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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Márcio Rached Millani
Direito à não autoincriminação.
Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Márcio Rached Millani
Direito à não autoincriminação.
Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Thiago Lopes Matsushita.
SÃO PAULO
2015
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof. Dr. André Ramos Tavares
PUC-SP
__________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Florêncio Filho
Universidade Prebisteriana Mackenzie
__________________________________________
Prof. Dr. Thiago Lopes Matsushita
Orientador – PUC-SP
Aos meus amores Flávia, Felipe e Mariana
RESUMO
MILLANI, Márcio Rached. Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial. 2015. 185 p. Dissertação (Mestrado em
Direito) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. Vários países adotam em suas Constituições ou em suas leis
infraconstitucionais o direito à não autoincriminação. Tal direito é também garantido
por vários tratados internacionais que se incorporaram às legislações internas dos
vários países, entre eles o Brasil. Pode-se observar que as redações adotadas pelos
países são similares e abrangem, de modo geral, o direito de o investigado ou o réu
permanecerem em silêncio, vale dizer, o direito de não deporem contra si mesmos
em investigação ou processo penal instaurados para a apuração de determinado
delito. Em suma, não são os investigados ou réus compelidos a auxiliar na produção
da prova em processos contra eles instaurados. Conquanto as redações dos
dispositivos legais que consagram o direito à não autoincriminação sejam similares e
em alguns casos quase idênticas, observa-se que a nossa jurisprudência conferiu ao
referido direito uma abrangência muito maior do que a observada no direito
comparado, sendo que em algumas hipóteses tal ampliação acabou por tornar sem
efeito dispositivos legais em vigor, como ocorreu com a recente vedação da
utilização de determinados testes de alcoolemia para comprovação da embriaguez.
Várias hipóteses podem ser levantadas para tentar explicar a razão de o direito à
não autoincriminação ter se tornado um direito quase absoluto, entre elas: uma
errônea interpretação de seu conteúdo; a não ponderação dos valores em conflito no
caso concreto; a noção de que o corpo do indivíduo não pode, em hipótese
nenhuma, ser utilizado como objeto de prova; a exagerada importância conferida
aos direitos individuais; e a confusão entre autoridade e autoritarismo que ocorreu
na nossa sociedade após o término do regime ditatorial.
Palavras-chaves: Princípios constitucionais − Direito à não autoincriminação −
Intervenções corporais.
ABSTRACT
MILLANI, Márcio Rached. Right to not self-incrimination. Limits, content and application. A jurisprudential vision. 2015. 185 p. Dissertation (Master Degree in Law)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. Several countries adopted in their Constitutions or in their infra-laws the right
to not self-incrimination. This right is also guaranteed by several international treaties
which were incorporated to the internal laws of several countries, including Brazil. It
can be observed that the texts adopted by the countries are similar and include, in
general, the right of the investigation or the accused remain silent, that is, the right
not to testify against themselves in criminal investigation or proceeding instituted for
the determination of a particular offense. In short, investigated or defendants are not
compelled to assist in the production of evidence in cases filed against them. While
texts of legal provisions that enshrine the right to self-incrimination are similar and in
some cases almost identical, it is observed that our jurisprudence conferred much
greater extension to the right than that observed in comparative law coverage, and in
some cases this expansion eventually become ineffective legal provisions in force, as
happened with the recent sealing of the use of certain alcohol tests for evidence of
intoxication. Several arguments can be raised to try to explain why the right to not
self-incrimination have become an almost absolute right, among them: an erroneous
interpretation of its contents; not weighting of conflicting values in the case concert;
the notion that the individual’s body cannot, under any circumstances, be used as a
test object; the exaggerated importance given to individual rights; and the confusion
between authority and authoritarianism that took place in our society after the end of
the dictatorial regime.
Keywords: Constitutional principles − The right to not self-incrimination − Evidence
made in the person's body.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9
2 DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. ORIGENS E EVOLUÇÃO ..................... 11
2.1 Notas históricas ................................................................................................... 11
2.2 Incorporação do direito à não autoincriminação aos tratados internacionais
de direitos humanos ............................................................................................ 21
2.3 Direito à não autoincriminação. Elementos caracterizadores .............................. 27
2.4 O direito à não autoincriminação na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal ................................................................................... 29
2.5 Natureza jurídica ................................................................................................. 31
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS AO DIREITO À
NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO .................................................................................. 37
3.1 O direito à não autoincriminação e presunção de inocência ............................... 37
3.2 O direito à não autoincriminação e o devido processo legal ............................... 39
3.3 O direito à não autoincriminação e a ampla defesa ............................................ 41
3.4 O direito à não autoincriminação e o contraditório .............................................. 43
3.5 O direito à não autoincriminação e a dignidade da pessoa humana ................... 44
3.6 O direito à não autoincriminação e o direito à intimidade, integridade física
e liberdade ........................................................................................................... 46
4 INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS SOBRE O DIREITO À
NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO .................................................................................. 48
4.1 Necessidade do consentimento do réu para a realização da prova .................... 51
4.2 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas passivas do indivíduo ...... 55
4.2.1 Direito ao silêncio ............................................................................................. 55
