto, reproduzir a lição de T. Geddert-Steinachcr, Menschenwürde alsVeifassungsbegriff, p. 125-26, ponderando

Pg. 45das desastrosas experiências pelas quais tem passado a humanidade, demodo especial no decorrer do assim intitulado "breve século XX”, 55 o fato éque esta - a dignidade da pessoa humana - continua, talvez mais do quenunca, a ocupar um lugar central no pensamento filosófico, político e

  jurídico, do que dá conta a sua já referida qualificação como valor

fundamental da ordem jurídica, para expressivo número de ordensconstitucionais, pelo menos para as que nutrem a pretensão de

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constituírem um Estado democrático de Direito. 56 Da concepção  jusnaturalista - que vivenciava seu apogeu justamente no século XVIII -remanesce, indubitavelmente, a constatação de que uma ordemconstitucional que - de forma direta ou indireta - consagra a idéia dadignidade da pessoa humana, parte do pressuposto de que o homem, em

virtude tão somente de sua condição humana e independentemente dequalquer outra circunstância, é titular de direitos que devem serreconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado. 57 Damesma forma, acabou sendo recepcionada, especialmente a partir e pormeio do pensamento cristão e humanista,58 uma fundamenta-Que para Skinner liberdade e dignidade são categorias ultrapassadas, já que a autonomia não éempiricamente comprovável não sendo o próprio ser humano quem dirige o seu comportamento,mas sim, este é controlado pela natureza, de tal sorte que os conceitos jusnaturalistas de liberdade edignidade deveriam ser substituídos por uma "tecnologia do comportamento", ao passo que paramuitos autores marxistas não há como aceitar a idéia de um estatuto da liberdade (e dignidade) pré-estatal, já que são as forças econômicas e a luta de classes os fatores condicionantes do fenômeno

 jurídico. De modo particular no que diz com os autores de inspiração marxista, cumpre destacar,todavia, que não há como afirmar - e muito menos de modo generalizado - que estes estejampropriamente a negar a dignidade da pessoa ou o seu reconhecimento. Basta, neste contexto, referira expressiva obra de Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würde, especialmente p. 215 e ss.(existe tradução para o espanhol sob o título Derecho Natural y Dignidad Humana, Madrid. 1980)que, embora considerando serem liberdade e igualdade ilusões do jusnaturalismo burguês, e mesmoafirmando a negativa da existência de direitos naturais (no sentido de inatos), já que todos osdireitos foram conquistados ou necessitam ser conquistados pela luta, reconhece uma vontade paraa liberdade e dignidade, além de construir uma fundamentação crítica e marxista da dignidade.55. Aqui nos valemos da já celebre expressão cunhada por E. Hobsbawm, A Era dos Extremos, p, 7 ess., onde o autor coloca as razões pelas quais optou por assim denominar o século XX, colocandocomo referenciais as datas de 1914 e 1991.56. Sobre o sentido e a compreensão da noção de Estado democrático de Direito, especialmenteretratando a evolução desde o Estado liberal de Direito (assim como elucidando as possíveisdiferenças em relação ao assim denominado Estado social de Direito), v. entre outros, a recente edidática contribuição de L. Luiz Streck e J. L. Bohan de Morais, Ciência Política e Teoria Geral doEstado, p. 83 e ss.57. M. Kriele, Einführung in die Staatslehre, p, 214.58. Especificamente sobre a concepção de dignidade (no caso, enfocando o tema pelo prisma dadoutrina social da Igreja Católica Romana) v., entre nós, o contributo de, C. F. Alves, O PrincípioConstitucional da Dignidade da Pessoa Humana: O Enfoque da Doutrina Social da Igreja, Rio de

 Janeiro: Renovar. 2001.

Pg. 46ção metafísica da dignidade da pessoa humana, que, na sua manifestação

 jurídica, significa uma última garantia da pessoa humana em relação a umatotal disponibilidade por parte do poder estatal e social. 59 Vale registrar,todavia, a arguta observação de Otfried Höffe, no sentido de que umavinculação da noção de dignidade da pessoa a tradição judaico-cristã oumesmo a cultura européia, poderia justificar a crítica de que a dignidadenão constitui um conceito e postulado intercultural e secularizado, o que,por sua vez, acabaria sendo um obstáculo a própria universalização e -neste sentido - um fator impeditivo de uma globalização' da dignidade numcontexto multicultural, 60 aspecto que voltará a ser referido em outrocontexto. Se a busca de um fundamento religioso para a dignidade dapessoa humana e para os direitos humanos que lhe são corretos estánecessariamente vinculada a uma concepção estrita de religião oudeterminadas tradições religiosas, ou mesmo se um fundamento religiosopode, ao fim e ao cabo, corresponder a uma concepção não religiosa

(secular) de dignidade da pessoa humana, é apenas mais uma questão que

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aqui deixaremos propositalmente em aberto, mas que segue reclamandoatenção e desenvolvimento. 61

2.2. A noção de dignidade da pessoa na perspectiva juridíco-constitucional: tentativas de aproximação e concretização

Ainda que as considerações até agora tecidas já possam ter lançado

alguma luz sobre o significado e o conteúdo da dignidade da pessoa hu-59 Cf. a oportuna lembrança de C. Starck, in: Bonner Grundgesetz, p. 36-37. Vale agregar, quanto aeste ponto, que mesmo autores que refutam uma concepção metafísica da dignidade, em especialquando impregnada por elementos de direito natural ou marcada por uma fundamentação religiosa,acabam, no mais das vezes - conforme, ao menos, sugere Karl E, Hain ("Konkretisierung derMenschenwürde durch Abwägung?, in: Der Staat, 2007, p. 197) - sendo "infectados por um vírusmetafísico", designadamente quando seguem reconduzindo a dignidade da pessoa humana aautonomia e autodeterminação do ser humano, enfatizando, com tal assertiva, a vinculação entre umconceito jurídico de dignidade e a filosofia.60 Cf. O, Höffe, Medizin ohne Ethik, p. 49, afirmando que para assegurar a validade intercultural doprincípio da dignidade da pessoa humana, de tal sorte a alcançar vinculatividade mundial, o próprioconteúdo e significado do princípio deve ser necessariamente compreendido comointerculturalmente válido e secularizado, portanto, mediante renúncia a qualquer específica mundovisão ou concepção religiosa.

61 Neste sentido, v. os desenvolvimentos de M. J. Perry, Toward a Theory of Human Rights,especialmente p. 3-32 (primeira parte), empenhado em controverter a tese da existência de umfundamento secular para a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos,

Pg. 47mana, não a como negar, e outra parte, que 62 Tal dificuldade, consoanteexaustiva e corretamente destacado na doutrina, decorre certamente (aomenos também) da circunstância de que se cuida de conceito de contornosvagos e imprecisos, 63 caracterizado por sua "ambigüidade e porosidade”, 64

assim como por sua natureza necessariamente polissêmica, 65 muitoembora tais atributos não possam ser exclusivamente atribuídos adignidade da pessoa. Assim, embora com a devida cautela, há como

acompanhar José de Melo Alexandrino quando bem averba, em passagemora transcrita na integra, que "o princípio da dignidade da pessoa humanaparece pertencer aquele lote de realidades particularmente avessas aclaridade, chegando a dar a impressão de se obscurecer na razão direta doesforço despendido para o clarificar". 66

Uma das principais dificuldades, todavia - e aqui recolhemos a liçãode Michael Sachs - reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa,diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, nãose cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana(integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de umaqualidade tida como inerente ou, como preferem outros, atribuída a todo equalquer ser humano, de tal sorte que a dignidade - como já restouevidenciado - passou a ser habitualmente definida como constituindo ovalor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que,todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatóriado que62. Cf. sempre tem sido lembrado no âmbito da literatura jurídica além. Neste sentido, v., dentretantos e recentemente. P. Tiedemann. "Die Würde des Menschen ist Unantastbar", in: Rechtstheorie35 (2004), p. 118.63. Neste sentido, dentre tantos, a lição de Maunz/Zippelius. Deutsches Staatsrecht, p. 179. M Assimo sustenta C. L. Antunes Rocha. O princípio da dignidade da pessoa..., p. 24.65. Cf. F. Delpérée, O direito à dignidade humana, p. 153. Assim também M-L. Pavia, Le principe de

dignité... p. 99.

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66. Cf. J. M. Alexandrino, "Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço tratado apartir da variedade de concepções", in: Estudos em Honra ao Professor Doutor José de OliveiraAscensão, vol. I, Coimbra: Almedina. 2008, p. 481.

Pg. 48efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, 67 na sua condição

 jurídico-normativa.Mesmo assim, tal como consignou um arguto estudioso do tema, não

restam d·vidas de que a dignidade é algo real, já que não se verifica maiordificuldade em identificar claramente muitas das situações em que éespezinhada e agredida, 68 ainda que não seja possível estabelecer umapauta exaustiva de violações da dignidade. 69 Com efeito, não é a toa que jáse afirmou até mesmo ser mais fácil desvendar e dizer o que a dignidadenão é do que expressar o que ela é. 70 Além disso, verifica-se que a doutrinae a jurisprudência - notadamente no que diz com a construção de umanoção jurídica de dignidade71 - cuidaram, ao longo do tempo, de estabeleceralguns contornos basilares do conceito e concretizar o seu conteúdo, ainda

que não se possa falar, também aqui, de uma definição genérica e abstrataconsensualmente aceita, isto sem falar no ceticismo manifesto de alguns noque diz com a própria possibilidade de uma concepção jurídica dignidade,aspecto que, por sua vez, voltará a ser referido. 72 73 Neste contexto,67. Cf. M. Sachs, Verfassungsrecht II - Grundrechte, p. 173.68. Esta a oportuna advertência de J. Tischner, in: Bockenforde/Spaemann (Org.). Menschenrechteund Menschenwürde, p. 317. Na mesma linha de entendimento situa-se a lição de M. Renaud, Adignidade do ser humano... p. 36, sustentando, todavia, que, não obstante todos tenhamos umacompreensão espontânea e implícita da dignidade da pessoa humana, ainda assim, em sendo o casode explicitar em que consiste esta dignidade, teríamos grandes dificuldades.69. Cf. J. González Pérez. La dignidad de la persona, p. 115.70. Cf. a oportuna lembrança de P. Kunig, in: I. von Münch, (Org.), Grundgesetz Kommentar, p. 79,arrimado na lição de Christian Pestallozza.

71. Quando aqui se fala em uma noção jurídica de dignidade, pretende-se apenas clarificar que seestá simplesmente buscando retratar como a doutrina e a jurisprudência constitucional - e aindaassim de modo apenas exemplificativo - estão compreendendo, aplicando e eventualmenteconcretizando e desenvolvendo uma (ou várias) concepções a respeito do conteúdo e significado dadignidade da pessoa. Por outro lado, não se questiona mais seriamente que a dignidade seja tambémum conceito jurídico. Neste sentido, por todos e mais recentemente, P. Kunig, in: I. Von Münch (Org.).Grundgesetz Kommentar, p. 76.72. Neste sentido, dentre outros, v. C. Neirinck, la dignité de la personne ou le mauvais usage d'unenotion philosophique, in: PEDROT, Philippe (Dir.), Ethique Droit et Dignité de la Personne, p. 50,advertindo que as noções filosóficas (como é o caso da dignidade), não encontram solução noDireito. Na mesma direção, F. Borella, Le concept de dignité de la personne humaine, p. 37, nega quea dignidade seja um conceito de direito positivo, embora admita que possa ser reconhecida eprotegida pelo direi to.73. Neste sentido, a sugestiva lição de P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen

Gemeinschaft, in: Isensee-Kirchhof (Org.), Handbuch des Staatsrecht der BundesrepublikDeutschland, vol. I, p. 853, para quem se revela indispensável à utilização de exemplos concretospara obter uma aproximação com o conceito de dignidade da pessoa humana, salientando, alémdisso, a importância de um preenchimento desta noção "de baixo para cima", no sentido de que aprópria ordem jurídica infraconstitucional fornece importante material para a definição dos contornosdo conceito. Registre-se, por oportuno, a crítica de N. Luhmann, Gruhdrechte als Institution, p. 57,salientando que a dogmática jurídica habitualmente define a dignidade sem qualquer consideraçãopelas ciências

Pg. 49costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que a dignidadeda pessoa humana (por tratar-se, à evidência - e nisto não diverge deoutros valores e princípios jurídicos - de categoria axiológica aberta) nãopoderá ser conceituada de maneira fixista, ainda mais quando se verificaque uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e adiversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas

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contemporâneas, 74 razão pela qual correto se afirmar que (também aqui)nos deparamos com um conceito em permanente processo de construção edesenvolvimento. 75 Assim, há que reconhecer que também o conteúdo danoção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito

  jurídico-normativo, a exemplo de tantos outros conceitos de contornos

vagos e abertos, reclama uma constante concretização e delimitação pelapráxis constitucional, tarefa cometida a todos os órgãos estatais. 76 Talconstatação, todavia, não significa que, consoante apontam diversas vozescríticas, se deva renunciar pura e simplesmente a busca de umafundamentação e legitimação da noção de dignidade da pessoa humana enem que se deva abandonar a tarefa permanente de construção de umconceito que possa servir de referencial para a concretização, já que não sedeve olvidar que a transformação da dignidade em uma espécie de tabu(considerando-a como uma questão fundamental que dispensa qualquer

  justificação), somada a tentação de se identificar apenas em cada casoconcreto (e em face de cada possível violação) o seu conteúdo, pode defato resultar em uma aplicação arbitrária e voluntarista da noção dedignidade. 77 Na tentativa, portanto, de rastrear argumentos que possamcontribuir para uma compreensão não necessariamente arbitrária e,portanto, apta a servir de baliza para uma concretização também no âmbitodo Direito, cumpre salientar, inicialmente e retomando a ideial1uclear que

 já se fazia presente até mesmo no pensamento clássico - que/a dignidade,como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável,constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não podeser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibi-que se ocupam do Homem e da Sociedade, aferrando-se a uma tradição aristotélica. Ainda queLuhmann possa ter parcial razão, convém destacar que sua obra foi escrita na década de 60, quandoa ciência jurídica recém estava iniciando o estudo mais sistemático da dignidade.74 Cf., entre nós, E. Pereira de Farias. Colisão de Direitos, p. 50, por sua vez arrimado nas lições deGomes Canotilho e de Celso Lafer.75. Tal como propôs, recentemente, C. L. Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa..., p.24.76. Cf. averba R. Zippelius, in: Bonner Kommentar, p. 14.77. Cf. também adverte P. Tiedemann, "Die Würde des Menschen ist Unantastbar", in: Rechtstheorie35 (2004), p. 121. Seguindo uma linha argumentativa similar, v. ainda D. Birnbacher,"Menschenwürde - abwägbar oder unabwagbar", in: M. Kettner (Hsgb), Biomedizin undMenschenwürde, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 2004, p. 249 e ss.

Pg. 50lidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe sejaconcedida a dignidade. 78 Assim, compreendida como qualidade integrantee irrenunciável da própria condição humana, 79 a dignidade pode (e deve)ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo(no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (emborapossa ser violada), já que reconhecida e atribuída a cada ser humano comoalgo que lhe é inerente. Ainda nesta linha de entendimento, houve atémesmo quem afirmasse que a dignidade representa "o valor absoluto decada ser humano, que, não sendo indispensável, é insubstituível”, 80 o que,como se verá mais adiante, não afasta a possibilidade de uma abordagemde cunho crítico e não inviabiliza, ao menos não por si só, eventualrelativização da dignidade, notadamente na sua condição jurídico-

normativa e em alguma de suas facetas.

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Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existeapenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece.81 Todavia, importa não olvidar que o Direito poderá exercer papel crucial nasua proteção e promoção, não sendo, portanto, completamente semfundamento que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma

definição jurídica da dignidade da pessoa humana, na medida em que, emúltima análise, se cuida do valor próprio, da natureza do ser humano comotal.82 No entanto, quando se cuida de aferir a existência de ofensas àdignidade, não há como prescindir - na esteira do que leciona GonzálezPérez - de uma clarificação quanto ao que se entende por dignidade dapessoa, justamente para que se possa constatar e, o que é maisimportante, coibir eventuais violações.83 Em verdade, como nos lembra omesmo autor, a78. Esta a lição de G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde..., in: AÖR nº 81 (1956), p. 9. Entrenós, por último, v. W. G. Di Lorenzo, Teoria do Estado de Solidariedade. São Paulo: Elsevier, 2010,p.55. .79. Assim, entre tantos, K. Stern, Staatsrecht, vol.III/1, p. 6.80. Cf. J. C. Gonçalves Loureiro, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, in: Portugal-Brasil2000, p. 280, citando lição de C. Hodgkinson, filósofo dinamarquês, admitindo, para, além disso, ainequívoca inspiração kantiana desta assertiva.81. Cf. M. A Alegre Martinez, la dignidad de la persona..., p. 21. Entre nós, v. J. Afonso da Silva, Adignidade da pessoa humana..., p. 91, inspirado em Kant, referindo que a dignidade da pessoa "não éuma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a todaexperiência especulativa, tal como a própria pessoa humana", lição compartilhada, maisrecentemente, também por C. L. Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa..., p. 26.82. Neste sentido, a ponderação de H.C. Nipperdey, in: Neumann/Nipperdey/Scheuner (Org.). DieGrundrechte, vol. II, p. I.83. Cf. J. González Pérez, Dignidad de la Persona, p. 111. No mesmo sentido, Peter Badura,Generalpravention und Würde des Menschen, in: JZ 1964, p. 341, em multicitado ensaio, já haviaponderado que a clareza suficiente a respeito do conteúdo da dignidade da pessoa tal qualreconhecida e protegida por uma determinada ordem constitucional constitui pressuposto para asolução adequada dos casos concretos.Pg. 51dignidade é tida como intangível pelo fato de que assim foi decidido, namedida e no sentido em que se decidiu, o que demonstra como se podechegar a resultados tão dispares e até mesmo conflitantes entre si, naaplicação concreta da noção de dignidade da pessoa.84 

Neste contexto, bem refutando a tese de que a dignidade nãoconstitui um conceito juridicamente apropriável e que não caberia - comoparece sustentar Habermas85 - em princípio, aos juízes ingressar na esferado conteúdo ético da dignidade, relegando tal tarefa ao debate público que

se processa notadamente na esfera parlamentar, assume relevo apercuciente observação de Denninger, no sentido de que - diversamente dofilósofo, para quem, de certo modo, é fácil exigir uma contenção edistanciamento no trato da matéria - para a jurisdição constitucional,quando provocada a intervir na solução de determinado conflito versandosobre as diversas dimensões da dignidade, não existe a possibilidade derecusar a sua manifestação, sendo, portanto, compelida a proferir umadecisão, razão pela qual já se percebe que não há como dispensar umacompreensão (ou conceito) jurídica da dignidade da pessoa humana, já, quedesta - e à luz do caso examinado pelos órgãos judiciais - havendo de serextraídas determinadas conseqüências jurídicas. 86 

Além disso, como já frisado, não se deverá olvidar que a dignidade -ao menos de acordo com o que parece ser a opinião largamente majo-

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84. CF. J. González Pérez, Dignidad de la Persona, p. 19-20. Neste contexto, embora criticando orecurso direto ao princípio da dignidade da pessoa (especialmente por seu cunho indeterminado e"nebuloso"), B. Mathieu. Reflexões sobre o Papel dos Direitos Fundamentais na Ordem JurídicaConstitucional, in: Barros - Zilveti (Coord), Direito Constitucional - Estudos em Homenagem a ManoelGonçalves Ferreiro Filho, p. 29, destaca que o princípio da dignidade serve, ao mesmo tempo, para

 justificar o respeito à vida humana e até mesmo o seu fim, como ocorre nos casos em que sereconhece o direito de morrer com dignidade (eutanásia).

85. Com efeito, J. Habermas, Die Zukunfi der mellschlichen Natur, p. 70 e ss., argumenta, em síntese,que o Estado secularizado e neutro, quando constituído de modo democrático e procedendo de modoinclusivo, não pode tomar partido numa controvérsia ética relacionada com a dignidade da pessoahumana e o direito geral ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 1º e 2º da LeiFundamental da Alemanha). Além disso - segue argumentando Habermas - quando a pergunta arespeito do tratamento dispensado a vida humana antes do nascimento envolve questões deconteúdo ético, o razoável será sempre contar com um fundado dissenso, tal qual encontrado naesfera do debate parlamentar por ocasião da elaboração das leis (no caso, Habermas fez referênciaexpressa ao debate no Parlamento da Alemanha, ocorrido no dia 31.05.2001).86. CF. E. Denninger. "Embryo und Grundgesetz. Schutz des Lebens und der Menschenwürde vorNidation und Geburt". in: KritV (2003), p. 195/6. lembrando, nesta perspectiva (da necessáriaintervenção da jurisdição constitucional no plano das decisões envolvendo a dignidade da pessoahumana), a arguta argumentação da Ex-Presidente do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha,

  Juíza Jutta Limbach (extraída de voto proferido em decisão envolvendo a descriminalização do

aborto), no sentido de que assim como é correto afirmar que a ciência jurídica não é competentepara responder a pergunta de quando inicia a vida humana. também é certo que as ciências naturaisnão estão em condições de responder desde quando a vida humana deve ser colocada sob aproteção do direito constitucional (ob.cit.. p. 196).

Pg. 52ritária - independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda equalquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos - mesmo o maiordos criminosos - são iguais em dignidade, no sentido de seremreconhecidos como pessoas - ainda que não se portem de forma igualmentedigna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos.Assim, mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoa humana -

na esteira do que lembra José Afonso da Silva - como forma decomportamento (admitindo-se, pois, atos dignos e indignos), ainda assim,exatamente por constituir - no sentido aqui acolhido - atributo intrínseco dapessoa humana (mas não propriamente inerente a sua natureza, como sefosse um atributo físico!) e expressar o seu valor absoluto, é que adignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as açõesmais indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração. 87

Aliás, não é outro o entendimento que subjaz ao art. 10 da DeclaraçãoUniversal da ONU (1948), segundo o qual "todos os seres humanos nascemlivres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência,devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade", preceito

que, de certa forma, revitalizou e universalizou - após a profunda barbáriena qual mergulhou a humanidade na primeira metade deste século - aspremissas basilares da doutrina kantiana.

Na feliz formulação de Jorge Miranda, o fato de os seres humanos(todos) serem dotados de razão e consciência representa justamente odenominador comum a todos os homens, expressando em que consiste suaigualdade. 88 Também o Tribunal Constitucional da Espanha, inspiradoigualmente na Declaração Universal, manifestou-se no sentido de que "adignidade é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifestasingularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria

vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais",

89

Nesta mesma linha, situa-se a .doutrina de Günter Dürig, considerado um

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dos principais comentadores da Lei Fundamental da Alemanha da segundametade do século XX. Segundo este renomado autor, a dignidade87. Cf., entre nós e dentre outros, J. Afonso da Silva, A dignidade da pessoa humana..., p. 93.Registre-se também a lição de J. González Pérez, Dignidad de la Persona, p. 25, destacando que adignidade da pessoa não desaparece por mais baixa que seja a conduta do ser humano, divergindo,nesta linha de entendimento, de São Tomas de Aquino, já que este - como igualmente bem lembrou

o autor citado - justificando a pena de morte, sustentava que o homem, ao delinqüir, decai dadignidade, rebaixando-se a condição de besta. Assim, devem ser repudiadas todas as concepçõesque consideram a dignidade como mera prestação, isto é, algo que depende eminentemente dasações da pessoa humana e algo a ser conquistado, aspecto sobre o qual voltaremos a nospronunciar.88. Cf. J. Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, p. 183.89. Decisão extraída da obra de F. Rubio Llorente (Org.), Derechos Fundamentales y PrincípiosConstiturionales. p. 72.

Pg. 53da pessoa humana consiste no fato de que "cada ser humano é humano porforça de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que ocapacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si

mesmo, de auto determinar sua conduta, bem como de formatar a suaexistência e o meio que o circunda",90

Assim, à luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, bem comoconsiderando os entendimentos colacionados em caráter exemplificativo,verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoahumana parece continuar sendo reconduzido - e a doutrina majoritáriaconforta esta conclusão - primordialmente à matriz kantiana, centrando-se,portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (decada pessoa),91 Nesta mesma linha de entendimento, Gomes Canotilhorefere que o princípio material que subjaz a noção de dignidade da pessoahumana consubstancia-se "no princípio antrópico que acolhe a idéia pré-

moderna e moderna da dignitas-hominis (Pico della Mirandola) ou seja, doindivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprioprojeto espiritual ( plastes et fictor )".92

Importa, contudo, ter presente a circunstância de que esta liberdade(autonomia) é considerada em abstrato, como sendo a capacidadepotencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, nãodependendo da sua efetiva realização no caso da pessoa em concreto, detal sorte que também o absolutamente incapaz (por exemplo, o portador degrave deficiência mental) possui exatamente a mesma dignidade quequalquer outro ser humano física e mentalmente capaz,93 Ressalte-se, poroportuno, que com isso não estamos a sustentar a equipa,ração, mas aintrínseca ligação entre as noções de liberdade e dignidade, já que, como90. Cf. G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde..., in: AÖR nº 81 (1956), p. 125.91. Cf. A Bleckmann, Staatsrecht II - Die Grundrechte, p. 54l.92. Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 219.93. Neste sentido, a lição de G. Dürig, der Grundsatz der Menschenwürde..., in: AÖR nº 81 (1956), p.125, que, com base neste ponto de vista, sustenta que mesmo o consentimento do ofendido nãodescaracteriza uma efetiva agressão a dignidade da pessoa. Pelo mesmo motivo, também onascituro (embrião) encontra-se protegido na sua dignidade, admitindo-se até mesmo que osreflexos da proteção da dignidade venham a alcançar a pessoa inclusive após a morte,posicionamento que vai também por nós acolhido. Sobre este ponto, de resto objeto de agudapolêmica, especialmente no que concerne ao marco inicial do reconhecimento de uma proteção

 jurídica da dignidade e da própria vida, v., entre outros, I. von Münch, in: Grundgesetz Kommentar, p.73-75 e, mais recentemente, também na doutrina constitucional além, M. Hcrdegen, Neuarbeitung

von Art. I Abs.l GG, p. 29 e ss. Na França, vale conferir, dentre tantos outros, o ensaio de B. Matieu,La dignité de la personne humaine: quel droit? Quel titulaire?, in: Recueil Dalloz Sirey 1996, p. 283-84. De modo particular, parece-nos oportuno registrar a lição de W. Höfling, in: M. Sachs (Org.)

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Grundgesetz, p. 117, apontando para a necessidade de uma interpretação aberta e ampliativa doconceito vida, de tal sorte a agasalhar as necessárias respostas normativas as agressões atuais epotenciais que ameaçam a vida humana.

Pg. 54ainda teremos ocasião de melhor analisar, a liberdade e, por conseguinte,também o reconhecimento e a garantia de direitos de liberdade (e dosdireitos fundamentais de um modo geral), constituem uma das principais(senão a principal) exigências da dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, há quem aponte para o fato de que a dignidade dapessoa não deve ser considerada, pelo menos não exclusivamente, comoalgo inerente a natureza humana (no sentido de uma qualidade inata pura esimplesmente), isto na medida em que a dignidade possui também umsentido cultural, sendo fruto do trabalho de diversas gerações e dahumanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e culturalda dignidade da pessoa se complementam e interagem mutuamente,refutando-se a tese de que a dimensão ontológica da dignidade possa ser

equiparada a uma dimensão por assim dizer biológica.94 95

Tal circunstância,importa consignar, que já havia sido reconhecida pelo TribunalConstitucional Federal da Alemanha, em referencial decisão,96 restouigualmente consagrada em outras ordens constitucionais. Com efeito, deacordo com a seguinte passagem extraída de decisão do TribunalConstitucional de Portugal, revelando esta inequívoca dimensão histórico-cultural da dignidade da pessoa humana e que aqui se amoldaperfeitamente, "a idéia de dignidade da pessoa humana, no seu conteúdoconcreto - nas exigências ou corolários em que se desmultiplica - não é algopuramente apriorístico, mas que necessariamente tem de concretizar-sehistórico-culturalmente".97 Neste

94. Cf. a crítica, entre outros, de U. Neumann. "Die Tyranner der Würde", in ARSP 84 (1998), p. 156 ess.95. Cf. P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage.... p. 860, destacando-se que a despeito dareferida dimensão cultural, a dignidade da pessoa mantém sempre sua condição de valor próprio,inerente a cada pessoa humana, podendo falar-se assim de uma espécie de "constanteantropológica", de tal sorte que a dignidade possui apenas uma dimensão cultural relativa (nosentido de estar situada num contexto cultural), apresentando sempre também traçostendencialmente universais (ob. cit., p. 842-43).96. De acordo com o seguinte trecho extraído da referida decisão do Tribunal Federal Constitucionalda Alemanha (v. BverfGE vol. 45, p. 229), ora objeto de livre tradução, "não se pode perder de vistaque a dignidade da pessoa humana é algo irrenunciável, mas o reconhecimento daquilo que éexigido pelo postulado que impõe a sua observância e respeito não pode ser desvinculado daevolução histórica. A história das políticas criminais revela que penas cruéis foram sendogradativamente substituídas por penas mais brandas. Da mesma forma a evolução de penasgravosas para penas mais humanas e de formas simples para formas mais diferenciadas depenalização tem prosseguido, permitindo que se vislumbre o quanto ainda deve ser superado, Por talrazão, o julgamento sobre o que corresponde a dignidade da pessoa humana, repousanecessariamente sobre o estado vigente do conhecimento e compreensão e não possui umapretensão de validade indeterminada",97. Acórdão nº 90-105-2, de 29.03.90, Relatar Bravo Serra, onde, para além do aspecto já referido,entendeu-se ser do legislador "sobretudo quando, na comunidade jurídica, haja de reconhecer-se eadmitir-se como legítimo um pluralismo mundividencial ou de concepções" a tarefa precípua de "emcada momento histórico, 'ler'. traduzir e verter no correspondente ordenamento aquilo que nessemomento são as decorrências. implicações ou exigências dos princípios 'abertos' da Constituição."

Pg. 55contexto, importa mencionar que a dignidade da pessoa humana, como

símbolo lingüístico que também é (e como tal tem sido utilizada), nãotendo, como já frisado, um conteúdo universal e fixo, no sentido de

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representar uma determinada e imutável visão de mundo e concepçãomoral, dificilmente poderá ser traduzida por uma fórmula que tenha apretensão de ser "a verdadeira" noção de dignidade da pessoa humana,mas acaba, pelo menos em parte, sendo permanente objeto dereconstrução e repactuação quanto ao seu conteúdo e significado.98 Ainda a

respeito deste ponto, vale registrar a lição de Ernst Benda, de acordo com oqual, para que a noção de dignidade não se desvaneça como mero apeloético, impõe-se que seu conteúdo seja determinado no contexto da situaçãoconcreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoahumana.99 

É justamente neste sentido que assume particular relevância aconstatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamentelimite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade emgeral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também apontapara uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional dadignidade, que voltará a ser referida oportunamente. 100

Recolhendo aqui a lição de Podlech, poder-se-á afirmar que, nacondição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidadenecessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode serperdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limitea ser respeitado (este sendo considerado o elemento fixo e imutável dadignidade). Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, à dignidade dapessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservara dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade,especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício efruição da dignidade, sendo, portanto dependente (a dignidade) da ordem

comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduorealizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciaisbásicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou dacomunidade (este seria, portanto, o elemento mutável da dignidade),constatação esta que98. Sobre este tópico, v. os desenvolvimentos de D. Shultziner, "Human Dignity - Functions andMeanings", in: Global Jurist Topics, vol. 3, 2003, especialmente p. 4 e ss., apontando para o quedesigna de densas (ou fortes) e finas (ou fracas) dimensões ou sentidos da dignidade da pessoahumana.99. Cf. E. Benda, "Die Menschenwürde ist Unantastbar", in: ARSP nº 22 (1984), p. 23.100. A respeito da dignidade como limite e tarefa v., dentre tantos e mais recentemente, no contextode uma dúplice função defensiva (negativa) e prestacional (positiva) a lição de M. Sachs,Verfassungsrecht II - Grundrechte, p. 178 e ss.

Pg. 56remete a uma conexão com o princípio da subsidiariedade, que assumeuma função relevante também neste contexto. 101 102

Como bem apontam Karl-Heinz Ladeur e Ino Augsberg, numaperspectiva negativa, se pode reconhecer - na dignidade da pessoa humana- uma espécie de "Sinal de Pare", no sentido de uma barreira absoluta eintransponível (um limite!) inclusive para os atores estatais, protegendo aindividualidade e autonomia da pessoa contra qualquer tipo de interferênciapor parte do Estado e de terceiros, de tal sorte a assegurar o papel do serhumano como sujeito de direitos. Já no que diz com o conteúdo material

desta dignidade (seja na dimensão negativa, seja na positiva, poderíamosagregar) e as suas efetivas conseqüências jurídicas, este acaba por adquirir

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eficácia e efetividade apenas na sua relação com as condições sociaisvigentes, de tal sorte que dela (da dignidade da pessoa humana nacondição de princípio constitucional) não se pode extrair nenhuma decisãode caráter metafísico sobre a natureza humana, visto se tratar, nestecontexto, de uma construção dotada de sentido eminentemente jurídico-

prático. 103

Desde logo, percebe-se (ao menos assim o esperamos) que com oreconhecimento de uma dimensão cultural e prestacional da dignidade nãose está a aderir à concepção da dignidade como prestação,104 ao menos101. Entre nós. V., sobre o princípio da subsidiariedade, especialmente as monografias de J. A. O.Baracho, O Principio da Subsidiariedade: conceito e evolução, Rio de Janeiro: Forense, 1997; S. F.

 Tones, O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público Contemporâneo, Rio de Janeiro: Renovar,2001. C. Prediger, A atuação do Estado na ordem econômica da Constituição de 1988 sob a ótica dasubsidiariedade estatal ou horizontal, UFRGS, 2006, ainda não publicada. Por último, v. W. G. DiLorenzo, Teoria do Estado de Solidariedade, op. cit., especialmente p. 101 e 5S.102. Esta a lição de Podlech, in: Alternativ Kommentar, vol. I, p. 280- L103. Cf. K.-H. Ladeur e L Augsberg, Die Funktioll der Menschenwürde im Ferfassungstaat, Tübingen:Mohr-Siebeck, 2008, p. 10-12.

104. Nesta quadra convém lembrar que, de modo geral e de acordo com a influente lição de H.Hofmann, Die venprochene Menschenwürde, p. 357 e ss., as diversas teorias sobre a dignidade dapessoa, notadamente no que diz com o seu conteúdo e fundamentação, podem ser agrupadas emtorno de duas concepções, quais sejam, as teorias que compreendem a dignidade como dádiva(Mitgiftheorien), no sentido de que a dignidade constitui uma qualidade ou propriedade peculiar edistintiva da pessoa humana (inata, ou fundada na razão ou numa dádiva divina), bem como asteorias assim denominadas de prestacionais (Leistungstheorien), que vêem na dignidade o produto(a prestação) da subjetividade humana. Sem que se vê aqui arrolar e dissecar as principaisconcepções elaboradas no âmbito destas duas correntes e lembrando que mesmo esta classificaçãonão se encontra imune a controvérsia, parece-nos - tal como lembra o próprio Hofmann (ob. cit., p.358), que, em verdade, não se verifica uma oposição fundamental entre ambas as teorias (dádiva eprestação), já que ambas repousam, em última análise, no postulado da subjetividade e autonomiado indivíduo. A despeito disso, que ambas as concepções apresentam aspectos passíveis de crítica, éponto que já obteve e voltará a obter alguma atenção ao longo deste ensaio. Também mencionando

a classificação proposta por Hofmann, v., em língua portuguesa, a recente e importante contribuiçãode J. C. Gonçalves Loureiro, O direito à identidade genética, p, 280-81, referindo uma terceiraconcepção teórica extraída do texto de Hofmann, e que visualiza a dignidade como reconhecimento(Annerkennung). Muito embora tal aspecto careça de

Pg. 57não naquilo em que se sustenta ser a dignidade não um atributo ou valorinato e intrínseco ,ao ser humano, mas sim, eminentemente uma condiçãoconquistada pela ação concreta de cada indivíduo, não sendo tarefa dosdireitos fundamentais assegurar a dignidade, mas sim, as condições para arealização da prestação.105 Com efeito, para Luhmann - tido como principalrepresentante desta corrente - a pessoa alcança (conquista) sua dignidade

a partir de uma conduta autodeterminada e da construção exitosa da suaprópria identidade. 106 Tal concepção, que chegou a ser qualificada comoum equívoco sociológico (ein soziologisches Missverständnis),107 tambémnão corresponde às exigências do estado constitucional e de sua cultura, jáque também aquele que nada "presta" para si próprio ou para os outros (talcomo ocorre com o nascituro, o absolutamente incapaz, etc.)evidentemente não deixa de ter dignidade e, para além disso, não deixa deter o direito de vê-la respeitada e protegida.108 Para além disso, aponta-separa o fato de que o problema da concepção de Luhmann reside maispropriamente na circunstância de que a tarefa do Estado em proteger oprocesso de formação da personalidade restaria inviabilizada em se

atribuindo esta proteção apenas ao resultado e expressão da construção daidentidade.109 Assim, muito embora não se possa afirmar - por questão de

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  justiça - que Luhmann tenha sustentado a ausência ou a perda dadignidade para aqueles que não se encontram em condições de construí-lapor suas próprias forças (tendo tido inclusive o mérito de destacar anecessária dimensão social e comunicativa da dignidade), o fato é que aconcepção da dignidade como prestação, no sentido ora criticado e levada

ao extre-maior digressão, parece-nos que Hofmann, após apresentar e discutir criticamente as duasconcepções da dignidade como dádiva e prestação, passa a propor uma noção de dignidade comoreconhecimento.no sentido de que "a dignidade significa reconhecimento recíproco do outro no quediz com a sua especificidade e suas peculiaridades como indivíduo...” (Die versprocheneMenschenwürde. p. 370).105. Cf., a leitura de P. Häberle. Die Menschenwürde als Grundlage..., p. 836, referindo-seespecificamente ao pensamento de Luhmann.106. Para Luhmann, Grundrechte als Institution, p. 60 e ss., adotando nitidamente uma perspectivaHegeliana, assim como a liberdade, a dignidade é o resultado e condição de uma exitosa auto-representarão, Além disso, os conceitos de liberdade e dignidade constituem condições fundamentaispara a auto-representarão do Homem como pessoa individual, o que, de resto, se processa apenasno contexto social, de tal sorte que a dignidade e a liberdade referem-se a problemas específicos decomunicação.

107. Cf. a crítica de C. Starck, in: Das Bonner Grundgesetz, p. 46, destacando que a dignidade não serestringe aos que logram construí-la pessoalmente, pois, em sendo assim, poderá acabar sendo

  justificado - como a história já demonstrou - o sacrifício dos deficientes mentais, pessoas comdeformidades físicas e até mesmo dos "monstros espirituais" (os traidores da pátria e inimigos daclasse).108. Cf. a ponderação de P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage..., p. 838.109. Cf. M. Nettesheim, "Die Garantie der Menschenwürde Zwischen Metaphysischer Überhohungund blobem Abwägungstopos", in: AÖR. nº 130 (2005), p. 92.

Pg. 58mo, acaba por colocar desnecessariamente em risco uma proteção jurídicaefetiva da dignidade da pessoa humana. 110 

Fechado o parêntese e na perspectiva já sinalizada (dignidade como

limite e tarefa), sustenta-se que uma dimensão dúplice da dignidademanifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia dapessoa humana (vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com asdecisões essenciais a respeito da própria existência), bem como danecessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e doEstado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo - e principalmente- quando ausente a capacidade de autodeterminação. 111 Assim, adignidade, na sua, perspectiva assistencial (protetiva) da pessoa humana,poderá, dadas as circunstâncias, prevalecer em face da dimensãoautonômica, de tal sorte que, todo aquele a quem faltarem as condiçõespara uma decisão própria e responsável (de modo especial no âmbito da

biomedicina e bioética) poderá até mesmo perder - pela nomeaçãoeventual de um curador ou submissão involuntária a tratamento médicoe/ou internação - o exercício pessoal de sua capacidade deautodeterminação, restando-lhe, contudo, o direito a ser tratado comdignidade (protegido e assistido). 112 Tal concepção encontra-se, de resto - ereconhecidamente - embasada na doutrina de Dworkin, que, demonstrandoa dificuldade de se explicar um direito a tratamento com dignidadedaqueles que, dadas as circunstâncias (como ocorre nos casos de demênciae das situações nas quais as pessoas já não logram sequer reconhecerinsultos a sua auto-estima ou quando já perderam completamente sua

capacidade de autodeterminação), ainda assim devem receber umtratamento digno.113 Dworkin, portanto, parte do pressuposto de que adignidade possui "tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que

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ambas encontram-se conectadas", de tal sorte que é no valor intrínseco (na"santidade e inviolabilidade") da vida humana,114 de todo e qualquer serhumano, que encontramos a expli-110. Cf., novamente, a lição de P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage, ... p. 838.111. Cf. M. Koppemock. Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung, p. 18-20.112. Assim também M. Koppernock, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung, p. 19-20,

salientando, neste mesmo contexto, que mesmo presente, em sua plenitude, a autonomia davontade (dignidade como capacidade de autodeterminação) esta poderá ser relativizada em face dadignidade na sua dimensão assistencial (protetiva), já que, em determinadas circunstâncias, nemmesmo o livre consentimento autoriza determinados procedimentos, tal como ocorre, v. g., com aextração de todos os dentes de um paciente sem qualquer tipo de indicação medica, especialmentequando o consentimento estiver fundado na ignorância técnica. Até que ponto, nesta e em outrashipóteses até mesmo mais gravosas, é possível falar na presença de uma plena autonomia, E, deresto, aspecto que refogue ao âmbito destas considerações, mas que, nem por isso, deixa demerecer a devida atenção.113. Cf. R. Dworkin, EI domínio de la vida, p. 306-7.114. Embora - importa destacá-lo já neste momento - não se possa concordar com uma noçãoexclusivamente biológica da dignidade, não sendo poucas as críticas que tem sido assacadas noâmbito da

Pg. 59cação para o fato de que mesmo aquele que já perdeu a consciência daprópria dignidade merece tê-la (sua dignidade) considerada e respeitada.115

O próprio Dworkin, por sua vez, acaba reportando-se direta eexpressamente a doutrina de Kant, ao relembrar que o ser humano nãopoderá jamais ser tratado como objeto, isto é, como mero instrumento pararealização dos fins alheios, destacando, todavia, que tal postulado nãoexige que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prolde outrem, mas sim, que as pessoas nunca podendo ser tratadas de talforma que se venha a negar a importância distintiva de suas própriasvidas.116 Neste contexto, vale registrar, ainda, que mesmo Kant nunca

afirmou que o homem, num certo sentido, não possa ser"instrumentalizado" de tal sorte que venha a servir, espontaneamente esem que com isto venha a ser degradado na sua condição humana, arealização de fins de terceiros, como ocorre, de certo modo, com todoaquele que presta um serviço a outro. Com efeito, Kant refereexpressamente que o Homem constitui um fim em si mesmo e não podeservir "simplesmente como meio para o uso arbitrário desprodução doutrinária, ao tematizar a assim designada "biologização" da dignidade, também é certoque a desvinculação total entre vida e dignidade igualmente se revela incompatível com umaconcepção suficientemente produtiva da dignidade e capaz de abarcar os in·meros e diversificadosdesafios que lhe são direcionados. Posicionando-se contrariamente a uma biologização, v., entreoutros, U. Neumann, "Die Tyrannei der Würde", in: ARSP 84 (1998), p. 156 e ss., especialmente no

contexto da problemática das manipulações genéticas, assim como, mais recentemente, E.Denninger, "Embryo und Grundgesetz. Schutz des Lebens und der Menschenwürde vor Nidation undGeburt", in: KritV 2003, p. 201 e ss., este aderindo à concepção de Habermas, no sentido de que adignidade não decorre da natureza humana (não sendo, portanto, um atributo inato e natural, talcomo a cor dos olhos, etc.), mas sim do reconhecimento do valor intangível de cada pessoa noâmbito da reciprocidade das relações humanas. A despeito dos diversos problemas vinculados adiscussão ora retratada, deixaremos de desenvolver, pelo menos por ora, este ponto, que, de resto,será em parte retomado mais adiante, quando do comentário a respeito das relações entre adignidade e o direito a vida. Em sentido diverso, criticando enfaticamente a tendência a umadesconexão entre vida e dignidade, v., dentre tantos, J. Isensee, "Der Grundrecht1iche Status desEmbryos. Menschewürde und Recht auf Leben als Detcrminanten der Gcntechnik", in: Gentechnikund Menschenwürde, p. 62 e ss. Da mesma forma, aproximando-se, aqui de Habermas, mas semdeixar de reconhecer uma vinculação entre os atributos naturais da pessoa, registre-se oentendimento de O. Höffe, "Menschenwürde als ethisches Prinzip", in: Gentechnologie und

Menschenwürde, p. 115, ao afirmar que se, por um lado, a dignidade consiste em um axioma, nosentido de um princípio diretivo da moral e do direito, também é certo que a dignidade se refere a

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características biológicas da pessoa, sem contudo ser ela própria (dignidade) uma destascaracterísticas.115 Cf. R. Dworkin, EI domínio de la vida, p. 307-9.116. Cf. R. Dworkin, EI domínio de la vida, p. 310.

