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dilema de um anjo viviane de santana ([email protected]) 1 Viviane de Santana (Viviane de Santana Paulo - São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira - Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publicou em jornais e revistas especializadas como Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; e nas revistas mexicanas, Argos e Alforja. Participou do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia dilema de um anjo Berlim - 2012/2013

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1

Viviane de Santana (Viviane de Santana Paulo - São Paulo), poeta, tradutora e

ensaísta, é autora dos livros, Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio

de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e

Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria

com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas,

Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira -

Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía

brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publicou em jornais e revistas especializadas

como Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e

Coyote; e nas revistas mexicanas, Argos e Alforja. Participou do VIII Festival Internacional de

Poesia em Granada, Nicarágua, e do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de

Arges, Romênia

dilema

de um

anjo

Berlim - 2012/2013

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2

estar em casa em pleno dia letivo sem ter tirado férias

sem estar enfermo apenas estar em casa infenso

isento do peso sem dar satisfação não ter ido

entregar-se à rebeldia ouvir aquele cd antigo

deixar ser um templo o apartamento

a tranquilidade no altar do sofá

no almoço apenas uma pasta simples

e tomar aquele vinho caro reservado

para ocasiões especiais

enquanto os claros segmentos do dia se acomodam

em algum canto do recinto

resgatar o livro que ficou pela metade

procurar os rastros dos amigos

deixados na vala que as obrigações

e a falta de tempo cavam

reencontrar-se com algum deles restituído

em algum bar restaurante das dezenove horas

derramar as velhas novidades e recuperar planos

depois colher o latejo da noite com a morna escuridão

da brisa que se enrosca no quadricular da janela aberta

e no rumor abafado do reverso das luzes apagadas

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3

e quando alguém tenta tecer

a rede fina e cinza do contemporâneo

com os fios de chuva

que escorrem do vidro do automóvel?

conforme o vento as gotas agarram-se

na transparência com patas aderentes

de geconídeo com garras de águia

as gotas a chegar e a partir

no carro em movimento

gotas entumecidas de chuva e maduras

ou amassadas e desviadas pela velocidade

o que fazer quando as gotas se despregam

com a fraqueza do presente e a força do passado?

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4

cortei o pão e tirei o coração macio ainda morno

do miolo devorei-o com manteiga estava com a fome

das bagagens vazias dos quartos no escuro

do farol no arquipélago das malhas no guarda-roupa

quantas coisas morrem de fome! o estômago das notas

esperando o som os ruídos dos passos esperando o chão

a aproximação das minhas mãos das tuas os olhares

dos semáforos na madrugada desabitada

morrem de fome os campos de couve depois da colheita

a rosca d’água sem a correnteza

as ondas sem a areia as janelas sem as paisagens

e a liberdade morre sem o nosso coração

sem o sonho e o algodão do pão

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são trinta e dois ossos da mão para avançar na maçã

sentir o gosto dos desafios

aceitar cada mordida como nutrir-se de descobertas

não nascemos para viver no marasmo do paraíso

as lutas fazem parte de nossas artérias

inventamos nosso próprio céu e nosso próprio inferno

são vinte e seis ossos do pé para desfazer distâncias

e explorar territórios desconhecidos esconderijos

vivemos das andanças dança encontro reconstrução

de destruição e desinquieto dos migrantes ermos

da busca do longínquo para nos aproximarmos

de nós mesmos?

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não sei o que dizer se somos nós que comemos

eternamente o fígado das horas e atamos a liberdade

com nossas próprias tripas é sempre hora de ir,

ter outros afazeres que não são os que realmente buscamos

equilibramo-nos de cabeça para baixo

nas hastes do orvalho e da verdade é difícil se desfazer

dos anseios deixá-los secar como as escamas transparentes

dos peixes

tem gente

que vive de escapismo e adora

enfeitar as olheiras da claridade acho que nascemos

da testa da ilusão nossas asas são feitas de cílios

não é nunca uma realidade só que possuímos

há a perpétua vida onírica que inventamos

no oceano da nossa mente e as franjas das águas-vivas

não são amparadas vivemos imaginando o que teria sido

se não tivéssemos vivido o que foi vivemos o que foi

e o que teria sido longínquo fosco no fundo do outro lado

de nós mesmos temos duas vidas

uma de ferro outra de espuma

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ainda existem espantalhos?

ainda não criaram um robô automático

uma química uma manipulação genética

para espantar os pássaros?

há muito tempo que os espantalhos descobriram

que estavam do lado errado e passaram

a proteger os pássaros

ficam ali parados imóveis calados

com os braços abertos preparados

para abraçá-los

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do nada cresce a barba da pedra hirsuta como o sorriso de jesus

do nada formam-se as flores dispostas em numerosas umbelas

do nada o transvio das lufadas de vento nas plataformas de metrô

do nada o dessabor das mastigadas lentas na garfada de arroz

do nada o retrós perdido no fundo da gaveta

do nada a pressama no rosto da memória do outro lado da mesa

do nada o salitre na cor vermelha da carne meliante

como o brilho do sol na poeira pesada da cidade

é que o nada só é nada quando as palavras o repelem

e as formas esvoaçam no vasto o nada só é nada

quando as palavras ainda não o descobriram

e ainda não o cobriram com o pó amarelo de seus significados

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9

pensei que ser adulto bastava apenas crescer

que as coisas saberiam de mim e eu delas

não é assim

para entender a linguagem da vida precisamos decorar

cada sinônimo que brota diante do nosso olhar

das mãos dos pés descalços ou calçados de passos

para aprender o idioma das coisas precisamos

de muita vigília e da gramática das nascentes e das pontes

mais que tudo precisamos dos erros

e dói errar dói demais!

