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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP MIRIAN APARECIDA MELIANI NUNES Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais: traduções de realidades locais nos discursos midiáticos MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2014

Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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Page 1: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

MIRIAN APARECIDA MELIANI NUNES

Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais: traduções de realidades locais nos discursos midiáticos

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2014

Page 2: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

MIRIAN APARECIDA MELIANI NUNES

Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais: traduções de realidades locais nos discursos midiáticos

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção de título de Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCoS) Orientadora: Professora Dra. Lúcia Leão

SÃO PAULO 2014

Page 3: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

Banca Examinadora

________________________________

________________________________

________________________________

Page 4: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

NUNES, Mirian Aparecida Meliani

Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais: traduções de realidades

locais nos discursos midiáticos

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora do Programa de Estudos Pós-

graduados em Comunicação e Semiótica da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo para obtenção de título de Mestre em

Comunicação e Semiótica.

Aprovado em : ____/____/_____

Profª Dra. Lúcia Isaltina Clemente Leão ____________________________

Banca Examinadora

Prof. Dr. Sergio Amadeu da Silveira _______________________________

Universidade Federal do ABC (UNIABC)

Prof. Dr. Rogério da Costa ______________________________________ Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Page 5: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

A Mariana, Gabriel e aos jovens-quase-meninos que tomaram a vida nas mãos, narrando mil e uma histórias.

Page 6: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

Agradecimentos À minha orientadora, Profª Dra. Lúcia Leão, pelo esmero no apoio, no direcionamento e no olhar sempre generoso e capaz de reinventar caminhos. Ao COS/PUC-SP e ao CNPq, pela concessão da bolsa de mestrado e apoio financeiro a este estudo. Ao Grupo de Pesquisa em Comunicação e Criação nas Mídias (CCM) e a todos os seus pesquisadores, amigos e parceiros de aprendizado, pela contribuição abrangente e possibilidade de diálogo constante. Em especial, Adriana Ferreira, Fernanda Ceretta, Marianne Villegas e Paula Carolei. Ao Prof. Dr. Rogério da Costa (PUC/SP) e à Profª Dra. Gisela Castro (ESPM), pela leitura atenta e importantes apontamentos compartilhados durante o processo de Qualificação. Ao Prof. Dr. Eduardo Braga (Senac/SP) e à Profª Dra. Ane Shirley (PUC/SP) pela leitura de texto derivado desta pesquisa, resultando em incentivo e contribuição. À minha amiga e parceira de jornada, Alessandra Barros Marassi, pela ajuda constante, apoio e incentivo, sem os quais este caminho teria sido mais árduo e muito menos prazeroso. À Cida Bueno, por suas orientações administrativas sempre precisas e pelo apoio. À minha família, que ofereceu todo o suporte para a realização desta pesquisa. Pela compreensão, carinho e presença: a meu marido Sergio Ricardo Estevez, a minhas irmãs Marisa, Ida e Cleusa Meliani e a meus pequenos Gabriel e Mariana. À equipe da Folie Comunicação, que me apoiou em momentos decisivos. À Ana Paula Estevez, pela ajuda nas transcrições das entrevistas, e à Ana Paulalyn Carvalho, pelo apoio nas gravações em vídeo com Enderson Araújo e na edição do vídeo de Isadora Faber. Aos três jovens, Rene Silva, Isadora Faber e Enderson Araújo, que concordaram em dividir suas histórias, pensamentos e desejos, base para esta pesquisa. E também a Mel Faber, pela hospitalidade e disponibilidade. À minha mãe, Ada, que desta vida nada mais sabe, mas que ensinou como a negação da “normalidade” pode ser a linha de fuga para permanecer vivo em meio ao caos. E ao saudoso motorista Marcelino, que conduziu seu carro e a vida de suas quatro filhas com dignidade inigualável.

Page 7: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

Resumo A proposta desta dissertação de mestrado é desenvolver o mapeamento, a investigação e a interpretação de narrativas construídas em torno do discurso de três atores sociais, definidos como nossos estudos de caso, em seus perfis mantidos em redes sociais digitais. O objetivo é analisar como esses atores, originários de territorialidades diversas, deslocam-se por diferentes espaços midiáticos, gerando processos comunicacionais relevantes, de alto impacto e geradores de grande volume de respostas. Por meio dessa análise, buscamos refletir sobre as características da comunicação e mediação em duas plataformas digitais de redes sociais com forte adesão no Brasil: Facebook e Twitter. As transformações que tais atores promovem, por meio da circulação de bens simbólicos e de capital social, também fazem parte do escopo de análise. O fluxo contínuo de inter-relação entre rede digital e localidade permite, ainda, observar a retroalimentação de bens simbólicos, o desenho de narrativas interdependentes e a ressignificação de enunciados. O corpus empírico desta pesquisa é composto da análise de enunciados publicados em sites de redes sociais, blogs e notícias, além de entrevistas em profundidade, referentes aos três estudos de caso. Em comum, tais indivíduos são jovens, atuantes nas redes sociais digitais, com laços em suas comunidades, capazes de se fazer ouvir dentro e fora do espaço digital. Ao constituírem-se como modelos de uma determinada visão de juventude, transformam-se em instrumentos úteis para a sociedade de controle? Alinhavando a análise, deve-se contextualizar as redes sociais dentro da definição de Castells de sociedade organizada em rede, complementada pela visão de Rosensthiel. Ao abordar o desejo intrínseco de romper o isolamento social, cultural e pessoal, por meio de um projeto de construção de identidade, deve-se utilizar Maffesoli, em contraponto a Castells e sua definição de identidades primárias, passando pela afirmação de Flusser de que o impulso de comunicação atende justamente à necessidade de romper a solidão em que se encontra o indivíduo em sua condição humana mais primordial. Para delimitar as questões específicas deste estudo, usaremos as definições de mídia e ambiente digital de Leão, assim como os estudos de Recuero sobre redes sociais e os parâmetros introduzidos por Wellman. As questões metodológicas serão direcionadas por meio dos parâmetros da pesquisa qualitativa proposta por Alami; dos métodos de pesquisa específicos para internet apontados por Fragoso, Recuero e Amaral. Para a fundamentação teórica conceitual sobre métodos, utilizaremos o conceito de complexidade de Morin. Palavras-chave: redes sociais, análise de discurso, juventude e cibercultura, dinâmicas comunicacionais, comunicação digital.

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Abstract

The purpose of this Master´s thesis is conduct a mapping, research and interpretation of narratives constructed in the discourse of three social actors, who have been defined as our case studies, on their digital social network profiles. The aim is to analyze how these actors, coming from different territorialities, move around different media spaces, create high impact, relevant communication processes, and generate a large volume of responses. Through this analysis, we seek to reflect on the characteristics of communication and mediation in two digital platforms of social networks with high traffic in Brazil: Facebook and Twitter. The transformation that such actors promote, through the circulation of symbolic goods and social capital, are also part of the analysis. The continuous flow of interrelation between digital network and locality allows also to observe the feedback of symbolic goods, the design of interdependent narratives and redefinition of statements. The empirical corpus of this research consists of the analysis of statements posted on social networks, blogs and news websites, in addition to in-depht interviews referring to the three case studies. These individuals are young, active in digital social networks, with ties in their communities, and able to make themselves heard inside and outside the digital space. By being examples of a particular view of youth, do they become useful tools for the control society? For the basis of this analysis, we must contextualize social networks based on Castells’ definition of the network society, complemented by Rosensthiel’s view. When discussing the intrinsic desire to break the social, cultural and personal isolation, through a identity construction project, we should contrast Maffesoli and Castells and his definition of primary identities, also mentioning the Flusser’s assertion that communication impulse meets exactly the need of breaking the solitude of the individuals in their most primal human condition. In order to delimit the specific issues of this analysis, we will utilize Leão’s definition of media and digital environment, as well as Recuero’s studies on social network and the parameters introduced by Wellman. The methodology will be based on the qualitative research parameters proposed by Alami, as well as by the specific research methods for internet pointed out by Fragoso, Recuero and Amaral. For the conceptual theoretical foundations on methods, we will utilize Morin’s complexity concept. Keywords: social network, discourse analysis, youth and cyberculture, communication dynamics, digital communication.

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SUMÁRIO ÍNDICE DE FIGURAS ............................................................................................... 11 LISTA DE FOTOS ...................................................................................................... 12 LISTA DE MAPAS ...................................................................................................... 13 APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 14 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 17 CAPÍTULO 1: AS REDES ................................................................................................ 21 1.O EMARANHADO DE SENTIDOS NAS REDES .............................................................. 21 1.1 NÓS NA TRAMA ........................................................................................................ 21 1.2 UMA VISÃO DO TEMPO ....................................................................................... 28 1.3 O(S) EU(S) E A ALTERIDADE .................................................................................. 30 1.4 A ESPECIFICIDADE DO BRASIL: O IMPULSO INICIAL ......................................... 34 1.4.1 LIMITES E RESSIGNIFICAÇÕES ...................................................................... 38 1.4.2 CONTRAFLUXO ............................................................................................... 42 1.4.3 EXPERIÊNCIAS ..................................................................................................... 45 CAPÍTULO 2: ESTUDOS DE CASO ................................................................................. 56 COM OS PÉS NO LOCAL ................................................................................................. 56 2.1 O EMARANHADO DE SENTIDOS NO ALEMÃO: A HISTÓRIA DE RENE SILVA .. 57 2.1.2 A COMUNICAÇÃO COMO LINHA DE FUGA ..................................................... 60 2.1.3 A FAVELA AO LADO DA TURQUIA................................................................. 69 2.2 A MENINA DE FLORIPA: A HISTÓRIA DE ISADORA FABER .............................. 75 2.2.1 UMA ESCOLA, MIL ESCOLAS .......................................................................... 78 2.2.2 O BIOPODER, A BIOPOLÍTICA ........................................................................ 84 2.3 COM O UMBIGO EM SUSSUARANA: A HISTÓRIA DE ENDERSON ARAÚJO ...... 91 2.3.1 RESSIGNIFICAR A PERIFERIA ........................................................................ 94 2.3.2 A CABEÇA NO GLOBAL ................................................................................... 99 CAPÍTULO 3: OS EMBATES DO COTIDIANO .............................................................. 103 O PONTO DE ENCONTRO ............................................................................................ 103 3.1 UMA IDEIA DE JUVENTUDE .................................................................................. 107 3.2 O PUER AETERNUS COMO MODELO .................................................................... 110 3.3 PÓS-MODERNIDADE, O DITO E O NÃO-DITO ........................................................ 112 3.4 NAS GARRAS DOS DISPOSITIVOS ......................................................................... 114 3.5 MICROPOLÍTICAS NAS DOBRAS DO CAPITALISMO TARDIO ............................... 116 3.6 NOVAS NARRATIVAS, UM NOVO JORNALISMO? ................................................ 118 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 121 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 124 WEBGRAFIA ............................................................................................................ 128 GLOSSÁRIO .............................................................................................................. 132

Page 10: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

APÊNDICE A ............................................................................................................. 134 APÊNDICE B ............................................................................................................. 136 APÊNDICE C ............................................................................................................. 142 APÊNDICE D ............................................................................................................. 148 APÊNDICE E ............................................................................................................. 152

Page 11: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

ÍNDICE DE FIGURAS FIGURA 1 : Status do Facebook ................................................................................. 26 FIGURA 2: Botões de curtir, comentar e compartilhar do Facebook .......................... 26 FIGURA 3: Página da Mídia Ninja no Facebook ........................................................ 45 FIGURA 4: Blog de Rene Silva no blogspot .............................................................. 47 FIGURA 5: Foto de capa da página Diário de Classe ................................................. 49 FIGURA 6: Notícia sobre ferimentos de avó de Isadora ............................................. 50 FIGURA 7: Número de seguidores da Voz da Comunidade no Twitter ..................... 63 FIGURA 8: Chamada para TT de #vozdacomunidade ................................................ 64 FIGURA 9: Abertura do perfil de Rene Silva no Facebook ........................................ 64 FIGURA 10: Abertura da página da Voz da Comunidade no Facebook ...................... 64 FIGURA 11: Incêndio da sede da Voz da Comunidade no site de Veja ...................... 66 FIGURA 12: Antes e depois do incêndio...................................................................... 67 FIGURA 13: Post no Facebook sobre Salve Jorge após estreia ................................... 70 FIGURA 14: Post no Facebook sobre aparição de Rene em Salve Jorge .................... 71 FIGURA 15: Ilustrada comenta favela ficcional .......................................................... 72 FIGURA 16: Notícia do Estadão sobre interação redes-TV ......................................... 73 FIGURA 17: Comentário sobre origens gaúchas da família Faber .............................. 76 FIGURA 18: Vídeo sobre aula de Matemática no Facebook ....................................... 79 FIGURA 19: Foto da merenda no Facebook ................................................................ 79 FIGURA 20: Fim da aprovação automática ................................................................. 80 FIGURA 21: A vida é bela em capítulos ...................................................................... 81 FIGURA 22: Isadora comenta ataque a sua casa .......................................................... 82 FIGURA 23: Professora de Português e B.O. ............................................................... 82 FIGURA 24: Comentário sobre nova escola ................................................................ 85 FIGURA 25: Notícia no Globo.com sobre vídeo da Google........................................ 86 FIGURA 26: Newsweek fala sobre Isadora................................................................. 86 FIGURA 27: Jornal El Comercio fala sobre Isadora .................................................. 87 FIGURA 28: Revista Der Spiegel fala sobre Isadora .................................................. 87 FIGURA 29: Notícia sobre Isadora na TodaTeen........................................................ 88 FIGURA 30: Notícia sobre Isadora na Trip................................................................. 88 FIGURA 31: Notícia sobre Isadora na Educar para crescer ........................................ 89 FIGURA 32: Notícia sobre Isadora no Estadão ........................................................... 89 FIGURA 33: Bairro de Sussuarana no Correio............................................................. 92 FIGURA 34: Bairro de Sussuarana no jornal A Tarde ................................................. 92 FIGURA 35: Postal de Sussuarana ............................................................................... 95 FIGURA 36: Postal de Castelo Branco ........................................................................ 95 FIGURA 37: Postal do Candeal ................................................................................... 96 FIGURA 38: Notícia do jornal A Tarde no Facebook .................................................. 96 FIGURA 39: Texto no blog do Pulitzer Center ............................................................ 99 FIGURA 40: Texto do Pulitzer Center no The Times of India .................................. 100 FIGURA 41: Tweet de correspondente holandês sobre Enderson ............................. 101 FIGURA 42: Comentário no Facebook de Enderson sobre a avó .............................. 102 FIGURA 43: Comentário no Facebook criticando Isadora ........................................ 115

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LISTA DE FOTOS FOTO 1: VISÃO DO TELEFÉRICO DA JANELA DA ANTIGA SEDE DA VOZ DA COMUNIDADE .................................................................. 60 FOTO 2: FACHADA DA ANTIGA SEDE DA VOZ DA COMUNIDADE............................................................................................. 65 FOTO 3: INSCRIÇÃO CV, EU CUIDO EU VIVO ............................................................ 68

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LISTA DE MAPAS MAPA 1: PORTALGEO, COMPLEXO DO ALEMÃO, RIO DE JANEIRO, RJ ...................... 57 MAPA 2: IMAGEM DE SATÉLITE, PRAIA DO SANTINHO, FLORIANOPOLIS, SC ............ 75 MAPA 3:. IMAGEM DE SATÉLITE, SUSSUARANA, SALVADOR, BA .............................91

Page 14: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

14

APRESENTAÇÃO

Para o desenvolvimento desta dissertação, apresentamos três estudos de caso que

abordam as trajetórias de jovens atores sociais no âmbito das plataformas digitais de

redes sociais. Para chegar a esse recorte, a autora utilizou o contato prévio com as

histórias de Rene Silva e Isadora Faber, acompanhadas por meio das redes sociais desde

o início de suas publicações.

Rene Silva é, hoje, um jovem morador do Complexo do Alemão, na cidade do

Rio de Janeiro. Ele alcançou notoriedade nas redes digitais ao narrar, pelo Twitter, no

final de 2010, a ocupação do Morro do Alemão pelas tropas de pacificação do Exército

e da polícia do Rio de Janeiro. Já possuía o projeto Voz da Comunidade, que incluía

página no Facebook, perfil no Twitter e jornal comunitário impresso, todos com alcance

limitado. A partir da ocupação, sua história foi narrada por grandes jornais, revistas,

telejornais e por representantes da indústria midiática nas suas mais variadas formas.

Isadora Faber é uma adolescente que vive em Florianópolis, Santa Catarina. Ela

criou o seu Diário de Classe como uma página do Facebook em 2012, inspirada na

blogueira escocesa Martha Payne. Seu desejo era denunciar as deficiências da escola

municipal que frequentava nos anos finais do ensino fundamental. Imaginava chegar a

cerca de 100 acessos, provavelmente de pessoas da comunidade escolar: alunos, pais e

professores. O resultado foi muito diferente do que imaginava, com fortes reações

contrárias dentro da escola e milhares de acessos inesperados de pessoas sem nenhuma

relação direta com a escola em questão.

O nome de Enderson Araújo surgiu após o acompanhamento mais atento dos

compartilhamentos nas páginas do Facebook e Twitter de Rene Silva. Morador de

Salvador, Bahia, no bairro de Sussuarana, trabalhava na limpeza de canteiros da cidade

quando conheceu representantes do Instituto Mídia Étnica, onde fez cursos de

comunicação. Criou o Mídia Periférica, com páginas nas redes, que produz e

compartilha conteúdos comunicacionais com objetivo de se contrapor à imagem das

periferias disseminada por jornais sensacionalistas de Salvador.

Page 15: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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Como usuária comum, e também como jornalista profissional, responsável por

definir conteúdos publicados em redes sociais para empresas e universidades, o contato

com as trajetórias de Rene e Isadora foi marcante, pela repercussão que geraram em um

espaço de tempo muito curto e pelo caráter específico de sua atuação, diferente do

padrão das publicações que geralmente ganham repercussão repentina no espaço digital.

Ao ingressar no mestrado, no entanto, a escolha desses casos não fazia parte do

escopo do projeto. O desejo inicial era investigar duas plataformas digitais de redes

sociais específicas, Facebook e Twitter, que se destacavam como plataformas de

relacionamento e de troca intensa de informações, inclusive de conteúdos que se

assemelhavam e, em alguns casos, concorriam com os chamados produtos jornalísticos.

O objetivo era compreender os processos comunicacionais presentes nessas plataformas

e a que demandas específicas eles respondiam. Por trás disso, havia a tentativa de

transformar percepções iniciais em um objeto de estudo capaz de ajudar a compreender

por que escolhemos esses ambientes digitais específicos para dedicar boa parte de um

tempo já escasso, para formalizar discursos, reconhecer heróis coletivos, e até mesmo

construir uma identidade real e/ou projetada.

A necessidade de recorte levou à busca por estudos de caso e, com a ajuda da

orientação, de leitura da bibliografia existente e das disciplinas frequentadas, a definição

delineou-se. Ao longo do percurso desta pesquisa, esse recorte demonstrou possuir um

sentido interno próprio, com pontos em comum entre os três jovens, que criam linhas de

convergência e divergência capazes de oferecer material investigativo para a análise de

diferentes características da comunicação nas redes sociais, dentro da especificidade

brasileira. A localidade de cada um dos três atores sociais impôs-se, durante esse trajeto,

como parte importante da contextualização, tornando-se, por vezes, uma presença

discursiva tão ou mais forte que o enunciado em si mesmo. Assim, a questão da cidade

e, mais especificamente, da comunidade, também passou a fazer parte da análise.

O referencial teórico que oferece a base a partir da qual se empreende o olhar

para a busca de novos sentidos presentes nas redes é apresentado no primeiro capítulo,

relacionando alguns autores e os temas mais abrangentes presentes nesta dissertação.

Em seguida, no capítulo 2, procuramos focalizar as histórias específicas que

configuram os estudos de caso, abordando inicialmente as localidades e especificidades

Page 16: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

16

em que se inserem, para, depois, discorrer sobre as trajetórias dos três jovens como

atores nas redes sociais digitais, dentro das dinâmicas próprias da comunicação mediada

por computador. Apresentamos, ainda, as traduções que recebem em diferentes

ambientes midiáticos, gerando novos discursos.

Isso posto, no terceiro capítulo analisamos os discursos construídos e a forma

como esses atores desenham as linhas para a própria subjetivação, no sentido dado por

Foucault e revisto por Deleuze, para, em seguida, serem recapturados por um novo

dispositivo. Cruzamos o referencial teórico com os dados levantados, demonstrando de

que forma os atores em questão podem nos levar a refletir sobre os processos

comunicacionais das redes sociais digitais e a forma como a comunicação de massa

relaciona-se com esse cenário. Confrontam-se, aqui, estudos já desenvolvidos na área e

os resultados que obtivemos com a pesquisa.

Na conclusão, apresentamos nossas considerações finais. Acrescentamos, como

elementos pós-textuais, os Apêndices de A a F, com as transcrições de entrevistas

realizadas com os três jovens e, no caso de Isadora Faber, que contava 13 anos em 2013,

entrevista também com sua mãe, Diamela Faber. Acrescentamos, ainda, um DVD com a

gravação em vídeo das entrevistas realizadas, registradas como documentos do processo

de produção da dissertação.

Page 17: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

17

INTRODUÇÃO

Sobe e desce ladeira, com a rapidez de quem vive, pensa e conversa com a

favela as 24 horas do dia. Nas mãos, o celular projeta o cenário que desafia a gravidade,

com casas miúdas de alvenaria, obras incompletas, espetadas lado a lado. O morro

escoa para dentro do aparelho, que espalha o Alemão mundo afora.

Cidade de becos sem começo nem fim, sem traçado, sem asfalto, corredores

estreitos em que nunca se sabe no quê ou em quem vai se esbarrar ao dobrar a esquina.

Esquina que não existe, tampouco quarteirões. Nada de separação com o quintal do

vizinho, nem muros, nem espaço entre um e outro. Como tudo não despenca, como ele

não desliza morro abaixo pelos degraus altos e baixos?

Cumprimenta o vizinho, ouve o som que sai da janela, comenta, acelera, sente o

cheiro do almoço. Rene do Alemão ri, tecla, e não marca bobeira, porque, malandro,

isso aqui não é mole não. Dá de cara com CV, dá de cara com UPP, dá de cara com a

vida do jeito que ela é. E vai brincar de voar no teleférico, vai dar um pulo ali na

Turquia ou vai levar um papo com a turma de Harvard.

Enquanto isso, umbigo enterrado em Sussuarana, Enderson mora na cidade do

Salvador. Tropeça em cadáver, limpa canteiro de praça e faz fotos de sua quebrada. Pôr

do sol na laje da periferia, céu e chão, tudo vermelho. Puro orgulho, que se desloca para

os dedos, teclando sem parar. Mil projetos, ideias, redes de conexão para espalhar um

novo jeito de olhar para o lugar de onde veio.

Isadora, menina de Floripa, estrangeira onde nasceu. Sai de casa cedo e segue a

pé para sentar-se entre os muros da escola. Falta tinta na quadra, fechadura no banheiro,

merenda no intervalo, professor na sala de aula. Mas ela tem um aparelho e é proibido

usá-lo no quadrado em que deve permanecer sentada. Pequena insurgência de quem faz

o que acha que deve ser feito. O diário da menina nada tem de íntimo, é aberto e

compartilhado. “Umas 100 pessoas, talvez, possam ler”. Não aquelas a quem se dirigia,

essas desviam o olhar. Muitas outras, porém, resolvem ver o que há de especial nesses

dias comuns narrados. Nada de novo, nada além da escola, da escola de todas as

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crianças. Ela mostra o lanche da merenda no Facebook e recebe um milhão de acessos.

Pisca os olhos e fala bem baixo: não esperava nada disso.

Três vezes mil

As três histórias que se cruzam nesta dissertação dialogam de diversas formas,

não apenas entre si, mas com muitas outras, que se multiplicam nas redes sociais

digitais e extra-digitais. Para compreender o sentido da repercussão que alcançaram,

cabe perguntar por que, entre tantas outras, foram as escolhidas para merecer o

reconhecimento de seguidores, corporações e instituições midiáticas. Quais

características destacam essas narrativas das demais, a que anseios respondem? O quê,

nas características pessoais dos três jovens que as protagonizam e no coletivo em que se

inserem, transformou garotos, meio-crianças, meio-adultos, em fenômenos da

comunicação digital? Como suas trajetórias estabelecem conexões entre si, o tempo

todo?

Para estabelecer um contato mais aprofundado, foram agendadas entrevistas

presenciais, complementadas por diálogos informais, realizados por meio de diferentes

redes: o sistema de mensagens instantâneas e o sistema de troca de mensagens Inbox do

Facebook, a plataforma WhatsApp (posteriormente comprada pelo mesmo grupo do

Facebook), email e SMS. A primeira entrevista foi realizada com Enderson Araújo, no

final de 2012, seguida meses mais tarde pela de Rene Silva, em julho de 2013, e por

Isadora Faber, em agosto do mesmo ano.

O desenvolvimento da pesquisa e do levantamento de dados ao longo desse

período registrou desdobramentos e a inclusão de temas que originariamente não faziam

parte do seu recorte. Assim, uma semana após a visita à sede da Voz da Comunidade,

no bairro do Grotão, dentro do Complexo do Alemão, foi noticiado o incêndio

criminoso provocado no local. Esse acontecimento mostrou claramente o quanto de

instabilidade ainda estava presente no espaço até então retratado como pacificado. A

partir desse episódio, uma série de outros trouxe à tona a violência e a reação do crime

organizado à presença das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Alemão e em

toda a cidade carioca. Ao mesmo tempo, surgiram denúncias de abuso de poder contra a

polícia e, na favela da Rocinha, ocorreu o caso do desaparecimento do ajudante de

Page 19: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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pedreiro Amarildo Dias de Souza, que se espalhou pelo mundo por meio das

repercussão nas redes sociais digitais.

A pressão exercida pelas manifestações de junho e por uma tomada de posição

mais ou menos generalizada contra as instituições políticas em geral, a representação

partidária e as várias instâncias de governo, que apareceu nitidamente nos enunciados

compartilhados nas redes ao longo do segundo semestre de 2013 e início de 2014,

afetou diretamente o modo como esses atores sociais conduziam seus discursos. Essa

sucessão de fatos imprimiu maior complexidade à condução da pesquisa.

Alguns parâmetros

Apenas a fim de introduzir parte dos conceitos que serão utilizados ao longo do

estudo, apresentamos algumas definições que adotamos como parâmetros. Eles

representam o ponto inicial de onde partimos para registrar as histórias aqui descritas e

as dinâmicas comunicacionais promovidas por elas.

Utilizamos o conceito de plataformas digitais para falar sobre os sites de

relacionamento mantidos por corporações que, especificamente nestes estudos de caso,

envolvem o Facebook e o Twitter. Assim, quando falamos em “plataformas digitais de

redes sociais”, estamos nos referindo a esse tipo de ambiente digital. Procuramos adotar

essa distinção para diferenciar as plataformas que “suportam” as redes sociais das redes

em si mesmas, que, de outra forma, poderiam se abrigar em diferentes territorialidades

digitais ou extra-digitais.

A respeito dessa diferenciação, Wellman1 aponta que a internet apenas oferece

suporte às redes sociais, formadas sempre por pessoas, boa parte das vezes baseadas em

laços estabelecidos em territórios offline: são familiares, vizinhos, amigos de escola ou

colegas de trabalho que passam a fazer parte, também, do grupo de amigos nos espaços

digitais de relacionamento. Há outros grupos que se incorporam às redes sociais digitais

de cada um, alguns com laços mais fortes, outros menos. Porém, para Wellman, é muito

importante cultivar essa variedade, pois ela imprime maior diversidade à rede, o que

1 “The Strength of Internet Ties”, in: http://www.pewinternet.org/2006/01/25/the-strength-of-internet-ties/ Acesso realizado em 15/04/2014.

Page 20: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

20

proporciona contato com pessoas possuidoras de experiências diferentes, capazes de

enriquecer e facilitar a formação de opinião e a tomada de decisões.

A palavra “persona”, por sua vez, é utilizada aqui várias vezes ao referir-se à

construção de uma identidade ou singularidade específica para as redes sociais digitais.

O sentido proposto aproxima-se mais da ideia de máscara teatral, usada por um ator,

assumindo o desempenho de um papel construído e projetado socialmente.

Os atores, por sua vez, na análise das redes em questão, “fazem parte do sistema

e atuam de forma a moldar as estruturas sociais, através da interação e da constituição

de laços sociais” (RECUERO, 2009, p. 25). A autora trabalha com a possibilidade de

considerar um weblog ou um fotolog como um ator - ainda que estes sejam mantidos

por grupos de pessoas. Neste estudo, porém, não adotamos essa configuração,

preferindo usar o termo “ator” ou “ator social” apenas em referência aos indivíduos que

mantêm seus perfis pessoais, explicitando a diferenciação com as páginas de

comunidades mantidas por grupos. Desse modo, ao falar do ator social Rene Silva, não

estamos falando do grupo Voz da Comunidade, assim como ao citar Enderson Araújo,

estamos fazendo um destaque de um membro específico do grupo Mídia Periférica. No

caso de Isadora Faber, buscamos diferenciá-la da página Diário de Classe, ainda que

esta seja mantida exclusivamente pela menina. Entendemos que a opção pela

metodologia de análise qualitativa justifica esse tipo de definição.

Page 21: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

21

CAPÍTULO 1: AS REDES

1.O EMARANHADO DE SENTIDOS NAS REDES

1.1 NÓS NA TRAMA

A organização em rede vem sendo objeto de estudo de inúmeras pesquisas no

campo das Ciências Sociais e das Ciências da Informação. A gênese desse modo de

analisar as relações de grupos remonta aos anos 30, quando estudiosos de Gestalt como

Kurt Lewin, Jacob Moreno e Fritz Heider fugiram da Alemanha nazista e instalaram-se

nos EUA. Utilizando dados matemáticos, grafos e análise social, ajudaram a fundar uma

escola sociológica em solo americano, que se desenvolveu em diferentes direções ao

longo do século 20.

As redes sociais antecedem, sob todos os parâmetros, o surgimento da

comunicação mediada por computador. Porém, com o advento da internet, a

comunicação mediada por computador oferecerá condições para que novas relações,

dinâmicas e sociabilidades das redes se estabeleçam, desta vez no âmbito do espaço

digital, ou ciberespaço. Ao definir o ciberespaço, Levy (1996) afirma que ele é o

resultado da “virtualização dos computadores” e, portanto, não deve ser confundido

com as redes físicas de computadores, que, no entanto, são a condição essencial para

que essa grande interação comunicacional ocorra. No limite, só há hoje um único computador, um único suporte para texto, mas tornou-se impossível traçar seus limites, fixar seu contorno. É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, um computador hipertextual, disperso, vivo, pululante, inacabado, virtual, um computador de Babel: o próprio ciberespaço. (LEVY, 1996, p. 47)

Do ponto de vista epistemológico, a rede é um paradigma que ganha força,

principalmente, na metade final do século XX, paralelamente às inovações tecnológicas

que transcorrem nesse período, como resultado de uma necessidade real de alternativas

teóricas capazes de dar conta de toda uma gama de fenômenos socio-político-culturais e

de relações complexas não contempladas pelo modo de construção do pensamento

baseado na hierarquia do sujeito sobre o objeto, na verticalidade das respostas e na

linearidade histórica.

Page 22: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

22

Assim, quando anos mais tarde a lógica da www, com os avanços introduzidos

por Tim Berners-Lee2, impõe-se, avassaladoramente, como modo de organização

tecnológico hegemônico, o conhecimento científico, no campo filosófico, já exibe

alguns alqueires férteis e preparados para fazer florescer as ramagens do que Deleuze e

Guattari definiram como formas rizomáticas.

É importante nomear, desde o início, a disposição desta pesquisa em identificar

nas plataformas digitais de redes sociais a presença de dinâmicas comunicacionais de

formas rizomáticas e, portanto, múltiplas, policêntricas, mutantes e não-hierárquicas

(DELEUZE e GUATTARI, 1980), sem negligenciar a presença de suas contradições,

não apenas os nós e os agenciamentos que apontam encontros e sobreposição de

sentidos, mas também aqueles que se expandem para o alto, adotando a forma

arborescente como modelo, criando hierarquias momentâneas ou fixas, reafirmando o

que parece ter ficado para trás, mas que pulsa firme no centro da lógica digital, assim

como em toda a sociedade que a circunda e a penetra. Tais definições, que pretendemos

usar para analisar o traçado das relações dinâmicas presentes nas redes sociais digitais,

foram propostas por Deleuze e Guattari, em Mil Platôs. O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive suscite um canal despótico [...] Nem outro nem novo dualismo. (DELEUZE, G. e GUATTARI, F., 1980, p. 42)

Esse processo pode ser compreendido, em parte, a partir da percepção de

dinâmicas que moldam e são moldadas simultaneamente, numa onda contínua de

fluxos, dando forma à própria necessidade humana de estabelecer a comunicação, o

impulso básico para o encontro com o outro, costurando diálogos (FLUSSER, 2007).

Pode-se afirmar, na verdade, que a comunicação só pode alcançar seu objetivo, a saber, superar a solidão e dar significado à vida, quando há um equilíbrio entre discurso e diálogo. Como hoje predomina o discurso, os homens sentem-se solitários, apesar da permanente ligação com as chamadas “fontes da informação”. E quando os diálogos provincianos predominam sobre o discurso, como aconteceu antes da revolução da comunicação, os homens sentem-se sozinhos, apesar do diálogo, porque sentem-se extirpados da história. (FLUSSER, 2007, p. 98)

2 Tim Berners-Lee é considerado o idealizador do modo como a internet organizou-se em termos de navegação, com a adoção do modo WWW, ou WorldWideWeb.

Page 23: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

23

Ao avaliar os enunciados compartilhados nas redes sociais, é possível afirmar

que, em linhas gerais, se aproximam conceitualmente mais do que foi definido por

Flusser como “diálogo” e menos do “discurso”. O que, em certa medida, denota uma

mudança de rumo na comunicação, iniciada com a construção de todo o ambiente

digital labiríntico (LEÃO, 1999). Porém, não é difícil encontrar enunciados que se

apresentam muito mais como “discursos”, geralmente legitimados pelo capital social

acumulado nas redes.

Capital social, aqui, é utilizado no sentido que lhe dá Raquel Recuero (2011),

cruzando conceitos de Putnam, Bourdieu e Coleman e a classificação adotada por

Bertolini e Bravo, adaptando a ideia ao mecanismo de acumulação de “amigos” ou

“seguidores” adotado pelas plataformas digitais de redes sociais mantidas por grandes

corporações, como Facebook e Twitter. Enquanto Putnam vê o capital social como

resultado da virtude cívica, da moralidade e de relações recíprocas, Bourdieu constroi

um conceito baseado na visão marxista de conflito de classes. O capital social seria

derivado de um conhecimento individual adquirido e do reconhecimento mútuo desse

conhecimento pelo grupo. Ao possuí-lo, o indivíduo passaria a contar com um capital

simbólico, capaz de legitimar uma distinção social. Já Coleman acredita que o capital

social é definido por sua função e não estaria localizado na pessoa em si, mas em suas

redes de relações. São visões bastante distintas, como aponta Recuero. No caso de

Putnam, o capital social pode se tornar um bem individual, possuído pelo próprio

indivíduo, ao passo que para Bourdieu e Coleman, ele só existe dentro de uma dinâmica

de relações baseada no reconhecimento.

O capital social é também um elemento-chave para a compreensão dos padrões de conexão entre os atores sociais na Internet. Compreender a existência de valores nas conexões sociais e no papel da Internet para auxiliar essas construções e suas mudanças na percepção desses valores é fundamental para compreender também as redes sociais. (RECUERO, 2011, p.55)

Ao possuir grande número de seguidores, amigos ou fãs, a visibilidade do ator

tende a aumentar e, dentro dessa lógica, significa que tal indivíduo merece distinção e

atenção. Essa posição de distinção permite que ele se abstenha, ocasionalmente, de

estabelecer o diálogo na comunicação.

Page 24: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

24

Assim, a partir de códigos que nem sempre fazem parte da lógica digital, como

possuir cargos importantes ou fama pregressa, fica estabelecida uma hierarquia também

no espaço digital. Excepcionalmente, atores que possuem essa distinção dão-se ao

trabalho de responder a seus “fãs”. Alguns preferem deixar a administração de seus

perfis em redes sociais digitais a cargo de assessores especializados, que dizem apenas

aquilo que está previsto na estratégia de marketing, dentro de uma linguagem

aparentemente espontânea, mas minuciosamente planejada.

Por outro lado, evitaremos a análise do mundo digital de maneira isolada do

contexto em que se insere, sem reforçar a tendência à idealização excessiva e à ausência

de visão crítica. O recorte geográfico, político, histórico, social e cultural certamente dá

conta de uma especificidade e é dela que nos ocuparemos, sabendo que, ainda assim, o

tema deva se inserir na composição do estudo das plataformas digitais de redes sociais

de maneira a contribuir com um diálogo que é global, local e incessante.

O que se deseja afirmar ainda neste primeiro momento é que, do ponto de vista

em que nos encontramos, a paisagem digital contém territórios a serem desbravados

sem a segurança da certeza unívoca. Assim, sabemos que em um período histórico que

alguns definem como capitalismo tardio (CASTELLS, 1999), outros como pós-

modernidade (LYOTARD, 1988), outros como modernidade líquida (BAUMAN,

2005) e outros, ainda, como pós-colonialismo (SANTOS, 2010), resquícios do que

acabou permanecem sendo, indícios do que será adiantam-se ao tempo, e o presente,

como sempre, mistura-se em um caldeirão de contradições.

Para dar conta do desafio, lançamos mão da ideia de aceitação do paradoxo

(LEÃO, 1999), para nos colocar lado a lado com o objeto deste estudo, tornando-nos

objeto do objeto, no momento mesmo em que buscamos respostas, já cientes de que

conseguiremos apenas aquelas que nós mesmos formatamos, antecipadamente, no

dispositivo da pergunta, médiuns de uma cientificidade falha, permeada de vida, de

dúvidas, de narrativas opostas e simultaneamente verdadeiras.