Pg. 60ta ou daquela vontade".117 Ainda nesta perspectiva, já se apontou - com

razão, no nosso sentir - para o fato de que o desempenho das funçõessociais em geral encontra-se vinculado a uma recíproca sujeição, de talsorte que a dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação dainstrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoísticadisponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoaapenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que ocritério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa aser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do objetivo daconduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro.118 

Assim, seguindo uma tendência que parece estar conduzindo a uma

releitura e recontextualização da doutrina de Kant (ao menos naquilo emque aparentemente se encontra centrada exclusivamente na noção deautonomia da vontade e racionalidade), vale reproduzir a lição de DieterGrimm, eminente publicista e Magistrado germânico, ao sustentar que adignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para oindivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetosexistenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou nãopuder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela suacondição humana.119

Ainda no que diz com a tentativa de clarificação do sentido dadignidade da pessoa humana, importa considerar que apenas a dignidade

de determinada (ou de determinadas) pessoa é passível de serdesrespeitada, inexistindo atentados contra a dignidade da pessoa emabstrato.120 Vinculada a esta idéia, que - como visto - já transparecia nopensamento kantiano, encontra-se a concepção de que a dignidadeconstitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não deum ser ideal ou abstrato, razão pela qual não se deverá confundir as noçõesde dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando esta for referida ahumanidade117. CF. Kant, Fundamentos.... p. 134-35.118. cf. U. Neumann, "Die Tyrannei der Würde", in: ARSP 84 (1998). p. 161.119. cf. D. Grimm, apud M. Koppernock. Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung, p. 21-22,muito embora posicionando-se de forma crítica em relação ao reconhecimento da dignidadeexclusivamente com base na pertinência biológica a uma espécie e centrando a noção de dignidadeno reconhecimento de direitos ao indivíduo, sem os quais este acaba não sendo levado a sério comotal. Nesta mesma linha, já havia decidido o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha (in: BverfGE39, 1 [41]), considerando que onde existe vida humana esta deve ter assegurada a proteção de suadignidade, não sendo decisivo que o titular tenha consciência de sua dignidade ou que saibadefender-se a si próprio, bastando, para fundamentação da dignidade, as qualidades potenciaisinerentes a todo o ser humano.120. Assim já lecionava H.C. Nipperdey, in: Neumann/Nipperdey/Scheuner (Org.), Die Grundrechte.vol. II, p. 3.

Pg. 61como um todo. 121 Registre-se, neste contexto, o significado da formulaçãoadotada pelo nosso Constituinte de 1988, ao referir-se a dignidade da

pessoa humana como fundamento da República e do nosso EstadoDemocrático de Direito.122 Neste sentido, bem destaca Kurt Bayertz, na sua

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dimensão jurídica e institucional, a concepção de dignidade humana tempor escopo o indivíduo (a pessoa humana), de modo a evitar a possibilidadedo sacrifício da dignidade da pessoa individual em prol da dignidadehumana como bem de toda a humanidade ou na sua dimensãotransindividual.123

Por outro lado, pelo fato de a dignidade da pessoa encontrar-se ligadaa condição humana de cada indivíduo, não há como descartar umanecessária dimensão comunitária (ou social) desta mesma dignidade decada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos iguais emdignidade e direitos (na iluminada fórmula da Declaração Universal de1948) e pela circunstância de nesta condição conviverem em determinadacomunidade ou grupo. O próprio Kant - ao menos assim nos parece -sempre afirmou (ou, pelo menos, sugeriu) o caráter intersubjetivo erelacional da dignidade da pessoa humana, sublinhando inclusive aexistência de um dever de respeito no âmbito da comunidade dos sereshumanos. Para o filósofo de Konigsberg, "é verdade que a humanidadepoderia subsistir se ninguém contribuísse para a felicidade dos outros,contanto que também lhes não subtraísse nada intencionalmente; mas secada qual se não esforçasse por contribuir na medida das suas forças paraos fins de seus semelhantes, isso seria apenas uma concordância negativae não positiva com a humanidade como um fim em si mesmo. Pois se umsujeito é um fim em si mesmo, os seus fins têm de ser quanto possível osmeus, para aquela idéia poder exercer em mim toda a sua eficácia”.124

121. Neste sentido, v, o magistério de J. Miranda. Manual..., vol. IV, p, 184 ("a dignidade da pessoa éda pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstrato"), Assim tambémK. Stern, Das Staatsrecht... vol. III/1, p,11-12,122. Assim, também para o nosso direito constitucional posição, é a dignidade da pessoa humana (de

cada e, a evidência, de todas as pessoas) concreta e individualmente considerada o objeto precípuodo reconhecimento e proteção pela ordem constitucional.123. Cf. K Bayertz, "Die Idee der Menschenwürde: Probleme und Paradoxien", in: ARSP 81 (1995), p,472-3, apontando, ainda, para uma permanente e inevitável zona de tensão entre a dignidade dapessoa e a dignidade humana.124. Kant, Fundamentos... p. 136-37. (Kant, Grundlegung"" p, 63).

Pg. 62Neste mesmo contexto, assume relevo a lição de Pérez Luño, que, na

esteira de Wemer Maihofer e, de certa forma, também retomando a noçãokantiana, sustenta uma dimensão intersubjetiva da dignidade, partindo dasituação básica do ser humano em sua relação com os demais (do ser comos outros), ao invés de fazê-lo em função do homem singular, limitado a sua

esfera individual,125

sem que com isto - importa frisá-lo desde logo - seesteja a advogar a justificação de sacrifícios da dignidade pessoal em prolda comunidade. Quanto a este ponto, assim como relativamente àpossibilidade de se estabelecerem restrições à liberdade e autonomiapessoal, bem como a própria dignidade, ainda teremos oportunidade de nospronunciar.

Seguindo - ao menos assim o parece - esta linha de entendimento,vale lembrar a lição de Franck Moderne, referindo que, para além de umaconcepção ontológica da dignidade - como qualidade inerente ao serhumano (que, de resto, não se encontra imune a críticas) - importaconsiderar uma visão de caráter mais "instrumental", traduzida pela noçãode uma igual dignidade de todas as pessoas, fundada na participação ativade todos na "magistratura moral" coletiva, não restrita, portanto, a idéia de

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autonomia individual, mas que - pelo contrario - parte do pressuposto danecessidade de promoção das condições de uma contribuição ativa para oreconhecimento e proteção do conjunto de direitos e liberdadesindispensáveis ao nosso tempo.126 De qualquer modo, o que importa, nestaquadra, é que se tenha presente à circunstância, oportunamente destacada

por Gonçalves Loureiro, de que a dignidade da pessoa humana - no âmbitode sua perspectiva intersubjetiva - implica uma obrigação geral de respeitopela pessoa (pelo seu valor intrínseco como pessoa), traduzida num feixede deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente125. Cf. A. E. Pérez Luño, Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion, p. 318. Estetambém parece ser o entendimento de J. Miranda, Manual..., vol. IV, p. 189, ao sustentar que "cadapessoa tem de ser compreendida em relação com as demais. Por isso, a Constituição completa areferência a dignidade com a referência a mesma dignidade social que possuem todos os cidadãos etodos os trabalhadores [arts. 13, nº 1, e 59. nº 1, alínea b], decorrente da inserção numa comunidadedeterminada." No mesmo sentido, v. M. A. Alegre Martinez, la dignidad de la persona ... p. 19,referindo, no âmbito de uma dimensão social, a necessidade de que a dignidade, como atributo depessoa individual, deve ser acompanhada da necessidade de que as demais pessoas e a comunidaderespeitem sua liberdade e seus direitos.

126. Cf. F. Moderne, la dignité de la personne..., p. 198-199, em passagem confessadamenteinfluenciada pela obra de Ronald Dworkin. Note-se, de outra parte, que as assim denominadasconcepções ontológica e instrumental da dignidade, de certa forma correspondem a já referidaclassificação proposta por Hofmann (dignidade como dádiva e prestação). Nesta mesma linha deentendimento, também no âmbito da doutrina francesa, vale mencionar o magistério de L. Cassiers,"la dignité et l'embryon humain", in: Revue Trimmestrielle des Droits de L'Homme, vol. 54 (2003),especialmente p. 407-13, entre outros aspectos apontando para a circunstância de que -na condiçãode uma criação da sociedade (como elaboração cultural e simbólica) - a dignidade adquire umadimensão coletiva, no sentido de que a relação do sujeito com ele próprio depende largamente darelação da pessoa com os seus semelhantes.

Pg. 63instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao"florescimento humano". 127

Em verdade - e tal aspecto consideramos deve ser destacado -, adignidade da pessoa humana (assim como - na esteira de Hannah Ahrendt -a própria existência e condição humana),128 sem prejuízo de sua dimensãoontológica e, de certa forma, justamente em razão de se tratar do valorpróprio de cada uma e de todas as pessoas, apenas faz sentido no âmbitoda intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por esta razão é quese impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que devezelar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em dignidade)consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade, o que, deresto, aponta para a dimensão política da dignidade, igualmente subjacente

ao pensamento de Hannah Ahrendt, no sentido de que a pluralidade podeser considerada como a condição (e não apenas como uma das condições)da ação humana e da política. 129 Na perspectiva ora apontada, valeconsignar a lição de Jürgen Habermas, considerando que a dignidade dapessoa, numa acepção rigorosamente moral e jurídica, encontra-sevinculada a simetria das relações humanas, de tal sorte que a suaintangibilidade (o grifo é do autor) resulta justamente das relaçõesinterpessoais marcadas pela recíproca consideração e respeito. 130 Paraalém disso, Habermas lembra que apenas no âmbito do espaço público dacomunidade da linguagem, o ser natural se toma indivíduo e pessoa dotadade racionalidade.131 Embora não exatamente na mesma perspectiva

proposta por Habermas, mas em sentido próximo, é possível acolher a tese

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de que a dignidade humana "é um acontecimento que não se da senão emum encontro humano,127. Cf.. J. C. Gonçalves Loureiro, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, p. 281.128. Cf.. H. Ahrendt, A Condição Humana. p. 15 e ss. (capítulo 1), onde discorre, entre outrosaspectos (e sem uma referência direta a noção de dignidade da pessoa humana), sobre o conceito eos pressupostos da condição e da existência humana. noções que. a despeito de vinculadas, não se

confundem. Assim, para a autora "A ação, única atividade que se exerce entre os homens sem amediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de quehomens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condiçãohumana tem alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição - nãoapenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam - de toda a vida política. Assim, o idiomados romanos - talvez o povo mais político que conhecemos - empregava como sinônimas asexpressões 'viver' e 'estar ente os homens' (inter homines esse). ou 'morrer' e 'deixar de estar entreos homens' (inter homines esse desinere)". Em suma, ainda para a filósofa (p. 16). "a pluralidade é acondição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos. isto é, humanos, sem que ninguémseja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir" (grifo nosso).129. Cf. H. Ahrendt, A Condição Humana, p. 15-16, de acordo com trecho já transcrito na notaanterior.130. Cf.. J. Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur. p. 62 e ss.131. Cf. J. Habermas, ob. cit., p. 65.

Pg. 64ou seja, na realização da liberdade ética",132 Assim, como bem destacaHasso Hofmann, a dignidade necessariamente deve ser compreendida sobperspectiva relacional e comunicativa, constituindo uma categoria da co-humanidade de cada indivíduo (Mitmenschlichkeit des lndividuums),133 detal sorte que, na esteira da lição de Peter Häberle, a consideração ereconhecimento recíproco da dignidade no âmbito da comunidade pode serdefinida como uma espécie de "ponte dogmática", ligando os indivíduosentre si.134 Tais considerações, conforme já anunciado, retomam aspectosda filosofia de Hegel e confirmam a tendência - correta também no nossoentender - de se atribuir ao reconhecimento um papel central também noâmbito da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, como,por exemplo, se pode verificar na concepção teórica formulada por autorescomo um Axel Honneth,135 mas que aqui não temos a pretensão deexplorar.

  Tais desenvolvimentos em tomo da natureza relacional ecomunicativa da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em queacabaram contribuindo, consoante já referido, para a superação de umaconcepção eminentemente especista (biológica) - e, portanto,necessariamente reducionista e vulnerável da peculiar e específica

dignidade dos seres humanos (que, por si só, não afasta uma possívelconsideração da dignidade da vida de um modo geral), permitem vincular aigual dignidade de todas as pessoas humanas (assim como sua igualdadeprima facie em direitos) também a qualidade comum, recentementeapontada com ênfase por Francis Fukuyuma, de que como seres humanos"partilhamos uma humanidade comum que permite a todo o ser humano secomunicar potencialmente com todos os demais seres humanos no planetae entrar numa relação moral com eles" .136

132. Cf. R. Timm de Souza "A dignidade humana desde uma antropologia dos intervalos - umasíntese", in: VERITAS. nº. 53, n.2, abr./jun. 2008, p. 148.133. Cf. H. Hofmann, Die versprochene Menschenwürde, in: AÖR 118 (1993), p. 364, posicionando-se- ao sustentar que a dignidade, na condição de conceito jurídico, assume feições de um conceito

eminentemente comunicativo e relacional - no sentido de que a dignidade da pessoa humana nãopoderá ser destacada de uma comunidade concreta e determinada onde se manifesta e éreconhecida. No mesmo sentido, reconhecendo que a dignidade também assume a condição de

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conceito de comunicação, v., no âmbito da doutrina lusitana, a referência de J. Machado, Liberdadede Expressão, p. 360.134. P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage.... especialmente p. 843 e ss., advogandoigualmente uma dimensão necessariamente intersubjetiva, social e comunicativa da dignidade.135. A. Honneth, Luta por reconhecimento, A gramática moral dos conflitos sociais, São Paulo:Editara 34, 2003. Para uma introdução (em língua portuguesa) do pensamento de Honneth, v. G. A.Saavedra: G. A. Sobottka, "Introdução a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth", in: Civitas, vol.

8, nº 1, jan./abr., 2008, p. 9-18.136. Cf.. F. Fukuyama, Nosso Futuro Pós-Humano, p. 23.

Pg. 65Outra indagação que desafia uma análise mais aprofundada diz com a

  já anunciada contextualização histórico-cultural da dignidade da pessoahumana. Com efeito, é de perguntar-se até que ponto a dignidade não estáacima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que,para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios àdignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidospor legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática social e

 jurídica de determinadas comunidades. Em verdade, ainda que se pudesseter o conceito de dignidade como universal, isto é, comum a todas aspessoas em todos os lugares, não haveria como evitar uma disparidade eaté mesmo conflituosidade sempre que se tivesse de avaliar se umadeterminada conduta é, ou não, ofensiva da dignidade.137 Nesta linha deentendimento, parece situar-se o pensamento de Dworkin que, ao sustentara existência de um direito das pessoas de não serem tratadas de formaindigna, refere que qualquer sociedade civilizada tem seus próprios padrõese convenções a respeito do que constitui esta indignidade, critérios quevariam conforme o local e a época.138 Neste contexto, basta lembrar aprática da pena de morte por expressivo número de estados norte-

americanos, considerada - embora não de forma unânime - constitucionalpela Suprema Corte, que, por sua vez, tem entendido sereminconstitucionais determinadas técnicas de executar a pena capital, combase na proibição da aplicação de penas cruéis e desumanas (cruel andunusual punishment) prevista na oitava emenda de 1791. Neste sentido,em relativamente recente decisão envolvendo recurso impetrado por umcondenado a morte no estado de Washington, a Suprema Corte reconheceuque a morte por enforcamento constitui prática atentatória a dignidade dapessoa humana, notadamente, pelo fato de infligir - ao menos em relaçãoaos outros meios utilizados (injeção letal e eletrocutamento) - sofrimentodesnecessário ao sentenciado, já que constatada a possibilidade maior de

uma postergação do estado de inconsciência e morte, com risco de asfixialenta e até mesmo de decapi-137 Cf. M. A. Alegre Martinez, la dignidad de la persona..., p. 26. No mesmo sentido, frisando que adespeito da dignidade ser um valor constante, o que assegura dignidade as pessoas acaba sendodefinido por fatores históricos e sociais, v. C. Gearty, Principies of Human Rights Adjudication, p. 87.138 Cf. R. Dworkin, El Domínio de la Vida, p. 305. Neste contexto, a respeito da diversidade detratamento da dignidade da pessoa, mesmo pelo ordenamento jurídico, vale lembrar, entre outros, oexemplo da Constituição Iraniana de 1980 (referido por B. Mathieu, la dignité de la personnehumaine... p. 286), que, no seu artigo 22, dispõe que "a dignidade dos indivíduos é inviolável...salvonos casos autorizados por lei", o que demonstra igualmente que - ao menos para algumas ordens

 jurídicas - nem mesmo a dignidade encontra-se imune a restrições pelo legislador, aspecto do qualvoltaremos a nos pronunciar. Da mesma forma, vale lembrar aqui, dentre outros tantos exemplosque poderiam ser colacionados, a prática da tortura, das mutilações genitais, da discriminação sexual

e religiosa, ainda toleradas (inclusive pelo direito positivo) em alguns Estados.Pg. 66

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tação parcial ou total, verificada em diversos casos.139 Assim, de maneiraque para nós (ao menos no que diz com a vedação constitucional da penade morte vigente entre nós, salvo a exceção de guerra declarada) se revelaum tanto paradoxal, verifica-se que a pena de morte, em si mesma, parecenão ferir a dignidade, desde que aplicada dignamente?! Como se percebe

desde logo, o problema da dignidade da pessoa, do seu reconhecimento eproteção numa ambiência multicultural, constitui tema fascinante e queestá longe de alcançar o tratamento desejável, mas que, pelos seusdesdobramentos peculiares, haverá de ser deixado em aberto nesteestudo.140

139. Caso Campbell v. Wood, U.S. Supreme Court, 1994. Ainda a respeito da dignidade da pessoa noâmbito das controvérsias relativas à pena de morte, convém registrar que não faltam, na literaturanorte-americana, vozes que se opõem a pena de morte, vislumbrando nesta uma violação dadignidade da pessoa, não restringindo a incidência da dignidade ao modo de execução da pena, talcomo no caso apreciado pela Suprema Corte. Neste sentido, dentre outros, v. o recente ensaio de A.K. Eklund, "The death penalty in Montana: a violation of the constitutional right to individual dignity",in: Montana Law Review vol. 65 (2004), p. 135 e ss., avaliando a jurisprudência da Suprema Cortedos EUA e da Suprema Corte do Estado de Montana. De acordo com a autora, cujos principaisargumentos aqui são sinteticamente apresentados, a imposição da pena de morte, para além dodireito a vida, ofende a dignidade da pessoa pelo fato de: a) que se está a forçar o condenado aconviver com a circunstância de que esteja com a sua morte iminente decretada, o que representauma inadmissível tortura psicológica (p. 141 e ss.); b) a pena de morte implica violação daintegridade corporal da pessoa (que, por sua vez, diz com os elementos essenciais da dignidade) e odireito de cada um de decidir a respeito do que acontece ao seu próprio corpo (p. 148-40); c) aoexecutar a pena, o Estado toma ao executado a sua autonomia pessoal e não o considera comopessoa com um valor próprio, de tal sorte que não apenas a dignidade do condenado é violada, masde todos os envolvidos no processo, já que este, em si mesmo, já é desumano e indigno (p. 150-53).

140. Versando justamente sobre o problema do multiculturalismo, vale referir aqui pelomenos o instigante ensaio de B. Sousa Santos, Por uma concepção multicultural de direitos humanos,in: Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 48 (1997), especialmente p. 18 e SS., onde o festejadosociólogo lusitano sustenta que o conceito de direitos humanos e a própria noção de dignidade dapessoa assentam num conjunto de pressupostos tipicamente ocidentais, quando, em verdade, todasas culturas possuem concepções de dignidade humana, muito embora nem todas elas a concebamem termos de direitos humanos, razão pela qual se impõe o estabelecimento de um dialogointercultural, no sentido de uma troca permanente entre diferentes culturas e saberes, que seráviabilizada pela aplicação daquilo que o autor designou de uma "hermenêutica dia tópica" , que, porsua vez, não pretende alcançar uma completude em si mesma inatingível, mas sim, ampliar aoMaximo a consciência da incompletude m·tua entre as diversas culturas por meio do dialogo. Maisrecentemente, também enfrentando a questão da dignidade a luz da globalização e domulticulturalismo, v., entre outros, D.N. Weisstub, "Honor, Dignity, and the Framing of MulticuIturalistValues", in: D. Kretzmer e E, Klein (Ed.), The Concept of Human Dignity in HU1I1an Rights Discourse,p. 263-93. Demonstrando não apenas a necessidade, mas algumas das possibilidades vinculadas aum dialogo entre as diversas fontes normativas (no caso, enfrentando o tema da dignidade dapessoa humana) v. o estudo de V. Jackson, "Constitutional Dialogue and Human Dignity: States and

 Transnational Constitutional Discourse", in: Montana Law Review vol. 65 (2004), p. 15-40, propondo,em síntese, uma abertura para os aportes do direito comparado e, de resto, o dialogo produtivo entre

as fontes de direito constitucional, especialmente no caso dos EUA, onde, a despeito da ausência deprevisão expressa na Constituição (muito embora o reconhecimento da dignidade - ainda que demodo não unânime e carente de uma série de desenvolvimentos - como valor subjacente ao sistemaconstitucional) existe previsão explícita do princípio na esfera estadual, como da conta o exemplo doEstado de Montana.

Pg. 67Com base no que até agora foi exposto, verifica-se que reduzir a uma

fórmula abstrata e genérica tudo aquilo que constitui o conteúdo dadignidade da pessoa humana, em outras palavras, a definição do seuâmbito de proteção ou de incidência (em se considerando sua condição denorma jurídica), não parece ser possível, o que, por sua vez, não significa

que não se possa ou deva buscar uma definição, que, todavia, acabaraalcançando pleno sentido e operacionalidade em face do caso concreto.Com efeito, para além dos aspectos ventilados, a busca de uma definição

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necessariamente aberta, mas minimamente objetiva impõe-se justamenteem face da exigência de um certo grau de segurança e estabilidade

 jurídica, bem como para evitar que a dignidade continue a justificar o seucontrário. 141 Como ponto de partida nesta empreitada, vale citar a fórmuladesenvolvida por Dürig, na Alemanha, para quem (na esteira da concepção

kantiana) a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingidasempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, amero instrumento, tratada como uma coisa, em outras palavras, sempreque a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeitode direitos.142

Como bem consignou Michael Sachs, tal fórmula parte de umadefinição da dignidade considerando seu âmbito de proteção, traduzindouma opção por uma perspectiva que prefere determinar este âmbito deproteção a partir de suas violações no caso concreto.143 Esta concepção,muito embora largamente (mas não exclusivamente) acolhida e adotadatambém - ao menos em expressivo número de decisões - pelo TribunalFederal Constitucional da Alemanha,144 por evidente não poderá ofereceruma so-141. Neste sentido, v., a advertência de B. Maurer. Notes sur le respect de la dignité humaine, p.186.142. Cf. G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde..., in: AÖR nº 81 (1956), p. 127. No direitobrasileiro, a fórmula do homem-objeto, isto é, o enunciado de que tal condição é justamente anegação da dignidade, encontra-se - ao menos assim nos parece - formulada expressamente naConstituição, notadamente quando o nosso Constituinte, no art. 5º, inciso III, da Constituição de1988, estabelece de forma enfática que "ninguém será submetido à tortura e a tratamentodesumano ou degradante." Neste contexto, vale, ainda, lembrar a lição de P. Häberle,Menschenwürde als Grundlage..., p. 842, quando afirma que a concepção de Dürig (a fórmula do"objeto") acaba por transformar-se também numa "fórmula-sujeito", já que o estado constitucionalefetiva a dignidade da pessoa, na medida em que reconhece e promove o indivíduo na condição de

sujeito de suas ações. Ainda a respeito da fórmula "objeto", v., numa perspectiva comparada, A. P. C.Barbosa, Die Menschenwürde im Deutschen Grundgcsetz und in der Brasilianischen Verfassung von1988, p, 33 e ss., e 154 e ss.143. Cf. M. Sachs, Verfassungsrecht II - Grundrechte, p. 174,144. Apenas pinçando uma das diversas decisões onde tal concepção foi adotada, verifica-se que,para o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, a dignidade da pessoa humana está vinculadaao valor social e pretensão de respeito do ser humano, que não poderá ser reduzido a condição deobjeto do Estado ou submetido a tratamento que comprometa a sua qualidade de sujeito (v, BverfGE96, p. 399). Convém lembrar, todavia (a despeito de outras críticas possíveis) que a fórmula dohomem-objeto não afasta a circunstância de que, tanto na vida privada quando na esfera pública, as

Pg. 68lução global para o problema, já que não define previamente o que deve serprotegido (e neste sentido também segue sendo uma fórmula "aberta"),145

mas permite a verificação, a luz das circunstâncias do caso concreto, daexistência de uma efetiva violação da dignidade da pessoa humana,fornecendo, ao menos, um caminho a ser trilhado, de tal sorte que, aolongo do tempo, doutrina e jurisprudência encarregaram-se de identificaruma série de posições que integram a noção de dignidade da pessoahumana.e que, portanto, reclamam a proteção pela ordem jurídica.146

O que se percebe, em ultima análise, é que onde não houver respeitopela, vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde ascondições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, ondenão houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a

igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não foremreconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para adignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não

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passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. Tudo, portanto, converge nosentido de que também para a ordem juridíco-constitucional a concepçãodo homem-objeto (ou homem-instrumento), tom todas as conseqüênciasque daí podem e devem ser extraídas, constitui justamente a antítese danoção de dignidade da pessoa, embora esta, a evidência, não possa ser, por

sua vez, exclusivamente formulada no sentido negativo (de exclusão deatos degradantes e desumanos), já que assim se estaria a restringirdemasiada-pessoas constantemente se colocam a si próprias na condição de objeto da influência e ação alheias,sem que com isto se esteja colocando em d·vida a sua condição de pessoa (Cf. a observação de H.Hofmann, Die Verspruchelle Menschenwürde, in: AÖR nº 118 (1993), p. 360. Igualmente não se devedesconsiderar a precoce objeção de N. Luhmann, Grundrechte als lnstitution, p. 60, que considerou afórmula-objeto vazia, já que não afasta a necessidade de decidir quando c sob que circunstânciasalguém estará sendo tratado como objeto, a ponto de restar configurada uma violação da suadignidade.145. Neste contexto, há mesmo quem tenha criticado a utilização da "fórmula-objeto" como sendopraticamente tão vazia de sentido e imprecisa quanto às demais fórmulas que pretendeu substituir cquanto a própria noção de dignidade da pessoa humana. Neste sentido, v. P. Tiedemann. "Die Würde

des Menschen ist Unantastbar", p. 118.146. Assim, por exemplo, não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana englobanecessariamente o respeito e a proteção da integridade física do indivíduo, do que decorrem aproibição da pena de morte, da tortura, das penas de cunho corporal, utilização da pessoa humanapara experiências científicas, estabelecimento de normas para os transplantes de órgãos, etc., tudoconforme refere Höfling, in: M. Sachs (Org.) Grundgesetz, p. 107-9. De outra parte, percebe-se que osexemplos citados demonstram a existência de uma intima relação entre os direitos fundamentais c adignidade da pessoa, aspecto que ainda será objeto de análise mais aprofundada e que aqui foiapenas referido com o objetivo de demonstrar algumas das dimensões concretas desenvolvidas apartir da noção da dignidade da pessoa humana. Registre-se, ademais, que o próprio TribunalFederal Constitucional da Alemanha, tal como refere M. Sachs, Verfassungsrecht - Grundrechte, p.174, tem relativizado a fórmula do "homem-objeto", reconhecendo ser a mesma insuficiente paraapreender todas as violações e assegurar, por si só, a proteção eficiente da dignidade da pessoahumana.

Pg. 69mente o âmbito de proteção da dignidade. 147 Isto, por sua vez, remete-nosao delicado problema de um conceito minimalista ou maximalista (ótimo)de dignidade, aspecto que voltará a ser referido oportunamente.

Do até agora exposto, há como sustentar, com segurança, o carátermultidimensional da dignidade da pessoa humana, considerando suadimensão ontológica (embora não necessariamente biológica), suadimensão histórico-cultural e sua dupla dimensão (ou função) negativa eprestacional, ao que se poderia ainda agregar a igualmente dupla dimensãoobjetiva e subjetiva da dignidade, na condição de princípio e normaembasadora de direitos fundamentais, tema que, embora não exatamentedesenvolvido sob este rotulo (dimensão objetiva e subjetiva) será abordadomais adiante. 148 Além disso e a partir das considerações já tecidas, emboraa abertura e o caráter multidimensional da dignidade da pessoa humana (etambém justamente em função disso) a dignidade não tem sido e não énecessariamente uma fórmula vazia e meramente retórica, ainda que assimmuitas vezes tenha sido tratada, aspecto que voltará a ser objeto de nossaatenção.

Por outro lado, encenamos esta etapa do nosso estudo ousandoformular proposta de conceituação (jurídica) da dignidade da pessoahumana que, além de reunir a dupla perspectiva ontológica e instrumental

referida, procura destacar tanto a sua necessária faceta intersubjetiva e,portanto, relacional, quanto a sua dimensão simultaneamente negativa

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(defensiva) e positiva (prestacional). De outra parte, levando em conta ocompromisso com uma noção inclusiva da dignidade da pessoa humana,que implica147. Neste sentido, parece situar-se o entendimento de M. Sachs. Verfassungsrecht II – Grundrechte,p. 174 e ss., sugerindo que o âmbito de proteção da garantia da dignidade da pessoa humanarestaria melhor definido em se perquirindo, em cada caso concreto, se a luz da fórmula do homem-

objeto a suposta conduta violadora efetivamente desconsidera o valor intrínseco da pessoa. Por suavez, Udo Di Fabio, Der Schutz der Menschenwürde,... p. 22 e ss., destaca que não é possível definir adignidade como bem juridicamente protegido para além da fórmula-objeto (que reconhece ser vaga eindeterminada), sem que se acabe invadindo a seara nebulosa da auto-definição do ser humano, detal sorte que apenas uma determinação do âmbito de proteção com base no critério da condutaofensiva se revela juridicamente controlável. Mesmo considerando o peso deste argumento, valecolacionar a posição crítica de M. Nettesheim, "Die Garantie der Menschewürde ZwischenMetaphysischen Überhöhung und blobem Abwägungstopos", in: AÖR 130 (2005), p. 79 e ss., nosentido de que a fórmula objeto acaba sendo submetida exclusivamente ao processo subjetivo daponderação por parte do detentor do poder de decisão, o que reforça a idéia de que, a despeito desua relevância, a fórmula objeto não pode servir como critério exclusivo.148. Sobre este tema remetemos o leitor ao nosso Dimensões da Dignidade, Estudos de Filosofia doDireito e Direito Constitucional, 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, coletânea que inclui,além de texto introdutório de nossa lavra (consistente. em termo gerais. de uma reconstrução do

presente capítulo desta obra) contributos de outros autores, apontando e explorando diversas daspossíveis dimensões da dignidade.

Pg. 70também, além da compatibilidade com uma concepção afinada com asdiversidades culturais, consideramos também, na formulação do conceito, anecessária dimensão ecológica da dignidade. Embora tal dimensão não sejaequivalente em si ao reconhecimento de uma dignidade da vida nãohumana (pois ambas, embora relacionadas, não se podem confundir), elaaponta, como já referido, a deveres para com a natureza. 149

O conceito que se propõe, vale repisar, representa uma proposta emprocesso de reconstrução, visto que já sofreu dois ajustes desde a primeira

edição, com o intuito da máxima afinidade possível com uma concepçãomultidimensional, aberta e inclusiva de dignidade da pessoa humana.

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidadeintrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o fazmerecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e dacomunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveresfundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato decunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condiçõesexistenciais mínimas para uma vida saudável,150 além de propiciar epromover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria

existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos,mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. Tal proposta conceitual, de outra parte, há de ser sempre testada à

luz da relação entre a dignidade da pessoa humana e os direitosfundamentais, visto ser no âmbito desta relação (dinâmica e recíproca) queo conteúdo tanto da dignidade quanto dos direitos fundamentais - por maisque não haja uma identificação absoluta entre ambas as noções - poderáser devidamente concretizado e tornado operativo, apto a produzir asnecessárias conseqüências na esfera jurídica. É disso, entre outrosaspectos, que tratam precisamente os desenvolvimentos subseqüentes, aosquais remetemos.

149. Sobre o tema da dignidade da vida e da própria dimensão ecológica da dignidade, remetemosas referências bibliográficas já citadas (v. nota de rodapé nº 40, p, 40), mas destacamos, pelaespecial relevância, a contribuição de T. Fensterseifer, Direitos Fundamentais e Proteção do

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Ambiente, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, texto que corresponde, salvo alguns ajustes eatualizações, a dissertação de mestrado apresentada pelo autor no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS, que tivemos o privilégio de orientar, assim como a coletâneaorganizada por C. A, Molinaro, F. L. F. Medeiros, I. W, Sarlet e T. Fensterseifer, Dignidade da Vida: osdireitos fundamentais para além dos humanos - uma discussão necessária, Belo Horizonte: EditoraFórum, 2008, em especial o artigo de nossa autoria, em parceria com T, Fensterseifer,desenvolvendo a questão da dimensão ecológica da dignidade e da dignidade da vida em geral.

150. Como critério aferidor do que seja uma vida saudável, parece-nos apropriado utilizar osparâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde, quando se refere a um completo bem-estar físico, mental e social, parâmetro este que, pelo seu reconhecimento amplo no âmbito dacomunidade internacional, poderia igualmente servir como diretriz mínima a ser assegurada pelosEstados.

Pg. 713. Dignidade da pessoa humana como norma (valor, princípio eregra) fundamental na ordem juridíco-constitucional brasileira3.1. Algumas notas sobre a normatização jurídico-positiva dadignidade no âmbito do direito constitucional.

Atendo-nos aos objetivos do presente estudo, iniciaremos, neste

segmento, com a tentativa de situar e compreender a posição e osignificado da dignidade da pessoa humana como fundamento da nossaordem constitucional. A nossa Constituição vigente, inclusive (embora nãoexclusivamente) como manifesta reação ao período autoritário precedente -no que acabou trilhando caminho similar ao percorrido, entre outras ordensconstitucionais, pela Lei Fundamental da Alemanha e, posteriormente, pelasConstituições de Portugal e da Espanha - foi a primeira na história doconstitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípiosfundamentais, situado, em manifesta homenagem ao especial significado efunção destes, na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antesdos direitos fundamentais.

Consoante amplamente aceito, mediante tal expediente, oConstituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a suaintenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normasembasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive (eespecialmente) das normas definidoras de direitos e garantiasfundamentais, que igualmente integram (juntamente com os princípiosfundamentais) aquilo que se pode - e neste ponto parece haver consenso -denominar de núcleo essencial da nossa Constituição formal e material. Damesma forma, sem precedentes em nossa trajetória constitucional oreconhecimento, no âmbito

Pg. 72do direito constitucional posição, da dignidade da pessoa humana comofundamento de nosso Estado democrático de Direito (artigo 10, inciso III, daConstituição de 1988). Registre-se que a dignidade da pessoa humana foiobjeto de expressa previsão no texto constitucional vigente mesmo emoutros capítulos de nossa Lei Fundamental, seja quando estabeleceu que aordem econômica tem por finalidade assegurar a todos uma existênciadigna (artigo 170, caput), seja quando, na esfera da ordem social, fundou oplanejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e dapaternidade responsável (artigo 226, º 6º), além de assegurar a criança eao adolescente o direito a dignidade (artigo 227, caput). Mais adiante, no

artigo 230, ficou consignado que "a família, a sociedade e o Estado tem odever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na

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comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes odireito a vida". Assim, antes tarde do que nunca - pelo menos ainda antesda passagem para o terceiro milênio -, a dignidade da pessoa e, nestaquadra, a própria pessoa humana, mereceram a devida atenção por parteda nossa ordem jurídica positiva.

Neste contexto, importa consignar - o que, certamente nos deixa emsituação um pouco mais "confortável" - que o constitucionalismo pátrio nãochegou a constituir exceção, em se tomando como parâmetro a evoluçãoconstitucional no plano do direito comparado. A positivação do princípio dadignidade da pessoa humana é, como habitualmente lembrado,relativamente recente, ainda mais em se considerando as origens remotasa que pode ser reconduzida a noção de dignidade. Apenas ao longo doséculo XX e, ressalvada uma ou outra exceção,151 tão somente a partir daSegunda Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana passou a serreconhecida expressamente nas Constituições, notadamente após ter sidoconsagrada pela Declaração Universal da ONU de 1948.152

Para fins ilustrativos, lancemos um breve olhar sobre o direitocomparado.

Dentre os países da União Européia, colhem-se os exemplos dasConstituições de Alemanha (art. 1º, inc. I), Espanha (preâmbulo e art. 10.1),Grécia (art. 20, inc. I), Irlanda (Preâmbulo) e Portugal (art. 10), que151. A Constituição Alemã de 1919 (Constituição de Weimar) já havia previsto em seu texto oprincípio da dignidade da pessoa humana, estabelecendo, em seu art. 151, inc. I, que o objetivomaior da ordem econômica é o de garantir uma existência digna. Assim também - dentre - osexemplos mais referidos - a Constituição Portuguesa de 1933 (art. 6, nº 3) e a Constituição da Irlandade 1937 (Preâmbulo) consignavam expressa referência à dignidade da pessoa humana.152. Neste sentido, E. Denninger, in: Alternativ Kommentar, vol. l, p. 275-6.

Pg. 73consagraram expressamente o princípio.153 Também na Constituição daItália (art. 3º), encontra-se referência expressa a dignidade na passagemem que se reconhece a todos os cidadãos a mesma dignidade social,inobstante não se tenha referido expressamente a dignidade da pessoahumana. A Constituição da Bélgica, quando de sua revisão em janeiro de1994, passou a incluir disposição (art. 23) assegurando aos belgas eestrangeiros que se encontrem em território belga o direito de levar umavida de acordo com a dignidade humana.154 Já no âmbito do Mercosul,apenas a Constituição do Brasil (art. 1º, inc. III) e a do Paraguai (Preâmbulo)guindaram o valor da dignidade ao status de norma fundamental. No que

tange aos demais Estados americanos, cumpre citar as Constituições deCuba (art. 8º) e da Venezuela (Preâmbulo), além de uma referência diretaao valor da dignidade da pessoa humana encontrada na Constituição doPeru, onde são reconhecidos outros direitos além dos expressamentepositivados, desde que derivem da dignidade humana, da soberaniapopular, do Estado social e democrático de Direito e da forma republicanade governo (art. 4º). Igualmente na Constituição Chilena (art. 1º) e em quepese sua origem autoritária, consta que os homens nascem livres e iguaisem dignidade e direitos, reprisando, de tal sorte, a dicção da DeclaraçãoUniversal de 1948, formulação esta também encontrada no art. 4º daConstituição da Guatemala, que, no seu preâmbulo, fala na primazia dapessoa humana. Na mesma linha evolutiva situam-se (ao menos no que dizcom a previsão formal no texto constitucional) os países da Europa oriental,

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onde também se constata forte e majoritária tendência no sentido deacolher a dignidade no texto constitucional, referindo-se, a títuloexemplificativo, a Constituição da Rússia153. A Constituição da Turquia (art. 17. inc. III), a despeito de não ter reconhecido o princípio dadignidade da pessoa humana em dispositivos autônomos, não deixou de mencioná-Io, proibindo aaplicação de penas que atentem contra a dignidade da pessoa humana. Já as Constituições de

Dinamarca. Holanda e Luxemburgo não mencionam a dignidade da pessoa humana entre os seusprincípios ou direitos fundamentais, o que, a evidência, não significa, por si só, que não haja, tambémnestes Estados, o acatamento da dignidade da pessoa na condição de princípio implícito, tal comoocorreu na França, ou mesmo pelo reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais - estestidos como exigências da dignidade da pessoa - comum a todas as Constituições da Europa. No casoespecífico da França, em que pese a tradição de proteção das liberdades fundamentais, desde aparadigmática Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ainda hoje parte integranteda Constituição Francesa, apenas em 1994, em conhecida e amplamente citada e discutida decisãoproferida pelo Conselho. Constitucional (Decisão nº 94-343/344 De. de 27.07.94), ao declarar aconstitucionalidade da legislação versando sobre o respeito ao corpo humano, doação e utilização deprodutos do corpo humano, assistência médica as procriações e diagnóstico pré-natal, foireconhecido, a partir dos termos do Preâmbulo da Constituição Francesa de 1946 (tambémintegrante da atual Constituição, de 1958), que a proteção da dignidade da pessoa humana contratoda e qualquer forma de degradação é um princípio de valor constitucional.

154. Referência colhida de F. Delpérée, O Direito à Dignidade Humana, p. 151.Pg. 74(1993), que, rompendo com a tradição das anteriores Constituições daUnião Soviética, passou a prever expressamente, em seu art. 124, que "adignidade da pessoa é protegida pelo Estado. Nada pode justificar seuabatimento".155 No âmbito supranacional, vale referir o recentecompromisso com a dignidade da pessoa assumido pela União Européia, naesteira de proclamações anteriores,156 por meio da Carta dos DireitosFundamentais da União Européia, promulgada em Nice, em dezembro de2000, onde restou consignado que "A dignidade do ser humano é inviolável.Deve ser respeitada e protegida" (artigo primeiro), documento que constituium dos esteios da Constituição Européia, ainda que esta ainda não tenhaencontrado sua consolidação. Além disso, importa consignar que o Tribunalde Justiça das Comunidades Européias já tem firmado posição no sentido deque constitui obrigação do Tribunal efetuar o controle da compatibilidadedos atos dos órgãos da comunidade com os princípios gerais do direitocomunitário, especialmente no sentido de proteger a dignidade da pessoahumana e o direito fundamental a integridade pessoal, agregando, nestaperspectiva, caráter normativo e vinculante a Carta dos DireitosFundamentais. 157 

Assim, ainda que incompleto o quadro apresentado,158 os exemplos

garimpados no direito comparado ilustram, de forma representativa econtundente, que a dignidade da pessoa humana (ao menos nestaformulação e no que diz com sua expressa previsão pelo direitoconstitucional posição), ainda não foi integrada de forma definitiva atotalidade das Constituições de nosso tempo, muito embora esta seja, aoque nos parece, a benfazeja e - assim esperamos - também irreversíveltendência a ser saudada com entusiasmo e esperança, sem que com isto seesteja a recair na ingenuidade de não reconhecer que a positivação jurídica,por si só, não tem o condão de impedir violações concretas da dignidadedas pessoas.155. Referência extraída de CF.. Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa..., p. 37. Citando

uma série de outras Constituições da Europa Oriental que, após a derrocada do "socialismo real" equeda da assim denominada "cortina de ferro", agasalharam, em seu texto, a dignidade da pessoa

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humana, v. E. P. Nobre Júnior, O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, in:RDA nº 219 (2000), p. 238-39. .156 Aqui bastaria lembrar a convenção para a proteção dos direitos do homem em face dabiotecnologia e biomedicina, de 1996, que enfatiza (no seu primeiro artigo) a dignidade de toda avida humana.157 Cf. M. Herdegen, Neuarbeitung von Art. 1 Abs.1, p. 10, reportando-se a decisão do Tribunal de

  Justiça das Comunidades Européias citada no periódico NJW (Neue Juristische Wochenschrift 2002,

p.2448).158 J. Miranda, Manual..., vol. IV, p. 180, nota de rodapé nº 4, ainda refere às Constituições deColômbia (art. 1º), Bulgária (preâmbulo), Hungria (art. 54), Lituânia (art. 21), Polônia (art. 30), China(art. 38), Namíbia (preâmbulo e art. 8º), Cabo Verde (art. 1º) e África do Sul (arts. 1º, 10º e 39º).

Pg. 75A partir do exposto, voltemo-nos, enfim, ao objetivo precípuo deste

capítulo. A resposta - em parte e na medida em que parece viável formularalguma - de certa forma já foi anunciada. Com efeito, ao tecermos algumasconsiderações a respeito do problema do significado e conteúdo dadignidade da pessoa humana, notadamente, no que diz com sua condiçãode princípio normativo fundamental, já estamos tomando partido (no

sentido de assumirmos um compromisso) com os entendimentos queconferem à dignidade da pessoa humana a qualificação de norma jurídicafundamental de uma determinada ordem juridíco-constitucional e, seformos considerar a universalização da dignidade no plano internacional, detodas as Constituições dos Estados que se integraram nesta ordem. Não é àtoa que, nesta perspectiva, se pode comungar da lição de Carlos RobertoSiqueira Castro, no sentido de que "o Estado Constitucional Democrático daatualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio dadignidade do ser humano".159 Aliás, neste contexto vem a calhar aafirmação de que, além da abertura (e, de certo modo, do dialogo)propiciado pelo amplo reconhecimento da dignidade como princípio

também jurídico fundamental, está a se verificar uma expansão universalde uma "crença" na dignidade da pessoa humana, que também pode servinculada aos efeitos positivos de uma globalização jurídica.160 

Consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, adignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estadodemocrático (e social) de Direito (art. 10, inc. III, da CF),161 o nossoConstituinte de 1988 -.a exemplo do que ocorreu, entre outros países, naAlemanha -, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito dosentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e dopróprio Estado,162 reconheceu categoricamente que é o Estado que existe

em função da pessoa humana, e não o contrario, já que o ser humanoconstitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.163 Emoutras palavras, de acordo com a lição de Jorge Reis Novais, no momentoem que a dignidade é guindada a condição de princípio constitucional159. Cf C. R. Siqueira Castro, A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais, p. 19.160. Cf. S. Baer, "Menschenwürde zwischen Recht, Prinzip und Referenz", in: DZPhil. 53 (2005),p.572.161. Desenvolvendo, notadamente a partir de uma perspectiva político-filosófica, a noção dadignidade da pessoa humana como fundamento e objetivo do Estado constitucional e democráticoconsagrado pela Constituição de 1988, no sentido de que é função precípua da ordem estatal aproteção e promoção da dignidade individual e de uma vida digna - ou "vida boa" (como prefere oautor) - para todas as pessoas, v. o alentado contributo de L. F. Barzotto, A Democracia naConstituição, especialmente p. 193 c ss.