pensei que as coisas saberiam de mim e eu delas

como um cão latindo em minha direção

farejando meus pés

pensei que os adultos fossem enseada igapós e lezíria

na constância do aprender algo novo

sobrepondo-se ao antigo

na constância das transformações mas não é só isso

precisamos dos erros não daqueles de propósito

que não deixamos de evitar mas os genuínos

que nascem imperceptíveis das profundezas

das nossas relações do emaranhado delas

e nos arrastam na sua rede

estes que germinam asas transparentes

nas nossas escápulas

para depois do aprendizado

nos fazer voar

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em évora

era um muro em algum lugar no vilarejo

o muro adorando falar de fronteiras mas sob o seu linguajar

próprio daquilo que ele escondia do outro lado dele

dos joelhos raspados e arranhados das crianças

das pedras soltas sem obrigação de impedir nada dos buracos

por onde com um olho se descobria o terreno baldio inocente

brotando mato livre e flores silvestres dos passarinhos sem saber

de muro nenhum dos besouros gordos e de outros insetos invasores

que ovularam ali no interior mole de um pedaço de madeira largada

e umas florezinhas brancas vigorosas e atrevidas que sobrevoavam

por cima do muro espiavam algo além e regressavam

ao terreno abraçado pelas pedras brincando de ciranda

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na praça de marinha grande

por uma vagarosa caminhada sob a pérgula

de madeira forte e pedra madura sob o céu de glicínias

a chuva suspensa de lilases que só no outono

tocará o chão

não as flores negras e vigorosas das sombras

brotando do caminho onde o vento salgado

aspira o cheiro adocicado das axilas das manhãs

e dos abundantes fios negros dos cabelos soltos da noite

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berlin, U2

dentro do vagão entra um mendigo vendendo o jornal de rua

possui os olhos vermelhos e pesados murmura algo ininteligível

uma estranha oração? na próxima estação entram dois ciganos

um tocando acordeão o outro corneta e um menino com o copo

de plástico colhendo metal alguém não consegue mais falar ao celular

nas riscadas janelas transparentes passam os slides da cidade

um atrás do outro e os braços longos de aço dos gigantescos guindastes

o mendigo saiu sem ganhar nada a música barulhenta e desafinada

acaba

abrupta quando as portas de novo se abrem

uma moeda cai no chão e vai rolar no vão entre o trem e a plataforma

como um réptil fugindo de algum risco

não tão rápido mas com a certeza do caminho

os músicos partem e o menino atrás

tentando recuperar o perdido apenas com o olhar

também assim é o adeus

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sobre a pérgula no jardim abandonado

à margem da autoestrada

que segue para o Lago Maggiore

a autoestrada nada diz sabemos

além do ir e vir perpétuo dos pneus

no ventre do asfalto

mas as heras caindo dos arcos

e as pequenas flores brancas na parte esquerda

não conseguiam ocultar as mensagens

as heras não eram de se limitar sabemos

cresciam como os cabelos das árvores

e trepavam como as pedras na colina

mas as pequenas flores brancas nasceram

do silêncio e do abandono e estavam

tão habituadas a este tipo de liberdade

que o meu olhar lhes causou espanto

para se protegerem uniram-se

e mais se pareceram com algo que frágil

exibe ainda mais a sua beleza

do que as penas da asa quebrada de um anjo

caída na lateral de uma armação verde

depois destas lutas que os anjos travam

entre o amor e a indiferença

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a magra vírgula do vento pousa no intervalo

entre um assopro e outro no Poblenou

e o cinza na Plaça Plim

deste dia nevoento toma fôlego algumas janelas

têm os olhos fechados outras acenderam a pupila retangular

e os mais desconfiados carregam guarda-chuva portátil

para o caso D

o caso D é a situação que abrolha

fruto do acaso e atrapalha

se você não estiver preparado

não há quem não tenha sofrido o capricho do caso D

e se molhado e os sapatos encharcados

mas também os desconfiados com o guarda-chuva portátil

porque tem vento que enverga as varetas

e o guarda-chuva vira papoula

em barcelona

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passando pela estreita estrada no corpo da serra

viu da janela do carro o esqueleto enferrujado

de um caminhão

acidentado caído no precipício verde

rolou a relva quebrou as palmeiras e os mamoeiros

esmagou os jasmins o motorista virou

o pássaro branco invisível que voa sem voltar

após os anos

restou a sua morna ausência no dia ensolarado

e a ferrugínea carcaça do caminhão de longe

era um estranho arbusto imponente fosco e fulvo

misturado com o frescor verde inocente

agora sem tragédia sem desvio do destino

como uma flor soberana

destas que nascem inexplicáveis em lugares

inusitados e reclamam o seu território com afinco

em uma estrada na montanha em peruíbe

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hifens de água cheio de janelas viajantes a paisagem

cobrindo-se de cinza a direção arrasta os vagões

os trilhos puxam uma imagem a outra o desgaste

das montanhas no atrito do céu o balanço das árvores

no pêndulo do vento ínfimos rios finos no vidro

nervuras transparentes quando chove nos olhos do trem

entumecem as veias d’água no músculo da paisagem

viagem de trem a praga

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um homem sentado em um banco à margem do spree

porque a língua morna do sol desenrolou-se

neste ponto fixo os corvos negros abrem as asas

como pedaços alados de carvão ao vento

afinando o movimento do rio e as placas de gelo

navegam como mansas barcas manchas brancas

ágrafas e escorregadias

viajam sem destino sumindo sem vestígio

e o homem em algum momento

deixará de estar ali

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instante de cadeiras de pés para o alto

sobre as mesas do bar lá dentro um banheiro imundo

fedia na madrugada

ele foi embora sem ela sozinho e deparou-se com

a claridade fina da manhã ouviu o rasgo de sussurros

frescos viu os filetes de sombras que se entrelaçavam

sentiu o momento mudo do ainda não ter dado

tempo da parafernália despertar e o arrastar

preso em seus tentáculos era a hora vingativa

da tranquilidade falar um idioma intraduzível

refazer recomeços com restos de alguma

coisa anterior

garrafas quebradas copos vazios cheiro de álcool

o desacompanhado tonteia

por tudo quanto é canto o alvorecer recortado

acinzentado metálico cosmopolita

apareceu um táxi para resolver dilemas nas ruas

um pouco menos de drama nas buzinas as vias agora transitáveis

sentiu o cheiro de chuva – e veio-lhe um surto de saudade dela

que interrompeu as pálpebras pesadas

quase se fechando para deixar a cidade de fora

em são paulo

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onde deixar as mortes que eu vivi?