4.2.2 Direito à mentira ............................................................................................... 58
4.2.3 Direito de não participar na reconstituição do crime ......................................... 69
4.2.4 Direito de não fornecer padrôes gráficos e de voz ........................................... 69
4.2.5 Necessidade de comparecimento à audiência ................................................. 71
4.3 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas ativas do indivíduo .......... 73
4.3.1 Direito à não autoincriminação como justificativa para o cometimento de
delitos. Fraudes praticadas durante o processo ............................................... 73
4.3.2 Imputação falsa de crime a outrem .................................................................. 75
4.3.3 Fuga do infrator do local do delito .................................................................... 77
5 CORPO COMO OBJETO DE PROVA ................................................................... 85
5.1 Intervencões corporais. Definição ....................................................................... 85
5.2 Intervenções corporais no direito estrangeiro ...................................................... 87
5.3 Intervenções corporais no direito brasileiro ......................................................... 97
5.4 Utilização do corpo como objeto de prova. Possibilidade.................................... 99
6 INTERVENÇÕES CORPORAIS. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS EM CONFLITO ........................................................................ 106
6.1 Proporcionalidade e ponderação dos interesses contrapostos ......................... 106
6.2 Direito à não autoincriminação. Critérios para a ponderação ............................ 108
6.3 Ponderação entre o direito à intimidade e as intervenções corporais ............... 113
6.4 Ponderação entre o direito à integridade física e as intervenções corporais..... 117
6.5 Ponderação entre o direito à liberdade e as intervenções corporais ................. 120
6.6 Ponderação entre o direito à dignidade e as intervenções corporais ................ 122
6.7 Ponderação entre o direito à não autoincriminação e as interveções corporais 125
6.8 Testes de alcoolemia ........................................................................................ 135
7 DESEQUILÍBRIO NA BALANÇA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................. 146
7.1 Autoridade e autoritarismo ................................................................................ 146
7.2 Absolutização de direitos fundamentais ............................................................ 149
7.3 Individualismo exagerado .................................................................................. 159
CONCLUSÕES ....................................................................................................... 172
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 179
9
1 INTRODUÇÃO
O direito à não autoincriminação, conquanto amplamente abordado pela
doutrina e pela jurisprudência, ainda não tem os seus contornos totalmente
delimitados. As incertezas vão desde a nomenclatura até as hipóteses de aplicação,
sendo ora equiparado ao direito ao silêncio, ora interpretado de maneira mais ampla,
abrangendo situações que não guardam qualquer relação com o texto legal que o
estabelece.
O direito à não autoincriminação tem previsão em várias Constituições e
legislações infraconstitucionais, além de também estar consagrado nos principais
tratados internacionais, como, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos.
O referido direito é considerado um direito fundamental e costuma estar
associado a outros direitos fundamentais, como os direitos à intimidade, à
integridade corporal, à dignidade e à liberdade, entre outros.
São dois os principais objetivos do presente estudo. O primeiro consiste em
verificar qual o tratamento dado ao direito à não autoincriminação pela jurisprudência
pátria, especialmente a exarada pelo Supremo Tribunal Federal.
Embora não seja o objeto central uma análise mais aprofundada da doutrina,
evidentemente várias posições doutrinárias serão trazidas, mesmo porque muitas
vezes elas são utilizadas para fundamentar os julgados.
O segundo objetivo diz respeito à comparação da jurisprudência pátria com a
jurisprudência estrangeira. Os julgados nacionais estão em consonância com o
decidido nos tribunais estrangeiros? É possível realizar tal comparação tendo vista
as legislações desses países?
10
Tendo por fundamento as divergências jurisprudenciais constatadas, serão
identificadas as possíveis razões para o tratamento dissonante, entre elas: uma
errônea interpretação do conteúdo do direito à não autoincriminação; a não
ponderação dos valores em conflito no caso concreto; a noção de que o corpo do
indivíduo não pode, em hipótese nenhuma, ser utilizado como objeto de prova; a
exagerada importância conferida aos direitos individuais e a confusão entre
autoridade e autoritarismo, que ocorreu na nossa sociedade após o término do
regime ditatorial.
11
2 DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. ORIGENS E EVOLUÇÃO
2.1 Notas históricas
O direito ao silêncio já era noticiado em algumas passagens do Talmude1. A
tradição judaica dizia que as confissões feitas pelo réu nunca deveriam ser
admitidas, mesmo que tivessem sido dadas voluntariamente. Assim, a proibição
voltava-se não contra a coerção, mas contra a autoincriminação, veto que teria
origens na Bíblia, que exigia duas testemunhas para o fato, desqualificando o
próprio réu como testemunha. É possível vislumbrar, em vários casos relatados no
Talmude, o esboço do direito à não autoincriminação, como descrito por Simcha
Mandelbaum, citado por Alan Dershowitz2: uma pessoa foi acusada de colocar fogo
em uma propriedade de seu vizinho. O fato teria ocorrido no sábado, dia sagrado
para os judeus. A vítima solicitou ressarcimento por danos materiais e a punição por
infração às regras que regulam os deveres atinentes ao sábado. O réu ofereceu a
sua confissão como evidência. Foi decidido que o seu testemunho somente deveria
ser admitido como prova no processo cível e não para fins criminais. Solução similar
foi oferecida por uma corte judaica em outro caso, no qual a mulher buscava a
permissão da Corte para casar-se novamente. Ela alegou que seu ex-marido, que
desaparecera de casa, estava morto. Para confirmar a morte do marido ela chamou
uma testemunha que confessou tê-lo matado. A corte deferiu o pedido, sob o
argumento de que, conquanto o testemunho fosse autoincriminatório, ele poderia ser
aceito na parte que estabelecia a morte do marido, mas que não poderia ser aceito
para a condenação do autor por homicídio.
A fonte da cláusula do direito à não autoincriminação foi a máxima nemo
tenetur se ipsum accusare3. A máxima é apenas um aspecto de dois sistemas
diferentes de aplicação da lei que vigoravam no sistema inglês, o acusatório, que
1 O Talmude é o livro sagrado dos judeus, um registro das discussões que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo.