162. Neste sentido, a oportuna lição de P. Badura, Staatsrecht, p. 87.163. Cf. A Bleckmann, Staatsrecht II - Die Grundrechte, p. 539.

Pg. 76

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estruturante e fundamento do Estado Democrático de Direito, é o Estadoque passa a servir como instrumento para a garantia e promoção dadignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas.164 Aindaque se possa controverter a respeito da afirmação de que o Constituintetenha tido a intenção de instaurar, também entre nós, uma ordem

constitucional embasada no direito natural, mas dotada de plena eficácianormativa,165 o fato é que não há como desconsiderar, pena de omitirmosaspectos essenciais a compreensão do sentido e conteúdo da dignidade dapessoa humana, a vertente histórica e filosófica do princípio, inclusive suaintima relação com a doutrina jusnaturalista, tal como destacou, muitoembora em relação ao direito espanhol, González Pérez.166 Tal aspecto,todavia, por ser diretamente vinculado ao problema de significado econteúdo da noção de dignidade da pessoa ao longo dos tempos, já obtevealguma atenção no capítulo anterior, razão pela qual aqui não seráretomado. Em verdade, tendo sido reconhecida pela ordem jurídica estatal(expressa ou implicitamente), verifica-se que a dignidade da pessoa passoua integrar o direito positivo vigente e é nesta condição que ora vaianalisada, sem que com isto se esteja a desconsiderar e minimizar arelevância de uma fundamentação filosófica da dignidade, que, de resto, jáfoi objeto de referência nesta obra.167

3.2. Dignidade da pessoa humana como norma jurídica (princípio eregra) e valor fundamental

 Tomando por referencial tudo o que já foi exposto e feitas algumasconsiderações em torno da definição e do conteúdo da noção de dignidade164. Cf. J. R. Novais, 05 princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, p. 52.165. Na Alemanha, especialmente em virtude da trágica experiência com o nacional-socialismo, talconcepção, entre outros, foi sustentada recentemente por W. Höfling, in: M. Sachs (Org.),

Grundgesetz, p. 1 DI.166. Cf. J. González Pérez, La dignidad de la persona, p. 83.167. Desde logo, convém destacar - até mesmo para não sermos incompreendidos e nãomerecermos a pecha de positivistas no sentido formal - que consideramos o direito positivo como umsistema de normas integrado tanto por regras como por princípios expressos e implícitos, ambas ascategorias, por sua vez, impregnadas de valores, tal como ainda teremos oportunidade de reafirmar.De outra parte, resulta evidente que mesmo para uma compreensão do conteúdo jurídico-normativoda dignidade da pessoa humana (notadamente da sua condição de valor e princípio fundamental)não há como dispensar o recurso a fundamentação histórico-filosófica, o que apenas reforça a noçãode que se é possível efetuar uma análise calcada na dimensão jurídico-positiva, não se está a abstrairpura e simplesmente as categorias argumentativas oriundas de outras searas do pensamento,especialmente da filosofia.

Pg. 77

da pessoa humana, importa avaliar seu status jurídico - normativo noâmbito de nosso ordenamento constitucional.Com efeito, se em outras ordens constitucionais - com destaque para

a Alémanha168 -, onde igualmente a dignidade da pessoa humana foi objetode expressa previsão, nem sempre houve clareza quanto ao seu corretoenquadramento, tal não ocorre - ao menos aparentemente - entre nós. Comefeito, considerando tanto a formulação utilizada quanto a localização, vistoque sediada no Título I, dos Princípios Fundamentais, verifica-se que oconstituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana norol dos direitos e garantias fundamentais, guindando-a, pela primeira vez -consoante já frisado - a condição de princípio (e valor) fundamental (artigo

1º, inciso III).Aliás, a positivação na condição de princípio juridíco-constitucional fundamenta 169 é, por sua vez, a que melhor afina com a

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tradição dominante no pensamento jurídico-constitucional brasileiro,170

lusitano171 e espanhol, 172 apenas para mencionar os168. Com efeito, na Alemanha, onde, inexistindo título autônomo para os princípios fundamentais, adignidade da pessoa humana consta no catalogo dos direitos fundamentais (art. 1º, inc. 1), sendoconsiderada - de acordo com a doutrina majoritária e jurisprudência constitucionais -simultaneamente um direito fundamental e um princípio fundamental da ordem de valores objetiva,

havendo, contudo, quem negue o Caráter de direito fundamental da dignidade da pessoa humana.Sobre esta discussão, que aqui deixaremos de aprofundar, v., dentre tantos, K. Stern, DasStaatsrecht..., vol. III/1, p. 22 e ss. Assim também Maunz-Zippelius, Deutsches Staatsrecht, p. 180, e

  T. Geddert-Steinacher, Menschenwürde  als Verfassungsbegriff, p. 164 e ss. Mais recentemente,Höfling, in: M. Sachs (Org.), Grundgesetz, p. 102, bem como H. Dreier, Art. 1 I GG, in: H. Dreier (Org.),Grundgesetz Kommentar, p. 117-119, no seu recente comentário à Lei Fundamental da Alemanha,além de C. Starck, in: Bonner Grundgesetz, p. 47-9, bem como M. Sachs. VerfassungsrechtGrundrechte, p. 171 e ss.169. Registre-se que há quem questione este enquadramento, sustentando que não se trata de umprincípio constitucional fundamental, por considerar esta categoria mais limitada que a dos princípiosconstitucionais gerais, já que estes dizem respeito a toda a ordem jurídica. Neste sentido, oentendimento de J. Afonso da Silva, A dignidade da pessoa humana..., p. 91-2, advogando que adignidade da pessoa constitui bem mais do que princípio jurídico, já que se cuida de valor supremo efundante de toda a ordem jurídica, social e política, base de toda a vida nacional. De qualquer modo,

não vislumbramos a ocorrência da incompatibilidade sugerida por José Afonso da Silva, inexistindo,salvo melhor juízo, razão para que não se reconheça, a exemplo de J. A. Florez Valdez, Los princípiosgenerales del Derecho y su formulación constitucional, especialmente p. 95 e ss., que o princípio dadignidade da pessoa humana é simultaneamente princípio constitucional fundamental e princípiogeral de direito, não se cuidando, a evidência, de conceitos excludentes.170. Cf., por último e por todos, W. G. Di Lorenzo. Teoria do Estado de Solidariedade, p. 53-56,afirmando a dupla condição de princípio e valor.171. Cf., especialmente, J. Miranda, in: Estudos sobre a Constituição, p. 14 e ss., J. J. Gomes Canotilhoe V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1, p. 195 e ss. Por último, v. J. R.Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, p. 51 e S5.171. No que diz com a evolução na Espanha, colaciona-se a lição de F. F. Segado, "La dignidad de lapersona como valor supremo del ordenamiento jurídico", in: Direito & Justiça, p. 116 e ss., para quemo Tribunal Constitucional Espanhol chegou a decidir pela impossibilidade de interposição de recursode amparo com base direta e exclusiva na dignidade da pessoa humana, justamente por se tratar de

princípio fundamental, de tal sorte que uma violação da dignidade apenas poderá ser impugnada nocontexto de um direito fundamental específico derivado da dignidade. No mesmo sentido,

Pg. 78modelos mais recentes que - ao lado e em permanente dialogo com oparadigma germânico - tem exercido significativa influência sobre a nossaprópria ordem jurídica.

De outra parte, ao destacarmos o reconhecimento da dignidade dapessoa pela ordem jurídico-positiva, certamente não se está afirmandocomo já acreditamos ter evidenciado - que a dignidade da pessoa humana(na condição de valor ou atributo) exista apenas onde e a medida que sejareconhecida pelo Direito. Todavia, do grau de reconhecimento e proteção

outorgado a dignidade da pessoa por cada ordem juridíco-constitucional epelo Direito Internacional, certamente ira depender sua efetiva realização epromoção, de tal sorte que não é por menos que se impõe uma análise doconteúdo jurídico ou, se assim preferirmos, da dimensão jurídica dadignidade no contexto da arquitetura constitucional pátria,designadamente, a força jurídica que lhe foi outorgada na condição denorma fundamental.

Antes de explorarmos um pouco mais este aspecto, convém registrarque se está a partir da noção já consagrada - embora ainda não de todoassimilada pela totalidade dos doutrinadores e operadores jurídicos - de queo dispositivo (o texto) não se confunde com a norma (ou normas) nelecontida, nem com as posições jurídicas (direitos) por esta outorgadas, já

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que cada direito fundamental pressupõe - na esteira do que leciona Alexy -necessariamente uma norma jusfundamental que o reconheça.173 Assim,V., dentre tantos, A. E. Pérez Luno, Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, p. 180 ess., que se refere à dignidade da pessoa humana como "princípio-guia deI Estado de Derecho" e"valor básico (Grundwert) fundamentador de los derechos humanos". Por último, demonstrando quena Espanha o Tribunal Constitucional ainda privilegia a condição principiológica da dignidade, v., I.

Gutiérrez-Gutiérrez, Dignidad de la Persona y Derechos Fundamentales, p. 22.173. Cf. a lição de R. Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 47 e ss. (especialmente p. 62 ess.). Entre nós, especialmente a respeito da distinção entre texto e norma, vale lembrar, a lição de E.R. Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 164 e ss. Mais recentemente e no mesmosentido, com referência expressa ao pensamento de Eros Grau, v. Lenio Luiz Streck, Hermenêutica

 Jurídica e(m) Crise, p. 16, nota de rodapé nº 2. Convém destacar, todavia, que o reconhecimento dadistinção entre texto e norma não implica uma total "libertação" do intérprete (e, portanto, danorma) do texto e, de resto, do sistema juridíco-constitucional no sentido de um voluntarismohermenêutico, impregnado de arbitrariedade, já que o texto (o enunciado semântico produzido pelolegislador - especialmente em se cuidando do Constituinte) opera sempre como uma espécie demoldura para a norma, já que - se viável, por obvio, a superação do texto legal quandoinequivocamente colidente com a normativa constitucional- não se poderá, em princípio, admitirinterpretação que frontalmente conflite com o sentido literal mínimo da Constituição. Aqui, contudo,estamos já a adentrar os desafiadores e complexos meandros da hermenêutica jurídica, de tal sorte

que nos limitamos ao registro efetuado, remetendo, entre outros, especialmente as lições referenciasde Juarez Freitas, A interpretação Sistemática do Direito 3ª ed., p. 62 e ss., onde lança e explora anoção de que "interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro", e, mais recentemente, deLenio Luiz Streck, Hermenêutica Jurídica (e)m Crise, 5º ed., p. 310 e ss., em capítulo que ostenta osignificativo título "O Caráter não-relativista da hermenêutica 'ou de como a afirmação 'a norma é(sempre) o produto da atribuição de sentido a um texto' não pode significar que o intérprete estejaautorizado a 'dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa"'.

Pg. 79adiantando aqui aspecto que voltará a ser referido, verifica-se que odisposição constitucional (texto) no qual se encontra enunciada a dignidadeda pessoa humana (no caso, o artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988),contem não apenas mais de uma norma, mas que esta(s), para além de seu

enquadramento na condição de princípio e regra (e valor) fundamental, é(são) também fundamento de posições jurídico - subjetivas, isto é, norma(s)definidora(s) de direitos e garantias, mas também de deveresfundamentais. 174

Embora entendamos que a discussão em tomo da qualificação dadignidade da pessoa como princípio ou direito fundamental não deva serhipostasiada, já que não se trata de conceitos antitéticos e reciprocamenteexcludentes (notadamente pelo fato de as próprias normas de direitosfundamentais terem cunho eminentemente - embora não exclusivamente -principiológico)175 compartilhamos do entendimento de que, muito emboraos direitos fundamentais encontrem seu fundamento, ao menos em regra,

na dignidade da pessoa humana e tendo em conta que - como aindateremos oportunidade de demonstrar - do próprio princípio da dignidade dapessoa (isoladamente considerado) podem e até mesmo devem serdeduzidos direitos fundamentais autônomos, não especificados (e, portanto,também se poderá admitir que - neste sentido - se trata de uma norma dedireito fundamental), não há como reconhecer que existe um direitofundamental a dignidade,176 ainda que vez por outra se encontre algumareferência neste sentido.177 

Com efeito, parece-nos já ter sido suficientemente repisado que adignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, não poderá ser

ela própria concedida pelo ordenamento jurídico. Tal aspecto, emboraseguindo sentido inverso, chegou a ser objeto de lúcida referência feita pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, ao considerar que a dignidade

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da pessoa não poderá ser retirada de nenhum ser humano, muito emboraseja violável a pretensão de respeito e proteção que dela (da dig-174. Neste contexto, basta-nos a referência a dupla função defensiva e prestacional da dignidade, detal sorte que o dispositivo (texto) que reconhece a dignidade como princípio fundamental encerranormas que outorgam direitos subjetivos de cunho negativo (não violação da dignidade), mas quetambém impõe condutas positivas no sentido de proteger e promover a dignidade, tudo a

demonstrar a multiplicidade de normas contidas num mesmo disposição.175. Sobre o caráter dúplice das normas de direitos fundamentais, v. a paradigmática lição de R.Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 81 e ss. Entre nós, v. por todos, v. A. da Silva,Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 43 ess.176. Cf. sustenta, entre outros, B. Maurer, Notes sur le respect de la dignité humaine.... p. 207.177. Assim o faz, por exemplo, F. Delpérée, O Direito à Dignidade Humana, p. 151 e ss., ao menos deacordo com o que se depreende do título de seu ensaio.

Pg. 80nidade) decorre,178 Assim, quando se fala - no nosso sentirequivocadamente - em direito a dignidade, se está, em verdade, aconsiderar o direito a reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo

promoção e desenvolvimento da dignidade, podendo inclusive falar-se deum direito a uma existência digna, sem prejuízo de outros sentidos que sepossa atribuir aos direitos fundamentais relativos a dignidade da pessoa.Por esta razão, consideramos que neste sentido estrito - de um direito adignidade como concessão - efetivamente poder-se-á sustentar que adignidade da pessoa humana não é e nem poderá ser, ela própria, umdireito fundamental.

Num primeiro momento - convém frisá-lo -, a qualificação dadignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certezade que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas(embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e

moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude,de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamentecarregado de eficácia, alcançando, portanto - tal como sinalou Benda - acondição de valor jurídico fundamental da comunidade,179 Importaconsiderar, neste contexto, que, na sua qualidade de princípio e valorfundamental, a dignidade da pessoa humana constitui - de acordo com apreciosa lição de Judith Martins-Costa, autentico "valor fonte que anima e

  justifica a própria existência de um ordenamento jurídico", 180 razão pelaqual, para muitos, se justifica plenamente sua caracterização como_ princípio constitucional de maior hierarquia ,axiológico-valorativa (höchsteswertsetzendes Velfassungsprinzip ).181

Embora não seja este - inclusive pelos limites deste estudo - omomento oportuno para aprofundar a questão, cumpre deixar consignadoque, a título de pressuposto teor ético do presente ensaio, adotamos aclassificação das normas jurídicas (e constitucionais) em princípios e regras,seguindo, em linhas gerais, a já referida doutrina de Robert Alexy (por178. BverfGE 87,209 (228), citado por H. Dreier, Art. 1 I GG, in: H. Dreier (Org.), GrundgesetzKommentar, p. 120, referindo que mesmo o torturado e o perseguido não perdem a sua dignidade,ainda que esta tenha sido violada. A respeito da evolução anterior da jurisprudência do TribunalFederal Constitucional da Alemanha sobre a dignidade da pessoa, v. E. Niebler, Die Rechtsprechungdes Bundesverfassungsgericht zum obersten Rechtswert der Menschenwürde, in: BayrischeVerwaltungsblätter (BayVwB1), 1989, p. 737 e ss.179. Cf. E Benda, in: Handbuch des Verfassungsrechts, vol. l, p. 164, lição esta que - embora voltada

ao art. 1º da Lei Fundamental da Alemanha - revela-se perfeitamente compatível com a posiçãooutorgada pelo nosso Constituinte de 1988 ao princípio da dignidade da pessoa humana.

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180. Cf. 1. Martins-Costa, "As interfaces entre o Direito e a Bioética", in: J. Clotet (Org.), Bioética,p.75.181. Cf. K. Stern, Staatsrecht III/1, p. 23, sem que aqui se vê explorar a controvérsia em torno darelação entre o valor da vida humana e a dignidade da pessoa, já que não faltam os que sustentam aprevalência da primeira.

Pg. 81

sua vez fortemente influenciado por Ronald Dworkin), amplamentedifundida em nosso meio - notadamente por intermédio da obra de GomesCanotilho,182 e que, até mesmo por este motivo, deixaremos aqui dereproduzir na integra, inclusive pelo fato de já ser por demais conhecida.

Desde logo, como já anunciado nas linhas anteriores, tal opção nãoexclui (e nem poderia) o reconhecimento da dimensão axiológica,183 isto é,dos valores, ínsita aos princípios, mas também presente nas regras,consoante, Aliás, leciona o próprio Alexy.184 Da mesma forma nãopretendemos com esta escolha questionar a correção e o mérito de outrasimportantes concepções, no âmbito das quais destacamos, por seu rigorcientífico e originalidade, a proposta do eminente jurista gaúcho JuarezFreitas, no sentido de que o sistema jurídico é composto por princípiosfundamentais, regras (normas estritas) e valores.185 Importante, para afinalidade desta obra, é que se deixe devidamente consignada a nossaposição em prol do caráter jurídico-normativo da dignidade da pessoahumana e, portanto, do reconhecimento de sua plena eficácia na nossaordem constitucional, onde - nunca é demais repisar - foi guindada acondição de princípio (e, portanto, sempre também valor) fundamental donosso Estado democrático de Direito. Aliás, com relação às críticas - járeferidas - de que o enquadramento como princípio fundamentalconstitucional importaria em reduzir a amplitude e magnitude da noção de

dignidade da pessoa, vale lembrar o que, de resto, parece-nos já terrestado clarificado ao longo da exposição, que o reconhecimento dacondição normativa da dignidade, assumindo feição de princípio (e atémesmo como regra) constitucional182. Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1085 e ss.,concebendo a Constituição como sistema aberto de regras e princípios.183. Registre-se aqui a lição de A. J. de Azevedo, Caracterização jurídica da dignidade da pessoahumana, p. 12, no sentido de que no caso da dignidade da pessoa humana, "o conceito, além denormativo, é axiológico, porque a dignidade é valor - a dignidade é a expressão do valor da pessoahumana. Todo 'valor' é a projeção de um bem para alguém; no caso, a pessoa humana é o bem e adignidade, o seu valor, isto é, a sua projeção."184. O próprio Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 138 e ss., para além de reconhecer aimbricação dos valores e dos princípios, bem como afirmar a sua similitude estrutural, sustenta a

existência de uma distinção entre ambas as categorias, designadamente pelo fato de que os valorespossuem caráter axiológico (juízos de valor), enquanto os princípios situam-se no nível deontológico(do dever-ser). Relevante, isto sim, parece-nos a necessidade de jamais esquecer a permanentepresença dos valores no sistema normativo, seja nos princípios, seja nas regras, pena de, aí sim,incorrermos em grave equivoco e merecermos até mesmo o rotulo de positivistas no sentidoformalista kelseniano.185. Cf. J. Freitas, A Interpretação Sistemática do Direito, 3ª ed. p. 56 e ss., aperfeiçoando edesenvolvendo sua posição inicial a respeito deste tópico. Em perspectiva similar, v. também A.Pasqualini, Hermenêutica e Sistema Jurídico, p. 57 e ss. Apresentando, por sua vez, uma concepçãodiferenciada, v. o recente contributo de H. B. Ávila, Teoria dos Princípios, 2ª ed., especialmente aosustentar a existência, ao lado dos princípios e das regras, de postulados normativos aplicativos (ob.cit., notadamente p. 78 e ss.).

Pg. 82fundamental, não afasta o seu papel como valor fundamental geral paratoda a ordem jurídica (e não apenas para esta), mas, pelo contrario,outorga a este valor uma maior pretensão de eficácia e efetividade.

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Não se pode olvidar, neste contexto, que a dignidade da pessoahumana, na sua condição de princípio fundamental e na sua relação com osdireitos e deveres fundamentais (sem prejuízo de assumir, também nestaperspectiva, a condição de regra jurídica, impositiva ou proibitiva dedeterminadas condutas, por exemplo) possui uma dupla dimensão (jurídica)

objetiva e subjetiva, que, por sua vez, pelo menos segundo a tradição juridíco-constitucional germânica, largamente difundida também entre nós,guarda relação com os valores fundamentais de uma determinadacomunidade. Aliás, os princípios e direitos fundamentais são, neste sentido,expressão juridíco-constitucional (mediante a incorporação ao direitopositivo, na condição de direito objetivo) de uma determinada ordem devalores comunitária, não podendo ser reduzidos a direitos (posiçõessubjetivas) individuais.186 Também por esta razão (mas nãoexclusivamente), é que a dignidade da pessoa, do indivíduo, é sempre adignidade do indivíduo socialmente situado e responsável, implicandodeveres fundamentais conexos e autônomos, aspecto ,que aqui não poderáser desenvolvido.

Por outro lado, convém que se o diga, não será pelo fato -significativo, mas não necessariamente determinante - de o Constituinte terelencado a dignidade da pessoa humana no rol dos princípios fundamentaisque se poderá chegar à conclusão de que a dignidade da pessoa, na suacondição de norma jurídica, não assume, para além de sua dimensãoprincipiológica, a feição de regra jurídica, tal como igualmente bemdemonstrou Alexy.187 Na sua perspectiva principiológica, a dignidade dapessoa atua, portanto - no que comunga das características das normas-princípio em geral - como um mandado de otimização, ordenando algo (no

caso, a proteção e promoção da dignidade da pessoa) que deve serrealizado na maior medida possível, considerando as possibilidades fáticase jurídicas existentes, ao passo que as regras contem prescriçõesimperativas de conduta, sem que se vê aqui adentrar o mérito desta e dasdemais distinções apresentadas pelo eminente jusfilósofo germânico.188

Ainda no que diz186. A respeito da dimensão objetiva e subjetiva dos princípios e direitos fundamentais, v., por todos,o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 10ª ed., 2009, p. 141 e ss.187. Cf. R. Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 106 e ss., destacando que a condição deregra da dignidade manifesta-se pelo fato de que nos casos em que esta norma assume relevância,não se questiona se ela precede, ou não, a outras normas, mas sim, se está sendo violada, ou não.188. Para uma exaustiva análise da distinção entre regras e princípios, como espécies do gêneronormas jurídicas, v. R. Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 81 e ss. No direito lusitano, v.especialmente o neste contexto já lembrado J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria daConstituição, p. 1086-1101. Entre nós e entre outros (destacando-se a ausência de uniformidade

Pg. 83com a dupla estrutura (princípio e regra) da dignidade, verifica-se que, paraAlexy, o conteúdo da regra da dignidade da pessoa decorre apenas a partirdo processo de ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade,quando cotejado com outros princípios, de tal sorte que absoluta é a regra(à qual, nesta dimensão, se poderá aplicar, com as necessárias ressalvas, alógica do "tudo ou nada"), mas jamais o princípio.189 Diante desta dupladimensão (princípio e regra) peculiar também a norma contida no artigo 1º,

inciso III,

190

da nossa Carta Magna, não há como compartilhar - ao menosnão de todo - do entendimento advogado, entre nós, por Pereira dosSantos, quando, divergindo frontalmente de Alexy, pretende que a

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dignidade da pessoa humana constitui princípio de feições absolutas, razãopela qual sempre e em todos os casos haverá de prevalecer em relação aosdemais princípios, questionando igualmente a coerência lógica dopensamento de Alexy neste ponto.191 Também no âmbito da doutrinagermânica há quem tenha contestado o pensamento de Alexy quanto a

este aspecto, alegando que a norma consagradora da dignidade da pessoarevela uma diferença estrutural em relação as normas de direitosfundamentais, justamente pelo fato de não admitir uma ponderação nosentido de uma colisão entre princípios, já que a ponderação acaba sendoremetida a esfera da definição do conteúdo da dignidade. 192

no pensamento dos autores colacionados), W. C. Rothenburg. Princípios Constitucionais, p. 13 e ss.,W. S. Guerra Filho, Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, p. 43 e ss., I. M. Coelho,"Elementos de Teoria da Constituição e de Interpretação Constitucional", in: G. F. Mendes/I. M.Coelho/P. G. G. Branco, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, p. 44 e ss., RuySamuel Espindola, Conceito de Princípios Constitucionais, São Paulo: RT, 1999, Luis Afonso Heck,"Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no pensamento de Robert Alexy", in: G. S. Leite (Org.),Dos princípios constitucionais, p. 52-100, H. B. Ávila, Teoria dos Princípios, op. cit., L. R. Barroso e A.P. Barcellos, "O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios nodireito brasileiro", in: L. R. Barroso (Org.). A Nova interpretação Constitucional, Rio de Janeiro:Renovar, 2003. J. R. G. Pereira, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro:Renovar, 2006.189. Cf. R. Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 108-109.190. Em se tomando por referência a dupla dimensão da dignidade como regra e princípio, poder-se-á sustentar que se cuida, em verdade, de mais de uma norma contida no dispositivo constitucionalque a consagrou, na linha da já anunciada (e aqui adotada) distinção entre texto e norma, bem comoda possibilidade do reconhecimento de mais de uma norma a partir de um mesmo texto.191. F. Ferreira dos Santos, Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, p. 94 e ss. Nomesmo sentido, advogando o caráter absoluto dos princípios e relativo dos valores, embora semadentrar no exame da teoria de Alexy, v. Rizzato Nunes, O Princípio Constitucional da Dignidade daPessoa Humana. Doutrina e Jurisprudência, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 5 e ss.192. Neste sentido, a crítica de T. Geddert-Steinacher, Menschenwürde als Verfassungsbegriff: p.128-29, destacando que Alexy acabou embasando sua tese em decisões que não representam atendência dominante no âmbito da jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha,além de argumentar não ser a dignidade uma norma de direito fundamental, mas sim, princípio

 jurídico (Rechtsprinzip).

Pg. 84Desde logo, e sem que nos venhamos prender em demasia a tal

dimensão da problemática, temos por improcedente o questionamento orareferido, já que irremediavelmente o reconhecimento de um princípioabsoluto - tal como bem lembra Alexy - contradiz a própria noção deprincípios, ao menos de acordo com o entendimento adotado pelo próprioAlexy, o que, de qualquer modo, não impede - ao menos em tese - que separta de outro conceito de princípios para chegar a resultado diverso.193

Além disso, resta a evidência, amplamente comprovada na prática, de queo princípio da dignidade da pessoa humana pode ser realizado em diversosgraus,194 isto sem falar na necessidade de se resolver eventuais tensõesentre a dignidade de diversas pessoas, ponto sobre o qual voltaremos a nosmanifestar, ou mesmo da possível existência de um conflito entre o direitoa vida e a dignidade, envolvendo um mesmo sujeito (titular) de direitos.195

Em verdade, na esteira do que averbou Alexy - cujo pensamentotambém aqui recolhemos na íntegra - a compreensível impressão de que secuida de um princípio absoluto resulta tanto do fato de que coexistem, emverdade, duas espécies de normas de dignidade da pessoa (princípio e

regra) quanto da circunstância de que existe uma série de condições nasquais o princípio da dignidade da pessoa humana, com elevada margem decerteza, assume precedência em face dos demais princípios.196

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Para além da controvérsia apontada, importa frisar - antecipando aquiparcialmente a discussão sobre este ponto - que a dignidade, na con-193. Registre-se, nesta quadra, a nossa posição pessoal no sentido de que, por definição e por razõesaté mesmo de ordem lógica, inexistem princípios absolutos, já que tal condição contradiz a própriaessência da noção e a estrutura normativa dos princípios, constituindo, em verdade, uma autênticacontradictio in terminis. Assim, princípios absolutos ou não são princípios ou são outra coisa do que

habitualmente como tal se tem considerado.194. Cf. R. Alexy, Teoria de tos Derechos Fundamentales, p. 106 e ss.195. Considere-se aqui a problemática que envolve especialmente a descriminalização e até mesmoa autorização pelo ordenamento jurídico da prática da eutanásia comissiva ou omissiva, onde umaopção pela manutenção, a qualquer custo (e não apenas financeiro) da vida, poderá ser ti da comovioladora da dignidade, ao menos se assim for compreendida uma sobrevida marcada porsofrimentos atrozes ou condições manifestamente degradantes e indignas de vida.196. Cf. R. Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 106 e ss. Esta também parece ser aposição adotada por M. Kloepfer, "Grundrechtstatbestand und Grundrechtsschranken in derRechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts - dargestent am Beispiel der Menschenwürde", in: C.Starck (Org.) Bundesvelfassungsgericht und Grundgesetz, vol. ll, p. 411, ao questionar umacompreensão da dignidade que se imponha de forma absoluta em relação a todos os demais valoresconstitucionais, preferindo uma concepção de acordo com a qual a dignidade assume, isto sim,posição privilegiada no âmbito de uma eventual necessidade de ponderação entre os bens jurídico-

constitucionais, posição este reafirmada pelo autor em estudo mais recente (v. M. Kloepfer, "Lebenund Würde des Menschen", in: P. Badura e H. Dreier (Org.), Festschrift 50 JahreBundesverfassungsgericht. Vol. II, p. 77 e ss., destacando, logo na introdução do seu ensaio, que adignidade não poderia ser menos restringível que o direito a vida. Entre nós, no mesmo sentido, v.também V. A. da Silva, Direitos Fundamentais, p. 200-202, no que se refere a dignidade da pessoahumana.

Pg. 85dição de valor intrínseco da pessoa humana, evidentemente não poderá sersacrificada, já que, em si mesma, insubstituível, o que, de resto, em nadaafeta - antes reforça - a correção do pensamento de Alexy, já que este, emmomento algum, sustenta que pelo fato de não se cuidar de um princípioabsoluto (até mesmo por não existirem - na definição de Alexy - princípios

absolutos), podendo ser justificadas violações da dignidade, de tal sorte asacrificá-la. No mínimo - e neste sentido já não se poderá falar de umprincípio absoluto - impende reconhecer que mesmo prevalecendo em facede todos os demais princípios (e regras) do ordenamento, não há comoafastar - como ainda teremos oportunidade de discutir - a necessáriarelativização (ou, se preferirmos, convivência harmônica) do princípio dadignidade da pessoa em homenagem a igual dignidade de todos os sereshumanos. Assim, se este for o cerne da divergência, verifica-se, emverdade, que inexiste dissídio digno de nota, o que, afinal de contas, é oque importa, bastando apenas que se consigne a conveniência, justamentepara evitar eventuais mal-entendidos, de uma coerência entre a noção deprincípio adotada e a qualificação da dignidade como norma-princípio.197

Diante destas premissas, ainda que sumariamente expostas, e tendopresente sempre e acima de tudo o caráter normativo e, portanto,vinculante, da dignidade da pessoa humana, condição da qual decorremimportantes conseqüências diretamente ligadas ao problema da suaeficácia e efetividade, passaremos a enfrentar alguns aspectos específicos,notadamente no que diz com as funções exercidas pelo princípio dadignidade da pessoa humana na nossa ordem juridíco-constitucional e, demodo especial, no concernente ao seu vinculo com as normas definidorasde direitos e garantias fundamentais, o que, de resto, constitui o objetivo

precípuo deste estudo. Com efeito, embora aqui não se vê desenvolvermais este ponto, nunca é demais lembrar - até mesmo para firmarmos

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nossa posição pessoal - que a condição de princípio é integralmentecompatível com o reconhecimento da plenitude eficacial e, portanto, daplena vinculatividade da dignidade da pessoa humana na sua dimensão

 jurídico-normativa, seja na perspectiva objetiva, seja como fundamento deposições subjetivas.198 Neste sentido, não haveria como deixar de

colacionar a luminosa (embora não de todo incontroversa) exortação dePaulo Bonavides, que, referindo-se justamente ao princípio da dignidade dapessoa humana, afir-197. Neste passo, assume relevo a lição de H. B. Ávila, Distinção entre princípios e regras e aredefinição do dever de proporcionalidade, in: RDA nº 215 (1999), especialmente p. 154 e ss.,lembrando que a definição de princípios e sua distinção das regras depende, em verdade, do critérioem função do qual a distinção é adotada.198. A compatibilidade entre a condição de princípio e a eficácia plena da respectiva norma jurídica,assim como entre a dimensão objetiva e subjetiva foi objeto de amplo desenvolvimento no nosso AEficácia dos Direitos Fundamentais, especialmente p. 242 e ss.

Pg. 86mou que "sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser

portanto máxima e se houver reconhecidamente um princípio supremo notrono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senãoaquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se achamconsubstanciados".199

199. Cf. Paulo Bonavides, no prefácio da primeira edição desta obra, posteriormente publicado nacoletânea de textos do autor intitulada Teoria Constitucional da Democracia Participativa, p. 233.

Pg. 874. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais: algunspontos de contato4.1. Dignidade da pessoa, unidade axiológica (e aberta!) elegitimidade da ordem jurídico-constitucional e do sistema dos

direitos fundamentaisConsoante já anunciado, dentre as funções exercidas pelo princípiofundamental da dignidade da pessoa humana, destaca-se, pela suamagnitude, o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidadede sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional,constituindo-se, de acordo com a significativa fórmula de Haverkate, no"ponto de Arquimedes do estado constitucional".200 Como bem o lembrou

 Jorge Miranda, representando expressiva parcela da doutrina constitucionalcontemporânea, a Constituição, a despeito de seu caráter compromissário,confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática aosistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidadeda pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento efim da sociedade e do Estado,201 razão pela qual se chegou a afirmar que oprincípio da dignidade humana atua como o "alfa e ômega" do sistema dasliberdades constitucionais e, portanto, dos direitos fundamentais.202

200. Cf. G. Haverkate, Verfassungslehre, p. 142.201. Cf. J. Miranda, Manual..., vol. IV, p. 180. Assim também J. C. Vieira de Andrade, Os DireitosFundamentais..., p. 101, referindo que os preceitos relativos aos direitos fundamentais "não se

 justificam isoladamente pela proteção de bens jurídicos avulsos, só ganham sentido enquanto ordemque manifesta o respeito pela unidade existencial de sentido que cada homem é para além de seusactos e atributos". Entre nós, v., por todos, Rizzato Nunes, O Princípio Constitucional da Dignidade daPessoa Humana, p. 45 e ss.202. Cf. F. Delpérée. O direito a dignidade humana, p. 161.

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  Tal concepção, a evidência, aplica-se também ao nossoconstitucionalismo, igualmente caracterizado por uma Constituição decunho marcadamente compromissário, mas que - como já frisado - erigiu adignidade da pessoa humana a condição de fundamento de nosso Estadodemocrático de Direito, como, de resto, já tem sido amplamente sustentado

também no âmbito da doutrina pátria.203 Assim, na esteira do que já seafirmou em relação a Lei Fundamental da Alemanha, também a nossaConstituição - pelo menos de acordo com seu texto - pode ser consideradacomo sendo uma Constituição da pessoa humana, por excelência,204 aindaque não raras vezes este dado venha a ser virtualmente desconsiderado.

Assim, como bem lembra Martinez, ainda que a dignidade preexistaao direito, certo é que o seu reconhecimento e proteção por parte da ordem

 jurídica constituem requisito indispensável para que esta possa ser tidacomo legítima.205 Aliás, tal dignidade tem sido reconhecida a dignidade dapessoa humana que se chegou a sustentar, reescrevendo o conhecido emulticitado art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e doCidadão (1789), que toda sociedade que não reconhece e não garante adignidade da pessoa não possui uma Constituição.206 Também por estemotivo assiste inteira razão aos que apresentam a dignidade da pessoahumana como critério aferidor da legitimidade substancial de umadeterminada ordem juridíco-constitucional, já que diz com os fundamentose objetivos, em suma, com a razão de ser do próprio poder estatal.207 Nestaperspectiva - embora num sentido distinto - há como sustentar que adignidade sempre também cumpre uma função política (normativa emboranão jurídica) fundamental, atuando como referência para o processodecisório político e jurídico, visto que torna incontroversa (no sentido de

uma "metáfora absoluta") a decisão em si mesma do reconhecimento da203. Neste sentido, v., dentre outros, J. Afonso da Silva, A dignidade da pessoa humana..., p. 91-92. Também E. Benda. Die Menschenwürde ist Unantastbar, in: ARSP nº 22 (1984), p. 23, embora para ocaso da Alemanha, de há muito leciona que a noção de dignidade da pessoa constitui o ponto departida e o centro da concepção de Estado e Direito adotada pela Lei Fundamental de 1949.204. Cf. Podlech, in: Alternativ Kommentar, vol.1, p. 281. O mesmo se observa em relação a ordem

 juridíco-constitucional italiana, de acordo com F. Bartolomei, la dignitá humana come concetto evalore constituzionale, p. 11, afirmando que a Constituição da Itália, ao reconhecer e assegurar adignidade da pessoa e os direitos fundamentais, acabou criando uma ordem de valores centrada napersonalidade humana.205. Cf. M. A. Alegre Martinez, La dignidad de la persona..., p. 29. Entre nós e dentre outros, v. E.Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 51, afirmando que o respeito pela dignidade da pessoaconstitui elemento imprescindível para a legitimação da atuação do Estado.206. Cf. a expressiva formulação de M. L. Pavia, La dignité de la personne..., p. 105, admitindo,

contudo, o tardio reconhecimento da dignidade da pessoa humana no âmbito da ordem jurídico -positiva francesa.207. Assim o sustenta V. Brugger, Menschenwürde. Menschenrechte, Grundrerhte, p. 5 e ss.

Pg. 89dignidade da pessoa humana no âmbito de um consenso sociocultural (porexemplo, na afirmação de que uma violação da dignidade é sempreinjusta!) e na condição de conceito referencial, ainda que no particular,sobre o que cada um entende por dignidade da pessoa e sobre o modo desua promoção e proteção, existam muitas divergências.208

Se, por um lado, consideramos que há como discutir - especialmentena nossa ordem constitucional positiva - a afirmação de que todos os

direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto,imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual seriam

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concretizações,209 constata-se, de outra parte, que os direitos e garantiasfundamentais podem - em princípio e ainda que de modo e intensidadevariáveis -, ser reconduzidos de alguma forma a noção de dignidade dapessoa humana, já que todos remontam a idéia de proteção edesenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas, como bem destaca

 Jorge Miranda.210 Neste sentido, Vi eira de Andrade, embora sustentandoque o princípio da dignidade da pessoa humana radica na base de todos osdireitos fundamentais constitucionalmente consagrados, admite, todavia,que o grau de vinculação dos diversos direitos àquele princípio poderá serdiferenciado, de tal sorte que208. V. neste sentido S. Baer. "Menschenwürde zwischen Recht, Prinzip und Referenz", p. 572-75.209. CF., entre nós. E. Pereira de Farias. Colisão de Direitos, p. 54. Quanto a este ponto, já nospronunciamos, em outra oportunidade, no sentido de revelar alguma reserva no que diz com aalegação de que todos os direitos fundamentais positivados na Constituição de 1988 possam serreconduzidos diretamente e de modo igual ao princípio da dignidade da pessoa humana, seja pelaextensão do nosso catalogo de direitos e garantias, seja pelas peculiaridades de algumas normas dedireitos fundamentais, tal como ocorre com as regras sobre prescrição em matéria de direito dotrabalho, a gratificação natalina (13º salário), o dispositivo que impõe o registro dos estatutos dospartidos políticos junto ao TSE (art. 17 da Constituição de 1988), etc. Neste sentido, v. o nosso:Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 98. Neste mesmo contexto, cabe referir importante decisão do

 Tribunal Constitucional da Espanha, citada por M. A. Alegre Martínez, la dignidad de la persona..., p.47-48, onde, para além de reconhecer que a dignidade da pessoa representa um mínimoinvulnerável que toda a ordem jurídica dever assegurar, a Corte Constitucional HispAnica sinalou queisto não significa que todo e qualquer direito fundamental possa ser considerado como inerente adignidade da pessoa, nem que todos os direitos qualificados como fundamentais sejamintegralmente condições essenciais e imprescindiveis para a efetiva incolumidade da dignidadepessoal. No âmbito da doutrina italiana. F. Bartolomei, la dignitá hunana..., p. 14, refere que aafirmação de um princípio geral de tutela da dignidade humana não importa, todavia, que todos osdireitos individualmente considerados possam ser reconduzidos a um único direito. De resto, oentendimento de que todos os direitos fundamentais são diretamente fundados na dignidade dapessoa seria sustentável apenas em se partindo de um conceito exclusivamente material de direitosfundamentais, considerando como tais unicamente os que puderem encontrar seu fundamento diretona dignidade, concepção esta que, todavia não harmoniza com a Constituição Federal de 1988.Enfatizando tal perspectiva, v., por último, 1. Gutiérrez-Gutiérrez. Dignidad de la Persona y DerechosFundamentales, p. 77, 91 e ss.210. CF. J. Miranda, Manual..., vol. IV. p. 181. Também K. Stern. Staatsrecht..., vol. III/1, p. 33, lecionaque o princípio da dignidade da pessoa humana constitui fundamento de todo o sistema dos direitosfundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos dadignidade da pessoa e que com base neste devem (os direitos fundamentais) ser interpretados.

Pg. 90existem direitos que constituem explicitações em primeiro grau da idéia dedignidade e outros que destes são decorrentes.211 Assim, mesmo que sedeva - nesta linha de entendimento - admitir que o princípio da dignidadeda pessoa humana atua como principal elemento fundante e informador

dos direitos e garantias fundamentais também da Constituição de 1988 - oque, de resto, condiz com a sua função como princípio fundamental -também é certo que haverá de se reconhecer um espectro amplo ediversificado no que diz com a intensidade desta vinculação,212 aspecto que,por sua vez, voltará a ser abordado no próximo segmento. O que importafrisar, neste contexto, é que embora se possa aceitar, ainda mais em facedas peculiaridades da Constituição Brasileira, que nem todos os direitosfundamentais tenham fundamento direto na dignidade da pessoahumana213, sendo, além disso, correta a afirmação de que o conteúdo emdignidade dos direitos é variável, tais circunstâncias não retiram da

dignidade da pessoa humana, na sua condição de princípio fundamental eestruturante, a função de conferir uma determinada (e possível) unidade desentido ao sistema constitucional de direitos fundamentais, orientando - tal

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como bem aponta Jorge Reis Novais - inclusive as possibilidades deabertura e atualização do catalogo constitucional de direitos,214 como maisadiante teremos oportunidade de verificar. Todavia, há que levar em conta,como bem aponta José de Meio Alexandrino, que a idéia de acordo com aqual o princípio da dignidade da pessoa humana imprime unidade de

sentido ao sistema de direitos fundamentais não resulta imune acontrovérsias, visto que não afasta alguns pontos problemáticos, a começarpela ampla gama de conteúdos e dimensões que se atribui a noção dedignidade da pessoa humana em si, bem como na (já referida) e nãonecessariamente linear e incontroversa relação entre a dignidade e osdireitos fundamentais.215

A concepção de acordo com a qual - pelo menos em grande parte - osdireitos fundamentais (assim. como, em especial, os direitos huma-211. Cf. J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais.... p. 101-2.212. Neste sentido também M. Herdegen, Neuarbeitung von Art. 1 Abs.1. p. 1I e ss., que, a despeitode criticar a dedução direta de todo o sistema dos direitos fundamentais da dignidade da pessoa,reconhece que a ordem dos direitos fundamentais encontra-se significativamente impregnada comelementos da dignidade, bem como sustenta a tese do conteúdo diferenciado em dignidade dapessoa dos di versos direitos especificamente considerados (p. 14).213. No mesmo sentido, por último, colacionando razões adicionais a justificar a inexistência de umvinculo direto e necessário entre dignidade e todos os direitos fundamentais, v. J. M. Alexandrino, AEstruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição Portuguesa, vol. 11, p.325 e ss.214. Cf.. J. R. Navais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, p. 52-53.215. Cf. J. M. Alexandrino, A Estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias naConstituição Portuguesa, vol. 11, p. 306 e ss.