as fissuras nos calcanhares ainda não se abriram

nada visível como as correntezas que nunca regressam

jamais se arrependem do ir e sempre seguem adiante

famintas deste existir na desembocadura

nas gavetas guardo os pregos e as chaves junto aos papéis

que me eximem do balançar na rede de espumas

não posso deixar em cima da penha na parede da montanha

como uma sagrada urna cheia do espectro das quedas

no fundo da caixa de ferramentas que destruíram a armadura

não no guarda-roupa misturadas com as roupas usadas e pequenas

as mortes que eu vivi têm gosto de ferro e frias

um escuro caroço no miolo do pão e um nó de fios azuis de sal

agora tecem as tramas das mornas brisas e servem

de filames são como a pantomima da morte maior

que virá algum dia onde deixar as mortes que eu vivi

foram lanhos tão lanhos no meu corpo tanto contorceram-me

e mudaram meu tamanho e amadureceram-me

onde deixar as mortes que eu vivi?

que já não armam mais os embustes agonizantes

agora como a descascada pele inútil do réptil

como os flancos desfeitos da minha imagem

nos eczemas dos momentos partidos

onde deixar as mortes que eu vivi?

deixarei em mim em mim assim como não se desfaz

de mim a pele que refaço

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preciso da mentira quem não precisa?

não mintas dizendo que não precisamos

não mintas dizendo que não precisas

não mintas entre a respiração das maçãs

entre os balaústres das semanas ligeiras

entre as nervuras das folhas de sereno

somente os bichos não precisam de mentiras

as taturanas caminhando ardentes na côdea do tempo seco

os cornos do veado enroscados nos arbustos de loqman

ou as plantas não precisam de mentiras

as vitórias-régias escondendo as raízes no fundo d’água

as sementes de abóbora no ovário do meio dia

o voo das sâmaras perdendo as asas duras da cor de árvore

ou a constante de arquimedes e o irracional do número pi

mas a lata de cerveja sozinha na areia gelada da praia

o ônibus atrasado sem nunca assumir a culpa

o preço do pedágio no início da estrada esburacada

a avenida cortando a reserva florestal sem avisar os pássaros

a ponte por onde ninguém passa porque não construíram

o acesso até ali muitas coisas precisam de mentiras

o sangue negro da neve esmagada nas margens

das ruas cheias de carros

uma costela quebrada do guarda-chuva aberto

transformamos muito em mentiras e o que era antes

uma brincadeira de faz de contas virou uma massa

com glutamato uma sombra com o peso da arquitrave

caída sobre o chumaço de algodão

preciso da mentira mas desta

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que flui a água furtada nos telhados

reacende a lâmpada halógena

sobre os braços finos da escultura de bronze

faz tremer menos as mãos dos idosos na hora

em que o talher é uma queda dura no piso frio

porque ando tão sincera como a mosca presa

na fita adesiva lambuzada de mel

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o dilema de um anjo II

eu contemplava a chuva de encontro à janela quando pensei:

“cerca de dois bilhões de pessoas não têm acesso à água potável”

e eu era criança e acreditava que a luz era de todos

o vento era de todos a água era de todos a terra era de todos

as estrelas eram de todos as plantas as ervas que contém sementes

as árvores frutíferas eram de todos

no princípio Deus criou os céus e a terra

ele poderia vendê-las uma vez que é o dono

das correntezas azuis onde as nuvens navegam

do coração das montanhas que pulsa alto

dos jardins de cassiopeias do punhado de terra

escura do universo onde brotam planetas redondos

do fogo cuspido pela lapela do vento

sopro das cores na boca da luz de cada semente

de chuva caída na pele dos ladrilhos

de todas as fontes que nascem do olho da terra

mas para que tais indagações se conhecemos a resposta?

“cerca de dois bilhões de pessoas não têm acesso à água potável”

e eu era criança e acreditava que os dedos das árvores

se agarravam na terra como as raízes das espumas

nas oscilantes ondas do mar

que as tranças das águas cingiriam as escamas da morte seca

hoje não sou mais criança e o parapeito da janela

carrega uma mosca inerte

lutou tanto contra o incompreensível que caiu de cansaço

está ali tão em paz como se tivesse que recomeçar

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aproximando-se não é mais uma mosca

é um minúsculo anjo com as asas quebradas

e não sei se dorme

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o dilema de um anjo III

somente há dois dias percebi o carapanã

ele se manifestava à noite quando eu estava sentada na sala

zunia alto ao meu ouvido

mas eu não me preocupava e pensava: depois o mato

a hora da morte era adiada como se adia a sombra

em cima da casca da noite

e a conversa prolongava-se ao telefone

assuntos banais do cotidiano algum comentário

sobre o fim do mundo uma vez que o ocaso

está cada vez mais avermelhado

em pleno inverno o calor mais insuportável trazendo

unhas compridas de hades

ou sobre a solidão humana extraída das raízes das mandrágoras

o carapanã grande para a sua espécie vinha e zunia

mas não me ferroava era incômodo um inseto perto dos fios

de pensamentos e o receio de ele emaranhar-se e não conseguir

mais fugir a armadilha dos pensamentos

a teia espessa de signos prendendo-o

como a um alimento vivo ele não morreria de imediato

permaneceria zoando no meio de conclusões pueris

e dos fios das sobrancelhas grossas de fórcis

ele aproximava-se como um camicase e desaparecia

mas não parecia um ataque

porque ele vinha lento como se me observasse como se pretendesse

entender meu idioma ou como se quisesse dizer-me algo

calhou de eu estar falando com alguém invisível e ele vir

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neste momento de pólens de palavras lançados no ar mas

na terceira noite eu não falava ao telefone estava lendo acomodada

como uma larva entre as almofadas e ele veio

um só golpe com o livro e ele caiu desfalecido no branco tecido

ainda não estava morto mexia as finas pernas mas incapaz de voar

os delicados risquinhos negros indefesos na fenda do contraste

o corpo de um desenho fino com as frágeis asas amassadas

movia devagar as pernas três dias e não conseguiste me ferroar

o que querias então de mim? de repente ele pareceu-me tão solitário

sem orientação sem saída por entre os móveis inanimados

e quando eu chegava

ele via ali algo que se movia e emitia som chegou perto

todas as vezes ele chegou perto para zunir ao meu ouvido

o vazio dos caracóis caídos

nas profundezas do peito

os pastos escuros dos cavalos montados pelo medo

as fontes secas das paragens desabitadas da íris

e muito se pareceu com um mosquito

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o dilema de um anjo IV

até quando continuaremos nos debatendo presos nos fios da teia?