Durante anos os paradoxos foram excluídos do pensamento científico e eram vistos como fonte de confusão e erro. No entanto, é fundamental para a compreensão dos sistemas complexos que o paradoxo seja incorporado às pesquisas. A negação do lado paradoxal, presente em vários fenômenos, faz com que as pessoas fiquem procurando algo verdadeiro e definitivo, algo que seja efetivamente certo ou errado. O pensamento paradoxal, por sua vez, propõe a investigação dos aspectos contraditórios, dinâmicos, fluidos e incertos. (LEÃO, 1999, p.66)

Page 25: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

25

As plataformas digitais de redes sociais, assim como todo o espaço digital e os

mais variados campos de atuação humana, são povoadas por intensos paradoxos. Neste

estudo, tal como apontado na citação acima, não há pretensão de evitá-los ou negar sua

relevância. Ao mesmo tempo em que oferecem oportunidades de expansão dos modos

de expressão e interação comunicacional, os aparatos digitais aqui em análise impõem

um modelo restritivo e fechado, desenhado com o propósito de regular as interações

pessoais e coletivas, o que, é claro, nem sempre acontece tal como planejado. É

justamente tal genealogia que permite a sua classificação como dispositivo clássico,

definido por Foucault e desenvolvido por Deleuze. [Para Foucault] A visibilidade é feita de linhas de luz que formam figuras variáveis. Inseparáveis de um dispositivo ou de outro – não remete para uma luz em geral que viria iluminar os objetos pre-existentes. Cada dispositivo tem seu regime de luz, uma maneira como cai a luz, se esbate e se propaga, distribuindo o visível e o invisível, fazendo com que nasça ou desapareça o objeto que sem ela não existe.[...] Se há uma historicidade dos dispositivos, ela é a dos regimes de luz – mas é também a dos regimes de enunciados. (DELEUZE, 1996)

Plataformas digitais de redes sociais mantidas por grandes corporações, como

Facebook e Twitter, não propagam luz de maneira uniforme. Tanto a formatação que

compõe cada uma delas como a própria dinâmica das relações e interações conectivas

permitem a visibilidade de atores e/ou grupos dentro de uma normalização nem sempre

aparente. Assim, há um estranhamento quando uma brecha permite enxergar um

personagem que não faz parte da lógica predominante – seja esta visibilidade

predominante ditada pela notoriedade externa, pelos atributos de capital social já

adquiridos em outros ambientes midiáticos (televisão, cinema, revistas, jornais ou

outros), pelos espaços de poder institucional ocupados (cargos públicos, atuação em

grandes corporações) ou pelo conhecimento ligado às diferentes technès valorizadas no

âmbito digital (programadores, professores e acadêmicos cujos saberes foram

institucionalizados previamente). O que faz ele aqui? É desse estranhamento, que

mistura curiosidade, empatia e uma relação não-hierárquica prazerosa com o que está

fora de lugar, que surgem muitos casos de notoriedade instantânea no espaço digital,

especialmente nas redes sociais.

A maneira como as redes sociais digitais se prestam ao que Foucault

estabeleceu como biopolítica ou biopoder e que, mais tarde, será separado e reelaborado

por Negri, pode ser analisada de diferentes formas, muitas delas cumulativas e não-

Page 26: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

26

excludentes. Os biopoderes, cuja principal característica é a capacidade de se ocupar da

vida em todas as suas manifestações, ampliando o espaço de controle institucional, se

manifestam nas redes sociais de maneira muito intensa. Há uma grande narrativa que os

atores/usuários são levados a construir por meio de estímulos e enunciados como “O

que você está pensando?” ou “O que você está fazendo?”, além de botões de “curtir”,

“comentar” e “compartilhar”, que expressam a aceitação do grupo em torno de um

conteúdo. A extensão do poder de difusão de uma opinião ou posição, molda, positiva

ou negativamente, as escolhas de novos enunciados. Para além disso, a publicação

constante de fatos e imagens do próprio cotidiano modela tanto o desenho da “persona”

individual nas redes sociais, com filtros e auto-curadoria que requer sofisticada

percepção da imagem que se deseja transmitir, quanto a própria adoção de hábitos e

valores compartilhados por todos ou “por aqueles que importam”. Por isso, o botão

“curtir” cumpre uma função importante e denota o grau de aceitação do grupo ao

enunciado (ou ao enunciador, quando este se sobrepõe ao próprio discurso). Entre 2012

e 2013, a plataforma Twitter também adotou esse botão.

Fig. 1: Recorte de tela do Facebook, em que se pode observar a pergunta que movimenta a publicação de “status”: “No que você está pensando?”

Fig. 2: Recorte de tela do Facebook, em que se pode observar os botões de “curtir”, “comentar” e “compartilhar”.

Page 27: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

27

É certo e paradoxal constatar, simultaneamente, que a apropriação realizada por

aqueles que percebem tais aparatos, ou mesmo instintivamente, simplesmente adotam

os mais diversos expedientes para ridicularizá-los, ignorá-los ou utilizar o que trazem de

potência em si acaba por transformar mesmo esses ambientes digitais de elevada

vigilância e controle em espaços onde é possível traçar linhas de fuga, como veremos

mais à frente.

Para o sociólogo e pesquisador Sergio Amadeu da Silveira, a compreensão da

comunicação em rede exige o olhar atento à sua arquitetura, incluindo protocolos e

topologia. “Protocolos são regras que definem como os dados serão organizados,

transferidos, armazenados, enfim, definem todas as regras de comunicação entre os

elementos que participam da rede. A topologia é o desenho da rede, ou seja, como os

pontos e nós estão estruturados.” (SILVEIRA, 2009, p. 73) A ideia de que o protocolo

é, por excelência, a forma como se exerce o controle nas redes digitais é proposta por

Galloway (2004, p.3), que acredita que a internet oferece o ambiente ideal para a

sociedade de controle, tal como definida por Foucault e sistematizada por Deleuze. Esse

poder exercido pelos protocolos seria ainda mais eficiente na medida em que se impõe

dentro de padrões rizomáticos, policêntricos, múltiplos e não-hierárquicos.

Do ponto de vista do recorte temporal, é possível utilizar como metáfora a ideia

de um momento em que passado, presente e futuro convivem, dentro de uma análise

capaz de enxergar as diferentes realidades e a pluralidade de contextos no espaço

territorial digital e extra-digital que habitamos. Para isso, pretende-se utilizar o conceito

de arqueologia proposto por Zielinski, evitando superestimar as efemeridades

tecnológicas e colocá-las em perspectiva dentro do processo histórico da comunicação,

revolvendo as camadas iniciais de certezas e buscando aquilo que, embora esteja

soterrado, continua latente (ZIELINSKI, 2006).

As questões metodológicas direcionaram tanto o levantamento bibliográfico

quanto a escolha dos estudos de caso apresentados, alinhavando diferentes autores. A

respeito dos métodos da pesquisa qualitativa, a contribuição de Sophie Alami; a respeito

dos métodos de pesquisa específicos para Internet, a contribuição de Fragoso, Recuero e

Amaral; assim como a delimitação histórica da pesquisa qualitativa apresentada por

Chizzotti. Para dar uma fundamentação teórica conceitual, utilizamos Edgar Morin.

Page 28: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

28

Pretende-se, por fim, evitar relativismos e o mero acúmulo de narrativas

desentrelaçadas. Trata-se, na verdade, de um pacto de fidelidade com o imprevisto e

com o sobressalto - um compromisso de não negar a complexidade dos processos, de

não domar a instabilidade de modo a dobrá-la dentro do compartimento representado

pelo recorte obviamente artificial desta pesquisa.

1.2 UMA VISÃO DO TEMPO

Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o momento caracterizado por

muitos como pós-modernidade é melhor definido como “sociedade moderna líquida”,

uma vez que, em sua opinião, a modernidade não chegou a seu efetivo fim, mas sofreu

um processo de radicalização que levou ao esgarçamento dos seus pilares e à implosão

do destino a que se propunham os modernos.

As características mais marcantes desse recorte de tempo específico seriam a

efemeridade, a velocidade e as relações baseadas no consumo. Além disso, o processo

de acumulação praticado pelo indivíduo seria reforçado a partir de sucessivas etapas de

consumo e descarte. Abrir mão rapidamente do que se torna obsoleto é fundamental,

pois, caso isso não seja realizado na hora certa, o próprio indivíduo se torna tão

descartável quanto os objetos que dão sentido à existência. Essa regra se aplica a tudo,

pois nada pode reivindicar a exceção à lei do descarte: de objetos a valores, de modelos

de vida a pessoas, todos têm data de validade determinada. (BAUMAN, 2005)

Assim, o caráter transitório das próprias plataformas digitais de redes sociais

analisadas neste estudo demonstra ser adequado à definição de efemeridade e à lógica

do descarte, fundamentando o processo de mediação das relações interpessoais e da

troca de conteúdos informacionais entre grupos e pessoas. Seu modus operandi está

claramente estabelecido dentro da perspectiva de atingir o número máximo de usuários.

Porém, ao tornar-se popular demais, a rede injeta em si mesma um vírus letal, tornando-

se também indesejada. Ao atingir esse teto, deve ser substituída por outra, cercada por

nova aura de “contemporaneidade”, “exclusividade” e “diferenciação”.

Foi o que aconteceu com a rede Orkut, que começou com o apelo de ser

destinada a poucos escolhidos, depois ampliou sua atuação até o máximo de

esgarçamento e hoje é conhecida, curiosamente, como “cemitério” de perfis.

Identidades ou singularidades lapidadas em perfis ao longo de anos, com extensos

Page 29: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

29

álbuns de fotos, testemunhos, narrativas e amizades cultivadas com trocas de mensagens

constantes, foram simplesmente abandonadas ou, pelo menos, deixadas em segundo

plano.

O apelo da mobilidade e do nomadismo, também destacado por Bauman,

aparece muito claramente dentro do território digital. Hordas de usuários migraram para

a nova rede em ascensão, o Facebook. Buscavam visibilidade, sim, mas não qualquer

uma. Não bastava ser popular entre os populares, era preciso se destacar entre os mais

“antenados”, “atualizados”, “em dia com o mundo digital e tecnológico”.

No Facebook, uma nova singularidade foi construída pela maioria dos usuários,

agora com apelos mais adultos, comentários menos pessoais e irrelevantes. Aqueles que

chegaram primeiro à rede criada pelo universitário Mark Zuckerberg sentiram-se

premiados com a aura de inteligência, destaque e exclusividade, algo que algum tempo

depois foi se esvanecendo e gerando comentários sobre a “orkutização” do Facebook.

O zeitgeist presente nas redes sociais pode ser identificado em todos os impulsos

característicos deste período de transição - ou mesmo de encerramento de uma época,

como no chamado capitalismo tardio de Castells. A urgência no uso das “ferramentas

digitais” opera na mesma frequência da busca de sentido para a existência, na

necessidade de uma visibilidade que permita ao indivíduo a consciência de sua própria

humanidade por meio da resposta do outro, na constituição de um grupo ou tribo capaz

de re-territorializar sua ação.

Nesse contexto, é possível relacionar a ideia do sociólogo português Boaventura

de Sousa Santos de sociologia das ausências e sociologia das emergências em alguns

processos comunicacionais típicos das redes. Com sua organização rizomática, elas

permitem a expressão de concepções plurais de emancipação social, tal como proposto

pelo autor, “em alternativa ao projeto de emancipação social automática do projeto

moderno” (SANTOS, 2010, p. 134).

Assim, a partir de estudos de caso pontuais, percebemos nesta dissertação que

alguns jovens usuários de redes sociais são capazes de perceber usos específicos da

capacidade comunicacional dessas redes, de maneira basicamente intuitiva.

Adolescentes denunciam irregularidades nas escolas públicas que frequentam, jovens se

organizam em rede com outros jovens em busca de maior poder de amplificação dos

Page 30: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

30

discursos periféricos ou até mesmo são alavancados pela notoriedade alcançada nas

redes sociais, penetrando nas tramas de grandes gigantes midiáticos. Tudo isso se

configura como traço do que Santos chama de novas ecologias de saberes, que vão se

construindo pelas bordas de um tecido que normalmente não os acolheria com a

receptividade que passaram a receber a partir do capital social acumulado nas redes.

Poderíamos dizer, então, que há indícios de um trabalho de tradução nessas

plataformas digitais, visto como forma de “criar constelações de saberes e de práticas

suficientemente fortes”, talvez não para fazer frente à lógica mercantil, tal como

gostaria o autor, mas, possivelmente, dentro do que Santos estabeleceu como a

necessidade de dilatar o presente e contrair o futuro, permitindo aumentar o campo das

experiências. “O novo inconformismo é o que resulta da verificação de que hoje e não

amanhã seria possível viver num mundo muito melhor.” (SANTOS, 2010, p. 135).

O sentido de urgência e a proposta de dilatação do presente utilizados na busca

de uma atuação comunicacional relevante dentro das redes sociais coadunam com as

características da sociedade moderna líquida, mas não as reverenciam, fazendo com que

o cerne da temível efemeridade possa se traduzir, de fato, na saída possível para a

construção de um novo tipo de liberdade, em que a expressão ultrapassa a mediação de

profissionais e empresas de comunicação para ganhar visibilidade e atingir públicos

mais vastos.

Percebemos, portanto, que as redes sociais, talvez mais do que qualquer outro

tipo de mídia, expressam com clareza os modos de agir e pensar, com todas as suas

contradições e tensões, da sociedade pós-moderna ou líquido-moderna. Relações de

poder cada vez mais fluidas e processos de vigilância da sociedade de controle

reforçados exigem também novos olhares sobre os atores da comunicação nesse tipo de

plataformas digitais.

1.3 O(S) EU(S) E A ALTERIDADE

Nesta dissertação, analisaremos as dinâmicas comunicacionais que ocorrem

especificamente nas redes sociais digitais, a partir do estudo de caso de três jovens com

perfis ativos e alta popularidade no Facebook e Twitter, duas plataformas de

relacionamento populares no Brasil, mantidas por grandes corporações e desenhadas a

Page 31: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

31

partir de restrições e regras definidas previamente por empresas da comunicação

digital.

A escolha dos três perfis deu-se por etapas, a partir do acompanhamento

espontâneo de uma das narrativas, via redes e mass media, e do desenrolar do

crescimento de importância das duas narrativas sequenciais. Havia, ali, algo que fazia

sentido, que dialogava e indicava um modo de apropriar-se das novas mídias e de

interferir, a partir da tomada de espaços de poder marcados pela assimetria, mobilidade

e irradiação horizontal, no aparato social e cultural do qual cada um dos jovens

escolhidos faz parte.

Pareceu possível, portanto, perceber os tipos de dinâmicas comunicacionais

gerados especificamente nas plataformas digitais de relacionamento, frutos da tensão

causada pela popularidade/poder/visibilidade alcançados por determinado grupo de

sujeitos/atores e pelo modo como o capital social acumulado é utilizado nas diferentes

territorialidades pelas quais migram esses jovens, de maneira nômade.

Se pensarmos, ainda, em definir a corporeidade e a territorialidade, o caráter

simultâneo de ágora - no sentido de encontro público - e de divã - no sentido de

construção de subjetividades e identidades individuais - impulsiona no espaço

comunicacional ocupado pelas redes sociais digitais um significado contraditório e

enriquecedor, que dialoga com a definição de Guattari e Deleuze (GUATTARI, 1986)

para a chamada micropolítica, em que esta pode ser entendida como a confluência entre

o âmbito psicológico, inconsciente e imperativo do desejo, e o discurso consciente

presente na prática política. Onde surge a questão: esses jovens, ao atuar em um espaço

comunicacional organizado de maneira horizontal, colocam-se como sujeitos inteiros,

em seus desejos e práticas? Podemos aplicar aqui os conceitos de tribo e coletivização

propostos por Maffesoli (2006) ou o processo identitário desses jovens ainda se dá em

um espaço simbólico dominado pela construção do “eu” individual? Certo tipo de

construção de discursos e narrativas desses atores possui raízes locais mais profundas e

que tentam se acomodar no terreno digital da comunicação em rede?

Por outro lado, é possível identificar as contradições, o momento em que a

sedução de tornar-se distinto dos demais e de aumentar a visibilidade a ponto de

transformá-la em notoriedade, impõe-se como busca preponderante e os torna atores

Page 32: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

32

destacados na construção de uma narrativa de heróis juvenis, de modelos de juventude,

impondo a hierarquia e a verticalidade em seus discursos. Quais são as pressões, os

estriamentos, as ameaças efetivas que sofrem? De que maneira o papel mítico solar3

pode se transformar no caminho para o sacrifício público das pulsões juvenis?

Assumem, em dado momento, o papel desenvolvido nos mass media pelos

“enunciadores das máquinas comunicacionais” (PRADO, 2013, p. 30), disseminando

discursos convocatórios do ponto de vista biopolítico, tal como definido por Foucault?

No conjunto do recorte, apresenta-se uma unidade por meio da multiplicidade do

corpus empírico: a produção narrativa de três jovens brasileiros, de regiões distintas,

todos com forte presença em suas comunidades extra-digitais (anterior, concomitante ou

posteriormente à notoriedade conquistada nas redes sociais digitais), mas cada um com

suas próprias especificidades, discursos e práticas. Isso estabelece, a princípio, uma

inter-relação e, em verdade, uma simbiose entre a vida online e offline, entre as

(des)territorialidades envolvidas e os espaços ocupados pelas personificações corpóreas

dos jovens em questão.

Embora algumas vezes seja necessário nomear as especificidades da vida digital

e extra-digital, entre o mundo online e offline, entre a realidade representada pelo

mundo físico e pela internet, evitaremos fazê-lo de maneira a criar análises binárias

excludentes. Partimos do pressuposto da bibliografia existente de que tal oposição não

apenas é fruto do estranhamento inicial diante das novas mídias digitais, como também

de certa simplificação e descontinuidade com os estudos já desenvolvidos (FRAGOSO,

2011, p. 35)

Não há como negar que a escolha de casos específicos partiu do olhar particular

do pesquisador, que deve ser colocado, portanto, também como objeto do estudo, a fim

de melhor definir o ponto a partir do qual se estabelecem a visão e a paisagem a ser

mapeada. Por outro lado, numa pesquisa como esta, sempre está presente a tentação de

explicar o todo pelo particular, de universalizar os resultados e chegar a uma suposta

síntese do objeto central do estudo.

3 A utilização da metáfora do herói diurno e solar, tal como apresentado por Gilbert Durand, serve à caracterização do modelo de juventude representado pelo trio selecionado para o estudo, embora nem sempre dê conta da complexidade dos papeis desempenhados individualmente e junto a seus grupos/tribos.

Page 33: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

33

Em vista do objeto, aqui, serem as relações comunicacionais estabelecidas nas

plataformas digitais de redes sociais por atores com determinadas características etárias

e territoriais, sediados fisicamente dentro do recorte geográfico brasileiro de três

grandes metrópoles – a saber, Rio de Janeiro, Salvador e Florianópolis -, mas com

circulação constante nas demais regiões do país e mesmo fora dele, evitaremos a todo

custo as generalizações, preferindo, ao contrário, pensar as diferentes relações presentes

em casos específicos e capazes, esperamos, de apontar alguns dos caminhos trilhados no

uso dessas redes sociais na especificidade brasileira.

Como afirma Wellman, o Facebook, além de conectar pessoas a seus amigos,

conecta também cidades e continentes. Isso resulta em uma sobreposição que ele define

como a “união da globalização e da localização, o glocal”. Da mesma forma, ressalta

como é comum utilizar o Twitter para conversar com interlocutores com quem seria

possível falar pessoalmente (WELLMAN, 2013) 4. Tudo isso cria novas formas de

sociabilidade, apontando para a ascensão do que ele chama de “individualismo

conectado”, em que os indivíduos organizam-se nas redes sociais a partir de conexões

isoladas e não mais baseadas em grupos, como foi predominante nos primórdios da

comunicação baseada na internet. Isso seria uma derivação da inter-relação entre a vida

cotidiana e a vida digital, cada vez mais convergentes. Para o autor, longe de configurar

um aspecto negativo do desenvolvimento das redes, essa configuração permite múltiplas

conexões proveitosas, principalmente com pessoas cujos laços são mais distantes e que,

portanto, possuem características pessoais diferentes e podem oferecer maior grau de

aprendizado, troca de informações e acúmulo de capital social. Ao contrário, quando

concentradas em grupos fechados, as relações seriam mais padronizadas e auto-

referentes (WELLMAN, 2008). 5

Em nossos estudos de casos, percebemos que há uma tensão entre as páginas de

comunidade (ou fanpages) mantidas por grupos, com colaboração de outras pessoas,

como a Voz da Comunidade, de Rene Silva, e a Mídia Periférica, de Enderson Araújo, e

4 Digitizing Ozimandias, in: http://networked.pewinternet.org/2013/01/22/digitizing-ozymandias/ Acesso realizado em 15/04/2014.

5 “The Strength of Internet Ties”, in: http://www.pewinternet.org/2006/01/25/the-strength-of-internet-ties/ Acesso realizado em 15/04/2014.

Page 34: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

34

a forte centralização em torno das personas públicas dos dois atores. Eles são

apresentados, inclusive, como editores-chefes dessas páginas, que se tornaram, por sua

vez, sites midiáticos, com uma estrutura hierárquica próxima do mundo profissional. No

caso de Isadora, a construção identitária individual é a base tanto para a página pessoal

quanto para o Diário de Classe, escrito, segundo declarado, apenas por ela.

1.4 A ESPECIFICIDADE DO BRASIL: O IMPULSO INICIAL

De onde surge o desejo inicial de participar de uma rede? O que leva um

indíviduo a investir tempo, abrir mão da privacidade e ocupar espaço dentro de um

grupo em ambiente digital? Ora, a própria organização da espécie humana, desde

tempos ancestrais, se dá a partir da ideia de associação em rede, de criação de elos e

conexões. O desejo de fazer parte de uma rede, de um grupo capaz de amparar, oferecer

suporte a necessidades materiais, psicológicas e políticas, gerar pertencimento, não

causa estranheza de espécie alguma. Alguma estranheza ainda é gerada pelo fato de tal

aspiração encontrar campo de desenvolvimento em um ambiente tecnológico, de ser

facilitada por um território midiatizado ainda não totalmente reconhecido, mas isso está

inserido dentro de um processo. Como aponta Costa, em artigo publicado em 2011: [...] a visão das redes sociais como uma estrutura que se alimenta do fluxo de recursos permite compreender que indivíduos queiram se conectar para usufruir disso que circula. É o individualismo conectado, o esforço em fazer networking, em ampliar suas redes de contatos (COSTA, 2011)

O autor alerta, porém, para os limites da interpretação baseada apenas no uso

individualista das redes sociais. Ao dirigir o olhar para as redes de coletivos, afirma que,

nesses casos, deve haver algo além do interesse particular, capaz de promover a coesão

com o grupo, que seriam os propósitos comuns. Assim, segundo ele, “cada indíviduo

deve se relacionar com esse propósito comum de maneira diferente, sendo afetado por

ele de modo distinto” e tornando-se capaz de negociar os interesses particulares.

Se tomamos como perspectiva o isolamento característico das grandes

metrópoles urbanas, em que os elos presentes em organizações locais frequentemente já

foram rompidos por movimentos de migração ou pelo afrouxamento de laços familiares

estendidos e de tradições culturais e religiosas, conseguir estabelecer pontes

comunicacionais dentro de uma sociedade hipermidiatizada torna-se uma das

aspirações essenciais dos indivíduos e dos grupos (CASTELLS, 1999). Participar de

uma rede capaz de mediar um número aparentemente infinito de relações, dominando a

Page 35: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

35

techné específica, utilizando a linguagem adequada, torna-se um modo acessível de

reconstruir essas pontes ou construir outras, a princípio inimagináveis. Ainda que

possamos questionar a ênfase economicista das teorias de Castells, essa premissa ainda

se mostra capaz de explicar parte do movimento de aderência ao ambiente

comunicacional das redes sociais digitais.

Faz sentido, assim, a velocidade da adesão e o enorme alcance em localidades

emergentes, tais como o Brasil, com um histórico de fluxos migratórios e de

urbanização avançado. Para ilustrar essa tendência, tomamos os dados de crescimento

da participação da população urbana no total da população brasileira, que aparecem de

maneira ininterrupta e atingem patamar muito elevado na primeira década do século 21,

saindo de 45% em 1960; passando para 67% em 1980; 81% em 2000; e, finalmente,

84,3% em 2010. 6

São números que demonstram a velocidade da metropolização do Brasil, em

detrimento de uma cultura tradicional de fortes laços comunitários - a exemplo de países

como a Índia, que também passou por processo semelhante e apresenta hoje alto grau de

desagregação social, com crescimento de índices de violência, e que encontra na

atuação em redes sociais digitais um meio para restabelecer laços sociais, com números

de adesão tão altos quanto os brasileiros. As características de tais laços envolvem

relações complexas e transversais, relativas tanto à comunidade circundante, quanto a

comunidades re-territorializadas, construídas por meio de afinidades. Essas afinidades

podem ser políticas, culturais, étnicas, filosóficas ou simplesmente construídas

provisoriamente por conta de interesses comuns que podem ou não se desvanecer, como

alianças transitórias.

Os componentes de forte urbanização e isolamento do indivíduo, característicos

das grandes metrópoles, ajudam a compreender, mas não explicam sozinhos a força e a

rapidez com que as mídias sociais conquistaram espaço no Brasil. Possivelmente, parte

6 Dados FIBGE, Censos demográficos de 1940 a 2010, citados no estudo Metrópoles Brasileiras no século 21: evidências do Censo Demográfico 2010, apresentado no VII Encontro Nacional sobre Migrações de Tema Central: Migrações, Políticas Públicas e Desigualdades Regionais, realizado de 10 a 12 de outubro de 2011, Curitiba (PR), pelas pesquisadoras Rosana Aparecida Baeninger e Roberta Guimarães Peres. Disponível em: e-revista.unioeste.br/index.php/gepec/article/download/6305/4814 Acesso realizado em 15/04/2014.

Page 36: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

36

das características culturais, sociais e políticas nacionais também criou condições

favoráveis à adesão imediata e maciça.

Em palestra realizada em 1986, Flusser7 usa a experiência de residência no

Brasil ao longo de três décadas para apresentar sua visão a respeito das características

da especificidade cultural brasileira a uma plateia europeia. Afirma que “a maioria das

pessoas ali presentes deveria conhecer o Brasil apenas por meio de narrativas ou sagas”,

que alinhavam ora um paraíso tropical, ora um lugar violento e atrasado. É óbvio que

esse lugar mítico não pode ser reconhecido como o Brasil de verdade, e esse

desencontro entre o imaginário e a realidade dificulta a compreensão do que é

específico do país.

O autor, ao longo de seus estudos em torno da Imagem – conceito que, para ele,

incluía a própria escrita -, desenvolveu um modo particular de análise. A partir das

experiências acumuladas no Brasil e por influência de conceitos como o da

Antropofagia, empreendeu uma leitura própria dos processos ligados à Imagem em

terras brasileiras.

Para Flusser, a parte europeia do Brasil carregou consigo a língua latina, as

influências do judaísmo e do cristianismo, a quem se juntaram os povos indígenas,

africanos e árabes, em um verdadeiro emaranhado. Ao colocar nesse caldeirão, ainda, os

elementos do leste asiático, o autor previu uma rota de colisão, entre a cultura do

Mediterrâneo e a da Ásia Oriental, o cristianismo e o confucionismo, o budismo e as

experiências fundamentais antigas, todos guiados pela atração da luz solar da Califórnia,

que ele, curiosamente, aponta como espaço mítico dessa fusão (Flusser, 2011), cujo

resultado poderia ser relacionado ao processo de mestiçagem desenvolvido por

Boaventura de Sousa Santos.

Lembrando que Flusser e, depois, Kamper (1999, p.30), apontam o Brasil como

espaço privilegiado dessa mistura cultural, tais características podem ajudar a

7 In: ZIELINSKI, Siegfried and Eckhard Fürlus (Editors). Variantology 5 – Neapolitan Affairs. On Deep Time Relations of Arts, Sciences and Technologies. Cologne: Verlag der Buchhandlung Walther Koenig, 2011.

Page 37: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

37

compreender as razões que levaram o país a adaptar-se rápida e entusiasticamente a uma

gama de recursos técnicos capazes de facilitar e acelerar tal alquimia tecno-cultural.

Por outro lado, é possível somar aqui a necessidade das gerações mais jovens,

que já nasceram dentro de uma cultura digital que oferece as mais variadas plataformas

de relacionamento e novas formas de sociabilidade, de buscar formas alternativas de

construção da identidade e de relacionamento com o coletivo. Para Maffesoli, a

desilusão com os resultados obtidos pela geração que se levantou contra o sistema em

1968 (2006, p.2), teria levado a uma reorganização de afetos e sentidos, com a busca de

uma atuação de caráter comunitário em detrimento da construção de uma identidade

individual. O autor afirma que tal busca não está mais baseada na oposição indivíduo X

sociedade, mas sim na ressignificação de modos culturais arcaicos, próximos do

tribalismo, traduzidos para as circunstâncias contemporâneas, (ibid, p. 6), em uma

espécie de “regrediência” em espiral.

Eis o que me parece estar em jogo para nossas tribos contemporâneas. Pouco lhes importa o objetivo a ser atingido, o projeto, econômico, político, social, a ser realizado. Elas preferem ‘entrar no’ prazer de estar junto, ‘entrar na’ intensidade do momento, ‘entrar no’ gozo deste mundo tal como ele é. (Ibid., p. 7)

Esse modo de atuação, em que não importa tanto o futuro distante, com seus

objetivos discutíveis e inalcançáveis, mas sim a fruição do presente, com seus conflitos

e lutas localizadas, se adequa de forma mais ou menos confortável à lógica de interação

comunicacional presente nas redes sociais digitais. Adequa-se, ainda, ao que Maffesoli

definiu como a junção do “arcaísmo e da vitalidade”, próximo do mito do “puer

aeternus”. Lembrando que, quando cita a criança eterna como metáfora da pós-

modernidade, o autor não está restringindo a sua aplicação a uma faixa etária específica,

mas afirmando que o “conjunto do corpo social é que está em questão”. Em outras

palavras, Maffesoli fala do “puer aeternus” como imago de uma época.

Uma vez que o imaginário do “ser brasileiro” é fartamente alimentado pela ideia

de juventude, de país eternamente jovem, “o país do futuro”, em que a alegria da fruição

das belezas naturais suplantaria todas as dificuldades sociais e econômicas, temos um

elemento adicional capaz de revelar parte dos sentidos da aderência conquistada pelas

redes sociais digitais por aqui.

Page 38: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

38

1.4.1 LIMITES E RESSIGNIFICAÇÕES

Vamos nos deter em duas plataformas digitais de redes de relacionamento com

grande taxa de adesão no Brasil, Facebook e Twitter, e com usos, de certa forma,

complementares. A primeira assumiu a dianteira no ranking de utilização nacional e

internacional, principalmente por oferecer um grande leque de opções de interação, a

partir de uma lógica simples e capaz de “conduzir” as comunicações de um determinado

usuário por um caminho em que os demais são capazes de acompanhar e interferir. O

resultado é a visualização de um discurso coletivo aparentemente infinito, mas em que é

possível recortar enunciados individuais ou de grupos com interesses específicos. O

Twitter, por sua vez, ao limitar as manifestações textuais aos 140 caracteres, ganhou

características muito específicas, geralmente como uma espécie de grande “noticioso”,

com chamadas curtas que vão se desenvolver em outros espaços digitais, atingindo um

número de usuários menor, mas considerado de alto impacto pelo poder de

disseminação de enunciados.

Como dado de perspectiva histórica, o Orkut, primeira rede com característica de

abordagem temática aberta e capaz de receber usuários com os mais diversos interesses,

saltou de zero usuário, no início de 2004, para 6 milhões, em maio de 20058. Esse

número aumentou ao longo da década até ser superado por um novo modelo

predominante de rede social, o Facebook. Em setembro de 2011, essa plataforma, criada

pelo norteamericano Mark Zuckerberg, ultrapassou o Orkut, do Google, em 1,9 milhão

de usuários no Brasil, de acordo com pesquisa feita pelo Ibope Nielsen Online9.

O Brasil figura entre os países do mundo com mais acesso às redes sociais, com

dados de 2010 a 2013 que demonstram crescimento constante, sendo que 97% dos

usuários de internet aqui estão presentes nessa modalidade de comunicação. Em média,

os brasileiros gastam mais de 30 horas semanais conectados, superior ao número global

8 Evolução dos usuários no Orkut (Comunidade Orkut Statistics - http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=34264 ) Acesso realizado em 14/06/2012.

9 In: UOL Notícias Tecnologia. http://tecnologia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/09/10/facebook-passa-orkut-em-numero-de-usuarios-no-brasil-em-agosto-confirma-ibope.jhtm Acesso realizado em 15/04/2014.

Page 39: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

39

que é de 24 horas semanais. Segundo dados do Norton Cybercrime Report 201110, 39%

dos entrevistados no país dizem que precisam da Internet para realizar as suas atividades

diárias e 44% afirmam que perderiam o contato com os seus amigos sem as redes

sociais. A partir desses números, que sofrem variações, mas demonstram uma tendência

consolidada, é possível perceber a intensidade das relações comunicacionais

promovidas nos espaços delimitados por tais mídias.

A presença de mecanismos de controle, que impõem determinada ordem e

sentido, faz parte da própria genealogia como dispositivos desses dois sites de redes. O

acesso irrestrito e o desrespeito à privacidade dos dados de usuários, praticados pelas

corporações controladoras das duas redes em questão são fonte de algumas das

discussões mais radicais da comunicação digital.

Governos centralizadores ou que se julgam em guerra contra inimigos diversos

tendem a pressionar tais corporações para obter informação privilegiada e costumam ser

bem sucedidos. O vazamento da informação de que o governo norteamericano teve

acesso a dados sigilosos dos usuários do Facebook e Google, praticando espionagem

contra usuários e até mesmo autoridades de diferentes governos aliados, inclusive do

Brasil, colocou o debate ainda mais em evidência ao longo do ano de 201311. O uso

comercial dos dados, por sua vez, é prática já utilizada pelo mercado publicitário - que

agora debate como filtrar a imensa quantidade de dados descartados ao longo dos

processos, a fim de criar melhores oportunidades de personalização do consumo, no

chamado acesso ao Big Data. 12.

Cabe, portanto, reiterar a não-neutralidade das plataformas em questão, criadas,

mapeadas e/ou posteriormente organizadas por grandes corporações a partir de

interesses comerciais. Sua formatação tenta estabelecer os limites de ação de cada

usuário, o que nem sempre conseguem. A partir da constatação do acesso privilegiado

10 Pesquisa Norton Symantec. http://www.symantec.com/content/en/us/home_homeoffice/html/ncr/ Acesso realizado em 15/04/2014.

11 Notícia relacionada ao tema, veiculada pelo jornal Folha de São Paulo no site UOL: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/08/1325771-em-visita-ao-brasil-kerry-defende-espionagem-feita-pelos-eua.shtml Acesso realizado em 15/04/2014.

12 Exemplo de comercialização desse tipo de dados: http://www.oracle.com/br/technologies/big-data/index.html Acesso realizado em 15/04/2014.

Page 40: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

40

aos dados e registros de enunciados de cidadãos, empresas e instituições diversas,

concedido não apenas a corporações, mas até mesmo a governos constituídos

democraticamente, é possível afirmar que as redes sociais digitais operam, também, no

âmbito da vigilância (FOUCAULT, 1989). Além de usar registros de ações individuais

para impulsionar e direcionar ao público os objetos de consumo adequados ao desejo

específico do usuário, a informação é utilizada até mesmo por governos e agências de

espionagem para mapear possibilidades de insurreição, terrorismo e tudo quanto possa

ser considerado potencialmente “perigoso”.

Mas, além de serem inter-relacionadas, umas servindo de apoio às outras, essas técnicas (de vigilância) se adaptam às necessidades específicas de diversas instituições que, cada uma à sua maneira, realizam um objetivo similar, quando consideradas do ponto de vista político. Já vimos seus objetivos tanto do ponto de vista econômico quanto político: tornar o homem “útil e dócil”. (MACHADO, R. In: FOUCAULT, Microfísica do Poder, 1986, p. 18).

Aqui, é possível retornar à definição dos aparatos digitais utilizando o conceito

de “dispositivos” de Foucault, recorrendo, ainda, ao modo como Agambem se apropria

do conceito e o expande.

(...) chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEM, 2010, p. 40)

Claramente, as duas plataformas digitais de redes sociais em questão, Facebook

e Twitter, tentam capturar a totalidade dos discursos e enunciados de seus usuários,

construindo uma imensa narrativa da vida cotidiana, impondo também a forma como

tais enunciados devem ser transmitidos, moldando uma boa parcela do conteúdo

compartilhado em seus espaços delimitados.

Mas, ainda assim, a transversalidade própria do ambiente digital, baseada em um

tipo de organização de características fortemente rizomáticas e, portanto, policêntricas e

não-hierárquicas, oferece um esgarçamento dessas imposições e o agenciamento

praticado por essas redes sociais digitais pode ganhar outros contornos, gerando a

ressignificação não apenas de enunciados isolados, mas de sua própria narrativa global.

Page 41: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

41

Algo assim pôde ser percebido em movimentos de caráter muito semelhante e

que se espalharam ao longo dos primeiros anos da segunda década do século 21 por

diferentes pontos do planeta, tendo como uma de suas semelhanças a organização por

meio do uso das redes sociais digitais. Tidos como manifestações de tipo viral, que

começam localizadas e ganham força surpreendente por meio da propagação de atos

convocatórios, principalmente nas redes Facebook e Twitter, a Primavera Árabe, o

Occupy Wall St., os Indignados, na Espanha, e a Revolta da Praça Taksim, na Turquia,

guardam similaridades com os Protestos de Junho de 2013 no Brasil, que também

ficaram conhecidos como a Revolta do Vinagre, entre outras denominações que usaram

estratégias incomuns para manifestações políticas convencionais, como o humor,

ganhando, no primeiro momento, a simpatia e a participação da população.

Ainda que os grupos manifestantes não se restringissem à faixa etária delimitada

sociologicamente como “juventude”, o imaginário construído pelos enunciados

disseminados em faixas, cartazes, relatos em tempo real compartilhados via redes por

meio de smartphones, e pela forma como os espaços eram ocupados por corpos

constituintes da “multidão de singularidades” preconizada por Negri, tudo se

assemelhava mais a múltiplas tribos reunidas e em movimento constante, em um quase

nomadismo de ocupação de diferentes ruas e avenidas da cidade, remetendo ao que

Maffesoli classifica como o reinado do “puer aeternus”.

Esse discurso coletivo impõs-se, durante a vigência das insurgências citadas,

como uma nova narrativa que tomou conta das redes sociais digitais. Em lugar de postar

fotos ou comentários de seus cotidianos, as pessoas emitiam opiniões, debatiam,

alinhavam-se ou divergiam dos manifestantes, expressavam seus descontentamentos,

sua (des)informação, mostrando a multiplicidade de posicionamentos possíveis em

torno de um tema comum que se propagou de maneira aparentemente espontânea, em

um agenciamento capaz de construir, excepcionalmente, um território comum para o

exercício de uma coletividade que aglutina aspirações essencialmente do âmbito do

emocional, tal como apontado por Maffesoli, em 12 de abril de 2013, em entrevista ao

jornal Zero Hora13:

13 Disponível em: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/segundo-caderno/noticia/2013/04/sociologo-michel-maffesoli-fala-da-retomada-de-manifestacoes-juvenis-4105060.html Acesso realizado em 15/04/2014.