Pg. 91nos) encontram seu fundamento na dignidade da pessoa humana, quandocontrastada com a noção de dignidade na condição de um direito

(fundamental) a proteção e promoção dessa dignidade, foi percebida, pelomenos na acepção de Jeremy Waldrom, como constituindo uma "dualidadede usos", visto que a dignidade opera tanto como o fundamento (a fonte)dos direitos humanos e fundamentais, mas também assume a condição deconteúdo dos direitos.216 Tal dualidade, de qualquer sorte, não representauma incompatibilidade entre os dois usos da dignidade, aspecto que seimpõe seja aqui frisado, ainda que não resulte desenvolvido.

Neste passo, impõe-se seja ressaltada a função instrumentalintegradora e hermenêutica do princípio,217 na medida em que este servede parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dosdireitos fundamentais e das demais ,normas constitucionais, mas de todo o

ordenamento jurídico.218 De modo todo especial, o princípio da dignidade dapessoa humana - como, de resto, os demais princípios fundamentaisinsculpidos em nossa Carta Magna - acaba por operar como critério materialno âmbito especialmente da hierarquização que costuma ser levada a efeitona esfera do processo hermenêutico, notadamente quando se trata de umainterpretação sistemática.219 Neste contexto, a despeito de já se terapontado - e, na época, não sem boa dose de razão - para a ausência, entrenós, de experiências jurisprudenciais mais avançadas no que diz com aaplicação do princípio da dignidade da pessoa humana,220 o fato é que, cadavez mais, se encontram decisões dos nossos Tribunais valendo-se da

dignidade da pessoa como critério hermenêutico, isto é, como fundamentopara solução das controvérsias, notadamente interpretando a normativainfraconstitucional a luz da dignidade da pessoa humana, muito embora o

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incremento em termos quantitativos nem sempre corresponda a umafundamentação consistente da decisão. Com efeito, não são poucas asdecisões que apenas referem uma violação da dignidade da pessoa, semqualquer argumento adicional demonstrando qual a noção subjacente dedignidade adotada e os motivos

216. Cf. J. Waldrom, "Dignity and Rank". in: European Journal of Sociology (2007), p. 203-204.217. Cf. Höfling, in: M. Sachs (Org) Grundgesetz, p. J 16.218. Neste sentido, já lecionava H. C. Nipperdey, in: Neumann/Nipperdey/Scheuner (Org.), DieGrundrechte, vol. II, p. 23, analisando o modelo germânico. Mais recentemente, v. Maunz-Zippelius,Deulsches Staatsrechl, p. 183. Entre nós, v. E. Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 54.219. Sobre a interpretação sistemática e a hierarquização v., em especial, as obras referenciais de J.Freitas, Interpretação Sistemática do Direito, p. 49 e ss., bem como A. Pasqualini. Hermenêutica eSistema Jurídico, p. 89 e ss.220. Cf. M. A. Ribeiro Lopes, A dignidade da pessoa humana: estudo de um caso, in: RT nº 758(1998), p. 112.

Pg. 92segundo os quais uma conduta determinada (seja qual for sua procedênciaou natureza) é considerada como ofensiva (ou não) a dignidade, o que, de

certo modo, a despeito da nobreza das intenções do órgão julgador, acaba,em muitos casos, contribuindo mais para uma desvalorização e fragilização

  jurídico-normativa do princípio do que para a sua maior eficácia eefetividade.

Apenas para ilustrar este ponto - no caso, a utilização fundamentadado princípio da dignidade da pessoa humana -, e sem adentrar o mérito daargumentação utilizada, colacionamos acórdão do Tribunal de Justiça deSão Paulo, considerando valida toda doação feita ao outro cônjuge que secasou sexagenário, já que, dada a incompatibilidade com os princípiosconstitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade e proteção daintimidade, bem como em face da violação do devido processo legal da suaacepção substantiva (princípio da proporcionalidade), não mais há comoaplicar a restrição constante do artigo 258, parágrafo único, inciso II, doCódigo Civil. 221 Igualmente buscando uma exegese comprometida com asexigências da dignidade, registre-se recente acórdão do Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul, entendendo que, no âmbito do concurso de credoresno processo falencial, o credito decorrente das contribuiçõesprevidenciárias não pode - a despeito da previsão legal - estar acima dostrabalhistas, já que estes são indispensáveis a própria sobrevivência do serhumano, dizendo respeito a dignidade da pessoa humana e aos valoressociais do trabalho, devendo-se-Ihes atribuir caráter prioritário.222 Dentre

outras tantas decisões que aqui poderiam ser citadas, aproveitamos paradestacar, ainda, o acórdão proferido pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que teve como Relator o ilustre Ministro Ruy Rosado deAguiar, que, em seu magistral voto, além de sublinhar a necessária eficáciado princípio da dignidade da pessoa nas relações entre particulares e ahierarquia constitucional dos tratados internacionais em matéria de direitoshumanos, sustentou a inconstitucionalidade da prisão civil do depositário nahipótese de contrato de alienação fiduciária em garantia,221. Apelação Cível nº 007.512-4/2-00.2ª Câmara Cível, julgada em 18.08.1998, publicada na RT nº758 (1998), p. 106 e ss., relatada pelo Des. Cezar Peluso, que, no seu voto, destacou que a eficáciarestritiva da norma contida no art. 258, parágrafo único, inciso 11, do Código Civil, "estaria. ainda, alegitimar e perpetuar verdadeira degradação, a qual retirando-lhe o poder de dispor do patrimônio

nos limites do casamento, atinge o cerne mesmo da dignidade da pessoa humana, que é um dosfundamentos da República (art. 1º, inc. m, da CF), não só porque a decepa e castra no seu núcleo

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constitutivo de razão e vontade, na sua capacidade de entender e querer, a qual, numa perspectivatranscendente, é vista como expressão substantiva do próprio ser, como porque não disfarça, sob asvestes grosseiras do paternalismo insultuoso, todo o peso de uma intromissão estatal em matériaque respeita, fundamentalmente, a consciência, intimidade e autonomia do cônjuge." 222. Cf.

acórdão do Tribunal de Justiça do RS, proferido em 25.08.99, relatado pelo Des. Osvaldo Stefanello.Pg. 93

  justamente com base numa exegese afinada com as exigências dadignidade da pessoa.223

Precisamente em relação aos casos de prisão civil na ordem jurídicabrasileira, cumpre apontar a mudança de orientação por parte do Supremo

 Tribunal Federal, que, a despeito de reconhecer - diversamente do julgadodo Superior Tribunal de Justiça referido - apenas a hierarquia supralegal dostratados de direitos humanos (superando, todavia, a tese anterior, da meraparidade entre tratado e lei ordinária), considera revogada a legislaçãopermissiva da prisão do depositário infiel, invocando, além disso, osprincípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.224 Outra

hipótese que demonstra - no nosso sentir, de modo adequado - a utilizaçãoda dignidade da pessoa humana como fundamento da decisão (ainda quenão se cuide do único fundamento legitimo), diz respeito a garantia de queuma pessoa idosa, acometida de doença grave, mesmo tendo sidocondenada a prisão pela prática de trafico de entorpecentes, possa aindaassim cumprir a pena em regime de prisão domiciliar em regime fechado.225

  Já em outro contexto, embora também adotando uma exegesecalcada na dignidade da pessoa humana (no caso, vinculada ao direito ahabitação), situa-se decisão do Superior Tribunal de Justiça,226 onde restouconsignada a impossibilidade de se estender aos contratos definanciamento habitacionais anteriores a vigência da Lei 8.100/90 a

vedação da quitação pelo mesmo mutuário de dois saldos devedores, de talsorte que a limitação seria legítima apenas a partir de 05.12.1990. Taldecisão, todavia, em que pese correta quanto ao resultado final (pelomenos, no nosso sentir) viabiliza entendimento diverso no que diz com autilização, como razão de decidir, da dignidade da pessoa humana. Comefeito, se é certo que o direito a habitação encontra-se conectado com adignidade da pessoa, também é evidente que não se cuida de qualquerhabitação, mas sim, da moradia que atenda aos parâmetros da dignidadeda pessoa.227 De outra parte, o uso da dignidade da pessoa humana comoargumento, pelo menos223. Cf. Habeas Datas nº 14.333. Distrito Federal, julgado em 07/1112000.

224. Cf., por último, julgamento no HC 87585/TO, rel. Min., Marco Aurélio, 03.12.08, na esteira dosvotos deduzidos no bojo do RE 466343/SP, destacando-se o voto do Min. Gilmar Mendes, querevitalizou a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos e, além disso, analisou aquestão a luz das exigências da proporcionalidade.225. Cf. RHC 94358/SC, rel. Min. Celso de Mello, 29.04.08.226. REsp. nº 611.240/SC, relatar Ministro José Delgado, julgado em 04.03.2004227. Sobre o direito a moradia, v., por todos, o nosso "A eficácia e efetividade do direito a moradia nasua dimensão negativa (defensiva): análise crítica a luz de alguns exemplos", in: C. P. Souza Neto eD. Sarmento (Coord.), Direitos Sociais. Fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie, Riode Janeiro: Renovar, 2008, p. 1019-1052.

Pg. 94no caso referido, encontra objeção quando se trata de dois contratosdistintos, relativos a duas moradias, de tal sorte que fica no mínimo difícil

 justificar que, neste caso, se esteja efetivamente em face de uma violaçãoda dignidade do mutuário do Sistema Financeiro de Habitação. De outra

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parte, parece ser possível fundar a decisão, de modo mais enfático, naproteção da confiança (boa-fé) e, de modo geral, no princípio da segurança

  jurídica, igualmente com fundamento constitucional. De qualquer modo,cuida-se de mais um exemplo que indica tanto o quanto a jurisprudênciabrasileira está resgatando o princípio da dignidade da pessoa humana como

referencial no processo decisório, mas também aponta para a necessidadede maior cautela na utilização - nem sempre apropriada - da dignidadecomo argumento.

Com o intuito de agregar exemplos extraídos do repertorio  jurisprudencial brasileiro, aproveitamos para referir, ainda - a títulomeramente ilustrativo -, uma das diversas decisões que tem deferido aliberação dos valores da conta do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço(FGTS) para atendimento de necessidades básicas da pessoa dotrabalhador ou de sua família, notadamente quando se cuida de afastaruma iminente ou muitas vezes já ocorrida violação da dignidade da pessoahumana. Nesta perspectiva, insere-se o Acórdão proferido pelo TribunalRegional Federal da 4ª Região,228 liberando os valores do FGTS parareformas na moradia do requerente, que havia sido atingida por enchente,ainda que não se cuide, no momento, de reformas de grande extensão e decunho emergencial, mas que se destinam a evitar a deterioração damoradia e a assegurar condições de habitação compatíveis com asexigências da dignidade da pessoa humana. Já no que diz com aexperiência na esfera do direito estrangeiro, registra-se decisão do TribunalConstitucional da Espanha, outorgando ao princípio da boa-fé umainterpretação baseada na dignidade da pessoa humana e na sua liberdadede autodeterminação, entendendo ser descabida a despedida de

funcionário que, no período de suas ferias, trabalhou em outra empresa.229

 À luz dos exemplos colacionados e sem que se possa apresentar uminventário mais completo, verifica-se a dignidade da pessoa humana, nacondição de princípio fundamental de nossa ordem constitucional, tem sidoconsiderada - também na esfera jurisprudencial - como dotada de228. Apelação Cível nº 2001.72.05.006640-6/SC, relatar Des. Federal Carlos Eduardo ThompsonFlores Lenz, julgado em 19.08.2003.229. Cf. Sentença nº 190/2003, de 27.10.2003. O mesmo Tribunal - igualmente em matériatrabalhista - já havia, em outras ocasiões, sustentado o descabimento de despedida de empregadagrávida, entendendo configurada hipótese de discriminação em razão de sexo, implicando ofensa adignidade da pessoa humana (Sentença nº 17/2003, de 3001.2003).

Pg. 95

do este segmento, que os direitos fundamentais, assim como e acima detudo, a dignidade da pessoa humana a qual se referem, apresentam comotraço comum - e aqui acompanhamos a expressiva e feliz formulação deAlexandre Pasqualini -, o fato de que ambos (dignidade e direitosfundamentais) "atuam, no centro do discurso jurídico constitucional, comoum DNA, como um código genético, em cuja unifixidade mínima, convivem,de forma indissociável, os momentos sistemático e heurístico de qualquerordem jurídica verdadeiramente democrática".235

4.2. Os direitos fundamentais como exigência e concretizações doprincípio da dignidade da pessoa humana

De certa forma, a idéia revelada pelo título deste capítulo já restouanunciada ao longo do texto. Ainda assim, seja pela sua transcendentalimportância, seja pelos desdobramentos que propicia, importa retomá-la de

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forma mais enfática, mesmo que também aqui não se pretenda exaurir otema.

Neste contexto, verifica-se ser de tal forma indissociável a relaçãoentre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que mesmo nasordens normativas onde a dignidade ainda não mereceu referência

expressa, não se poderá - apenas a partir deste dado - concluir que não sefaça presente, na condição de valor informador de toda a ordem jurídica,desde que nesta estejam reconhecidos e assegurados os direitosfundamentais inerentes a pessoa humana.236 Com efeito, sendo correta apremissa de que os direitos fundamentais constituem - ainda que comintensidade variável - explicitações da dignidade da pessoa, por via deconseqüência e, ao menos em princípio (já que exceções são admissíveis,consoante já frisado), em cada direito fundamental se faz presente umconteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa.237 É

 justamente a partir dessas premissas que André Ramos Tavares sustenta aexistência de uma consubstancialidade parcial dos direitos fun-para a Ponderação Constitucional", in: L. R. Barroso (Org.), A Nova Interpretação Constitucional,especialmente p. 107 e ss.235 Cf. A. Pasqualini, Hermenêutica e Sistema Jurídico, p. 80-1.236 Cf. entre nós, a recente lembrança de C. L. Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa...,╖p.27.237 Aqui vale colacionar a lição de D. Rousseau, Les libertés individuelles et la dignité de lapersonne, p. 70, ao referir que os direitos fundamentais adquirem vida e inteligência por meio dadignidade da pessoa, ao passo que esta não se realiza e torna efetiva se não pelos direitosfundamentais.

Pg. 97damentais na dignidade da pessoa humana.238 Nesta mesma perspectiva,reconhecendo que nem todos os direitos fundamentais (e quando, não da

mesma forma) encontram seu fundamento direto na dignidade da pessoahumana, vale colacionar a lição de Ignácio Gutiérrez-Gutiérrez, ao afirmarque a pretensão de eficácia e de inviolabilidade da dignidade da pessoahumana encontram-se na dependência da sua capacidade de se integrar nocontexto da dogmática dos direitos fundamentais, designadamentemediante a aptidão para uma abertura sistêmica que revela suaprodutividade justamente pela possibilidade de uma reconstruçãohistoricamente situada.239

Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que adignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo)fundamental, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos

fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos),muito embora - importa repisar - nem todos os direitos fundamentais (pelomenos não no que diz com os direitos expressamente positivados naConstituição Federal de 1988) tenham um fundamento direto na dignidadeda pessoa humana.240 Assim, sem que se reconheçam a pessoa humana osdireitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-ánegando-lhe a própria dignidade, o que nos remete a controvérsia em tornoda afirmação de que ter dignidade equivale apenas a ter direitos (e/ou sersujeito de direitos), pois mesmo em se admitindo que onde houver direitosfundamentais há dignidade, a relação primária entre dignidade e direitos,

pelo menos de acordo com o que sustenta parte da doutrina,241

consiste nofato de que as pessoas são titulares de direitos humanos em função de suainerente dignidade, Aliás, a partir de tais premissas, há como investir na

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diferenciação entre direitos humanos, no sentido de direitos fundadosnecessariamente na dignidade da pessoa, e direitos fundamentais, estesconsiderados como direitos que, independentemente de terem, ou não,relação direta com a dignidade da pessoa humana, são assegurados porforça

238. Cf. A. R. Tavares, "Princípio da consubstancialidade parcial dos direitos fundamentais nadignidade do homem", in: Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 4, jul./dez. 2004, p. 232 e ss.239. Cf. 1. Gutiérrez-GutiErrez. Dignidad de la Persolla y Derechos Fundamentales, Madrid: MarcialPons, 2005, p. 21.240. Em sentido diverso, aparentemente a posição de J. C. M. Brito Filho, Trabalho Decente, p. 41-43,argumentando que a dignidade da pessoa humana é o único fundamento dos direitos humanos, oque, todavia, deixa em aberto a questão de ser a dignidade também o único fundamento dos direitossociais.241. Cf., por todos, A . Gewirth, "Dignity as the Basis of Rights", p. 13, criticando, no ponto, a posiçãode Jacques Maritain.

Pg. 98de sua previsão pelo ordenamento constitucional posição, temática que,todavia, aqui não será explorada.242

Em primeiro lugar, relembrando que a noção de dignidade repousa _ ainda que não de forma exclusiva (tal como parece sugerir o pensamentode inspiração kantiana) - na autonomia pessoal, isto é, na liberdade (nosentido de capacidade para a liberdade)243 - que o ser humano possui de, aomenos potencialmente, formatar a sua própria existência e ser, portanto,sujeito de direitos, já não mais se questiona que a liberdade e os direitosfundamentais inerentes a sua proteção constituem simultaneamentepressuposto e concretização direta da dignidade da pessoa, de tal sorte quenos parece difícil - ao menos se pretendermos manter alguma coerênciacom a noção de dignidade apresentada ao longo do texto - questionar oentendimento de acordo com o qual sem liberdade (negativa e positiva)não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo reconhecida eassegurada.244

Não é a toa que se vem sustentando, tal como o fez, recentemente,Paulo Mota Pinto, que da "garantia da dignidade humana decorre, desdelogo, como verdadeiro imperativo axiológico de toda a ordem jurídica, oreconhecimento de personalidade jurídica a todos os seres humanos,acompanhado da previsão de instrumentos jurídicos (nomeadamente,direitos subjetivos) destinados a defesa das refrações essenciais dapersonalidade humana, bem como a necessidade de proteção dessesdireitos por parte do Estado".245 Assim, na formulação do mesmo autor, "A

afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e oimperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livredesenvolvimento constituem já corolários do reconhecimento da dignidadeda pessoa humana como valor no qual se baseia o Estado".246Aliás, éprecipuamente243. Cf. F. Delpérée, O direito a dignidade humana, p. 160. Na literatura brasileira, v., por último,desenvolvendo o vínculo entre autonomia e dignidade, R. M. Vencelau Meireles, Autonomia Privada eDignidade Humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, especialmente p. 63 e ss., (capítulo 2), R. Alexy,

 Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 344 e ss. 245, cf. P. Mota Pinto, O Direito ao livredesenvolvimento da personalidade, p. 151.246. P. Mota Pinto, op. cit., p. 152.

Pg. 99

com fundamento no reconhecimento da dignidade da pessoa por nossaConstituição, que se poderá admitir, também entre nós e apesar da

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omissão do Constituinte neste particular, a consagração - ainda que demodo implícito - de um direito ao livre desenvolvimento dapersonalidade.247 Para além das conexões já referidas (especialmente noconcernente a liberdade pessoal e seus desdobramentos) - situa-se oreconhecimento e proteção da identidade pessoal (no sentido de autonomia

e integridade psíquica e intelectual), concretizando-se - entre outrasdimensões - no respeito pela privacidade, intimidade, honra, imagem, assimcomo o direito ao nome, todas as dimensões umbilicalmente vinculadas adignidade da pessoa,248 tudo a revelar a já indiciada conexão da dignidade,não apenas com um direito geral ao livre desenvolvimento dapersonalidade, mas também com os direitos de personalidade em geral.249

A título aqui meramente ilustrativo, verifica-se que tal concepção restouconsagrada expressamente - notadamente no que diz com a vinculaçãodireta ao princípio da dignidade da pessoa humana - pelo TribunalConstitucional da Espanha, ao afirmar que o direito a intimidade, comoderivação da dignidade daPg. 100pessoa, implica a existência de um âmbito próprio e reservado em face deatuação e conhecimento dos demais, indispensável à manutenção de umaqualidade mínima de vida humana.250

 Também o direito geral de igualdade (princípio isonômico) encontra-se diretamente ancorado na dignidade da pessoa humana, não sendo poroutro motivo que a Declaração Universal da ONU consagrou que todos osseres humanos são iguais em dignidade e direitos.251 Assim, constituipressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana agarantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem

ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qualnão podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguiçõespor motivos de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípioisonômico na sua dupla dimensão formal e material.252

Que o postulado proclamado pela Assembléia das Nações Unidas, daigualdade em dignidade de todas as pessoas (e, portanto, a vedação dediscriminações decorrente do princípio isonômico) não conflita comidentidade única e irrepetível de cada pessoa e, neste sentido, há de sercompreendido, de certo modo, na sugestiva formulação de LeonardoWandelli, como "uma igualdade entre diferentes incomparáveis",253 já haviasido anunciado, mas também neste contexto deve ser enfatizado.

Da mesma forma, não restam dúvidas de que a dignidade da pessoahumana engloba necessariamente respeito e proteção da integridade físicae emocional (psíquica) em geral da pessoa, do que decorrem, por exemplo,Pg. 101a proibição da pena de morte, da tortura e da aplicação de penas corporaise até mesmo a utilização da pessoa para experiências cientificas.254 Nestesentido, diz-se que, para a preservação da dignidade da pessoa humana,toma-se indispensável não tratar as pessoas de tal modo que se lhes tomeimpossível representar a contingência de seu próprio corpo como momentode sua própria, autônoma responsável individualidade.255

Objeto de acirrada polemização, não propriamente no concernente aoreconhecimento de uma estreita conexão, mas notadamente quanto as

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conseqüências a serem extraídas desta vinculação e ao modo pela qualesta se manifesta, tem sido a relação entre a dignidade da pessoa humanae o direito a vida. Neste contexto, vale referir - dentre tantas que aquipoderiam ser colacionadas - decisão do Tribunal Constitucional da Espanha,na qual foi reconhecida a íntima vinculação entre o princípio da dignidade

da pessoa humana e o direito à vida, considerando ambos "como el puntode arranque, como el prius lógico y ontológico para la existencia yespecificación de los demas derechos".256 Tal entendimento, em termosgerais, corresponde a tradição européia no concernente a posição adotadapor expressivas doutrina e jurisprudência européias, destacando-se nesteponto a posição de há muito adotada pelo Tribunal Constitucional Federalda Alemanha, onde, de certo modo, chega-se a partir de uma espécie defungibilidade entre a dignidade e a vida, no sentido de que onde há vida hádignidade, e a violação de um, por via de conseqüência, implica a violaçãodo outro bem jurídico constitucionalmente tutelado. Ainda que as coisastalvez não sejam de fato tão simples - até mesmo diante da diversidade depronunciamentos a respeito, inclusive no âmbito do mesmo Tribunal - o fatoé que a depender do modo pelo qual se compreende as conexões entrevida e dignidade dependem uma série de conseqüências jurídicas, isto semfalar na já referida (e cada vez mais discutida) biologização da dignidade,que, de resto, subjaz também (embora não exclusivamente, como já nosparece ter sido esclarecido) ao pensamento de Ronald Dworkin, ao vinculara dignidade diretamente ao valor intrínseco da vida humana. De qualquermodo, sem que aqui se vê explorar todos os254. Cf., dentre tantos, Höfling, in: M. Sachs (Org), Grundgesetz, p. 107-9. Nesta linha, vale citarconhecido precedente do Supremo Tribunal Federal (HC nº 70.389-5, Rel. Min. Celso de Mello),afirmando ser a prática da tortura (no caso, estava em causa à tortura praticada contra crianças e

adolescentes) ofensa inequívoca a dignidade da pessoa humana, além de representar negaçãoarbitrária dos direitos humanos. Entre nós, explorando o problema da tortura e sua relação com adignidade da pessoa humana, V. G. Saavedra, "Segurança vs. Dignidade - o problema da torturarevisitado pela criminologia do reconhecimento", in: Verutas, v. 53, n. 2, abr./jun. 2008, p. 90-106.255. Esta a lição de Podlech, in: Alternativ Kommentar, p. 108.256. Sentença de 1985, citada por F. Rubio Llorente, Derechos Fundamentales y PrincipiasConstitucionales, p. 72-3.

Pg. 102meandros desta instigante problemática (que assume relevo especialmenteno campo da biotecnologia e do biodireito de um modo geral), convém sedeixe aqui consignada a nossa posição pessoal a respeito do ponto. Nestesentido, adotamos a posição advogada na Alemanha por Michael Kloepfer,

que prefere resolver o dilema (com relevantes conseqüências para oproblema de eventual hierarquização da dignidade em face de outros bensfundamentais) dignidade ou vida pela fórmula dignidade e vida (e nãodignidade ou vida), sem que com isso se esteja a chancelar a absolutafungibilidade dos conceitos, que seguem tendo um âmbito de proteçãopróprio e, para efeitos de uma série de aplicações, autônomo.257 

Até mesmo o direito de propriedade - inclusive e especialmente tendopresente o seu conteúdo social consagrado no constitucionalismo pátrio - seconstitui em dimensão inerente a dignidade da pessoa258 considerando quea falta de uma moradia decente ou mesmo de um espaço físico adequadopara o exercício da atividade profissional evidentemente acaba, em muitoscasos, comprometendo gravemente - senão definitivamente - ospressupostos básicos para uma vida com dignidade. Neste contexto, poder-

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se-á falar até mesmo de um direito fundamental a aquisição da propriedadepor usucapião,259 isto sem falar no direito a moradia (e, evidentemente, amoradia digna) recentemente introduzido no art. 6º de nossa Constituição,muito embora este último não signifique necessariamente um direito amoradia própria e, portanto, não pode ser identificado (apesar

257. Além do já citado texto de M. Kloepfer, "Leben und Würde des Mensehen", especialmente p. 78e ss., desenvolvendo a sua concepção a partir da idéia de que a conexão entre a vida e a dignidadehá de partir da constatação de que o elo que une ambos os valores constitucionais é o ser humano,não se podendo falar em uma apriorística hierarquia entre os dois bens fundamentais, remetemosaqui, entre outros e para efeitos de uma breve mirada sobre a controvérsia relativamente às relaçõesentre a vida (e o direito a vida) e a dignidade, para os já citados ensaios de E. Denninger e U.Neumann (v. nota de rodapé nº 95. supra). Sobre a relação entre dignidade da pessoa humana e odireito a vida, v., por último. J. F. Lindner. "Die Würde des Menschen und sein Leben", in: DOV. 2006,p. 577 e ss., assim como as considerações críticas endereçadas a dissociação entre dignidade e vida,formadas por K. E. Hain, Konkrelisierung der Menschenwürde durch Abwädgung?, op. cit., p. 202-203.258. A respeito da propriedade na Constituição Federal de 1988, bem como sobre a necessidade deuma releitura dos institutos juridico-privados (e públicos) correlatos em conformidade com anormação constitucional, v., dentre outros, especialmente as contribuições de G. Tepedino, Temas deDireito Civil, p. 267 e ss. (especialmente p. 283 e ss.,), sustentando inclusive a necessidade de uma

interpretação das normas sobre propriedade a luz dos princípios fundamentais de nossa Constituição,que, a evidência, inclui a dignidade da pessoa humana, concepção esta que norteia a relevantecontribuição de L. E. Fachin. Novas Limitações ao Direito de Propriedade: do espaço privado à funçãosocial, in: Revista do Direito (UNISC) nº 11 (1999), p. 33 e ss. Na mesma linha de entendimento, v.,ainda, R. Aronne, Propriedade e Domínio, especialmente p. 175 e ss., com expressa menção aoprincípio da dignidade da pessoa humana.259. Considerando este - no âmbito de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais -como forma de efetivação da função social da posse e propriedade e manifestação de um direito apropriedade, muito embora situado fora do Título II da Constituição de 1988, notadamente no que dizcom a usucapião constitucional especial urbano e rural (artigos 183 e 190).

Pg. 103das conexões evidentes) com o direito a propriedade.260 Não obstante asdiversas interpretações que possam ser outorgadas a assertiva, parece-nos

que é neste sentido - da vinculação do direito de e a propriedade com adignidade da pessoa humana - que devemos (ou, pelo menos, podemos)compreender a conhecida frase de Hegel, ao sustentar - numa traduçãolivre - que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade dapessoa (Sphäre ihrer Freiheit), o que, a evidência, não exclui o já referidoconteúdo social da propriedade, mas, pelo contrario, outorga-lhe aindamaior sentido.261 Aliás, é a partir de uma benfazeja releitura do direito depropriedade a luz da dignidade da pessoa humana que autores do porte deum Luis Edson Fachin sustentam a noção de um estatuto juridíco-constitucional do patrimônio mínimo,262 que, em certo sentido, não deixa deguardar conexão com a idéia de um mínimo existencial para uma vida comdignidade, consoante, de resto, ter-se-á oportunidade de verificar logo aseguir. Além disso, percebe-se que o direito de propriedade pode assumir acondição de direito fundamental até mesmo no sentido material, sendo,nesta perspectiva, de rechaçar a posição advogada por Ferrajoli, ao negar afundamental idade do direito de propriedade, enquadrando-o no grupo dosdireitos meramente patrimoniais.263 Com efeito, também os assimdenominados direitos sociais, econômicas e culturais, seja na condição dedireitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão prestacional (atuandocomo direitos positivos), constituem exigência e concretização da dignidadeda pessoa humana.264 O reco-

260 Sobre o direito a moradia na ordem constitucional brasileira tomamos a liberdade de remeter aonosso "O Direito Fundamental a Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu

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contexto, conteúdo e possível eficácia", in: J. A. Leite Sampaio (Coord.), Crise e Desafios daConstituição, p. 415-68.261 Cf. G. W. Hegel, Grundlinien der Philosophe des Rechts, p. 102.262 L. E. Fachin, Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro: Renovar, 2001.263 Cf. L. Ferrajoli, Derechos y Garantias: la Ley dei más Débil, p. 45 e ss., explorando a idéia de quea propriedade, ao contrario dos direitos fundamentais, que (entre outros critérios distintivos) entendeserem necessariamente universais no que diz com a sua titularidade, ao passo que os direitos

patrimoniais, como ocorre com a propriedade e os demais direitos reais, seriam sempre direitossingulares, referidos a um titular individualizado. Mesmo a partir de tal critério, não se haverá denegligenciar a relevância da assim designada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, queaponta para uma perspectiva necessariamente comunitária e, portanto, neste sentido sempretransindividual também do direi to de propriedade ou outros direitos que, de acordo com aconcepção de Ferrajoli, não poderiam ser considerados fundamentais. Não bastasse isso, toma-sedifícil superar _ no plano jurídico-positivo, pelo menos -, a circunstância de que a propriedade (mastambém a sua função social) foi expressamente guindada à condição de direito e garantiafundamental pelo nosso constituinte.264 Bem explorando esta senda, v. L.F. Barzotto, "Justiça Social, gênese, Estrutura e Aplicação de umConceito", in: Direito & Justiça, vol. 28, 2003, especialmente a partir da p. 122. O autor, no entanto,parece efetuar uma distinção entre os direitos sociais, já que apenas os direitos embasados numcritério de justiça social (que, segundo propõe o articulista, seriam os direitos devidos a todos osmembros da

Pg. 104nhecimento juridíco-constitucional da liberdade de greve e de associação eorganização sindical, jornada de trabalho razoável, direito ao repouso, bemcomo as proibições de discriminação nas relações trabalhistas (e aquifixamo-nos nos exemplos mais conhecidos) foi o resultado dasreivindicações das classes trabalhadoras, em virtude do alto grau deopressão e degradação que caracterizava, de modo geral, as relações entrecapital e trabalho, não raras vezes, resultando em condições de vida etrabalho manifestamente indignas, situação que, de resto, ainda hoje nãofoi superada em expressiva parte dos Estados que integram a comunidade

internacional. Em verdade, cuida-se - em boa parte - de direitosfundamentais de liberdade e igualdade outorgados aos trabalhadores com ointuito de assegurar-lhes um espaço de autonomia pessoal não mais apenasem face do Estado, mas especialmente dos assim denominados poderessociais,265 destacan-comunidade em função de sua igual dignidade) poderiam ser designados de direitos de justiça social,de tal sorte que o leque dos direitos sociais seria mais amplo que o dos direitos fundados na igualdignidade das pessoas, o que, por sua vez, parece não guardar sintonia com a expressa opção doConstituinte de 1988, já que este elencou também os direitos dos trabalhadores entre os direitossociais. Além disso, a despeito da inquestionável relevância e erudição do ensaio, assim como do seuinegável mérito de bem discutir e propor uma interpretação racional (e fundada nas teorias da

 justiça) da noção de justiça social agasalhada pela Constituição de 1988 (acima de tudo pela eleição -no nosso sentir substancialmente correta - da dignidade como fundamento da justiça social), parece-

nos que o critério eminentemente formal adotado, da igual dignidade de todos os membros dacomunidade, não dispensa outros referenciais, designadamente de natureza material, de vez quemesmo todos sendo iguais em dignidade (no sentido de serem, em princípio, titulares de direitos ecredores e devedores do reconhecimento pelo Estado e comunidade) resulta evidente que é adignidade concreta de cada pessoa (que, portanto, poderá ter outras necessidades físicas epsíquicas) que - na esteira do pensamento de uma Hannah Ahrendt, entre outros tantos que aquipoderiam ser citados - justamente a torna única e irrepetível é um dado a ser considerado noreconhecimento de determinado direito social Da mesma forma, se considerarmos que também osdireitos de liberdade e os demais direitos de cunho defensivo (bastaria aqui lembrar o direito aproteção da intimidade, da integridade física e corporal, da liberdade de expressão, entre tantosoutros) são - pelo menos de acordo com expressiva parcela da doutrina e desde a DeclaraçãoUniversal da ONU - diretamente fundados na dignidade e atribuídos a todas as pessoas (justamentepor serem iguais em dignidade) haveríamos de reconhecer que estes direitos também constituemdireitos de 'justiça social", o que não nos parece - em se partindo deste critério isolado - coadunar

exatamente com o espírito da noção de justiça social expressamente albergado pelo Constituinte de1988. Todavia e para além do exposto, importa destacar que, apesar das objeções aqui formuladaspor amor ao debate e em homenagem aos desafios lançados pelo eminente articulista, este, com

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correção e acuidade, apontou (p, 125) para o fato de que a pessoa humana são "devidos todos osbens necessários para a sua realização nas dimensões concreta, individual, racional e social", o queem termos gerais não deixa de harmonizar com a concepção sustentada nesta obra, de que adignidade impõe a satisfação das condições para uma vida saudável e, portanto, exige um conjuntode direitos (sociais) a prestações por parte do Estado e da comunidade. Ademais - e convém frisareste aspecto - é possível sllstel1tar a diferença entre uma concepção teórica geral e abstrata e umafundamentação constitucionalmente adequada e calcada nas especificidades de uma determinada

formulação adotada por um igualmente determinado Poder Constituinte, como é precisamente aopção privilegiada neste ensaio. De qualquer modo, cuida-se de uma discussão necessária a serdesenvolvida com maior profundidade do que aqui é possível empreender e que envolve até mesmo- ao menos para alguns - o debate em tomo da própria existência de direitos sociais, mas que aquievidentemente também transcende os limites do presente ensaio.

Pg. 105do-se, ainda, a circunstância de que o direito ao trabalho (e a um trabalhoem condições dignas!)266 constitui um dos principais direitos fundamentaisda pessoa humana, temática que, todavia, aqui não poderá serdesenvolvida.267 Os direitos sociais de cunho prestacional (direitos aprestações fáticas e jurídicas) encontram-se, por sua vez, a serviço da

igualdade e da liberdade material, objetivando, em última análise, aproteção da pessoa contra as necessidades de ordem material268 e agarantia de uma existência com dignidade269 constatação esta que, emlinhas gerais, tem servido paraPg. 106fundamentar um direito fundamental (mesmo não expressamentepositivado, como já demonstrou a experiência constitucional estrangeira) aum mínimo existencial, compreendido aqui - de modo a guardar sintoniacom o conceito de dignidade proposto nesta obra - não como um conjuntode prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia davida) humana (aqui seria o caso de um mínimo apenas vital) mas, mais do

que isso, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável comodeflui do conceito de dignidade adotado nesta obra, ou mesmo daquilo quetem sido designado de uma vida boa.270 Tal concepção, de resto, encontraressonância mesmo em pensadores de inspiração liberal, como é o caso -entre outros - do norte-americano Cass Sunstein, para quem um direito agarantias sociais e econômicas mínimas pode ser justificado não apenascom base no argumento de que pessoas sujeitas a condições de vidadesesperadoras não vivem uma boa vida, mas também a partir da premissade que um regime genuinamente democrático pressupõe uma certaindependência e segurança para cada pessoa,271 o que, de certo modo,

harmoniza com a noção de um mínimo existencial para uma vida comdignidade e um conjunto de direitos prestacionais indispensáveis para agarantia deste mínimo sustentada, entre nós de modo paradigmático, porRicardo Lobo Torres, em alentado estudo sobre o tema, ainda que - e oregistro é necessário - o referido autor, diversamente do ponto de vista pornós adotado e na esteira de uma tradição de orientação liberal - como é ocaso de um John Rawls e, de certo modo, do próprio Cass Sunstein járeferido prefira, em princípio, recusar a fundamentalidade aos direitossociais.272

der a uma aplicação indireta da normativa constitucional (pelo fato de mediada pelo legislador e pelainterpretação), haveria perfeitamente como atingir o mesmo objetivo, fundando-se a decisão direta eexclusivamente no direito a moradia do devedor solteiro, como direito fundamental vinculado a

própria dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, a moradia, sempre que restar evidenciadono caso concreto que se cuida de uma moradia indispensável para uma vida com dignidade,encontra-se, em princípio, sempre protegida, independentemente mesmo de qualquer previsão legal,

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valorizando, de tal sorte, a tese da eficácia direta das normas de direitos fundamentais nas relaçõesentre particulares. De qualquer modo, cuida-se de tema aberto a uma série de desenvolvimentos,não sendo o nosso propósito adentrar os meandros da questão. A respeito do tema, v., entre outros,o recente artigo de G. B. Paim, "Bem de família e o princípio constitucional da dignidade da pessoahumana", in: S. G. Porto, Tendências Constitucionais 110 Direito de Família, p. 127-139.270 Cf. L. F. Barzotto, A Democracia na Constituição, p. 193 e ss., aproximando a noção de vidadigna com a de uma vida boa, destacando, com acuidade, que a constituição brasileira não é neutra

(como pretende Dworkin) em relação ao conteúdo da expressão vida boa (ou vida com dignidade),mas, pelo contrario, contem uma determinada concepção a respeito do que é uma vida boa, quenecessita ser extraída do conjunto das normas constitucionais e da(s) concepção (ões) de justiça quelhes são subjacentes.271 Cf. Cass Sunstein, Designing Democracy, p. 235.272 Cf. R. L. Torres, em seu pioneiro estudo "O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais", in:Revista de Direito Administrativo nº 177 (1989), p. 20 e ss., bem como, mais recentemente, no seu

Pg. 107Por outro lado, em que pese eventual divergência a respeito da

fundamentalidade dos direitos sociais de um modo geral e dos limites desua exigibilidade em juízo, constata-se - pelo menos entre nós e emexpressiva parcela da doutrinam (mas também, embora talvez ainda com

menor ênfase) e da jurisprudência 274 - um crescente consenso no que dizcom a plena justiciabilidade da dimensão negativa (defensiva) dos direitossociais em geral e da possibilidade de se exigir em Juízo pelo menos asatisfação daquelas prestações vinculadas ao mínimo existencial, de talsorte que também nesta esfera a dignidade da pessoa humana(notadamente quando conectada com o direito a vida) assume a condiçãode metacritério para as soluções tomadas no caso concreto, o que, de resto,acabou sendo objeto de reconhecimento em decisão recente do nossoSupremo Tribunal Federal.275

texto sobre "A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos", in: R. L. Torres (Org.), Teoria dosDireitos Fundamentais, p. 239. Do mesmo autor, V., ainda, "A Metamorfose dos Direitos Sociais em

Mínimo Existencial", in: I. W. Sarlet (Org.), Direitos Fundamentais Sociais: estudos de direitoConstitucional, internacional e comparado, p. I e ss., bem como por ultimo, sistematizando eatualizando todos os seus escritos sobre o tema, v. O Direito do Mínimo Existencial, Rio de Janeiro:Renovar, 2008. Sobre o mínimo existencial, V., por último, E. Bittencourt Neto, O Direito ao Mínimopara uma Existência Digna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.273 A respeito deste ponto remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8ª ed., p. 296e ss. Tal posicionamento, de resto - importa frisar - essencialmente embasado nas lições de RobertAlexy e Gomes Canotilho, acabou sendo objeto de aceitação e desenvolvimento em númeroexpressivo de trabalhos de excelente qualidade publicados entre nós (para ficarmos apenas nadoutrina nacional), como dão conta, entre outras e para além dos já citados trabalhos de RicardoLobo Torres (o qual, embora refutando a fundamentalidade dos direitos sociais em geral reconhece asindicabilidade do mínimo existencial), os excelentes contributos de A. Krell, Direitos Sociais eControle Judicial no Brasil e na Alemanha, p. 59 e ss., Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dosPrincípios Constitucionais, e M. M. Gouvêa, O Controle Judicial das Omissões Administrativas,

especialmente p.253 e ss. Mais recentemente, v. a contribuição de P. G. C. Leivas, Teoria dos DireitosFundamentais Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, especialmente p. 123 e ss.,vinculando o mínimo existencial a uma teoria das necessidades básicas. No âmbito da doutrinaestrangeira, v., por último, J. M. Soria, "Das Recht auf Sicherung des Existenzminimums", in: JZ, 2005,p. 644 e ss.274 Aqui bastaria remeter ao expressivo n·mero de decisões, inclusive dos Tribunais Superiores(como é o caso do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal), que tem dado - pelomenos de modo geral- efetividade ao direito a saúde na sua dimensão prestacional, superando aconcepção (inicialmente prevalente nestes mesmos Tribunais) de que se estaria em face de normaconstitucional eminentemente programática, no sentido de dependente de interposição do legisladorinfraconstitucional.275 Com efeito, por ocasião do julgamento da ADPF nº 45 MC/DF (decisão proferida em 29.04.04) oRelator, Ministro Celso de Mello, em decisão monocrática e a despeito de prejudicado o mérito(houve suprimento da omissão que deu origem a demanda), não deixou de afirmar enfaticamente a

possibilidade de um controle judicial - agora também em sede de Argüição de Descumprimento - depolíticas publicas na esfera dos direitos sociais (no caso, cuidava-se do direito a saúde),especialmente onde estiverem em causa prestações vinculadas ao direito a vida e a dignidade da

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pessoa humana. Assim, não há como deixar de apontar para a alguma semelhança entre este julgado e o famoso precedente da Suprema Corte Americana (Marbury v. Madison, de 1803), poisneste também, apesar de não ter sido julgado o mérito, restou afirmada a competência para ocontrole jurisdicional da constitucionalidade dos atos dos demais poderes públicos, O que se almeja éque também entre nós o recente precedente venha a resultar em efetivo exercício da competênciado

Pg. 108Neste contexto, vale lembrar, ainda, que o ponto de ligação entre apobreza, a exclusão social e os direitos sociais reside justamente norespeito pela proteção da dignidade da pessoa humana, já que - de acordocom Rosenfeld - "onde homens e mulheres estiverem condenados a viverna pobreza, os direitos humanos estarão sendo violados".276 A respeito dovinculo entre pobreza e dignidade da pessoa humana, importa referir oargumento de que nem sempre a pobreza (apesar de ser um fator limitadorda liberdade individual) implica uma violação da dignidade, que, noentanto, resta configurada sempre que a pobreza resultar em exclusão edéficit efetivo de autodeterminação,277 o que se verifica, em termos gerais,

sempre que as pessoas são forçadas a viverem na pobreza e na exclusão,em função de decisões tomadas por outras pessoas no âmbito dosprocessos políticos, sociais e econômicos.278 A conexão da dignidade dapessoa humana com a problemática da pobreza e exclusão social não selimita, todavia, ao déficit de autodeterminação e a privação do assimchamado mínimo existencial, pois se manifesta igualmente por meio doprocesso de humilhação (e conseqüente perda até mesmo daautoestima279)Supremo Tribunal Federal na seara da efetivação dos direitos sociais, já que, especialmente noconcernente ao direito a saúde, existe um número considerável de precedentes que apontam paraum incremento da atuação jurisdicional. No âmbito do direito comparado, importa registrar que atémesmo um direito fundamental implícito as prestações essenciais a satisfação do mínimo existencialfoi reconhecido na esfera jurisprudencial, como da conta o paradigmático exemplo da Alemanha(onde tal direito foi consagrado inicialmente - já na década de 1950 - pelo Tribunal AdministrativoFederal (Bundesverwaltungsgericht) e posteriormente pelo Tribunal Constitucional Federal(Bundesverfassungsgericht). O mesmo caminho foi - reportando-nos agora a uma ordemconstitucional mais próxima da nossa, seja em termos de direito constitucional posição (é precisolembrar que a Lei Fundamental da Alemanha, salvo raras exceções, não agasalhou expressamentedireitos sociais cm seu texto) trilhado pelo Tribunal Constitucional da Colômbia. o qual também temreconhecido um direito implícito a um mínimo existencial. Para uma aprofundada análise do modelocolombiano e da expressiva jurisprudência do Tribunal Constitucional daquele País, v. especialmenteR. Arango e J. Lemaitre (Dir), Jurisprudencia Constitucional sobre el derecho al mínimo vital, Caracas:Ed. Uniandes, 2002. Analisando a vinculação do mínimo existencial com a dignidade da pessoahumana a luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores, v. também a contribuição de A. P. C.Barbosa, Die Menschenwürde..., op. cit., p. 120 e ss.276. Apud A Corden/K. Duffy, Human dignitiy and social exclusion, in: R. Sykes/P. Alcock (Org.),Developments in european social policy, p. 110. Entre nós, v., por último, A. Cocurutto, Os Princípiosda Dignidade da Pessoa Humana e da Inclusão Social, São Paulo: Malheiros, 2008.277. Cf. S. Baer, "Menschenwürde zwischen Recht, Prinzpip und Referenz", p. 584.278. Neste sentido, v. as ponderações de R. Forst, "Die Würde des Menschen und das Recht auf Rechtfertigung", in: DZPhil. 53 (2005), p. 590.279. Tematizando o problema da auto-estima (na perspectiva da degradação, rebaixamento dapessoa) na perspectiva da dignidade da pessoa humana, v., entre outros, P. Schaber."Menschenwürde und Selbstachtung: ein Vorschlag zum Verständnis der Menschenwürde", texto emPDF disponibilizado via eletrônica, acesso em www.ethik.uzh.chlafe/publikationenl/Schaber-Menschenwuerde.pdf. Vale ressaltar, contudo, que o autor propõe um conceito muito (no nossosentir, demasiadamente) restritivo da dignidade da pessoa humana, aspecto que aqui não serádesenvolvido.