quando virá a hora de sermos o alimento vivo da grande fome?

movem-se ágeis as patas finas da adversidade oscilando a vida

seria fácil escapar bastaria usar a nossa condição humana

a palavra em punho o reflexo de madrepérolas

nas malhas que nos vestem os filetes de memória escorrendo da pele

a couraça das nossas moradas incrustradas nos muros dos anos

as entranhas das letras o fluxo de tinta gerando assinaturas

esferográficas

a denúncia das mesas postas no almoço a calma das batatas dentro

da terra

seria fácil escapar bastaria usar a nossa condição humana

as mãos tateando teoremas suados os corpos fundindo abismos alheios

nas camadas acumuladas da noite preenchendo precipícios

no leito do olhar

nos tropeços o sumo dos pensamentos maduros

as tortas de barro das crianças cedo

a linguagem dos números no salto do gafanhoto

a pérola do placebo derretendo debaixo da língua das nuvens

mas nos transformamos em outra coisa

algo com uma pressa infindável perturbado

sem tempo para pensar no sonho dos rios profundos

algo inquieto buscando coisas inúteis cheio de coisas inúteis

remexendo gavetas alimentando a insatisfação com restos

abundantes de rosas sem perfume

e o medíocre com bagos suculentos de uvas cheias de inseticidas

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mas nos transformamos em outra coisa

algo cego espinhoso inacabado

cheio de senhas e celulares que não para de falar e raramente

diz algo

voador de um canto ao outro sempre zunindo de um canto ao outro

e quando é tarde demais fica aí entre os fios da teia

procurando uma saída em vão

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o dilema de um anjo V

head on

a ignorância arrancou o vermelho do coração dos homens

e o transformou em uma corrida de lobos

que como anjos ápteros quadrúpedes e peludos

se lançam contra o muro de vidro

transparente o muro oferece do outro lado

uma realidade vasta natural e clara

isenta da violenta concorrência não rara

e sem entender o porquê da queda

como as moscas não descobrem

a razão da janela

e voltam a bater no vidro

os lobos repetem o suicídio

do outro lado um anjo criança para salvar os corações

tenta destruir o vidro arranhando-o

com as próprias unhas de pedras brancas

e esboroa os dedos porque dependendo da consciência

a outra realidade permanece inacessível não se alcança

como o jardim do éden ou um segredo

a cai guo-qiang

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arquipélago é um aglomerado de pessoas solitárias

vivendo no mesmo bairro

o molho de chaves não tem sabor de chave e falta sal

cáfila é quando os camelos se juntam para falar mal do deserto

panapaná poderia ser o nome de um belo guerreiro tupi

se as borboletas não tivessem furtado suas asas coloridas

e o pouso nas anteras as plêiades tinham mania de ser um nebuloso

touro azul na arena negra do céu quando passaram a ser uma comédia

e deixo de mencionar aquele grupo de poetas franceses escrínio

nunca foi um ramalhete de cartas como ouvi falar

de uma nuvem de gafanhotos e a leva de chinelos jamais levou

a lugar nenhum o rebanho de ovelhas as fieiras de pérolas

guardam uma lágrima de mar em cada uma e o mar não leva

a mal conheci uma turma de poetas que andou com um cardume

de pensamentos dias a fio sempre que perambulavam pelas alamedas

ou ficavam parados nos degraus das escadas rolantes e as palavras

se multiplicaram e se tornaram uma antologia de estrelas

cadentes no mais um grupo secreto de cientistas internacionais

procura descobrir em uma região desabitada de multidão

o coletivo do alvorecer sem saber que as crianças sonhando

em seus berços há muito descobriram

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quantas frações de instantes até o felino

abater o antílope e enfiar os dentes afiados

no pescoço macio e morno do pulsar exasperado

da fuga curta

a liberdade que era de um

passa a ser do outro que se satisfaz

com o andamento prescrito das coisas

com o manejo das mandíbulas

e o rosnar faminto da Natureza dualística

tanto cruel como generosa e sempre política

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o biólogo pensava depois de ter

examinado na floresta

as diferentes espécies de fungos

que delimitavam

seu território no interior do tronco caído

na região do âmago e do cerne

depois de ter descoberto que cada território

possuía uma distinta cor

e era como se fossem um mapa de países

o biólogo queria extrair algo disso algo que

não fosse só biologia

e concluiu que as fronteiras eram então

formadas pelo encontro

de uma coloração com a outra não pela disputa

e que se o homem fosse igual a líquen

cada território se expandiria

conforme a arte e não a guerra

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as ondas diminuíram o caminhar

carregam nos ombros o sangue negro das pedras profundas

espumas de sombras sombrias e de assombros

não se dirimem com o assopro das sirenes

enegreceram os voos dos pássaros e pesados não abrem

mais as asas a morte é uma mancha amorfa pegajosa

cheia de nácar que brilha sob os raios do sol

a mancha oleosa reflete os macabros pedaços de prismas

que nada ensinam mudos

os peixes se vestem de pântanos e engolem o fundo

da noite sem luz na superfície salgada e azul

alastra-se o gorduroso breu como uma gigantesca pata

de hades esmagando o branco e o leve das espumas

e a cara azul do céu

mancha de petróleo

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havia um cangaceiro

que matava gente e arrancava os olhos

ele carregava no pescoço um colar de globos oculares

a princípio achei assustador mas depois fiquei pensando

seria algo muito prático os olhos cingindo o teu pescoço

mirando tudo o que não enxergas com apenas dois olhos

somos tão cegos! a nossa cegueira é imensa

que não fazemos ideia das coisas

que não vemos não sei se o colar de olhos

teriam visto essas coisas

só porque estariam em uma posição favorável

estar em uma posição favorável não garante

sabedoria nem capacidade de ver para se enxergar

às vezes não depende somente de quem quer ver

mas também se as coisas permitirão que tu as enxergues

as coisas não se desnudam fáceis só porque tu queres vê-las

não se mostrarão exibicionistas

só porque tu precisas apreendê-las não não é assim

é necessário uma anuência inerente entre tu e elas

talvez elas tenham que te enxergar primeiro para tu poderes vê-las

de qualquer forma a maioria das pessoas mesmo com a anuência

mesmo depois de vistas continuam não enxergando nada

e continuam não percebendo que não estão enxergando nada

e o que será que o cangaceiro via com aquele colar no pescoço?