Page 42: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

42

As palavras-chave são: racional e emocional. A corrupção é racional. É lutar contra algo que racionalmente não vai bem. No entanto, a homofobia e o casamento homossexual batem no estômago. A pós-modernidade é histérica. Não no sentido pejorativo, mas no sentido do útero, histerus. O que retorna agora é o que está ligado à vida cotidiana. Não o télos, mas a proxémia. Tudo vai ser ocasião, pretexto, para essas grandes indignações coletivas, porque o ar do tempo é emocional. O imaginário está mudando.

Assim, na construção dessa narrativa nas redes, o cotidiano saiu dos relatos

individuais isolados e tomou conta das ruas, como um fluxo de transbordamento de

desejos, insatisfações, demandas e construção de afinidades grupais – as quais

ganharam corpo, inclusive, por meio da violência e da negação do discurso contraditório

do outro, numa onda sem freios de caráter moral, própria do arquétipo do “puer

aeternus”.

Isso não invalida, por outro lado, a constatação de que as motivações dessas

grandes reações possuíam lastro em movimentos urbanos de longa data, como afirma

Rolnik, citando, no caso brasileiro, o Movimento Passe Livre (ROLNIK e col., 2013, p.

9). Na mesma obra coletânea, lançada pouco depois das ocupações das ruas no Brasil,

Maricato acrescenta, ainda, que as cidades são o principal local onde se dá a reprodução

da força de trabalho. “Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com

melhores salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de vida

dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas [...]”, diz. O esgotamento

proporcionado pelas péssimas condições do transporte urbano, da ocupação imobiliária

desordenada, do trânsito caótico, do excesso de carros e pessoas, todas questões de

âmbito local, sentidas na vida cotidiana, que se desenrola na cidade, certamente foram

parte do combustível capaz de incendiar a revolta em grandes proporções, reiterando

que as mesmas condições se repetem em diferentes cidades do mundo, todas

pressionadas pela força do capital global, que necessita de mais e mais espaço de

expansão para manter-se no ritmo de crescimento insustentável a que se habituou ao

longo do século XX.

1.4.2 CONTRAFLUXO

Restritivas e com regras limitadoras ao tipo de discurso a ser compartilhado, seja

ele composto de texto verbal, imagens fotográficas, ilustrações ou vídeos, estes últimos

geralmente publicados preliminarmente em outra plataforma social popular, o Youtube,

as redes sociais digitais ganharam poder e autonomia, com estatutos de conduta

próprios, capazes, muitas vezes, de se impor diante de estados nacionais constituídos.

Page 43: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

43

Nesse sentido, vale lembrar Negri e Hardt, quando apontam o poder acumulado

pelas corporações da comunicação, na perspectiva do biopoder. Em Império, Negri e

Hardt usam Foucault para falar sobre a passagem da sociedade disciplinadora para a

sociedade do controle, marcadamente no limiar da pós-modernidade. Porém, os autores

acreditam ser necessário definir o potencial da produção biopolítica, passando por

Deleuze e Guattari, mas indo além, no sentido de configurar uma ação política capaz de

estabelecer rotas de fuga. Ao estabelecer as corporações da comunicação como espaços

privilegiados do funcionamento do biopoder, estabelecem a emergência da comunicação

em rede para uma nova configuração de forças no âmbito da biopolítica. Dentro de um

sistema de vigilância que é ao mesmo tempo fundador e resultado da sociedade de

controle, pós-disciplinar, as redes digitais de comunicação assumem papel

paradigmático na “pós-modernidade”.

Tornam-se palco de embates com desenhos predominantemente rizomáticos,

com uma lógica oposta à de uma “guerra” que realmente possa ser levada a cabo. Antes,

sinalizam a contradição, a multiplicidade e a necessidade de seguir adiante. Portanto,

estabelecem nova dimensão na dinâmica das relações comunicacionais no momento em

que indivíduos ou grupos apropriam-se de suas características e as colocam a serviço de

suas próprias conexões comunicativas, culturais e políticas.

O impacto desses movimentos nos mass media pode também ser sentido

intensamente. Da primeira década deste século para cá, os grandes impérios midiáticos,

além de perderem a primazia de pautar as redes sociais e demais espaços digitais,

passaram, ao contrário, a ser pautados por elas. Isso significa que aqueles que desejam

saber em primeiríssima mão uma informação de âmbito local ou global, são, hoje, muito

mais bem sucedidos ao acessar mídias como o Twitter ou o Facebook, em detrimento de

jornais diários impressos, canais de informação televisivos, radiofônicos ou sites menos

dinâmicos. Algo que seria improvável há poucos anos atrás.

Resultado, ainda, dos protestos realizados em junho de 2013 no Brasil, novas

experiências no âmbito do discurso jornalístico ganharam espaço na imprensa pelo grau

de visibilidade que atingiram. Entre elas, a mais destacada foi a iniciativa do grupo

Mídia Ninja (cujo nome significa Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), ligado

ao coletivo Fora do Eixo, com forte atuação na área cultural. O fato de se posicionar

dentro da ação, sem sofrer as represálias que as demais equipes jornalísticas receberam,

Page 44: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

44

associadas que foram, no imaginário dos manifestantes, às grandes corporações de

comunicação e, portanto, pautadas por interesses políticos e econômicos obscuros, fez

com que a Mídia Ninja obtivesse imagens e relatos exclusivos, de um ponto de vista que

jornalistas dos mass media jamais poderiam adotar. Em tempo real, principalmente no

Facebook, as reportagens eram transmitidas e recebiam comentários que podiam,

inclusive, alterar os rumos da cobertura. Afinal, todos e qualquer um poderiam ser um

jornalista do Mídia Ninja e era assim que se sentiam, envolvidos emocionalmente com

os múltiplos relatos.14 Mais do que simplesmente ocupar o espaço das redes digitais,

assim como o movimento em direção às ruas, a atuação do Mídia Ninja chegou a ocupar

algumas edições do telejornal de maior audiência da Rede Globo de Televisão, o Jornal

Nacional.15 Independentemente dos caminhos seguidos pelo grupo, a contribuição que

deu para esse momento foi a de permitir a “fruição” de um novo tipo de narrativa

jornalística, gerando uma reação emocional de intensidade singular.

Colocado em perspectiva com uma suposta crise que atravessa a prática e o

discurso jornalístico, esse episódio, em que se destacam, também, as reações de

hostilidade das multidões de manifestantes contra equipes e equipamentos das maiores

emissoras de televisão do Brasil, demonstra um certo grau de dissociação entre as

aspirações daqueles que, um dia, já foram chamados de “receptores” e seus “emissores”

privilegiados. Talvez a possível flexibilização da ideia de verdade unívoca acabe

levando o “receptor” à constatação de que seria impossível a esse “emissor” único e

central alcançar o ideal da isenção. As indicações de algum abalo nessa estrutura

ficaram registradas ao longo de várias manifestações, nas ruas e nas redes, tanto na

reação contra representantes das grandes emissoras de TV, jornais e revistas, quanto nas

publicações online que, invariavelmente, colocavam em dúvida a forma como as

informações eram geradas por esses grupos, tecendo comparações com a cobertura

digital independente, que narrava com o olhar de quem estava dentro das manifestações.

14 Vários exemplos podem ser acessados em https://www.facebook.com/midiaNINJA?fref=ts, especialmente nos relatos postados nos meses de junho e julho/2013. Acesso realizado em 15/04/2014.

15 Texto publicado em site oficial do JN, reproduzindo reportagem exclusiva colhida pela Mídia Ninja: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/07/depoimentos-de-pms-contrariam-informacoes-da-policia-sobre-prisao-de-estudante-em-protesto.html Acesso realizado em 15/04/2014.

Page 45: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

45

Fig. 3: Página do Mídia Ninja no Facebook, no dia 27/06/2013, durante as manifestações nas redes e nas ruas, mostra o compartilhamento de uma publicação do site Observatório da Imprensa. Em destaque no título, os “pós-jornalistas” e os “pós-espectadores”. Íntegra do texto: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/postv_de_pos_jornalistas_para_pos_telespectadores Acesso realizado em 16/04/2014.

As reações dos mass media, por sua vez, buscaram evitar, a qualquer custo,

ceder de modo a permitir que o jornalismo, tal como foi exercido predominantemente

até aqui, perca seu status de principal aparato de informação, responsável por

intermediar a realidade e levá-la ao alcance das pessoas comuns. Vale, por exemplo,

apressar-se a trazer para dentro do aparato tudo aquilo que parecia negá-lo, a princípio.

A eficácia dessa estratégia antropofágica só poderá ser efetivamente confirmada a longo

prazo.

1.4.3 EXPERIÊNCIAS

Reação semelhante foi gerada, em outro contexto, pela atividade do jovem Rene

Silva, cuja trajetória fará parte dos três estudos de caso desta dissertação. Aos 11 anos,

ele criou o jornal Voz da Comunidade, dentro do Morro do Alemão, na cidade do Rio

de Janeiro - um projeto valorizado localmente, mas sem repercussão fora da própria

comunidade.

Algo inesperado, porém, aconteceu na manhã do dia 28 de novembro de 2010.

Nessa data, a polícia do Rio de Janeiro e o Exército invadiram o Complexo do Alemão,

dominado por uma facção do crime organizado baseado no tráfico de drogas. A

população local, vivendo sob forte pressão, sofreu dias de tensão antes, durante e após a

ocupação.

Page 46: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

46

Esse jovem, na época com 17 anos, cumpriu um papel diferente, ocupando-se da

tarefa de narrar, em tempo real, o que acontecia naquele mundo apartado do “mundo do

asfalto”. Usando o Twitter, Rene Silva afirma que apenas contava para seus amigos o

que se passava na comunidde, mas o relato, com origem em dados locais, ganhou

dimensão inesperada. Por meio de retuítes (reencaminhamentos de mensagens), grupos

diferentes interessaram-se por suas informações em tempo real. Jornais, revistas e

emissoras de televisão, nacionais e estrangeiras, repercutiram suas palavras e descrição

dos fatos.

De um dia para o outro, seus seguidores no Twitter multiplicaram-se. De 700

pessoas para 7 mil em uma hora e, poucos dias depois, para quase 23 mil.

“No final de 2010 aconteceu a Invasão da Polícia no Complexo do Alemão e o VOZ DA

COMUNIDADE voltou a tona na mídia, mas não foi porque eu quis...foi por causa das

pessoas que me seguiam. Eu estava falando sobre o que estava acontecendo aqui no

Complexo, a operação e várias pessoas começaram a enviar mensagens para pessoas

famosas dizendo "Ah, segue esse menino ai, é da favela lá onde tá tendo tiroteio, ele ta

falando como ta a situação" e em questão de minutos, a autora de novelas da tv globo, Glória

Perez viu essa mensagem e começou a divulgar também para as pessoas seguirem. Foi

quando eu vi que meus seguidores pipocaram muito rápido e de 700 pessoas, passou pra

mais de 7 mil. Fiquei muito assustado na hora e até com medo de falar alguma coisa.

Várias pessoas disseram pra eu parar de falar o que estava acontecendo aqui do meu twitter

pessoal e voltar a usar o do @vozdacomunidade que tinha apenas 180 seguidores. Pois

bem, comecei a usar e várias pessoas começaram a seguir, várias pessoas falando daquilo

que a gente publicava, foi uma coisa muito rápida e novamente eu fiquei chocado com o

número de seguidores que foi chegando no decorrer dos minutos... Mas continuei publicando

o que acontecia, cada vez mais intensa porque o tiroteio começou a rolar, e eu falava toda a

verdade do que estava rolando né. Daqui a pouco eu ligo a tv e vejo na globonews falando

do twitter @vozdacomunidade e me assustei: "Gente, como assim? acabei de falar aqui no

twitter e já está na tv? muito rápido essa parada" - fiquei preocupado por conta da segurança

mas correu tudo bem. Atualmente tenho 23.900 seguidores no meu @rene_silva_rj e 66.300

pessoas acompanham o @vozdacomunidade pra saber o que anda acontecendo ainda no

Complexo do Alemão.”

In: http://renesilvasantos.blogspot.com.br/2011/11/linha-do-tempo-o-crescimento-do-voz-

da.html . Acesso realizado em 15/04/2014

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47

Fig. 4: Imagem capturada do blog de Rene Silva, localizado no blogspot.com.br.

Daí para a frente, sua rede chamada “Voz da Comunidade” ganhou página no

Facebook, ao lado de um perfil pessoal. A partir das mensagens trocadas com a autora

de novelas globais Glória Perez, Rene passou a ser procurado por diversas celebridades

e programas televisivos, até ser recentemente contratado pela Rede Globo de Televisão.

Um exemplo muito claro de como os relatos do “local” interessam ao “global”.

Com a estreia da telenovela “Salve Jorge”, que ocupou a faixa horária das 21

horas de outubro de 2012 a maio de 2013, Rene tornou-se consultor sobre o Complexo

do Alemão, que possuía um núcleo retratado na ficção, e fez pequenas inserções como

ator. Sua história pessoal passou, inclusive, a fazer parte da narrativa de Glória Perez.

Antes, notabilizou-se entre seus pares ao conseguir uma série de melhorias práticas para

a comunidade, da solução de um buraco na rua a problemas na escola pública do bairro.

Ganhou notoriedade por suas habilidades como comunicador, mensageiro e bom

negociador. Passou a ser admirado na comunidade em que vivia e a receber atenção

extra no espelho virtual em que suas ações se refletiam. Preencheu, de certa forma, o

arquétipo do herói juvenil, que sai de sua comunidade e enfrenta o mundo lá fora,

tornando-se apto a romper as distâncias e a traduzir realidades aparentemente distintas

ou antagônicas.

Page 48: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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Um dos momentos emblemáticos em sua história foi o movimento do gigante

midiático, a Rede Globo de Televisão, indo ao seu encontro em busca de acesso a um

universo que não dominava conceitualmente e, portanto, não sabia como atingir. Mais

do que trazê-lo para perto de si, o que de certa forma já fez, procurou penetrar nesse

mundo arredio, representado pela juventude conectada às redes sociais e pelos

moradores das comunidades mais carentes das metrópoles brasileiras.

Encerrada a etapa da teledramaturgia, Rene continuou atuando como agitador

cultural no Complexo do Alemão, além de ser contratado pela emissora, participando de

programas de auditório (Esquenta, com Regina Casé). Organiza grandes eventos,

divulga pequenos comerciantes e permanece conectado 24 horas por dia, com celular

ligado até mesmo enquanto dorme. Não há separação entre a vida online desse jovem e

sua comunidade circundante. Tudo cabe dentro de seu espaço narrativo e das redes que

se prolongam num fluxo contínuo e inseparável entre a comunidade física em que mora,

onde cada barraco conversa com seu vizinho, numa lógica territorial e arquitetônica

assimétrica, dinâmica e horizontal, e a comunidade que se expressa no espaço digital,

que se espalha em conexões transversais sem fronteiras.

A iniciativa da emissora líder de audiência no país de buscar incorporar ao seu

grupo de colaboradores um ator social advindo de outra territorialidade midiática,

utilizando-o não apenas como consultor a respeito do universo de sua comunidade

original, mas como divulgador de um produto plenamente estabelecido na história

televisiva brasileira (a novela), diz algo sobre o momento comunicacional presente.

Esse episódio demonstra que novos desafios estão sendo propostos para as grandes

emissoras e, nesse caso específico, a Globo tentou agenciar a incorporação de discursos

das redes para a realização de uma situação midiática massiva.

Além de conquistar capital social, esse jovem membro de uma das comunidades

mais violentas do Brasil, criou visibilidade nas redes sociais digitais e soube acioná-las

para aumentar o alcance de seu discurso. As redes sociais demonstram, em

contrapartida, o potencial que acumulam, gerando reação dos grandes meios de

comunicação, forçando-os, pelo menos, a repensar sua estrutura.

No segundo caso que iremos analisar, a trajetória da pequena Isadora Faber,

estudante da rede pública de ensino da cidade de Florianópolis (SC), também demonstra

Page 49: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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até onde pode chegar a repercussão de uma página sediada no Facebook. Aberta como

uma fanpage, ou seja, uma página que os seguidores devem apenas “curtir” e seguir as

publicações do administrador, comentando dentro de seus “posts”, o Diário de Classe

foi criado pela adolescente de 13 anos no dia 11 de julho de 2012. Até o início de agosto

daquele ano, possuía cerca de 400 fãs ou seguidores. No final do mesmo mês, chegava a

mais de 6 mil e, um ano depois, alcançou 500 mil acessos.

Quando abriu sua página, Isadora afirma que pensava conseguir cerca de 100

seguidores, entre amigos e familiares. Moradora da região de Santinho, bairro marcado

pela presença de um enorme empreendimento turístico, o Costão Santinho Resort e Spa,

que ocupa uma área de 1 milhão de metros quadrados, 750 mil deles localizados em

área de reserva da Mata Atlântica, ela faz parte de uma família de classe média e sempre

foi a pé para a Escola Básica Municipal Maria Tomázia Coelho.

Fig. 5: Em agosto de 2013, a página do Diário de Classe no Facebook já chegava a 626 mil seguidores.

As primeiras publicações no Facebook são, basicamente, de fotos que

mostravam as más condições de sua escola, com instalações inadequadas, além de

equipamentos que colocavam em perigo a segurança dos alunos e registros da merenda

que era servida para as crianças diariamente. Para fazer tais registros, ela levava seus

celular todos os dias para a escola. A inspiração veio da blogueira escocesa Martha

Payne que, aos 9 anos, criou a página Never Seconds,16 em novembro de 2009, em que

diariamente publicava fotos da merenda servida na escola. O chef Jamie Oliver, que já

promovia uma campanha para melhorar a qualidade das refeições servidas nas escolas

da Grã-Bretanha, apoiou a menina nas redes sociais e ela recebeu mais de um milhão de

visitas. Isadora leu a história e pensou que poderia fazer algo parecido.

16 Ver http://neverseconds.blogspot.com.br/ . Acesso realizado em 15/04/2014.

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De lá para cá, passou por situações improváveis para alguém de sua idade,

recebendo inúmeros prêmios e reconhecimentos, como ao ser incluída na lista dos “25

brasileiros que devem ser observados”, elaborada pelo jornal inglês Financial Times no

início de 2013, ou ao enfrentar as duras reações de professores, funcionários e até

mesmo de seus colegas de escola. Chegou a receber ameaças de morte e teve a casa

atacada, deixando ferimentos leves em sua avó, que acabou hospitalizada.17

Fig. 6: Notícia capturada da página de cache do Google. Ela é um instantâneo da aparência que possuía em 15/04/2014 e pode ter sido alterada após a data.

Em meio ao ódio e ao amor suscitados pela atuação constante, praticamente

diária, no Facebook, Isadora seguiu em frente, apoiada pelos pais, apesar de enfrentar

reações de intimidação sérias, agravadas pelo fato de se tratar de uma adolescente. Sua

figura frágil, tímida e os longos cabelos contribuem para relembrar o arquétipo do puer

aeternus. A disposição de expor-se a perigos em defesa da educação, um tema tão

fundamental para o Brasil, colocou-a entre o grupo de pessoas capazes de gerar

transformação não apenas em âmbito local, criando mais um modelo possível de “herói

juvenil” dentro das redes. A pouca idade e o ar angelical também compõem uma

imagem que a afasta do que se convencionou ser a dos homens da “política”, do

“mercado” e do “sistema”.

17 Notícia disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://educacao.uol.com.br/noticias/2012/11/06/casa-de-aluna-que-criou-diario-de-classe-e-apedrejada-em-florianopolis-avo-fica-ferida.htm Acesso realizado em 15/04/2014.

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Aqueles que a rejeitam, muitos deles pessoas próximas, vizinhos, colegas de

escola, funcionários e professores, julgam ser prejudicados por suas ações, sentem-se

intimidados e expostos. Mas tudo isso vem acompanhado pelo reconhecimento público

alcançado. Isadora dá palestras em todo o Brasil, conversa com autoridades, recebe

prêmios. Com toda a atenção voltada para seus enunciados, conseguiu vitórias

aparentemente impossíveis, com melhoras visíveis na infraestrutura de sua escola e a

discussão em âmbito municipal de problemas relacionados ao dia a dia da educação

pública em Florianópolis.

Parece que a aprovação automática esta com os dias contados aqui em Santa Catarina. A partir deste semestre os alunos devem ter frequência mínima de 75% e medias finais acima de 7, somente o 1º, 2º e 4º ano não poderá reprovar. É um grande avanço na minha opinião, parabéns pela iniciativa, acho que é um passo importante para exigir mais dos alunos e professores. Outra novidade é uma nutricionista nova na escola. Os lanches melhoraram nesta semana, tem 4 cardápios definidos, um para cada semana. Hoje o lanche foi torta salgada de frango e suco natural. Tava muito bom. In: https://www.facebook.com/DiariodeClasseSC?fref=ts, publicado no dia 2 de agosto de 2013.

Na publicação acima, é possível perceber como Isadora passa a emitir opiniões

sobre assuntos complexos relacionados à Educação, como a aprovação automática, e

conquista o direito de ser ouvida. São 279 comentários referindo-se a esse “post”, mais

de 4.200 pessoas “curtiram” o que disse e 306 compartilharam a mensagem. No

enunciado, pode-se perceber, ainda, uma de suas vitórias, com a chegada da

nutricionista à escola e a melhora no cardápio de merendas. Isso demonstra não apenas

o capital social que adquiriu, como também a potência comunicacional, capaz de

materializar transformações importantes no cotidiano de seu grupo.

Por outro lado, deixa no ar a dúvida, que aparece, inclusive, em vários

comentários deixados em sua página: o que, exatamente, deu a ela esse poder de

interferir no andamento de assuntos relacionados à Educação, muitos deles que admite

não conhecer profundamente? A notoriedade conquistada com enunciados simples e

específicos sobre os problemas que encontrava em sua escola justificam essa ampliação

do círculo de atuação da adolescente, hoje com 14 anos?

Um episódio que denota essa conquista de poder e o desejo de autoridades

constituídas de arrebatarem para si esse quinhão aconteceu na metade de 2013. Um

senador da República, Paulo Bauer (PSDB-SC) enviou para o Diário de Classe um

vídeo respondendo diretamente a uma indagação da estudante. “Eu estava publicando,

olhei para o lado e vi o vídeo que ele publicou. Eu não sabia o que fazer, falando meu

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nome, pedindo para compartilhar. Isso mostra o tamanho do Diário de Classe, não é

qualquer perfil que recebe uma resposta em vídeo de um senador da República”,

relembra Isadora. Também gerou grande polêmica no Facebook a foto que publicou ao

lado do então Ministro da Educação, Aloizio Mercadante.

O tripé de histórias em que basearemos este estudo se completa com Enderson

Araújo, de Salvador, Bahia. Aos 22 anos, Enderson não atingiu notoriedade tão

significativa quanto Rene e Isadora, pelo menos por enquanto. Um dos criadores da

página Mídia Periférica, presente no Facebook, com mais de 3.500 seguidores, de um

blog com mais de 10 mil views, e Twitter com cerca de 350 seguidores em agosto de

2013, sua atuação vem ganhando destaque por meio de prêmios e reconhecimentos.

O discurso de Enderson está diretamente ligado às questões culturais e raciais

das periferias da cidade de Salvador. Seus enunciados transitam entre exaltações à

capacidade empreendedora da juventude negra, frases motivadoras para os jovens

habitantes da periferia, discursos de autoafirmação e opiniões políticas sobre questões

locais e nacionais, geralmente ligadas à juventude.

Sua participação é resultado de oficinas de formação de comunicadores

realizadas na periferia de Salvador, como descrito no item “Sobre”, da página do Mídia

Periférica no Facebook.

Sobre Grupo de jovens comunicadores / Group of young communicators - Clique e Saiba Mais / Click and Learn More Descrição Se Liga Bocão, Na Mira, Se Liga no Pida, Estes são os programas de maior audiência da Mídia Convencional, programas sensacionalistas e que excluem a cultura das periferias e muitas vezes usam as comunidades como cenário para suas matérias sensacionalistas, utilizando imagens de miséria e desgraças. Foi com essa inquietação que três (3) jovens se reuniram durante o curso de Direito à comunicação e produção de vídeo ministrado pelo Instituto de Mídia Étnica (IME) e realizado pelo Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) na comunidade de Sussuarana em Salvador-BA, e fundaram o Grupo de Comunicadores Jovens Mídia Periférica. Enderson Araujo, Ana Paula Almeida e a Liege Viegas se reuniam após as oficinas e discutiam bastante sobre os esclarecimentos que o IME passara nas tardes de oficinas, Vídeos, Debates, e Conversas que adentravam as noites inquietavam aqueles jovens. Tiveram a idéia de fazer fotografias pela comunidade e surgiu mais uma inquietação em suas mentes, pois eles começaram a observar que a periferia não só tem misérias, tem as senhoras que se reúnem para tricotar, fazer crochê, tem as crianças que batem uma pelada no final de linha ou empinam pipa enquanto os senhores de meia idade jogam dominó na praça ao fim de tarde. Com essas imagens os jovens do Mídia Periférica faziam vídeo slides e divulgavam na internet em forma de repudio ao que a mídia convencional pregava sobre as comunidades periféricas, mas sentiam que aqueles vídeos ficavam soltos na internet sem nenhuma referencia daí surgiu a idéia de criar-se um nome que desse referencia as fotos e que o trabalho dos jovens fosse reconhecido, então nasceu o Mídia Periférica. Daí então muita coisa foi acontecendo o projeto terminou, mas a vontade dos jovens levou com que continuassem a se reunir e produzir. Conseguiram um espaço na radio comunitária de Sussuarana aonde transmitem o programa Radiação Favela, um programa de hip-hop que há poucos dias passou a ter transmissão Online, alem disso @s Menin@s conseguiram um apoio da Rede Servidor para produzirem sua Web TV onde eles produzem quatro tipos de programas: Conversa de Quilombo, Multicultural, Love Periferia e Informe Periférico; e não para por ai, os jovens multiplicam seus

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conhecimentos em oficinas que são convidados a fazer em outras comunidades, eles passam um pouco do que aprendem para outros jovens, em seus quadros eles escrevem uma vez por mês para a revista Viração! Feita por jovens de todo o Brasil e postam conteúdo na Agencia Jovem de Noticias da Revista Eletrônica da Viração. In: https://www.facebook.com/midia.periferica/info

Enderson foi um dos 10 premiados na edição 2012 do Prêmio Laureate Brasil,

cujo objetivo é reconhecer jovens empreendedores sociais que promovam mudanças

significativas nas comunidades em que atuam. Trata-se de um prêmio concedido pelo

Laureate International Universities, grupo internacional que se define como líder global

em ensino superior, formado por mais de 75 instituições em todo o mundo, presente no

Brasil por meio da aquisição de universidades nacionais, como Anhembi-Morumbi e

FMU.

Além dessas duas universidades, é responsável pelo BSP – Business School São

Paulo, Cedepe Business School, Centro Universitário do Norte (UniNorte), Centro

Universitário IBMR, Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), Faculdade de

Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (FADERGS), Faculdade dos Guararapes (FG),

Faculdade Unida da Paraíba (UNPB), Universidade Potiguar (UnP) e Universidade de

Salvador (UNIFACS). O ex-presidente norte-americano Bill Clinton é chanceler

honorário do grupo global e aconselha a rede em temas de responsabilidade social,

liderança jovem e acesso ao ensino superior. O ex-primeiro-ministro britânico Tony

Blair, em março de 2014, figurava nas fotos do site oficial do grupo.18 No total, a

instituição atua na educação de 800 mil estudantes espalhados por todo o mundo. Que

sua presença no Brasil seja assim tão expressiva é um dado que poderia ser estudado em

pesquisa específica sobre o interesse de grandes conglomerados educacionais no

mercado brasileiro, suas práticas mercadológicas e pedagógicas. Por enquanto,

refletiremos sobre as razões que levam o grupo a escolher um jovem como Enderson

para a premiação e o tipo de discurso que produz a partir dessa escolha.

O objetivo inicial do Mídia Periférica era se contrapor aos informativos

sensacionalistas que falavam da periferia apenas como palco de crimes e local de

moradia de marginais. Com a família residente em Sussuarana, após uma oficina de

comunicação, Enderson e os amigos resolveram criar o blog, alimentando o conteúdo

em horas vagas nas lan houses da região, uma vez que não possuíam computador.

18 Ver http://www.laureate.net/ Acesso realizado em 16/04/2014.

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Os amigos foram se revezando, mas Enderson permaneceu no Mídia Periférica e

mantém o próprio perfil no Facebook, com 2.300 “amigos”. Entre fotos com outros

jovens, recados pessoais, mensagens convocatórias para protestos contra o aumento dos

ônibus em Salvador em 2010, o jovem registra, por exemplo, a morte que presenciou a

poucos metros de distância, em 11 de dezembro de 2010: “Mais um jovem é

exterminado em minha comunidade..dessa vez foi marcante, foi em minha frente a

centimetros de distancia..meu Deus eu não pude fazer nada.. Revolta”19

Com enunciados contundentes e muitas referências à cultura afro, Enderson

talvez possua o discurso mais radical entre os três, no sentido de defender claramente a

criação de alternativas comunicacionais capazes de dar conta da multiplicidade de

vozes. No seu caso, especificamente, assume como discurso a propagação de um ponto

de vista periférico, procurando transformar o olhar que vem de fora – aquele olhar que

reafirma o imaginário da periferia como um local a ser evitado, perigoso, povoado por

sombras do mal, por criminosos e traficantes. Sob o ponto de vista de Enderson, a

periferia não passa, tampouco, a ser uma localidade povoada por vítimas, mas por

pessoas diferentes, com múltiplos históricos, uma realidade bem mais parecida com o

restante da cidade e, por isso mesmo, muito mais perto de qualquer um.

A partir do quadro de casos exposto até aqui, analisaremos no próximo capítulo

como o discurso se constroi durante a movimentação desses atores sociais pelos

diferentes espaços midiáticos, gerando processos comunicacionais específicos,

modificando, ou não, a interação entre os sujeitos ao chegar às redes sociais. O fluxo

narrativo dessas três histórias demonstram, em grande medida, os modelos de juventude

apresentados como “ideais” ou não.

Com a leitura dos enunciados acumulados dentro de um recorte temporal, não

apenas nas redes sociais digitais, mas em uma narrativa que amarra traduções

convertidas para o espaço televisivo, para a imprensa escrita, para blogs noticiosos e

outros mais, observamos como o ato de contar histórias é parte importante do processo

comunicacional de um grupo. Por isso, não parece exagerado afirmar que as redes

sociais digitais se prestam, em grande parte, a reunir as mil e uma narrativas de nossa

Ágora pós-moderna.

19 Depoimento postado no perfil do Facebook: https://www.facebook.com/enderson.nato?fref=ts Acesso realizado em 16/04/2014.

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Às vezes, algumas dessas histórias ganham força própria e destacam-se das

demais, talvez por seu caráter arquetípico, talvez, simplesmente, porque seus

protagonistas assumem o papel de narradores com disposição e destreza incomuns,

como veremos a seguir.

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CAPÍTULO 2: ESTUDOS DE CASO 2 . COM OS PÉS NO LOCAL

Procuramos, com esta dissertação, fincar os pés no local para, a partir daí, traçar

análises capazes de ajudar a compreender o papel que as redes sociais digitais

desempenham em importantes cidades do país. Isso proporcionou uma espécie de

mergulho no Brasil profundo, aquele que não faz parte das regiões nobres, mas que se

esparrama, cada vez mais, sem cerimônia e sem limites, muito além dos territórios que

deveriam ser o seu habitat natural – pelo menos segundo a tradição do apartheid

nacional, em que os muito pobres e os muito ricos mantêm distância cautelosa do

restante do país.

Numa movimentação rizomática e coletiva, os mais pobres, obviamente muito

mais numerosos, expandem seus domínios para fora da favela e da periferia, invadindo

shoppings e praias das zonas nobres. Ou saem da periferia e da realidade claustrofóbica

da escola pública, para ganhar visibilidade internacional ao criticar todo o sistema

educacional. Perplexidade jorra das páginas dos jornais, revistas e das telas de TV.

Como tais belas flores poderiam brotar de caldo tão inculto? Em seguida, a captura

desse movimento, a contenção desse transbordamento, o agenciamento desses atores,

tudo se torna tão natural que é quase como se sempre tivesse sido assim. Lá estão eles,

as novas presas de um novo dispositivo que ajudaram a construir.

As linhas de fuga que se apresentam como libertadoras transformam-se, quase

instantaneamente, em cordas aprisionadoras. O fluxo que promovem, em seu constante

debater-se, em suas constantes ações de busca de um protagonismo que não se explica

apenas por talentos individuais, mas pela matilha que representam, esse sim, parece não

ter fim. Uma multidão que cada um de seus rostos pode evocar, despertando os

antepassados dos sonhos de mansidão, antecipando os devires filhos e netos, todos ali,

juntos, num único e múltiplo perfil digital.

Tanto a dizer e fazer, tão pouco tempo para completar a fase, antes que possam

ser despejados novamente à invisibilidade ou, pior ainda, à mera funcionalidade e

enquadramento dentro de um dos inúmeros grupos que se engalfinham para tirar

proveito de suas imagens, de suas palavras e das contradições que carregam consigo.

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2.1 O EMARANHADO DE SENTIDOS NO ALEMÃO: A HISTÓRIA DE RENE SILVA

Mapa 1: Mapa aéreo da região ocupada pelo Complexo do Alemão, disponível em http://portalgeo.rio.rj.gov.br/

O Complexo do Alemão é um dos resultados da ocupação espontânea dos

morros da cidade do Rio de Janeiro, processo que se iniciou no final do século XIX e se

manteve com maior ou menor força até as décadas de 80 e 90 do século XX. O

imaginário em torno do surgimento das primeiras favelas cariocas, curiosamente,

costuma ser associado à Guerra de Canudos. Após a derrota de Antônio Conselheiro,

parte dos soldados dirigiu-se ao Rio de Janeiro em busca de moradia e dinheiro,

prometidos antes da batalha pelo governo da recém-instaurada República. Enquanto

aguardavam, instalaram-se em barracos improvisados no Morro da Providência, que

passou a ser conhecido como Morro da “Favela”, arbusto muito comum no sertão

baiano - de onde eles acabavam de retornar, após enfrentar um total de 20 mil

sertanejos, número de mortes contabilizadas em um dos episódios mais emblemáticos

da violência do Estado brasileiro contra a população. 20

O local que hoje abriga a comunidade do Alemão já foi habitado pelos índios

Tamoios e, mais tarde, no século XVIII, pelos jesuítas. Desmembrado em várias

fazendas, um grande lote foi vendido para Leonard Kacsmarkiewiez, polonês refugiado 20 Ver www.favelatemmemoria.com.br Acesso realizado em 16/04/2014.

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da Primeira Guerra Mundial, provável responsável pelo nome dado à região. Conhecido

como Leonard “Alemão”, em 1928 ele colocou à venda pequenas frações de seu lote e a

ocupação permaneceu dispersa até a década de 1950. Atualmente, é ocupado por 15

favelas: Itararé, Joaquim de Queiróz, Mourão Filho, Nova Brasília, Morro das

Palmeiras, Parque Alvorada, Relicário, Rua 1 pela Ademas, Vila Matinha, Morro do

Piancó, Morro do Adeus, Morro da Baiana, Estrada do Itararé, Morro do Alemão e

Armando Sodré. 21

O bairro do Complexo do Alemão possui 69.143 mil habitantes segundo o Censo

de 2010, ocupa 2.960.711,75 metros quadrados e seu ponto mais alto está a 138 metros

de altura, com pequena parte preservando cobertura florestal. 22

Os altos e baixos da história local encontram correspondência em sua geografia,

marcada por morros elevados, separados por vales repletos de casas, em ruas de traçado

desordenado e escadarias de degraus irregulares. Por conta disso, a inauguração do

Teleférico do Morro do Alemão, no dia 7 de julho de 2011, despertou grande atenção. O

que aparentava ser um marco da conquista de maior mobilidade e integração ao asfalto

aconteceu alguns meses após a ocupação da região por forças policiais, momento em

que a atuação do garoto Rene Silva, então conhecido como o “Tuiteiro do Alemão”,

ganhou repercussão nacional. Largamente noticiada pela imprensa, a inauguração

contou com a presença da presidente da República, Dilma Roussef, do governador do

Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e do prefeito, Eduardo Paes.

Segundo dados do Ministério do Planejamento, publicados no dia 6 de julho de

201123 , foram investidos nessa obra, especificamente, R$ 210 milhões, dentro de um

total de R$ 939,4 milhões aplicados em diferentes ações do Programa de Aceleração de

21 Dados disponíveis em http://uppsocial.org/territorios/complexo-do-alemao/ Acesso realizado em 16/04/2014.

22 Dados originais disponíveis em http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm e no site Armazém de Dados, editado pela Diretoria de Informações da Cidade do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos - IPP-RIO, vinculada à Secretaria Municipal da Casa Civil da cidade do RJ - CVL.: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bairro.asp?area=156 Acesso realizado em 16/04/2014.

23 http://www.planejamento.gov.br/editoria.asp?p=imprensa&ler=t7431 Acesso realizado em 16/04/2014.

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Crescimento (PAC) no bairro do Complexo do Alemão. O teleférico foi inspirado em

obra semelhante realizada na cidade de Medellin, na Colômbia, famosa pelo combate ao

crime organizado em torno do tráfico de drogas, por meio de medidas de urbanização e

infraestrutura.

Sua finalização só se tornou possível após a fase de ocupação pelo Exército e

desalojamento, pelo menos aparente, do crime organizado que baseava suas ações em

várias frentes do Complexo do Alemão. A região, até então, era inacessível a quem não

possuísse autorização do poder paralelo para lá circular, concedida, geralmente, a quem

fosse morador, possuísse familiares residentes ou fosse um consumidor interessado nos

produtos entorpecentes oferecidos em diversos pontos da região.

Conhecido por ser um dos locais mais violentos do Rio de Janeiro, foi palco,

entre outros acontecimentos que geraram forte impacto na imagem do bairro e de seus

moradores, da disputa pela hegemonia no tráfico entre Orlando Jogador, do Comando

Vermelho, e Uê, do Terceiro Comando, resultando na morte do primeiro, em 1994, e na

ascensão do segundo, que conviveu com a acusação de traição. O caso foi retratado em

livro escrito pelo jornalista Caco Barcellos,24 que relata a posterior morte de Uê, em

2002, assassinado por Fernandinho Beira-Mar, do Comando Vermelho, como vingança.