Pg. 109

à qual está sujeito todo aquele afetado pela pobreza extrema e pelaexclusão.280

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Assim sendo e apesar da possibilidade de se questionar a vinculaçãodireta de todos os direitos sociais (e fundamentais em geral) consagradosna Constituição de 1988 com o princípio da dignidade da pessoa humana,não há como desconsiderar ou mesmo negar tal conexão, tanto maisintensa, quanto maior a importância dos direitos sociais para a efetiva

fruição de uma vida com dignidade, o que, por sua vez, não afasta aconstatação elementar de que as condições de vida e os requisitos parauma vida com dignidade constituam dados variáveis de acordo com cadasociedade e em cada época,281 o que harmoniza com a já destacadadimensão histórico-cultural da própria dignidade da pessoa humana e,portanto, dos direitos fundamentais (inclusive sociais) que lhe sãoinerentes.

Por derradeiro, sem prejuízo de outros tantos exemplos que podemser citados, os assim denominados direitos políticos - direitos de cidadania enacionalidade - igualmente apresentam vinculo direto e indissociável com aidéia de dignidade da pessoa. Se um Estado democrático que mereçaostentar esta condição pressupõe respeito e promoção da dignidade dapessoa humana282 também os direitos fundamentais a nacionalidade e osassim denominados direitos políticos ativos e passivos, constituem dealgum modo exigência e decorrência da dignidade.283 Com efeito, aliberdade pessoal, como expressão da autonomia da,pessoa humana (e,portanto, de sua dignidade) reclama a possibilidade concreta departicipação na formação da vontade geral,284 não sendo a toa que PeterHäberle sustenta280. Sobre o vinculo entre pobreza, humilhação e dignidade humana, v., entre outros, B. K.Goldewijk, "Powerty, Dignity and Humiliation. On powerty as a violation of human rights and accessto justice", texto apresentado pelo autor no Fórum Mundial de Direitos Humanos, Nantes, França, em

Maio de 2004. Sobre o tema pobreza e direitos humanos, v., por todos, T. Pogge, World Powertv andHunam Rights, Oxford: Polity Press and Blackwell, 2002, bem como, T. Pogge (Ed.), Freedom fromPoverty as a Human Right, Paris-Oxford: UNESCO-Oxford University Press, 2007, contendo umexpressivo e atualizado conjunto de estudos sobre o tema.281. Cf. a oportuna menção de F. Moderne, la dignité de la personne..., p. 220. Neste sentido, v. porúltimo, E. Bittencourt Neto, O Direito ao mínimo para uma existência digna, p. 117 e ss.282. A respeito deste ponto, v. especialmente a recente contribuição de J. Afonso da Silva, Adignidade da pessoa humana..., p. 89 e ss., revelando, já no título do ensaio, que a dignidade dapessoa humana constitui o valor supremo da democracia.283. Aqui vale consignar a visão crítica de M. Herdegen, Neuarbeitung von Art. 1 Abs. 1, p. 15,recomendando cautela no tocante ao reconhecimento do vinculo entre dignidade da pessoa humanae os direitos de participação democrática, afirmando - no nosso sentir de modo um tanto exagerado -que a dedução direta de posições específicas concretizando o princípio democrático, poderiaelastecer demasiadamente a dignidade e comprometer a sua utilidade nesta esfera.

284. Sobre as liberdades políticas e sua prioridade numa sociedade democrática, v. a paradigmáticacontribuição de J. Rawls, O Liberalismo Político, especialmente p. 343 e ss., o que não significa queestejamos a concordar com a primazia estabelecida pelo autor, aspecto que aqui não iremosdesenvolver.

Pg. 110que democracia e direitos políticos operam simultaneamente comoconseqüência organizatória e como garantia política da dignidade dapessoa humana, de tal sorte que uma exclusão arbitrária de determinadosgrupos de cidadãos (em função de sua raça, religião, etc.) no que diz com oexercício de seus direitos políticos também configuraria uma violação desua dignidade humana285. Assume relevo, nesta linha de entendimento, a

lição de Celso Lafer, no sentido de que a inserção do indivíduo (pessoa)numa determinada ordem estatal é crucial para que lhe sejam reconhecidose assegurados os direitos fundamentais (como, de resto, a própria proteção

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da dignidade), de tal sorte que o direito a nacionalidade e cidadania (esta tida como o exercício dos direitos políticos) pode ser considerada, de certaforma, como o direito a ter direito.286 Que este direito a ter direitos resultaesvaziado se não for também compreendido como o direito a ter direitosefetivos, apontando para a intima conexão entre a dignidade da pessoa (e,

de resto, dos direitos fundamentais de modo geral) com o direito a umatutela jurisdicional efetiva e todos os seus necessários desdobramentos, nosparece evidente, ainda que aqui não possa ser desenvolvido.287 Outroconjunto de direitos e garantias fundamentais que guarda intima relaçãocom a dignidade da pessoa humana é composto pelos direitos e garantiasprocessuais, ainda que também aqui seja indispensável atentar paraimportantes diferenciações no que diz com o "se" e o "como" (ou seja, aintensidade) da vinculação. Mediante um olhar para o direito comparado,mais uma vez se revelam dignos de nota os desenvolvimentos no âmbito dadoutrina e jurisprudência constitucional alemãs. Com efeito, em decisãoparadigmática proferida em 8 de janeiro de 1959, o Tribunal ConstitucionalFederal da Alemanha sublinhou, em síntese apertada, que constituiexigência da dignidade da pessoa humana que o poder público nãodisponha de forma arbitrária dos direitos da pessoa, ou seja, de que oindivíduo, no âmbito do processo, não pode ser tratado como mero objetoda decisão judicial, mas sim, deve ter assegurada a possibilidade de, comosujeito, se manifestar e exercer influência na esfera do processodecisório.288

285. cf. P. Häberle, "A Dignidade Humana e a Democracia Pluralista - seu nexo interno", in: I. W.Sarlet (org.), Direitos Fundamentais, lnformática e Comunicação. Algumas Aproximações, PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 11 e ss. No mesmo sentido, v., ainda, K. Stern,"DieUnantastbarkeit und der Schutz der Menschenwürde", in: Das Staatsrecht der Bundesrepublik

Deutschland, vol. IV/1, München: C. H. Beck, 2006, p. 85.286. Cf. C. Lafer, Reconstrução dos Direitos Humanos, p. 146 e ss., seguindo a lição de H. Arendt.287. Sobre o tema, notadamente analisando o direito a tutela jurisdicional efetiva a luz da dignidadeda pessoa humana e da teoria dos direitos fundamentais, v. o recente e alentado estudo de L. G.Marinoni, Técnica Processual e Tutela dos Direitos, especialmente p. 165 e 55.288 cf. BVerfGE 9, 89 (95), bem como as mais recentes decisões encontradas em BVerfGE 84. 188(190) e BVerfGE 89 (28 (35). apenas para mencionar alguns exemplos.

Pg. 111Sem que aqui se vá aprofundar o ponto, importa registrar que esta

também tem sido a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal emdiversas hipóteses, como dão conta dois exemplos emblemáticos que bemilustram esta tendência, em especial no que diz com o alcance dos direitos

e garantias de cunho processual penal, onde mais evidente ocomprometimento da liberdade e dignidade da pessoa. No primeiro caso,289

o Supremo Tribunal Federal enfatizou a conexão entre a garantia darazoável duração do processo (artigo 5º, inciso LXXVIII, da ConstituiçãoFederal) e a dignidade da pessoa humana, sublinhando que "a duraçãoprolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, demodo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa- considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) -significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma einspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País...".

  Todavia, na mesma decisão, o Tribunal consignou que a concessão da

liberdade provisória por excesso de prazo apenas se impõe quando amorosidade é exclusivamente imputável ao aparelho Judiciário, não

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derivando de atitudes de caráter procrastinatório causalmente atribuíveisao réu, de tal sorte que não é o decurso do prazo em si, mas a sua causa(culpa do poder publico) e a condição do réu como objeto da ação estatalque justificam a invocação da dignidade da pessoa humana. Já no outrocaso, trata-se situação envolvendo a anulação de processo da competência

do Tribunal do Júri em virtude de constrangimento causado por não teremsido esgotados - na acepção do Supremo Tribunal Federal - todos os meiosdisponíveis para a citação pessoal do réu, medida indispensável paraassegurar o exercício do direito de defesa, que, de acordo com a tesesustentada pelo Ministro Relator, Gilmar Mendes, "constitui pedra angulardo sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma dasexpressões do princípio da dignidade da pessoa humana". Além disso - namesma decisão - invocou-se a doutrina alemã, no caso, do festejadocomentarista da Lei Fundamental da Alemanha, Günther Dürig, advogandoque "a submissão do homem a um processo judicial indefinido e suadegradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio daproteção judicial efetiva ("rechtliches Gehor") e fere o princípio dadignidade da pessoa humana".290

Neste contexto, expressando a noção de pessoa como sujeito dedireitos e obrigações, talvez o mais correto fosse afirmar que, comfundamento na própria dignidade da pessoa humana, poder-se-á falartambém289. Cf., por todos, o Habeas Corpus nº 87.676/ES, relatar Ministro Cezar Peluso, julgado em06.05.2008.290. Cf. Habeas Corpus nº 88.548/SP, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 18.03.2008.

Pg. 112em um direito fundamental de toda a pessoa humana a ser titular de

direitos fundamentais que reconheçam, assegurem e promovam justamente a sua; condição de pessoa (com dignidade) no âmbito de umacomunidade.291 Aproxima-se desta noção - embora com ela evidentementenão se confunda - o assim denominado princípio da universalidade dosdireitos fundamentais,292 que, inobstante não consagrado expressamentepelo Constituinte de 1988 e a despeito da redação do caput do artigo 5º danossa Carta Magna (atribuindo aos brasileiros e estrangeiros residentes dopaís) a titularidade dos direitos fundamentais, reclama, todavia - como játem decidido por várias vezes o nosso Supremo Tribunal Federal293 - umaexegese de cunho extensivo, justamente em homenagem ao princípio da

dignidade da pessoa humana, no sentido de que pelo menos os direitos egarantias fundamentais diretamente fundados na dignidade da pessoapodem e devem ser reconhecidos a todos, independentemente de suanacionalidade, excepcionando-se, a evidência, aqueles direitos cujatitularidade depende de circunstâncias específicas e que, de regra, nemmesmo todos os nacionais de um determinado Estado podem exercer,294

como ocorre especialmente com os direitos políticos (ativos e passivos) oumesmo com os direitos dos trabalhadores.295

293. Vale lembrar aqui, a título ilustrativo, o Acórdão proferido no processo de extradição nº 633/CH,tendo como Relator o Ministro Celso de Mello (publicado no dia 06.04.2001), onde restou consignadoque "O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-Io aum estado de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa

humana e que lhe confere a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quaisavulta, por sua insuperável importância, a garantia do due process of law".

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294. Neste contexto, J. Miranda, Manual..., vol. IV, p. 217, reconhecendo o princípio da universalidadeno direito constitucional português, averba que "todavia, há direitos que não são de todas aspessoas, mas apenas de algumas categorias, demarcadas em razão de fatores diversos, sejampermanentes, sejam relativos a certas situações..,".295. Aqui, em verdade - assim como na já citada decisão do nosso Supremo Tribunal Federalversando sobre a extradição - também se cuida de um exemplo de aplicação da máxima na dúvidaem prol da dignidade, e, nesta quadra, da interpretação das próprias normas constitucionais a luz do

princípio da dignidade da pessoa humana, notadamente quando se cuida de ampliar proteção eâmbito de aplicação dos direitos fundamentais. Nesta linha, situa-se decisão do TribunalConstitucional da Espanha (STC 95/2000, de 10.04.2000), que, na esteira de precedentes do próprio

 Tribunal, reafirmou o entendimento de que os estrangeiros gozam (na Espanha), em condiçõesplenamente equiparáveis

Pg. 112De todos os exemplos colacionados - que de longe não esgotam o rol

dos direitos fundamentais embasados na dignidade da pessoa humana - játransparece a sua referida dupla função defensiva e prestacional (negativae positiva), inclusive na condição de posições jurídicas subjetivas.

Com efeito, tal caráter dúplice manifesta-se não apenas pela

circunstância - já suficientemente demonstrada - de que tanto os assimdenominados direitos de defesa (ou direitos negativos), mas também osdireitos a prestações fáticas e jurídicas (direitos positivos) correspondem,ao menos em regra, as exigências e constituem - embora em maior oumenor grau - concretizações da dignidade da pessoa humana, mas tambémpelo fato de que da dignidade decorrem, simultaneamente, obrigações derespeito e consideração (isto é, de sua não violação) mas também um deverde promoção e proteção, a ser implementado inclusive - consoante járeferido relativamente aos assim designados direitos sociais - por medidaspositivas não estritamente vinculadas ao mínimo existencial, aspecto quevoltará a ser referido no próximo segmento.

4.3. A abertura material do catalogo constitucional dos direitosfundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana comonorma de direitos fundamentais

Outro aspecto de transcendental importância para a compreensão dopapel cumprido (ou a ser cumprido) pelo princípio da dignidade da pessoahumana, designadamente na sua conexão com os direitos fundamentais,diz com sua função como critério para a construção de um conceitomaterialmente aberto de direitos fundamentais na nossa ordemconstitucional. Com efeito, não é demais relembrar que a Constituição de1988, na esteiraaos espanhóis, daqueles direitos que pertencem a pessoa como tal e que resultam imprescindíveis

para a garantia da dignidade da pessoa humana ("Ios extranjeros gozan en nuestro país, encondiciones plenamente equiparables aIos espafioles, de aquellos derechos que pertenecen a lapersona en cuanto tal y que resultan imprescindibles para la garantia de la dignidad humana"), Talentendimento, recentemente reiterado (ainda na Espanha) na Sentença nº 95/2003, onde restoureconhecida a extensão do direito a justiça gratuita também para os estrangeiros, por seu turno,parece expressar a tendência majoritária da doutrina e da jurisprudência no Direito Comparado,também por influência da internalizarão dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos,do que da conta, por exemplo, o Acórdão nº 208/04, de 24,03,04, do Tribunal Constitucional dePortugal, onde - com base na dignidade da pessoa humana - foi outorgada a dispensa da taxa

 judiciária para cidadã brasileira que pretendia propor ação trabalhista. Relativamente a este ponto,importa, ainda, consignar que a extensão da assistência judiciária gratuita a qualquer pessoa (pelomenos em princípio) resulta da necessidade de se assegurar, a qualquer pessoa - para além de umdireito a ter direitos - o direito a direitos fundamentais efetivos, notadamente no concernente aosdireitos diretamente ancorados na dignidade da pessoa.

pg. 114

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da evolução constitucional pátria desde a proclamação da República eamparada no espírito da IX emenda da Constituição norte-americana,consagrou a idéia da abertura material do catálogo constitucional dosdireitos e garantias fundamentais. Em outras palavras, isto quer dizer quepara além daqueles direitos e garantias expressamente reconhecidos como

tais pelo Constituinte, existem direitos fundamentais assegurados emoutras partes do texto constitucional (fora do Título II), sendo tambémacolhidos os direitos positivados nos tratados internacionais em matéria deDireitos Humanos. Igualmente - de acordo com a expressa dicção do artigo50, § 2º, da nossa Carta Magna - foi chancelada a existência de direitosdecorrentes do regime e dos princípios da nossa Constituição, assim como arevelação de direitos fundamentais implícitos, subentendidos naquelesexpressamente positivados. 296 Sem que se vê aqui aprofundar todas asfacetas da problemática, nem mesmo no que diz com a busca e justificaçãodos diversos exemplos que poderiam ser referidos, importa que se deixeconsignado como o princípio da dignidade da pessoa humana alcançaoperatividade neste contexto.

Nesta quadra, um dos maiores desafios para quem se ocupa doestudo da abertura material do catalogo de direitos e garantias é

  justamente o de identificar quais os critérios que podendo servir defundamento para a localização daquelas posições jurídico-fundamentaiscomo tais não expressamente designadas pelo Constituinte. À evidênciaque a dificuldade varia de acordo com o caso específico em exame. Assim,apenas a título exemplificativo, a justificação para considerar as normas arespeito da proteção do meio ambiente como sendo - em que peseprevistas no artigo 225 da Constituição - normas de direito fundamental,

certamente apresentará menor grau de dificuldade, ou, pelo menos, exigirárazões distintas, que a fundamentação para justificar um direitofundamental à motivação das decisões judiciais e administrativas,igualmente positivados fora do Título II, caso se pretenda - como cremos serpossível - reconhecer que se cuida aqui também de normas de cunho

 jusfundamental.Certo é que a tarefa, por vezes árdua, de identificar (e, acima de tudo,

  justificar esta opção) posições fundamentais em outras partes daConstituição, bem como a possibilidade de reconhecer a existência dedireitos fundamentais implícitos e/ou autonomamente desenvolvidos apartir do regime e dos princípios da nossa Lei Fundamental, passa

necessaria-296. Sobre o sentido e significado do artigo 5º, § 2º, da nossa Constituição, bem como a respeito daclassificação dos direitos e garantias fundamentais a partir deste preceito da nossa Carta Magna, v. onosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 78 e ss.

Pg. 115mente pela construção de um conceito material de direitos fundamentais.Assim, se com relação às normas de direitos fundamentais integrantes do

  Título II se admite que vigora uma presunção de que sejam normasconstitucionais (e fundamentais) em sentido material,297 no que diz com aidentificação e fundamentação de direitos implícitos e/ou direitospositivados em outras partes da Constituição, não se poderá dispensar um

exame acurado no sentido de que sejam guindadas à condição de direitosfundamentais (compartilhando, de tal sorte, do regime reforçado do qual

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estes gozam na nossa ordem constitucional) apenas posições jurídicasimplícita ou expressamente consagradas que efetivamente sejam de talsorte relevantes no que diz com seu conteúdo e significado, a ponto demerecerem o status de direitos fundamentais, em sentido material e formal,ou mesmo apenas material, quando for este ocaso. 298

Levando, contudo, em conta que - de modo especial em face doelevado grau de indeterminação e cunho polissêmico do princípio e daprópria noção de dignidade da pessoa - com algum esforço argumentativo,tudo o que consta no texto constitucional pode - ao menos de formaindireta - ser reconduzido ao valor da dignidade da pessoa, convém alertarque não é, à evidência, neste sentido que este princípio fundamentaldeverá ser manejado na condição de elemento integrante de umaconcepção material de direitos fundamentais, pois, se assim fosse, toda equalquer posição jurídica estranha ao catalogo poderia (em face de umsuposto conteúdo de dignidade da pessoa humana), seguindo a mesmalinha de raciocínio, ser guindada à condição de materialmente fundamental.

  Também em função da abertura e indeterminação da noção dedignidade da pessoa humana, é preciso compreender que, no contexto daora enfrentada abertura do catalogo de direitos fundamentais, asreivindicações fundadas na dignidade, tal como bem aponta Emil Sobottka,"justa-297. A respeito da ausência de identidade entre a constituição formal e material, mas reconhecendo,na esteira da doutrina majoritária, a necessidade de se presumir a materialidade constitucional (efundamental) das normas inseridas na Constituição formal, v. a lição de J. Miranda, Manual de DireitoConstitucional, vol. II, p. 40 e ss., sustentando, ainda (Manual..., vol. IV. p. 9), coerente com a linha depensamento adotada, que os direitos fundamentais formalmente consagrados na Constituiçãotambém o são em sentido material.298. É o que se poderá afirmar, na esteira da doutrina mais moderna, em relação aos direitos

positivados em tratados internacionais de Direitos Humanos, recepcionados, com hierarquiaconstitucional (material, apenas, por não insertos na Constituição formal), ainda que não hajaconsenso com relação à hierarquia no direito interno, notadamente pela resistência ainda encontradano STF, que continua - embora não de forma unânime - a sustentar a paridade entre tratado e lei.Sobre este ponto, v. entre outros, especialmente F. Piovesan. Direitos Humanos e o DireitoConstitucional Internacional, especialmente p. 73 e ss., L. R. Barroso, Interpretação e Aplicação daConstituição, p. 15 e ss., C. A. Mello. O § 2º do art. 5º da Constituição Federal, in R. L. Torres (Org.)

 Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 17 e ss., e, mais recentemente. G. R. B. Galindo, TratadosInternacionais de Direitos Humanos e Constituição Brasileira, especialmente p. 137 e ss.

 ____________________________________________________________________________  _ Pg. 116mente por sua diversidade, expandem muito o leque de possibilidades",299 o

que, de resto, já se pode constatar no que concerne ao alentado ediversificado elenco de direitos fundamentais expressamente consagradosna Constituição, mas também guarda relação com a problemática oraenfrentada, qual seja, das possibilidades e limites em termos doreconhecimento de direitos fundamentais para além dos que foram objetode expressa previsão pelo Constituinte. Neste contexto, faz sentidocolacionar a concepção subjacente ao pensamento de Laurence Tribe, nosentido de que a dignidade (assim como a Constituição) não deve sertratada como um espelho no qual todos vêem o que desejam ver, 300 penade a própria noção de dignidade e sua força normativa correr o risco de ser

banalizada e esvaziada.301

Com efeito, não é a toa que, a partir daobservação das hipóteses em que violações da dignidade foram esgrimidasna esfera judicial, se chegou a afirmar que quanto mais elevado o valor que

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tem sido atribuído a dignidade, mais triviais os objetivos para os quais temsido invocada.302 Assim,299. Cf. E. A. Sobottka, "Dignidade da pessoa humana e o décimo segundo camelo - sobre os limitesda fundamentação de direitos", in: VERITAS v. 53, n.2, abr./jun. 2008. p 116.300. Cf. L. H. Tribe e M. G. Dorf, On Reading the Constitution, p. 7, indagando se a Constituição ésimplesmente um espelho no qual cada um enxerga o que deseja ver (Is the Constitution simply a

mirror in which one sees what one wants to see?).301. Convém, quanto a este ponto, tomar a sério a advertência de P. Häberle, Menschenwürde alsGrundlage..., p. 823, recomendando um uso não inflacionário da dignidade e repudiando a utilizaçãoda dignidade de modo panfletário e como fórmula vazia de conteúdo. Neste sentido, por mais que sepossa afirmar que, em matéria de dignidade e direitos fundamentais, seja melhor pecar peloexcesso, não há como desconsiderar o fato de que o recurso exagerado e sem qualquerfundamentação racional a dignidade - tal como vez por outra ocorre também entre nós -efetivamente pode acabar por contribuir para a erosão da própria noção de dignidade como valorfundamentalismo da nossa ordem jurídica. Aqui poderiam ser enquadradas, apenas em caráterexemplificativo e respeitando a nobre intenção dos prolatores da decisão - alguns julgados ampliandoem demasia o significado da dignidade da pessoa humana, para afastar a impenhorabilidade dealguns bens, como no caso dos aparelhos de televisão, telefones, salvo, é claro, circunstânciasespecialíssimas impostas pelo caso concreto. Pelo menos sujeito a controvérsias é o entendimento,sustentado pela 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do DF, no Julgamento da Apelação Cível nº

51.159-99, em Acórdão relatado pelo Des. Valter Xavier, afirmando que a cobrança de juros acima dolimite constitucional de 12% ao ano constitui prática ofensiva a dignidade da pessoa humana,notadamente em se generalizando a afirmação. É claro que a prática da usura, em determinadonível, notadamente quando assume cunho extorsivo, poderá, dadas as circunstâncias do caso,configurar ofensa a dignidade. Da mesma forma, não se pretende afastar a viabilidade do argumentode que uma legislação permissiva de juros abusivos, possa acarretar situações incompatíveis com asexigências da dignidade. Todavia, acreditamos que se possa questionar a tese de que a simplescobrança de juros acima do limite constitucional seja, em princípio, ofensiva a dignidade,especialmente para o efeito de demonstrar um possível uso inflacionário da dignidade.302. Cf. G. Frankenberg, Autoritat und Integration, p. 272-3, referindo exemplos da vida forensealemã, como ocorreu com uma demanda intentada por um grupo de juízes contra alteraçõesintroduzidas no âmbito da denominação de certos cargos e funções, ou mesmo de advogados queinexitosos assim como os seus colegas magistrados - sustentaram a tese da inconstitucionalidade daobrigação de usar a toga, por ofensiva a sua dignidade. Outro caso colacionado pelo autor foi o do

cidadão que processou a empresa telefônica pelo fato de que a conta - em função do software doprocessador de texto - escrevia, em "evidente" violação da dignidade, a letra "ö" como "oe".

Pg. 117resulta evidente (também neste contexto) que nem mesmo em nome dadignidade, se pode dizer (ou fazer) qualquer coisa.303 O que se pretendedemonstrar, neste contexto, é que o princípio da dignidade da pessoahumana assume posição de destaque, servindo como diretriz material paraa identificação de direitos implícitos (tanto de cunho defensivo comoprestacional) e, de modo especial, sediados em outras partes daConstituição. Cuida-se, em verdade, de critério basilar, mas não exclusivo,

 já que em diversos casos outros referenciais podem ser utilizados (como,

por exemplo, o direito a vida e a saúde na hipótese do meio ambiente, oumesmo a ampla defesa e os recursos a ela inerentes, no caso dafundamentação das decisões judiciais e administrativas). Assim, o fato éque - e isto temos por certo - sempre que se puder detectar, mesmo paraalém de outros critérios que possam incidir na espécie, estamos diante deuma posição jurídica diretamente embasada e relacionada (no sentido deessencial a sua proteção) a dignidade da pessoa, inequivocamenteestaremos diante de uma norma de direito fundamental, sem desconsiderara evidência de que tal tarefa não prescinde do acurado exame de cadacaso.

Muito embora não se possa falar de um limite previamente definidono que diz com a identificação de direitos fundamentais implícitos oupositivados em outras partes da Constituição, também é correto afirmar

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que tal atividade reclama a devida cautela por parte do intérprete (já quede atividade hermenêutica se cuida), notadamente pelo fato de estar-seampliando o elenco de direitos fundamentais da Constituição com asconseqüências práticas a serem extraídas, não se devendo, ademais,desconsiderar o risco - a exemplo do que já foi referido com relação à

própria dignidade - de uma eventual desvalorização dos direitosfundamentais, já apontada por parte da doutrina.304 Para além de servir decritério de justificação da fundamentalidade material de direitos positivadosao longo do texto constitucional e de reconhecimento de direitos implícitos(no sentido de subentendidos nos já expressamente consagrados), resta aindagação se do princípio da dignidade da pessoa - sem qualquer outroreferencial adicional - podendo303. Reportamo-nos, mais uma vez ao magistério de L. L. Streck, (v. nota de rodapé nº 172, supra).304. Referindo uma tendência para a panjusfundamentalização, no âmbito de uma inflação no campodo reconhecimento de novos direitos fundamentais, advertindo, neste contexto, para os riscos deuma banalização, v. o contributo de J. Casalta Nabais, Algumas Reflexões Críticas sobre os DireitosFundamentais, in: AB VNO AD OMNES - 75 anos da Coimbra Editora, p. 980 e ss. Neste sentido,

também aponta J. Rawls, O Liberalismo Político, p. 350, sustentando a necessidade de limitar-se "asliberdades aquelas que são verdadeiramente essenciais", pena de correr-se o risco de umafragilização da proteção das liberdades mais relevantes.

Pg. 118ser deduzidos (no sentido de desenvolvidos hermeneuticamente) direitosfundamentais (no sentido de posições subjetivas jusfundamentais)autônomos.

A nós parece que sim, na esteira, Aliás, do que já deixamos anteverem outra oportunidade.305 Com efeito, ainda que nos tenhamos posicionadono sentido da inexistência de um direito fundamental a dignidade (comoalgo que possa ser objeto de concessão pela ordem estatal ou comunitária),

nada impede - em que pesem as respeitáveis posições em sentidocontrário306 - que do princípio da dignidade da pessoa humana se possamdeduzir autonomamente - sem qualquer referência direta a outro direitofundamental - posições jurídico-subjetivas fundamentais.

Mesmo assim, não há como desconsiderar a circunstância de que,  justamente pelo fato de serem os direitos fundamentais, ao menos emregra, exigências e concretizações em maior ou menor grau da dignidadeda pessoa, a expressiva maioria dos autores e especialmente das decisões

 judiciais acaba por referir a dignidade da pessoa não como fundamentoisolado, mas vinculado a determinada norma de direito fundamental. Não éà toa que juristas do porte de Ernst Benda chegaram a afirmar que osdireitos e garantias fundamentais constituem garantias específicas dadignidade da pessoa humana, da qual são - em certo sentido - merodesdobramento. 307

Nesta linha de raciocínio, sustenta-se que o princípio da dignidade dapessoa humana, em relação aos direitos fundamentais, pode assumir, masapenas em certo sentido, a feição de lex generalis, já que, sendo suficienteo recurso a determinado direito fundamental (por sua vez já impregnado dedignidade), inexiste, em princípio, razão para invocar-se autonomamente adignidade da pessoa humana, que, no entanto, não pode ser consideradacomo sendo de aplicação meramente subsidiária, até mesmo pelo fato de

que uma agressão a determinado direito fundamental simultaneamentepoderá constituir ofensa ao seu conteúdo em dignida-305. Cf. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 109.

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306. Questionando a possibilidade da dedução direta de direitos subjetivos do princípio da dignidadeda pessoa humana, encontramos, dentre outros, a lição de W. Brugger, Menschenwürde,Menschenrechte, Grundrechte, p. 19 e ss., consignando-se não ser esta a posição majoritária dadoutrina e da jurisprudência alemãs, que, de modo geral, sustenta a dupla dimensão da dignidade dapessoa humana como princípio e direito fundamental.307. Cf. E. Benda. Menschenwürde und Persönlichkeitsrecht, in: Benda/Maihofer/Vogel (Org.),Handbuch des Verfassungsrechts, vol. I, p. 166. Também este parece ser o entendimento, na

doutrina francesa, de D. Rousseau, Les libertés individuelles et la dignité de la personne, p. 70, aosustentar que a dignidade, como realidade jurídica concreta, não existe a não ser por meio de suarealização por cada um dos direitos fundamentais.

Pg. 119de.308 A relação entre a dignidade da pessoa humana e as demais normasde direitos fundamentais não pode, portanto, ser corretamente qualificadacomo sendo, num sentido técnico-jurídico, de cunho subsidiário, mas sim,caracterizada por uma substancial fundamentalidade que a dignidadeassume em face dos demais direitos fundamentais.309 É neste contexto quese poderá afirmar, na esteira de Geddert-Steinacher, que a relação entre adignidade e os direitos fundamentais é uma relação sui generis, visto que a

dignidade da pessoa assume (em muitos casos!) simultaneamente a funçãode elemento e medida dos direitos fundamentais, de tal sorte que, emregra, uma violação de um direito fundamental estará vinculada com umaofensa à dignidade da pessoa.310

 Tal constatação não afasta, em princípio, a conveniência de que -  justamente em função do alto grau de abstração e indeterminação quecaracteriza especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana,constituindo os direitos e garantias fundamentais concretizações daquele -diante de um caso concreto, busque-se inicialmente sondar a existência deuma ofensa a determinado direito fundamental em espécie, não apenaspelo fato de tal caminho se mostrar o mais simples, mas acima de tudo pelaredução da margem de arbítrio do intérprete, tendo em conta que em setratando de um direito fundamental como tal consagrado pelo Constituinte,este já tomou uma decisão prévia - vinculativa para todos os agentesestatais e particulares - em prol da explicitação do conteúdo do princípio dadignidade da pessoa naquela dimensão específica e da respectivanecessidade de sua proteção, seja na condição de direitos de defesa, sejapela admissão de direitos a prestações fáticas ou normativas. Isto, contudo,não significa que uma eventual ofensa a determinado direito fundamentalnão possa constituir também, simultaneamente, violação do âmbito deproteção da dignidade da pessoa humana, de modo que esta poderá

sempre servir de fundamento autônomo para o reconhecimento de umdireito subjetivo, neste caso de cunho defensivo.311

Os desenvolvimentos precedentes autorizam que se receba comsimpatia a proposta de uma "pragmatização" do conceito de dignidade da308. Neste sentido, a lição de Höfling, in: M. Sachs (Org.), Grundgesetz, p, 119.309. Cf. a oportuna referência de H, Dreier, Art. 1 I GG, in: H. Dreier (Org), Grundgesetz Kommentar,p.127.310. Cf. T. Geddert-Steinacher, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, p. 166, destacando, ainda,que a dignidade da pessoa humana, na condição de princípio jurídico fundamental, atua - como járeferido alhures - como princípio regulativo da interpretação constitucional.311. Vale frisar aqui que o âmbito de proteção da dignidade da pessoa não se encontra coberto demodo igual e isento de lacunas, já que a dignidade possui, consoante já destacado, umanormatividade autônoma. Neste sentido, v. Udo Di Fabio, Der Schutz der Menschenwürde durch

Allgemeine Programmgrundsätze, p, 38.

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 ____________________________________________________________________________  _ Pg. 120pessoa humana, naquilo em que é possível obter um ganho em termos declareza mediante uma adequada diferenciação das esferas específicas de

proteção dos diversos direitos fundamentais individualmenteconsiderados.312 Com efeito, a cláusula geral da dignidade da pessoahumana, em termos gerais, acaba sendo viabilizada (concretamenterealizada) em termos técnico-jurídicos por meio dos direitos fundamentaisem espécie, que, por dizerem respeito a conceitos semânticos que podem,em regra, ser reconstruídos com maior facilidade, acaba mesmosimplificando a retórica vaga e, em alguns casos, até mesmo vazia de maiorconteúdo da dignidade da pessoa humana, que, todavia, não perde acondição de garantia autônoma.313

Por sua vez, vale frisar, nada impede (antes pelo contrario, tudoimpõe) que se busque, com fundamento direto na dignidade da pessoahumana, a proteção - mediante o reconhecimento de posições jurídico-subjetivas fundamentais - da dignidade contra novas ofensas e ameaças,em princípio não alcançadas, ao menos não expressamente, pelo âmbito deproteção dos direitos fundamentais já consagrados no textoconstitucional.314 Para além do já referido reconhecimento de um direitogeral ao livre desenvolvimento da personalidade, diretamente deduzido doprincípio da dignidade da pessoa humana (já que o ser sujeito (titular) dedireitos é, a evidência, inerente a própria dignidade e condição de pessoa),tal ocorre, apenas para citar outro exemplo dos mais contundentes, com aproteção da pessoa humana, em virtude de sua dignidade, contra excessos

cometidos em sede de manipulações genéticas e até mesmo afundamentação de um novo direito a identidade genética do ser humano,315

ainda não312. Cf. S. Rixen, "Oie Würde und Integrität des Menschen", in: Handbuch der EuropäischenGrundrechte, p, 338 e ss.,313. Cf., ainda, S, Rixen, "Oie Würde und Integrität des Menschen", op. cit., especialmente p. 346-47,314. Peler Häberle, Die Menschenwiürde als Grundlage.." p, 844, nos lembra, neste contexto, que odesenvolvimento pretoriano ou mesmo a nova formulação textual de direitos fundamentaisespecíficos pode ser vista como uma atualização do postulado básico da proteção da dignidade dapessoa humana em face de novas ameaças,315. Vale registrar aqui a lição de J. C. Gonçalves Loureiro, O Direito à Identidade Genérica do SerHumano, especialmente p. 351 e ss., inobstante admitindo outras possibilidades de fundamentaçãode um direito à identidade genética, M, Koppernock, Das Grundrecht auf bioethischeSelbstbestimmung, 1997, por sua vez, fala em um direito fundamental à autodeterminação bioética,diretamente fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao livredesenvolvimento da personalidade (este, por sua vez" também expressão da dignidade),Especificamente sobre as relações entre o genoma humano, a dignidade aos direitos fundamentais,v., ainda, dentre tantos que já se ocuparam do tema no âmbito da doutrina francesa, B, MathieuGénomf Humaine et Droits Fondamenteaux, Paris, Econômica, 2000, Também em língua portuguesa,indispensável o contributo de P. Otero, Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do SerHumano, Coimbra: Almedina, 1999. Para além disso, bem lembrando a necessidade de evitar uma"biologização" da pessoa humana, no contexto das ameaças acarretadas pelo uso das novastecnologias, v., P. Pedrot La dignitéE de la personne humaine a l'épreuve des technologiesbiomédicales, in: P, Pedrot (Dir.), Éthique, Droit et Dignité de la Personne,

Pg. 121contemplado como tal (ao menos não expressa e diretamente) no nosso

direito constitucional posição.

316

Também um direito à identidade pessoal(neste caso não estritamente referido a identidade genética e sua proteção,no caso, contra intervenções no genoma humano) tem sido deduzido do

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princípio da dignidade da pessoa humana, abrangendo inclusive o direito aoconhecimento, por parte da pessoa, da identidade de seus genitores. 317

Nesta mesma senda, reportando-se expressamente à conexão entre adignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, já assume ares deconsenso, também entre nós, o reconhecimento de um direito a livre

orientação sexual, do que dão conta, em caráter meramente ilustrativo, aproteção jurídica das uniões homoafetivas e todas as conseqüências que adoutrina e jurisprudência daí já tem extraído.318 Já no âmbito dos assimdesignados direitos sociais, assume relevo, entre outros exemplos que po-p. 62. Entre nós, e explorando com maestria a perspectiva jurídico-penal, v., por todos. P. V. S. Souza,Bem Jurídico Penal e Engenharia Genética Humana, São Paulo: RT. 2004. Sobre a identidade genéticacomo direito fundamental. v., no direito brasileiro, especialmente a instigante dissertação de S. R.Petterle, O Direito Fundamental à Identidade Genética na Constituição Brasileira, Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2007. assim como a mais recente contribuição de R. da Rocha. Direito a Vida ea Pesquisa com células-tronco, São Paulo: Elsevier, 2008.316. Cumpre registrar aqui a previsão expressa feita pelo Constituinte de 1988 (art. 225, º 1º. incisoII, da Constituição) no sentido de impor ao poder público a tarefa de "preservar a diversidade e aintegridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas a pesquisa e

manipulação de material genético." Assim, não obstante - tal como frisado - não haja referênciadireta a um direito a identidade genética no direito constitucional posição brasileiro, certo é que aexpressão patrimônio genético (apesar de se cuidar de norma versando sobre a proteção do meioambiente) pode ser lida como abrangendo o genoma humano, de tal sorte que nos parece legitimoconcluir que, a partir de uma exegese sistemática, que leve em conta tanto o preceito ora ventilado,quanto o princípio da dignidade da pessoa humana, também no direito pátrio há como reconhecer aexistência de um direito a identidade genética da pessoa humana. Da mesma forma, em existindotratado internacional ratificado pelo Brasil reconhecendo tal direito, este - muito embora oentendimento majoritário em sentido contrário do nosso Supremo Tribunal Federal - forte no artigo5º, § 2º, da Constituição de 1988, passaria - de acordo com a doutrina mais afinada com a evoluçãointernacional - a ter hierarquia constitucional, aspecto que, embora controverso, não pode ser aquisimplesmente desconsiderado.317. Sobre o tema. v., entre nós, o recente estudo de M. C. de Almeida. DNA e Estado de Filiação aLuz da Dignidade Humana, especialmente p. 117 e ss., mediante uma fundamentação calcada não

apenas nas experiências paradigmáticas do direito comparado, mas fundada justamente na aberturamaterial do catalogo de direitos fundamentais e no princípio da dignidade da pessoa humana, talqual consagrados na ordem constitucional brasileira.318. Sem que se vê adentrar aqui a discussão em torno da qualificação da união entre pessoas domesmo sexo como equivalente a união estável reconhecida e protegida no artigo 226. º 3º, daConstituição de 1988 (o que, por sua vez, nos remete ao problema da possibilidade de se admitir aexistência de normas constitucionais originárias inconstitucionais), assume relevo, também nestecontexto, que a dignidade da pessoa humana - de modo autônomo ou conexionado com outrosdireitos fundamentais - tem servido de suporte para o reconhecimento de direitos fundamentaisimplícitos, o que tem, pelo menos nesta seara, alcançado expressiva aceitação pela jurisprudência edoutrina. A respeito do tema, reportamo-nos, entre tantos, aos contributos (e aqui vão colacionadasduas das monografias referenciais sobre o tema) de L. A. D. Araújo, A Proteção Constitucional do

  Transexual, São Paulo: Saraiva, 2000, R. R. Rios, A homossexualidade no Direito, Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001 e M. B. Dias, União Homossexual. O Preconceito & a Justiça, 2ª ed., Porto

Alegre: Livraria do Advogado,Pg. 122deriam ser colacionados, o - de resto já citado - direito ao mínimoexistencial para uma vida digna, não expressamente consagrado pelo nossoConstituinte, mas que encontra seu fundamento direto no direito à vida eno dever do Estado de prover as condições mínimas para uma vida comdignidade.

  Já num outro plano - embora revelando direta conexão com atemática ora versada - situa-se o problema da extensão da aberturamaterial dos direitos fundamentais para direitos de matriz legal, porquantoexpressamente reconhecidos pelo legislador infraconstitucional. É o queocorre, por exemplo, com alguns direitos de personalidade consagrados noatual Código Civil Brasileiro e não diretamente positivados na Constituição,

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bem como com o direito aos alimentos (direito a um pensionamento denatureza alimentar) igualmente chancelado na legislação infraconstitucionalmaterial e processual e sem fundamento direto e expresso no textoconstitucional vigente. Quanto a este ponto, se é verdade que a nossaConstituição não agasalhou dispositivo idêntico ao previsto na Constituição

da República portuguesa, onde, no artigo 16, nº 1,319 restou igualmenteconsagrada a noção de abertura material do catálogo constitucional dedireitos fundamentais,320 abrangendo - como deflui da dicção do disposiçãoconstitucional citado - até mesmo direitos positivados no plano legal, istonão significa, necessariamente, a impossibilidade de se reconhecer aexistência de direitos formalmente legais, mas materialmenteconstitucionais entre nós. Há que consignar, contudo, o nosso próprioceticismo em relação a esta possibilidade, que, de resto, foi alvo de críticasmesmo em Portugal, com base no argumento de que não faria sentidoalgum termos direitos fundamentais com hierarquia de lei, visto que comisso se estaria a subverter a própria noção de fundamentalidade, no sentidode uma indisponibilidade das posições fundamentais pelos poderesconstituídos.321

Por outro lado, especialmente se considerarmos o caso dos direitos depersonalidade e do próprio direito aos alimentos, verifica-se que, emverdade, não estamos em face de direitos fundados diretamente na lei, mas2001, onde, de resto, também se encontram elementos a respeito da controvérsia apontada, nocaso, da possibilidade de se considerar a união homossexual como união estável.319. "os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outrosconstantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional"320. Importa consignar, neste contexto, que a abertura material a outros direitos fundamentaistambém foi reconhecida em outro dispositivo da Constituição Portuguesa, no caso, o artigo 17, deacordo com o qual "o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no Título II

e aos direitos fundamentais de natureza análoga", enunciado que, contudo, parece excluir os direitossociais prestacionais do seu âmbito de aplicação, o que não ocorre com o artigo 16, nº 1.321. Neste sentido, pelo menos, a precisa objeção de J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e

 Teoria da Constituição 3ª ed. p. 379-80.