e o que eu vejo? eu que tateio com as palavras o contorno das coisas

para descobrir suas formas e essências para inventar sua imagem?

além de eu enxergar as coisas eu preciso tocá-las com as palavras

as palavras são furtivas e as coisas nem sempre são o que aparentam

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com isso surgem outras em nossos olhos

criadores de coisas e assim muitas se proliferam

e outras permanecem ocultas e o cangaceiro

nunca pensou em nada disso

a frances de pontes peebles

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a nogueira possui os tantos cérebros dentro das nozes

e todos pensam na dimensão do universo o maracujá

é cheio de estrelas negras dentro

e são comestíveis quem come estrelas negras

sonha com os olhos dos rios adormecidos

o coração das frutas não palpitam mas os morangos

vivem apaixonados

a canção das flores voa e cobre o solo

de pó de sol quando chove

a marca dos amantes adquiri o formato de vagem

e o pasto dos cavalos marinhos é o céu do mar onde cavalgam

com o peito buscando as tranças das águas vivas

as tartarugas carregam na carapaça dorsal

os escudos córneos do tempo

a ruazinha cresce na horta dos paralelepípedos

e o ruído das pedras pulam como gotas de chuva a propor

na borda do guarda-chuva escorre a baba das nuvens

os livros são a colmeia das letras dos favos extrai-se

a vida

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a pedra não nasce pedra

foi um dia melíflua

moveu-se como a raiz do sol

no solo como o fio de cabelo do rio

a pedra não nasce pedra

foi névoa viajou com o vento

sentiu a leveza e experimentou

a modorra a pedra não nasce pedra

foi montanha e nó foi perfume e pó

também sangue e lâmina

chama e acidente

com o tempo as pedras ficaram indiferentes

a tudo isso e gora simplesmente

dormem duras e imóveis

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com o bico dos dedos no teclado

do computador catava rápido as letras das palavras

que germinavam no acinzentado do monitor

escrevia uma destas mensagens breves abreviadas

cheias de gírias dizendo que seria bom se se

reencontrassem uma vez que o tempo carrega

os acontecimentos dentro da boleia que segue

em direção contrária mas naquele momento

nenhum dos dois sabia o quanto aquela frase

seria fria e o quão oco o tempo transformaria

o reencontro se algum dia se reencontrassem

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de repente me veio uma pressa de escrever tudo o que eu ainda

não tinha escrito uma inquietação aflição algo de sair correndo

e ligar o computador e me sentar à mesa e dedilhar no teclado

como em um piano a urgência de lá do fundo

dos escombros do poço do útero do estômago

e era com tanto afã insanidade

que também de repente com força precisão ininteligível

tudo terminou sem ao menos começar nenhuma palavra foi escrita

e permaneceu-se o momento inerte em frente ao monitor refletindo

a sombra da imagem quieta desamparada indefinida

como se fosse escrever algo

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no princípio foi o algarismo

a Natureza é feita de números não de cores e formas

a matemática rege tudo o que existe

tudo nasce de um algoritmo e se finda em um resultado

mesmo negativo irregular primário

mesmo que seja necessário criar uma nova fórmula

no princípio não era a palavra

o algarismo é a linguagem da existênci

e 1+2+ (3x4x5x6x7) – (8x9x10) + (11x12)

+13+14+15+16+17-18+19 igual o ano de hoje

em que nos encontramos passadas as

1+0+(4x5x6x7) – (8x5)+(11x12)