2 DERSHOWITZ, Alan M. Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth Amendment after 9/11. Kindle Edition. Oxford; New York: Oxford University Press, 2008. pos. 669 de 2.222.
3 Ninguém é obrigado a acusar a si mesmo.
12
antecedeu o reinado de Henrique II, e o inquisitório, que se desenvolveu nos
tribunais eclesiásticos.
No início da história da Igreja Católica, a confissão dos pecados tornou-se
uma obrigação de fé. Assim, nenhum privilégio existia para pessoas acusadas de
um crime na Idade Média e os tribunais inquisitoriais na Europa continental e a Star
Chamber na Inglaterra, em meados do século XVII, exigiam amplas confissões dos
acusados.
O julgamento de John Lilburn 4 , ocorrido no ano de 1653, retrata o
procedimento adotado no período. Lilburn argumentou que o Estado não poderia
obrigá-lo a responder a questões incriminadoras, pois isso violaria a lei de Deus,
uma vez que ela traz a determinação de que nenhum homem pode se acusar.
Leonard W. Levy5 afirma que a raiz histórica do direito à não autoincriminação
encontra-se, de fato, nas disputas religiosas e políticas dos dissidentes ingleses.
Entende que o direito nasceu da reação a perseguições sofridas por esses
dissidentes e particularmente relacionadas ao chamado juramento ex officio,
ferramenta importante no sistema inquisitorial. Os dissidentes juravam dizer a
verdade, mesmo antes de saberem as acusações contra eles formuladas. Tratava-
se de um juramento aberto que permitia aos interrogadores a elaboração de
questionamentos genéricos, inclusive versando sobre os mais íntimos pensamentos
dos interrogados. Leonard W. Levy afirma que a origem do direito remonta ao século
XIII e foi primeiramente utilizado em 1246, quando o bispo Robert Grosseteste
conduziu inquisições sobre desvios de conduta e atos imorais de membros de sua
diocese. Para descobrir todos os culpados, instituiu o oath de veritate dicenda, uma
4 “Em 1653, Lilburn publicou A justa defesa, na qual escreveu: 'Outro direito fundamental que eu defendo é o de que nenhuma consciência do homem deve ser abalada por juramentos impostos para responder a perguntas a respeito de si mesmo em matéria penal’.”. No original: “In 1653, Lilburn published The Just Defence in which he wrote: 'Another fundamental right I then contended for was that no mans conscience ought to be racked by oaths imposed, to answer to questions concerning himself in matters criminal, or pretended to be so'.” (Disponível em: <http://www.law.cornell.edu/supct/search/display.html?terms=constitutional%20or%20unconstitutional&url=/supct/html/historics/USSC_CR_0350_0422_ZD.html>. Acesso em: 10 ago. 2013. Nossa tradução).
5 LEVY, Leonard Williams. Origins of the Fifth Amendment: the right against self-incrimination. Chicago, Illinois: Ivan R. Dee, 1999. p. 44.
13
inovação nunca antes utilizada, que lhe permitia a realização de todas as perguntas
necessárias para atingir o seu objetivo.
Os juramentos ex officio continuaram a ser utilizados6 não somente por cortes
eclesiásticas, mas também por cortes seculares, como a Star Chamber. O
procedimento possibilitava as mais variadas perseguições religiosas e se utilizava da
técnica conhecida como open-ended fishing-expedition, um procedimento no qual o
investigador não pergunta sobre um fato específico, mas procura descobrir
eventuais ilegalidades praticadas pelo interrogado. Muitas vezes o único crime
imputado era uma divergência teológica entre o investigado e a Coroa.
Insurgindo-se contra o juramento, a arma principal utilizada era o silêncio, que
buscava fundamento em uma antiga máxima do direito canônico, nemo tenetur se
ipsum prodere (nenhum homem é obrigado a se acusar). O rei Henry III acabou por
emitir mandados de proibição contra o procedimento adotado por Robert
Grosseteste em 1246 e 1252, determinando que leigos não poderiam ser inquiridos
sob o referido juramento nas cortes eclesiásticas, à exceção de causas que
envolvessem matrimônio e testamentos. Leonard W. Levy, ao contrário de outros
historiadores, não credita à Magna Carta de 1215 a paternidade do direito à não
autoincriminação, embora reconheça que o espírito do documento estimulou a sua
invocação como parte das garantias por ele asseguradas.7
Em suma, de acordo com Leonard W. Levy, o direito à não autoincriminação
não pode ser totalmente compreendido se não for considerada a situação religiosa e
política da época. A reivindicação ao direito, assevera o autor, nasceu das
inquirições inicialmente conduzidas pela Igreja e posteriormente pelo Estado, tendo
exercido papel relevante o contexto das lutas políticas que buscavam limitar
6 AMAR, Akhil Reed; LERNER, Ren . -incrimination clause. Michigan Law Review, v. 93, n. 857, p. 896, 1995. Também disponível em: <http://www.law.yale.edu/documents/pdf/1995Fifth.pdf>. p. 20. Acesso em: 03 nov. 2014.
7 A Magna Carta u b v gu “Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora da lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.”. N g “No Freeman shall be taken or imprisoned, or be disseised of his Freehold, or Liberties, or free Customs, or be outlawed, or exiled, or any other wise destroyed; nor will We not pass upon him, nor condemn him, but by lawful judgment of his Peers, or by the Law of the Land.” (Nossa tradução).