Pg. 123sim, diante de direitos de fundamento, constitucional (pelo menos implícito)regulamentados pelo legislador. Com efeito, assim como os direitosespecíficos de personalidade expressamente elencados no Código Civildecorrem já de um direito geral de tutela e promoção da personalidade (porsua vez diretamente ancorado na dignidade da pessoa humana), de talsorte que até mesmo dispensável (embora certamente não irrelevante),

para efeito de seu reconhecimento e proteção, a intervenção legislativa,322

também o direito aos alimentos - apenas para ficarmos nos exemploscolacionados - integra o conjunto de prestações indispensáveis ao mínimoexistencial, já que destinado essencialmente (mas não exclusivamente) asatisfação das necessidades básicas do destinatário para uma vida comdignidade.323 Além disso, o exemplo da verba alimentar devida em funçãodas relações de parentesco ou da união entre duas pessoas, aponta parauma possível eficácia em relação a particulares dos direitos fundamentais aprestações (que não se identificam apenas com os assim designadosdireitos sociais), pelo menos em algumas situações, aspecto que, contudo,aqui não será mais desenvolvido.324

Deixando de lado aquilo que seria mais propriamente a seara doreconhecimento de direitos fundamentais autônomos, não explícita e

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diretamente positivados no texto constitucional, verifica-se que também oreconhecimento de posições jurídico-subjetivas, jusfundamentalmenteasseguradas, a partir da dignidade da pessoa, isoladamente considerada,cumpre relembrar - apenas para ilustrar a questão com alguns exemplos - amulticitada decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal ao decidir pela

impossibilidade de se compelir o suposto pai, demandado em açãoinvestigatória de paternidade, a realizar o exame de DNA, considerando talmedida atentatória a dignidade pessoal do investigando. 325 Do322. Sobre este tópico, V., entre nós, C. A. Mello, Contribuição para uma Teoria Hibrida dos Direitosde Personalidade, p. 81 e ss.323. Versando sobre este tópico, V., recentemente, o ensaio de J. Spagnolo, "Uma visão dosalimentos através do prisma fundamental da dignidade da pessoa humana", in: S. G. Porto c D.Ustanoz (Org.), Tendências Constitucionais no Direito de Família, p. 141 e ss., justamente propondoque o conteúdo da prestação alimentar tenha por referencial, especialmente quando da aferição deseu montante, tudo o que for necessário para uma vida com dignidade.324. Muito embora já tivéssemos feito alusão à possibilidade de uma eficácia dos direitos sociaisprestacionais (assim como dos direitos a prestação de um modo geral) na esfera das relações entreparticulares (v. neste sentido o nosso "Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas

considerações sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais", in: I. W. Sarlet (Org.), AConstituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado. p. 154) tal ponto acabousendo objeto de maior desenvolvimento na significativa obra de D. Sarmento, Direitos Fundamentaise Relações Privadas, p. 332 e ss., apontando, com acuidade, para a relevância da dimensãoprocessual do problema, notadamente no que diz com os limites da atuação jurisdicional tambémnesta esfera.325. Cf. a paradigmática decisão proferida (ainda que com apertada maioria) por ocasião do

 julgamento do Habeas Corpus nº 71.373-4-RS, destacando-se o voto do Ministro Marco Aurélio, que,ao

Pg. 124Direito Comparado, cumpre referir a polêmica decisão do Conselho deEstado da França, que considerou correta a decisão do prefeito da comunade Morsang-sur-Orge, ao determinar a interdição de estabelecimento (casa

de diversão) que promovia espetáculos nos quais os espectadores eramconvidados a lançar um anão o mais longe possível, de um lado a outro doestabelecimento. Para o Conselho de Estado - que reformou a decisão do

 Tribunal Administrativo que havia anulado a medida do Poder Executivolocal - estes "campeonatos de anões" não poderiam ser tolerados, porconstituírem ofensa a dignidade da pessoa humana, considerando esta(pela primeira vez no direito Frances) como elemento integrante da ordempública, sendo irrelevante a voluntária participação dos anões noespetáculo, já que a dignidade constitui bem fora do comércio e éirrenunciável.326 Neste contexto, também para o direito brasileiro - como

oportunamente registra Nádia de Araújo - assume relevo a função dadignidade da pessoa humana na condição de elemento da ordem pública,atuando, de tal sorte, também como critério material para impedir aaplicação de normas e atos jurídicos estrangeiros na ordem interna, quandoofensivasrecolher a posição esgrimida em seu voto vencido pelo Desembargador gaúcho José Carlos TeixeiraGiorgis, acabou sustentando que a recusa do paciente (demandado na investigação de paternidade)em submeter-se a exame pelo método DNA "há de ser resolvida não no campo da violência física, daofensa a dignidade humana, mas no plano instrumental, reservado ao Juízo competente _ ou seja, oda investigação de paternidade - a análise cabível e a definição, sopesadas a prova coligida e arecusa do réu". Tal orientação foi reafirmada no Habeas Corpus nº 76060 - SC, Rel. MinistroSepúlveda Pertence, in: DJ 15.05.98.326. Decisão do Conselho de Estado, de 27.10.95, referida por M.-L. Pavia, le principe de dignité..., p.

107-8. Entre nós, v. o comentário de J. B. Barbosa Gomes, O poder de polícia e o princípio dadignidade da pessoa Humana na jurisprudência francesa, in: COAD (ADV), Seleções Jurídicas,12/1996, p. 19, referindo que, com esta decisão, o Conselho de Estado acabou ampliando a base

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 jurídica que fundamenta o exercício do poder de polícia, além de traduzir a crescente influência da  jurisdição constitucional e internacional sobre a justiça administrativa francesa, que acabou poraderir ao entendimento consagrado pouco antes (em 1994) pelo Conselho Constitucional, no sentidode que a dignidade da pessoa humana constitui princípio constitucional. Registre-se, por oportuno,que a decisão do Conselho de Estado da França foi objeto de impugnação pelo próprio destinatárioda proteção (no caso, o anão, que desde o início havia se insurgido contra a interdição da atividade)perante o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, que, em decisão proferida em 26.07.02

(cerca de dez anos após o fato que originou a controvérsia) acabou rechaçando, mais uma vez, aafirmação do impugnante, que não vislumbra na atividade qualquer ofensa a sua dignidade, de talsorte que restou confirmado o julgamento do Tribunal nacional. Na sua decisão, além de ratificar oargumento da violação da ordem pública pela afetação da dignidade pessoal do anão, o Comitê dasNações Unidas agregou que nada havia de abusivo na interdição e que o simples fato de existirematividades outras, igualmente suscetíveis de interdição, não é suficiente para outorgar um caráterdiscriminatório a interdição relativa ao jogo dos anões (v. neste sentido a síntese da decisão e orespectivo comentário de M. Levinet, "Dignité contre Dignité. L’Épilogue de l'affaire du 'lanceI' denains' devant le Comité des droits de I'homme des Nation Unies", in: Reme Trimmestrielle de Droitsde L'Homme, vol. 55 (2003), p. 1017 e ss.). De outra parte, não faltaram críticas a decisão,notadamente no que diz com a questionável substituição da dignidade da pessoa pelo próprio e nãopela compreensão adotada pela autoridade estatal. Entre nós, v. M. N. Camargo, "O Conteúdo

 Jurídico da Dignidade da Pessoa Humana", in: Leituras Complementares de Constitucional, p. 129-32.

Pg. 125à dignidade da pessoa e aos direitos fundamentais, tudo a ensejar umareleitura do próprio Direito Internacional Privado.327 Na Bélgica, a Corte deArbitragem, com fundamento na dignidade da pessoa e de um direito ascondições existenciais mínimas para uma vida com dignidade, sustentou alegitimidade de Regulamento que vedou a interrupção do fornecimento deenergia elétrica as famílias que, em virtude de seu estado de indigência,não apresentavam condições de pagar as suas contas,328 hipótese que, noBrasil, tem sido objeto de reiterada apreciação na esfera jurisprudencial.329

Sem prejuízo de outras decisões que poderiam ser colacionadas, oque importa, nesta quadra, é a certeza de que - para além até mesmo da

possibilidade de se recorrer (inclusive nas hipóteses citadas) a fundamentodiverso, designadamente, a normas de direitos fundamentais específicas(como o direito a privacidade e a intimidade, ou mesmo de liberdade, nocaso do DNA) do princípio da dignidade da pessoa humana, paralelamente asua dimensão juridico-objetiva, não apenas podem, mas de fato têm sidoextraídos direitos subjetivos (e fundamentais), no sentido de posições

 jurídicas vinculantes, com vistas a sua proteção.327. Cf. N. de Araújo. Direito Internacional Privado. Teoria e Prática Brasileira, 3ª ed., Rio de Janeiro:Renovar. 2006, p. 104 e ss.328. Cf. F. Delpérée, O Direito a Dignidade Humana, p. 157, sustentando a dignidade como direitoautônomo.329. Convém registrar, a respeito do mesmo ponto, que a jurisprudência pátria, embora dissonante,

tem dado guarida ao mesmo entendimento, de tal sorte que já existe uma série de julgados quereconheceram a impossibilidade do corte do fornecimento de energia elétrica, sob o fundamento deque a falta de energia poderia comprometer as condições mínimas para uma vida com dignidade.Neste sentido, no âmbito da jurisprudência nacional e também em caráter meramente ilustrativo, oAcórdão do Superior Tribunal de Justiça, proferido no Agravo de Instrumento nº 478.91 I-RJ (DJ19.05.2003), vedando o corte de energia elétrica como modo de compelir o usuário ao pagamento detarifa ou multa, por ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, já que se cuida de um bemessencial, subordinado ao princípio da continuidade da prestação. Em hipótese similar, versandosobre o corte do fornecimento de água em virtude do inadimplemento, o mesmo Tribunal, no RecursoEspecial na 617.588-SP (DJ 31.05.2004), mesmo reconhecendo as premissas da decisão acimacitada, entendeu ser viável a interrupção do fornecimento, já que, apesar de se tratar de um bem eserviço essencial, no caso concreto não restou configurada a miserabilidade do usuário ou aimpossibilidade efetiva do pagamento, pena de comprometimento das condições básicas de vida.Assim, resulta evidente, no cotejo de ambas as decisões, que a proteção outorgada contra o corte no

fornecimento de água e energia elétrica limita-se (no nosso sentir, em termos gerais, corretamente)ao assim designado mínimo existencial para uma vida digna, que, portanto, aqui também serve deparâmetro para a sindicabilidade judicial. Tal orientação subjaz, ainda (entre outros arestos que

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poderiam ser colacionados) a uma séria de decisões versando a respeito da liberação dos depósitosdo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, especialmente com o objetivo de atender necessidadesprementes no âmbito da saúde da pessoa ou de um familiar. Com efeito, recentemente o Superior

 Tribunal de Justiça, no Recurso Especial na 560.777-PR (DJ 08.03.2004), relatado pela Ministra ElianaCalmon, autorizou o levantamento do saldo do FGTS para fins de aquisição de um aparelho auditivopara a filha menor, consignando que a verba deve ser liberada quando estiverem em causa asnecessidades básicas, já que a ordem constitucional objetiva assegurar a dignidade da pessoa

humana e as condições mínimas e fundamentais para o desenvolvimento físico e mental daspessoas, o que, por sua vez, harmoniza com a noção de vida saudável sustentada nesta obra.

Pg. 1254.4. Dignidade como limite e tarefa do Estado, da comunidade edos particulares

Consoante já restou destacado, o princípio da dignidade da pessoaimpõe limites a atuação estatal, objetivando impedir que o poder públicovenha a violar a dignidade pessoal, mas também implica (numa perspectivaque se poderia designar de programática ou impositiva, mas nem por issodestituída de plena eficácia) que o Estado deverá ter como metapermanente, proteção, promoção e realização concreta de uma vida comdignidade para todos,330 podendo-se sustentar, na esteira da luminosaproposta de Clèmerson Clève, a necessidade de uma política da dignidadeda pessoa humana e dos direitos fundamentais.331 Com efeito, de acordocom a lição de Pérez Luño, "a dignidade da pessoa humana constitui nãoapenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ouhumilhações, mas implica também, num sentido posição, o plenodesenvolvimento da personalidade de cada indivíduo",332 Neste contexto,não restam d·vidas de que todos os órgãos, funções e atividades estataisencontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana,impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na

obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esferaindividual que sejam contrárias a dignidade pessoal, quanto no dever deprotegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressõesoriundas de terceiros, seja qual for a procedência,333 vale dizer, inclusivecontra agressões oriundas de outros particulares, especialmente - mas nãoexclusivamente - dos assim denominados poderes sociais (ou poderesprivados),334 Assim, percebe-se, desde logo, que o princípio da330. Cf. por todos, J. R. Navais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República de

Portuguesa, p. 51.331. Cf. Clèmerson Clève. Temas de Direito Constitucional, p. 127.332. Cf. A. E. Pérez Luño, Derechos Humanos..., p. 318, animado em conhecida obra de Ernst Blochsobre o direito natural e a dignidade humana.

333. Neste sentido, a lição de K. Stern, Das Staatsrecht..., vol. III/1, p. 28-9, e, mais recentemente,Höfling, in: M. Sachs (Org), Grundgesetz, p. 114. Entre nós, muito embora a Constituição de 1988 nãofaça menção expressa (como o faz a Lei Fundamental da Alemanha) a um dever de respeito eproteção, a evidência que tal vinculação do poder público e até mesmo dos particulares se revelaperfeitamente afinada com o espírito de nossa ordem juridíco-constitucional. Com efeito, tal tem sidoo entendimento adotado por expressiva parcela da doutrina pátria, como é o caso, entre outros, de J.Freitas. O Controle dos Aros Administrativos e os Princípios Fundamentais, p. 52 e ss., sustentando,paradigmaticamente, a subordinação de todas as ações estatais ao princípio da dignidade da pessoahumana. Mais recentemente, v. C. L. A. Rocha. O Princípio da dignidade da pessoa..., p. 34,advogando que o princípio da dignidade da pessoa "vincula e obriga todas as ações e políticaspúblicas."333. Muito embora não estejamos de acordo com tal ponto de vista (notadamente no que diz com anegativa de uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais) cumpre lembrar que é

Pg. 127dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção(respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger

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a dignidade dos indivíduos. Nesta linha de raciocínio, sustenta-se, comrazão, que a concretização do programa normativo do princípio dadignidade da pessoa humana incumbe aos órgãos estatais, especialmente,contudo, ao legislador, encarregado de edificar uma ordem jurídica queatenda as exigências do princípio.335 Em outras palavras - aqui considerando

a dignidade como tarefa -, o princípio da dignidade da pessoa humanaimpõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação depromover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculosque estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade.336 Da duplafunção de proteção e defesa segue também o dever de implementarmedidas de precaução procedimentais e organizacionais no sentido deevitar uma lesão da dignidade e dos direitos fundamentais ou, quando istonão ocorrer, com o intuito de reconhecer e fazer cessar (ainda que paraefeitos simbólicos),337 ou, de acordo com as circunstâncias, minimizar osefeitos das violações, inclusive assegurando a reparação do dano.

Para além desta vinculação (na dimensão positiva e negativa) doEstado, também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidadesprivadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados peloprincípio da dignidade da pessoa humana, o que implica a existência dedeveres de proteção e respeito também na esfera das relações entreparticulares. Com efeito, também (mas não exclusivamente) por suanatureza igualitária e

 justamente a partir do reconhecimento de deveres gerais e específicos de proteção por parte doEstado contra atos de outros particulares violadores da dignidade e dos demais direitosfundamentais, que expressiva doutrina vem sustentado, pelo menos, uma eficácia indireta dosdireitos fundamentais no âmbito das relações entre particulares, já que apenas o poder público édestinatário dos deveres de proteção, Neste sentido, paradigmaticamente, C. W. Canaris,Grundrechte und Privatrecht, p. 33 e ss.335. Cf. Höfling, in: M. Sachs (Org), Grundgesetz, p. 114. Entre nós e dentre outros, registre-se acontribuição de C. E. P. Ruzik, "A responsabilidade civil par danos produzidos no curso de atividadeeconômica e a tutela da dignidade da pessoa humana: o critério do dano ineficiente", in: Diálogossobre Direito Civil, p. 129 e ss., que, além de aderir a concepção aqui adotada de dignidade comolimite e tarefa do Estado, bem desenvolve a noção de que a dignidade da pessoa humana, a partir deseu conteúdo normativo-vinculante (e não meramente retórico) atua como vetar naoperacionalização dos institutos jurídicos, inclusive a própria disciplina jurídica da atividadeeconômica.336. Esta a lição de J. González Pérez, la Dignidad de la Persona, p. 59. Neste contexto,especialmente no âmbito da dimensão prestacional, vale lembrar que a dignidade da pessoa assumeimportante papel como critério nuclear para determinar o conteúdo justiciável dos direitos sociais aprestações. Neste sentido, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Também, A. P. deBarcellos, A Eficácia dos Princípios Constitucionais - a dignidade da pessoa humana, especialmente,p. 201 e ss., desenvolve a tese da dignidade da pessoa e do mínimo existencial, em suas diversas

manifestações. Por último, v., ainda, R. L. Torres. O Direito ao Mínimo Existencial, 2008, e E.Bitencourt Neto, O Direito ao Mínimo para uma Existência Digna, 2010.337. Cf. por todos, S. Rixen, "Die Würde und Integrität des Menschen", op. cit., p. 355.

Pg. 128por exprimir a idéia de solidariedade338 entre os membros da comunidadehumana, o princípio da dignidade da pessoa vincula também no âmbito dasrelações entre os particulares.339 No que diz com tal amplitude deste deverde proteção e respeito, convém que aqui reste consignado que talconstatação decorre do fato de que há muito já se percebeu -designadamente em face da opressão socioeconômica exercida pelos assimdenominados poderes sociais - que o Estado nunca foi (e cada vez menos o

é) o único e maior inimigo das liberdades e dos direitos fundamentais emgeral.340 Que tal dimensão assume particular relevância em tempos de

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globalização econômica, privatizações, incremento assustador dos níveis deexclusão e, para além disso, aumento do poder exercido pelas grandescorporações, internas e transnacionais (por vezes, com faturamento epatrimônio - e, portanto, poder econômico - maior que o de muitosEstados), embora não se constitua em objeto desta investigação, não

poderia passar despercebido e, portanto, merece ao menos este breveregistro.341

A própria eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre osparticulares - ainda que em condição de tendencial igualdade (e, portanto,de igual liberdade)342 - tem encontrado importante fundamento no princí-338 A respeito do vínculo entre solidariedade e dignidade, e, nesta perspectiva, fundamentando asolidariedade como princípio jurídico fundamental, v. o instigante texto de M. C. Bodin de Morais, "Oconceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo", in: I. W. Sarlet (Org.).Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 117 (onde propõe o desdobramento dosubstrato material da dignidade em quatro postulados, quais sejam, o da igualdade, o da integridadefísica e moral, o da liberdade e o da solidariedade) e p. 136 e ss. (especificamente a respeito dadimensão solidária da dignidade). Em que pese o vínculo do princípio da solidariedade com adignidade, vale ressaltar que questionável a noção de que a solidariedade é substrato da dignidade enão o oposto, ou seja, a dignidade é que implica um dever de solidariedade. Por último, v. W. G. DiLorenzo, Teoria do Estado de Solidariedade, p. 131 e ss.339. Cf. lembra, dentre tantos, M.-L. Pavia, Le principe de dignité,..., p. 111.

Pg. 129pio da dignidade da pessoa humana, sustentando-se, neste contexto, que -pelo menos no que diz com seu conteúdo em dignidade - os direitosfundamentais vinculam também diretamente os particulares nas relaçõesentre si, sendo - na esfera deste conteúdo - irrenunciáveis, já que, aevidência, e, como bem lembra Jörg Neuner, em termos de uma eficáciavinculante da dignidade, "não importa de quem é a bota que desferiu ochute no rosto do ofendido",343 Assim, percebe-se, na esteira do que já foi

anunciado alhures, que o dever de proteção imposto - e aqui estamos a nosreferir especialmente ao poder público - inclui até mesmo a proteção dapessoa contra si mesma, de tal sorte que o Estado se encontra autorizado eobrigado a intervir em face de atos de pessoas que, mesmovoluntariamente, atentem contra sua própria dignidade,344 o que decorre

  justamente do já referido cunho irrenunciável da dignidade pessoa345 Seuma renúncia a dignidade e ao conteúdo em dignidade dos direitos é, em343. Cf., recentemente, J. Neuner, Privatrecht und Sozialstaat, p. 150 e ss. (especialmente p. 153),sustentando que a dignidade da pessoa, inclusive de acordo com a expressão literal do textoconstitucional germânico, constitui um bem jurídico absoluto que não pode ser violado por quemquer que seja. Nesta linha de entendimento, v. também, P. Mota Pinto, O Direito ao LivreDesenvolvimento da Personalidade, p. 241-43, na esteira do que, igualmente no direito lusitano, jásustentava, há mais tempo, J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais..., p. 293 e ss. Entrenós, v., por último, adotando o entendimento aqui sustentado, M. Palazzolo, Persecução Penal eDignidade da Pessoa Humana, p. 71, admitindo também um dever geral de respeito. Não faltam,todavia, vozes em sentido contrário, negando uma vinculação direta dos particulares ao princípio dadignidade da pessoa humana, referindo-se aqui, em caráter exemplificativo, o magistério de T.Geddert-Steinacher, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, p. 93 e ss., que, na esteira de fartadoutrina e jurisprudência, reconhece apenas uma eficácia indireta da dignidade da pessoa humanana esfera das relações entre particulares, muito embora também defenda o ponto de vista de que adignidade é irrenunciável.344. Cf. J. González Pérez, la dignidad de la persona, p. 62, inclusive sustentando que a dignidadetambém se constitui em dever de cada indivíduo, para com os demais e consigo mesmo. Talentendimento, que tem encontrado ampla ressonância na produção doutrinária e jurisprudencial, nãoafasta, todavia, uma série de controvérsias de alta indagação, a começar pelos limites da definiçãopelo próprio titular, daquilo que considera, ou não, ofensivo a sua dignidade. No âmbito da produção

doutrinária específica sobre a "proteção da pessoa contra si mesma" destacam-se as contribuiçõesoriundas da dogmática alemã, de tal sorte que remetemos aqui, entre outros, ao estudo de C.Hillgruber, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, München: C. H. Beck, 1992. No âmbito da

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  jurisprudência, talvez seja o famoso (mas nem por isso incontroverso) caso do jogo dos anões,decidido pelo Conselho de Estado da França, o exemplo mais difundido e que já foi objeto de nossareferência.345. Versando precisamente sobre a indisponibilidade da dignidade e do núcleo em dignidade dosdireitos fundamentais, v., entre nós, J. A. Peres Gediel, "A irrenunciabilidade a direitos dapersonalidade pelo trabalhador", in: I. W. Sarlet (Org.), Constituição, Direitos Fundamentais e DireitoPrivado, p. 159 e ss.

Pg. 130princípio, vedada pela ordem jurídica, não há como deixar de reconhecer apossibilidade de uma série de situações concretas onde se verifica pelomenos uma autolimitação de determinados direitos inerentes apersonalidade,346 bastando aqui recordar o exemplo das transplantações deórgãos ou mesmo da interrupção da gravidez nas hipóteses autorizadaspelo legislador, dentre as inúmeras hipóteses que poderiam sercolacionadas. Nesta esfera - que aqui não iremos desenvolver - importa, noentanto, afirmar a necessária observância das exigências da dignidade dapessoa concretamente considerada, no sentido de que seja avaliada (no

contexto da indispensável hierarquização de interesses) a sua maior oumenor vulnerabilidade para o exercício da autonomia da vontade no âmbitodo consentimento informado.347 Assim, se da dignidade - na condição deprincípio fundamental decorrem direitos subjetivos a sua proteção, respeitoe promoção (pelo Estado e particulares), seja pelo reconhecimento dedireitos fundamentais específicos, seja de modo autônomo, igualmentehaverá de se ter presente a circunstância de que a dignidade implicatambém, em última ratio por força de sua dimensão intersubjetiva, aexistência de um dever geral de respeito348 por parte de todos (e de cadaum isoladamente) os integrantes da comunidade de pessoas para com osdemais e, para além disso e, de certa forma, até mesmo um dever das

pessoas para consigo mesmas.Considerando, ainda, a perspectiva da dignidade como limite - mas

agora num outro sentido - cabe lembrar que, no âmbito da indispensávelponderação (e, por conseguinte, também hierarquização) de valores,inerente a tarefa de estabelecer a concordância prática (na acepção deHesse) na hipótese de conflitos entre princípios (e direitos) constitucio-346 Sobre o tema da renunciabilidade dos direitos fundamentais em geral v., por todos, o recente eparadigmático estudo de J. R. Novais, "Renúncia a Direitos Fundamentais", in: J. Miranda (Org.),Perspectivas Constitucionais, vol. I, p. 263-335.347. Cf. as lúcidas reflexões de J. M. Leal de MeirelIes e E.Didonet Teixeira, "Consentimento livre,dignidade e saúde pública: o paciente hipossuficiente", in: Diálogos sobre Direito Civil, notadamentea contar da p. 366 e ss., bem destacando a necessidade de uma motivação racional e razoável

quando do exercício do controle jurisdicional dos atos praticados. Enfrentando a temáticaprioritariamente pelo prisma das assim denominadas "ordens de não-ressuscitação" e da recusa porparte dos próprios pacientes em relação a tratamento medico, v. o recente contributo de L.H. Pithan,A dignidade humana comoç fundamento jurídico das "ordens de não-ressuscitação" hospitalares,especialmente p. 78 e ss., onde investe na controvérsia em tomo de um direito a uma morte digna enos limites da autonomia do paciente. Tal discussão - que perpassa de modo geral o estudo dabioética e do biodireito - evidentemente aqui não poderá ser desenvolvida, de tal sorte que, paraalém dos textos já referidos e especificamente no que concerne ao consentimento informado,remetemos ao referencial estudo, no âmbito da doutrina nacional, de J. Clotet, J. R. Goldim e C. F.Francisconi, Consentimento h(formado e sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, Porto Alegre:EDIPUCRS, 2000.348. Advogando um dever geral de respeito para com a dignidade da pessoa humana, v., dentreoutros, M. A. Alegre Martinez, la dignidad de la persona..., p. 86 e ss.

Pg. 131nalmente assegurados, o princípio da dignidade da pessoa humana acabapor justificar (e até mesmo exigir) a imposição de restrições a outros bens

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constitucionalmente protegidos, ainda que se cuide de normas de cunho jusfundamental.349 Tal constatação assume ainda maior relevância, em nãose olvidando a já suficientemente destacada primazia desfrutada peladignidade da pessoa no âmbito da arquitetura constitucional, sem que, comisto, estejamos - convém frisá-lo para evitar mal-entendidos - a sustentar a

existência de uma hierarquia jurídico - formal entre as normasconstitucionais, a ponto de justificar uma inviável (e praticamente não maisdefendida) inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias.

Apenas para ilustrar esta passagem, que, no âmbito das aplicaçõesconcretas, talvez represente as situações mais corriqueiras nas quais setem feito menção - como critério embasador da decisão - ao princípio dadignidade da pessoa humana, seguem alguns exemplos. Assim, em sede dedireito comparado, vale referir decisão da Corte de Apelação de Paris,quando, ao reconhecer a existência de um direito à moradia (droit aulogement), por sua vez reconduzido ao princípio da dignidade da pessoahumana, admitiu restrições ao direito de propriedade, que - de acordo coma Corte - não autoriza o abuso por parte do proprietário, notadamentequando configurado o abandono, de tal sorte que, nestas circunstâncias,deverá prevalecer o direito a moradia, já que exigência para uma vida comdignidade.350 No mesmo sentido, situam-se as decisões que, em prol deuma proteção da dignidade da pessoa, reconhecem limitações a liberda-349. Cuidando da dignidade como limite dos direitos alheios v. J. González Pérez, la dignidad de lapersona, p. 91 e ss.," inclusive citando decisões do Tribunal Constitucional da Espanha no sentido deo exercício dos direitos fundamentais encontrar seus limites nos direitos fundamentais e nadignidade de terceiros. No mesmo sentido, destacando que o princípio da dignidade da pessoa (porser a dignidade, em princípio, irrenunciável) atua até mesmo como limite ao exercício de direitospróprios. v. M. A. Alegre Martinez, la dignidad de la persona. .., p. 81 e ss. Pela doutrina italiana, v. F.Bartolomei, la dignitá humana.... p. 23 e ss., desenvolvendo o ponto no que diz com as restrições da

liberdade pessoal em prol da dignidade. Colacionando mais exemplos extraídos da jurisprudênciaconstitucional espanhola, v., por último, L Gutiérrez-Gutiérrez, Dignidade da Pessoa y DerechosFundamentales, p. 108 e ss.350. Cf. M. L. Pavia, Le principe de dignité..., p. 109-10. Em que pesem os termos da decisão da Cortede Apelação referida, vale sublinhar, todavia, a controvérsia travada na França a respeito doreconhecimento - pelo Conselho Constitucional- de um verdadeiro direito fundamental social amoradia, ou - como parece sustentar Franck Moderne, la dignité de la personne..., p. 223 e ss. -, deum objetivo constitucional, que, em primeira linha, vincula o legislador, que, por sua vez, dispõe deuma ampla margem de liberdade na consecução desta meta constitucionalmente estabelecida. Comefeito, uma leitura da decisão nº 94-359, de 19.01.95, desde logo revela a ausência de umareferência expressa - por parte do Conselho Constitucional - a um direito fundamental a moradia. Oque importa, em verdade, é a circunstância de que - diretamente - a partir do princípio da dignidadeda pessoa humana (igualmente consagrado, um ano antes, pelo próprio Conselho Constitucional), foireconhecido - pelo menos - que a possibilidade de toda a pessoa dispor de um alojamento decente

constitui um objetivo de valor constitucional ("la possibilité pour toute personne de disposer d'umlogement décent est um

Pg. 130de individual, especialmente no campo da autonomia privada e liberdadecontratual, inclusive - como já referido - no sentido de uma proteção dapessoa contra si mesma.351 De Portugal, recolhemos, entre outros, oexemplo citado por Jorge Miranda, lembrando que o Tribunal Constitucionalde Portugal, no Acórdão nº 349/91, ao apreciar a alegação deinconstitucionalidade da penhora da pensão em demanda executiva,decidiu que "perante conflito entre o direito do pensionista a receberpensão condigna e o direito do credor, deve o legislador, para tutela do

valor supremo da dignidade da pessoa humana, sacrificar o direito docredor na medida do necessário e, se tanto for preciso, totalmente",352

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 Também no Acórdão nº 151/92 o Tribunal Constitucional de Portugal - nestepasso de modo similar a decisão da Corte de Apelação de Paris - considerouque o direito fundamental a habitação (no sentido de um direito a ter umamoradia condigna), muitoobjectiv de valeur constitutionnelle"), objetivo do qual resultam limitações ao direito de propriedade,tal como bem demonstrou a primeira decisão referida.351 Aqui também vale citar o exemplo extraído da jurisprudência do Conselho de Estado da França,ao chancelar o uso do poder de polícia, com o objetivo de proteção da dignidade pessoal dos anõesque mesmo espontaneamente e mediante pagamento, sujeitavam-se a servir de objeto da diversãoalheia (o multicitado e amplamente difundido caso do jogo de anões), consoante observação feita porE. Pereira Nobre Júnior, O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, p. 245, quetambém cita este mesmo caso.352 Cf. J. Miranda, Manual, vol. IV, p. 186. Nesta mesma linha, situa-se decisão mais recente(Acórdão nº 318/99), na qual o Tribunal Constitucional de Portugal, entendendo - na esteira de

 julgamentos anteriores - que o direito a segurança social (artigo 63 da Constituição de 1976) ou, pelomenos, o princípio da dignidade da pessoa humana implicam o reconhecimento de um direito a umasubsistência condigna (um mínimo de sobrevivência), acabou por declarar inconstitucional a normado artigo 824, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil português, na medida em que permite a penhoraaté 1/3 das prestações periódicas pagas a título de aposentadoria ou qualquer outro benefício social,cujo valor não seja superior ao do salário mínimo nacional então em vigor. Nesta decisão, em face doconflito entre o direito do credor, o Tribunal Constitucional acabou por fazer prevalecer o "valorsupremo da dignidade da pessoa humana - vetor axiológico estrutural da própria Constituição",argumentando que o salário mínimo nacional (e, portanto, também uma pensão ou outro benefíciosocial fixado neste valor) constitui justamente a remuneração básica que objetiva corresponder aosditames da dignidade da pessoa (no sentido de um mínimo para uma sobrevivência digna), razãopela qual, cuidando-se de uma redução do próprio mínimo em dignidade, estar-se-ia sacrificando deforma excessiva e desproporcionada do direito do devedor e pensionista. Tal orientação, comodemonstram decisões posteriores, segue sendo adotada pelo Tribunal Constitucional, destacando-seo Acórdão nº 62/02, do dia 06.02.2001, relatado pelo Conselheiro Paulo Mota Pinto, reconhecendo ainconstitucionalidade da penhora do rendimento mínimo garantido que, mesmo não sendoequivalente ao salário mínimo nacional (eu já impenhorabilidade, como de flui da decisão já citada,também é reconhecida pelo Tribunal Constitucional, inclusive como limite a constrição judicial depensões, rendas vitalícias, etc.) é calculado e atribuída em função das necessidades de subsistênciado devedor e de sua família, de tal sorte que a totalidade da prestação social percebida pelodevedor, já que indispensável a uma vida com dignidade, encontra-se salvaguardada contra umapenhora. Tais diretrizes, como deflui do Acórdão nº 96/04, do dia 11.02.2004, relatado pelaConselheira Maria Helena Brito (também relativo a penhora do salário do executado), tem sidomantidas pela jurisprudência mais recente do Tribunal.

Pg. 131embora encontre-se na dependência das opções tomadas pelo Estado, porsua vez, condicionadas pelos recursos disponíveis, por se cuidar de umdireito fundado na dignidade da pessoa humana, implica sempre ummínimo que o Estado deve satisfazer, inclusive impondo restrições aosdireitos do proprietário privado.353 Nesta mesma linha - para não deixarmosde lado a fecunda jurisprudência pátria - cumpre referir julgado do Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul, onde restou consignada aimpenhorabilidade de rendimentos oriundos de locativos, quando estes, afalta de outros rendimentos substanciais, assumem cunho alimentar e,portanto, caráter essencial para a própria dignidade da pessoa humana,prevalecendo em face dos direitos creditícios, notadamente quandoeminentemente patrimoniais,354 bem como uma série de decisões que temimpedido a suspensão do fornecimento de energia elétrica em face de setratar de serviço essencial a dignidade da pessoa humana,355 ou mesmoconsiderando descabido o desconto em folha de pagamento,contrariamente a vontade do devedor, sob o argumento de que com isso seestaria a burlar não apenas o procedimento judicial de execução da dívida;mas também a dignidade da pessoa humana do devedor, notadamente emsituações onde este desconto estaria a incidir sobre valores que dizem com

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o mínimo existencial.356 Neste mesmo contexto, pode ser enquadrada afunção da garantia do mí-353. Cf. Acórdão na 92-151-2, do dia 08.04.92, Relatar Messias Bento. Há de se destacar, todavia,que ao contrario do exemplo coletado da jurisprudência francesa, o direito fundamental a habitaçãoencontrou previsão expressa na Constituição portuguesa de 1976 (artigo 65). Mesmo assim, adoutrina majoritária e a jurisprudência do Tribunal Constitucional - como também o revela a decisão

ora colacionada - tem sublinhado que, na condição de um direito fundamental social a prestações,cuida-se de um direito sob "reserva do possível", correspondendo, em primeira linha, "a um fimpolítico de realização gradual" (cf. refere expressamente o Acórdão na 151/92).354. Cf. Acórdão nos Embargos Infringentes nº 70000296053, julgados pelo 100 Grupo Cível do

 Tribunal de Justiça do RS, em 25.02.2000, tendo por Relatar o eminente Des. Carlos Rafael dosSantos Júnior.355. Cf., dentre tantos, o Acórdão no Agravo de Instrumento na 70008245805, proferido pela 22ªCâmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, em 27.04.2004 (Relatara Des. Mara Larsen Chechi),mantendo a decisão da primeira Instância, que determinou o restabelecimento do fornecimento.Registre-se que também o nosso Superior Tribunal de Justiça (ainda que não em todos os casos ecom alguma divergência) tem sustentado este entendimento, do que da conta, também aqui emcaráter exemplificativo, o Acórdão proferido no Agravo de Instrumento nº 478.911 - RJ, julgado em16.05.2003 e relatado pelo Ministro Luiz Puxo Ressalte-se que o mesmo Tribunal, no âmbito doAgravo Regimental no Recurso Especial na 543.020 - SP, apreciado no dia 18.03.2004 e relatado pelo

mesmo Ministro Luiz Pux, decidiu pela possibilidade do corte de energia, considerando que no casoconcreto não se tratava nem de entidade de relevante utilidade pública (como ocorre com Hospitais,por exemplo) nem de pessoa física miserável e que comprovadamente não tenha condições de arcarcom o pagamento da conta de energia elétrica sem prejudicar o seu sustento e o de sua família. Valeconsignar, ainda, que tal decisão revele o quanto se torna indispensável - pelo menos em princípio -aferir eventual violação da dignidade a luz das circunstâncias do caso concreto, pena de se chancelaruma distorção na aplicação do princípio.356. Dentre tantos, v. aqui o Acórdão proferido pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, noAgravo de Instrumento nº 70008186926 (Relatar Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino), julgado em01.04.2004.

Pg. 132nimo existencial na condição de limite ao poder de tributar do Estado,objeto de ampla consagração doutrinária e jurisprudencial, inclusive em

relação a hipóteses não expressamente previstas na legislação.357

Comum a todos os casos, de acordo com o que emblematicamenterevela o último exemplo referido, é a necessária ponderação (e, acima detudo, hierarquização) dos bens em causa, com vistas à proteção eficienteda dignidade da pessoa, aplicando-se também o princípio daproporcionalidade, que, por sua vez, igualmente - já nesta perspectiva -encontra-se conectado ao princípio da dignidade. De outra parte, como bemaponta Jonatas Machado,358 em seu referencial estudo sobre a liberdade deexpressão, não há como olvidar a relação dialética que se estabelecequando da fundamentação (com base na dignidade) de limites a outrosbens fundamentais, considerando que estes, no mais das vezes, sãoigualmente deduzidos (em maior ou menos grau) da dignidade da pessoahumana, de tal sorte que - em face da generalidade e abstração da próprianoção de dignidade - se impõe um rigoroso controle material eprocedimental das restrições, evitando-se a imposição unilateral e arbitráriade determinadas concepções do bem e da justiça, questão que nos remetea seara tormentosa das possibilidades e limites do controle jurisdicional,que aqui não será objeto de desenvolvimento.357. Sobre o tópico, V., além dos escritos já considerados de Ricardo Lobo Torres, representando adoutrina majoritária (ainda que existam variações importantes sobre aspectos que envolvem asdiversas possibilidades de aplicação do D┌ nimo existencial e da dignidade da pessoa humana nestaseara) v. as mais recentes contribuições, por especialmente dedicadas ao tema, de A. C. G. Pezzi,

Dignidade da Pessoa Humana, Mínimo Existencial e Limites a Tributação no Estado Democrático deDireito, Curitiba: Juruá, 2008 e de M. Buffon, Tributação e dignidade humana entre os direitos edeveres fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 181 e ss.

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358. Cf. J. Machado, Liberdade de Expressão, p. 361-2.

Pg. 1355. Proteção pela dignidade e o problema dos limites da dignidade5.1. A dignidade como limite a restrição dos direitos fundamentais

Quando utilizamos a expressão proteção pela dignidade, estamos nos

referindo a função do princípio da dignidade da pessoa humana no contextodos assim denominados limites dos direitos fundamentais. Sem que aqui sepretenda explorar esta dimensão do problema, mas considerando a suarelevância, partiremos do pressuposto de que admitida a possibilidade dese tratarem limites aos direitos fundamentais, já que virtualmentepacificado o entendimento de que, em princípio, inexiste direito absoluto,no sentido de uma total imunidade a qualquer espécie de restrição.359 Deoutra parte, igualmente consagrado, de há muito, o reconhecimento daexistência daquilo que a doutrina germânica denominou de limites doslimites (Schranken-Shranken),360 isto é, de determinadas restrições aatividade limitadora no âmbito dos direitos fundamentais, justamente com oobjetivo de coibir eventual abuso que pudesse levar ao seu esvaziamentoou até mesmo a sua supressão.

Não obstante variáveis, de acordo com as peculiaridades de cadaordem constitucional, os tipos de limites as restrições em matéria dedireitos fundamentais, assim como diversificado também o sentido e oalcance359. Cf., por todos, J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais..., p. 213 e ss., partindo danoção expressa pelo art. 4º da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,no sentido de que "A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem:assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguramaos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem serdeterminados por lei.".

360. Cf., por todos, Pieroth-Schlink, Grundrechte - Staatsrecht ll, p. 73 e ss.Pg. 136outorgado a estes limites, constata-se - para além de outros aspectos derelevo e, pelo menos, no que diz com as ordens jurídicas diretamenteinfluenciadas pela doutrina e pela jurisprudência alemãs - certo consensoquanto ao fato de que, em princípio, nenhuma restrição de direitofundamental poderá ser desproporcional e/ou afetar o núcleo essencial dodireito objeto da restrição.361 É justamente neste contexto que o princípio dadignidade da pessoa humana passa a ocupar lugar de destaque,notadamente pelo fato de que, ao menos para alguns, o conteúdo em

dignidade da pessoa humana acaba por ser identificado como constituindoo núcleo essencial dos direitos fundamentais,362 ou pela circunstância de -mesmo não aceita tal identificaçao363 - se considerar que pelo menos (esempre) o conteúdo em dignidade da pessoa em cada direito fundamentalencontra-se imune a restrições.364

361. Entre nós, v. especialmente R. D. Stumm, Princípio da Proporcionalidade no DireitoConstitucional Brasileiro, p. 137 e ss., S. Toledo Barros, O Princípio da Proporcionalidade e o Controleda Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, especialmente p. 94 e ss.,(abordando o problema da proteção do núcleo essencial) e p. 153 e ss. (versando sobre aproporcionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais), bem como, mais recentemente, ascontribuições de G. F. Mendes, Os Direitos Individuais e suas Limitações, in: G. F. Mendes/I. M.Coelho/P. G. G. Branco, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, p. 241 e ss., W.Steinmetz, Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 2000, e L. G. Schafer, Direitos Fundamentais. Proteção e Restrições. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001. Por último, v. as obras de J. R. G. Pereira, Interpretação Constitucional eDireitos Fundamentais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, e L. F. C. Freitas, Direitos Fundamentais.

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Limites e Restrições, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. V. A. da Silva, Direitos Fundamentais.Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, e I. W. Sarlet, A Eficácia dosDireitos Fundamentais, p. 385 e ss.362. Conforme sustentou, paradigmaticamente, G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde..., p. 36e ss.363. A tese de acordo com a qual a dignidade da pessoa humana não se identifica (não se confunde),pelo menos não necessariamente, com o núcleo essencial dos direitos fundamentais tem prevalecido

e é também por nós acolhida, seja pelo fato de estarmos convencidos de que nem todos os direitosfundamentais possuem um conteúdo em dignidade, mas todos possuem um núcleo essencial (já queé vedada a sua abolição), seja pela circunstância de que – na, esteira do que sustenta a doutrinamajoritária - tal garantia restaria esvaziada em se aceitando uma identidade absoluta com oconteúdo em dignidade. Neste contexto, cumpre lembrar que, muito embora não tenhamos, naConstituição de 1988, uma garantia expressa da proteção do núcleo essencial contra restriçõeslegislativas, doutrina e jurisprudência tem reconhecido tal garantia, que, de resto, decorre davedação expressa da abolição efetiva e tendencial dos direitos fundamentais pelo poder de reformaconstitucional (artigo 60, º 4º, da Constituição de 1988). A respeito deste tópico, v., dentre tantos, aanálise de T. Geddert-Steinacher, Menschenwürde als Verfassungsbegrift, p. 179 e ss., sustentando,em síntese, além da existência de uma relação de complementaridade entre dignidade da pessoa enúcleo essencial, o entendimento de que o conteúdo em dignidade é, quando existente, parteintegrante do núcleo essencial dos direitos fundamentais.364. Cf., entre outros, Pieroth-Schlink. Grundrechte..., p. 80, muito embora admitindo, após criticar a

teoria que prega uma identidade entre núcleo essencial e dignidade da pessoa (pelo fato de esvaziara garantia contida no art. 19, inc. 11. da Lei Fundamental da Alemanha), que onde os direitosfundamentais tenham, de fato, um conteúdo em dignidade, este, na prática, acaba por se identificarcom o núcleo essencial. No mesmo sentido, v. H. Krüger, Sicherung der Grundrechte, in: M. Sachs(Org.) Grundgesetz, p. 599, muito embora também se tenha posicionado no sentido de admitir que onúcleo

Pg. 137Na mesma linha, situam-se os entendimentos de acordo com os quais

uma violação do núcleo essencial - especialmente do conteúdo emdignidade da pessoa - sempre e em qualquer caso será desproporcional.365

É precisamente neste sentido - seja qual for o posicionamento adotado -que, nesta quadra da exposição, se poderá falar em proteção dos direitos

fundamentais por meio da dignidade da pessoa, que, nesta perspectiva,opera como "limite dos limites" aos direitos fundamentais.366 A títulomeramente exemplificativo, com o objetivo de ilustrar a idéia da dignidadeda pessoa como limite a atividade restritiva do legislador e, de modoespecial, para evidenciar a relação entre a dignidade e o núcleo essencialdos direitos fundamentais, reportamo-nos ao já citado Aresto do TribunalConstitucional de Portugal, relatado pelo Conselheiro Vitor Nunes deAlmeida, onde restou julgada inconstitucional a previsão legal da penhorade parte da pensão do devedor, mesmo na hipótese de esta ser equivalenteao salário mínimo nacional, já que, para o Tribunal "em tais hipóteses, o

encurtamento através da penhora, mesmo de uma parte dessas pensões -parte essa que, em outras circunstâncias, seria perfeitamente razoável,como no caso das pensões de valor acima do salárioessencial nem sempre se identifica com o conteúdo em dignidade, de tal sorte que o núcleo essencialacaba por assegurar uma proteção ainda mais ampla dos direitos fundamentais. No que dizespecificamente com a teoria do núcleo essencial, vale lembrar, ainda, o magistério de J. C. Vieira deAndrade, Os Direitos Fundamentais..., p. 236 e ss., embora criticando a adoção de apenas umadeterminada concepção a respeito do núcleo essencial dos direitos fundamentais, especialmente noque diz com a dicotomia entre as assim denominadas teorias relativas e absolutas a respeito donúcleo essencial como limite as restrições de direitos fundamentais. Sobre o conteúdo e as objeçõesa cada uma destas teorias, v. R. Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, p. 286 e ss. Entre nós,v. por último e por todos V. A. da Silva, Direitos Fundamentais..., especialmente p. 182 e ss. (capítulo5º), com destaque para as relações entre núcleo essencial e dignidade da pessoa humana.365. Cf. H. Scholler. O Princípio da Proporcional idade no Direito Constitucional e Administrativo da

Alemanha, in: Interesse Público nº 2, 1999, p.101, sustentando que uma medida restritiva de direitosfundamentais inadequada e desnecessária, quando representar também ofensa ao princípio dadignidade da pessoa humana, necessariamente não deverá ser tida, ao menos em princípio, como

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razoável ou apropriada (isto é, proporcional em sentido estrito), Por outro lado, mesmo em secuidando de uma restrição adequada e necessária, ainda assim esta será desproporcional (excessiva)quando implicar ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. Todavia, em outra passagemdo mesmo texto, o autor refere entendimento doutrinário sustentando que o princípio da dignidadeda pessoa humana é utilizado em conjunto com o postulado da necessária proporcionalidade demedidas restritivas a direitos fundamentais, também no sentido de que apenas restriçõesdesproporcionais ao âmbito de proteção dos direitos fundamentais podem ser tidas como ofensivas

ao princípio da dignidade da pessoa humana (R. Scholler, O Princípio da Proporcionalidade..., p. 100).Entre nós, vale registrar, também neste sentido, a contribuição de D. Sarmento, A Ponderação deInteresses na Constituição, p. 73 e ss.366. No mesmo sentido, adotando o entendimento aqui sustentado, v. o recente contributo de L. F.C. de Freitas. Direitos Fundamentais: limites e restrições, p. 220 e ss. Na doutrina espanhola, v., porúltimo, I. Gutiérrez-Gutiérrez, Dignidad de la Persona y Derechos Fundamentales, p. 110 e ss. Para ocaso de Portugal, v., em especial, J. R. Novais, Os princípios constitucionais estruturantes daRepública Portuguesa, p. 62-63, bem como, por último, J. M. Alexandrino, "Perfil constitucional dadignidade da pessoa humana...", op. cit., p. 510.