Outro episódio que deixou fortes marcas na região foi o assassinato do jornalista

Tim Lopes, da Rede Globo de Televisão, em 2002. Enquanto registrava imagens de um

baile funk na Vila Cruzeiro, como parte de uma reportagem que denunciava o tráfico de

drogas e a prostituição de menores, o jornalista foi capturado e levado para a Pedra do

Sapo, onde era realizado o chamado “Tribunal do Tráfico”. Morto e torturado por

ordem dos traficantes liderados por Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, Tim Lopes

se tornou símbolo da escalada de violência no Complexo do Alemão. Exatamente nesse

local, em maio de 2012, foi inaugurada uma das Unidades de Polícia Pacificadora

(UPP), dentro do planejamento da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de

Janeiro de “pacificar” todo o bairro, após o processo de ocupação.

Com um histórico tão dramático quanto real, o cenário que pode ser observado

do alto do Teleférico, que liga a estação de Bonsucesso à de Palmeiras, em uma viagem 24 Barcellos, Caco. Abusado. O dono do Morro Dona Marta. Rio de Janeiro: Record, 2008.

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com duração total de 16 minutos, é de um enorme emaranhado de casas, pessoas e

ruelas. Os fios que penduram as 152 gôndolas no ar destacam-se em meio ao azul do

céu quase sempre claro e marcado pelo sol intenso. Tão poéticas quanto frágeis, essas

linhas paralelas e transversais traçam um voo de Ícaro rumo à tão sonhada integração, à

utópica fusão entre interesses difusos, capazes de sepultar as mais nobres intenções

junto aos cadáveres que se acumulam sem nenhuma identificação por baixo de pedras e

caminhos tortuosos e inacessíveis. Enquanto lá do alto observamos a movimentação do

Alemão bem de longe, o vento nos balança para lá e para cá, lembrando quão frágil é o

equilíbrio alcançado.

2.1.2 A COMUNICAÇÃO COMO LINHA DE FUGA

Foto 1: Foto da autora, realizada no dia 08/07/2014, com visão obtida a partir da janela da antiga sede do Voz da Comunidade, que foi alvo de atentado oito dias após essa data.

Rene Silva Santos é morador do Complexo do Alemão. Começou a participar

de um jornal pela primeira vez aos 11 anos de idade, dentro da escola que frequentava,

Escola Municipal Alcide de Gaspari. Com a ajuda da diretora, criou, em 2005, o Voz da

Comunidade, que circulou com 100 exemplares na Favela da Maré. Recebeu apoio de

uma pequena gráfica e distribuiu os exemplares de mão em mão. O objetivo, a partir

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daí, era “mostrar os problemas sociais da comunidade”. 25 Para isso, publicava notícias

sobre buracos em ruas, lixo acumulado, esgoto a céu aberto e outras necessidades que

conseguia identificar, conversando “com os próprios moradores”.

Fazia a ligação entre as questões cotidianas da comunidade e as instituições

responsáveis por resolvê-las, levando pessoalmente os exemplares para a associação dos

moradores e, depois, até a sede da prefeitura e do próprio governo, “para que eles

tomassem ciência do que estava acontecendo”. Incrivelmente, conseguia resolver muitas

delas, tomando a iniciativa e insistindo.

Não demorou muito para que chamasse a atenção da grande imprensa, por conta

principalmente da pouca idade. O jornal “O Povo” publicou a primeira reportagem,

intitulada “Pequenos apenas no tamanho” sobre a experiência, na época ainda realizada

essencialmente por crianças. 26

Para pesquisar sobre os temas que publicava no jornal, Rene começou a usar a

internet. Como não tinha acesso em casa, usava a lan house do bairro e a escola, que

possuía sala de informática com 50 computadores, bem equipada. O menino começava,

ali, uma trajetória de comunicador, usando e sendo usado pela comunicação em busca

de uma conexão com o mundo institucional externo, tão distante e inacessível, o único

que poderia decidir o dia a dia das pessoas que estavam à sua volta. Ele fazia a ponte,

com suas idas e vindas.

Como na narrativa mítica do deus grego Hermes, que estabelece as pontes de

comunicação entre deuses e humanos, Rene surge do entrelaçamento de necessidades,

interesses, desvios, desmandos e desejos, trazendo para perto de si outros membros da

comunidade, inclusive outras crianças, que passam a colaborar com o projeto. Movidos

por uma mistura de urgência, de luta pela sobrevivência, com um certo distanciamento

de quem acredita que está fazendo a coisa mais natural do mundo, eles se inserem em

eventos oficiais, em cenários sofisticados, em barrancos abandonados e perigosos, com

25 In: Apêndice A, Transcrição de entrevista em áudio com Rene Silva Santos, trecho disponível na pág. 134 desta dissertação.

26 ABREU, Sabrina. A voz do Alemão: como Rene Silva e outros jovens ajudaram a mudar a imagem da comunidade. São Paulo: nVersos, 2013. p. 43

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62

uma sabedoria típica de quem já nasceu sabendo até onde pode ir. Quando o tema leva a

quebradas mais perigosas, o desvio logo é adotado como ponto de fuga. Assim, em

diferentes momentos, Rene Silva e a Voz da Comunidade afirmam que “não falam

sobre os traficantes nem sobre a polícia”. Como seria possível?

Com uma fala mansa, seu sotaque carioca é leve e cheio de malemolência.

Quando Rene fala, nem parece o incansável organizador de pessoas e ações. Sua

eloquência comunicacional necessita de um meio para se expressar. É com o uso de

novas mídias digitais que ele vai encontrar o espaço ideal para ganhar visibilidade e

capacidade de ação multiplicadora. Para ele, não há divisão entre a vida online e offline,

tudo é uma extensão: as redes e as ruas, a vida e a conectividade. Eu tô sempre conectado, o tempo todo. Eu não entro mais no computador, tudo eu faço pelo iphone ou pelo ipad. É a mobilidade, levo pra onde vou, tiro foto, respondo email, publico, a qualidade é boa, posso fazer vídeo. Então, tô sempre conectado. Até quando eu tô dormindo, eu tô conectado. Vejo quando chega mensagem, essas coisas. […] eu acho que tudo que se fala no online e na vida é a mesma coisa. Principalmente pra mim, as pessoas me vêem na internet, depois me encontram na rua e a conversa continua. [...] É, eu consegui isso. Estar conectado e observar o que está acontecendo à minha volta. (Rene Silva, in: Apêndice B, p. 142)

Assim, quando chega a manhã do dia 28 de novembro de 2010, com as Forças

de Ocupação deslocando-se pelo cenário ainda dominado por facções do crime

organizado, encontramos o personagem que se tornou conhecido como o “Tuiteiro do

Alemão”. Eu estava no Twitter conversando com meus amigos, como fazia normalmente. E as pessoas começaram a perguntar: “ah, como estão as coisas aí, estou vendo a invasão pela TV”[...] Eu ia informando: “olha, agora tá tranquilo, agora passou um helicóptero, aí pararam um ônibus”, ia informando e respondendo a eles. Desde o instante em que comecei a responder a eles, o número de meus seguidores foi aumentando. Eu tinha cerca de 800 pessoas que me seguiam, amigos da escola, dessas 800, em menos de meia hora, esse número saltou pra uns 5 mil. (Rene Silva, in: Apêndice B, p. 136)

Nessa época, Rene já possuía acesso à internet em sua casa, localizada no Morro

do Adeus. Do celular e do computador, com os olhos no que a TV dizia, ele enviava as

notícias sobre o que acontecia durante a ocupação. Ao mesmo tempo, recebia descrição

dos amigos sobre o que sabiam nas demais favelas do Complexo, relatando a ação de

um ponto de vista diverso daquele que era narrado na TV. Estranhamente, em

comparação à análise feita por especialistas e jornalistas profissionais das maiores

emissoras de TV (que, invariavelmente, narravam a ocupação em tons épicos), a

Page 63: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

63

narrativa de Rene era bem mais objetiva, direta, útil para a comunidade e sem traços de

ufanismo. Talvez por isso tenha se espalhado com tanta rapidez. Fui procurar saber o que tinha acontecido e vi que várias pessoas famosas, como a Preta Gil, Luciano Huck, a Regina Casé, o William Bonner, todos eles estavam assistindo televisão, acompanhando a invasão e comentando. Esses meus amigos começaram a mandar mensagem pra essas pessoas famosas, dizendo “segue esse menino, ele tá vendo tudo, ele mora lá no morro”. Nem foi culpa minha... E realmente eles começaram a me seguir, a Glória Perez, Regina Casé, Preta Gil, um monte de gente. Quando começaram a perguntar diretamente pra mim, eles têm milhares de seguidores, esses seguidores também começaram a me seguir e perguntar e eu nem conseguia responder a todo mundo. Ao invés disso, percebi que deveria publicar no meu perfil. “Olha, agora saiu tiro, agora aconteceu tal coisa”. As pessoas ficavam informadas, porque a televisão demorava mais a mostrar o que estava acontecendo, mesmo ao vivo. Eu me transformei em um correspondente da internet. (Rene Silva, in: Apêndice B, p. 136)

A página do Voz da Comunidade começou a receber grande número de

seguidores e a hashtag #vozdacomunidade entrou para os Trending Topics do Twitter

(TTT) nacional.

Fig. 7: Foto da tela do site Twitter.com, do perfil da Voz da Comunidade, publicada em 16.10.2011, quase um ano após a ocupação, localizada por meio da hashtag #vozdacomunidade, anuncia a variação de seguidores.

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Fig. 8: Foto da tela do site Twitter.com, do perfil de Rene Silva, publicada em 28.11.2010, data da ocupação do Complexo do Alemão, localizada por meio da hashtag #vozdacomunidade.

Pouco antes da notoriedade alcançada no Twitter, Rene já possuía página aberta

no Facebook, mas pouco usava.

Fig. 9: Rene abre a conta pessoal no Facebook no dia 26/09/2010, dois meses antes do episódio da Ocupação.

Fig. 10: O Jornal Voz da Comunidade abre página oficial no Facebook no dia 14/04/2011, mas o primeiro post aparece apenas um mês depois, divulgando o evento cultural Favela Festival, com participação de Caetano Veloso e de um casal da comunidade.

Page 65: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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Com os “novos tempos” no Complexo do Alemão, Rene foi se firmando como

referência para a comunidade, tornando-se um agitador cultural e organizador de ações

assistencialistas, com arrecadação de doações para festas em datas religiosas, como

Páscoa e Natal. Paralelamente, o interesse da imprensa pelo rapaz só aumentava. Ele

recebia grande atenção nas redes digitais e esse prestígio se refletia em mais espaço nos

grandes jornais impressos e eletrônicos, além de programas de entretenimento da Rede

Globo de Televisão. Transformado em “amigo das celebridades” e em “embaixador do

Alemão”, recebia várias personalidades famosas, como o apresentador da Rede Globo

de Televisão Luciano Huck, que promoveu uma reforma em espaço cedido pelo grupo

Afroreggae,27 para sediar a redação do Jornal Voz da Comunidade.

Foto 2: Foto da autora, realizada no dia 08/07/2014, da fachada da antiga sede do Voz da Comunidade, que foi alvo de atentado oito dias após essa data. No mesmo local, estavam as instalações da Pousada Afroreggae no Complexo do Alemão, projeto que foi abandonado após o incêndio.

O espaço na Rua Joaquim de Queiroz, na Favela da Grota, abrigava, ainda, a

Pousada Afroreggae, idealizada para receber turistas do Brasil e estrangeiros,

especialmente durante a realização da Copa do Mundo de Futebol, de junho a julho de

27 O grupo cultural Afroreggae foi criado em 1993 como um jornal e, desde então, realiza trabalhos em favelas e comunidades carentes do Rio de Janeiro. Em 1999, foi criada a Afroreggae Produções Artísticas Ltda. A ONG chegou ao Complexo do Alemão no dia 03/08/2007 e retirou-se oficialmente em 20/07/2013. In: http://www.afroreggae.org/memoria Acesso realizado em 16/04/2014.

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2014. Foi alvo de um incêndio que começou na madrugada do dia 16 de julho de 2013.

Os equipamentos foram todos perdidos e a Voz da Comunidade retirou-se do local. A

sede oficial do Afroreggae no Alemão também foi alvo de rajadas de metralhadoras e o

grupo retirou-se do bairro após receber ameaças de traficantes. As investigações sobre o

incêndio, considerado criminoso, permanecem inconclusivas. Wagner M. da Silva, de

20 anos, foi encontrado dentro do prédio incendiado e encaminhado para o Hospital

Estadual Carlos Chagas com queimaduras. A suspeita, na ocasião, é que ele estaria ali

executando ordens e que poderia ajudar a esclarecer o caso, mas acabou falecendo no

dia 31 de julho de 2013.

Fig. 11: Notícia sobre o incêndio na sede do Voz da Comunidade, publicada no site da revista Veja, da editora Abril, no dia 16/07/2013, relatando as suspeitas de motivação criminosa.

A perda da sede do Voz da Comunidade gerou forte reação de apoio nas redes

sociais e na televisão. Amigos organizaram campanhas de doação para recuperação dos

equipamentos e a prefeitura do Rio de Janeiro cedeu terreno no Morro do Adeus,

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poucos dias após o incêndio. Embora o acontecimento tenha gerado indícios de retorno

do poder do tráfico ao Complexo do Alemão, Rene e os meninos do Voz da

Comunidade preferiram manter-se à distância do debate, eximindo-se de opiniões sobre

autoria e motivações do incêndio. Já o coordenador do Afroreggae, José Júnior, atribuiu

o incêndio e os atentados subsequentes à reação do Pastor Marcos Pereira, preso sob

acusação de estupro e associação com o tráfico de drogas, após denúncias formalizadas

pelo grupo.

Fig. 12: Post na página do Facebook de Rene Silva pós-incêndio mostra o antes e o depois da sede do Voz da Comunidade.

O cuidado com os limites no discurso construído na página pessoal e no perfil do

Voz da Comunidade demonstra o quanto a atuação de Rene e de seu grupo tornou-se

elaborada. Opiniões polêmicas são evitadas a todo custo e o compromisso que

manifestam é com as questões do dia a dia da comunidade, procurando manter-se à

distância do “tiroteio” verbal e real entre polícia e traficantes. Quando questionado

sobre o poder que o tráfico ainda mantém no Alemão, Rene costuma calar-se. Sobre a

atuação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs,), implantadas na comunidade após

a ocupação e acusadas de arbitrariedades contra a população da favela, também é

monossilábico. É possível perceber que esse embate está vivo no coração da favela e

quem vive em meio à guerra acaba desenvolvendo suas próprias técnicas de

sobrevivência.

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Foto 3: Foto da autora, em esquina logo ao lado de uma das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), com a inscrição “Eu Cuido Eu Vivo” e, ao lado, CV, sigla da facção que sempre controlou o tráfico de drogas no Complexo do Alemão e que, segundo divulgado na época, teria sido banida após a ocupação.

Com a fama e o crescimento do número de acessos a suas publicações, o modo

de interação nas redes sociais Facebook e Twitter também se transformou. O cuidado

com o conteúdo e a linguagem utilizada aumentou, tanto no perfil pessoal como no da

Voz da Comunidade. Mudou muito. Principalmente pras pessoas se adaptarem ao que eu escrevia antes e o que passei a fazer depois. Muita gente parou de me seguir depois da invasão, porque antes eu sempre publicava “e aí, galera, eu tô indo pra tal lugar, vocês tão indo pra onde?”. Publicava sobre as coisas que estavam acontecendo na comunidade e sobre mim também, tipo “estou indo pro shopping”. Tem gente que falava, ah, mas eu te segui pra você falar do Alemão, da comunidade. Eu dizia, se você quer saber da comunidade pára de me seguir e segue o Voz da Comunidade e um monte de gente fez isso. Tudo bem, eu agradeço, porque pararam de encher o saco. Acharam que eu só ia falar da polícia e do tráfico e não era nada disso. Tive que me adaptar, comecei a publicar menos coisas, coisas mais relevantes, não as bobeiras que eu publicava antes. Fico falando bobeira mesmo mais de madrugada, que tem menos pessoas online, mais os meus amigos mesmo. (Rene Silva, in: Apêndice B, p. 136)

Rene faz questão de afirmar que não perdeu a espontaneidade, garante que

continua publicando enunciados sobre o seu cotidiano, sobre o dia a dia do Alemão.

“No Facebook, você pode fazer cinco publicações por dia e já é muito, mas o Twitter

não. Se você fizer cem, ainda não é muito, porque a circulação é muito rápida,

dinâmica”, diz ele, diferenciando a forma como faz a dosagem de publicações no

Facebook e no Twitter. Demonstra, atualmente, consciência da importância do número

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de seguidores que possui e de seu poder de influência na maneira como as pessoas

percebem a realidade do Complexo do Alemão. O discurso do cotidiano é algo que

aparece com muita força, tanto em enunciados de texto como em imagens e fotografias. [...] no meu Facebook eu tenho 9 mil pessoas seguindo, e tenho mais 5 mil amigos. Então, convivo com muita gente, 14 mil no Facebook e mais 50 mil no Twitter. Tem que pensar no que vai falar. Acho muito interessante porque aqui na comunidade existe uma diversidade muito grande, de comida, de música. Você vai andando por aqui e ouve uma música, depois outra, sente cheiro de feijão, arroz, vou publicando isso, essas curiosidades e as pessoas gostam, não é o ambiente delas, é diferente. Elas se sentem mais em casa, dizem “pô, eu posso morar na favela, já sei de tudo, acompanho tudo que você posta, já sei o nome dos becos, do teleférico”. (Rene Silva, in: Apêndice B, p. 137)

2.1.3 A FAVELA AO LADO DA TURQUIA

A força desse universo que vivia praticamente apartado do restante da cidade

antes da ocupação chamou tanto a atenção da grande mídia que não tardou para os

convites aparecerem. Rene participou como consultor de uma das temporadas da novela

vespertina da Rede Globo de Televisão, Malhação, dirigida a adolescentes, em 2011.

Mas a participação mais marcante na teledramaturgia global seria no horário nobre,

dentro do produto de maior audiência e prestígio da emissora líder de audiência no país:

a novela das 21 horas “Salve Jorge”.

O inusitado da trama desenvolvida pela escritora Glória Perez unia o fato

histórico da ocupação do Complexo do Alemão a um romance fictício entre uma

moradora local e um capitão do exército. Parte da trama se desenrolava no núcleo do

Complexo do Alemão, o que tornou Rene Silva seu consultor. Ele indicou personagens

reais, que se tornaram personagens da novela, como a Adriana da Empadinha, que vivia

ela mesma. Rene tornou-se o personagem Sidney, vivido pelo ator Mussunzinho, mas,

ao mesmo tempo, o garoto do Alemão participava das gravações no papel de... Rene, ele

mesmo. Além disso, ajudava a autora com gírias e costumes locais, para dar mais

autenticidade ao roteiro.

De 22 de outubro de 2012 a 17 de maio de 2013, ao longo de 179 capítulos, a

novela uniu, ainda, ao cenário do Complexo do Alemão a improvável Turquia, onde se

desenrolava outra parte da trama. Personagens centrais, como a mocinha Nanda, ora

estavam em meio às favelas do Alemão, ora em uma das grutas da Capadócia. O arranjo

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70

que ligava a realidade do asfalto e do morro carioca, tentava colar isso tudo a um grande

esquema internacional de tráfico de mulheres, cuja base estava nesse país dividido entre

a Europa e a Ásia. A média de audiência de Salve Jorge foi uma das mais baixas no

horário das nove, ficando em torno de 34 pontos.

A experiência levou Rene Silva ao mundo encantado das celebridades. Ele

participou de programas com famosos, recebeu os atores da Rede Globo no Alemão,

organizou grandes eventos com os novos colegas e passou a ser reconhecido nas ruas.

Mas uma outra transformação foi percebida em seus enunciados nas redes sociais. Não

que antes não houvesse uma espécie de merchandising televisivo ou mesmo patrocínio

de pequenos comércios locais, coisa que Rene nunca negou. Mas, com o início de Salve

Jorge, a associação de sua imagem com a Rede Globo de Televisão tornou-se muito

mais forte e a visibilidade nas redes foi utilizada também como arma para alavancar a

audiência e o interesse pela trama da novela das 21 horas.

Fig. 13: Post na página do Facebook de Rene Silva, publicado em 27/10/2012, dia seguinte à estreia de Salve Jorge.

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Fig. 14: Post na página do Facebook de Rene Silva no dia 14/11/2012, comentando sua aparição na novela Salve Jorge.

O número de publicações relacionadas direta ou indiretamente a produtos e

artistas ligados à Rede Globo aumentou consideravelmente nesse período. Sobre o

convite para participar da novela global, Rene conta que foi “convocado pelo Twitter”. Então, a Glória Perez não convidou, na verdade ela publicou no Twitter. Falou primeiro que ia fazer a novela e que se passava no Alemão e que teria personagens inspirados na Voz da Comunidade. Ela nem chegou a convidar, já publicou. Muita gente pergunta: ela ligou, mandou convite? Não, ela publicou e aí já foi. […] Nunca imaginei que isso fosse acontecer. Uma novela das 8, que todo mundo assiste, que eu também assisto... E me ver ali, achava até diferente, sempre vendo novela e depois tu se ver na novela. Era uma repercussão muito grande. Quando eu andava, no ônibus, metrô, todo lugar, todo mundo percebia. [...] Gostei, gostei. Achei que o Voz da Comunidade e a própria comunidade foram bem retratados, mostrou muitas das coisas que acontecem aqui. [...]Foi importante essa passagem, porque trouxe mais gente para apoiar nosso projeto do Voz da Comunidade. (Rene Silva, in: Apêndice B, p. 139)

Durante aqueles meses em que a novela esteve no ar, uma tradução da favela

saltava da tela no horário nobre, com personagens reais que saiam das ruas irregulares e

ressurgiam no cenário criado no Projac, passando pelas redes digitais, com Rene e seus

amigos conversando sobre o que assistiam. A sensação de fazer parte de “algo

importante” fica clara na fala de Rene, que diz até hoje duvidar de que era ele mesmo

que aparecia na novela das nove, a novela que ele, todos os amigos e a família sempre

assistiram.

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Fig. 15: Texto publicado no caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo sobre a trama das nove da Rede Globo de Televisão e sua “favela ficcional”.

Por mais que a autora e seu consultor tenham se esforçado, o Complexo do

Alemão de Salve Jorge não deu conta da realidade. Mesmo que ali estivesse o próprio

Rene, a própria Adriana da Empadinha, imagens reais da ocupação, recortes do

teleférico saltando em meio ao céu azul, ainda assim a teledramaturgia não conseguia

reproduzir a gama de personagens, a complexidade da arquitetura orgânica dos morros,

a tensão que percorre o ar que se respira mesmo quando todos riem e se divertem.

Se realmente foi responsável por elevar a autoestima dos moradores do Alemão,

como afirmam Rene e a autora Gloria Perez, Salve Jorge não conseguiu empolgar o

restante da cidade e do país, talvez porque a mistura entre elementos ultra-realistas e a

licença poética de uma Turquia fictícia, que parecia estar a poucos quilômetros do

Alemão, tenha passado do ponto. As redes sociais não tardaram a criar paródias e piadas

sobre o teleférico que unia o Complexo do Alemão e a Capadócia.

A própria autora, uma entusiasmada usuária das redes sociais, em especial do

Twitter, costumava responder aos questionamentos dos telespectadores e não se isentou

de entrar em polêmicas quando erros de continuidade ou mesmo de incoerência na

trama eram apontados.

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Fig. 16: Notícia publicada no site do jornal O Estado de S. Paulo fala sobre a interação no uso de redes sociais e televisão. O hábito de comentar os programas a que se está assistindo na TV foi complementado, no caso de Salve Jorge, pelos comentários em tempo real da própria autora e de “personagens” da trama, como Rene Silva.

Para Rene, a participação na dramaturgia global revelou-se um caminho para

obter mais patrocínios e ainda mais visibilidade para seus projetos. Os prêmios

acumulados, antes e depois, demonstram que, de qualquer forma, o papel

desempenhado pelo tuiteiro do Alemão agrada às instituições.

Entre outros reconhecimentos, Rene recebeu o prêmio Shorty Awards do Twitter

2011, na categoria Inovação, e o Faz Diferença, oferecido pelo jornal O Globo. Foi

palestrante no Campus Party, carregou a Tocha Olímpica, foi entrevistado pela TV Al

Jazeera, CNN e BBC. Em 2013, foi citado pelo jornal britânico The Guardian como um

dos seis adolescentes capazes de transformar o mundo, ao lado da paquistanesa Malala

Yousafza. Mais recentemente ainda, foi convidado a palestrar na Universidade de

Harvard, falando sobre a utilização de redes digitais por crianças e adolescentes. 28

Exatamente quando um novo lastro de violência e mortes se espalhou pelo Complexo

do Alemão.

28 Notícia do Portal G1 sobre a palestra de Rene Silva em Harvard: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/05/apos-palestrar-em-harvard-rene-silva-quer-estreitar-lacos-com-universidade.html . Acesso realizado em 16/04/2014.

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Olhando em perspectiva, a atuação em Salve Jorge aparece apenas como um

episódio já distante de uma trajetória épica para um garoto nascido em meio ao caos dos

morros cariocas. O papel desempenhado por Rene, para as instituições midiáticas, é de

um herói juvenil, um modelo que deve ser replicado e mostrado às multidões, talvez

como trunfo que demonstre ser possível vencer as adversidades munido apenas de força

de vontade, talento pessoal e um pouco de sorte.

Rene, no entanto, parece estar acima dessas idealizações. Ele percorre os altos e

baixos do Alemão com a desenvoltura que um adolescente do Afeganistão

provavelmente desenvolve para esgueirar-se pelas montanhas e fugir de bombas e

armadilhas que chegam de todos os lados. Nas redes sociais digitais, esse jogo de corpo

se faz presente no modo de desenvolver seus enunciados e gerar um discurso capaz de

aglutinar forças divergentes, ainda que estas não se isentem de tentar trazê-lo para o

centro das disputas. Ele foge e retoma suas atividades de produção, de bastidores, de

mobilização e distribuição de bens materiais e culturais.

Sua postura sempre em busca de um tênue equilíbrio, que procura fugir das

disputas locais, das questões partidárias e religiosas, é colocada em xeque por muitos

membros da comunidade ou de fora. Frequentemente, Rene é chamado a tomar posição

sobre assuntos que nem sempre domina. Ele geralmente escapa com o gingado de um

gato escaldado. Quando questionado sobre o episódio das Manifestações de Junho de

2013, em que foi convocado por vários seguidores a tomar posição favorável quanto aos

protestos, após passar alguns dias sem se manifestar sobre o assunto que tinha tomado

conta das páginas do Facebook e de todo o Twitter, ele explica sem se aprofundar sobre

suas posições pessoais. O que aconteceu no Facebook, principalmente, é que eu fiquei uns dois dias sem publicar, justamente quando estavam acontecendo as manifestações. E aí, quando eu voltei, publiquei no Twitter e cheguei no Facebook e publiquei “bom dia!”. Todo mundo entrou e respondeu: “bom dia o que?? você não publicou nada dos protestos”. Aí eu comecei a publicar dos protestos, das manifestações espontâneas, e as pessoas começaram a compreender. Mas todo mundo acha que você tem que publicar o tempo todo, saber de tudo, mas nem sempre é assim. É uma pressão muito grande. O Complexo do Alemão é muito grande, às vezes acontece uma coisa e eu não estou sabendo e as pessoas cobram, porque saiu até na grande imprensa... Não tenho como saber de tudo na comunidade. Tem também o Twitter, o Face do meu jornal, do Voz da Comunidade, é muita coisa, nem sempre dá pra acompanhar tudo. (Rene Silva, in: Apêndice B, p. 137)

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2.2 A MENINA DE FLORIPA: A HISTÓRIA DE ISADORA FABER

Mapa 2: Foto de satélite, apontando a região da Praia do Santinho, no bairro Ingleses do Rio Vermelho, com a Letra A. No canto direito inferior, o Costão do Santinho Resort, megaempreendimento turístico.In: Google Maps

Tudo na história de Isadora Faber, nosso segundo estudo de caso, parece

improvável. Filha de gaúchos que se estabeleceram na capital catarinense, mora em um

bairro afastado do centro de Florianópolis, cujo eixo financeiro central é um resort

luxuoso.

O bairro do Santinho faz parte do distrito Ingleses do Rio Vermelho, na parte

nordeste da ilha de Santa Catarina. Boa parte da população é formada por residentes de

Florianópolis (e não por turistas sazonais) e, desses, alguns são oriundos de outras

cidades e estados, como a família Faber, que é gaúcha, de Pelotas.

A desconfiança dos nascidos em Florianópolis com quem não é “manezinho” -

apelido dado localmente ao morador originário da própria ilha, com forte influência

açoriana - é conhecida por ser bastante frequente. Os “estrangeiros” são vistos por parte

da população local como culpados pelos recentes problemas urbanos que aumentam em

proporção superior ao crescimento da cidade e de suas conquistas.

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Parte da resistência e das reações até mesmo violentas às ações de Isadora Faber

pode também ser creditada a essa visão conflituosa do “outro”: aquele que chega de

fora, instala-se na cidade e passa a questionar a qualidade dos serviços locais.

Fig. 17: Tela capturada da página Diário de Classe, de Isadora Faber, publicada em 28 de setembro de 2012. O comentário, sobre as origens gaúchas da família, foi postado, segundo Isadora, por uma pessoa que mora na Praia do Santinho e que seria, portanto, sua vizinha.

Esse é um conflito que demonstra, por um lado, o aumento do número de

residentes vindos de diferentes localidades geográficas instalando-se na capital

catarinense e, por outro, a tensão resultante entre aqueles que querem preservar os

costumes locais, em uma vida pacata, quase rural, e aqueles que procuram imprimir

novos hábitos, muitas vezes gerando impasses.

A família Faber mora em uma rua de classe média baixa, em uma casa grande e

confortável, mas sem luxo, com melhorias por fazer. A rua é de terra e o entorno é

formado por residências parecidas. Além de Isadora, moram juntos o pai, Christian

Faber, a mãe, Diamela Leal Faber, a irmã Eduarda, de 18 anos, e a avó materna, Rosa

Maria Leal. A filha mais velha, Ingrid, é engenheira, casada, e não mora com os pais. O

casal possui uma produtora de vídeos e vive de pequenas produções locais.

Os pais pagaram uma escola particular para a filha do meio, Eduarda, durante o

Ensino Médio, o Colégio Energia, conhecido em Florianópolis por ser direcionado ao

preparo dos alunos para os vestibulares. Recentemente, ela passou no vestibular para

Engenharia Mecatrônica no IFSC. Por conta do orçamento doméstico, Isadora, que está

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agora no 1º ano do Ensino Médio, em uma escola particular no centro de Florianópolis

(Colégio Solução), cursou o Ensino Fundamental, até o 9º ano, em uma escola pública,

a Escola Básica Municipal Maria Tomázia Coelho. Foi durante esse período que ela

criou a página Diário de Classe no Facebook. A ideia surgiu a partir da constatação das

diferenças entre a escola particular da irmã e a sua própria escola. Aconteceu o seguinte. A Eduarda estudava na mesma escola da Isadora, mas na 8ª serie conseguimos uma bolsa numa escola particular, muito boa. Nisso, a Isadora começou a criar parâmetros: por que a escola da Eduarda funciona assim e por que a minha não, por que o banheiro da minha escola está todo quebrado e o da Duda não está? Começou a fazer questionamentos, se desinteressar pela escola dela. Estava conversando com uma amiga aqui e disseram: isso acontece porque a nossa é de graça. Eu disse: opa, não, vou explicar uma coisa para vocês. Tudo que vocês consomem tem imposto embutido do governo, que se reverte na escola, no posto de saúde, nada é de graça! [...] Aí a ficha caiu! A minha filha mais velha é engenheira de computação, fica na internet, sabe tudo o que está rolando na internet, informática, ela contou o caso da menina escocesa que fez o blog e conseguiu reverter as coisas na escola dela. Ela reclamava da merenda que era pouca, chegava da escola com muita fome em casa, ela mobilizou a comunidade com o blog e conseguiu resultados, por que você não faz um blog? A Isadora disse: a minha escola tem muito mais que a merenda para reclamar, mas não sei fazer um blog, mas sei fazer uma página no Facebook, então eu vou fazer. (Mel Faber, in: Apêndice D, p. 148)

A mãe de Isadora, Diamela Faber, ou Mel, como é chamada, repete várias vezes

o quão silencioso é o temperamento da filha mais nova, principalmente quando

comparado ao das irmãs. Ela lembra que, a partir daquele momento, todos se

esqueceram da conversa e o assunto só veio à tona novamente quando a menina pediu

que ela “curtisse” a página, que já contava com 80 seguidores, inclusive professores da

escola. A Isadora, num domingo, estava em frente ao computador, deu um grito e disse: deram 1000 curtidas na minha página, vou fazer brigadeiro para comemorar! Nisso, saiu uma notinha no jornal catarinense que passou despercebido pelo pai dela, que costuma ler jornal diariamente, mas não citava nomes, ele leu e não se deu conta que estava falando da Isadora. Dizia “menina conectada coloca no facebook fotos da escola”. Isso passou, mas na próxima segunda-feira, a Isadora foi para a escola, [...] vi que tinha duas meninas em cima do muro, com celular na mão, com a foto da Isa. “É aqui que a Isadora mora? Somos do Jornal Diário e queríamos conversar”. Ali começou, e foi o dia inteiro, Diário Catarinense, Veja, UOL, Terra, Correio Brasiliense, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, nossa, era 23h da noite e ela disse: estou cansada, sem voz, desmaiou de cansaço. Não dá tempo de você pensar, nunca tinha vivido isso, foi tudo muito rápido, de repente todo mundo tem o seu contato, é uma coisa que não tem como controlar. (Mel Faber, in: Apêndice D, p. 151)

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2.2.1 UMA ESCOLA, MIL ESCOLAS

Santa Catarina apresenta o segundo melhor Índice de Desenvolvimento da

Educação Básica (Ideb) do país, atrás apenas de Minas Gerais, mas é líder quando a

análise é fechada no grupo de alunos dos Anos Finais de Ensino Fundamental, recorte

em que se inseria Isadora quando criou o seu Diário de Classe. O Ideb é o índice obtido

a partir da análise dos resultados da Prova Brasil, aplicada aos estudantes de todo o país,

somados à taxa de aprovação escolar. Pode ser consultado no site do Instituto Nacional

de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e, além de avaliar a

qualidade da educação básica no Brasil, serve para estabelecer metas. Os dados são

referentes a 2011, uma vez que os exames são realizados a cada dois anos e os

resultados de 2013 ainda não foram apresentados.29

A cidade de Florianópolis apresentou o índice 4,6 nos Anos Finais do Ensino

Fundamental, alcançando a quarta posição entre as capitais brasileiras. Os resultados do

Ideb específicos da Escola Básica Municipal Maria Tomázia Coelho, onde Isadora

estudou, estão acima dos apresentados pelo estado e município quando os aspectos

avaliados são referentes ao aprendizado de português, tanto nos anos iniciais quanto nos

anos finais. Já no caso de Matemática, chama a atenção que o índice de aprendizado dos

anos iniciais é de 61%, enquanto o dos anos finais é de apenas 13%. 30 Um dos

primeiros embates de Isadora com o seu Diário de Classe foi quando postou um vídeo

mostrando como a sala ficava durante as aulas de Matemática. Após a denúncia no

Facebook, o professor dessa disciplina acabou sendo demitido.

29 Dados disponíveis em http://ideb.inep.gov.br/resultado/ Acesso realizado em 16/04/2014.

30 In: http://www.qedu.org.br/escola/225895-eb-maria-tomazia-coelho/aprendizado. Acesso realizado em 16/04/2014.

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Fig. 18: Tela capturada da página do Diário de Classe, com vídeo publicado no dia 24 de agosto de 2012. As imagens, registradas pelo celular de Isadora, mostram crianças gritando, algumas dormindo sobre as mesas e muita gritaria em sala de aula, dentro do que seria o horário da aula de Matemática.31

Assim que resolveu seguir os passos da blogueira Martha Payne, de apenas 9

anos, Isadora começou a usar seu celular para registrar problemas em sua escola, seja

por meio de fotos ou pequenos vídeos. Uma de suas estratégias iniciais foi publicar

fotos da merenda escolar servida a cada dia, como fazia a menina escocesa. Apesar da

resistência e da reação indignada de professores e colegas de escola, a tática surtiu

resultado. As publicações abaixo demonstram a força que a página de Isadora

conquistou, com respostas diretas da Secretaria de Educação aos problemas apontados

por ela.

Fig. 19: Tela capturada do Diário de Classe, no dia 10 de setembro de 2012, fala sobre a merenda. 31 Vídeo disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?v=273862326053614&set=vb.261964980576682&type=2&theater . Acesso realizado em 16/04/2014.

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Fig. 20: Tela capturada da página do Diário de Classe, no dia 2 de agosto de 2013, comemorando a iminência do fim da aprovação automática, medida reivindicada por Isadora em posts anteriores, e a contratação de nova nutricionista, que introduziu lanches variados na merenda.

As reações contrárias às publicações de Isadora vieram exatamente de onde ela

menos esperava. “[...] nunca pensei que tudo isso iria acontecer e meu objetivo era só

mostrar os problemas, para algumas pessoas curtirem, as pessoas, os amigos da minha

escola, pois estão lá dentro, mas aconteceu o contrário. As pessoas de dentro da escola

não curtiram e as pessoas fora da escola me apoiaram”, diz.