14
prerrogativas arbitrárias e assegurar liberdades individuais e um governo mais
representativo. O direito também emergiu no contexto de procedimentos criminais
que procuravam assegurar um julgamento justo para o acusado, harmonizando-se
com os princípios de que ele era inocente até que fosse provada a sua culpa, de que
o ônus da prova cabia à acusação e com o sentimento de que a tortura ou qualquer
outro método cruel para obrigar alguém a revelar a sua culpa era injusto e ilegal.
Acima de tudo, afirma que o direito estava intimamente relacionado com a liberdade
de religião e expressão. Leonard W. Levy conclui então, à vista da análise histórica
realizada, que, à época do surgimento do Bill of Rights, o direito à não
autoincriminação já havia se estabelecido. Assegura que, conquanto o direito tenha
sido estruturado com o objetivo de banir a tortura e proporcionar mais segurança
para os acusados em processos criminais, não eram essas as suas únicas funções.
Finaliza o referido autor argumentando que os constituintes entenderam que
sem processos justos e regulares para a proteção dos criminalmente acusados,
poderia não haver liberdade. Sabiam que, desde tempos imemoriais, o primeiro
passo dos tiranos era usar a lei criminal para esmagar os seus opositores. A Quinta
Emenda foi concebida justamente para assegurar esses procedimentos, que foram
considerados cruciais para a sobrevivência dos mais preciosos direitos. Acima de
tudo, ela refletiu esse pensamento, a ideia de que, em uma sociedade livre, baseada
no respeito pelo indivíduo, a determinação da culpa ou inocência deve ser feita por
procedimentos justos, nos quais o acusado não deve contribuir, contra a sua
vontade, para a sua condenação, sendo tal objetivo mais importante do que a
simples punição do culpado.
A tese de Leonard W. Levy é refutada por John H. Langbein 8 . O autor
assevera que a verdadeira origem do direito à não autoincriminação não deve ser
buscada nas lutas políticas da revolução inglesa, mas no aprimoramento do
procedimento criminal adversarial ocorrido no final do século XVIII. O direito, desta
feita, foi o resultado do intenso trabalho realizado pelos advogados de defesa. John
H. Langbein pesquisou os julgamentos ocorridos no período compreendido entre os
8 LANGBEIN, John H. The privilege and common law criminal procedure: the sixteenth to the eighteenth centuries. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 82.
15
anos de 1670 a 1780, não tendo encontrado casos em que o réu, alegando o seu
direito ao silêncio, tenha se recusado a falar. O autor não encontrou uma menção
sequer, em tais julgamentos, ao referido direito, concluindo que ele, na prática, não
existia.
Esclarece ele que, de meados do século XVI, época em que as primeiras
publicações tornaram possível um melhor conhecimento acerca dos incipientes
julgamentos criminais, até o final do século XVIII, a principal garantia para o acusado
no procedimento criminal não era o direito de permanecer em silêncio, mas sim a
possibilidade de falar. O propósito essencial do julgamento criminal era fornecer ao
acusado a oportunidade de refutar pessoalmente as acusações a ele imputadas.
Uma das características mais marcantes desse procedimento era a regra que proibia
a participação de um advogado de defesa, proibição que apenas começou a ser
relaxada em 1696, para os crimes de traição. Entendia-se que se o réu fosse
inocente, era desnecessária a presença de um advogado, porque a verdade falaria
por si só.
No final do século XVIII, continua John H. Langbein, uma diferença radical
passou a ser notada no que diz respeito ao objetivo do procedimento criminal, que
começou a ser visto como uma oportunidade para a defesa, agora já amplamente
permitida, verificar a consistência do caso levado a julgamento. O sistema então se
modificou, passando de um modelo em que o acusado falava, para um modelo em
que a defesa procurava testar a consistência da acusação, modelo que foi
aperfeiçoado e culminou por desobrigar o testemunho do réu.
A luta travada pelos dissidentes ingleses foi transportada para as colônias
americanas. Nessas, assim como ocorria na Inglaterra, as invocações do privilégio
contra a autoincriminação invariavelmente coincidiram com o movimento dos
administradores para reprimir a dissidência política. Leonard W. Levy9 observa que
como as colônias aplicavam o direito comum inglês, este acabou se tornando pouco
a pouco a lei americana, tendo havido, por consequência, a incorporação do direito à
não autoincriminação.
9 LEVY, Leonard Williams, Origins of the Fifth Amendment: the right against self-incrimination, cit., p. 368.
16
Variações sobre o direito à não autoincriminação foram incluídas nas
Constituições dos estados revolucionários. Posteriormente o direito alcançou status
constitucional, tendo sido incorporado pela Quinta Emenda.
O direito à não autoincriminação consagrado na Constituição americana,
todavia, não tinha o mesmo conteúdo do utilizado pelas cortes inglesas. O direito
introduzido pela Quinta Emenda referia-se não apenas aos procedimentos criminais
iniciais, como ocorria no sistema inglês, mas persistia durante todo o processo.10
Os revolucionários americanos incorporaram o direito à não autoincriminação
na Constituição para preservar os atributos essenciais do processo penal contra a
influência corrosiva dos procedimentos inquisitoriais, impedindo eventuais restrições
em detrimento da liberdade política e religiosa. O direito foi concebido como uma
limitação das técnicas de investigação das autoridades. Sentenças proferidas nos
primórdios da revolução americana dispunham que o privilégio contra a
autoincriminação deveria garantir a proteção do indivíduo, mesmo que isso pudesse
limitar a evidência probatória disponível para as autoridades.