Pg. 138mínimo nacional -, constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado dodireito do devedor e pensionista, na medida em que este vê o seu nível de

subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário parauma existência com dignidade que a Constituição garante".367 Na jurisprudência pátria, a título meramente ilustrativo, citamos (além dos járeferidos exemplos da suspensão do fornecimento de energia elétrica e dodesconto em folha, que aqui também poderiam ser enquadrados) Acórdãodo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatado pelo DesembargadorAdão Sergio do Nascimento Cassiano, consignando que o fiador, mesmodiante de disposição legal prevendo tal possibilidade, não pode ter o imóvelque lhe serve de moradia penhorado e expropriado em face de direitospatrimoniais do credor, notadamente quando existem outros meios paraassegurar o credito,368 entendimento que posteriormente veio a encontrar

resistência por parte do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, apesar daexistência de decisão monocrática do Ministro Carlos Velloso, proferida nosentido da inconstitucionalidade da legislação que prevê a penhora doimóvel do fiador, sobreveio manifestação majoritária369 considerandolegitima a exceção legal permissiva da penhora do imóvel do fiador,voluntariamente dada em garantia, sob o argumento de que ao legislador éassegurada ampla liberdade no tocante a eleição do modo de efetivar odireito a moradia (note-se que a decisão partiu da premissa de que amoradia constitui direito fundamental social!) e que a falta de segurançados contratos de locação, acarretada pela impossibilidade da penhora,desestimula os investimentos na construção civil, reduzindo a oferta deimóveis e dificultando o acesso a moradia para grandes segmentos dapopulação.

Embora não se possa adentrar o debate com profundidade,370

entendemos que a prevalência da dignidade da pessoa humana e domínimo existencial sempre é, em primeiro plano, de ser aferida na situaçãoconcreta, da pessoa diretamente atingida, não podendo ser dissolvida nocontexto coletivo, ainda mais quando referida a uma possível (e sequerdemonstrada) falta de acesso a moradia digna por parte de outras pessoas.Com isso, por certo, não se está a dizer que o direito a moradia é absoluto,até mesmo pelo fato de que o núcleo essencial do direito a moradia não se

confunde necessariamente com o direito de propriedade. Além disso,importa frisar

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367. Cf. Acórdão nº 318/99 do Tribunal Constitucional de Portugal, I a Secção, Rel. Conselheiro VitorNunes de Almeida, 26.05.1999.368. Cf. Agravo de Instrumento nº 70000649350, julgado em 28.03.2000, pela la Câmara Cível do

 TJRS. Nesta mesma linha, situa-se o Acórdão proferido nos Embargos Infringentes nº 700030178,pelo 8º Grupo Cível, tendo como Relator o Des. Paulo Monte Lopes e julgado em 09.11.2001.369. Trata-se do RE nº 407/688/SP, julgado em 14.02.2006, relatado pelo Ministro Cezar Peluzo.370. Aqui remetemos novamente ao nosso "A Eficácia e Efetividade do Direito a Moradia na sua

Dimensão Negativa (Defensiva)...", op. cit., especialmente p. 1038 e ss.Pg. 139que a proteção mais significativa do direito a moradia, no sentido de umablindagem forte contra medidas interventivas, manifesta-se especialmente(embora não exclusivamente) no plano da garantia do mínimo existencial.De qualquer modo, independentemente da concordância (integral ouparcial) com os fundamentos e resultado da decisão do Supremo TribunalFederal, o que se constata é que, embora considerada legítima aexpropriação do imóvel e moradia do fiador, a medida encontrou

 justificativa na tutela do acesso a moradia digna por parte de terceiros, que,

de resto, não se vincularam (em princípio, em caráter voluntário) comogarantes da relação locatícia, o que, por sua vez, remete novamente aoproblema das possibilidades e limites da proteção (em nome da dignidade)da pessoa contra si própria, que aqui não será desenvolvido.

Neste mesmo contexto - ou seja, no âmbito de uma "função protetiva"(e, portanto, defensiva) da dignidade - situa-se a noção de que a dignidadeda pessoa humana constitui um dos critérios materiais para a aferição daincidência de uma proibição de retrocesso em matéria de direitosfundamentais, notadamente (mas não exclusivamente) na esfera dosdireitos fundamentais sociais de cunho prestacional.371 A idéia nuclear - queaqui não poderá ser desenvolvida - é a de que eventuais medidas

supressivas ou restritivas de prestações sociais implementadas (e,portanto, retrocessivas em matéria de conquistas sociais) pelo legisladorhaverá de ser considerada inconstitucional por violação do princípio daproibição de retrocesso, sempre que com isso restar afetado o núcleoessencial legislativamente concretizado dos direitos fundamentais,372

especialmente e acima de tudo nas hipóteses em que resultar umaafetação da dignidade da pessoa humana (já que também aqui não háidentidade necessária entre as noções de conteúdo essencial e conteúdoem dignidade) no sentido de um comprometimento das condições materiaisindispensáveis para uma vida com dignidade, no contexto daquilo que temsido batizado como mínimo existencial.371. A respeito do conteúdo e significado do princípio da proibição de retrocesso remetemos aonosso "Direitos Fundamentais Sociais e Proibição de Retrocesso: algumas notas sobre o desafio dasobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise", in: (Neo) constitucionalismo. Ontem oscódigos hoje, as constituições, p. 121-168. Sobre o tema, V., ainda, C. A. Molinaro, Direito Ambiental,Proibição de Retrocesso, especialmente, p. 104 e ss., embora priorizando a aplicação na seara dosdireitos socioambientais, bem como, por último, L. C. Pinto e Netto, O Princípio de Proibição deRetrocesso Social, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.372. Neste sentido, especialmente J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria daConstituição, p. 327, sustentando que o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivadopelo legislador encontra-se constitucionalmente garantido contra medidas estatais que, na prática,resultem na anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial, de tal sorteque a liberdade de conformação do legislador e a inerente auto-reversibilidade encontram limitaçãono núcleo essencial já realizado.

Pg. 140

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  Justamente tal premissa (ainda que não expressamente referida damesma forma na fundamentação), encontra-se na base do recente e járeferido acórdão do Tribunal Constitucional de Portugal (acórdão nº50912002), a respeito da inconstitucionalidade (por violação do princípio daproibição de retrocesso) do Decreto da Assembléia da República que, ao

substituir o antigo rendimento mínimo garantido por um novo rendimentosocial de inserção, excluiu da fruição do benefício (ainda que mediante aressalva dos direitos adquiridos) pessoas com idade entre 18 e 25 anos. Emtermos gerais e para o que importa neste momento, a decisão, ainda quenão unânime, entendeu que a legislação revogada, atinente ao rendimentomínimo garantido, concretizou o direito a segurança social dos cidadãosmais carentes (incluindo os jovens entre 18 e 25 anos), de tal sorte que anova legislação, ao excluir do novo rendimento social de inserção aspessoas nesta faixa etária, sem a previsão e/ou manutenção de algum tipode proteção social similar, estaria a retroceder no grau de realização jáalcançado do direito, a segurança social a ponto de violar o conteúdomínimo desse direito já que atingido o conteúdo nuclear do direito a ummínimo de existência condigna, não existindo outros instrumentos jurídicosque o possam assegurar com um mínimo de eficácia. Destaque-se, ainda,que o Tribunal Constitucional português reiterou pronunciamentosanteriores, reconhecendo que no âmbito da concretização dos direitossociais o legislador dispõe de ampla liberdade de conformação, podendodecidir a respeito dos instrumentos e sobre o montante dos benefíciossociais a serem prestados, sob pressuposto de que, em qualquer caso aescolha legislativa assegure, com um mínimo de eficácia jurídica, a garantiado direito a um mínimo de existência condigna para todos os casos.373

Da análise da paradigmática decisão ora citada, resulta - tal comoanunciado - que uma medida de cunho retrocessivo, para que não venha aviolar o princípio da proibição de retrocesso, deve, além de contar com uma

 justificativa de porte constitucional, salvaguardar - em qualquer hipótese - onúcleo essencial dos direitos sociais, notadamente naquilo em quecorresponde às prestações materiais indispensáveis para uma vida comdignidade para todas as pessoas, já que - como bem revela o caso oraexaminado - também haverá de ser respeitado o princípio da universalidadeda titularidade e do exercício dos direitos fundamentais, pelo menosdaqueles que possuem um conteúdo em dignidade da pessoa humana, tudoa demonstrar que também nesta esfera - em se considerando a

necessidade de uma hierarquização a luz do caso concreto - vigora o járeferido373. Para quem deseja aprofundar a análise, vale a pena conferir na íntegra a fundamentação do jácitado Acórdão nº 509/2002, Processo nº 768/2002, apreciado pelo Tribunal Constitucional dePortugal em 1912.2002.

Pg. 141postulado do in dúbio pro dignitate, por mais que se possa controverter emtorno do significado concreto da fórmula, considerada a dificuldade deestabelecer o conteúdo (âmbito de proteção) da dignidade.

Entre nós, referindo-se a proibição de retrocesso (embora, nahipótese, se deva reconhecer ser questionável o fato de se estar

efetivamente em face de uma típica situação de retrocesso, circunstânciaque - de qualquer sorte e no nosso sentir - não conflita com a correção do

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entendimento adotado no julgado) e bem demonstrando - consoante járeferido – que esta não opera exclusivamente na seara dos direitos aprestações fáticas - poder-se-á citar sugestivo exemplo extraído da

  jurisprudência do nosso Superior Tribunal de Justiça, que, embasadoespecialmente nas lições de Gomes Canotilho, reconheceu a

inconstitucionalidade (e ilegalidade) da denegação do benefício da isençãodo IPI (Imposto sobre Produtos, Industrializados) para portador dedeficiência física impossibilitado de dirigir, por ocasião da aquisição deautomóvel adaptado as suas circunstâncias e necessidades pessoais,aplicando o princípio da prevalência da norma mais benigna, com base naproteção constitucional e legal assegurada aos portadores de deficiência,inclusive como expressão de uma típica e indispensável ação afirmativa.374

À vista do exposto, verifica-se, desde logo, que o princípio dadignidade da pessoa humana cumpre, ao menos na perspectiva oraversada, dupla função. Com efeito, sendo também parte - ainda quevariável - integrante do conteúdo dos direitos fundamentais (ao menos, emregra), e para além da discussão em torno de sua identificação com onúcleo essencial, constata-se que o princípio da dignidade da pessoahumana serve como importante elemento de proteção dos direitos contramedidas restritivas e, portanto - na esteira do que lembra Francisco Segado- tam-374. Cf. Acórdão proferido no Recurso Especial nº 567.873-MG, Relatado pelo Ministro Luiz Fux (DJ25.02.2004). Na decisão citada, argumentou-se, entre outros pontos, que concessão do benefício daisenção do IPI (na aquisição de veículos especiais para portadores de deficiência) constituiconcretização de direitos fundamentais sociais, mas também do princípio da igualdade, que veda adiscriminação dos portadores de deficiência e compromete a sua integração social e profissional,razão pela qual constitucionalmente legitimada a isenção concedida, que não poderia ser suprimidaou mesmo assegurada apenas a veículos movidos a álcool, como ocorreu na hipótese. Assim, no

mínimo a violação do princípio da igualdade, revela que se está em face de plausível incidência daproibição de retrocesso não necessariamente na esfera dos direitos fundamentais sociais. Igualmentefazendo referência a proibição de retrocesso, não haveria como deixar de mencionar a decisão denosso Supremo Tribunal Federal sobre a tão polemizada questão da contribuição previdenciária dosinativos (julgamento ocorrido em 18.08.2004). A despeito de a maioria dos Ministros ter votado afavor da cobrança da contribuição, convém registrar que em um dos quatro votos vencidos(nomeadamente no voto lançado pelo Ministro Celso de Mello) foi apontada, como fundamento dainconstitucionalidade da cobrança, a incidência do princípio da vedação do retrocesso, tudo aapontar que também entre nós tal princípio está sendo objetivo de crescente discussão.

Pg. 142bem contra o uso abusivo dos direitos.375 Todavia, cumpre relembrar que oprincípio da dignidade da pessoa também serve como justificativa para aimposição de restrições a direitos fundamentais, acabando, neste sentido,por atuar como elemento limitador destes. Como tal aspecto já foienfrentado no segmento anterior, inclusive com referência de algunsexemplos, deixaremos aqui de retomar o tema. O que importa, nomomento, é que sempre se poderá afirmar, como já anunciado no títulodeste segmento, que a dignidade da pessoa atua simultaneamente comolimite dos direitos e limite dos limites,376 isto é, barreira contra a atividaderestritiva dos direitos fundamentais, o que efetivamente não afasta acontrovérsia sobre o próprio conteúdo da dignidade e a existência, ou não,de uma violação do seu âmbito de proteção.5.2. A discussão em torno do caráter absoluto da dignidade e da

possibilidade de sua eventual relativização

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Nesta quadra da exposição e tendo em conta as considerações játecidas, não poderíamos deixar intocado outro instigante e tormentosoproblema, qual seja, o da possibilidade de se estabelecerem restrições(limites) a própria dignidade da pessoa. Com efeito, em se considerando aperspectiva dúplice da dignidade como elemento limitador e integrante

(protetivo) dos direitos fundamentais, não nos parece - pelo menos em nívelteórico e em caráter por ora meramente especulativo - desarrazoadoindagar, se, para assegurar a dignidade e os direitos fundamentais de umadeterminada pessoa (ou grupo de pessoas) não se acaba, por vezes,afetando (limitando) a dignidade de outra pessoa, seja considerando adignidade como bem jurídico autônomo, seja em se tomando-a comorepresentando o conteúdo de determinado direito fundamental Em suma,cuida-se de saber até que ponto a dignidade da pessoa, notadamente nasua condição de princípio e direito fundamental, pode efetivamente ser tidacomo absoluta, isto é, completamente infensa a qualquer tipo de restriçãoe/ou relativização.

Para além disto, coloca-se o problema de saber quais direitosfundamentais efetivamente possuem um conteúdo em dignidade da pessoahumana, em outras palavras, se podem ser tidos como manifestação (exi-375 cf. F. F. Segado, "la dignidad de la persona como valor supremo deI ordenamiento jurídico", in:Estado & Direito, p. 128-29, a partir de jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol.376 No mesmo sentido, v., também, L. F. C. Freitas, Direitos Fundamentais: limites e restrições, p.220 e ss., igualmente sustentando a ausência de identidade entre núcleo e essencial e conteúdo emdignidade da pessoa humana dos direitos fundamentais, p. 222, nota nº 809.

Pg. 143gência) direta ou, pelo menos, indireta desta dignidade. Ainda que se partada premissa (não de todo inquestionável no sistema juridíco-constitucional

brasileiro) de que todos os direitos fundamentais possuem, como elementocomum, pelo menos um conteúdo mínimo em dignidade, remanesce adúvida de qual é exatamente este conteúdo em dignidade que, para alémdisso, poderá, ou não, coincidir com o assim denominado núcleo essencialdo direito fundamental. Seja qual for a opção tomada, apenas o exame emconcreto, considerando cada norma de direito fundamental (na sua duplaperspectiva objetiva e subjetiva),377 bem como avaliando a natureza eintensidade da ofensa, lograra fornecer os elementos para uma soluçãoconstitucionalmente adequada.

De outra parte, percebe-se, desde logo, que o problema já se colocaquando se toma a sério a referida dimensão intersubjetiva da dignidade da

pessoa humana. Sendo todas as pessoas iguais em dignidade (embora nãose portem de modo igualmente digno) e existindo, portanto, um dever derespeito recíproco (de cada pessoa) da dignidade alheia (para além dodever de respeito e proteção do poder público e da sociedade), poder-se-áimaginar a hipótese de um conflito direto entre as dignidades de pessoasdiversas, impondo-se - também nestes casos - o estabelecimento de umaconcordância pratica378 (ou harmonização), que necessariamente implica ahierarquização (como sustenta Juarez Preitas) ou a ponderação (conformeprefere Alexy) dos bens em rota conflitiva, neste caso, do mesmo bem(dignidade) concretamente atribuído a dois ou mais titulares. Na mesma

linha - muito embora com implicações peculiares - situa-se a hipótese deacordo com a qual a dignidade pessoal poderia ceder em face de valoressociais mais relevantes, designadamente quando o intuito for o de

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salvaguardar a vida e a dignidade pessoal dos demais integrantes dedeterminada comunidade, aspecto sobre o qual voltaremos a nosmanifestar.

Se partirmos da premissa de que a dignidade, sendo qualidadeinerente a essência do ser humano, se constitui em bem jurídico absoluto,

e, portanto, inalienável, irrenunciável e intangível, como parece sugerir aexpressiva maioria da doutrina e da jurisprudência,379 certamenteacabaremos por ter dificuldades ao nos confrontarmos com o problemareferido.377. Sobre a dupla dimensão objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais e os seusdesdobramentos, remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 141 e ss.378. A expressão concordância prática vai aqui utilizada no sentido cunhado por K. Hesse, Grundzügedes Velfassungsreclus der Bundesrepublik Deutschland, p. 28, sustentando que bens jurídico-constitucionais devem, quando da solução do caso concreto, ser aplicados de tal sorte a terem cadaum sua efetividade assegurada, de modo que, na hipótese de colisões, um não deve ser realizado ascustas do outro, impondo-se, a luz do postulado da unidade da Constituição, a otimização dos bensconflitantes, de modo a assegurar-lhes o máximo em eficácia e efetividade.379. Cf., dentre tantos, Podlech, in: Alternativ Kommentar, voI. T, p. 296-7.

Pg. 144Por outro lado, parece-nos irrefutável que, na esfera das relações

sociais, nos encontramos diuturnamente diante de situações nas quais adignidade de uma determinada pessoa (e até mesmo de grupos deindivíduos) esteja sendo objeto de violação por parte de terceiros, de talsorte que sempre se põe o problema - teórico e pratico - de saber se épossível, com o escopo de proteger a dignidade de alguém, afetar adignidade do ofensor, que, pela sua condição humana, é igualmente digno,mas que, ao menos naquela circunstância, age de modo indigno e viola adignidade dos seus semelhantes, ainda que tal comportamento não resulte

- como já anunciado alhures - na perda da dignidade.Neste contexto, vale lembrar a lição do publicista germânico Brugger,que, ao discorrer justamente sobre esta temática, parte da premissa - quenos parece correta - de que a Lei Fundamental da Alemanha, quando, noseu artigo 1º, inciso I, anunciou que a "dignidade do homem é intangível",

 justamente tomou por referência a experiência de que esta dignidade é, defato, violável e que por esta razão necessita ser respeitada e protegida,especialmente pelo poder que, apesar de muitas vezes ser o agenteofensor, ainda acaba sendo a maior e mais efetiva instância de proteção dadignidade da pessoa humana.380 Muito embora no direito constitucionalposição pátrio o princípio da dignidade da pessoa humana não tenha sido

formulado de modo tão enfático - já que não se fez menção expressaalguma a sua inviolabilidade - outro não tem sido o entendimentomajoritário, tal como já restou consignado. Mesmo assim, ninguém serácapaz de negar que entre nós - e lamentavelmente cada vez mais - adignidade da pessoa humana (de alguns humanos mais do que de outros) édesconsiderada, desrespeitada, violada e desprotegida, seja peloincremento assustador da violência contra a pessoa, seja pela carênciasocial, econômica e cultural e grave comprometimento das condiçõesexistenciais mínimas para uma vida com dignidade e, neste passo, de umaexistência com sabor de humanidade.

Assim, diante da evidente violabilidade concreta da dignidadepessoal, e em que pese o mandamento juridíco-constitucional de suaintangibilidade, permanece o questionamento do cunho absoluto da

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dignidade da pessoa e da possibilidade de se admitir eventuais limitações adignidade pessoal. Apenas para ilustrar o problema, parece-nos quedificilmente se poderá, por exemplo, questionar que o encarceramento decondenado pela380. cf. w. Brugger, Menschenwürde..., p. 19. Convém lembrar que tal formulação encontra suaexplicação no passado recente da Alemanha, na época da elaboração da Lei Fundamental,notadamente a experiência trágica e brutal da ditadura nacional-socialista, onde a degradação dapessoa humana e as violações da sua dignidade alcançaram dimensões (pelo menos no que diz comsua quantidade) nunca dantes registradas.

Pg. 145prática de homicídio qualificado pela utilização de meio cruel (ou outrodelito de suma gravidade) em prisão com problemas de superlotação, nãoconstitua, efetivamente, uma violação de sua liberdade e dignidadepessoal, ainda que com amparo aparente no sistema jurídico-positivo. Damesma forma, parece-nos estreme de dúvidas o fato de que a sançãoimposta (no caso, a prisão) decorre por razões vinculadas (ainda que nãoexclusivamente) a necessidade de proteção da vida, liberdade e dignidadedos demais indivíduos, que, a evidência, não podendo ficar a mercê de todasorte de violência e violação de sua dignidade pessoal sob o argumento deque a segregação do ofensor se afigura impossível já que, por sua vez,implica limitação de sua própria dignidade, a não ser, é claro, que não setenha a pena de prisão (em suma, a privação temporária da liberdade)como ofensiva a dignidade, mas apenas como restrição intensa daliberdade, que, no entanto, preserva integro o conteúdo em dignidadeinquestionavelmente ínsito aos direitos de liberdade. Não há comodesconsiderar, neste contexto, a função da dignidade como tarefa, nosentido específico de que ao Estado - e o direito penal também cumpre este

desiderato - incumbe o dever de proteger (inclusive mediante condutaspositivas) os direitos fundamentais e a dignidade dos particulares.381

Note-se, neste contexto, que diversa já poderia ser a solução em seconsiderando a imposição de pena de prisão, em regime inicial fechado,para o condenado por reincidente prática de furto simples (ou mesmoqualificado), hipótese na qual já se poderia até mesmo sustentar aexistência de ofensa ao princípio da proporcionalidade, antes mesmo deuma violação da dignidade pessoal.382 Absolutamente inadmissível, por suavez,381. Convém lembrar a função prestacional (positiva) da dignidade, na qual se insere (também) atutela penal de bens jusfundamentalmente reconhecidos, como é o caso da honra, integridadecorporal, criminalização da tortura, etc., todos os bens jurídico-fundamentais diretamenterelacionados com a dignidade. Aliás, tal referência foi objeto de previsão expressa no novo CódigoPenal da Espanha (1995), que, em seu artigo 205, dispõe que "es injuria la accion o expresion quelesionan la dignidad de otra persona, menoscabando su fama o atentando contra su própiaestimación", revelando justamente que - ao menos para o ordenamento espanhol- o tipo penal dainjuria encontra-se diretamente ligado a violação da dignidade da pessoa, esta como elementonuclear dos direitos a honra e a imagem.382. Com isto - cumpre registrá-Io - não estamos a aderir integralmente a paradigmática posiçãosufragada pela Egrégia 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS, quando do julgamento daApelação-Crime nº 699.291.050, (Rel. Des. Hamilton Bueno de Carvalho), confirmando e adotandovirtualmente como razão de decidir alentada sentença proferida pelo Magistrado Mauro Borba, alémde acolher os argumentos colacionados pelo eminente Procurador de Justiça e Prof. Dr. Lenio L.Streck. Com efeito, na esteira do voto vencido exarado pelo Des. Aramis Nassif (oportunamente -embora de modo não explícito - apontando para a existência de um dever de proteção do Estado)consideramos que não é o caso de ter-se por inconstitucional o próprio instituto da reincidência (em

tese), mas sim, que se deve reconhecer que a reincidência, tendo em conta as peculiaridades docaso concreto, poderá ter uma aplicação inconstitucional, em especial- como parece-nos ocorrer na

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hipótese ora ventilada - quando, por exemplo, manifestamente ofensiva aos ditames da

proporcionalidade,

 ____________________________________________________________________________  _ 

Pg. 146a utilização da tortura (que, entre nós, se encontra vedada por norma dedireito fundamental específica) para que se obtenha a confissão do mesmoacusado pela prática de homicídio qualificado, ainda que não se tivessequalquer outro meio de prova disponível e que, para além disso, se pudesseter a prévia certeza (como se isto fosse possível, no caso) de que, de fato,estivéssemos diante do culpado. Que a prática da tortura implicainequivocamente a coisificação e degradação da pessoa, transformando-aem mero objeto da ação arbitrária de terceiros, sendo, portanto,incompatível com a dignidade da pessoa, parece-nos questão que dispensaqualquer comentário adicional.

 Tal linha de entendimento, Aliás, revela-se absolutamente afinadacom a evolução juridíco-constitucional contemporânea e a opção dolegislador internacional em matéria de direitos humanos, que, ainda maisno caso da tortura, guarda umbilical ligação com a própria proteção dadignidade da pessoa e da aplicação, neste caso, da referida fórmula-objeto,que veda toda e qualquer coisificação (instrumentalização) da pessoahumana. Convém registrar, no contexto, que entre nós já existe pacífica ereiterada posição do Supremo Tribunal Federal,383 chancelando a vedaçãoabsoluta da tortura, ainda que tal reconhecimento, por si só, não impeça aocorrência de tal prática, mas tenha por efeito a sua ilegitimidade jurídica.

Da jurisprudência internacional, destacamos um dos julgamentos da CorteEuropéia de Direitos Humanos, do dia 28.07.1999 (caso Selmouni contra aFrança), onde - em que pese ter a Corte se declarado incompetente para oefeito de estabelecer uma indenização pelos danos causados - foireconhecido que o uso da força por ocasião de um interrogatório,especialmente (mas não exclusivamente) quando caracterizado a tortura, émanifestamente incompatível com a vedação estabelecida pelo artigo 30 daConvenção Européia de Direitos Humanos, que proíbe a tortura e qualquertratamento desumano ou degradante, assim como se trata de atoaspecto este, por sua vez, oportunamente referido no Acórdão. Tal exegese, de resto, aproxima-seda tese advogada pelo eminente Ministro Luiz Vicente Cemicchiaro, Reincidência, in: Informativo doInstituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC), ano I, nº 3 (1999), p. 3, propondo, em suma,

uma análise guiada pelo caso concreto, aplicando-se a agravante da reincidência apenas quandohouver uma conexão direta e inequívoca com o fato e entre os delitos. De qualquer modo, este não éo momento oportuno para enfrentarmos tal questão, bastando aqui a referência ao exemplo e suaspotencialidades. De outra parte, a relevância da discussão - que de longe não se restringe aoexemplo da reincidência - toma imperioso um desenvolvimento autônomo da temática, para o queremetemos (a despeito da parcial divergência apontada no caso da reincidência) ao paradigmáticoestudo de S. de Carvalho, Penas e Garantias, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, desenvolvendo umateoria garantista e secularizada (especialmente a luz dos direitos fundamentais e daproporcionalidade) do direito penal, notadamente no que diz com a pena e sua aplicação.383. Cf., por exemplo, a decisão proferida no Habeas Corpus nº 70.389-SP, relatado pelo MinistroCelso de Mello e publicado no DJ em 23.06.1994, hipótese em que se tratava de tortura contra

criança e adolescente.Pg. 148

incompatível com a dignidade da pessoa humana.384 Também o TribunalConstitucional Federal da Alemanha, desde o início de sua profícua

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  judicatura, situa a hipótese da tortura e do tratamento desumano edegradante (inclusive mediante referência reiterada aos métodos utilizadosno período nacional-socialista) como absolutamente vedada com base nadignidade da pessoa humana, colacionando-se, em caráter ilustrativo,decisão mais recente onde estava em causa à prática de tortura na esfera

de investigação policial, o conhecido caso "Daschner", no qual o Tribunalafirmou que a utilização da tortura reduz a pessoa inquirida a condição demero objeto do combate ao crime, representando violação de suapretensão de respeito e consideração constitucionalmente tutelada, alémde destruir pressupostos fundamentais da existência individual e social doser humano.385

Neste mesmo contexto, da vedação da prática de atos degradantes edesumanos, situa-se o problema da humilhação, ou seja, de o quanto atospraticados por pessoas que submetem outras pessoas a situaçõeshumilhantes, para efeito de aferição da ocorrência de uma violação dadignidade da pessoa humana, podem e devem ser equiparadas ashipóteses do tratamento desumano e/ou degradante. Que a resposta há deser positiva, no sentido de que atos de humilhação representam tambémuma violação da dignidade, parece (ou deveria parecer) incontroverso etem sido amplamente reconhecido, embora a polêmica em tomo de quaisos atos que efetivamente podem ser enquadrados na hipótese. Umexemplo digno de nota, ainda mais em função da discussão que gerou naesfera pública, pode ser encontrado na Súmula do STF que restringiu o usode algemas por parte da autoridade judiciária e policial, exigindo

 justificativa devidamente fundamentada para tanto. Embora questionávelse o uso em si de algemas já representa uma violação da dignidade da

pessoa (o que, se for admitido como correto, implica afirmar que a absolutamaioria dos Estados e de suas ordens jurídicas chancela prática indigna), oque merece destaque, sem prejuízo de outros aspectos a serem discutidose da correção do uso do instituto da Súmula no caso, é a mensagem clarade que a humilhação pura e simples, o uso desnecessário e, portantoabusivo, de algemas ou mesmo outros meios que reduzem a pessoa àcondição de objeto ou limitam fortemente sua capacidade de ação eliberdade, assim como a384. Cf. decisão citada na Revue Trimmestrielle des Droits de L 'Homme. 2000. p. 123 e ss., seguidade um comentário de Pierre Lambert.385. Cf., BVerfg (K), NJW 2005, 656 (657), tradução livre da seguinte passagem no original: "DieAnwendung von Folter maeht die Vernehmungsperson zum blossen Objekt der

Verbrechensbekämpfung unter Verletzung ihres verfassungsrechtlich geschützten sozialen Wert-undAchtungsanspruchs und zerstbrt grundlegende Voraussetzungen der individuellen und sozialenExistenz des Menschen".

 ____________________________________________________________________________  _ Pg.148exposição pública e não raras vezes para efeitos "midiáticos" (reforçando oargumento da humilhação) da pessoa algemada devem ser repudiados.

O caso da tortura e da vedação de qualquer tipo de tratamentodesumano ou degradante assume, além disso, importância no que diz coma discussão a respeito da existência, ou não, de direitos absolutos, no

sentido de absolutamente imunes a qualquer tipo de intervenção restritiva.

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De outra parte, sem que se vê adentrar o ponto propriamente dito, háque reconhecer que se está em face, no que diz com a estrutura normativa,de uma regra (e não mais de um princípio) impeditiva de determinada(s)condutas (tal, como formulada expressamente no artigo 5º, inciso III, daConstituição Federal de 1988),386 regra esta que, de outra parte, diz

respeito justamente ao que se poderia enquadrar no âmbito do núcleoessencial do princípio da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, avedação da tortura e a impossibilidade de "flexibilização" da regracorrespondente não se revelam incompatíveis com a tese de que na suadimensão principiológica também a dignidade da pessoa humana não éabsolutamente infensa a algum tipo de restrição (pelo menos no que dizcom a definição do seu âmbito de proteção pelo legislador e pelo Juiz),embora se reconheça que o tema merece maior reflexão.387 A própria regraproibitiva da tortura e de qualquer tratamento desumano ou degradantenão deixa de assegurar uma razoável margem de apreciação por partetanto do legislador (a quem incumbe, em primeira linha, selecionar os atosque se enquadram na hipótese) quanto por parte dos órgãos jurisdicionais,que tendo inclusive a missão de avaliar a correção da opção legislativa.

Para que fique suficientemente clara a nossa posição, o que se está adizer é que eventual margem de ação para definição (com vistas à extraçãode efeitos jurídicos, ainda mais quando se trata de justificar a imposição desanções) do que significa tortura e/ou tratamento desumano e degradante,não equivale a dizer que, mesmo com o objetivo de salvar vidas deterceiros, se possa - no âmbito de uma "ponderação" das dignidades dosenvolvidos - considerar juridicamente legitima a prática da tortura, muitoembora não sejam tão poucos assim os defensores de tal possibilidade.388

386. Além disso, a teor do que dispõe o artigo 5º ,XLIII, da CF de 1988, a tortura constitui crimeinafiançável e insuscetível de graça ou anistia.387. No mesmo sentido, v., por ultimo, V. A. da Silva, Direitos Fundamentais..., p. 200-202.388. Na doutrina alemã, um dos primeiros e principais autores a sugerir a possibilidade de. em nomeda dignidade e com o intuito de salvaguardar direitos de terceiros. designadamente em casosextremos e quando grave o risco de vida para outras pessoas e inexistentes outros meios eficientespara evitar o dano, como, por exemplo - e este é um exemplo recorrente na doutrina - para descobriro paradeiro de uma bomba armada e capaz de matar dezenas e mesmo centenas de pessoas - foi W.Brugger, Menschenwürde..., p. 23. Nos Estados Unidos da América, onde o tema alcançousignificativa repercussão especialmente após o trágico atentado de 11.09.2001, v., dentre tantos, adiscussão proposta por R.

Pg. 149Com efeito, volta-se a frisar que a regra impeditiva da tortura e de

tratamento desumano e degradante já poderia (como de fato, assim o temsido em diversos ordenamentos jurídicos) ser deduzida diretamente comoexpressão da dignidade da pessoa humana, no âmbito de um conteúdomínimo universalizável, como, de resto, demonstra a evolução no plano dopróprio direito internacional dos direitos humanos onde, seja no planoregional, seja no plano universal, a tortura foi categoricamente proscrita.

O exemplo da vedação da tortura (assim como, em sentido similar, oda proibição de abate de um avião com seqüestradores a bordo,389 bemilustra a já referida função da dignidade da pessoa humana como clausula(ética e jurídica) de barreira, que fundamenta uma espécie de "sinal depare", inclusive no sentido de operar como um "tabu" (no sentido de não ter

sua validade absoluta condicionada a qualquer justificativa de matrizdogmática, não estar sujeito a uma ponderação e dela não necessitar para

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efeitos de ter sua eficácia jurídica e de regulação reconhecida),390 aestabelecer um "território proibido", onde o Estado não pode intervir eonde, além disso, lhe incumbe assegurar a proteção da pessoa (e suadignidade) contra terceiros. Por outro lado, que mesmo tal uso dadignidade, por várias razões (independentemente da correção - importa

repisar - da proibição da tortura e de outras condutas manifestamenteofensivas a dignidade) se revela imune a controvérsias, vai aqui assumido,assim como se assume a opção de não desenvolver o tópico.A. Posner. Nor a Suicide Pact. The Constitution in a Time of National Emergency. Oxford UniversityPress, 2006, p. 77 e ss.389. Aqui estamos a nos referir a caso apreciado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha,que envolvia a discussão sobre a constitucionalidade, entre outros dispositivos. de artigo de Leieditada pelo Parlamento Alemão objetivando o combate ao terrorismo, o qual prévia a possibilidadede abate, por parte das forças armadas alemãs, de aeronave, mesmo civil, ocupada por terroristas,verificada a possibilidade de a aeronave vir a ser utilizada para destruição de alvos civis ou militaresa causar a morte de pessoas inocentes, tal qual ocorreu nos ataques ao Pentágono e Torres Gêmeas(11 de Setembro de 2001). Na sua enfática decisão (v. BVerfGE 115, 118/154), o TribunalConstitucional, em síntese, decidiu pela inconstitucionalidade de tal previsão legal, enfatizando -

dentre outros aspectos de relevo - que tanto a tripulação quanto os passageiros do avião estariamsendo reduzidos a condição de objeto, além de destituídos de seus direitos, visto que sua morteestaria servindo de meio para a salvação de outras vidas. Embora não se possa aprofundar o ponto. oque desde logo chama a atenção é, novamente, a circunstância de como a solução adotada (emnome da vida e da dignidade) pode variar, a depender de quem tem a prerrogativa de decidir sobre amatéria, mesmo em se tratando de ordens jurídicas de um Estado Democrático de Direito. bastandoapontar para a alternativa adotada nos EUA, onde aviões chegaram a ser abatidos com passageiros etripulação inocentes a bordo. Discussão similar ocorreu entre nós, embora voltada especialmente aocombate do narcotráfico, havendo, em tese, possibilidade de a força aérea abater aeronave tripuladapor suspeitos de trafico e contrabando, ou seja, sequer se está a falar de uma ameaça real eimediata da vida de civis inocentes, sem que, por evidente, se esteja a desconsiderar o mal causadoespecialmente pelo tráfico.390. Sobre a dignidade da pessoa humana como "Tabu" v.. por todos, R. Poscher, "Die Würde desMenschen ist Unantastbar". JZ 2004, p. 756 e ss.

Pg. 150A partir do exposto, assume relevo aspecto que, não obstante seucunho elementar, não pode ser desconsiderado, qual seja, o de que adignidade, ainda que não se a trate como o espelho no qual todos vêem oque desejam, inevitavelmente já está sujeita a uma relativização (de restocomum a todos os conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (nãoimporta aqui se juiz, legislador, administrador ou particular) sempre iradecidir qual o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma violação nocaso concreto.391 Os exemplos da pena de morte, da tolerância dasmutilações genitais e da própria tortura em algumas ordens jurídicas - queaqui voltamos a referir - certamente dão conta de quão dispares podem seros resultados quanto a este ponto, inclusive no que diz com oreconhecimento da própria dignidade (ao menos na acepção aquisustentada) como um valor essencial para a ordem jurídica e social.

Outro problema - que, de resto, tem sido objeto de amplo debate - dizcom a já lembrada e possível contraposição dos valores dignidade e vida.Com efeito, pressuposta a existência de um direito a vida com dignidade ese tomando o caso de um doente em fase terminal, vitima de sofrimentosatrozes e sem qualquer esperança de recuperação, sempre se poderáindagar a respeito da legitimidade da prática da eutanásia ou do suicídioassistido, justificando-a com base no argumento de que mais vale morrer

com dignidade, ou então fazer prevalecer (mesmo contrariamente avontade expressa do doente ou mesmo em flagrante violação de sua

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dignidade) o direito (e, nesta quadra, também dever) a vida, ou mesmo, naesteira de exemplo já referido, considerar que a dignidade engloba anecessidade de preservar e respeitar a vida humana, por mais sofrimentoque se esteja a causar com tal medida. Em verdade, em se admitindo umaprioridade da vida (e não são poucos os que assim o sustentam),392

391 Neste sentido. v. também A. R. Tavares, Princípio da consubstancialidade parcial..., p. 230 e ss.392 Sustentando uma priorização do direito a vida. e afirmando ser esta o valor (bem jurídico) maisrelevante. vale lembrar a lição de M. Kloepfer, Grudrechtstatbestand und Grundrechtsschranken...p.412, consignando que.a dignidade é reconhecida e objeto de proteção onde há vida humana e esta,por sua vez. tem sido considerada a base vital da própria dignidade, argumentando que o direito avida não pode ser mais limitável que um direito fundamental que tenha a vida (e todos, inclusive adignidade e os direitos a ela inerentes, a tem) como pressuposto. Tal concepção, que mesmo naAlemanha - onde esbarra no entendimento contrario da maioria doutrinária e jurisprudencial _ não seencontra imune a controvérsias, também entre nós merece ser objeto de questionamento, inclusive _ embora não exclusivamente - considerando a posição e função expressamente outorgada peloConstituinte de 1988 à dignidade da pessoa como princípio fundamental (e fundamento) do nossoEstado democrático de Direito. Afirmando a primazia do direito a vida, considerando-o "valor centrale superior da Constituição", v. também - no direito lusitano - a recente contribuição de P. Otero,Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano, p. 35 e ss., destacando, ainda. ser a

"inviolabilidade da vida humana. principal expressão do respeito pela dignidade do ser humano." Dequalquer modo, é de questionar-se, em face da inequívoca relação (intima e aparentementeindissociável) entre a vida e a dignidade da pessoa, a própria possibilidade ou, pelo menos, aconveniência, de se estabelecer, em

 ____________________________________________________________________________  _ pg. 151no âmbito de uma hierarquização axiológica, estar-se-á fatalmente dandomargem a eventual relativização e, neste passo, também admitindo (comodecorrência lógica) uma ponderação da dignidade, de tal sorte que desdelogo (embora não apenas por este motivo) merece ser encarada com certareserva a assertiva de que a dignidade não se encontra sujeita, em hipótesealguma, a juízos de ponderação de interesses.393 No mínimo, parece-nos quea realidade da vida (e da dignidade) oferece situações-limite, diante dasquais dificilmente não se haverá de pelo menos questionar determinadosentendimentos.