A primeira reação da diretoria foi chamar a mãe de Isadora e pedir que retirasse a

página do Facebook. Os argumentos incluíam o uso da imagem de outros alunos e dos

professores, expondo o dia a dia da escola sem autorização prévia. Além disso, havia a

argumentação de que o uso do celular era proibido em sala de aula. Chamaram-me na escola, a coordenadora me ligou, dizendo que a Isadora estava cometendo crime, que nós, como pais, poderíamos ser presos. Eu disse: mas o que está acontecendo, ela roubou, matou, está ameaçando alguém? Não, ela está colocando fotos da escola na internet, isso é crime. Minha amiga, está havendo uma contradição, já vou te dizer que não vou aí para conversar. E ela: a Isadora tem que tirar essa página do ar. E eu: isso eu vou perguntar para ela, porque a escola é pública, se alguém quiser saber das contas, como cidadão, a escola tem que apresentar toda a documentação. E quanto ao direito de imagem, não se preocupa, porque eu trabalho com produção de vídeo, conheço a legislação, então acho que só vamos perder tempo e não fui mesmo. [...]Nesse começo, a Isadora tinha feito junto com uma amiga. Nessa situação, fui chamada e a mãe da menina também foi. Na hora, ela mandou a menina sair da página e a Isadora foi e escreveu: “Eu, Isadora Faber, 13 anos, estou fazendo esta página sozinha”. Voltei à minha adolescência: eu, Cristiane F, 13 anos...(risos). (Mel Faber, in: Apêndice D, p. 149)

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Do outro lado da história, a diretoria se defendeu afirmando que não proibiu a

abertura da página, mas sim o uso de imagens de professores, funcionários e outros

alunos.32 Porém,a repercussão foi enorme, muito além dos limites dos muros da escola e

mesmo da cidade. Se colegas de sala, vizinhos, professores e a diretoria reclamavam da

superexposição de suas mazelas, pessoas de todos os recantos do país curtiam a página,

compartilhavam as publicações e comentavam posições e denúncias. O alcance rápido

que o Diário de Classe arrebatou nacionalmente é difícil de justificar. Talvez fosse o

assunto certo, no momento certo, somado à improbabilidade da inocência infantil de

Isadora, com traços angelicais, tímida e reservada pessoalmente, mas, ao mesmo tempo,

obstinada e implacável nas posições apresentadas no Facebook.

Fig. 21: Tela capturada da página do Diário de Classe, no dia 3 de junho de 2013, criticando a utilização de horários vagos na escola, por conta de faltas de professores, para passar filmes como “A vida é bela”, em capítulos, com intervalos de 50 dias entre as exibições.

Diferente dos estereótipos de ativistas à esquerda e à direita, Isadora pairou

acima de tudo por um breve período, com sua imagem híbrida de pré-adolescente, a

meio caminho da vida adulta, mas já consciente da existência de um espaço de criação

em que seria capaz de expressar os problemas cotidianos. Fez um estrondoso sucesso

nas redes sociais, saltando de 400 seguidores no começo de agosto de 2012 para 6 mil

no final do mesmo mês e, após um ano, para 500 mil. No segundo trimestre de 2014,

esse número chegou a mais de 620 mil.

Mas a guerra estava declarada já no início e não tardou a transbordar das páginas

digitais para a rua onde mora a família Faber. Na noite do dia 5 para 6 de novembro de 32 Entrevista da diretora disponível em: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/retomar-a-tranquilidade-da-escola-nao-e-facil-276090-1.asp . Acesso realizado em 16/04/2014.

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2012, foram atiradas pedras na residência de Isadora e uma delas atingiu o rosto de sua

avó, de 65 anos, que sofre de uma doença degenerativa. Sem esperar pelas reações

violentas, Isadora viveu um período de medo.

Fig. 22: No post do dia 6 de novembro de 2012, Isadora lamenta a conduta das pessoas que atiraram pedras em sua casa e atribui o ato à xenofobia.

Outro episódio que testou os limites de Isadora e de sua família foi o registro de

um Boletim de Ocorrência, contra a menina, pela professora de Português da escola.

Apesar de contar apenas 13 anos, ela foi obrigada a comparecer à delegacia para prestar

esclarecimentos.

Eu ficava com medo, mas ao mesmo tempo sabia que nada ia acontecer, porque eu sempre tive o apoio da minha família. Isso foi o principal para seguir adiante, eles iam me buscar na escola, na delegacia. Se eles não tivessem feito isso, eu já teria parado com o Diário de Classe, devido às ameaças. [Tive que comparecer à delegacia] Por causa do boletim de ocorrência dos meus professores, da diretora, de alguns pais de alunos que se incomodavam demais com a situação. (Isadora Faber, in: Apêndice C, p. 143)

Fig. 23: Na mesma data, 18/09/2012, Isadora publica dois posts referentes à professora de Português, que registrou Boletim de Ocorrência contra a aluna por calúnia e difamação.

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Durante as entrevistas realizadas pela pesquisadora na casa da família, em

Santinho, a mãe, Mel Faber, falou várias vezes que nunca tentou proteger a filha da

realidade e que essa sempre foi a forma de educá-la. Assim, ao criar a página e mostrá-

la para a mãe, teria sido alertada para o perigo de sofrer represálias e enfrentar

problemas dentro do próprio colégio, mas ninguém imaginava o que aconteceria de fato.

[...] foi uma sucessão de B.Os e erros. Teve um dia que eu respondi três e meu marido, 5. Ela teve que ir, porque foi intimada. O delegado cometeu um erro, porque a delegacia daqui é comum, ele não pode registrar B.O. de menor aqui. Ele aceitou o registro contra Isadora e ainda por cima intimou a própria. Tinha que intimar os pais, em momento nenhum nos intimaram. Eu digo: Isadora, você vai ter que ir à delegacia, te prepara, porque você pode ver coisas desagradáveis, não faz parte da nossa rotina. Não vai ser maltratada mas... Ela me perguntou: mãe, eu sou bandida? Não, Isadora, e quando ela chegou, disse: mãe, fui muito bem recebida na delegacia. O delegado até brincou: Isadora, quem sabe você faz diário aqui da delegacia? Virou charge né, o Mauricio Ricardo fez a charge da delegacia.33 No Ministério Público, ela respondeu como ato infracional. Poxa, é complicado, esse ato é para menor que rouba, vende droga, homicídio. (Mel Faber, in: Apêndice D, p. 150)

Mesmo com a pressão, os pais dizem que nunca sugeriram que Isadora fechasse

sua página. Segundo Mel, a criação do Diário rapidamente mostrou que seria muito

positiva para Isadora. Ela passou a ser chamada para entrevistas e ministrar palestras,

viajou, conheceu pessoas importantes e foi ouvida por grandes grupos, seja no

Ministério Público da Bahia ou no Campus Party. Foi convidada várias vezes a

contribuir com a série de palestras inspiradoras do TEDx Brasil, Ribeirão e Unisinos. 34

Ganhou vários prêmios, como o do Projeto Aprendiz, de Gilberto Dimenstein, o Prêmio

Faz Diferença Educação, concedido pela Globo (e que o jovem Rene Silva também

recebeu), e o da revista Trip, Transformadores 2013, entre outros reconhecimentos.

Durante algum tempo, a menina era sempre acompanhada por um adulto da

família no caminho de ida e volta à escola. As ameaças, no período, também foram

feitas por alunos de outras séries da escola. Ao deixar a filha na porta do colégio, ainda

em 2012, Mel Faber afirma ter presenciado a agressão verbal de um colega à filha. “Um

dia, cheguei com ela na escola, um garoto se aproximou e disse ‘putinha de merda, você

33 Disponível em http://charges.uol.com.br/2012/09/21/cotidiano-da-classe-pra-delegacia/ . Acesso realizado em 16/04/2014.

34 O TEDx reúne grupos independentes em vários países que produzem encontros com apresentações rápidas de personalidades inspiradoras, gravadas e compartilhadas digitalmente com todo o mundo. In: http://tedxtalks.ted.com/. Acesso realizado em 16/04/2014.

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vai tirar essa página do ar agora’, isso tudo na minha frente [...] tivemos que

acompanhar muito de perto.”

Para equacionar reações tão extremadas, de amor e ódio, Isadora assumiu uma

postura de distanciamento, uma espécie de proteção ao bombardeio de enunciados que

se dirigem especificamente a ela e ao que produz em sua página, seja dentro ou fora do

ambiente digital.

Na internet me senti muito forte, muita gente me apoiando, mas dentro da escola me sentia sozinha porque meus amigos mais próximos ficavam com medo dos outros alunos e nem falavam comigo na hora do recreio por causa disso. [...] Não (nunca pensei em desistir), porque logo depois do Diário vieram as mudanças, outros diários, outros alunos denunciando. Eu servi de inspiração, como a Marta foi para mim e para outras pessoas, ganhei muita coisa com isso. Nunca pensei que não deveria ter feito. Minha escola está novinha hoje, se eu não tivesse feito isso, nada teria acontecido. (Isadora Faber, in: Apêndice C, p. 142)

2.2.2 O BIOPODER, A BIOPOLÍTICA

Uma teia invisível rapidamente se construiu em torno de Isadora Faber. Não que

ela seja frágil, essa é apenas sua aparência. Fortalecida pelo apoio significativo que

recebeu, Isadora dificilmente volta atrás em seus enunciados. Não responde aos

comentários, o que a coloca acima dos embates diários travados na rede.

Ao receber a atenção e a legitimação de autoridades do Estado, como secretários,

ministros e senadores, usou dessa força emprestada e acabou conquistando um espaço

de poder inusitado. O que teria a conversar com uma menina de 14 anos o ministro da

Educação? Pouco importa, o fato é que a imagem dos dois juntos empresta frescor à

autoridade dele, ao mesmo tempo em que, para a jovem, é uma vitória, um

fortalecimento. Se até o ministro conversa com Isadora, ela realmente é importante.

Nesse jogo de interesses, muitas vezes cercado por coincidências e imprevistos, e por

um território cheio de cartas marcadas, Isadora se institucionaliza e permanece emitindo

críticas a partir de um olhar interno, de quem está no centro do próprio dispositivo,

sendo tragada e tentando respirar em meio aos restos do sistema.

As publicações de Isadora, com a projeção alcançada, começaram a ser avaliadas

e classificadas por seus seguidores, que ora a definem como uma criança despreparada,

ora como uma jovem heroína, de acordo com a posição que assume frente às próprias

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convicções do comentador. Independentemente das reações, ela assumiu bandeiras

complexas, como a revogação da aprovação automática, a adoção de mecanismos de

premiação baseados na meritocracia e a implantação de sistemas de vigilância, como

câmeras nas salas de aula.

Fig. 24: Ao descrever a nova escola, em que está cursando o Ensino Médio, Isadora menciona as qualidades, entre elas, câmeras de vigilância, algo que ela já reivindicava na escola anterior. Isadora virou uma referência não apenas nacional, mas internacional.

Reconhecida como criança/jovem que trabalha e enfrenta pressões para defender a

Educação em seu país, ela figurou, por exemplo, na homenagem que o Google preparou

para o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 2014.35 Ao lado de outras

mulheres, adultas ou crianças, incluindo personagens fictícios, Isadora desejou um feliz

dia das mulheres a internautas do mundo inteiro. Esses pequenos vídeos, conhecidos

como “doodle”, substituem a logomarca da empresa no site de buscas em datas

especiais.

35 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=okFKnjfA_uE#t=10. Acesso realizado em 16/04/2014.

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Fig. 25: No Portal da Globo.com, notícia sobre o vídeo preparado pelo Google para o Dia Internacional da Mulher, com participação de Isadora Faber, veiculado globalmente.

Fig. 26: No dia 17/12/2012, a revista norte-americana Newsweek publicou artigo sobre Isadora, afirmando que era “a blogueira mais corajosa do Brasil”.

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Fig. 27: No jornal El Comercio, do Equador, notícia veiculada no dia 28/08/2012.

Fig. 28: A revista semanal Der Spiegel, na Alemanha, veicula notícia relacionando a trajetória de Isadora à da paquistanesa Malala Yousafzai, que virou símbolo da luta das meninas muçulmunas pelo direito à educação, dia 12/07/2013.

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No Brasil, Isadora teve sua história contada e recontada pelos principais veículos

de comunicação, cada um adaptando a versão à sua própria linguagem e ao público-

alvo. Assim, revistas dirigidas a adolescentes, sites de entretenimento, educação,

informativos, todos apresentaram sua versão de Isadora e do Diário de Classe.

Fig. 29: A história de Isadora em versão teen, com borboletas e tons cor de rosa, adaptada à leitura que a revista faz das adolescentes.

Fig. 30: A visão idealizada e publicitária da Revista Trip, afirmando que “quem não acredita que é possível fazer revolução pelas redes sociais, não conhece Isadora Faber”.

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.

Fig. 31: “A menina que revolucionou o uso do Facebook”, diz a revista Educar para Crescer.

Fig. 32: Notícia publicada pelo Estadão na ocasião em que a casa de Isadora foi apedrejada e ela sofreu ameaças na escola.

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Acusada de ser manipulada pela família e de que não seria a autora dos textos

publicados em sua página, Isadora não se altera. Explica que muitas de suas conclusões

são tiradas, sim, após conversas com sua família, pois, às vezes, não domina o assunto e

não tem opinião formada. Sabe que atinge um número muito grande de pessoas com

seus enunciados e diz ter ficado preocupada com isso quando se deu conta de sua

influência.

Eu acho que me fez mudar, sim. Agora presto mais atenção, mostro para meus pais verificarem antes da postagem, me sinto responsável. Estou melhorando, porque na minha página tem 624 mil seguidores, mas de visualização é mais de um milhão, então penso bem antes de postar. Mudou o conteúdo também, antes postava só da minha escola e hoje tenho opinião sobre educação, agora publico de outras escolas, outros problemas também. (Isadora Faber, in: Apêndice C, p. 145)

Recentemente, Isadora abriu uma Organização Não-Governamental com seu

próprio nome.36 Ela explica: “... recebo de 8 a 10 mil mensagens pedindo ajuda e toda

essa mudança que eu consegui, quero passar para outras escolas. Quero ajudar de

alguma forma e, se possível, falar um pouco de cidadania nas escolas públicas.” Na

homepage de sua ONG, lê-se, no alto: Determinação + Vontade = Brasil Melhor. O uso

de sua imagem com finalidades político-partidárias rendeu um processo movido contra

o então candidato à prefeitura de Florianópolis, posteriormente eleito. Uma suposta

ingenuidade política da estudante é criticada por parcela de seus seguidores. Exemplo

disso foi quando sugeriu a criação de um Partido dos Professores e sua timeline foi

ocupada por comentários desabonando a capacidade de uma garota de sua idade

elaborar soluções além dos muros da escola - embora tenha recebido também

comentários de apoio.

Com ou sem consistência, Isadora conquistou um espaço de atuação baseado nas

micropolíticas, nas lutas do cotidiano, nas pequenas conquistas que fez para sua escola e

para o grupo que, curiosamente, a rejeitou e não aceitou sua representatividade (colegas

e professores). Nas diferentes relações de poder que estabeleceu com seus

interlocutores, influenciou políticas macro, como a revisão da política de aprovação

36 Site da ONG Isadora Faber: http://www.ongisadorafaber.org.br/ONG_Isadora/Bem-vindos.html . Acesso realizado em 16/04/2014.

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automática – que foi revogada da rede municipal de Florianópolis e comemorada no

Diário de Classe como uma vitória. Movimenta-se em campos complexos com destreza

incomum para a menina tímida e de poucas palavras que é. Falou para publicitários de

prestígio, para membros do Ministério Público, para pesquisadores e profissionais de

diferentes áreas no TEDx. O que, de fato, esta menina de 14 anos representa para grupos

tão heterodoxos?

2.3 COM O UMBIGO EM SUSSUARANA: A HISTÓRIA DE ENDERSON ARAÚJO

Mapa 3: Foto de satélite, disponível no Google Maps, apontando a região de Sussuarana com a Letra A, dentro de recorte de parte do município de Salvador.

“Meu nome é Enderson Araújo, sou educador, estudante do Ensino Médio, nasci

em Salvador, na comunidade de Sussuarana, por isso meu umbigo é enterrado aqui.”

Assim, Enderson Araújo se apresenta, ligado umbilicalmente ao lugar onde se criou, na

casa da avó. Sussuarana é um bairro da periferia de Salvador, com uma população

estimada de 110 mil habitantes, predominantemente de baixa renda.37 Possui vários

loteamentos e alguns conjuntos habitacionais. É retratado nos grandes veículos de

comunicação de Salvador como um dos lugares mais violentos da cidade, palco de

crimes e de assassinatos.

37 Dados originais da Fundação Gregório de Matos, órgão mantido pela Prefeitura de Salvador: http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/vivendo-polo.php?cod_area=4&cod_polo=65 . Acesso realizado em 16 de abril de 2014.

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Fig. 33: Notícia publicada pelo jornal Correio, em 13/12/2013.

Fig. 34: Notícia publicada pelo jornal A Tarde, em 24/02/2014.

Enderson Araújo é um jovem que nasceu em Sussuarana, na casa da avó

materna. Quando seus pais se casaram, a família mudou-se para Cajazeiras, outro bairro

periférico de Salvador, em que também se concentram vários complexos habitacionais,

com cerca de 600 mil habitantes. É um dos maiores aglomerados urbanos do Brasil e

um dos maiores da América Latina.38 “Ficava indo e voltando entre Cajazeiras e

38 Dados originais da Fundação Gregório de Matos, órgão mantido pela Prefeitura de Salvador: http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/vivendo-polo.php?cod_area=4&cod_polo=29 . Acesso realizado em 16 de abril de 2014.

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Sussuarana, mas chegou um certo momento que todas as minhas férias vinha para

Sussuarana, na casa da minha avó, mas era por causa da comunidade que me puxava.”

Como vários outros meninos e adolescentes de sua comunidade, cresceu sem a

presença do pai. Com 14 anos, foi morar com a avó, estudou e ficou em Sussuarana até

os 17, quando retornou a morar com a mãe. Acabou abandonando os estudos durante

dois anos para trabalhar. Até os 19 anos trabalhou em Sussuarana, reforçando os laços

com essa comunidade. A presença da avó na comunidade era muito forte e desde cedo

influenciou a visão do menino sobre a favela e seus moradores. “Minha avó fazia parte

da associação das mulheres da comunidade, discutia política, era a linha de frente dos

artesanatos, dava aula, às vezes tinha feiras e colocava os produtos à venda.”

O momento que ele classifica como a virada, a oportunidade de mudar sua

história, aconteceu quando realizou um estágio em uma empresa de limpeza urbana. “Eu

tomava conta de um jardim, foi o momento da descoberta.” Nesse local, Enderson se

interessou pela atividade de um grupo de jovens que fazia registros e aproximou-se do

fotógrafo, sem saber do que se tratava. Perguntei pra ele: você está tirando foto de que? Ele me respondeu que era para um projeto, e eu, todo desinibido, falei de um lugar bacana na comunidade da minha avó, onde ‘tem artesanato e você pode tirar umas fotos’. Ele disse: vamos lá, quero conhecer. Conversou com todo mundo, apresentei a comunidade toda, aí me inscrevi no projeto também. Na minha ficha de inscrição, ele fez uma carta de recomendação dizendo: preciso desse jovem no projeto. Me bate até um arrepio, enfim, foi assim que tudo começou. (Enderson Araújo, in: Apêndice E, p. 153)

O grupo fazia parte do Instituto Mídia Étnica (IME), organização não-

governamental que desenvolve projetos em torno do tema da democratização da

comunicação e acesso às novas tecnologias por grupos socialmente excluídos, em

especial os de origem afro-brasileira.39 Em associação com o UNFPA (Fundo de

População das Nações Unidas), o IME desenvolvia, em 2010, o projeto com o grupo de

jovens que Enderson encontrou por acaso. Ele foi aceito em uma das oficinas e juntou-

se a Ana Paula Almeida e a Liege Viegas na criação do Mídia Periférica, cuja proposta

central era transformar a imagem disseminada por jornais sensacionalistas televisivos e

pelos próprios jornais impressos locais, mostrando que a periferia não era apenas palco

de assassinatos e contravenções.

39 In: http://midiaetnica.ning.com/ Acesso realizado em 16/04/2014.

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Eu sempre estava nas atividades do projeto, foi aí que surgiu o Mídia Periférica, depois das oficinas de direito e comunicação e produção de áudio visual que o Mídia Étnica deu. Foi aí que eu criei o Facebook, o blog, o Twitter, nem sabia mexer. Comecei a ir na comunidade e ver a criançada jogando bola, moço jogando dominó e moça fazendo tricô. A comunidade é muito mais bonita do que a mídia mostra, comecei a postar os slides: minha comunidade é linda de se ver. Mostrei para alguns amigos e na reunião que fizemos decidimos que tinha que identificar melhor, estava muito solto. Surgiu a sugestão de nome Mídia Periférica, a galera gostou e tocamos pra frente. (Enderson Araújo, in: Apêndice E, p. 155)

Desde o início, o uso das redes sociais foi escolhido como caminho para

desenvolver uma ação política na área da comunicação. “Com as redes sociais, todo

mundo tem acesso a muitas informações. A comunicação chega mais fácil a todos.

Comunicar, falar, ouvir, podemos mostrar para as outras pessoas o que está acontecendo

com o mundo.”

2.3.1 RESSIGNIFICAR A PERIFERIA Enderson e seu grupo começaram as ações do Mídia Periférica fotografando o

bairro de Sussuarana e perceberam a plasticidade da outra comunidade, escondida por

trás daquela das tragédias e da violência cotidiana, uma comunidade que eles, como

moradores, conheciam bem, mas que, até aquele momento, não conseguiam traduzir

com clareza para quem não vivia ali. Criaram, então, um projeto de produção de postais

e passaram a divulgá-lo nas redes sociais, recebendo fotos de diferentes localidades. A

ideia foi baseada em princípios de visão empreendedora, no sentido de atrair turistas

para as periferias e fomentar o comércio local, gerando renda para as populações dessas

regiões.

No dia 8 de agosto, criamos a Mídia Periférica, onde poucas pessoas responderam. Pensamos que as pessoas não gostaram e, de repente, tivemos uma sacada: vamos criar uma campanha, colocar uma foto na capa da nossa comunidade, e vamos pedir para nossos amigos colocar também, para elevar a autoestima e valorizar a nossa comunidade. E à noite a mente começa a pensar, realmente para alguma coisa virar notoriedade tem que virar noticia. Vou escrever alguma coisa aqui, postei no face, no blog, quando acordei tinha vários jornalistas de sites querendo fazer matéria e saber mais sobre a Mídia Periférica [...]Escrevemos o projeto dos postais da periferia, um postal onde o turista vai ver e querer conhecer essa comunidade. A principal fonte de renda de Salvador é o turismo e quando o turista vai para a comunidade, vai deixar o dinheiro no comércio local para o artesão, a quituteira, o sorveteiro, então vai gerar renda para a comunidade e valorizar também. (Enderson Araújo, in: Apêndice E, p. 153)

Mas a originalidade do projeto dos postais e da proposta geral do Mídia

Periférica reside, possivelmente, na busca de ressignificação do imaginário em torno da

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periferia. Esses lugares obscuros e perigosos mostram-que-escondem pequenas ilhas de

poesia, cercadas e plenamente integradas ao caos urbano. São crianças jogando bola no

fim da tarde, empinando pipa e brincando em bandos, velhos jogando dominó, senhoras

fazendo crochê, e a vida cotidiana que segue, a despeito de todas as probabilidades

estatísticas negarem a possibilidade de que ela floresça dentro dessas condições.

Fig. 35: Postal com visão panorâmica de Sussuarana, que virou capa da página do Facebook do Mídia Periférica e serviu para inspirar outras produções. O projeto recebeu contribuições de diferentes lugares e os postais foram

montados e divulgados.

Fig. 36: Postal montado com foto enviada por morador de Castelo Branco, Salvador, Bahia, divulgação realizada no dia 14 de setembro de 2012.

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Fig. 37: Postal montado com foto enviada por morador do Candeal, Salvador, Bahia, comunidade sede dos timbaleiros e de vários grupos culturais, divulgação realizada no dia 19 de setembro de 2012.

Um dos resultados imediatos foi a conquista de espaços nos jornais locais, que

se abriram para mostrar “a nova cara” da periferia. Cada matéria veiculada era

reproduzida nas redes, especialmente Facebook. A divulgação gerava vários

comentários, curtidas e compartilhamentos.

Fig. 38: Publicação do Mídia Periférica de 26 de setembro de 2012, reproduzindo reportagem do jornal A Tarde.

Enderson diz que busca explorar das redes sociais o que cada uma oferece de

especificidade. Em seu perfil pessoal, tanto no Facebook quanto no Twitter, compartilha

links do Mídia Periférica, fala sobre as premiações e reconhecimentos que já recebeu e

Page 97: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

97

cria enunciados com opiniões pessoais. Tudo fortemente baseado no movimento negro e

na luta contra o racismo. Nas páginas do projeto, o grupo criou um sistema de trabalho

em que todos alimentam as redes e o blog, mas os textos sempre passam por uma

revisão final e seguem uma estrutura fixa de postagem, com uma foto e um limite de

caracteres - mesmo no Facebook, que, ao contrário do Twitter, não estabelece esse

limite claramente.

Então, o que é um pensamento meu, é postado no meu perfil, e o que é um pensamento do Mídia Periférica eu posto na fanpage. Eu diferencio o Twitter do Facebook, que é mais divulgação. O Twitter uso mais por uma questão de um canal de articulação, tipo para chegar na pessoa diretamente. Tem que saber o que você quer e como usar a ferramenta. Atualmente, uso Facebook, o Twitter, o blog e o Linkedin, que são as mais populares, não estou familiarizado com outras redes.[...] Tem uma outra rede muito boa chamada whatsapp. É fantástica, está lá um amigo online, já fiz várias articulações pelas redes sociais, tanto de campanhas, ações. (Enderson Araújo, in: Apêndice E, p. 153)

Para alcançar um dos principais objetivos do Mídia Periférica, definido como a

inspiração de jovens de comunidades socialmente excluídas para que realizem suas

próprias ações de comunicação, Enderson usa as redes sociais digitais distinguindo cada

uma. Assim, em sua estratégia pessoal, no Twitter ele publica mensagens em que marca

determinadas pessoas e tenta alavancar um tema em torno do qual quer articular grupos.

Por ter se tornado a rede mais popular, o Facebook é usado não apenas para

disseminar notícias e opiniões, mas também como um instrumento de trabalho, devido à

facilidade de encontrar os colegas de grupo online. Seu discurso coaduna com a visão

de que as redes sociais são ferramentas de democratização da comunicação, que servem

a um propósito específico – embora, ao acompanhar suas páginas, seja possível perceber

que o uso que faz é bem mais abrangente e foge do discurso meramente panfletário (que

algumas vezes está presente também). Por isso mesmo, o alcance é multifacetado e

plural, conseguindo chegar a públicos diferentes. Enderson conheceu Rene Silva, do

Rio de Janeiro, em uma oficina realizada em Salvador e, desde então, os dois tornaram-

se amigos. Rene, que já era bastante famoso e com muitos seguidores nas redes,

contribuiu com algumas “técnicas” para alavancar as publicações.

Uma das metas do meu projeto Mídia Periférica é empoderar os jovens para que eles façam a sua própria comunicação, dentro das suas comunidades, porque isso é um direito humano. Se eles têm meios de fazer comunicação, como um blog, twitter, facebook, pelo celular... (Enderson Araújo, in: Apêndice E, p. 152)

Page 98: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

98

Curiosamente, a organização e a hierarquia que caracterizam os veículos de

grande circulação e alcance mantêm-se no Mídia Periférica, com Enderson assumindo o

papel de diretor e relações-públicas do projeto. Isso está presente em várias publicações

nas redes, que destacam sua participação em eventos e as premiações que recebe. Além

disso, hoje ele ocupa uma das vagas do Conselho Curador da Empresa Brasil de

Comunicação (EBC), gestora dos canais TV Brasil, TV Brasil Internacional, Agência

Brasil, Radioagência Nacional e do sistema público de Rádio – composto por oito

emissoras. Seu nome fez parte de um conjunto de 58 indicados por consulta pública e

foi escolhido para ser representante na categoria destinada aos “jovens”.40 No blog do

Mídia Periférica, sua participação é assim descrita: Enderson Araújo - Jovem de 20 anos, morador da comunidade de susuarana, estudante, cuida das relações externas do grupo, Também Co-fundador do Grupo, esta a frente da diretoria executiva ao longo dos dois anos de existência do mesmo, participou de seminarios e encontros fora e dentro da Bahia, eventos ligados a tematica dos direitos dos jovens e democratização da mídia, esta ligado tambem a Rede Nacional de Jovens Comunicadores e como colaborador na Revista Viração e no maior site afrodescendente do País, o Correio Nagô, teve participações em inúmeros meios de comunicação nacionais, o mais recente sendo o Camara Ligada da TV Camara. In: http://midiaperiferica.blogspot.com.br/p/quem-somos.html

Na edição de 2012 do Prêmio Laureate Brasil – Jovens Empreendedores, Enderson foi um dos dez vitoriosos, na categoria Comunicação. A premiação incluiu treinamento técnico, curso online de Empreendedorismo Social e seu nome passou a figurar uma “rede global de líderes mundiais”, segundo a entidade organizadora, que congrega a Universidade Anhembi-Morumbi, Universidade Potiguar, a Sylvan/Laureate Foundation e a International Youth Foundation.41 O grupo Laureate, como citado anteriormente, é uma instituição internacional de ensino superior, que chegou recentemente ao Brasil, por meio da aquisição de universidades nacionais.

[...] ontem, eu estava pensando no prêmio que eu ganhei, foi muito bacana. Para muitos, pode ser só status, mas quem vive o que sonha, como um dia eu sonhei lá atrás, e eu sonhei mudar minha realidade e conseguir algo: mostrar para minha comunidade que muitas vezes fui discriminado. Muitos diziam: ele deve ser traficante. Imagine eu chegar com um prêmio na comunidade, ver que venci. (Enderson Araújo, in: Apêndice E, p. 153)

40 In: http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2014/04/conselho-curador-da-ebc-escolhe-nomes-para-ocupar-vagas-no-colegiado . Acesso realizado em 16/04/2014.

41 Notícia sobre a premiação de 2012: http://blogs.anhembi.br/premiolaureatebrasil/?p=347 . Acesso realizado em 16/04/2014.

Page 99: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

99

Após essa premiação, Enderson passou a integrar a rede de empreendedores

sociais da Laureate. Além dessa, ele faz parte da rede Portal Correios e da rede de

Comunicadores do Nordeste. Para se articular e trocar informações e pautas, criaram

uma estratégia própria. Possuem um grupo secreto com acesso restrito e lá escrevem

coletivamente a pauta, enviam para o email do editor e, “quando a resposta demora,

mandamos no Facebook, porque as pessoas hoje estão mais ligadas nas redes do que no

próprio email”. Assim, as redes são usadas tanto para a difusão de enunciados diversos,

como para a comunicação um-a-um e em grupo.

2.3.2 A CABEÇA NO GLOBAL

Partindo de uma microlocalidade, ou seja, um bairro periférico, situado dentro de

uma cidade cujas raízes culturais estão relacionadas ao imaginário do que conhecemos

como Bahia e que, por sua vez, dialoga com a megalocalidade Brasil, esses projetos

reverberaram em propostas desenvolvidas em outras localidades, alcançando dimensão

global.

Fig. 39: Texto publicado no blog do Pulitzer Center, organização não-governamental mantida pela família Pulitzer, dedicada a apoiar projetos de jornalismo independente, em 25 de setembro de 2012, com foto de Enderson e descrição do Mídia Periférica.42

42 In: http://pulitzercenter.org/reporting/brazil-social-networks-media-community-communication-network-midia-periferica . Acesso realizado em 16/04/2014.

Page 100: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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Assim como os outros dois estudos de caso desenvolvidos nesta dissertação, a

iniciativa de Enderson encontrou reconhecimento fora do país. Isso se traduziu tanto em

premiações quanto em espaços ocupados em veículos internacionais, como o mostrado

anteriormente e a seguir. São registros espalhados em vários países com língua, cultura,

condições econômicas e populações diversas, que narram essas histórias de quase-

meninos, quase-adultos que romperam com o caminho que se esperava deles.

Fig. 40: Mesmo texto publicado no blog do Pulitzer Center, reproduzido no blog da jornalista indiana Rema Nagarajan dentro do The Times of India.

Quando esteve no Brasil, realizando uma pesquisa sobre o Sistema Único de

Saúde (SUS) e sobre o programa Bolsa Família, como bolsista da Fundação Nieman, da

Universidade Harvard, a jornalista indiana Rema Nagarajan visitou o bairro de

Sussuarana e conheceu Enderson Araújo. Em um diário de viagem que preparou para a

revista Piauí, relatou a visita ao posto de saúde local, que classificou como o pior que

viu no Brasil. Impressionou-se com a história de Enderson: “um jovem rapaz que

escapou da tentação de cair no tráfico e se tornou a voz de sua comunidade”. 43

Enderson sabe que é importante ser valorizado internacionalmente e sempre

destaca em seus enunciados quando um reconhecimento repercute fora do Brasil.

43 In: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-74/diario/uma-mallu-no-brasil . Acesso realizado em 16/04/2014.

Page 101: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

101

Fig. 41: Aqui, pelo Twitter, um correspondente holandês radicado no Brasil, Alex Hijmans, recomenda a todos os profissionais de mídia estrangeiros o vídeo institucional do Mídia Periférica.

Com uma postura política algumas vezes radical, Enderson é mais incisivo

quando o assunto toca nos temas que “movem” o Mídia Periférica: a exclusão da

população negra, a imagem da periferia e a comunicação. Esse discurso vem se

delineando com mais força nos últimos tempos e é bem diverso daqueles praticados por

Rene ou Isadora, que mantêm um pouco mais de distância das polêmicas.

Possivelmente por essa razão, sua visibilidade nas redes, embora alta e de grande

intensidade, não é a mesma dos outros dois jovens.

Mesmo assim, ele mescla a esse discurso um pouco de conversa sobre o

cotidiano, comentando a relação com a avó ou com o pai que recentemente voltou a

procurá-lo. Isso dá um tom de pessoalidade a seu perfil que, de outro modo, poderia

tornar-se distante e, talvez, “engajado” demais, o que afastaria os seguidores e amigos,

principalmente os da comunidade. A partir desse equilíbrio, é possível para ele manter

os laços com a comunidade de onde veio e que lhe emprestou capital social,

universalizando sua imagem, justamente, por meio da especificidade. Essa é a

construção da subjetividade, por meio de ações micropolíticas, que podem ser

associadas, em parte, ao que Deleuze e Guattari descreveram: um caminho em que o

pessoal e o político se encontram, o divã e a praça pública (representada, no caso, pelos

espaços digitais das redes sociais).

Page 102: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

102

Fig. 42: Publicação no Facebook sobre os cuidados cotidianos da avó, líder comunitária e referência afetiva, com o neto Enderson.

A sincronicidade de situações socioculturais e de expectativas comunicacionais

entre populações urbanizadas de baixa renda, sem acesso a serviços básicos de saúde e

educação, entre outros, desejosas de estabelecer novos laços e diferentes tipos de

sociabilidade ajudam a explicar a atenção dispensada internacionalmente a essas

histórias de jovens quase crianças que encontram nas redes sociais digitais espaço para

atuar e ressignificar suas vidas e as de pessoas à sua volta.

Page 103: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

103

CAPÍTULO 3: OS EMBATES DO COTIDIANO 3. O PONTO DE ENCONTRO

O nó górdio paradigmático não pode ser desatado apenas com as inteligências, nem cortado com a espada. A tarefa é, ao mesmo tempo, capital, aleatória e incerta. Eis o que deveria mobilizar-nos. Para isso, temos de compreender que a revolução de hoje trava-se, não tanto no terreno das ideias boas ou verdadeiras, opostas em uma luta de vida e de morte às ideias más e falsas, mas no terreno da complexidade do modo de organização das ideias. (MORIN, 2011, p. 292)

Rene Silva, Isadora Faber e Enderson Araújo possuem vários pontos em comum,

quase tão importantes quanto as diferenças que os distinguem. São várias camadas de

realidades que se sobrepõem e, à medida que desvendamos a mais superficial, outras

surgem, mostrando aspectos muitas vezes mais reveladores. A complexidade das

relações entre as subjetividades desses jovens, seus amigos e familiares, as comunidades

de que fazem parte e as grandes instituições que tentam incorporá-los a um novo

território de biopoder fornece a suas trajetórias uma multiplicidade de sentidos e

conexões.

Olhar para essas jovens personas construídas em um espaço público digital,

fitando o modo como são erigidas suas imagens, suas histórias e a projeção que

alcançam, permite observar uma série de características da organização e distribuição

do capital social nas redes digitais, assim como tal perspectiva oferece dados sobre o

impacto que suas ações desencadeiam em diferentes níveis nos processos

comunicacionais online e offline.

É possível perceber, por exemplo, o movimento realizado no sentido de

enquadrá-los, encaixá-los em novos espaços de controle, o que deixa entrever o modo

como os poderes midiáticos institucionalizados operam, tentando usar rapidamente

aquilo que demonstra potencial criativo de gerar um processo comunicacional mais

intenso, a fim de abastecer seus próprios dispositivos. Ao apropriar-se das histórias

desses jovens, criando novas narrativas e um discurso que está vinculado à imagem que

carregam institucionalmente, os mass media “roubam” parte desse capital social,

originário dos embates do cotidiano, das experiências vividas e das conexões digitais

decorrentes, oferecendo em troca notoriedade e a possibilidade de atingir novos grupos

e multiplicar acessos a suas páginas e perfis. Portanto, há uma tensão dinâmica nesse

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104

movimento, que não se dá em um único sentido. Enredados nesse processo de

institucionalização, de aprisionamento a estereótipos e a modelos determinados pelo

dispositivo midiático, esses sujeitos não pemanecem estáticos e vitimizados e, em

última instância, parecem mesmo realizar um processo próximo ao que Foucault

descreveu como subjetivação, e que Deleuze procura desvendar: Este superar da linha de força, em vez de entrar em relação linear com uma outra força, se volta para a mesma, atua sobre si mesma e afeta-se a si mesma. [...] Pois também, uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela está pra se fazer, na medida em que o dispositivo o deixe ou torne possível. É uma linha de fuga. Escapa às outras linhas, escapa-se-lhes. O ‘Si Próprio´ (Soi) não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas como aos saberes constituídos: uma espécie de mais-valia. (DELEUZE, 1996)

Um processo de criação bastante elaborado, ao mesmo tempo instintivo,

emocional e insurgente, esculpido por meio de tentativas, erros e acertos, traçado

publicamente e cujos rastros podem ser acompanhados pela análise dos discursos ao

longo do tempo, permitiu a esses jovens uma visibilidade que foge da lógica do capital

social acumulado em espaços offline. É exatamente assim que, ao invés de “entrar em

relação linear com uma outra”, eles atuam sobre si mesmos, traçando uma linha de

subjetivação. Foi exatamente dessa forma que puderam desenhar linhas de fuga de

situações extremas (a violência no Alemão, a baixa qualidade do ensino público, o

isolamento da periferia) e criar uma espiral de renovação, de abertura e ressignificação

de suas vidas.