A primeira sentença digna de nota ocorreu no julgamento Marbury v. Madison,
decisão que foi proferida apenas dez anos após a ratificação do Bill of Rights. A
questão colocada em julgamento era saber se o secretário de Estado, Levi Lincoln,
poderia ser obrigado a responder a uma determinada pergunta. O secretário
recusou-se a responder à pergunta, sob o fundamento que ele não poderia ser
compelido a responder sobre algo que pudesse incriminá-lo, posição ratificada pela
Suprema Corte.11
Em 1807, no julgamento de traição de Aaron Burr12 (United States v. Burr), as
autoridades procuraram obrigar o depoimento de uma testemunha − Mr. Willie,
secretário de Burr − que invocou o privilégio. O Tribunal Federal sediado na Virginia,
10
ALSCHULER, Albert W. A peculiar privilege in historical perspective. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 190.
11 LEVY, Leonard Williams. Seasoned judgments: the American Constitution, rights, and history. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1997. p. 245.
12 N -incrimination clause, cit., p. 912, nota 234.
17
presidido pelo chefe da Suprema Corte, Justice Marshall, consignou que a máxima
de que nenhum homem é obrigado a se autoincriminar constitui exceção à regra de
que todas as pessoas são obrigadas a servir de testemunha em um julgamento.
Em Nova York, os magistrados começaram rotineiramente a advertir os réus
acerca do direito contra a autoincriminação, a partir de 1835. O número de arguidos
que se recusaram a se submeter a interrogatório aumentou depois disso13. Em 1864,
o Estado do Maine tornou-se o primeiro a permitir que os réus oferecessem
testemunhos juramentados em casos criminais, experiência posteriormente adotada
por outros estados.
O direito à não autoincriminação, todavia, raramente era invocado porque, tão
logo foi garantido, tornou-se irrelevante para o acusado, devido ao desenvolvimento
da disqualification for interest. A disqualification for interest, que perdurou até o início
do século XIX, era uma regra existente em processos cíveis e criminais, e aplicável a
todas as partes diretamente interessadas no processo, com a finalidade de prevenir
o falso testemunho14. A regra impedia o testemunho do réu no próprio processo –
quer o testemunho fosse juramentado ou não – em razão de haver um claro
interesse dele na obtenção de um julgamento favorável. Evidentemente, impedindo-
se o réu de testemunhar, por consequência também se impedia a autoincriminação.
Ocorre que, impedindo-se de maneira absoluta o testemunho dos réus, injustiças
poderiam ser cometidas, haja vista que havia fatos que eram conhecidos apenas por
eles.
As regras de desqualificação foram lentamente abandonadas nos Estados
Unidos, possibilitando que o direito à não autoincriminação se tornasse mais
debatido na jurisprudência. Até o final do século XIX, o estado da Georgia era o
único estado americano a manter a lei que permitia a desqualificação do réu −
apenas em 1962 permitiu-se que réus oferecessem testemunho sob juramento.
13
ALSCHULER, Albert W., A peculiar privilege in historical perspective, in The privilege against self-incrimination: its origins and development, cit., p. 198.
14 SMITH, Henry E. The modern privilege: its nineteenth-century origins. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 149.
18
Os estatutos que acabaram com a desqualificação de depoimento de réus
eram controversos, sendo a controvérsia centrada em questões constitucionais.
Sustentava-se que os réus deveriam ter o mesmo direito que as testemunhas para
depor sob juramento e que a desqualificação substituía uma presunção de perjúrio
pela presunção de inocência. Os opositores argumentavam, no entanto, que os
estatutos ameaçavam o privilégio contra a autoincriminação. Eles argumentavam
que os jurados iriam ver a recusa do réu em depor como uma confissão de culpa e
iriam considerar esse fato independentemente das instruções que receberiam para
não fazê-lo.
Na prática, os réus seriam pressionados a fazer o juramento e, assim,
estariam sujeitos à compulsão que as Constituições estadual e federal condenavam.
Muitos réus, além disso, responderiam falsamente às perguntas e acabariam
cometendo perjúrio.
A partir do ano de 1960, várias questões acerca do direito à não
autoincriminação foram levados à Suprema Corte. Em Murphy v. Waterfront
Comission of New York Harbor (1964)15, a Corte Suprema decidiu que o direito à
não autoincriminação poderia ser invocado para impedir o governo federal de usar
uma informação obtida por procuradores estaduais. A questão principal colocada
perante a Corte era saber se um estado, tendo dado imunidade a determinada
testemunha, poderia compeli-la a responder a determinadas questões que poderiam
incriminá-la perante uma corte federal. Tendo estabelecido que os estados estão
vinculados pela cláusula de não autoincriminação da Quinta Emenda, o tribunal
dispôs que testemunhos autoincriminatórios dados sob coação de um governo
(estadual) não podem ser usados por outro (federal). Dessa forma, procuradores
federais estão proibidos de utilizar testemunhos obtidos de modo forçado pelo
estado.
15
Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/378/52/case.html>. Acesso em: 03 out. 2014.
19
Em 1965, no julgamento de Griffin v. California16, a Corte Suprema deixou
assente que considerações do juiz ou do Ministério Público sobre a recusa de um
réu em depor violavam a Quinta Emenda. Griffin (réu) foi condenado por assassinato
em primeiro grau. Ele não testemunhou em seu julgamento. Durante as alegações
finais, a acusação se referiu repetidamente à recusa de Griffin em depor, o que
indicaria a sua culpa. O juiz instruiu o júri no sentido de que Griffin tinha o direito
constitucional de não testemunhar. No entanto, de acordo com a lei da Califórnia, o
juiz instruiu o júri no sentido de que ele poderia inferir como verdadeiro qualquer
evidência ou fato que Griffin poderia ter esclarecido e se recusara a fazê-lo. A
Suprema Corte entendeu que tal procedimento não era constitucional, proibindo que
qualquer prejuízo pudesse advir do silêncio do réu.