Os exemplos colacionados, no nosso sentir, são pálidas amostras damiríade de hipóteses nas quais nos deparamos com a necessidade real deresolver conflitos (ou, pelo menos, tensões) estabelecidos quando se tratade proteger e resguardar a igual dignidade de todos os seres humanos. Éneste sentido que não podemos deixar de relembrar - na esteira de Alexy -que até mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana (por força de

sua própria condição principiológica) acaba por sujeitar-se, em sendocontraposto a igual dignidade de terceiros, a uma necessáriarelativização,394 e isto não obstante se deva admitir - no âmbito de umahierarquização axiológica - sua prevalência no confronto com outrosprincípios e regras constitucionais, mesmo em matéria de direitosfundamentais. Com efeito, não há como deixar de reconhecer -acompanhando Kloepfer - que mesmo em se tendo a dignidade como ovalor supremo do ordenamento jurídico, daí não segue, por si só enecessariamente, o postulado de sua absoluta intangibilidade.395 Assim,também nas tensões verificadas no re-abstrato e previamente, uma hierarquia axiológica entre os valores (e bens jurídicos) vida e

dignidade, temática que, pelas suas implicações, não temos a pretensão de aqui aprofundar. Aliás,tal entendimento foi objeto de recente manifestação do mesmo M. Kloepfer, Leben und Würde desMenschen, in: Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, p. 77 e ss., sustentando, além da

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intrínseca vinculação entre vida e dignidade, ambos formando uma unidade indissolúvel, aimpossibilidade de se afirmar uma prioridade a priori da dignidade (v. especialmente p. 78-79).393. A respeito da inviabilidade de sujeitar-se a dignidade da pessoa humana a ponderação deinteresses, v. a recente contribuição, entre nós, de D. Sarmento, A Ponderação de Interesses naConstituição, p. 73 e ss., sustentando, na esteira do que já havia proposto F. Ferreira dos Santos,Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, p. 94-96, que a dignidade, na condição devalor maior do ordenamento jurídico, atua como principal critério substantivo na ponderação de

interesses constitucionais, mas não poderá jamais ser objeto de ponderação, no sentido de se admitirsua violação ou relativização em face de outros valores constitucionais.394. Consoante já restou consignado, para Alexy, Teoria de los Derechos fundamentales, p. 108-9,também o princípio da dignidade da pessoa (justamente na sua condição de princípio) admite umarealização em diversos graus. Entre nós, recentemente, e entre outros, v. também M. N. Camargo, "OConteúdo Jurídico da Dignidade da Pessoa Humana", in: Leiwras Complementares de Constitucional,p. 128 e ss.395. Cf. M. Kloepfer, Grundrechtstatbestand und Grundrechtsschranken..., p. 411, sustentando -neste contexto - que mesmo tida como valor (bem jurídico) maior, tal por si só não significa que adignidade deva em todo e qualquer caso prevalecer em face dos outros bens fundamentais, mas sim,que a ela

Pg. 152lacionamento entre pessoas igualmente dignas, não se poderá dispensar -

até mesmo em face da necessidade de solucionar o caso concreto - um juízo de ponderação ou (o que parece mais correto) uma hierarquização,que, a evidência, jamais poderá resultar - e esta a dimensão efetivamenteabsoluta da dignidade - no sacrifício da dignidade, na condição de valorintrínseco e insubstituível de cada ser humano que, como tal, sempredeverá ser reconhecido e protegido, sendo, portanto - e especificamenteneste sentido - imponderável,396 Por outro lado, como já frisado em váriosmomentos, a dignidade da pessoa, no plano jurídico-normativo, encontra-seassegurada simultaneamente por meio de princípios e regras, de tal sorte -e o exemplo da proibição da tortura e de todo e qualquer tratamentodesumano e degradante bem o demonstra - que se na condição de princípioé possível (e até mesmo necessário) admitir a existência de algumamargem para a sua interpretação e aplicação (inclusive mediante umaponderação na relação com outros bens e interesses jusfundamentalmenteprotegidos), há também como admitir que na condição de regra, atua comofundamento para a proibição de determinadas condutas, em relação àsquais a ordem jurídica não admite exceção. Mesmo assim, consoante jádestacado, não haverá como evitar a formulação de um juízo de valor (e,portanto, num certo sentido, uma ponderação) a respeito da existência, ounão, de uma violação da dignidade, por mais que se venham a fixardiretrizes para tal tarefa, visto que também critérios abstrata e previamente

estabelecidos sempre sendo o resultado de uma avaliação subjetiva e,neste sentido, de uma opção axiológica (hierarquização).  Justamente no que diz com a indispensável hierarquização (e/ou

ponderação), poderá assumir algum destaque a circunstância de que osdireitos fundamentais não possuem, conforme já restou suficientementefrisado, o mesmo conteúdo em dignidade, já que dela constituemexigências e concretizações em maior ou menor grau de intensidade, istosem falar na possibilidade de existirem direitos fundamentais sem umconteúdo aferível em dignidade. Da mesma forma, muito embora a práticade atos indignos (vale dizer claramente, de violações da dignidade) nãotenha o condão de acarretar a perda da dignidade (que não ocorre nemmesmo vo-

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deve ser reconhecida uma posição privilegiada no âmbito do estabelecimento de uma harmonizaçãocom os demais princípios e direitos fundamentais, antecipando, de tal sorte e em parte, opensamento posteriormente retomado e desenvolvido por Alexy.396 Tal entendimento acaba. de certo modo, por aproximar-se de uma concepção minimalista dadignidade ou mesmo indiciando a possibilidade de cogitar-se da existência de um núcleo essencialtambém do princípio (e direitos fundamentais dele decorrentes) da dignidade da pessoa humana,

aspecto que voltaremos a abordar.Pg. 153luntariamente, já que, ao menos em princípio, irrenunciável), nos parecerazoável admitir - rendendo-nos ao que inexoravelmente acaba ocorrendona prática - que qualquer pessoa, ao cometer uma ofensa à dignidadealheia, acaba por colocar, a si mesma, numa condição de desigualdade nasua relação com os seus semelhantes, que, para além de serem igualmentedignos por serem pessoa, são também - pelo menos para efeito do casoconcreto em que se está a fazer a ponderação - dignos nas suas ações (e,exatamente neste particular, diferentes).397 Assim, considerando quetambém o princípio isonômico (no sentido de tratar os desiguais de forma

desigual) é, por sua vez, corolário direto da dignidade, forçoso admitir -pena de restarem sem solução boa parte dos casos concretos - que aprópria dignidade individual acaba, ao menos de acordo com o que admiteparte da doutrina constitucional contemporânea, por admitir certarelativização, desde que justificada pela necessidade de proteção dadignidade de terceiros, especialmente quando se trata de resguardar adignidade de todos os integrantes de uma determinada comunidade.398

 Todavia, eventual relativização da dignidade na sua condição de princípio(de norma jurídica) não significa - convém reiterá-Io para evitarincompreensões - que se esteja a transigir com a função da dignidade comoregra impeditiva de condutas que representam violações a aspectosnucleares do âmbito de proteção da dignidade ou mesmo com a existênciade regras impositivas de ações e omissões destinadas à salvaguarda epromoção da dignidade (satisfação do mínimo existencial, por exemplo). Damesma forma, a dignidade, naquilo que guarda relação com a pretensão derespeito e consideração da pessoa na sua relação com o Estado e comoutros indivíduos e no que traduz a noção de aptidão da pessoa (de toda equalquer pessoa) a ser sujeito de direitos e obrigações, não pode ser objetode supressão e desconsideração pelo Estado e pela sociedade.

Neste contexto, pelo menos não há como desconsiderar aargumentação de Winfried Brugger, ao sustentar que no embate entre

dignidade397 Neste passo, W. Brugger, Menschenwürde... p. 35, indaga se efetivamente se pode falar em igualrespeito e consideração, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, as pessoas que, nosseus atos, se portam de modo indigno, em relação aos demais que se portam com respeito em facede seus semelhantes. Considerando tal aspecto, não é a toa que se tenha tratado uma distinçãoentre a dignidade fundamental (esta absoluta) e a dignidade "atuada". isto é, manifestada pelos atosconcretos das pessoas (estes sujeitos a limites). Neste sentido, v. B. Maurer, Note sur le respect de ladignité humaine ..., p. 211-211.398 A favor de restrições recíprocas com o escopo de salvaguardar a dignidade de uma outra pessoa,v. C. Starck, in: Bonner Grundgesetz, p. 52 ("apenas na medida em que a proteção da dignidadeencontra-se em face da proteção da dignidade, uma ponderação. eventualmente também umarestrição, encontra-se constitucionalmente justificada"). Entre nós, arrimado nas lições de Alexy, v. E.Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 53, admite uma relativização da dignidade da pessoa emfunção de seu cunho principiológico.

Pg. 154

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e dignidade, a tese de acordo com a qual a dignidade da pessoa humanaconstitui direito fundamental de feições absolutas (no sentido deabsolutamente infenso a qualquer relativização), além de revelar-se comosendo de difícil compatibilização com o caráter não absoluto de todos osdemais direitos fundamentais (e com os quais a dignidade encontra-se

umbilicalmente ligada), já que mesmo os direitos não sujeitos a reservalegal encontram-se expostos aos assim denominados limites implícitos(aqui considerados como restrições não expressamente autorizadas pelaConstituição e impostas pela necessidade de compatibilização com outrosdireitos fundamentais ou bens constitucionalmente assegurados pelaConstituição),399 acabaria por esvaziar a proteção que se pretendeuimprimir a própria dignidade.400 Para este mesmo autor, proteger de modoabsoluto a igual dignidade de todas as pessoas apenas será possívelenquanto se estiver falando na dignidade como a capacidade (ou seja, apotencialidade) para a autodeterminação, muito embora, no plano dasrelações interpessoais concretas, não haverá como evitar a necessidade dese estabelecer limites ao livre desenvolvimento da personalidade, razãopela qual o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, em regra, temreferido a dignidade da pessoa em conjunto com um direito fundamentalespecífico, que, por sua vez, sempre estará sujeito a algum tipo derestrição.401 É por esta razão que, por exemplo, se pode ter comoimprescindível - ao menos enquanto não se vislumbrar alternativasuficientemente eficaz e menos ofensiva a dignidade - a imposição atémesmo da pena de prisão em regime fechado - e mesmo assim assegurarao preso um mínimo em dignidade e direitos fundamentais, do que daconta, ao menos entre nós e na expressiva maioria dos Estados

democráticos de Direito que mereçam ostentar este título, a vedação daspenas cruéis e desumanas, da tortura, da utilização de determinados meiosde prova (tal como o detectar de399 A respeito das restrições a direitos fundamentais não expressamente autorizadas pelaConstituição, V., dentre tantos e por todos, especialmente a recente e paradigmática obra de J. R.Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição,Coimbra: Coimbra Editora, 2003.400 Cf. W. Brugger, Menschenwürde, Menschenrechte, Grundrechte, p. 22 e ss., advogando, emsuma, que a dignidade da pessoa, na sua condição de norma constitucional, deve assumir o caráterde mais importante princípio fundamental, mas não de direito fundamental absoluto.401 CF. W. Brugger, Menschenwürde..., p. 36. Brugger também argumenta que, no caso de acompreensão da dignidade restar limitada a capacidade para a autodeterminação de todos os sereshumanos, em princípio nada haveria a opor em relação a um direito fundamental absoluto (ilimitado),muito embora, neste caso, o caráter absoluto do direito fundamental acabaria por resultar naausência de realização prática: "a garantia da dignidade da pessoa humana seria reduzida areferência descritiva de que a humanidade em cada pessoa poderia, quando de seu desenvolvimentoconcreto, ser limitada pelo Estado e pelos particulares, mas não retirada e, neste sentido, afetada.Assim, o preso político sempre poderia resignar-se, com dignidade, a sua prisão, assim como odoente terminal poderia morrer com dignidade."

Pg. 155mentiras, o assim chamado "soro da verdade", a submissão compulsória aintervenções corporais, etc.),402 assim como as garantias da individualizaçãoda pena, da progressão no cumprimento da pena de prisão, no direito dereceber visitas, entre outros tantos exemplos que aqui poderiam sercolacionados.

A despeito dos argumentos deduzidos em prol de uma possívelrelativização até mesmo da dignidade da pessoa humana (como princípio

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 jurídico e norma de direitos fundamentais), sem que, a evidência, se possaadmitir o sacrifício da dignidade, constata-se que a doutrina majoritária seopõe veementemente a qualquer tipo de restrição a dignidade pessoal, detal sorte que se chegou a afirmar que cada restrição a dignidade (ainda quefundada na preservação de direitos fundamentais ou proteção da dignidade

de terceiros) importa em sua violação e, portanto, encontra-se vedada peloordenamento jurídico.403 Nesta linha de entendimento, nem mesmo ointeresse comunitário poderá justificar ofensa a dignidade individual, estaconsiderada como valor absoluto e insubstituível de cada ser humano.

Neste sentido, vale reproduzir expressivo pensamento de CastanheiraNeves:

"A dimensão pessoal postula o valor da pessoa humana e exige orespeito incondicional de sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerarem si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além eindependentemente dos contextos integrantes e das situações sociais emque ela concretamente se insira. Assim, se o homem é sempre membro deuma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade evalor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social. Serápor isso invalido, e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidadepessoal a beneficio simplesmente da comunidade, do grupo, da classe (grifonosso). Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é acomunidade ou classe, mas o homem pessoal, embora existencial esocialmente em comunidade e na classe. Pelo que o juízo que histórico-socialmente mereça uma determinada comunidade, um certo grupo ou umacerta classe não poderá implicar um juízo idêntico sobre um dos membros402. Embora, quanto a estes exemplos (e outros que aqui poderiam ser colacionados) devareconhecer-se a ausência de consenso a respeito destas medidas e de sua legitimidadeconstitucional, temática que igualmente deixaremos de adentrar considerando os limites e aproposta deste ensaio, isto além de se considerar a utilização de alguns destes meios (ou de outrospotencialmente ofensivos a dignidade) em di versos países.403. Cf., por todos, Pieroth-Schlink, Grundrechte - Staatsrecht II, p. 95. No direito brasileiro, v.especialmente F. Ferreira dos Santos. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, p.94-96, e, mais recentemente, D. Sarmento, A Ponderação de Interesses na Constituição, p. 76.

Pg. 156considerado pessoalmente - a sua dignidade e responsabilidade pessoaisnão se confundem com o mérito e o demérito, o papel e a responsabilidadehistórico-sociais da comunidade, do grupo ou classe de que se façaparte".404

 Tomando por referência tudo o que foi exposto no âmbito do tópicoora versado, pendem, contudo, algumas indagações. Com efeito, cumprerelembrar que - a despeito da proposta conceitual formulada - já no que dizcom o conteúdo jurídico da noção de dignidade da pessoa humana inexistecompleto consenso, dissídio este que se revela ainda maior quando se tratade averiguar quais condutas (e em que medida) são, de fato, violadorasdesta dignidade. Por mais que se tenha a dignidade como bem jurídicoabsoluto, o que é absoluto (e nesta linha de raciocínio, até mesmo o que é aprópria dignidade) encontra-se de certa forma em aberto e, em certosentido - como já demonstrado - ira depender da vontade do intérprete e de

uma construção de sentido cultural e socialmente vinculada. Assim, a partirdo que se considera como protegido em termos de dignidade pessoal e doque se possa ter (e vir a ter) como efetiva agressão, é que se ira também

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viabilizar uma tomada de posição relativamente ao problema proposto. Emse admitindo - na esteira de Alexy - que mesmo a dignidade comportadiversos níveis de realização e, portanto, uma certa graduação erelativização, desde que não importe em sacrifício da dignidade, seriapossível reconhecer também que a própria dignidade da pessoa, como

norma jurídica fundamental, possui um núcleo essencial e, portanto, apenaseste (na hipótese de uma necessária harmonização da dignidade dediversas pessoas), por via de conseqüência, será intangível.

Nesta linha de raciocínio, consideramos equivocada a crítica assacadacontra Alexy, notadamente ao sustentar que a dignidade, na condição deprincípio, constitui-se (a exemplo das demais normas-princípio) emmandado de otimização,405 já que otimizada deve ser a eficácia eefetividade da(s) norma(s) jurídica(s) que reconhece(m) e protege(m) adignidade, não se tratando - ao menos não é o que parece entender Alexy -de afirmar que a dignidade implica uma máxima (ótima) satisfação de todasas necessidades humanas, de tal sorte que, na sua dimensão prestacional,poderia a garantia jurídica da dignidade vir a ser interpretada como umprograma de segurança social amplo e irrestrito.406

404 Apud J. Miranda. Manual... vol. IV. p. 190-91.405 Cf., por exemplo, T. Geddert-Stcinacher, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, p. 128-29.406 Neste sentido. a ponderação crítica de C. Starck, in: Bonner Grundgesetz. p. 42.

Pg. 157Por sua vez, partindo-se de um conceito mais restrito de dignidade,

no sentido de que apenas uma grave violação da condição de pessoa e,nesta linha de pensamento, somente na hipótese de uma desconsideraçãoinequívoca de seu valor intrínseco como ser humano (em suma, suacondição de sujeito, e não objeto de direitos) restaria configurada uma

efetiva violação da dignidade, verificar-se-á também que todas as demaiscondutas ofensivas acabariam não sendo reconhecidas como verdadeirasrestrições a dignidade, mas sim, eventuais ofensas a outros direitosfundamentais específicos, estando sujeitas ao regime jurídico que informaas restrições aos direitos fundamentais em geral. A prevalecer esteentendimento, restaria sempre vedada (tal como já anunciado) uma ofensaao conteúdo em dignidade ou ao assim denominado núcleo essencial dosdireitos, que, de resto, não se confunde necessariamente com o primeiro.407

Neste contexto, impõe-se sempre a verificação, a luz do casoconcreto, se, em verdade, não estamos diante de uma restrição ao âmbito

de proteção de uma norma de direito fundamental sem que esta esteja aconfigurar uma violação do conteúdo em dignidade da pessoa humana dodireito em causa. Reportando-nos aos exemplos já citados, poderemosentão argumentar que a imposição de uma pena de prisão em regimefechado (pelo menos inicial) embora constitua inequívoca e grave restriçãoda liberdade pessoal, justificada pela necessidade de coibir e prevenirviolações da dignidade e direitos fundamentais de terceiros, não assume acondição de ofensa (esta sim intolerável) ao conteúdo em dignidade, que,de resto, como já destacado alhures, deve ser (assim como ocorre com osdireitos humanos e fundamentais em geral) igualmente assegurada aopreso (ou qualquer pessoa), por mais indignos tenham sido os atos por este

praticados.

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Ainda no que diz com a proteção da dignidade, percebe-se aexistência de consenso no sentido de que a consideração e o respeito pelapessoa como tal (inclusive antes mesmo do nascimento eindependentemente de suas condições físicas ou mentais)408 constituemsimultaneamente tarefa e limites intransponíveis para a ordem jurídica.

 Tanto isto é correto que o princípio da dignidade da pessoa, apesar de nãoter sido, diversamente407. Aqui impõe-se uma breve referência a discussão em torno da circunstância de que a dignidadeencontra-se mais eficientemente protegida por uma concepção restrita ou ampla de seu âmbito deproteção (conteúdo). A respeito deste ponto, v., entre outros, W. Höfling, in: M. Sachs (Org.),Grundgesetz Kommentar, p. 103 e ss.408. Muito embora não se vê aqui adentrar a já referida e aguda discussão que ainda se trava emtomo do início da vida e do próprio marco inicial para efeitos de reconhecimento de uma proteção dadignidade da pessoa humana, que, de resto, tem assumido crucial relevância no que diz com aproblemática das manipulações genéticas, técnicas de reprodução artificial, do aborto (e, nesteplano, cuida-se já de problema "clássico"), bem como no concernente a eutanásia e suicídio

assistido.Pg. 158da solução adotada pelos mentores da Lei Fundamental da Alemanha,409

expressamente agasalhado no elenco das assim denominadas "cláusulaspétreas" da nossa Constituição (art. 60, º 4º), seguramente ostenta - aexemplo do que tem sido reconhecido na Espanha 410 - a condição de limiteimplícito ao poder de reforma constitucional, já que se constitui (eacreditamos ter repisado suficientemente este ponto) juntamente com avida (e o direito a vida) no valor e na norma jurídica de maior relevo naarquitetura constitucional pátria, integrante, pois, da essência (identidade)da Constituição formal e material,411 ou daquilo que Rawls designou de"elementos constitucionais essenciais".412 Todavia, há que ter em conta que

da condição de limite material (implícito) ao poder de reformaconstitucional não decorre, por si só, uma absoluta intangibilidade do bemprotegido, já que pela sistemática adotada pelo Constituinte pátrio apenassão vedadas emendas (ou propostas de emendas) que resultem numaabolição efetiva ou tendencial das assim denominadas "clausulas pétreas",proteção esta que se aplica igualmente aos limites implícitos.413 Talentendimento, em verdade, harmoniza com a concepção principiológica dadignidade da pessoa, que, na sua condição de norma (princípio), toleracerta relativização, respeitado, todavia, sempre também o núcleo essencialem dignidade, este sim dotado do atributo da intangibilidade, sem prejuízoda existência de regras assegurando dimensões da dignidade.

Seja qual for à via escolhida, verifica-se que as concepçõessumariamente expostas convergem no sentido de admitir que a dignidadeda pessoa humana (para além de sua dimensão jurídico-normativa)constitui o reduto intangível - pelo menos para a ordem jurídica que aconsagra e busca proteger - de cada (e de todos) indivíduo e, nestaperspectiva, a última fronteira contra qualquer ingerência externa que sepretenda legitima.409. De acordo com o disposto no art. 79, inc. III. da Lei Fundamental da Alemanha, a dignidade dapessoa humana (e, portanto, também o conteúdo em dignidade dos direitos fundamentais) constituilimitação material expressa ao poder de reforma constitucional.410. Neste sentido, V., por todos, a lição de M. A. Alegre Martinez, la dignidad de la persona...,especialmente p. 70 e ss. Vale consignar que também em Portugal não há previsão expressa no

sentido de que o princípio da dignidade da pessoa seja limite material implícito (v. art. 288 daConstituição da República portuguesa).

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411. Cf. já havíamos anunciado no nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 412 e ss. Nomesmo sentido, v., por último, M. N. Camargo, "O Conteúdo Jurídico da Dignidade da PessoaHumana", in:Leituras Complementares de Constitucional. p. 120.412. Cd. J. Rawls, O Liberalismo Político, p. 277 e ss., embora não expressamente mencionando adignidade da pessoa.413. Sobre a problemática dos limites a reforma constitucional e, de modo especial, sobre o alcanceda proteção por meio dos limites materiais, remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos

Fundamentais, p. 412 e ss.Pg. 159

Em outras palavras, mesmo que não se possa desconsiderar aexistência de violações concretas e reiteradas a dignidade pessoal, estasofensas, em virtude da positivação da dignidade na condição de princípio

 juridíco-constitucional fundamental, não podendo encontrar qualquer tipode respaldo na ordem jurídica que, pelo contrario, impõe ao Estado eparticulares um dever de respeito, proteção e promoção da dignidade detodas as pessoas.

Assim, ainda que se possa reconhecer a possibilidade de alguma

relativização da dignidade pessoal e, nesta linha, até mesmo de eventuaisrestrições, não há como transigir no que diz com a preservação de umelemento nuclear intangível da dignidade, que justamente - e aqui poder-se-á adotar a conhecida fórmula de inspiração kantiana - consiste navedação de qualquer conduta que importe em coisificação einstrumentalização do ser humano (que é fim, e não meio). Da mesmaforma, vale lembrar que com isto não se está a sustentar a inviabilidade deimpor certas restrições aos direitos fundamentais, ainda que diretamentefundadas na proteção da dignidade da pessoa humana, desde que, aevidência, reste intacto o núcleo em dignidade destes direitos.

Convém lembrar, nesta quadra da exposição, que, de modo geral, as

teorias que pregam o caráter absoluto da dignidade, considerando-naimune a qualquer restrição, justamente partem de uma já lembradaconcepção minimalista ou restritiva da dignidade, reconhecendo queapenas esta se revela compatível com a sua condição de "clausula pétrea"(limite material ao poder de reforma constitucional), assim como com agarantia do núcleo essencial e a necessária restringibilidade (para alémdeste núcleo) dos demais direitos fundamentais, de tal sorte que apenasuma esfera nuclear da existência humana seria objeto da proteção absolutado ordenamento jurídico.414 De outra parte, não há como desconsiderar oargumento de que uma exegese extensiva do conteúdo da garantia dadignidade da pessoa humana poderá colocar em risco a função dos demaisdireitos fundamentais, que, neste passo, restariam esvaziados, assim comono mínimo comprometida e fragilizada resultaria a própria dignidade.415

414. Cf. W. Höfling, in: M. Sachs (Org) Grundgesetz. p. 106. Na mesma linha, advogando umairrestringibilidade da dignidade da pessoa, mas alertando para o fato de que tal condição se encontravinculada a uma exegese restritiva da dignidade, v. também H. D. Jarass, Garantie derMenschenwürde, in: Jarass-Pieralh, Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, p. 40-41. T.Gedert-Steinacher, Menschenwürde als Verfassungsbegriff. p. 83 e ss., lembra, igualmente no âmbitode uma concepção minimalista, que uma interpretação extensiva da garantia (absoluta) da dignidade

 já não se revela compatível com a sua estrutura normativa peculiar, que não pode ser equiparadaaos demais direitos fundamentais.415. Neste sentido, a lembrança de C. Starck, in: Das Bonner Grundgesetz, p. 42, advogando que agarantia juridíco-constitucional da dignidade da pessoa protege apenas o núcleo da condição depessoa do ser humano. Entre nós. v., por último e em sentido próximo, V. A. da Silva, Direitos

Fundamentais..., p. 191 e ss.Pg. 160

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o que nos parece deva ficar consignado é que não se deve confundir anecessidade de harmonizar, no caso concreto, a dignidade na sua condiçãode norma-princípio (que, por definição, admite vários níveis de realização)com outros princípios e direitos fundamentais,416 de tal sorte que se poderátolerar alguma relativização, com a necessidade de respeitar, proteger e

promover a igual dignidade de todas as pessoas, não olvidando que, antesmesmo de ser norma jurídica, a dignidade é, acima de tudo, a qualidadeintrínseca do ser humano e que o toma merecedor ou, pelo menos, titularde uma pretensão de respeito e proteção.

A partir de todo o exposto, constata-se que - no concernente aeventual relativização da dignidade por força de sua dimensãonecessariamente relacional e intersubjetiva - cumpre distinguir o princípio

 jurídico-fundamental (a dignidade na condição de norma) da dignidade dapessoa propriamente dita, isto é, com o valor intrínseco de cada pessoa,objeto de reconhecimento e proteção pela ordem jurídica. Que cada serhumano é, em virtude de sua dignidade, merecedor de igual respeito econsideração no que diz com a sua condição de pessoa, e que tal dignidadenão poderá ser violada ou sacrificada nem mesmo para preservar adignidade de terceiros, não afasta, portanto - e convém repisar esteaspecto - uma certa relativização ao nível jurídico-normativo. Talrelatividade - e pelo menos esta não nos parece seja contormavel - jádecorre da necessidade de se averiguar, em cada caso concreto, aexistência, ou não, de uma ofensa à416 A título ilustrativo, cumpre registrar que a referência ao caráter relativo da dignidade, a despeitode ostentar a condição de princípio fundamental, já foi até mesmo reconhecida no plano

 jurisprudencial, como demonstra, entre nós, o acórdão proferido pela 8' Câmara Criminal do Tribunalde Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação-Crime nº 70007613649, relatado pelo Desembargador

Marco Antonio Ribeiro de Oliveira, onde restou consignado que "O princípio da dignidade da pessoahumana, embora constitua um dos princípios fundamentais de nossa Constituição Federal, nãoostenta caráter absoluto, encontrando relativização nas demais normas constitucionais, dentre asquais o princípio do devido processo legal, em cujo âmbito se insere o reconhecimento pessoal". Adespeito da afirmação contida no ares to colacionado, concernente ao cunho relativo do princípio dadignidade da pessoa humana, também é de ser destacado que com isso não estamosnecessariamente a caso concreto, onde estava em causa a alegação da nulidade do processo emrazão da retirada dos réus da sala de audiências, bem como a imputação de que teria havido umaofensa a concordar (e nem seria o caso de aqui desenvolver o ponto) com a fundamentaçãosubjacente ao dignidade dos réus pelo modo como foram chamados para serem reconhecidos emaudiência (o Magistrado teria estalado os dedos e utilizado a expressão "vai"), já que neste caso,para além da necessária prova do fato em si, já seria pelo menos questionável a própria existênciade uma efetiva violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, tornando supérflua a sua"relativização" em face de outro princípio constitucional, no caso, o do devido processo legal. Aliás,igualmente carente de maior digressão a incidência, na espécie, do princípio-garantia do devidoprocesso legal, pelas circunstâncias do caso concreto referidas no Acórdão. De qualquer modo, cuida-se de um exemplo expressivo no que diz com a negação - de resto excepcionalíssima na

 jurisprudência - do caráter absoluto do princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qualconsideramos plenamente justificada a referência ora efetuada a decisão, que, para além disso -como já destacado em exemplos anteriores - bem demonstra o quanto se pode divergir em relaçãoàs aplicações concretas não só, mas também do princípio da dignidade da pessoa humana.

Pg. 161dignidade, bem como a de definir qual o âmbito de proteção da norma quea consagra, não se podendo olvidar que, em última análise, ira dependerdos órgãos competentes a decisão sobre tal matéria.417 Assim e retomandotambém este ponto, não há como desconsiderar não ser incomum quetenhamos situações similares nas quais, em razão de uma diversacompreensão do conceito de dignidade, acabou-se chegando a resultadosdistintos,418 tudo a apontar para uma necessária tolerância multicultural

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também nesta seara.419 É preciso retomar aqui a noção de que a dignidade,sendo417. Vale registrar aqui a oportuna lembrança de B. Maurer, Notes sur le respect de la dignitéhumaine..., p. 187, no sentido de que definir a dignidade é, de certo modo, lhe impor limites.418. Neste contexto, para ilustrar a afirmação, colacionamos exemplo extraído da jurisprudênciaestrangeira. Cuida-se de uma das muitas decisões envolvendo conflito entre a liberdade de

comunicação e expressão (por intermédio da veiculação de publicidade para fins comerciais) e adignidade da pessoa humana envolvendo a multinacional Benetton, onde Tribunais de diferentespaíses, em circunstâncias similares, divergiram no consciente a ocorrência de uma violação dadignidade. No caso, cuidava-se de uma reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde)impetrada perante o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha pela empresa Benetton, quealegava ter havido, por parte da Instância inferior (na hipótese, o Superior TribunalFederal=Bundesgerichtshof uma violação da liberdade de comunicação e expressão ao reconhecer ailegalidade, no âmbito das normas sobre a concorrência desleal (por ofensa ao princípio da dignidadeda pessoa humana, já que, entre outros argumentos colacionados, a propaganda estaria coisificandoa dor e as necessidades dos portadores do HIV, utilizando tal imagem para fins comerciais, adespeito de eventual intenção de influir positivamente sobre a opinião pública) de publicidadeostentava a fotografia de uma pessoa nua, sobre a qual estava aposto um carimbo com a inscrição"HIV Posição", determinando, tal como requerido pela demandante na ação originária, a sustação daveiculação da propaganda. O Tribunal Federal Constitucional (v. BVelfGE vo1. 107, p. 275 e ss.), em

decisão proferida no dia 11.03.2003, acolheu a reclamação constitucional e cassou a decisãodesfavorável a reclamante, por entender, em síntese, que restou configurada uma restriçãodesproporcional da liberdade de comunicação e expressão, já que, a despeito de a dignidade dapessoa humana representar, de fato, um limite intransponível também para a liberdade deexpressão, este limite, no caso concreto, não teria sido transposto e que tal tipo de publicidade, semoralmente reprovável, não poderia ser juridicamente vedada. Após reiterar sua posição em prol da"imponderabilidade da dignidade com outros direitos fundamentais", o Tribunal ConstitucionalFederal argumentou que a utilização de imagem retratando a dor e sofrimento alheio não restaimpedida somente por estar vinculada a propósito comercial, nem mesmo - necessariamente - pelofato de se estar a proteger supostos interesses da coletividade em não ser perturbada e ofendida portal tipo de mensagem. Por sua vez, tratando exatamente do mesmo tipo de publicidade, veiculadapela mesma empresa, na França, os Tribunais consideraram, ainda que mediante argumentaçãodiferenciada nas diversas instâncias, que houve uma utilização abusiva da liberdade de expressão ecomunicação por parte da empresa, que resultou em violação descabida da intimidade e da

dignidade da pessoa humana (neste sentido, v. o relato, mediante referência as decisões, de B.Edelman, "la dignité de la personne humaine, un concept nouveau", p. 32-3).419. Justamente uma concepção mais restrita da dignidade, centrada da noção de umreconhecimento e proteção de uma esfera nuclear da personalidade humana, pelo menos vedandotodo e qualquer tipo de tratamento desumano e degradante, poderia servir de referencial mínimopara um padrão universal em termos de proteção da dignidade, para além dos particularismosculturais. Também aqui cuida-se de temática que desafia uma análise mais aprofundada e refletidado que a viabilizada no presente estudo, mas que deve ser cada vez mais objeto de consideração edesenvolvimento. Especificamente versando sobre a tolerância e suas várias formas demanifestação, v., dentre outros, o notável contributo de M. Waher, Da Tolerância, São Paulo: MartinsFontes, 1999, destacando-se aqui o fato de que o autor (a despeito de analisar o fenômeno datolerância de uma outra perspectiva) lembra que os direitos humanos básicos (e, por conseguinte,necessariamente a dignidade) servem justamente de limite para um relativismo cultural (ob. cit., p.8-9).

Pg. 162um conceito necessariamente aberto, relacional e comunicativo e, paraalém disso, histórico-cultural, não pode servir como justificação para umaespécie de fundamentalismo (ou tirania)420 da dignidade,421 já que, comobem lembra Jonatas Machado, "o conceito de dignidade humana apresenta-se desvinculado de qualquer concepção mundividencial fechada eheterônoma acerca do sentido existencial e ético da vida, não podendoservir para a imposição constitucional de qualquer absolutismo valorativo"(grifos do autor). 422 Para além dos aspectos já referidos, convêm nãoesquecer a dupla dimensão negativa e positiva da dignidade da pessoa.Assim, se na sua condição de direito de defesa não se deverá jamais aceitaruma violação da dignidade pessoal (ou, pelo menos, de seus elementosnucleares), mesmo em função de outra dignidade, pelo prisma posição (ou

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prestacional) verifica-se que não há como deixar de admitir - inclusive emse cuidando de direitos subjetivos a prestações - a existência de uma largamargem de liberdade por parte dos órgãos estatais a quem incumbe amissão, para além de respeitar (no sentido de não violar), de proteger adignidade de todas as pessoas, bem como de promover e efetivar

condições de vida dignas para todos. Para ilustrar a assertiva, resultaevidente que ira depender das circunstâncias concretas de cada ordem jurídica e social qual o nível de proteção ou de prestações materiais enormativas indispensável para que a dignidade pessoal não venha a restarcomprometida, o que igualmente aponta para uma inevitável relatividadeda dignidade, ao menos na sua condição jurídico-normativa,designadamente em algumas de suas manifestações.

Acima de tudo, o que se pode afirmar com alguma margem decerteza, renunciando a uma opção fechada em prol de uma ou outraconcepção referida neste contexto, é que a busca de uma proteção eficazda dignidade da pessoa (de todas as pessoas) de longe ainda nãoencontrou uma resposta suficientemente satisfatória para todos e seconstitui em permanente desafio para aqueles que, com alguma seriedadee reflexão, se ocuparem do tema.420. Fazendo expressa referência a uma "Tirania da Dignidade" (Tyrannei der Würde), embora emoutro contexto e desenvolvendo também outros aspectos, v. os já lembrados Ulfried Neumann, "Die

 Tyrannei der Würde", in: ARSP 84 (1998), p. 153 e ss., Günter Frankenberg, Autorität und Integration,p. 270 e ss.421. Neste sentido, já a advertência de Chaim Perelman, Ética e Direito, p. 403: "ante asdivergências sobre a própria idéia de pessoa humana e sobre as obrigações impostas pelo respeito asua dignidade, é não somente utópico, mas mesmo perigoso, crer que existe uma verdade nessaquestão, pois essa tese autorizaria os detentores do poder a impor suas visões e a suprimir todaopinião contrária, que supostamente expressa um erro intolerável".422. Cf. J. E. M. Machado, Liberdade de Expressão, p. 358.

Pg. 1636. Considerações finais

À guisa de encerramento, fica o registro de que renunciamos apretensão de fechar este breve ensaio com um elenco de conclusões arespeito das questões versadas. A despeito da proposta conceitualformulada, reconhecemos a dificuldade (que acreditamos não sejaexclusivamente nossa) de obter uma definição consensual, precisa e, acimade tudo, universalmente valida do que seja, afinal de contas, a dignidade dapessoa humana, a não ser a circunstância - ainda assim resultado de umaopção racional - de que se cuida da própria condição humana (e, portanto,

do valor próprio reconhecido (atribuído) as pessoas no âmbito das suasrelações intersubjetivas) do ser humano e que desta condição e de seureconhecimento e proteção pela ordem juridíco-constitucional decorre umcomplexo de posições jurídicas fundamentais.

Apesar disso (e, em parte, por isso mesmo), vale reafirmar que osdiversos desdobramentos concretos da dignidade da pessoa humana na suadimensão jurídico-normativa, por si só evidenciam o quanto não se podeaceitar a afirmação genérica de que o conceito de dignidade da pessoa éalgo como um cânone perdido e vazio, que se presta a todo e qualquer tipode abusos e interpretações equivocadas,423 já que estamos convictos deque - e esperamos que pelo menos em algum momento isso tenha sidodemonstrado - de que também e acima de tudo em matéria de dignidadeda pessoa humana não se deve e nem se pode legitimamente dizer e

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aceitar qualquer coisa, pois mesmo que se venha a oscilar entre umahermenêutica pautada pela melhor resposta possível ou única respostacorreta, qualquer uma das alternativas, consoante, de resto, já sinalado,repudia um voluntarismo hermenêutico arbitrário e, portanto, tambémconstitucionalmente ilegítimo. De outra parte, o fato de a dignidade da

pessoa humana constituir um conceito dinâmico e sempre passível (emesmo também carente)423. Neste sentido, entre outros, v. D. Beyleveld e R. Brownsword, "Human Dignity, Human Rights,and Human Genetics", in: The Modern Law Review vol. 61 (1998), p. 662.

Pg. 164de concretização, bem como a circunstância de que a própria discussão emtomo de seu sentido teórico e pratico (por si só já um indicativo de suaabertura ao plural!) revelam o quanto a dignidade cumpre sua função dereferencial vinculante para o processo decisório no meio social.424 Damesma forma, os demais pontos discutidos, arbitrariamente selecionados,em maior ou menor grau, igualmente foram abordados com o singelo

intuito de lançar alguns questionamentos a respeito de apenas uma parcelados tantos e polêmicos aspectos de tão fascinante tema. Caso tenhamos,com as digressões efetuadas ao longo do presente trabalho, logradocontribuir para a consecução desta meta, pelo menos no sentido de chamara atenção para as possibilidades e dificuldades que o trato - na teoria e napráxis - com a dignidade da pessoa encerra, já poderemos nos dar porsatisfeitos, ainda que cientes das limitações deste estudo.

Cuidando-se a dignidade - e aqui tomamos emprestadas asexpressivas palavras de Carmen Lucia Antunes Rocha - do que se poderiadenominar de "coração do patrimônio jurídico - moral da pessoahumana",425 é imprescindível que se outorgue ao princípio fundamental dadignidade da pessoa humana, em todas as suas manifestações eaplicações, a máxima eficácia e efetividade possível, em suma, que seguarde e proteja com todo o zelo e carinho este coração de toda sorte demoléstias e agressões, evitando ao máximo o recurso a cirurgiasinvasivas426 e, quando estas se fizerem inadiáveis, que tenham por escopoviabilizar que este coração (Ético - jurídico) efetivamente esteja (ou, pelomenos, que venha a estar) a bater para todas as pessoas com a mesmaintensidade.

Com efeito, quando já se está até mesmo a falar da existência de umhomo globalizatus, considerando a cada vez maior facilidade de acesso as

comunicações e informações, bem como a capacidade de consumo de parteda população mundial,427 urge que, na mesma medida, se possa também vira falar, na esteira do que tem lecionado Paulo Bonavides, numacorrespondente globalização da dignidade e dos direitos fundamentais,428

424. Cf. sustenta J. Reiter, "Menschenwürde als Massstab", in: Aus Politik und Zeitgeschichte 2004,p.12-13.425. Cf. Antunes Rocha, O principio da dignidade da pessoa..., p. 32.426. Aqui valemo-nos da figura utilizada por J. Freitas, Tendências Atuais e Perspectivas daHermenêutica Constitucional, in: AJURIS nº 76 (1999). p. 404, aplicando-a, todavia, a Constituição nacondição de coração jurídico-institucional de um Estado.427. Cf. o sugestivo título de capítulo da obra de E. Hobsbawm, O novo século - entrevista a AntonioPalito, p. 126 e ss.428. Sobre a globalização dos direitos fundamentais, como veiculo para a afirmação da

universalização do reconhecimento da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, nosentido de que estes passem, efetivamente, a integrar uma espécie de patrimônio comum dahumanidade, v. a magistral lição de P. Bonavides, Curso de Direito Constitucional. p. 524 e 55.

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Pg. 165sem a qual, em verdade, o que teremos cada vez mais é a existência dealguns "homens globalizantes" e uma multidão de "homens globalizados",sinalizadora - tal como já referido - de uma lamentável, mas cada vezmenos contornável e controlável, transformação de muitos Estados

democráticos de Direito em verdadeiros "estados neocoloniais".429 Paraalém disso, não se poderá olvidar - também nesta perspectiva - que adignidade da pessoa humana (assim como os direitos fundamentais que lhesão inerentes) aponta - de acordo com a lapidar lição de Gomes Canotilho -para a idéia de uma comunidade constitucional (republicana) inclusiva,necessariamente pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religiosoou filosófico e, portanto, contrária a qualquer tipo de "fixismo" nestaseara,430 e, para além disso, incompatível com uma visão reducionista e atémesmo "paroquial" da dignidade.431 Em síntese, a dignidade da pessoahumana não deve (como infelizmente não raras vezes tem sido ocaso)atuar como justificativa para uma postura extremista, fundada em umaretórica sedutora e aparentemente servidora da causa dos direitosfundamentais. Pelo contrario, dignidade da pessoa humana e direitosfundamentais devem ser compreendidos e aplicados também comoautenticas "clausulas de barreira ao fundamentalismo",432 além depermanente obstáculo a qualquer postura intolerante e arbitrária queresulte em violação da pessoa humana.

Nesta mesma perspectiva, a efetiva possibilidade de umahumanização e civilização da globalização econômica, tal como advogaFriedrich Müller,433 com a conseqüente neutralização ou pelo menosredução dos seus efeitos negativos e muitas vezes causadores de violações

da dignidade da pessoa humana, encontra um forte sustentáculo da idéiade uma globalização jurídica a partir do referencial da dignidade da pessoahumana429. V. nota 199, p. 110.430. Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., p. 225-6,desenvolvendo a idéia da dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da república.431. Neste sentido, v. a exortação de L. Henkin, "Dignity and Constitutional Rights", in: M. J. Meyer eW.A . Parent (Ed), The Constitution of Rights, p. 226-28, que, a luz da evolução da concepção dedignidade da pessoa humana na doutrina e jurisprudência dos EUA - onde. de resto, a dignidade nãofoi objeto de expresso reconhecimento - salienta que a noção de dignidade não pode ser construídade modo isolacionista e reacionário, devendo, pelo contrario. observar as exigências do modernoEstado democrático e social de Direito (no ensaio referido sob o rotulo de Estado de bem-estar[welfare state]) e da comunidade jurídica internacional.432. Aqui nos valemos da expressiva fórmula adotada por J. Weingartner Neto, Liberdade Religiosana Constituição, p. 63, que, no contexto da sua obra, trata uma distinção possível entre umfundamentalismo-crença (de estilo hermenêutico e tolerável até as raias do prosetilismo) e umfundamentalismo do tipo militante, que desafia e concretamente afronta os valores estruturantes doEstado Democrático de Direito e que, portanto, não pode ser tolerado (op. cit., p. 50 e ss.).433. F. Müller, "Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?",in: Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre, Outubro de 2000, especialmente p. 45e ss.

Pg. 166e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes. Com efeito, justamenteem função da sua condição (também) principiológica e de sua conseqüenteabertura a complexidade e ao pluralismo, a dignidade da pessoa humanapermite a substituição de padrões normativos absolutos e estritos porreferenciais normativos flexíveis e compatíveis com a salvaguarda daidentidade na diferença, numa ambiência comunicativa e relacional.434 Por

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derradeiro, parafraseando, desta feita em outro contexto, a famosa emulticitada assertiva de Dworkin de que o governo que não toma a sério osdireitos não leva a sério o Direito,435 podemos afirmar que a ordemcomunitária (poder público, instituições sociais e particulares), bem como aordem jurídica que não toma a sério a dignidade da pessoa (como

qualidade inerente ao ser humano e, para além disso, como valor eprincípio jurídico-constitucional fundamental) não trata com seriedade osdireitos fundamentais e, acima de tudo, não leva a sério a própriahumanidade que habita em cada uma e em todas, as pessoas e que as fazmerecedoras de respeito e consideração recíprocos.

Nesta quadra, importa retomar é enfatizar a noção de que acapacidade de o conceito e referencial normativo (político, moral e jurídico)da dignidade da pessoa humana cumprir sua função no contexto da jámencionada globalização jurídica depende acima de tudo do grau decomprometimento com a dignidade de cada uma e de todas as pessoas porparte do Estado, da comunidade e dos indivíduos, estando, portanto,vinculado também aos níveis vigentes do que se tem designado de um"patriotismo constitucional". Assim, se é certo que a pretensão universalistada dignidade está diretamente relacionada à sua secularização e suaabertura ao pluralismo, também parece correto vislumbrar que a expansãodo discurso da dignidade guarda relação com uma espécie de caráterreligioso da própria noção de dignidade da pessoa humana, no sentido deuma crença (sempre também um ato de fé!) na condição humana e novalor reconhecido a cada pessoa, razão pela qual já se tem até mesmofalado num tipo de "religião civil".436 Que a "religião" da dignidade - quandoobservado o seu caráter secular e plural - não necessariamente resulta em

um fundamentalismo religioso, político e moral, mas serve justamente defreio a toda sorte de extremismo, pensamos já ter sido suficientementeexplicitado ao longo da presente obra.43.4 Neste sentido, v, as ponderações de S, Baer, "Menschenwürde zwischen Recht, Prinzip undReferenz", p. 588.435. Cf. R. Dwork:in, Los Derechos en Serio, p. 303.436. Cf. os desenvolvimentos de J. Isensee, "Menschenwürde: die säkulare Gesellschaft auf der Suchenach dem Absoluten", in: AÖR 131 (2006), p. 178 e ss., muito embora reconhecendo a possibilidadede uma fundamentação religiosa (e especialmente cristã) da dignidade.