Instintiva, como em Rene, destemida, como em Isadora, ou engajada, como em

Enderson, as personas construídas nas redes digitais utilizam referências capazes de

agregar um número considerável de seguidores nas “fanpages” ou amigos em seus

perfis pessoais. Suas trajetórias soam tão originais quanto contraditórias e capazes de

dizer muito não apenas de suas singularidades, das características de uma geração

específica ou dos grupos que, aparentemente, representam. Falam, também, daqueles

que os acompanham, de suas necessidades e desejos, assim como indicam, a posteriori,

o modo de construção de modelos de juventude pelas diferentes corporações e

instituições midiáticas.

Quando surgiram, não eram celebridades, não representavam um partido ou

crença religiosa capaz de agregar simpatizantes imediatamente, não eram autoridades,

Page 105: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

105

artistas ou técnicos bem sucedidos. Ainda assim, impuseram-se em meio a milhões de

relatos diários que preenchem as páginas das redes sociais digitais. Nesse sentido,

podem nos ajudar a compreender um pouco das necessidades que atendem, dos anseios

a que respondem, das esperanças que despertam, das desconfianças que conseguem ou

não dirimir e das reações extremadas que suscitam.

Os três jovens iniciaram atividades nas redes digitais entre 2010 e 2012,

momento em que elas ganharam importância significativa no Brasil, a ponto de, em

junho de 2013, terem se tornado a plataforma de organização e propagação de

movimentos de protesto de grande intensidade em várias cidades brasileiras, como

exposto no Capítulo 1. A última a chegar às redes foi Isadora, aos 13 anos de idade.

Rene, que começara com seu jornal impresso de 100 exemplares aos 11 anos, chega ao

Twitter e Facebook aos 17. Enderson abre suas páginas aos 18. Todos sem preparo

técnico, a não ser oficinas de capacitação, no caso de Enderson.

Enquanto jornalistas, publicitários e outros profissionais da comunicação

tateavam para entender a lógica das redes sociais digitais, esses quase-adolescentes

quase-adultos puderam ocupar territórios e constituíram espaços de resistência. A

construção de sua personalidade pública foi realizada post a post, tweet a tweet, em

pequenos enunciados que brotavam da percepção da realidade urgente de que faziam

parte. Não houvesse a necessidade, provavelmente daí não teria surgido a ação, que se

impôs quase como uma obrigatoriedade, uma força da natureza, sem mal ou bem

envolvidos e, portanto, fora do campo do que poderia ser definido como “altruísmo”.

Quando lançaram-se à aventura, não se imaginavam heróis, apenas fizeram o que

deveria ser feito, dentro das condições dadas. A construção da narrativa heróica foi

lapidada pelo olhar do interlocutor e, principalmente, pela tradução adotada nos

discursos midiáticos que apresentavam suas trajetórias a um grande público.

De certa forma, há uma referência comum aos três casos aqui retratados, que vai

muito além da faixa etária, embora esse aspecto seja essencial em nossa análise. Cada

um desses atores foi levado a lidar com adversidades de grau consideravelmente alto,

obstáculos que não haviam sido superados pelos adultos responsáveis por administrá-

los, por omissão ou ausência de desejo de assumir tal responsabilidade. Havia a

urgência no fazer e, efetivamente, não havia quem fizesse. A transformação não era a

busca por algo distante, localizado em um tempo futuro incerto ou utópico, mas algo

Page 106: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

106

que estava inscrito em cada pedra do caminho que percorriam diariamente, em direção à

escola ou ao trabalho. Fazia parte do cotidiano - o que nos leva a Certeau, em seu “A

invenção do cotidiano”. Pode-se supor que essas operações multiformes e fragmentárias, relativas a ocasiões e a detalhes, insinuadas e escondidas nos aparelhos das quais elas são os modos de usar, e portanto desprovidas de ideologias ou de instituições próprias, obedecem a regras, Noutras palavras, deve haver uma lógica dessas práticas. Isto significa voltar ao problema, já antigo, do que é uma arte ou “maneira de fazer”. (CERTEAU, 2012, p. 42)

O impulso que parece estar relacionado ao desejo desses atores sociais de

inventar uma arte ou “maneira de fazer” leva à construção de uma persona digital,

alguém que toma para si a tarefa de narrar a história que todos conhecem, mas preferem

ignorar. Ao assumir tal responsabilidade, travestem-se de grande potência e ganham

dimensão entre os iguais, justamente por assumir a tarefa que todos declinaram. Como

na jornada do herói, estes jovens vão para o mundo sem saber com certeza o que os

espera. Lançam-se em direção à ação quase cegos, empurrados por uma necessidade

simultaneamente individual e coletiva. A ausência de intencionalidade coloca mais um

tijolo na construção da narrativa mítica da figura heróica e essas características são

devidamente exploradas no momento em que as trajetórias dos três jovens se tornam

objeto de novos discursos midiáticos.

O contraponto a essa apropriação institucionalizada de suas imagens está na

resistência que conseguem ou não manter ao aparato criado à sua volta. Maffesoli, em

palestra realizada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no

dia 6 de novembro de 2013,44 afirmou que a astúcia e o domínio da técnica, no âmago

da cibercultura, gerará uma espécie de “reencantamento do mundo”, acrescentando que:

“[...]o cotidiano não é algo frívolo, é essencial. Para Weber, deveríamos estar à altura do cotidiano. Lembrem-se de que, em francês, cotidiano está ligado à palavra ´banal´. O forno ´banal´ nas cidadezinhas francesas era o forno coletivo e banalidade era o pão coletivo, capaz de dar a liga ao grupo, criando espaço para a fuga diária dos grilhões do poder.” (MAFFESOLI, 2013, Congresso Net Ativismo Internacional)

É nesse “forno coletivo” do banal, dos pés fincados no local e em histórias de

vida reais, que esses jovens tiram o alimento para sustentar suas trajetórias. Pelo menos,

44 I Congresso Net ativismo Internacional: redes digitais e novas práticas de democracia, 2013, São Paulo. “Émotionnel e net-ativismo”, conferência proferida pelo sociólogo Michel Maffesoli. In: http://www.atopos.usp.br/netativismo/ Acesso realizado em 16/04/2014.

Page 107: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

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enquanto mantêm essa ligação essencial com a vida cotidiana, produzindo um discurso

que deriva, de fato, de experiências vividas. Ao serem, muitas vezes, empurrados a uma

espécie de abismo opinativo, em que são praticamente instados a emitir julgamentos

sobre fatos que desconhecem e contextos de que não fazem parte, o resultado é

estranhamento. É como se algo muito sutil estivesse sendo rompido, algo que pode ter

relação ao modo como Vaneigen define o estágio primordial da criatividade - uma

criatividade que está ligada não apenas aos processos convencionais, mas à disposição

de transformar a vida, ela mesma, em objeto de criação artística. Isso nos remete à força

política da criatividade, proposta pelo movimento situacionista, que podemos relembrar

nas palavras de Vaneigen.

Espontaneidade. A espontaneidade é o verdadeiro modo de ser da criatividade individual, o início de tudo, puro, isento e imune às ameaças de cooptação. Se a distribuição da criatividade, em seu sentido amplo, pode ser considerada mais equilibrada, a espontaneidade parece limitar-se a poucos eleitos. Sua posse é um privilégio daqueles a quem uma longa resistência ao poder premiou com a consciência do próprio valor como indivíduos. (VANEIGEN, 1967, tradução nossa)45

Espontaneidade foi algo que pudemos encontrar nas ações dos três jovens

analisados. Caso acreditassem no discurso construído pelas instituições midiáticas a

respeito de seus próprios discursos e trajetórias, ocorreria justamente a ruptura desse

sentido original, o desencontro com a espontaneidade própria de quem apenas se dispõe

a fazer algo que sabe que precisa ser feito. O jogo de espelhos entre a persona que eles

mesmos construíram, e que é registrada nas redes sociais, e aquela que é incorporada

pelos veículos das grandes mídias (lembrando que esse movimento se retroalimenta

constantemente), poderia arrastar esses atores sociais (e não apenas eles, nem tampouco

somente os mais jovens ou inexperientes) a uma espiral de vaidade e autocomplacência.

3.1 UMA IDEIA DE JUVENTUDE (Impérios Midiáticos e Visão Institucional) A atenção que os três jovens, cujas trajetórias são abordadas como estudos de

caso aqui, obtiveram entre instituições e corporações midiáticas das mais variadas

origens tem sido de alta intensidade. Em âmbito nacional e internacional, de caráter

45 “ Spontaneity. Spontaneity is the true mode of being of individual creativity, creativity's initial, immaculate form, unpolluted at the source and as yet unthreatened by the mechanisms of co- optation. Whereas creativity in the broad sense is the most equitably distributed thing imaginable, spontaneity seems to be confined to a chosen few. Its possession is a privilege of those whom long resistance to Power has endowed with a consciousness of their own value as individuals.”

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institucional ou independente, consideradas mais ou menos “progressistas”, emissoras

de TV, jornais, revistas, editoras, organizações não-governamentais e outras matizes de

empresas, muitas acreditaram que deveriam premiar as ações de Rene, Isadora e

Enderson. Em alguns casos, essas premiações eram simultâneas a dois deles.

Neste ponto, é importante abordar o que, dentro das características de cada um,

responde àquilo que essas instituições entendem ser merecedor de distinção. Em

primeiro lugar, percebe-se que a imagem desses jovens/meninos não oferece receio, não

ofende, não gera estranhamento, ainda que seus enunciados falem sobre temas difíceis,

como violência, pobreza, deficiências da educação pública, racismo e discriminação.

Nesse sentido, a aura de inocência – compreendida como uma aparência idealizada de

neutralidade e ausência de interesses partidários/ideológicos/corporativos/financeiros –

proporcionada pela juventude-quase-infância permite essa empatia inicial com os mais

variados grupos, arrefecendo desconfianças sobre possíveis “interesses ocultos”.

Para Morin, a cultura organiza e é simultaneamente organizada pelo veículo

cognitivo da linguagem. Esta, por sua vez, permite o acúmulo de capital cognitivo,

incluindo os conhecimentos adquiridos, as competências aprendidas, as experiências

vividas, a memória histórica e as crenças míticas de uma sociedade. “E, dispondo de seu

capital cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a sociedade e

governam os comportamentos individuais” (MORIN, 2011, p. 19). Boa parte da

transmissão e do convencimento quanto aos modos de agir em sociedade é transmitida

por meio de histórias e narrativas míticas, como afirma Morin. É difícil negar o caráter

modelar das trajetórias de nossos personagens, cujas ascensão e visibilidade são fruto de

perseverança contra as adversidades, capacidade de mobilização, disposição para se

dedicar ao bem comum do grupo e habilidade no domínio de novas tecnologias. Ao

cumprir o seu papel convocatório, do ponto de vista da normalização desejada, várias

instituições midiáticas encantam-se com as histórias de Rene, Isadora e Enderson.

Ao premiá-los, admirá-los, narrar incessantemente suas façanhas, exibi-los como

exemplos positivos, essas máquinas midiáticas apropriam-se de um combustível

simbólico: potência, juventude, insurgência, participação, capacidade de transformação.

É claro que esse movimento é pleno em complexidade e, da mesma forma, esses jovens

recebem, em contrapartida, prestígio, reconhecimento e capital social, resultando,

objetivamente, na multiplicação da visibilidade nas redes sociais.

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A ideia que se deseja transmitir sobre a juventude com as histórias de Rene,

Isadora e Enderson parece ser a daquela que se esforça, é capaz de transformar a

própria realidade e suplantar as dificuldades, por meio da iniciativa e do esforço

individuais. Traços que fogem a esse caráter apaziguador e idealizado são, em geral,

ignorados pelas reportagens ou pelas apresentações de reconhecimento e premiação.

Assim, Enderson Araújo, que atua no sentido de desconstruir a imagem

distorcida da periferia de Salvador, transmitida por veículos sensacionalistas, além de

promover ações culturais de valorização da cultura afro, acaba transformando-se em

“modelo de empreendedorismo” para os jovens da periferia. Rene Silva, muitas vezes,

é descrito como o “Embaixador do Alemão”, recebendo visitas ilustres, de atores

globais a cantores famosos e representantes de organismos internacionais. Ele também

é descrito como um “benfeitor”, alguém que dedica tempo e trabalho para organizar

eventos de arrecadação de doações, como a PazCoa no Alemão e o Natal no Alemão.

Isadora Faber, por sua vez, é descrita, literalmente, como jovem heroína, responsável

por uma “revolução” na Educação e vários superlativos idealizados (exemplos estão

disponíveis no Capítulo 2).

É claro que, como afirma ainda Morin, “os indivíduos não são todos, e nem

sempre, mesmo nas condições culturais mais fechadas, máquinas triviais obedecendo

impecavelmente à ordem social e às injunções culturais”. (Ibid., p. 26) Assim, da

mesma forma que são capturados pelos dispositivos, eles também são produtores de

aparatos que servem ao aprisionamento de suas singularidades, mas que, a qualquer

momento, podem se transformar nos meios para a fuga.

Outro aspecto importante que os mass media parecem identificar em atores

sociais com as mesmas características de Rene, Isadora e Enderson é a penetração que

os enunciados que emitem obtém junto a seus grupos. Ao construírem, em torno de si,

laços fortes e uma rede de afinidades eletivas, aquilo que dizem gera impacto

significativamente mais intenso. Eles se tornam “formadores de opinião” e passam a

interferir em situações de suas comunidades, migrando, algumas vezes, para a atuação

em questões macropolíticas. É o que acontece quando Isadora participa da luta pela

supressão da aprovação automática na rede pública de ensino de sua cidade e obtém

uma vitória. Também ocorre na atuação de Enderson Araújo como membro do

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110

Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) ou quando Rene Silva é

convidado a realizar palestra na Universidade de Harvard. São legitimações do poder

capazes de outorgar ainda mais capital social a esses atores, embora de um caráter

distinto daquele que acumularam na emergência da visibilidade e que advinha de uma

atuação no âmbito do cotidiano. Essa observação não significa, no entanto, que um

capital seja superior ou mais legítimo que o outro, mas certamente sua genealogia e

modo de imposição e/ou conquista são bastante diversos.

3.2 O PUER AETERNUS COMO MODELO O puer aeternus como “imago”, uma imagem capaz de simbolizar o espírito de

um tempo, é proposto por Maffesoli como o retrato da pós-modernidade. Embora seja

uma visão parcial da complexidade de relações contemporâneas e contenha afirmações

que podem ser revistas ao analisar o contexto do recorte deste trabalho, acreditamos

que, ainda assim, é uma metáfora importante para ajudar a compreender o modo como

as trajetórias de Rene, Isadora e Enderson alcançaram uma projeção tão expressiva.

A adoção da imagem do puer como tradução das aspirações a um ideal de

pureza e a uma certa assepsia ideológica não pode ser compreendida como afirmação de

que as redes sociais são povoadas ou se destinam a apenas uma determinada faixa

etária. Trata-se, na verdade, de desvendar o fascínio em torno de imagens como as

desses três jovens – que também se manifesta diante de muitos outros, dentro de

diferentes contextos, quando representam uma personificação de prodígios ou heróis,

desde crianças-artistas, crianças-cantoras, crianças-escritoras, blogueiras de moda aos

12 anos de idade, exemplos de precocidade que despertam sentimentos de empatia,

desejo de proteção, admiração e, muitas vezes, paradoxalmente, raiva e desejo de

destruição (quando o espaço ocupado pela criança representa um risco à própria

estabilidade).

Para Maffesoli, “o milênio que se inicia sob nossos olhos não será tão

catastrófico como certas pessoas prevêem. Mas ele marca, seguramente, o fim de uma

época. Aquela do mundo organizado a partir do primado do indivíduo.” (Maffesoli,

2006, p. 17) Assim, em seu entendimento, a organização social estaria passando de um

modelo baseado no individual para outro, essencialmente “tribal”, caracterizado, como

ele aponta, por relações horizontais, fraternais e não-hierárquicas. Se, por um lado,

Page 111: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

111

podemos perceber esse desejo aflorando em inúmeras ações desenvolvidas no

ciberespaço e também em movimentos coletivos que tomam conta das ruas, por outro,

constatamos que os modos de ser e de agir baseados na construção identitária individual

e centrada ainda encontram visibilidade privilegiada nas mais diferentes formas de

sociabilidade adotadas.

Ao afirmar que o puer é o resumo de um tempo em que o culto à juventude é

não apenas uma realidade, como uma imposição estética - em seu sentido mais amplo -

às demais faixas etárias, que são convocadas pela indústria midiática a consumir

produtos variados para manter-se eternamente jovens (desde roupas, procedimentos

químicos ou cirúrgicos até informação e capacitação técnica), cabe pensar sobre a

atração exercida por um modelo de juventude capaz, ainda, de promover o bem comum,

mantendo-se, pelo menos no plano imaginário, a salvo das “contaminações”

representadas pelas instituições ligadas ao mundo “adulto”, “masculino”, do “pai” e da

“ordem estabelecida”. A forte negação aos partidos políticos, identificados como a

expressão da sociedade em declínio, também permeia a construção do discurso de

nossos atores, que evitam, a todo custo, associar suas imagens a um deles. Sabem que,

caso essa relação se torne muito aparente, perderão parte do capital social e da

credibilidade que obtiveram.

Assim, acabam por se equilibrar dentro de um jogo de forças marcadamente

desigual, em que uns, como Rene, devem resistir às pressões do poder público

instituído, na forma de policiais ou tropas de ocupação, ao mesmo tempo que não

sucumbem às pressões do poder paralelo, na forma de traficantes e seus representantes

ou mesmo dos membros da comunidade que possuem ligação com o tráfico. Tudo isso

sem buscar auxílio (oficial) em grupos políticos institucionalizados. Embora se apoie na

imagem e na estrutura da Rede Globo de Televisão, Rene sabe que vive no limite, sem

poder atravessar a linha imaginária que divide os mútiplos campos de força da favela.

Isadora Faber, embora alinhe-se a algumas proposições geralmente

compartilhadas por partidos e grupos de direita, também evita associar sua imagem a

partidos ou grupos específicos. Chegou a mover um processo contra o então candidato

do Partido Social Democrático (PSD), posteriormente eleito, à prefeitura de

Florianópolis, por uso indevido de imagens do Diário de Classe. Já Enderson assume

um certo alinhamento à esquerda, defendendo, muitas vezes, políticas adotadas pelo

Page 112: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

112

atual Governo Federal (liderado pelo Partido dos Trabalhadores – PT), mas evita

afirmar categoricamente fazer parte ou votar nesse ou em qualquer outro partido.

Ao traçarmos as linhas que desenham os contornos da face pública desses

jovens, percebemos que a imagem projetada é intensamente elaborada e resulta de uma

convergência de características, capaz de responder simultaneamente aos anseios da

indústria midiática, de várias instituições internacionais promotoras da cultura de

participação e do conjunto de seguidores/amigos/fãs. Essas características, em geral

espontâneas e próprias do contexto em que vivem, explicitam muito mais os medos e

desejos daqueles que seguem, reconhecem, repercutem e/ou recriam os discursos dos

três atores do que propriamente deles. Mostram, na verdade, o que “todos” gostariam

que eles fossem (independente de serem ou não).

3.3 PÓS-MODERNIDADE, O DITO E O NÃO-DITO

É certo que o contexto em que se insere o recorte deste estudo passa pela análise

dos sentidos impressos nas vidas cotidianas e políticas daqueles que compartilham os

anos iniciais do século 21. Assim como apresentado no Capítulo 1, vários autores

procuram nomear, criar traduções, ressignificar palavras, tudo para tentar expressar as

transformações que já aconteceram, estão acontecendo ou estão por vir. A única certeza

parece ser que o período que aprendemos a classificar como “modernidade” já foi

encerrado ou está em seus últimos momentos.

Nesse grande caldeirão de instabilidade da pós-modernidade de Lyotard, da

modernidade líquida de Bauman, do pós-colonialismo de Santos ou do tribalismo de

Maffesoli, há vários indícios em comum, que marcam de maneira profunda os processos

comunicacionais em todos os dispositivos midiáticos. No caso das redes sociais digitais,

é possível estabelecer algumas características que não são restritas a elas, mas que,

articuladas, as tornam uma excelente plataforma de observação dos modos de se

relacionar por meio da comunicação midiática. Até porque a convergência de outros

tipos de mídia – como vemos no caso de Rene Silva, em que redes digitais e

teledramaturgia se cruzam e se retroalimentam – permite um olhar significativamente

abrangente.

Page 113: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

113

Ao reunir perfis pessoais, páginas de comunidade, fanpages de celebridades,

páginas de veículos comunicacionais e/ou de jornalistas e outros comunicadores e

páginas corporativas, as plataformas de redes como Facebook e Twitter transformam-se

em um território de intensa produção de enunciados, deixando à mostra não apenas o

que se escreve, compartilha ou curte, mas as entrelinhas desses processos, aquilo que

não foi dito, mas está presente. Assim, por exemplo, quando negam qualquer

envolvimento político-partidário-corporativo-institucional, se fixarmos o olhar no

conjunto de alguns enunciados, será possível identificar acordos, patrocínios, trocas de

interesse ou simplesmente simpatia por este ou aquele grupo ou instituição.

O que interessa aqui não é, de maneira alguma, “desvendar” esses nós, saber

exatamente quem está por trás do quê ou investigar essas trocas, que de resto fazem

parte da construção de conexões de qualquer rede, mas sim refletir sobre as razões para

que elas sejam realizadas dessa forma, ocultas, uma vez que não há restrições claras,

dentro de uma sociedade relativamente aberta, em um regime democrático

representativo, para omitir opiniões políticas. É claro que, quando há perigos reais,

como ameaças à integridade física, o receio em deixar os próprios pensamentos virem à

tona justifica-se. Nesse contexto, compreende-se a posição relativamente dúbia de Rene

Silva frente às Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Complexo do Alemão.

Denunciá-las ou apoiá-las abertamente, tanto faz, pois são duas faces da mesma moeda:

a reação violenta virá, de um lado ou de outro, mostrando a fragilidade da população

local, mesmo em seu caso, que atingiu, além da visibilidade nas redes, notoriedade na

indústria midiática.

Por outro lado, há uma forte pressão para que assumam posições político-

partidárias, com comentários questionando em quem votaram (ou votariam, no caso de

Isadora, menor de idade). Na verdade, percebe-se um desejo muito acentuado de

enquadrá-los dentro de uma estrutura institucional já existente, a fim de neutralizá-los.

Em contrapartida, eles oferecem uma resistência com força proporcional no sentido de

não se deixar aprisionar em armadilhas. Assim, encaramos um paradoxo: até que ponto

a adoção de posições político-partidárias convencionais é, ela mesma, um dispositivo

capaz de esvaziar de profundidade a ação política desenvolvida por esses jovens com o

uso da comunicação mediada por computador? Tal esvaziamento derivaria de um

esgotamento das alternativas traçadas pela política institucionalizada, cujos seguidores

Page 114: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

114

passam a ser identificados imediatamente por estereótipos - muitos deles, talvez,

injustos ou inverídicos, mas de qualquer forma já acoplados ao julgamento coletivo.

É possível perceber, ainda, que as redes sociais digitais jogam luz sobre aspectos

da condição humana que normalmente preferiríamos ocultar. Mas a lógica da

publicação instantânea, do jorro incessante de enunciados e respostas imediatas, acaba

por criar as condições para expor o quanto de persecutório está latente nas mais diversas

matizes de pensamento.

Ao assumir a tarefa, talvez grande demais, de construir as bases para uma nova

cultura política, Santos afirma que “a transição pós-moderna é concebida como um

trabalho arqueológico de escavação nas ruínas da modernidade ocidental em busca de

elementos ou tradições suprimidas ou marginalizadas”. Por meio dessas representações

particularmente incompletas e “menos colonizadas pelo cânone hegemônico da

modernidade”, seria possível construir novos paradigmas de emancipação social

(SANTOS, 2010, p. 33). Talvez a avidez em torno das personas de Rene, Isadora e

Enderson tenha alguma sintonia com essa disposição. Ainda intactos, inteiros, ainda no

âmbito do vir-a-ser, eles seriam parte dessa ruína moderna, heróis solares movendo-se

em meio à desordem e ao caos pós-modernos das redes sociais digitais. Talvez tragam

conforto porque representam algo de que se gostava muito naquilo que está morto, ao

mesmo tempo que simbolizam o nascimento de algo sobre o qual não há certeza

alguma.

3.4 NAS GARRAS DOS DISPOSITIVOS

É incessante o movimento de construção e desconstrução das imagens desses

pueri, nem tão aeternus quanto seria desejável para os aparatos dos mais variados

matizes que se ocupam de absorver seus feitos. Para dar conta de parte da complexidade

desse processo, é importante nomear, aqui, o modo como a desconstrução das imagens

também pode ser conduzida com impiedade e o prazer que é capaz de proporcionar

àqueles que vivem no entorno das vidas de quem desfruta da vantagem transitória de

obter visibilidade.

Assim, nota-se o anseio em vários seguidores de Isadora Faber de demonstrar

que a menina não é assim tão inteligente ou, o maior dos crimes, não possui

Page 115: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

115

independência em suas posições. Entre suas fraquezas, estaria o hábito de ouvir a

opinião de sua família antes de tirar suas conclusões. Afirmam, muitas vezes, que os

textos no Facebook não são escritos por ela.

Fig. 43: Comentários a partir de post publicado no dia 3 de junho de 2013, sobre a exibição da segunda parte do filme “A vida é bela”, após um intervalo de 50 dias, para ocupar o horário de aula de um professor ausente. Um dos seguidores do Diário de Classe (Leandro Costa) afirma que seriam os pais de Isadora e não ela quem teria escrito o texto.

Em sua trajetória, recebeu ameaças verbais de colegas e professores, teve a casa

atacada por desconhecidos, foi levada a comparecer à delegacia várias vezes e foi alvo

de insultos por sua família não ser originária de Santa Catarina e sim do Rio Grande do

Sul. Tudo isso com apenas 13 anos de idade. Rene, por sua vez, foi acusado de traidor,

por ter aceito trabalhar para a Rede Globo de Televisão, viu a sede da Voz da

Comunidade ser alvo de um incêndio criminoso e invariavelmente precisa reagir a

críticas de outros moradores do Complexo do Alemão que discordam de seus métodos e

gostariam que ele adotasse posições mais radicais. Já Enderson relata, várias vezes, ser

ofendido por expressar seu apoio à causa negra e a iniciativas de afirmação mantidas

pelo governo federal, como a política de cotas e o bolsa-família. Os ataques são todos

pessoais e procuram desconstruir a imagem individual de cada um deles, em tentativas

deliberadas de retirar a credibilidade e o chamado capital social acumulado. Em última

instância, o recado que fica no terreno do não-dito é: todos são corruptíveis, eles

também. Portanto, não merecem ser ouvidos.

Esse controle sobre o discurso da alteridade é uma característica muito forte

dessas redes sociais digitais, que se prestam à vigilância em tempo integral, por meio

não apenas das corporações que as controlam, mas de seus próprios membros. Assim,

Page 116: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

116

embora tenham traçado suas linhas de fuga a partir do uso das redes, percebe-se que, em

muitas situações, esses atores tornam-se suas presas. Policiados, julgados, condenados,

precisam adotar uma posição de defesa. Com a presença constante de representantes de

outros dispositivos, sejam eles da escola, do bairro, da imprensa, do Estado, da família,

das grandes corporações, são tantas as forças envolvidas, que parece natural se apropriar

das imagens e dos corpos projetados desses jovens, desfazê-los e jogá-los, aos pedaços,

para que sejam devorados vorazmente pelo vigilante típico das redes sociais digitais,

capaz de tudo aprisionar, julgar, condenar, matar e expor publicamente: o interlocutor,

o seguidor, o fã, o amigo.

A pesquisadora americana do MIT, Sherry Turkle, estuda como a conexão

permanente pode significar um novo tipo de solidão. “As pessoas querem estar umas

com as outras, mas também num outro lugar – conectadas com todos os lugares

diferentes que queiram”. 46 Assim, acabam sentindo-se sozinhas, mesmo conversando

com muitos. Esse sentimento pode ser ainda mais profundo para aqueles que se

destacam da multidão e são seguidos, como exemplos de conduta. De uma forma ou de

outra, em algum momento, falharão, mostrarão suas fragilidades e, nesse instante, serão

sacrificados publicamente. Esse é o caminho final, arcaico, capaz de acalmar espíritos

inquietos, demonstrando que de nada adianta ser assim tão bom, afinal, tudo acaba em

desilusão. Todos devolvidos a sua condição inicial após o flagrante do deslize, obtido

pela observação diuturna do dispositivo, e a vida pode voltar ao normal.

3.5 MICROPOLÍTICAS NAS DOBRAS DO CAPITALISMO TARDIO A sensação de caminhar à beira do abismo é capaz de gerar reações opostas,

dependendo das características individuais, das circunstâncias e de outras variáveis. O

medo pode ser paralisante, levando à negação da realidade, ou pode ser o trampolim

para um salto em direção ao desconhecido. O início do século 21 talvez ofereça um

ambiente especialmente inóspito para a juventude. A crise generalizada do capitalismo,

o esgotamento dos recursos naturais, o excesso de exigências de competências precoces,

a falência do sistema de ensino convencional, tudo parece pressionar de forma intensa

essa parcela da população, no Brasil e no mundo. Ao mesmo tempo, delineia-se um

46 Palestra realizada no TED2012, “Connected, but alone?”. Disponível em: http://www.ted.com/talks/sherry_turkle_alone_together Acesso realizado em 16/04/2014.

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117

espaço de participação em diferentes níveis da produção técnica e cultural,

especialmente dentro do que se convencionou chamar de cibercultura.

É claro que o potencial criativo está aberto a todas as faixas etárias, mas a imersão

proporcionada pelo contato com a tecnologia digital desde a infância parece

impulsionar, naturalmente, a habilidade de lidar com a techné e de perceber,

intuitivamente, os espaços de atuação que se abrem, oferecendo meios de criar novos

modos de viver, trabalhar e ressignificar a própria existência. Esse impulso é algo que

faz parte da passagem para a vida adulta por muitas gerações. O que vem sendo

realizado, em função da potência oferecida, é que está em questão.

Pudemos perceber que esses atores, a partir de leituras mais ou menos complexas

sobre suas próprias vidas, as de seus amigos e familiares, colocaram-se como agentes

capazes de atuar nas micropolíticas, transformando o cotidiano de suas comunidades,

promovendo mudanças, recebendo atenção, pressionando grandes e pequenos poderes

instituídos e fazendo a roda da engrenagem girar a seu favor. Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. [...] Onde há poder, ele se exerce. [...] Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder. (FOUCAULT, 1989, p. 75)

Explosões como a de Junho de 2013, no Brasil, arrastam no turbilhão quase toda a

produção de enunciados das redes sociais digitais. Parecem indicar, como aponta

Maffesoli, uma disposição emocional, a forma como os diferentes grupos são afetados,

em suas entranhas, pelas circunstâncias políticas. Quase que por espasmos, utilizam sua

potência libertadora para transformar o que é urgente nas dobras de um capitalismo que

exerce o poder também nos traçados das cidades, na ausência de mobilidade, na

imposição de uma arquitetura opressiva, na supressão dos espaços públicos de

convivência.

Tal como aponta Galloway, nas redes digitais os protocolos são a linguagem que

regula o fluxo, controla o ciberespaço, os códigos de relacionamento e conecta as

formas de vida, como uma etiqueta dos agentes autonômos, operando fora dos poderes

institucional, governamental e corporativo (2004, p. 244). Esse controle não seria menos

potente que os poderes convencionais, ao contrário. Justamente por se fazerem cumprir

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118

como regras comuns a todos, sem centralidade ou hierarquia, impõem-se de modo

imperativo. Ao responder se os protocolos são positivos ou negativos, bons ou maus, o

autor afirma que “a técnica é sempre política, a arquitetura das redes é política. Logo, o

protocolo envolve necessariamente uma complexa inter-relação de questões políticas,

algumas progressistas, outras reacionárias” (ibid, p. 245, tradução nossa).47 Assim, não

há como atuar nas redes sociais digitais sem estar inserido nessa dinâmica. Quando

indivíduos isolados ou integrados a um grupo apropriam-se da potência de

transformação por meio das redes, estão construindo nesse espaço a sua atuação

política, queiram ou não, saibam ou não. É certo ainda, que essa arquitetura aponta para

novas formas de organização da sociedade como um todo, que ainda estão em fase de

formulação, mas que poden ser percebidas, inclusive, naqueles que começam a pensar e

traçar possibilidades de um pós-capitalismo.

Ao assumir papeis ativos nas redes e em suas comunidades, os jovens cujas

trajetórias foram analisadas nesta pesquisa participam desse processo. Eles expressam

todos os limites impostos pelos protocolos e regras, das vias digitais e físicas.

Demonstram que, independentemente da intencionalidade, a ação em si promove o

traçado da linha de fuga e permite reconstruir um espaço de luta e subjetivação.

3.6 NOVAS NARRATIVAS, UM NOVO JORNALISMO? Em muitos espaços das redes sociais digitais percebe-se a eclosão de múltiplas

narrativas sobre diferentes realidades. Algumas configuram-se em discursos que, de

certa forma, dialogam com o discurso jornalístico convencional, cujos veículos

tradicionais são os jornais e revistas impressos e os eletrônicos, na TV e no rádio. Na

web, também possuem versões por meio de portais, sites e blogs.

Tais veículos da chamada grande imprensa caracterizam-se por seguir as regras

de toda espécie de corporação empresarial. Possuem, em seus quadros, profissionais

habilitados a exercerem as atividades de repórteres, redatores, apresentadores, editores,

fotógrafos, cinegrafistas, diagramadores, entre outras. Eles aprendem, nas

faculdades, a utilizar determinadas técnicas, de modo a levantar dados e construir textos

47 “[...] the technical is always political, that network architecture is politics. So protocol necessarily involves a complex interrelation of political questions, some progressive, some reactionary.”

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119

em diferentes contextos, mas sempre dentro de padrões. Em uma hierarquia fixa,

editores, na maior parte das vezes, retiram tudo aquilo que foge do projeto de

determinado veículo, de suas funções convocatórias ou de suas convicções políticas. O

resultado são conteúdos parecidos na forma e divididos por nichos, dirigidos a um

público minuciosamente estratificado, algo bem diferente do imaginário original da

imprensa, vista durante muito tempo como segmento combativo e rebelde, o que remete

às origens do jornalismo ou mesmo ao seu papel de resistência dentro de regimes

ditatoriais ou autocráticos.

Diante da força da multiplicidade de conteúdos disponíveis na internet, esse tipo

de narrativa, centralizada em grandes órgãos enunciadores, que ganhou enorme poder

durante todo o período da modernidade e se acostumou a ser o elemento-chave da

democracia representativa, vive, senão um princípio de crise, pelo menos um momento

em que é instada a se redefinir, reinventando suas bases.

Simultaneamente, inovações acontecem o tempo todo nas bordas da

comunicação institucionalizada e, nesse campo, não há espaço para regras

preestabelecidas. Para retratar as notícias de seu dia a dia, jovens, crianças e adultos, em

suas múltiplas particularidades, passam a usar as redes digitais - que não exigem,

necessariamente, a constituição de uma hierarquia e/ou burocracia empresarial. Eles

criam suas próprias fórmulas para se constituir como singularidades isoladas ou

participantes de grupos. Não seguem as regras de disponibilidade de tempo das

organizações corporativas convencionais, que baseiam a remuneração pelo número de

horas em que seus empregados permanecem à sua disposição. Fora dos dispositivos da

megacomunicação, esses novos narradores criam enunciados que, algumas vezes, se

contrapõem à versão hegemônica da indústria midiática. Isso ganha visibilidade em

momentos de grande mobilização, como os movimentos de junho de 2013 no Brasil.

Ao retratarem as primeiras manifestações, ainda com baixa participação, os

veículos da grande imprensa apressaram-se por criminalizar os manifestantes, assim

como as forças de repressão. A reação apareceu nos dias seguintes, nas ruas, organizada

por meio das redes. O número de pessoas presentes se multiplicou e a versão da grande

imprensa teve que correr para dar conta de retratar, pelo menos em parte, a realidade

multifacetada do episódio. Como contraponto às narrativas desses veículos, surgiram os

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120

enunciados compartilhados nas redes sociais digitais, em especial no Facebook e

Twitter. Entre elas, a Mídia Ninja, como citado no capítulo 1, destacou-se ao retratar o

fato a partir de seu epicentro e não de uma perspectiva externa.

Os enunciados publicados nos perfis de Rene Silva, Isadora Faber e Enderson

Araújo, assim como as páginas da Voz da Comunidade, Diário de Classe e Mídia

Periférica, não substituem o exercício do jornalismo por profissionais habilitados e

dispostos a investigar, aprofundar, checar e confrontar fontes, dentro ou fora de veículos

comunicacionais sistematizados. Porém, diante da fragilidade do projeto editorial de

muitos deles, passam a oferecer traduções das especificidades de realidades que a

comunicação institucional não consegue construir com a mesma intensidade. Ao serem

retratados por veículos da indústria midiática, alimentam essa máquina e se

retroalimentam da visibilidade que proporcionam. É possível que façam parte de um

novo modelo de jornalismo, no sentido de que oferecem novas perspectivas de

narrativas e a possibilidade de construção de um discurso em que o protagonismo pode

ser assumido por quem, de fato, vive a experiência do cotidiano retratado em sua pele,

em seu corpo, em suas conexões físicas e digitais.

Se realmente o jornalismo será capaz de se reinventar, configurando novas

formas de atuação dentro de uma realidade baseada na velocidade, no policentrismo e

na multiplicidade de perspectivas, é algo que ainda está no campo do vir a ser,

independentemente das experimentações que já despontam no espaço digital. De

qualquer forma, Isadora já expressa o desejo de se tornar jornalista, enquanto Enderson

tem dúvidas se vai fazer o curso, assim como Rene.

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121

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao percorrer o caminho de mapeamento, análise e interpretação das narrativas

construídas em torno do discurso de três atores sociais em seus perfis mantidos nas

redes sociais digitais, este estudo procurou levantar dados, analisar e estabelecer

relações referentes às dinâmicas comunicacionais, contemplando parte da complexidade

desse processo. Foi possível, por exemplo, identificar o forte componente de construção

identitária individual dos três atores, cujas imagens são centrais para manter a coesão

nos espaços coletivos estudados. Tal feito é resultado do capital social acumulado por

eles, tanto através das respostas de amigos, fãs e seguidores, como pela reverberação de

suas ações, opiniões e imagens nos diferentes veículos da indústria midiática, como,

ainda, do reconhecimento que recebem de instituições com objetivos diversos, por meio

de premiações. Na convergência desses espaços de visibilidade, constroem suas

personas públicas, ao mesmo tempo em que são afetados pelas respostas recebidas,

capazes de modificar e criar novos padrões para a imagem projetada.