Um ano depois de Griffin, o tribunal estendeu o direito de permanecer em
silêncio para suspeitos sob custódia que prestassem declarações não juramentadas,
no julgamento Miranda v. Arizona. A presença ou a ausência de um juramento era
relevante à época, pois uma declaração não juramentada feita em resposta a um
interrogatório policial poderia ser utilizada contra o suspeito em um tribunal, sendo
equivalente, portanto, ao seu testemunho em juízo. O julgamento Miranda v. Arizona
constituiu um marco no direito à não autoincriminação, sendo a decisão do tribunal
repetida até hoje nos interrogatórios realizados pela polícia:
Você tem o direito de permanecer em silêncio. Tudo o que disser pode e será usado contra você em um tribunal. Você tem o direito a um advogado. Se você não puder pagar um advogado, um lhe será fornecido. Você entende os direitos que acabei de ler para você? Com esses direitos em mente, você gostaria de falar comigo?
17
No Brasil, o direito à não autoincriminação foi incorporado à Constituição
apenas em 1988, muito embora já se pudesse inferi-lo de textos anteriores, uma vez
que está evidentemente abrangido pelo direito de defesa. O direito à não
autoincriminação consta ainda de importantes tratados incorporados pelo direito
brasileiro.
16
Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/380/609/case.html>. Acesso em: 03 out. 2014.
17 N g “You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law. You have the right to an attorney. If you cannot afford an attorney, one will be provided for you. Do you understand the rights I have just read to you? With these rights in mind, do you wish to sp ?” (Nossa tradução).
20
Com efeito, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos os documentos
incorporados ao direito brasileiro em 1992, contêm disposição acerca do direito à
não autoincriminação. O Brasil ainda ratificou, em 2002, o Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional, diploma que também contém menção expressa ao
direito à não autoincriminação.
O Código de Processo Penal, editado em 1941 no governo de Getúlio Vargas,
muito embora tivesse assegurado ao réu, em seu artigo 186, o direito de não
responder às perguntas que lhe fossem feitas, permitia que o silêncio pudesse ser
interpretado em seu desfavor. A redação do dispositivo não se coadunava com o
texto constitucional, tendo a contrariedade sido corrigida pela Lei n. 10.792/2003,
que lhe conferiu nova redação:
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
Relembre-se, por fim, que a positivação constitucional do direito à não
autoincriminação ocorreu no Brasil após um longo período de exceção, como uma
reação ao abuso das inquirições coercitivas. Também em decorrência desse abuso
ocorrido no regime militar, foi dada ao direito à não autoincriminação uma
interpretação muito extensiva, passando a abranger hipóteses que não encontram
paralelo no direito comparado, como bem observado por Marcelo Schirmer
Albuquerque:18
A pressa em desenvolver um processo penal com ênfase na proteção da liberdade individual levou a doutrina a ignorar algumas de suas funções e a sugerir, com relação à garantia de não autoincriminação, interpretações que carecem de sentido, porque não embasadas em sua finalidade protetiva, e nem sempre encontram respaldo na lógica e na coerência interna do sistema.
18
ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 33.
21
A função do direito à não autoincriminação, entretanto, conquanto
fundamental ao direito de defesa e ao processo penal moderno, não tem a finalidade
de impossibilitar a persecução penal ou de consagrar uma imunidade corporal
descomprometida de qualquer fundamentação racional coerente.19
2.2 Incorporação do direito à não autoincriminação aos tratados
internacionais de direitos humanos
Muitas pessoas, quando se deparam com questões relativas a julgamentos
morais, enfrentam duas espécies de indagação20. Uma refere-se à ideia de que há
ações e comportamentos que são corretos e outros que são errados universalmente
− há a intuição de que há respostas corretas para as questões morais. A outra diz
respeito ao responsável pelo julgamento das outras culturas: quem somos nós para
julgar outras culturas? Quem somos nós para aplicarmos os nossos modelos às
outras culturas?
Tais questões remetem ao tema do relativismo cultural. O relativismo cultural
consiste na ideia de que os sistemas ético-morais, que são encontrados nas
diversas culturas, são todos igualmente válidos. Defendem os relativistas a tese de
que nenhuma cultura é efetivamente melhor ou pior do que qualquer outra.
Há duas formas de relativismo: o relativismo moral subjetivo e o relativismo
moral cultural. O relativismo subjetivo parte do pressuposto de que não há verdades
morais universais e que a verdade dos juízos morais variará conforme as opiniões e
preferencias individuais.
O relativismo subjetivo sustenta que as verdades morais são preferências
muito semelhantes com os nossos gostos pessoais. Ensina que quando se trata de
escolhas ético-morais, ou seja, do que se pode considerar certo ou errado, as
pessoas devem fazer aquilo que entendam ser o certo sob a sua ótica pessoal. Fácil
perceber que tal modalidade de relativismo não obriga a um determinado modelo de
19
ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 33.
20 LUKES, Steven. Moral relativism. New York: Picador, 2008. Preface.
22
conduta para todos os indivíduos em situações semelhantes. Quando confrontadas
situações éticas idênticas, uma pessoa poderá escolher um caminho, ao passo que
outra poderá escolher o caminho oposto. Em suma, não há regras universais de
comportamento que sejam aplicadas a todas as pessoas.