+15+16+17+19-1+2 noites = tu em mim

somados os minutos em que a minha pele

aderiu a tua + a liberdade de cair – sentir o chão

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jacurutu

I

eu morava em uma árvore obesa de galhos alçados

folhas de sol e de chuva de onde eu caçava as rosas negras

assopradas pelo vento nas horas escuras da minha saudade

e transformava os papilhos soltos em uma manada

de ovelhas minúsculas pastando no campo da meia noite branca

eu ocultava-me durante o dia no interior do olho ciclope

na testa da árvore e alimentava-me de minhocas azuis

que de manhã entravam pelo buraco do céu

e traziam o som da avenida larga nas costas do bairro

e dos trastes de uma escavadeira como se fossem

os trovões antigos de um trem

de grandes rodas de aço e viagens às vezes eu vestia no pescoço

o mosaico do violão e saía cantando algumas notas

serenas na finura fosca e fresca dos fios elétricos

o mar que tu me tinhas era pouco e imóvel

as ondas presas no rastilho ficavam lá no lambril do horizonte

à noite eu despertava e procurava a tua morada

com os meus olhos redondos e grandes

de quem aprendeu a respeitar o aleatório

do número seis e a repetir o refrão das aldravas

nas portas do não com os meus olhos redondos e grandes

com as minhas orelhas proeminentes ampliando o volume da busca

encontrava-te escondendo nuanças debaixo

das escamas da madrugada que só brilhavam depois de caídas

e ressecadas pelos traços das letras escritas à mão

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II

no cair do instante mais profundo com os meus pés nus

enroscados nos teus eu sentia os caminhos que percorreste

o medo de não ser amado o medo de amar demais

na ponta do cálamo para isso eu deitava-me ao teu lado

incubávamos o medo para que quebrasse a casca e voasse

eu esquecia-me dos camundongos roedores de treliças

perambulando livres no terreno desenternecido

alimentava-me de minhocas azuis e eles continuavam

remexendo o desdizer e descontinuando

movendo a mais ínfima denúncia de desentendimento

deixando-nos perplexos de solidão

e de distância lançada entre as nossas garras

eu só saía para beber a água da bica escrita nas rugas das pedras

assim nos recuperávamos do não entendido

e seguíamos com os pés descalços

o mar que tu me tinhas era pouco e se secava

eu precisava refazê-lo gota por gota na margem dos teus gestos

eu torcia para que as formigas desviassem a via da claridade

e eu pudesse permanecer mais tempo entrelaçada no teu corpo

mas elas dormiam torcia para que os morcegos desviassem a via

da claridade mas eles só queriam se empanturrar

com o vermelho das paixões secretas que também dormiam

torcia para que os camundongos desviassem a via da claridade

mas eles ruminavam outra semântica talvez eu mesmo pudesse desviar

o rumo da claridade mas eu não conseguia me desfazer de teus pés nus

e ignorar a súplica do sexo das flores

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então amanhecia e eu

tinha que partir carregando o fundo e a imensidão do mar refeito

e quase cega tropeçando nas nuvens sonolentas

enfiava-me no olho gordo da árvore descansar o corpo do entrelaço

para de novo despertar passada a meia noite branca

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na virilha entre a noite e o dia

inerte diminuído o tronco caído

descansas do meu corpo passado a limpo

do invólucro da minha mão quente

e o calor na caverna da minha boca onde amadureceste

com sabor de fruta sharon penetraste no túnel

dos meus segredos tangíveis e a rigidez da tua procura

apertada nas paredes da carne macia atingiu a intensidade

e a cadência do chegar até o suor escorrer

pelos músculos embaçados da janela fechada

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vem estar comigo nos intensos lampejos no fundo

das madrugadas na penumbra das mãos sôfregas buscando

os portos seguros ao longo das tormentas que os nossos

corpos iniciam ancorar nas orlas e explorar os interiores

úmidos sou lilith vem estar entre as minhas coxas entre a fenda

nas paredes da fuga que nos leva longe das entediantes

buscas e batalhas diárias abandone-as

os compromissos maçantes os telefonemas os emails não respondidos

as más notícias... não se preocupe com isso

vem trepar nos muros altos do prometido sentir

a redondeza do sentido os lábios calcados no ventre

do sonho e os joelhos como parte de um instrumento dobrável

vem sentir o gemer da música tremulando na pele nua

ver o ondular da noite nos olhos da cama

esqueça as senhas aqui não é

preciso senha nenhuma os segredos se revelam

em cada nó de braços e pernas entrelaçados e as velas se abrem

para receber o mastro vamos singrar as águas inquietas

do marítimo noturno

a Al Berto

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tenho tua língua dentro da minha boca

sugamos as palavras ditas no fundo

da cisterna da saliva adocicada

colhemos o amanhecer violeta

e mordemos a carne morna

do pronunciado no escuro dos olhos fechados

aqui o silêncio se faz

onde ecoa a tormenta da nossa imaginação

as bocas presas uma a outra com a força do ímpeto

da demanda do possuir tenho a tua nuca teu queixo

no molusco da minha mão o mar que deságua em nós

arrasta-nos revira-nos no interior transparente

e leva-nos à tona

onde lentamente ancoro a minha barca coralífera

na angra dos teus olhos quando se abrem

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abocanho a carne macia de teus lábios

minha língua entrelaça-se na tua

em uma trança íntima

sugo-te para que difícil nos separemos

tua boca é uma fruta suculenta

não desperdicemos o caldo

à maçã não importa o pecado

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uma vez construí a morada do teu nome

com as palhas e as estacas daquilo que eu queria

que você fosse para mim e o sopro da realidade

a destruiu com o vento forte das segundas-feiras

depois do levantar-se

outra vez construí a morada do teu nome

com a madeira do meu medo de não te agradar

e o sopro da realidade a destruiu com a perda

de mim mesmo nos espelhos das tramas nas galerias

de tinta vermelha riscando o X das respostas erradas

a última vez construí a morada do teu nome

com os tijolos da minha coragem e a argamassa

do aprendizado escrito a giz na lousa do passado

mostrando as decepções moídas servindo de rípios

e o sopro da realidade bateu as páginas das portas

e esvoaçou a pele das janelas

três vezes construí a morada do teu nome

para enfim te ver isento do envoltório

de papel de seda que embrulha os presentes caros

e me revelar sem a casca

para que o sopro da realidade somente faça

o moinho girar

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minhas pernas não sabem o que dizer no caminhar da História

talvez nunca soubessem diante dos nós da convivência

diante das guerras da exploração ou do veneno

cuspido na boca do outro diante das brigas hereditárias

da concorrência desleal das papeladas das riquezas furtadas

eu ainda não tinha nascido quando muita História aconteceu

carrego a minha própria dentro da minha cidade e casa

dentro do meu corpo e do meu pensamento no meu crescimento

mas nas vigas do passado o presente se sustenta

sei que me cansa ter que levantar as palavras na vertical

consertar as estacas na areia

sei que não se pode confiar no horizonte

na reta do fio de prumo mas na soma da violeta

nas margens das gotas de chuva carregando os limites do céu

e para não me minguar nos escuros do mundo

semeio o peso leve de tuas mãos na paz da minha pele

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um punhado de neve sobre o negro da seda noturna