Na análise dos enunciados, entre as múltiplas leituras possíveis, percebemos a

tensão existente entre a necessidade de permanecer com laços fortes em suas

comunidades originais - responsáveis pelo crescimento inicial da visibilidade dos

atores e, em última instância, pela construção de uma parte significativa de suas

singularidades - e a pressão por romper fronteiras e aprofundar os laços com outros

públicos. Para manter-se em equilíbrio, muitas vezes é necessário omitir-se sobre

assuntos macropolíticos. Essa característica foi mais fortemente identificada em Rene

Silva, cuja diversidade de laços imprime riscos e cobranças proporcionais.

Percebe-se, ainda, a potência adquirida pelos três jovens atores ao adotar a

comunicação como linha de fuga e ao apropriar-se da techné específica das redes sociais

digitais. A transformação que geraram em suas próprias vidas não se esgotou em si

mesma, mostrando a habilidade de criar redes de interação, proteção e

compartilhamento de ideias e ações. Assim, Rene Silva é capaz de organizar grandes

ações culturais no Complexo do Alemão, estabelecendo múltiplas conexões entre

agentes com as mais diferentes características: representantes oficiais do poder público,

artistas, celebridades midiáticas, veículos de comunicação, voluntários da comunidade e

da zona sul, representantes de escolas e universidades, entre outros. Enderson Araújo,

por sua vez, consegue colocar nas páginas de jornais impressos populares outras leituras

Page 122: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

122

das periferias de Salvador, para além da imagem de local de abrigo de criminosos e

contraventores. Isadora Faber , por meio da grande visibilidade de seu Diário de Classe,

transforma o cenário da escola pública que frequentou, além de interferir em temas

abrangentes relacionados à Educação. São resultados expressivos e que colocam esses

jovens em posições de exercício de uma influência incomum. Autoridades com anos de

atuação na vida pública buscaram, em certas ocasiões, aproximar-se dessas jovens

personas, não apenas a fim de serem ouvidas por um público específico, mas em um

esforço por “colar” sua imagem às deles. Parece significativo, justamente, que o capital

social seja desenvolvido por atores com as características específicas que apresentamos

ao longo deste estudo.

Percebemos, ainda, a força das dinâmicas que envolvem a retroalimentação entre

redes digitais e indústria midiática, em sucessivas apropriações e reapropriações das

imagens e narrativas dos três atores. Há uma constante reconstrução de suas histórias e

ações, elegendo elementos capazes de dialogar com o discurso midiático específico de

cada veículo, com a disposição de propagar seus feitos como exemplos de um modelo

de juventude desejável. Nas entrevistas e contatos que realizamos com esses jovens, na

seleção e análise dos enunciados publicados em suas páginas nas redes do Facebook e

Twitter, em comparação com as narrativas recriadas pela indústria midiática e

posteriormente repercutidas novamente nos perfis e fanpages das redes digitais,

pudemos perceber o movimento de retroalimentação constante. Se realmente se tornam

combustível para as máquinas midiáticas, nossos atores não cessam de agir e reagir,

num processo de ressignificação, utilizando-se também das produções recriadas por

elas, alimentando suas personas públicas com tais narrativas.

Por fim, parece correta a classificação das plataformas digitais de redes sociais

como dispositivos privilegiados na sociedade de controle, plenamente identificados com

as características da pós-modernidade, especialmente no caso do Facebook e Twitter,

grandes aglutinadores de enunciados produzidos por ativistas isolados ou alocados em

coletivos, sempre buscando a propagação de suas causas, ações e opiniões. A vigilância

que é exercida nesses ambientes não está restrita ao domínio e acesso total das

corporações proprietárias aos dados compartilhados - no caso apenas do Facebook, por

mais de 1 bilhão de pessoas no mundo (marca que atingiu em 2012). Boa parte do

controle é exercido pelos grupos, amigos, seguidores e fãs, ou seja, pela própria rede.

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123

Aqueles que atingem a notoriedade nesses ambientes devem cuidar para não cair em

contradições, não se distanciar das origens e não se aliar com grupos e/ou pessoas vistas

como atuantes em campos opostos. É como se houvesse uma guerra a ser ganha no

espaço digital, com dois lados, em que um deles deve ser eliminado para garantir a

disseminação do outro. Logo, vale tudo para chegar ao espaço mítico que deveria ser o

lugar ideal, unívoco, em que as vozes dissonantes não existiriam e, portanto, não

atrapalhariam o gozo eterno.

Paradoxalmente, ainda que esse conflito insolúvel esteja presente o tempo todo,

as forças múltiplas que se movem nessas redes são capazes de se reaglutinar e se

recompor, criando oportunidades de fuga. Portanto, a potência libertadora está lá,

presente, nas dobras desses espaços digitais. O uso que se faz dela é capaz de gerar

sentidos originais, criativos e transformadores, especialmente quando baseado em

experiências vividas, em processos comunicacionais efetivamente dinâmicos, que

envolvem riscos e afetos, como pudemos observar em nossos estudos de caso que, de

resto, continuam ativos em seus embates cotidianos, narrando histórias, mudando as

próprias vidas e interferindo no sentido de muitas outras.

Como perspectivas para maior reflexão, acreditamos ser importante estudar os

novos caminhos para o discurso jornalístico. Olhar para as necessidades reais, das

pessoas que buscam contar suas histórias e as de seus grupos, pode ajudar a construir

novos modelos. No momento em que as narrativas surgem de qualquer lugar, mostrando

ângulos diferentes de uma mesma questão, e conseguem encontrar o suporte para serem

lidas e compartilhadas, a qualidade e a complexidade do que é produzido devem ser

multiplicadas, a fim de que tais práticas mantenham a relevância que sempre tiveram.

Por outro lado, o estudo das redes sociais digitais oferece um vasto

campo de análise, uma vez que só cresce sua capacidade de disseminação de enunciados

capazes de contruir sentidos com forte impacto sobre aspectos políticos, sociais e

culturais de micro e macrolocalidades. Identificamos, aqui, também, a necessidade de

aprofundar estudos sobre a mobilização das redes digitais no Brasil, a elaboração de

novas agendas políticas por grupos constituídos nas redes e a análise do

transbordamento dessas demandas para os espaços institucionais.

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124

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Page 132: Dinâmicas comunicacionais nas redes sociais digitais

132

GLOSSÁRIO Amigos - Nas redes sociais digitais, como Facebook, amigos são os outros usuários que

fazem parte de uma rede pessoal, seguem as publicações, podem escrever na timeline e

cujas timelines podem ser acompanhadas.

Botão curtir - É uma funcionalidade criada pelo Facebook e posteriormente adotada

pelo Twitter. Ao clicar no ícone de curtir, o usuário comunica que gostou de

determinada publicação.

Botão compartilhar - Funcionalidade criada pelo Facebook que, ao ser acionada, abre

uma janela para permitir a republicação do conteúdo de um usuário pelo outro, seja na

própria timeline, na timeline de algum dos grupos administrados ou na de um amigo.

Botão comentar - Funcionalidade criada pelo Facebook que, ao ser acionada, permite

fazer comentários a respeito de um determinado post, interagindo com quem publicou e

com os amigos dele.

Fanpages - Páginas criadas por empresas ou grupos no Facebook que, ao contrário dos

perfis, não acumulam amigos e sim fãs. Permitem interação apenas dentro dos

comentários publicados pelo administrador.

Fãs – Diferentemente dos amigos, no Facebook os fãs apenas seguem as publicações

das fanpages de empresas, celebridades ou artistas. Interagem comentando dentro de

posts já publicados.

Hashtag – Funcionalidade criada pelo Twitter, que cria hiperlinks e permite pesquisar o

conjunto de publicações marcadas com o símbolo # em torno de um mesmo tema. Tags

são as palavras-chaves de um assunto. Além do Twitter, possuem sistemas de busca de

hashtag Facebook, Google+ e Instagram.

Mensagens Inbox – Sistema de troca de mensagens de texto dentro do Facebook.

Páginas de comunidade - Páginas criadas por coletivos ou grupos que não se encaixam

no padrão corporativo/empresarial e, portanto, optam por não abrir uma fanpage no

Facebook.

Perfil – O perfil nas redes sociais digitais é ativado quando o usuário abre uma conta e

realiza seu cadastro de dados, gerando um endereço pessoal que permite a interação

com outros usuários.

Post – Post, no caso das redes sociais, em especial o Facebook, é a publicação de um

determinado enunciado, contendo texto, foto ou outros tipos de imagens.

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Retuíte ou retweet – É uma funcionalidade criada pelo Twitter que permite replicar um

conteúdo que o usuário gostou ou deseja comentar. O número de retuítes ou retweets

indica o grau de aceitação e/ou repercussão de um determinado enunciado.

Seguidores – No Twitter, os usuários tornam-se seguidores uns dos outros. Ao optar

por seguir algo ou alguém, você passa a visualizar as publicações desse perfil. No

Facebook, quando o perfil pessoal atinge o limite de 5 mil amigos, passa a acumular

“seguidores”, que exercem menor interação. Se a solicitação de amizade de um usuário

não é respondida, ele também passa a ser “seguidor” daquele perfil. Pode ser usado

como sinônimo de fã, quando este termo refere-se ao âmbito apenas das redes sociais

digitais.

Status – Em geral, o status das redes sociais refere-se a um comentário por texto ou

imagem em que o usuário expressa o seu “momento”. Para estimular as publicações,

Facebook e Twitter exibem uma pergunta na janela reservada para o compartilhamento

do status, por exemplo: o que você está pensando? Ou: o que você está fazendo?

Timeline – A timeline ou linha do tempo no Facebook reúne todas as publicações de

um perfil ou fanpage, incluindo os posts deixados por amigos ou aqueles em que o

usuário foi marcado.

TTs – Os Trend Topics são uma lista produzida pelo Twitter em tempo real com os

temas mais comentados, baseada nas citações de hashtags ou de nomes próprios.

Indicam o grau de repercussão de um determinado assunto.

Tuíte ou tweet – Trata-se do enunciado publicado dentro do Twitter, que deve se

restringir ao máximo de 140 caracteres. Geralmente ele traz links para outras

plataformas em que o tema é comentado, mas isso não é uma regra.

WhatsApp – O WhatsApp é uma plataforma para troca de mensagens instantâneas por

meio de smartphone. Além de texto, podem ser trocadas fotos, vídeos ou áudios. Ao

permitir a criação de grupos, também se insere no âmbito das plataformas de

relacionamento digitais. Foi adquirida pelo Facebook em fevereiro de 2014.

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APÊNDICE A Entrevista (somente áudio) com René Silva Santos, concedida na antiga sede do Voz da Comunidade, na Rua Joaquim de Queiroz, na Grota, Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro, no dia 08/07/2013. 1. Confirmando alguns dados: você está com 19 anos agora, e começou a trabalhar com o jornal Voz da Comunidade em 2005, aos 11 anos, é isso? Rene: Sim, é isso mesmo. 2. Por que resolveu fazer um jornal? Rene: Ah, porque eu via a necessidade da comunidade ter acesso a informações e queria ajudar a resolver os problemas sociais. 3. Mas não é tão simples ajudar a resolver esses problemas locais, desde buraco de rua, esgoto etc. Como você fazia, ia nas pessoas certas? Rene: Eu ia nos moradores mesmo pra saber quais eram os problemas sociais e depois levava pra Associação dos Moradores, pra prefeitura, pro governo, pra eles terem ciência do que estava acontecendo. 4. Sozinho? Rene: No começo eu fazia sozinho, mas depois vieram outras pessoas me ajudar, outras crianças, pessoas da comunidade. 5. Como é tua família, você mora com quem? Rene: Eu moro com minha mãe, meu pai faleceu. Tenho dois irmãos, um menino e uma menina menores. Moro também com minha avó. 6. Sempre morou e estudou aqui? Em qual escola você estava quando fundou o jornal? Rene: Sim. Eu tava na escola pública, depois fui pra escola particular, fiquei três anos, depois voltei pra escola pública. Quando eu fundei o jornal, eu estudava na Escola Municipal Alcides de Gaspari, aqui da região. Por conta do jornal, ganhei uma bolsa na escola particular. Aí fiquei esses três anos. 7. Por que voltou para a escola pública? Rene: Porque terminei o ensino fundamental e lá não tinha ensino médio. 8. Quando você começou a ter acesso à internet? Rene: Foi nessa ápoca mesmo, por volta de 2005. Quando comecei o jornal, comecei a mexer com internet. Mas não com redes sociais, eu mexia muito no Google, pra pesquisar sobre coisas que eu iria publicar. Usava mesmo pra fazer o jornal. 9. Como você tinha acesso à internet, em lan house ou tinha em casa?

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Rene: Em lan house e na escola. Na escola tinha aula de informática, com mais de 50 computadores. 10. Na escola pública? Rene: Ahã. (sim) 11. Talvez por isso você tenha começado tão cedo? Por ter acesso na escola? Rene: Sim, tinha salas muito grandes, a sala de informática, sala de leitura, biblioteca gigante. 12. Tem alguém que te incentivou, que te inspirou? Rene: Não. O que me incentivou mesmo foi ver aqueles problemas sociais mesmo. 13. Você foi movido pela necessidade, é isso? René: É isso. Eu me inspirei na verdade no jornal da escola, porque eu participava do jornal escolar. Tinha jornal e rádio, mantidos pelo grêmio, e aí eu fazia parte.

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APÊNDICE B

Transcrição de entrevista com René Silva – Realizada em 08/07/2013 Concedida na antiga sede do Voz da Comunidade, na Rua Joaquim de Queiroz, na Grota, Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.

1 Como surgiu a ideia de usar as redes sociais, na época, especificamente, o Twitter, para registrar o que se passava durante a ocupação do Complexo do Alemão? Rene: Eu estava no Twitter conversando com meus amigos, como fazia normalmente. E as pessoas começaram a perguntar: “ah, como estão as coisas aí, estou vendo a invasão pela TV”... Eu ia informando: “olha agora tá tranquilo, agora passou um helicóptero, aí pararam um ônibus”, ia informando e respondendo a eles. Desde o instante em que eu comecei a responder a eles, o número de meus seguidores foi aumentando. Eu tinha cerca de 800 pessoas que me seguiam, amigos da escola, dessas 800, em menos de meia hora, esse número saltou pra uns 5 mil. Meio inacreditável. Fui procurar saber o que tinha acontecido e vi que várias pessoas famosas, como a Preta Gil, Luciano Huck, a Regina Casé, o William Bonner, todos eles estavam assistindo televisão, acompanhando a invasão e comentando. Esses meus amigos começaram a mandar mensagem pra essas pessoas famosas, dizendo “segue esse menino, ele tá vendo tudo, ele mora lá no morro”. Nem foi culpa minha... E realmente eles começaram a me seguir, a Glória Perez, Regina Casé, Preta Gil, um monte de gente. Quando começaram a perguntar diretamente pra mim, eles têm milhares de seguidores, esses seguidores também começaram a me seguir e perguntar e eu nem conseguia responder a todo mundo. Ao invés disso, percebi que deveria publicar no meu perfil. “Olha, agora saiu tiro, agora aconteceu tal coisa”. As pessoas ficavam informadas, porque a televisão demorava mais a mostrar o que estava acontecendo, mesmo ao vivo. Eu me transformei em um correspondente da internet. 2. Eu acompanhei isso, passei a te seguir nesse dia, exatamente como você descreveu. O interessante é que, em comparação à cobertura da TV, as suas informações eram mais diretas, objetivas, sem juízo de valor, e importantes. E muito rápidas. Quer dizer, você está dizendo que foi totalmente espontâneo. Você nunca imaginou, então, que iria conseguir essa repercussão ao utilizar o Twitter? Rene: Não, não imaginava. E não usava muito o Twitter, era mais com o pessoal da escola e da rua, por brincadeira. 3. Então, a partir daí muda o tipo de comunicação que você faz. Uma coisa é conversar com os teus amigos, brincar. Outra é falar para um monte de gente que você nem conhece. Como sentiu isso? Rene: Mudou muito. Principalmente pras pessoas se adaptarem ao que eu escrevia antes e o que passei a fazer depois. Muita gente parou de me seguir depois da invasão, porque antes eu sempre publicava “e aí, galera, eu tô indo pra tal lugar, vocês tão indo pra onde?”. Publicava sobre as coisas que estavam acontecendo na comunidade e sobre mim também, tipo “estou indo pro shopping”. Tem gente que falava, ah, mas eu te segui pra você falar do Alemão, da comunidade. Eu dizia, se você quer saber da comunidade pára de me seguir e segue o Voz da Comunidade e um monte de gente fez isso. Tudo bem, eu agradeço, porque pararam de encher o saco. Acharam que eu só ia falar da polícia e do tráfico e não era nada disso. Tive que me adaptar, comecei a publicar menos coisas, coisas mais relevantes, não as bobeiras que eu publicava antes.

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Fico falando bobeira mesmo mais de madrugada, que tem menos pessoas online, mais os meus amigos mesmo. 4. E o Facebook, como você começou e quais diferenças você percebe? Rene: Comecei em setembro de 2011, um ano depois. Comecei a usar pra ter mais público, mais gente da comunidade. Porque o Twitter tem mais gente de fora acompanhando, porque muita gente daqui usa o Facebook, que é mais popular, semelhante ao Orkut, que muita gente já usava. Agora, o Twitter não é tão popular. É um pouco mais complicado, mais dinâmico. 5. Você acha que pra publicar no Twitter você acaba pensando mais do que no Facebook? Rene: Não, tenho que pensar bem nos dois. Porque no meu Facebook eu tenho 9 mil pessoas seguindo, e tenho mais 5 mil amigos. Então, eu convivo com muita gente, 14 mil no Facebook e mais 50 mil no Twitter. Tem que pensar no que vai falar. Acho muito interessante porque aqui na comunidade existe uma diversidade muito grande, de comida, de música. Você vai andando por aqui e ouve uma música, depois outra, sente cheiro de feijão, arroz, vou publicando isso, essas curiosidades e as pessoas gostam, não é o ambiente delas, é diferente. Elas se sentem mais em casa, dizem “pô, eu posso morar na favela, já sei de tudo, acompanho tudo que você posta, já sei o nome dos becos, do teleférico”. 6. Você acha que cumpre um determinado papel, talvez o de aproximar o morro do asfalto? Rene: Penso que sim, não só por conta disso, mas por conta das ações que a gente desenvolve aqui no Alemão. Eu acho uma coisa muito importante, quando a invasão acabou, dois dias depois, tínhamos 30 mil seguidores no Twitter, no Voz da Comunidade. Hoje, nós temos 120 mil pessoas seguindo, 4 vezes mais, dois anos depois. Mesmo depois disso tudo que aconteceu, as pessoas continuam se interessando e acompanhando o que se passa aqui. São 120 mil pessoas do mundo todo que acompanham diariamente o cotidiano da comunidade. Acho isso muito importante. 7. Você diz que mudou a forma de se comunicar, depois da chegada de todo esse público. Acha que perdeu um pouco da espontaneidade? Rene: Eu não perdi a espontaneidade, porque hoje, passado um tempo, as pessoas já se acostumaram. E eu publico coisas relevantes, mas também coisas engraçadas, é um ambiente que a gente acaba falando muito. No Facebook, você pode fazer 5 publicações por dia e já é muito, mas o Twitter não. Se você fizer 100, ainda não é muito. Porque a circulação é muito rápida, dinâmica. No Face, não é assim. 8. E a responsabilidade, como ficou? Por exemplo, com as manifestações recentes de junho, eu percebi que muitas pessoas cobraram um posicionamento seu. Como é durante esses pontos críticos, uma coisa que está acontecendo e você acaba sendo um cara importante, porque tem um grande público, é uma referência, e as pessoas exigem uma posição sobre algo que, talvez, você ainda não saiba como se posicionar? Rene: O que aconteceu no Facebook, principalmente, é que eu fiquei uns dois dias sem publicar, justamente quando estavam acontecendo as manifestações. E aí, quando eu voltei, publiquei no Twitter e cheguei no Facebook e publiquei “bom dia!”. Todo mundo entrou e respondeu: “bom dia o que?? você não publicou nada dos protestos”. Aí eu comecei a publicar dos protestos, das manifestações espontâneas, e as pessoas

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começaram a compreender. Mas todo mundo acha que você tem que publicar o tempo todo, saber de tudo, mas nem sempre é assim. É uma pressão muito grande. O Complexo do Alemão é muito grande, às vezes acontece uma coisa e eu não estou sabendo e as pessoas cobram, porque saiu até na grande imprensa... Não tenho como saber de tudo na comunidade. Tem também o Twitter, o Face do meu jornal, do Voz da Comunidade, é muita coisa, nem sempre dá pra acompanhar tudo. 9. Você cuida dessas publicações da Voz da Comunidade ou tem mais pessoas que te ajudam? René: Hoje tem 8 pessoas fixas que contribuem e mais 20 pessoas que não são fixas. 10. Eu lembro que você publicou outro dia pedindo pras pessoas da comunidade mandarem fotos, notícias. Você recebe retorno disso? Rene: Sim, a gente recebeu muito retorno. Gente que mandou endereço de locais onde estavam acontecendo problemas, publicamos. Isso é muito importante, esse contato que a gente tem com a comunidade. Isso é o tipo de coisa que é mais fácil publicar no Facebook. No Twitter, a gente publica a questão em si ou a solução, não o pedido de participação. 11. Uma coisa que a gente percebe vindo aqui é que a lógica espacial do morro é muito parecida com a das redes. Há a horizontalidade, uma coisa que se espalha sem muita hierarquia. Você já leu ou pensou sobre isso? Rene: É verdade. Se alguma coisa acontece aqui, um conta pro outro e poucos minutos depois todo mundo está sabendo. A rede é a mesma coisa. Você publica uma coisa, o cara acha interessante e retuíta e assim vai. 12. Como sua família reagiu a tudo que aconteceu com você? Sua mãe ficou preocupada? Rene: Eles ficaram muito preocupados. Porque a gente não sabia se a polícia ia ficar mesmo dentro da comunidade e o que ia acontecer. A família, os amigos, falavam “cuidado com o que você vai publicar, não publica nada falando da polícia ou dos bandidos”. 13. Rolou algum tipo de ciúme entre os amigos porque você ficou famoso? Rene: Não, ninguém liga muito pra isso aqui não, acho que é porque eu também não ligo. 14. Você já percebeu algum tipo de distorção de coisas que você publicou ou disse e que foram repercutidas pela imprensa? Rene: Olha, isso já aconteceu muito. Na época da invasão da polícia, a gente queria informar os moradores sobre o que estava acontecendo e alguns jornais diziam que a gente estava querendo denunciar a polícia ou os traficantes, distorciam e colocavam coisas que a gente não tinha dito. Um pouco complicado a situação da imprensa, da grande mídia. Mas graças a Deus isso passou e todo mundo entendeu o que a gente queria. 15. Você acha que é importante ter esses canais digitais hoje, afinal faz pouco tempo que as pessoas têm acesso às redes, à própria internet, você acha que isso é importante pras pessoas terem acesso a diferentes visões de mundo?

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Rene: Acredito que sim. Muita gente mudou a visão sobre a comunidade depois dessa época da invasão da polícia. Perceberam que tem pessoas legais, que fazem coisas importantes. 16. Como foi o convite pra participar da novela? Foi a Glória Perez, não foi? Rene: Então, a Glória Perez não convidou, na verdade ela publicou no Twitter. Falou primeiro que ia fazer a novela e que se passava no Alemão e que teria personagens inspirados na Voz da Comunidade. Ela nem chegou a convidar, já publicou. Muita gente pergunta: ela ligou, mandou convite? Não, ela publicou e aí já foi. 17. Mas você gostou ou ficou com medo? Rene: Achei diferente mesmo. Nunca imaginei que isso fosse acontecer. Uma novela das 8, que todo mundo assiste, que eu também assisto... E me ver ali, achava até diferente, sempre vendo novela e depois tu se ver na novela. Era uma repercussão muito grande. Quando eu andava, no ônibus, metrô, todo lugar, todo mundo percebia. 18. E você gostou do resultado, achou que foi bem retratado? Rene: Gostei, gostei. Achei que o Voz da Comunidade e a própria comunidade foram bem retratados, mostrou muitas das coisas que acontecem aqui. 19. A gente percebe que você foi jogado a transitar por diferentes linguagens, quase tudo de forma espontânea. Começou com um jornalzinho impresso artesanal, passou pra internet, pras redes e chegou a participar de uma novela, que é o produto carro-chefe da emissora com a maior audiência do Brasil. O que você percebe nessa passagem de uma linguagem para a outra? Rene: Foi importante essa passagem, porque trouxe mais gente para apoiar nosso projeto do Voz da Comunidade. Hoje, a gente tem as redes sociais e um portal de notícias. A gente deve voltar com uma edição impressa do jornal e tem uma revista. Eu gosto de me comunicar, gosto de tudo. Gosto de rádio, a gente vai fazer programas de rádio pra se comunicar com pessoas do mundo inteiro. Todo sábado, ao vivo. 20. Como te influenciam as pessoas à sua volta, sua família, amigos, professores, jornais e revistas? Como você forma a sua opinião, já que você se tornou um formador de opinião? Rene: Através das pessoas também, da comunidade. Vou a palestras, eventos, cada vez mais. Acho isso muito importante. 21. Você nunca recebeu nenhum tipo de ameaça ou retaliação? Rene: Nunca. 22. Nunca? Rene: Nunca. 23. Você acha um exagero a visão que as pessoas têm do morro, da violência, é uma visão que foi construída? Porque parece mesmo que estamos entrando numa zona de guerra quando chegamos aqui, todos recomendam cuidado e demonstram preocupação. René: É uma visão que a mídia formou pelo que vinha se passando nas favelas. Antes das UPPs nas comunidades ( 2008 foi a primeira UPP no Santa Marta), a grande mídia não entrava na favela a não ser pra mostrar tiroteio e morte. E sempre existiram ONGs aqui, creches, pessoas boas, do bem, que querem fazer alguma coisa pra transformar. E

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a sociedade e a mídia só viram isso depois que a polícia entrou na comunidade. Parecia que todo mundo na comunidade era traficante, todos os moradores, impossível isso. Essa visão começou a mudar. Tem gente que colabora com o Alemão e mora na Barra, zona sul, Realengo, São Gonçalo, Niterói, vários cantos do Rio de Janeiro. 24. Você acha que isso integra mais a cidade? René: Acho que as pessoas têm a curiosidade de saber como é dentro do morro. A grande mídia vem falando muitas coisas há muito tempo. As pessoas acompanharam sempre isso, acham que é só isso. Aí, de repente, começam a acompanhar uma pessoa que mora dentro da comunidade e fala “olha gente, que projeto maneiro de skate”. E todo mundo se espanta: “skate na favela?” Projeto de rap, funk, pagode. Puxa, tudo isso? Achava que só tinha tráfico... Puxa, então a mídia tá falando uma mentira. Ou melhor, tá falando só uma verdade, e as outras verdades? As pessoas começam a pensar nas outras possibilidades, o que tem na comunidade, será que é só o que eles falam mesmo? E dá aquela curiosidade e as pessoas querem ajudar, na ação da Páscoa, dia das crianças, natal. E as pessoas vêm das várias regiões do Rio de Janeiro. As pessoas da zona sul não queriam saber de vir na favela. 25. E agora elas vêm? Rene: Sim, até por conta do teleférico, vêm pra passear. Muitas das pessoas não são só turistas estrangeiros ou de outros locais do Brasil. Tem muito morador da zona sul, zona oeste, subúrbio, que têm curiosidade de andar aqui. Tem gente que vem todo fim de semana no barzinho, porque é mais barato, tem comida caseira. Interessante isso. 26. Você acha positivo esse fluxo de turismo para a comunidade? De que forma? Rene: Gera renda pra comunidade. De qualquer forma, esse turista que vem consome alguma coisa. Uma comida, uma água, um artesanato. Existem empreendedores aqui que largaram emprego pra montar seus próprios negócios. Tem um casal que montou um bistrô com cervejas internacionais, dentro do Complexo do Alemão. A mais cara é 250 reais. Muito cheio, todo final de semana. Muita gente do Complexo do Alemão frequenta, não só turistas. Esta marca que estou usando, esta blusa, é de uma marca aqui chamada Complexidade Urbana. Eles montaram uma fábrica dentro do Complexo do Alemão, empregaram 8 pessoas, costureiras, estampadores, tudo mais. O rapaz trabalhava numa empresa, saiu, comprou duas , três máquinas e hoje fornece pro Rio de Janeiro inteiro. Outro empreendedor grande montou um restaurante de comida italiana aqui dentro, Brasileto, que fica na Nova Brasil. Muito barato, macarrão de todos os tipos. Tem uma doceria. O rapaz trabalhava na cozinha de um hotel e percebia que no café da manhã faltava doces finos, só tinha pão, aquelas coisas prontas. Ele falou pro dono do hotel se ele compraria dele e o proprietário disse que sim. Ele saiu, pegou todo o dinheiro da indenização e investiu numa fábrica de doces finos, que trabalha 24 horas, a madrugada toda. Tem uma loja aqui dentro e outra fora. Eles fornecem pra hoteis do Rio de Janeiro inteiro. A empresa não tem nem um ano. Acho que a pacificação motivou muito essas coisas acontecerem. Hoje em dia já vi várias pessoas publicando, e me marcando, que compraram produtos daqui do Complexo do Alemão. Na zona sul, compraram uma camisa que veio daqui. Eles colocam no Facebook, no Twitter, olha comprei isso aqui, da sua comunidade. A produção aqui é muito grande, isso é muito importante pra gente. 27. Você é uma referência de todas essas histórias da comunidade, o que é muito bacana. Sobre a sua conectividade: existe algum momento em que você está desconectado?

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Rene: (mexendo no celular) Eu tô sempre conectado, o tempo todo. Eu não entro mais no computador, tudo eu faço pelo iphone ou pelo ipad. É a mobilidade, levo pra onde vou, tiro foto, respondo email, publico, a qualidade é boa, posso fazer vídeo. Então, tô sempre conectado. Até quando eu tô dormindo, eu tô conectado. Vejo quando chega mensagem, essas coisas. 28. Muita gente ainda fala em vida digital e vida extra-digital. Ou a vida online e offline. Pra você essa divisão não existe, não é? Rene: Não, eu acho que tudo que se fala no online e na vida é a mesma coisa. Principalmente pra mim, as pessoas me vêem na internet, depois me encontram na rua e a conversa continua. 29. O interessante é que você não se desconectou da rua. Está presente no seu espaço. Rene: É, eu consegui isso. Estar conectado e observar o que está acontecendo à minha volta. 30. Mas por que será que com você foi assim? Porque tem gente que não faz isso, que se desliga das pessoas em volta. Será que é por você morar aqui e ver tantas necessidades ou você nasceu assim mesmo? Rene: Eu sempre gostei de me comunicar e aprendi muito com o jornal. As redes sociais também. Já ajudei pessoas de várias localidades do Brasil e o Voz da Comunidade inspirou muitos outros projetos parecidos. Pessoas do Brasil todo, São Paulo, Salvador, Brasília, etc. 31. Você tem uma rede, que é a da Voz da Comunidade, e tem uma outra, que envolve todos esses outros projetos. Como é a relação com essa outra rede? Rene: É muito amigável. A gente conversa, troca informação, faz visita nas respectivas cidades. 32. Vocês conseguem agir em conjunto? Rene: Às vezes acontece, mas não é muito fácil não. Porque cada um tem uma agenda. 33. Quando você usa as redes sociais, hoje, você se expressa individualmente ou como parte de um grupo? René: Quando eu publico, hoje, as pessoas sabem que é a minha opinião e não da Voz da Comunidade. Porque, por trás do Voz da Comunidade tem várias pessoas trabalhando. Hoje, as pessoas conseguem entender isso. Meu Twitter, meu Facebook, sou eu falando. Eu tenho minha opinião e o jornal tem a dele. 34. E nem sempre é a mesma? René: Nem sempre é a mesma. No jornal tem a questão da imparcialidade e eu posso falar o que eu quero.

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APÊNDICE C

Entrevista com Isadora Faber – Florianópolis/SC - Concedida na casa da família Faber, localizada no bairro do Santinho, em 24/08/2013. 1. Antes de criar o Diário de Classe, você já usava o Facebook, já tinha interesse nas redes digitais? Eu já usava, tinha minha página pessoal. Decidi criar o Diário no Facebook porque já tinha fácil acesso, criar um blog ia dificultar um pouco. 2. Você acha que o Facebook era o melhor para o que você queria? Sim, muita gente conectada ao mesmo tempo. 3. Você se inspirou em alguém para criar o Diário de Classe? Eu me inspirei numa menina escocesa chamada Martha Payne, que tinha um blog. Ela reclamava das merendas das escolas britânicas, mobilizou a comunidade e conseguiu resultados. Por isso, me inspirei nela para reclamar e buscar resultados para minha escola. 4. Quando você foi montar a sua página, qual foi a sua ideia, qual era o objetivo? Na verdade, nunca pensei que tudo isso iria acontecer e meu objetivo era só mostrar os problemas, para algumas pessoas curtirem. 5. Que pessoas você esperava que fossem curtir? As pessoas, os amigos da minha escola, pois estão lá dentro, mas aconteceu o contrário. As pessoas de dentro da escola não curtiram e as pessoas fora da escola me apoiaram. 6. Por que você acha que essas pessoas mais próximas não te apoiaram? Eu acho que por medo, porque os professores não me apoiaram e os alunos acham que eles estão certos. Eles passavam nas turmas dizendo que não era para me apoiar e eles seguiram os professores. 7. Foi um movimento organizado pela escola, com muita gente contra a sua ação? Isso. Ano passado foi bem pior, por enquanto está melhor, a turma que me ameaçava saiu da escola, mas mesmo assim tem alunos que fazem cara feia e não gostam do que eu faço. 8. Quando você viu toda essa resistência, como se sentiu? Na internet me senti muito forte, muita gente me apoiando, mas dentro da escola me sentia sozinha porque meus amigos mais próximos ficavam com medo dos outros alunos e nem falavam comigo na hora do recreio por causa disso. 9. Você se sentiu isolada, sozinha no seu espaço? E na rede se sentiu amparada? Sim, porque quando eu chegava da escola olhava o Diário de Classe e via tanta gente me apoiando, me sentia mais feliz. 10. Você sentia que estava no caminho certo? Sim. 11. Não é estranho esse sentimento de estar sozinha, num espaço que você tinha

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tantas pessoas próximas (a sua escola, com os teus amigos) e, de repente, sentir-se apoiada num espaço de gente que você nem conhece direito? Foi bem estranho porque tem muito mais gente que me apoia do que me critica. 12. Sem dúvida. Mas você é uma menina muito nova, muito jovem, deve ser difícil lidar com isso no dia a dia. Como tirou forças para encarar a rotina, com as ameaças, coisas muito sérias, que você sofreu? Eu ficava com medo, mas ao mesmo tempo sabia que nada ia acontecer, porque eu sempre tive o apoio da minha família. Isso foi o principal para seguir, eles iam me buscar na escola, na delegacia. Se eles não tivessem feito isso, eu já teria parado com o Diário de Classe, devido às ameaças. 13. Você já teve que ir à delegacia? Por causa do boletim de ocorrência dos meus professores, da diretora, de alguns pais de alunos que se incomodavam demais com a situação. 14. Eles fizeram boletim de ocorrência, chegaram a formalizar isso contra você? Sim, eu tive que ir ao Ministério Publico, responder por causa de calúnia e difamação por causa do meu professor de português. 15. E o resultado disso? Não foi adiante, mas eu nunca esperava que isso viesse de dentro da escola. 16. Para você, o que foi primordial para continuar com esse trabalho, mesmo enfrentando ameaças? Foi realmente o apoio da sua família ou também teve o fato de perceber a importância do que você estava fazendo? Foram os dois, mas como minha família me apoiou muito, minha mãe disse que se eu quisesse desistir era direito meu e que dentro da escola muita gente não iria gostar de mim por causa disso. 17. Você já pensou sobre essa agressividade das pessoas, como surgiu isso? Houve uma questão de contrato com terceirizados, você já pensou sobre isso? É porque naquela época eu estava em cima do tema da pintura da quadra, estava virando até uma saga, ninguém acreditava na professora. A diretora já tinha pago o pintor, que não fez o serviço, as tintas já estavam vencendo e depois eu descobri que ele era pai de uma das alunas da escola e não pintou a quadra. 18. A ameaça na sua casa foi nessa época também? Foi sim, acho que foram alunos porque um dos pais comentou que jogaram pedras na casa, mas eram pequenas. 19. Como mudou o seu relacionamento com os grupos de pessoas? Você disse que mudou depois da repercussão da sua pagina no Facebook. Mudou em relação aos amigos? No início, eles tinham medo de falar comigo, mas hoje, dentro da sala de aula, é como se o Diário de Classe não existisse. Não comentam mais, as minhas amizades agora estão como antes. São meus amigos de sempre, só que antes eles tinham medo de vir até minha casa. 20. E mudou alguma coisa com a sua família? Em relação a minha família não mudou nada, sempre fomos unidos.