A crítica que pode ser feita contra a ética relativista é que tudo pode ser
considerado correto. Gustav Radbruch21 observa que
A filosofia do direito relativista é incapaz de determinar, para o indivíduo, a escolha entre as concepções jurídicas de pressupostos últimos e contrários. Ela se limita a apresentar-lhe, de modo exaustivo, as possibilidades de tomada de posição, mas abandona a própria tomada de posição à sua decisão criada nas profundezas da personalidade — portanto, não do seu arbítrio, mas, antes, da sua consciência.
Os relativistas morais culturais também defendem a ideia de que não há
verdades morais absolutas, universais. Todavia, aqui a relatividade não está
subordinada à vontade individual. A verdade dos juízos morais diz respeito às
crenças compartilhadas pelos integrantes de uma determinada cultura. Destarte, o
que se entende por moralmente correto irá depender das crenças estabelecidas no
seio de uma determinada sociedade.
Os relativistas morais culturais entendem que não existe um padrão definitivo
do bem ou do mal e que cada decisão sobre o que é certo e sobre o que é errado
será um produto da sociedade, vale dizer, qualquer opinião sobre a moralidade ou
ética está subordinada à perspectiva de cada cultura.
O relativismo cultural é uma corrente muito difundida no mundo moderno e
normalmente costuma ser associado a temas como pluralismo e tolerância. A sua
adoção possibilita a justificação de quase todas as condutas, uma vez que a
verdade é relativa, vale dizer, não existe uma posição ética absoluta.
Não há que se confundir relativismo cultural com mera diversidade cultural. A
diversidade cultural aponta a existência de diversas culturas, com diferentes códigos
21
RADBRUCH, Gustaf. Filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 19.
23
de comportamento. O relativismo moral, a seu turno, é a corrente que defende que
as ações são certas ou erradas de forma relativa e não absoluta.
Opor-se ao relativismo cultural não implica o reconhecimento de que todos os
valores são absolutos, mas apenas o entendimento de que há alguns valores que
são dotados dessa característica, ou seja, nem todos os valores são relativos à
cultura. O que caracteriza, portanto, o relativista quanto à verdade, é que ele
considera que essa verdade é sempre relativa, ao passo que os que defendem tese
contrária entendem que isso nem sempre acontece.
Não há como negar, entretanto, não obstante as objeções dos relativistas,
que há valores que são compartilhados pelos diversos povos do planeta. Marcel
Conche22 demonstrou que a moral é universal − não se baseia nem na religião e
tampouco na metafísica −, desde que entendamos por moral a teoria das obrigações
incondicionais do homem em relação ao próprio homem, na medida que todos os
homens nascem livres e iguais em direito. Para reforçar o seu argumento, pondera
que algumas condutas – assassinar, torturar, caluniar − não são permitidas em
nenhum lugar do planeta. Vale a pena transcrever a sua preciosa lição:
Se eu fundamentar minha moral em minha religião, vocês contestarão minha religião em nome de uma outra religião ou da irreligião (se forem agnósticos ou ateus), e minha moral não passará de uma moral como as outras, de uma moral entre outras, uma moral particular. Só poderei dizer: esta é minha moral, vocês têm a sua, e eu a minha. Se eu fundamentar minha moral em minha filosofia, vocês contestarão minha filosofia em nome de uma outra filosofia ou da não-filosofia, e minha moral não passará de uma moral entre outras, sem nenhum direito de se impor. Se vocês contestarem a necessidade de fundamentar a moral, porque todos já dispõem de uma, acreditarei decerto que minha moral é a melhor, mas vocês acharão o mesmo da moral de vocês. Todas as morais terão igual direito de julgar o que é bom e o que não é. Então os assassinos de Buchenwald, Dachau, Auschwitz, etc. estarão com a faca e o queijo na mão. Terem sido vencidos por uma força superior, mas da qual não será possível dizer que estava, mais do que qualquer outra, a serviço da verdade moral, terem sido vencidos, repito, será seu único erro. Caso contrário, deve-se, em primeiro lugar, fundamentar a moral; em seguida, deve-se fundamentá-la não no particular – e uma religião ou uma filosofia sempre são particulares, porque existem outras –, mas no universal. O universal é o que deixa de lado todas as particularidades. Deixar de lado o que nos separa ou nos distingue é o que é feito no diálogo, quando se escuta. Eu falo, você escuta; você fala, eu escuto. Operamos ambos a redução dialógica, colocando de lado nossas crenças, nossas
22
CONCHE, Marcel. O fundamento da moral. Tradução de Marina Appenzeller; revisão da tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Prefácio. p. IX e X.
24
opiniões, nossas tradições, nossas particularidades de todos os tipos para estarmos exclusivamente atentos ao verdadeiro e ao falso. Realizamos o universal vivo por nossa operação recíproca. O que acontece então? Cada qual pressupõe que o outro pode apreender a verdade que é a sua verdade, mesmo que para cada um deles esta seja apenas a do outro. Ou: cada qual, simplesmente para poder dirigir-se ao outro, falar-lhe, pressupõe o outro como capaz de verdade. Por esse motivo, cada qual pressupõe o outro como seu igual. A partir do momento em que os desiguais dos regimes baseados em privilégios se dirigissem um ao outro de uma maneira que não fosse para julgar, louvar ou criticar, ou comandar sem réplica, colocariam em perigo, pelo simples fato de serem dois seres humanos falando um com o outro apenas para dizer o verdadeiro e o falso, o próprio sistema que os estabelecia como desiguais. É por esse motivo que privilegiados e não privilegiados não dialogavam e muitas vezes não se falavam. Ora, dessa igualdade de todos os homens, implicada no simples fato de se poder travar uma conversa de fato, extrai-se toda a moral – aquela que, diferentemente das morais coletivas particulares, é a mesma para todos e contém todos os direitos e deveres universais do homem. A moral baseia-se não nesta ou naquela crença, religião ou sistema, mas neste absoluto que é a relação do homem com o homem no diálogo.