para escrever com

o alfabeto de cristais das nuvens

diz silêncio engole flocos de palavras

e páginas em branco buscando os traços

do cinza que os reflexos germinam

nunca se viu um floco de neve

com quatro cinco ou oito lados não existem

possuem seis ou doze

nunca se pode juntar todas as letras da neve

e esculpir a frase

como o carinho branco da palma da mão

porque a noite não espera

com as sombras do ad meridiem é tecida a rede

de fótons no respirar da janela quando abrires a manhã

quando adiarmos as horas maiores e rápidas

após termo-nos deitado no interior da vagem do inverno

após as promessas que só os amantes mentem

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akantha

nenhum adeus é suficiente

para fazer-me esquecer-te

é da luz que nascem as sombras

e brilham lançadas em algum lugar

próximas da matriz

formas longas

que dilatam o que já existe

como a outra metade

nenhuma escuridão amedronta-me

nenhuma luz é tão forte a ponto de cegar-me

continuarei plantando

flores no jardim

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o Nada tem cor branca

ele é perfeitamente imaculado e branco

como uma tinta corretor como o cal na parede

o Nada é branco silencioso inodoro e está em muitos lugares

os quais nunca imaginamos na expressão de alguém

no jasmim de um vaso na carta de um remetente

na unha do dedo na côdea de uma árvore

pendurado na gola da tua camisa

misturado com o mingau dentro do copo de leite

no lençol da cama

no interior do coco no voo da gaivota

em cima da mesa ao lado dos papéis

ao lado do mamilo na boca da noite muda

na extremidade dos cadarços na tua voz sem fome

o Nada está em muitos lugares os quais não imaginamos

pode ser uma manchinha de nada como uma linha escapada

imperceptível

vivemos sempre com o Nada fazendo parte de nós

e de nosso cotidiano

fazendo parte das pessoas a nossa volta como se fosse nada

tem aqueles que o reconhecem são raros

e assustam-se sentem o medo ameno e fundo

entrando dentro deles lento como uma raiz arrancada

aqueles que reconhecem o Nada vivem cheios de buracos

porque cada vez que o reconhecem

alguma coisa é extirpada de dentro deles

e precisam replantar são pessoas que vivem engolindo sementes

para não serem engolidas pelo Nada

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repensar os cálculos dos caules das ampolas

conforme a contabilidade da luz

e discutir o projeto de construção janelas de vidro duplo

armação de madeira aço inoxidável pedras rochosas mas há

os projetos outros que emergem dos papéis arrancando

ninhos de passarinhos em extinção passando por cima

de folhagens inclassificáveis e nascente de cultura rara

além das espécies de sapos tão ínfimos

que ainda temos medo de descobri-los

chefe! muitas coisas estão assim: prestes a deixar de ser

também as corolas das antigas palavras se foram

do latim vulgar

por exemplo

mas entenda que se as coisas que vivem forem

assim destruídas

também nós...

no meio da página virada e interrompida

no meio do salto do sapo inclassificado

seremos sombras amorfas achatadas no breu do piche

sob as rodas da tecnologia e não foi para isso que me lancei

na planície do contemporâneo foi para saber que é possível

ser feliz com sete gotas cheias de chuva

caídas na raiz e ainda criar sementes

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lenta e imperceptível é a coreografia das dunas

fazendo par com o vento mas é de se desconfiar

não existirá

mais nada com esta rapidez também a das mãos dos amantes

flutuando nas ondulações dos corpos após o orgasmo

do ruminar das conversas até a amizade brotar da saliva

e da seiva dos gestos

ou a das pálpebras dos velhos arqueadas

no sestear das tardes

nada com esta rapidez de tão lentas elas somem

como o marulhar das letras escritas à mão

em um pedaço de papel indo buscar-te

é outra a velocidade das nuvens outros os espólios

despejados sobre a mesa agora do computador

as feras das horas vagas estão amansadas

pelos novos softwares

estamos arraigados em frente à tela as raízes crescem

profundas junto ao pé de aço da cadeira giratória

estamos submersos na realidade intangível das imagens eletrônicas

inúmeras mensagens enviadas a diversos destinatários

e as fotografias digitais nos sorriem no monitor

são a essência dos contatos no mais há mar à distância

e não aprender como ser outro menos virtual

mas farei de tudo para ensinar-te a colher

os algarismos entre os fios

das manhãs e a alfazema de uma carta em papel

o caminhar da tua caligrafia

nas linhas invisíveis do tempo

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elas conversam sob a sombra de uma árvore

e tomam guaraná gelada

ao fundo o pão de açúcar

parece um ovo de dinossauro

ou de dragão esverdeado com barbas de sol quente

e hálito abafado não sei! um homem na ponta de um banco

observa qual das duas teria os lábios mais rosados

e ninguém passa vendendo

sorvete de milho verde nem pé de moleque

as duas mulheres conversam sob a sombra da árvore

e o ovo não chocou até hoje não chocou

sobre uma pintura de georgina de albuquerque

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é fácil não saber o nome das coisas

difícil é permanecer sem saber porque você precisa do nome delas

algumas coisas parecem não ter nomes de tão raras que são

outras estão incrustadas no fundo do nosso cotidiano

que esquecemos os seus nomes ou nunca

preocupamo-nos em saber relembrar

o descobridor dos nomes das coisas viaja muito sem sair do lugar

busca os nomes das coisas nos confins mais longínquos

e desabitados e traz os nomes enfileirados dentro de um livro

porque há coisas que parecem não ter nomes

surgem de repente

e logo voam mas o descobridor dos nomes das coisas

arma a tocaia no meio dos significados e pronto

é fácil não saber os nomes das coisas

difícil é permanecer sem saber

porque necessitamos dos nomes das coisas para preencher

o buraco nas paredes sem os nomes das coisas

entra vento dá frio entra bicho venenoso

agradeço o descobridor dos nomes das coisas

ele faz crescer as minhas janelas e aumentar a minha morada

quanto mais nomes das coisas eu possuo mais a vivência se alarga

sentir pode ser pensar sem os nomes das coisas mas pensar é sentir

os nomes das coisas proliferando-se aumentando o mundo

guardo os nomes das coisas dentro do meu dizer

e dentro do dizer do meu escrever

no coração já estão

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como a lâmpada piscando feito luz

sem fôlego igual peixe sem água

morrendo sem morrer vivendo sem viver

forte sem forças insistindo nos últimos instantes

acendendo e apagando

é uma questão de contato o esbarro

do ombro no ombro de passagem

da mão na mão alheia um olhar atravessando

reversos algumas palavras mesmo sem querer

uma voz suave na hora do chão

mas não é uma questão do momento

em que é tudo meio fio

um ir sem ir um ficar sem ficar

um ser triste sem ser triste

um ser feliz sem ser feliz

e dura dura o tempo de não nos assustarmos

o escuro é curto a claridade é curta

até a lâmpada ser trocada

quando chega o escuro maior

e de novo a claridade

na hora em que a inventamos

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as coisas já despertam por si só, mas dormimos e fingimos que sonhamos.