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21. Em relação aos professores? Eles fingem que o Diário de Classe não existe, que eu sou uma aluna normal. 22. Como você se sente? Eu ficaria mais feliz se eles me apoiassem, é o lugar onde eles trabalham, estou ajudando os professores e alunos. Mas é melhor assim do que mandar indiretas e fazer B.O. contra mim. 23. E os vizinhos? Na frente da minha casa mora uma professora da minha escola. Ela não gosta, mas também não fala nada. Por enquanto, o tratamento dos vizinhos está normal. 24. A adolescência não é uma fase fácil. Você gerou reações que acabaram em conflitos. Em algum momento pensou em desistir? Não, porque logo depois do Diário vieram as mudanças, outros diários, outros alunos denunciando. Eu servi de inspiração, como a Marta foi para mim e para outras pessoas, ganhei muita coisa com isso. Nunca pensei que não deveria ter feito. Minha escola está novinha hoje, se eu não tivesse feito isso, nada teria acontecido. 25. Você acha que as redes sociais vieram para ficar, é o espaço para as pessoas da sua idade, para a juventude se expressar? Para mim, as redes sociais são ferramentas de comunicação. Isso pode ser usado para o trabalho, escola, notícias, mas muitas vezes são utilizadas por pessoas que só compartilham piadas. Para mim é muito útil. Por exemplo, quando os professores faltam poderiam colocar a matéria na rede para os alunos. Mas na minha escola isso não acontece. É uma coisa boa para todo mundo, tem que saber usar. 26. Como você chegou ao formato do Diário de Classe: pesquisou ou foi só a inspiração da menina escocesa? Eu só criei a página e comecei a postar, não pesquisei nada. 27. Mesmo o modo de postar, de colocar as fotos? É tudo sem pensar, mais ou menos assim. 28. Você adotou como regra publicar fotos da merenda escolar todo dia? Sim, algumas nutricionistas começaram a pedir também para acompanhar, acho importante. 29. Esses dias você disse que chegou uma nutricionista nova na escola, monitorando toda as refeições, isso foi bom? Foram feitas algumas mudanças, estamos vendo. 30. Quando você viu a repercussão dos seus comentários no Facebook em jornais, revistas, televisão, o que pensou? Eu fiquei bem surpresa porque foi questão de um mês e minha casa já estava cheia de jornalistas. Logo no início não falava muita coisa, depois fui me acostumando a falar um pouco mais. Minha mãe me ajudava com isso, porque trabalhava com produção de vídeo e já sabia mais das coisas, ao mesmo tempo foi legal também. 31. Mas e o fato de ver aquilo que você estava pensando, expressando, ganhar essa

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dimensão? De repente, algo que você postou num dia, no dia seguinte estava sendo comentado pelo maior jornal de Florianópolis. Que sensação te dava? Eu fiquei com orgulho do que eu tinha feito, mas não sei como explicar. Não ficava vendo muito as minhas entrevistas. 32. O pouco das entrevistas que você viu, eles divulgaram da maneira correta? Você concordou ou distorceram uma ou outra informação, de alguma maneira? Até o momento não tenho o que reclamar. Todos os programas de entrevistas que eu fui, sempre entenderam a postura dos meus professores, pelo menos os jornalistas que vieram aqui foi tudo muito positivo para mim. 33. O tema educação sempre foi importante e há muito tempo essa é uma área em que o Brasil é deficiente. Mas não se falava tanto nisso. Hoje, parece que todo mundo se importa. Você acha que de alguma forma ajudou a denunciar essa situação? Ou você fez parte do processo, as pessoas já estavam vendo a importância da educação e você veio junto com isso? Qual sua opinião? Olha, pelas mensagens que eu recebo, dizendo “nossa, Isadora, depois do que você fez, voltei a estudar e vi que a educação precisa de ajuda, agora vou prestar mais atenção nas escolas”, acho que de uma maneira ou outra despertei o olhar dos alunos. Também me mandam mensagens dizendo “minha escola tem problema na quadra, está faltando bebedouro, me ajuda com isso”. E, por conta de tantos pedidos de ajuda, estou criando uma ONG, para poder ajudar realmente outras escolas, fazer a diferença como consegui com a minha. 34. Explica um pouco o projeto da ONG. Resolvi criar uma ONG, porque por dia recebo de 8 a 10 mil mensagens pedindo ajuda e toda essa mudança que eu consegui, quero passar para outras escolas. Quero ajudar de alguma forma e, se possível, falar um pouco de cidadania nas escolas públicas. É um assunto pouco discutido, falar de cursos profissionalizantes, tem bastante coisa que podemos oferecer. 35. Vocês já criaram a ONG? Como vai chamar? Já está quase pronta, estamos finalizando o site, a ONG vai chamar Isadora Faber. 36. Você vai compartilhar a sua experiência, a sua história, tudo que você viveu com a sua escola? Sim, vai ser isso. 37. Você foi citada pelo Financial Times como um dos 25 brasileiros que devem ser observados pelos próximos anos. Como você se sentiu ao ser citada por um jornal inglês, do outro lado do mundo? Como essa informação chegou até você? Eu vi no Diário de Classe, minha mãe me explicou que era um jornal bem grande. Eu fiquei feliz, é bem importante para mim. Soube por acaso, me mandaram o link. 38. Com toda essa repercussão e esses reconhecimentos, de alguma maneira você mudou a forma de escrever? Eu acho que me fez mudar, sim. Agora presto mais atenção, mostro para meus pais verificarem antes da postagem, me sinto responsável. Estou melhorando, porque na minha página tem 624 mil seguidores, mas de visualização é mais de um milhão, então penso bem antes de postar. Mudou o conteúdo também, antes postava só da minha escola e hoje tenho opinião sobre educação, agora publico de outras escolas, outros

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problemas também. 39. Você falou da avaliação automática em um post, disse que deveria ser revisto pela Secretaria da Educação. O número de compartilhamentos e comentários foi enorme. Você já pensou na importância de estar envolvida numa mudança como essa? Eu já pensei, mas meus pais sabem melhor a dimensão disso tudo. 40. Pelo que você está falando, a sua postura é mais de falar o que pensa, mostrar as coisas que estão erradas e não se importar com o que está se passando em volta. Você se protege dessa forma? Eu sempre penso nas pessoas também, sobre o assunto que vou falar, como vão interpretar. Leio os comentários, os compartilhamentos. Essa questão do Diário ter alcançado o outro lado do mundo, aí são meus pais que observam mais. 41. Quanto tempo do seu dia você dedica ao Diário? Normalmente posto no final da tarde, porque às vezes faço curso, tenho aula, tenho trabalho, escrevo livro, minha vida é bem cheia de coisas, não tenho um tempo exato. 42. Você está escrevendo um livro? Alguém te ajuda? Estou escrevendo sozinha, peço para o meu pai ver, mando para a editora dar uma olhada também. 43. Sobra tempo para você passear, se divertir? Às vezes saio com meus amigos para algum lugar no fim de semana, mas na semana é bem cheio mesmo. 44. Você está escrevendo um livro agora. Qual a diferença entre escrever um livro, escrever no Facebook, escrever uma redação na sua escola...Você gosta de escrever? Eu gosto, mas prefiro escrever na internet, acho mais fácil pra mim, prefiro escrever do que falar, me expresso melhor escrevendo. No livro, escrevo do meu jeito, mas tenho um suporte. Estou bem tranquila, o livro conta mais os bastidores do Diário de Classe, como era a minha vida antes. É um apoio para os meus curtidores também. No Diário, conto o que está acontecendo com a educação no dia a dia. 45. Quando escreve, você sente que representa um grupo? Por exemplo, os alunos da sua escola, ou os jovens do Brasil que estudam no ensino público, ou é simplesmente a Isadora Faber? Depende do que estou escrevendo. Eu, como aluna, estudante de escola pública, sei muito bem o que acontece lá dentro, então represento esses alunos que não conseguem falar. Eu publico por eles também, sempre penso que estou representando parte dos alunos. 46. Queria falar de um acontecimento recente, um vídeo que foi produzido para responder a uma indagação que você fez para um senador da República. O que você pensou quando viu o vídeo? Eu estava publicando, olhei para o lado e vi o vídeo que ele publicou. Eu não sabia o que fazer, falando meu nome, pedindo para compartilhar. Isso mostra o tamanho do Diário de Classe, não é qualquer perfil que recebe uma resposta em vídeo de um senador da República.

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47. Como são as viagens, as experiências que você acumula pelo Brasil? Eu nem saía daqui de Florianópolis direito. Às vezes ia para Curitiba, na casa dos meus tios, e às vezes ia para Pelotas, minha irmã morava lá. Depois comecei a ir para Pernambuco, Ilhéus, Rio de Janeiro, São Paulo. Nossa, eu fiquei muito feliz, porque acabava conhecendo outros lugares que talvez não conhecesse, não esperava tantas viagens. 48. É muito cansativo? Eu gosto, minha mãe chega cansada em casa, não gosta de aeroporto. 49. É legal falar com pessoas de lugares diferentes, por exemplo de Pernambuco, de São Paulo? Interessante, porque principalmente São Paulo tem muita gente que me reconhece e me apóia, diferente de Florianópolis. Aqui ninguém me reconhece, fala nada, para mim é muito estranho ser reconhecida em outras cidades. 50. No futuro você pensa em ser jornalista? Eu penso sim, mas no futuro não sei se vou mudar de idéia. 51. E por que você quer ser jornalista? Eu já pensava nisso, depois acompanhando o trabalho deles bem de perto é uma maneira de seguir passando recados, notícias, informando as pessoas, quero sempre estar nesse meio de mostrar as coisas, passar informação e escrever.

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APÊNDICE D Entrevista com Mel Faber, mãe de Isadora Faber, realizada na mesma ocasião. 1. Quantas pessoas são na família? Somos seis: eu, o pai, Isadora, Eduarda, de 17 anos, e a filha mais velha, de 25, já formada em engenharia, casada, trabalha, já é dona do próprio nariz, e a avó, que é minha mãe. 2. De onde você acha que surgiu o interesse da Isadora em escrever e atuar dessa forma? Eu sempre digo que as personalidades são mostradas desde bebês. Depois que criei as minhas filhas, percebi que as gurias têm as mesmas reações de quando eram pequenas. Por exemplo, a Ingrid, a mais velha, as pessoas brincavam com ela no carrinho e ela não esboçava reação, ficava na dela. Já a Eduarda, do meio, as pessoas davam risada e ela já dava os braços, ria. A Isadora sempre foi muito tímida e ela não aceitava perder em um jogo, por exemplo. Ela não aceita não saber. Isso foi uma briga que sempre tivemos, desde pequena, porque você não nasce sabendo, tudo você tem que aprender. Mas, em contrapartida, ela sempre foi uma criança preocupada com os outros. Um dia, os garotos do caminhão do lixo pediram água e levei pra eles lá fora. A partir daquele dia, e ela tinha três anos, tomou pra ela a responsabilidade de dar água para os lixeiros. Toda noite ela colocava um PVC com água na geladeira e ficava assistindo TV de manhã e quando ela escutava o caminhão subindo, pegava água e corria para o portão, todo santo dia. Era verão e diziam: gurizinha, você é um anjo com essa garrafa de água gelada aqui em cima. Chegou no natal eles deram uma bonequinha para ela e ela ficou numa felicidade, andava com a boneca pra cima e pra baixo. Então, desde muito pequena ela quis fazer alguma coisa e viu a recompensa, porque aquela boneca teve uma importância enorme, isso é muito dela. Apesar de ser tímida para falar, se comunicar, ela usa o escrever. Teve um jornalista que fez a capa e disse “a menina de poucas palavras e dedos afiados”. Ele a definiu, é bem isso mesmo. 3. Na verdade, ela usa a escrita para se expressar? Sim, quando ela quis fazer o Diário, eu disse para ela que isso pode sair do virtual e vir para o real. Eu te pergunto: tu vais enfrentar? Não sei o que pode acontecer. Alertei e ela disse que ia enfrentar e eu disse vou te apoiar. Ela tem um senso de responsabilidade muito grande, é bem disciplinada, não admite se atrasar, ela viaja, mas não gosta de faltar à aula. Ela precisa que as coisas se acomodem de maneira a perder o mínimo possível de aula. Ela é muito responsável, quando perde aula vai atrás do colega pegar a matéria. 4. Como foi a sua reação quando descobriu que a Isadora queria criar a página? Aconteceu o seguinte. A Eduarda estudava na mesma escola da Isadora, mas na 8ª serie conseguimos uma bolsa numa escola particular, muito boa, que exige muito, fica aqui em Florianópolis. Nisso, a Isadora começou a criar parâmetros: por que a escola da Eduarda funciona assim e por que a minha não, por que o banheiro da minha escola está todo quebrado e o da Duda não está? Começou a fazer questionamentos, se desinteressar pela escola dela. Estava conversando com uma amiga aqui e disseram isso acontece isso porque a nossa é de graça. Eu disse: opa, não, vou explicar uma coisa para vocês. Tudo que vocês consomem tem imposto embutido do governo, que se reverte na escola, no posto de saúde, nada é de graça! Pelo contrário, o pirulito que vocês compram no mercado tem imposto e vai para o governo reverter na manutenção da

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escola, área da saúde, todo mundo paga. Aí a ficha caiu! A minha filha mais velha é engenheira de computação, fica na internet, sabe tudo o que está rolando na internet, informática, ela contou o caso da menina escocesa que fez o blog e conseguiu reverter as coisas na escola dela. Ela reclamava da merenda que era pouca, chegava da escola com muita fome em casa, ela mobilizou a comunidade com o blog e conseguiu resultados, por que você não faz um blog? A Isadora disse: a minha escola tem muito mais que a merenda para reclamar, mas não sei fazer um blog, mas sei fazer uma página no Facebook, então eu vou fazer. E como ela é muito quieta, na dela, nem se ouve a Isadora em casa, diferente da Eduarda, que está sempre fazendo algum barulho, não pára de falar. Um dia a Isadora disse: mãe, você já curtiu a minha página? Eu já fiz a página da escola, tenho 80 curtidores. Eu fui olhar e vi que esses curtidores já discutiam educação. Ali já tinha algumas professoras da escola se manifestando contra. Chamaram-me na escola, a coordenadora me ligou, dizendo que a Isadora estava cometendo crime, que nós, como pais, poderíamos ser presos. Eu disse: mas o que está acontecendo, ela roubou, matou, está ameaçando alguém? Não, ela está colocando fotos da escola na internet, isso é crime. Minha amiga, está havendo uma contradição, já vou te dizer que não vou aí para conversar. E ela: a Isadora tem que tirar essa página do ar. E eu: isso eu vou perguntar para ela se ela quer, porque a escola é pública, se alguém quiser saber das contas, como cidadão, a escola tem que apresentar toda a documentação. E quanto ao direito de imagem, não se preocupa, porque eu trabalho com produção de vídeo, conheço a legislação, então acho que só vamos perder tempo e não fui mesmo. 5. Você percebeu que a reação viria intensa mesmo? Sim, conversei com ela e disse que não iria tirar a página do ar. Nesse começo a Isadora tinha feito junto com uma amiga. Nessa situação fui chamada e a mãe da menina também foi. Na hora, ela mandou a menina sair da página e a Isadora foi e escreveu: “Eu, Isadora Faber, 13 anos, estou fazendo esta página sozinha”. Voltei à minha adolescência: eu, Cristiane F, 13 anos kkk 6. Em momento nenhum a família foi contra? Não teve divergência entre vocês? Sempre concordaram? Sempre, aconteceu tudo muito de repente, nossa, é entrevista ali, aqui, até onde isso vai? Vai ser 15 minutos de fama, pode ser, possivelmente era o que imaginava, isso vai ser um boom agora e depois vai cair no esquecimento. A minha filha mais velha disse que a Isadora não deveria dar entrevistas, mas a Isadora abriu a caixa preta. Porque quando a imprensa vai visitar uma escola tem que avisar, a maquiagem é feita, e a Isadora lá dentro, com um mísero celular, fotografou tudo e expôs. Agora, fala o Secretário de Educação, a diretora, e ela não fala? Como faz uma coisa dessa e se esconde? Não tem como, ela tem que entender que tudo que se faz tem um preço. Já cresceu aprendendo isso, nunca viveu num castelo da Cinderela, protegendo daqui, dali. Eu sempre fui muito clara com a realidade das coisas e todas as escolhas que você fizer vai ter um preço. Algumas podem trazer muitos benefícios, enquanto outras ,muitos prejuízos. Tem que assumir o que faz, mas ela nunca teve problema com isso, em dizer não quero mais. 7. Ela, aparentemente, não tem ilusão nenhuma, lida bem com a realidade... Ela não tem problema em lidar com a realidade. A secretária de Educação chamou logo que explodiu, fez a parte dela, social, disse que ela foi uma ouvidora, deu alguns livros de presente. Mas, também, foi uma ouvidora e nunca mais. Essa senhora, que era a

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Secretária de Educação neste exercício, me disse: poupa ela das críticas, as críticas negativas que escrevem sobre ela, que a maioria vem de dentro da escola, na época. Eu disse: não, professora, não vou poupar minha filha em momento algum. Ela lê tudo que é postado no Diário de Classe e responde. Chegou a se chocar com o que uma professora escreveu, perguntando: onde está aquela menina inteligente, de sorriso tímido e que frequentava a biblioteca, que agora escolheu caminhos obscuros que só trazem tristezas? Disse coisas horrorosas. Eu disse: não, ela sabe tudo sobre o que escrevem sobre ela, tem gente que não gosta e tem quem apóia. Tem que conviver com a realidade, o mundo não é só flores. Ela foi para delegacia e todos os lugares que precisou ir. 8. Vocês tiveram que ir para delegacia, enfrentar toda a burocracia de B.O? Fala um pouco sobre isso. Essa parte foi uma sucessão de B.Os, erros, teve um dia que eu respondi três e meu marido 5. Ela foi, porque foi intimada. O delegado cometeu um erro, a corregedoria deu puxão de orelha nele, porque a delegacia daqui é comum, ele não pode registrar B.O. de menor aqui. Ele aceitou o registro contra Isadora e ainda por cima intimou a própria. Tinha que intimar os pais, em momento nenhum nos intimaram. Eu digo: Isadora, você vai ter que ir à delegacia, te prepara, porque você pode ver coisas desagradáveis, não faz parte da nossa rotina. Não vai ser maltratada mas... Ela me perguntou: mãe, eu sou bandida? Não, Isadora, e quando ela chegou, disse: mãe, fui muito bem recebida na delegacia. O delegado até brincou: Isadora, quem sabe você faz diário aqui da delegacia. Virou charge né, o Mauricio Ricardo fez a charge da delegacia. No Ministério Público, ela respondeu como ato infracional. Poxa, é complicado, esse ato é para menor que rouba, vende droga, homicídio. Antes dela chegar, o menino saiu de lá algemado. Por injúria, por causa da professora de português. A professora mudou o contexto da aula de português e resolveu discutir política da internet. No final, disse que quem usa a internet para postar foto de escola e coisas que não deve é imoral e antiético. A Isadora tomou pra ela e publicou. A defesa dela é publicar o que aconteceu, muitas vezes ela chegava da escola triste. Como é muito fechada, nós já conhecemos, ela almoçava e ia para o Diário e tinha gás. Se fortalecia nas mensagens do Diário, postava o que acontecia no dia. Mas, no caso dessa professora, ela não citou nomes e mesmo assim a professora prestou queixa. 9. Mel, vocês passaram por todos esses constrangimentos, essa mudança na rotina da família, vocês nunca falaram pra Isadora parar porque estava fora de controle? Não, isso nunca aconteceu. Sempre apoiamos, até porque teve uma continuidade, não foram 15 minutos de fama. Começaram a surgir as palestras, uma coisa muito boa, muito positiva para ela. As pessoas me criticam: você deixa ela faltar aula para ir num evento. Eu acho que o evento é inúmeras vezes maior que um dia que ela perdeu em sala de aula e depois vai recuperar. Ela já palestrou sobre o difícil uso da cidadania no Ministério Público da Bahia, palestrou para publicitários em Sâo Paulo sobre como e difícil lidar com críticas, enfim, cada situação é uma situação diferente. Palestrou sobre o uso da tecnologia no Campus Party e, outro dia estava organizando, já tem 12 palestras realizadas. 10. E os reconhecimentos que ela ganhou? No primeiro momento ela teve o reconhecimento do Gilberto Dimenstein. Ele tem uma ONG, o Projeto Aprendiz, que estava fazendo 15 anos, iriam homenagear algumas pessoas. Ele ligou para a Isadora, mandou um laptop de presente, disse que queria dar uma ferramenta de trabalho. Ele escreveu umas crônicas muito legais para ela, a

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“Isadora Indelicada”, “Jornalismo e as crianças”. Depois, teve o da Globo que foi bem importante, o prêmio Faz Diferença, que foi no Copacabana Palace, estava a Gal Gosta, Joaquim Barbosa, foi em março deste ano. Tem o da Trip, que ainda vai receber, e também ela vai receber uma homenagem na Assembléia Legislativa de Santa Catarina. É um evento anual que cada deputado escolhe alguém para homenagear e um deles escolheu a Isadora para receber uma comenda. 11. Você imaginava, em algum momento, que isso tudo pudesse gerar essa repercussão? Nunca, foi um impacto muito grande, foi de repente. A Isadora, num domingo, estava em frente ao computador, deu um grito e disse: deram 1000 curtidas na minha página, vou fazer brigadeiro para comemorar! Nisso, saiu uma notinha no jornal catarinense que passou despercebido pelo pai dela que costuma ler jornal diariamente, mas não citava nomes, ele leu e não se deu conta que estava falando da Isadora. Dizia “menina conectada coloca no facebook fotos da escola”. Isso passou, mas na próxima segunda-feira, a Isadora foi para a escola, fui fazer um café , quando coloquei a chaleira no fogão vi que tinha duas meninas em cima do muro, com celular na mão com a foto da Isa. “É aqui que a Isadora mora? Somos do jornal Diário e queríamos conversar”. Era sobre a tal da página, ali começou e foi o dia inteiro, Diário Catarinense, a Veja, UOL, Terra, Correio Brasiliense, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, nossa, era 23h da noite e ela disse: estou cansada, sem voz, e desmaiou de cansaço. Não da tempo de você pensar, nunca tinha vivido isso, foi tudo muito rápido, de repente todo mundo tem o seu contato, é uma coisa que não tem como controlar. 12. Eu acho interessante que toda a família se engajou com a Isadora, na verdade vocês estão todos juntos... Todos envolvidos, até avó que levou a pedrada ,que estava menos envolvida, foi a mais atingida. 13. Vocês não mudaram nada, em questão de segurança, continuaram a tocar a vida normalmente? Não, só no ano passado que tivemos que levar e buscar a Isadora na escola, com medo de represálias no próprio local. Tinha uma menina que estudava na 8ª série ano passado, agora ela foi morar na Argentina, mas ela era muito amiga da Isadora, Só que, dentro da escola, ela teve que se afastar da Isadora porque tinha medo do que poderia acontecer. Teve uma coordenadora que entrou na sala dela e disse “vocês têm que fazer alguma coisa, a Isadora está acabando com o nosso trabalho, vocês, como menores de idade, podem bater nela”. E essa menina veio aqui conversar, foi uma situação desabafo: “tia, por que eu tenho que me esconder, esperar anoitecer para vir aqui para ver vocês, ficar com a Isa, eu não consigo aceitar isso.” E a coisa estava nesse ponto, não temos controle. O professor, nessa idade deles, queira ou não, tem muita influência em cima do aluno. Eles faziam a maior pressão nas turmas da 8ª serie, usando os que são maiores e vão causar medo, era essa a grande preocupação. Um dia, cheguei com ela na escola e chegou um garoto e disse “putinha de merda, você vai tirar essa página do ar agora”, isso tudo na minha frente. Aí você imagina o que pode acontecer, fica com medo, onde você mora já jogaram pedra, e o que de pior poderiam ter feito, tivemos que acompanhar muito de perto. Quando ela saía para fazer uma palestra chegava no Aeroporto de São Paulo e todo mundo conhecia ela, ficava super feliz. Teve uma situação no aeroporto, no embarque, um rapaz com um ipad na mão abriu a página do Diário e mostrava para ela, feliz, rindo, e depois olhava todo mundo com o ipad na mão, mostrando o rosto dela, ela ficou muito feliz com aquele jeito tão carinhoso...

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APÊNDICE E

Entrevista com Enderson Araújo - Salvador - 30/11/2012 1. Como você costuma se apresentar? Meu nome é Enderson Araújo, sou educador, estudante do Ensino Médio, nasci em Salvador, na comunidade de Sussuarana, por isso meu umbigo é enterrado aqui. Quando meus pais casaram, foram morar em Cajazeiras, uma comunidade que é o maior complexo habitacional da América Latina. Ficava indo e voltando entre Salvador e Sussuarana, mas chegou um certo momento que todas as minhas férias vinha para Sussuarana, na casa da minha avó, mas era por causa da comunidade que me puxava. Com 14 anos, fui morar com a minha avó, estudei e fiquei lá até os 17. Aí tive que voltar e ficar com a minha mãe. Por causa de algumas dificuldades que passamos desde pequenos, abandonei os estudos por dois anos para poder trabalhar e ajudar dentro de casa. Não abandonei os estudos porque quis, mas faltava muito, não conciliava os horários. Arrumei um emprego em Sussuarana, fui pra casa da minha avó, ela disse pra mim: você mora comigo, não tem gastos, e o dinheiro que você ganhar com o trabalho manda para sua mãe. Fiquei nesse trabalho até os 19 anos, depois fui fazer um estágio numa empresa de limpeza urbana. Eu tomava conta de um jardim, foi o momento da descoberta. Foi onde conheci o grupo de jovens da população das Nações Unidas na comunidade, porque tinha acabado de chegar. Estava vendo o movimento e que tinha um fotógrafo tirando foto de tudo. Perguntei pra ele: você está tirando foto de que? Ele me respondeu que era para um projeto, e eu, todo desinibido, falei de um lugar bacana na comunidade da minha avó, onde tem artesanato e você pode tirar umas fotos. Ele disse: vamos lá, quero conhecer, conversou com todo mundo, apresentei a comunidade toda, aí me inscrevi no projeto também. Na minha ficha de inscrição ele fez uma carta de recomendação dizendo: preciso desse jovem no projeto. Me bate até um arrepio, enfim, foi assim que tudo começou. 2. O que sua mãe e sua avó faziam? Conta um pouco da historia da sua família. Bom, minha mãe teve que abrir mão de muitos empregos, porque lá em Cajazeiras tinha um constante fluxo do tráfico de drogas. Ela, mãe solteira com duas crianças, ficava com receio de nos deixar sozinhos dentro de casa, tinha medo que aquilo iria nos influenciar. Por isso, abriu mão de várias propostas de emprego para estar ali, cuidando da gente, e tinha muita dificuldade, mas como líder da família, ela tinha que priorizar a gente. Sempre recebemos ajuda da minha avó, dos meus vizinhos e meu pai ajudou até certo tempo, depois parou. E assim minha mãe ficou com mais idade e acabou rejeitada pelo mercado de trabalho. Minha avó sempre na correria, vendia produtos cosméticos, tinha um terreno em outra comunidade e alugava as casas, tinha uma grana com isso, e tinha meu tio que trabalhava. Ele foi o nosso pai, ficou no lugar do que faltou pra gente, minha vida foi dessa forma. Minha avó fazia parte da associação das mulheres da comunidade, fazia interação, discutia política, era a linha de frente dos artesanatos, dava aula, às vezes tinha feiras e colocava os produtos à venda. 3. O que é comunicação para você? Comunicação para mim é tudo. É uma forma de promover a mudança social. Uma das metas do meu projeto Mídia Periférica é empoderar os jovens para que eles façam a sua própria comunicação, dentro das suas comunidades, porque isso é um direito humano. Se eles têm meios de fazer comunicação, como um blog, twitter, facebook, pelo celular... Com as redes sociais, todo mundo tem acesso a muitas informações. A

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comunicação chega mais fácil a todos, comunicar, falar, ouvir, podemos mostrar para as outras pessoas o que está acontecendo com o mundo. 4. E quando você usa as redes sociais, como é? Além do seu perfil pessoal, quem alimenta o perfil do Mídia Periférica? Quem alimenta a fanpage, o blog, sou eu e as meninas, temos uma estrutura de postagem, sou linha de frente, mas não decido os textos que vão para o blog. Primeiro, tem que passar pela mão da minha amiga, que tem o aprimoramento da língua portuguesa, para revisão de erros de português. Todos os textos passam pela mão dela e temos uma estrutura de postagem, uma foto e tantos caracteres, gostamos de ter uma identidade visual, de forma que o leitor visualize e veja na foto o que a mensagem quer passar e se encaixe dessa forma. No meu perfil pessoal, costumo dizer às pessoas que hoje o facebook é o seu currículo, então não pode postar qualquer besteira. Como ontem estava pensando no prêmio que eu ganhei, foi muito bacana para muitos, pode ser só status, mas quem vive o que sonha, como um dia eu sonhei lá atrás, e eu sonhei mudar minha realidade e consegui algo. Mostrar para minha comunidade que muitas vezes fui discriminado. Muitos diziam: ele deve ser traficante. Imagine eu chegar com um prêmio na comunidade, ver que venci. Ontem, estava postando coisas desse tipo. Então, o que é um pensamento meu, é postado no meu perfil, e o que é um pensamento do Mídia Periférica eu posto na fanpage. Eu diferencio o Twitter do Facebook, que é mais divulgação. O Twitter uso mais por uma questão de um canal de articulação, tipo para chegar na pessoa diretamente, tem que saber o que você quer e como usar a ferramenta. Atualmente, uso Facebook, o Twitter, o blog, o Linkedin, que são as mais populares, não estou familiarizado com outras redes. 5. Você acha que o formato desses dispositivos de comunicação, como o botão de curtir ou compartilhar, influenciam o que você está comunicando? Eu acho que sim, sou bem apegado ao Facebook. Não passo de 10 dias sem ser bloqueado, mando convite para todo mundo e depois, no dia seguinte, de repente bloqueia a conta por 30 dias. Não deveria ser assim, tinha que ser ilimitado, deixar as pessoas se conhecerem, as pessoas incomodadas com o convite é só ignorar, bloqueia a pessoa de avançar com mais pessoas. Agora, um ponto positivo do Facebook é marcar as pessoas na foto, divulgar a mensagem, tem a opção de marcar 47 pessoas, vamos fazer uma conta que cada uma dessas pessoas tem 100 amigos no perfil delas, você alcançou 4700 pessoas, imagine quantas pessoas alcançamos marcando fotos. No dia 8 de agosto, criamos a Mídia Periférica, onde poucas pessoas curtiram, pensamos que as pessoas não gostaram e de repente tivemos uma sacada: vamos criar uma campanha, colocar uma foto na capa da nossa comunidade, e vamos pedir para nossos amigos colocar também, para elevar a auto-estima e valorizar a nossa comunidade. E à noite a mente começa a pensar, realmente para alguma coisa virar notoriedade tem que virar noticia. Vou escrever alguma coisa aqui, postei no face, no blog, quando acordei tinha vários jornalistas de sites querendo fazer matéria e saber mais sobre a Mídia Periférica, aí nos reunimos e discutimos sobre a campanha. Tem que nos valorizar e vamos aproveitar o momento para alavancar. Hoje, temos 2130 poucas pessoas, em quatro meses, sites nos chamaram para entrevistas, saímos em dois jornais da comunidade, a TV local faz uma matéria com a gente, tem a maior audiência, deu uma alavancada. Escrevemos o projeto dos postais da periferia, vai ser um postal onde o turista vai ver e quero conhecer essa comunidade. A principal fonte de renda de Salvador é o turismo e quando o turista vai para a comunidade, vai deixar o dinheiro no comércio local para o artesão, a quituteira, o sorveteiro, então vai gerar renda para a comunidade e valorizar também. A mídia está dentro da comunidade, por causa da gente. Daqui a pouco o

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governo vai querer investir na comunidade Sussuarana e não vamos ganhar isso sozinhos, a comunidade vai ganhar num todo. Acho que, no final das contas, esses botões que você falou, de curtir ou compartilhar, nos ajudaram a fluir nas redes e alavancar. 6. As redes sociais digitais te ajudam a articular as pessoas que pensam e vivem histórias parecidas com a sua? Ajudam bastante, hoje fazemos parte de três redes: a rede Portal Correios, a rede de Comunicadores do Nordeste, tem um grupo secreto onde só nós temos acesso às informações, escrevemos uma pauta mandamos no email do editor e quando demora mandamos no Facebook . No grupo, tem um email para vocês, aí olha lá, porque as pessoas estão mais ligadas hoje nas redes do que no próprio email, compartilhamos sempre no portal para que as pessoas vejam. Eu tenho uma mania feia, por exemplo, fiz uma matéria e vejo todos os meus amigos online, abro inbox, escrevo: dá uma olhada na matéria e saio disparando, aí a galera ajuda também. Na rede dos jovens comunicadores usamos demais, escrevemos para a Viração, agora são quatro redes, antes a reunião de pauta era pelo MSN, agora é pelo Facebook, todo mundo conversa pelo chat do grupo, então usamos para fazer reunião de pauta. Agora tem também a rede Laureate, estamos nos estruturando, estou no inicio, me familiarizando, criamos um grupo de emails no gmail, mas conseguimos nos articular sim. É importante as redes sociais para articulação, por exemplo, fez uma matéria e postou, não tem como você conhecer outras pessoas. Aqui em São Paulo, eu fui no sarau do Alessandro Guzo, que é o fino, um rapper de SP que há 4 anos conversamos pelas redes sociais. Ele me disse que estava morando em BH e depois veio para cá, bateu nas minhas costas, eu não sabia, é muito bom conhecer pessoas, dá sim para articular com as pessoas que estão longe. Eu sou contra quem diz que as redes sociais deixam as pessoas distantes, acho que deixa mais perto do que afasta. Tem uma outra rede muito boa chamada whatsapp. É fantástica, está lá um amigo online, já fiz várias articulações pelas redes sociais, tanto de campanhas, ações. A primeira vez que vim para SP, a oportunidade veio através das redes sociais, queria vir pra cá mas estava sem grana, um amigo meu era amigo do cara que trabalhava na TAM e me disse que conseguia a passagem pela metade do preço, saiu por R$300,00! Aí saí pedindo para os amigos, dizendo que era um trabalho importante, e vim num evento de uma pessoa que conheci pelas redes, tudo aconteceu pelas redes sociais, através das articulações. 7. Você já sabe o que vai fazer depois do ensino médio? Eu sempre esqueço de pedir para não perguntar isso, porque não sei, é uma dúvida. Já pensei em fazer Psicologia, mas depois uma amiga disse: Enderson você é comunicador, tem que ser jornalista. Depois veio o Mídia Periférica, não quero ser jornalista, e hoje as pessoas falam: não tem jeito, você tem que ser jornalista. Eu digo: vocês tem que parar com a mania de mandar no futuro dos outros, não sei o que quero ser. 8. Você acha que, para comunicar, trabalhar com comunicação, não necessariamente precisa ser jornalista, não precisa ser um especialista? Comunicação é uma ferramenta, digo para os meus amigos que não estão no meio da comunicação. Sempre falo, se você trabalha em outro ramo, com a ajuda da comunicação fica mais viável alavancar seu negócio. Não precisa ser um comunicólogo, tem que começar a divulgar, postar pelo facebook, isso é comunicação. Você não precisa ser um comunicador, um especialista, um jornalista, eu nunca tive curso para mexer em blog, twitter, facebook, você tem que colocar na cabeça preciso disso e vai lá

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no Google, acha tudo. Quando eu estava promovendo o direito dos jovens começou as oficinas e tal, eu trabalhava e tinha atividades para fazer na parte da manhã. Meio que fingia que ia para o ponto, mas ia para a atividade, e ficava nessa e o pessoal falava, isso não é bacana, eu dizia eu quero, ninguém está me forçando. Resolvi que queria trabalhar com coisa melhor para mim, aprender coisas novas, não queria isso para minha vida, não dei baixa nem na minha carteira, não quero que um patrão mande em mim, eu quero ter algo que seja meu, ser um empreendedor, tinha isso na mente. Aí comecei a fazer um projeto e minha família dizia você vai perder muito lá na frente, projeto não dá dinheiro, não sustenta ninguém. Eu sempre estava nas atividades do projeto, foi aí que surgiu o Mídia Periférica, depois das oficinas de direito e comunicação e produção de áudio visual que o Mídia Étnica deu, no projeto do professor Paulo Roberto e da irmã Dolari, dos jornalistas. Foi aí que eu criei o facebook, o blog, o twitter, nem sabia mexer, comecei a ir na comunidade e ver a criançada jogando bola, moço jogando dominó e moça fazendo tricô. A comunidade é muito mais bonita do que a mídia mostra, comecei a postar os slides: minha comunidade é linda de se ver. Mostrei para alguns amigos e na reunião que fizemos decidimos que tinha que identificar melhor, estava muito solto. Surgiu a sugestão de nome Mídia Periférica, a galera gostou e tocamos pra frente. Em 2010, na loucura, escrevemos um texto achando que era um projeto, mostramos para os grupos culturais e nos ensinaram a estruturar, no começo é muita empolgação e depois acabou. Comecei a produzir conteúdo para o Mídia Periférica, o projeto acabou aqui em Brasília, mas continuamos aqui, quem estiver a fim de continuar. 9. Vocês conseguiram patrocínio em Brasília? Não. O Promovendo Direito de Jovens foi um projeto nosso. Passou uns meses, eu sem trabalhar, passando dificuldade, pensei vou largar isso aqui, mas depois pensei melhor vou me estruturar aqui e depois volto. Minha avó falando muito, eu saí com a minha mochila e peguei minhas roupas, meus livros e fui. Os vizinhos perguntando porque ia embora. Disse: vou dar orgulho para vocês lá na frente, não se preocupem. Fiquei uns dois dias na casa de minha mãe em Sussuarana, tinha um amigo que convidou a morar com ele, mas a casa não estava pronta. Aí peguei minhas coisas e fiquei lá, e minha namorada foi uma pessoa essencial porque comecei a trabalhar com um tio de meu pai como ajudante. Aí pegava essa grana e dava para minha sogra fazer a feira, ela fazia minha marmita, depois desse tempo aluguei uma casa e fui morar perto dela, pagava o aluguel com esse trabalho. Quando fui convidado pela Viração para ir para Brasília, em rede nacional, houve outras articulações também, as coisas foram ganhando corpo e o pessoal do governo disse que tinha um projeto para nove jovens do nordeste, para serem correspondentes. A gente vai encaixar você, disseram, vamos ter que mudar o projeto todo, mas achamos você importante para nossa construção. Os nove jovens só poderiam ser estudantes de faculdade de comunicação, mas eu não estava nesse contexto e até hoje não estou. Tiveram que mudar todo o projeto por isso. Hoje, estou na casa da minha mãe, tenho uma renda como correspondente, ganho também com as articulações das redes sociais do Mídia Periférica. A TV Bahia da Globo não vai na comunidade sem falar com a gente, você indica alguma coisa, fazemos meio que uma assessoria, uma consultoria. Faz um mês que resolvemos fazer uma coisa fixa, uma parceria de verdade, fazer uma troca dentro da comunidade. Hoje, quando vamos na TV Bahia, tem que agendar, a gente veio falar com o diretor de jornalismo, mandamos mensagem de texto, ele responde, é uma parada trocar informação sem formalidade.

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10. O papel social veio para dar um destaque que você não tinha antes? De que maneira você percebe isso? Quando as pessoas dos movimentos sociais procuram a gente e pedem: tem como vocês fazerem cobertura, postar, mandar via inbox? O que fazemos nas nossas redes ganha um alavanque, uma notoriedade. O termo que gostamos de usar é que somos formadores de opinião e o que postamos na Mídia Periférica, isso forma uma discussão através de fotos, vídeos, às vezes polêmicos, que acontecem na comunidade ou são inventados pelas pessoas. Claro que sempre vou investigar se aquilo é verdade ou mentira. 11. Você se sente um herói? Eu acho que não é herói a palavra, é referência. Os jovens podem chegar e dizer eu moro na Sussuarana e as pessoas vão reconhecer, é a comunidade do Enderson Massa, a comunidade do Mídia Periférica. E para mostrar para as pessoas que só falam “ah, aí só tem ladrão, traficante”, para mim foi uma força que me transformou. Lá na frente vou mostrar que um dia ele estava errado, e dizer que tem que rever seus conceitos.