as coisas já despertam por si só, mas sofremos com os pesadelos que

inventamos

as coisas já despertam por si só, mas lutamos para nos mantermos

acordados cegos

os sonhos são dispersos pela ‘trápala’ e pela indelével inutilidade

das coisas

— por que somos incapazes de entender o seu verdadeiro sentido?

com testa de touro esperamos debruçados na janela

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um quintal antigo na unha do tempo

e na boca do portão cheio de ninguém passar por ele

a couraça de um fusca abandonado as patas enterradas

na terra ressecada como a tartaruga no inerte

do esquecido modelada pelas garras das tardes

acumuladas cuspindo dia e mais dias de sol e chuva

vento e silêncio ferrugem e velhice

era a iconografia de um poema em frente à casa vazia

largado no fundo da rua no canto direito

de um ínfimo deserto orgulhoso de sua solidão

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coloco o antebraço para fora

da janela do carro e arranho o vento

morno com as unhas macias o sol entra

pela janela e a estrada está livre

margeada pelas montanhas imaturas

a melodia sonolenta do verão é casual

a espinha da estrada segue reta

e com algumas curvas a mão flutua como a asa

de um pássaro ou a mão de um regente

a mão que não segura a batuta

na velocidade o vento é liso

mas não são os fios de cabelo

da correnteza sincera da água

segue-se o caminho do mar

aonde os feriados vão desembocar

fica para trás o trabalho

sorrindo o sorriso de quem sabe

que te possui em suas mãos

ostreário dentro do escritório

melhor alcançar o balneário

deitar na esteira ouvir o undíssono

nas veias azuis dos dias e ter a sorte

de não testemunhar aquelas nuvens

que chegam e ficam

como um tio em cima de um não

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pobre dos idiomas

isentos de acentos

faltam-lhes a montanha

o telhado a onda a antena

faltam-lhes as nuvens a lua o sol

as estrelas os riscos de cometas

faltam-lhes algo mais

algo que flutue sobre as letras

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escrevi um poema

e com o passar dos anos modifiquei-o

modifiquei-o tanto

que nada restou ele se desfez

com naturalidade como se nunca tivesse

sido escrito mas lembro-me de todos

os seus versos as palavras inseridas e excluídas

ele está dentro de mim inteiro e fragmentado

completo e inacabado e vive

recriando-me cada vez que me recordo

de seus vestígios

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era tarde quando o relógio tossiu a hora perdida

e a morte do sol possuiu algo de vermelho mesclado a roxo

não houve o encontro e a espera trouxe um movimento impróprio

de final de tarde... uma nesga de paixão amarrada na ponta

do céu ou foi o espelho de um edifício

e em seu interior o teu semblante de terno e gravata estampado

na transparência do aquário vertical

um plâncton errante e livre

a liberdade pode também significar ermo

quando demais indefinida e solta

atada à dependência ao contorno

de tudo existente tudo vive de sua linha fronteiriça

onde o espaço alheio começa e o celular toca

não es tu não te reencontrei

e as calçadas movimentam o dia esbarrando em mim

os passantes circulam pra lá e pra cá rapidinhos

germinando coisas a cada oito horas

carregam sacolas de compras nas mãos um aflorado de objetos

e tecidos coloridos lá dentro

nas calçadas as vozes aladas bolhas débeis de sabão

irrompem incompletas refletem frágeis imagens na cara da mesmice

na esquina a mãe segura a mão da criança

no momento da vigilância no momento da posse

no instante do risco e de um semáforo vermelho

eu regresso lento ao interior de mim

passando pelo simulado silêncio das ruas

que surge no instante exato entre o claro e o escuro

—a contraverga da tarde e da noite

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um silêncio tão inocente como culpado

que se expande ligeiro

e se finda rápido

em mim preciso do teu esbarro e do toque do mundo à minha volta

guardo os fósseis das tuas palavras nos limbos

das minhas mãos

a cada despertar dos gestos revividos renovo a promessa

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Índice

1. estar em casa, 02

2. e quando alguém tentar tecer, 03

3. o algodão do pão, 04

4. são trinta e dois, 5

5. uma de ferro outra de espuma, 06

6. ainda existem espantalhos?, 07

7. a barba da pedra, 08

8. as coisas saberiam de mim e eu delas, 09

9. em Évora, 10

10. na praça de Marinha Grande, 11

11. Berlin, U2, 12

12. flores brancas, 13

13. a magra vírgula, 14

14. flor soberana, 15

15. hifens de água, 16

16. ágrafas e escorregadias, 17

17. por tudo quanto é canto, 18

18. onde deixar as mortes que eu vivi, 19

19. preciso da mentira, 20

20. o dilema de um anjo II, 22

21. o dilema de um anjo III, 24

22. o dilema de um anjo IV, 26

23. o dilema de um anjo V, 28

24. o coletivo de auroras, 29

25. Natureza dualística, 30

26. o biólogo, 31

27. mancha de petróleo, 32

28. um cangaceiro, 33

29. a nogueira, 35

30. a pedra não nasce pedra, 36

31. com o bico, 37

32. escrever algo, 38

33. matemática, 39

34. Jacurutu, 40

35. na virilha, 43

36. . vem estar comigo, 44

37. tenho, 45

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38. à maçã não importa o pecado, 46

39. uma vez, 47

40. semeio o peso leve de tuas mãos, 48

41. o alfabeto de cristais das nuvens, 49

42. Akantha, 50

43. uma manchinha de nada, 51

44. repensar os cálculos, 52

45. lenta e, 53

46. elas, 54

47. é fácil, 55

48. sem fôlego, 56

49. testa de touro, 57

50. um fusca abandonado, 58

51. como um tio em cima de um não, 59

52. algo que flutue sobre as letras, 60

53. vestígios, 61

54. plâncton, 62

Viviane de Santana Paulo

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