Esses ideais compartilhados no diálogo foram traduzidos no reconhecimento
dos direitos constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
pelas Nações Unidas em 194823. Redigida sob o impacto das atrocidades cometidas
durante a 2ª Guerra Mundial, foi aprovada por unanimidade, embora com a
abstenção de países comunistas, Arábia Saudita e África do Sul, o que comprova a
aceitação dos valores consignados no referido documento. De fato, a assinatura da
Declaração importa no reconhecimento de diversos valores, entre eles os valores
supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens, como ficou
expresso em seu artigo 1.
O relativismo cultural, como visto, é incompatível com a noção de direitos
humanos universais. O relativista moral deve ponderar que tais tratados não
exprimem princípios éticos universais e que a violação dos direitos neles constantes
é possível, desde que assim determine uma cultura específica. Vale dizer, se
determinada cultura considera correta a discriminação dos indivíduos com base em
critérios referentes ao sexo, o relativista deve aceitar que nessa cultura é acertada
tal discriminação, sendo que a Declaração apenas se limita a expressar uma
posição diferente.
23
Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2014.
25
Todavia há que se considerar que, com o processo de globalização e a
consequente criação de vínculos e espaços sociais transnacionais, houve a
aproximação das diversas culturas e a adoção de padrões universais. A
globalização, que foi instrumentalizada por meio da criação de organismos
supraestatais e pela assinatura de múltiplos tratados, entre eles os já citados
tratados de direitos humanos, teve o efeito de compartilhar os mesmos valores entre
todos os povos. A aproximação das culturas que decorreu desse processo trouxe
como consequência uma uniformidade do modo de vida e de pensar dos mais
variados povos, uniformidade essa que acabou por reduzir a força dos argumentos
relativistas, pois não há que se falar em diversidade de conduta relativamente ao
mesmo grupo cultural.
Assim, não obstante as objeções dos relativistas, não há como desprezar a
universalidade dos valores consagrados na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, uma vez que tais valores foram incorporados pelas mais variadas
culturas.
André Ramos Tavares aduz que a tese dos direitos humanos universais
poderia denotar a tentativa de imposição dos valores culturais do Ocidente em
detrimento de uma concepção oriental, fato que muito dificultou a sua ampla
adoção24. Não se trata, todavia, da imposição dos valores culturais de determinados
países, mas de uma aceitação espontânea e fundamentada na racionalidade e
soberania, processo que culmina com a elaboração de leis inspiradas nos
mencionados direitos.25
Vale a pena relembrar que os tratados de direitos humanos necessitam ser
internalizados para que produzam os efeitos previstos em seus textos.
24
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 520.
25 Apontando a diferença conceitual existente, Thiago Matsushita indaga acerca da dignidade da pessoa humana a ser implementada de forma universal, aquela reconhecida no Ocidente como a garantidora dos direitos humanos, aqueles direitos humanos reconhecidos e aplicados pelos países detentores do capital econômico mundial, ou os direitos humanos reconhecidos e preservados pela ONU (MATSUSHITA, Thiago Lopes. O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto . 2012. T (D u D ) − P í U v C ó Sã Paulo, São Paulo, 2012. p. 115).
26
Anteriormente ao advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, havia duas
correntes no que diz respeito à hierarquia dos tratados internacionais incorporados
ao direito nacional. Alguns doutrinadores26 entendiam que os tratados internacionais
possuíam hierarquia superior à das leis ordinárias internas. Flávia Piovesan 27
defendia tese ainda mais radical, asseverando que os direitos previstos em tratados
internacionais, relativos a direitos humanos, ratificados pelo Brasil, tinham hierarquia
de norma constitucional e deviam ser aplicados imediatamente, não estando
sujeitos, por conseguinte, ao procedimento rotineiro de incorporação dos tratados
internacionais.
O Supremo Tribunal Federal28, todavia, entendia que o tratado internacional,
quando de sua incorporação, tinha a mesma hierarquia da lei ordinária, podendo,
inclusive, ser por ela revogado, se promulgada em momento posterior.
Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, tentou-se sedimentar a
disputa entre essas correntes, como preleciona André Ramos Tavares29. E assim o
fez ao dispor que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
Embora não tenha a Emenda deixado expressamente consignada a
hierarquia constitucional automática dos tratados, mostrou o caminho a ser
percorrido para tanto.
Por fim, e na esteira das lições de Amartya Sen30, deve-se ponderar que os
direitos humanos não têm apenas a função de servir de base para novas
legislações:
26
Hildebrando Accioly e Haroldo Valladão, entre outros. 27
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 36-37. 28
ST − . 80.004/S . . X v buqu qu . 29
TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 560. 30
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 399-400.
27
As vias e maneiras de defender a ética dos direitos humanos não precisam se restringir à elaboração de novas leis (embora muitas vezes a legislação possa se mostrar o caminho correto para se proceder); por exemplo, o monitoramento social e outras formas de apoio ativista oferecidas por organizações como o Human Rights Watch, a Anistia Internacional, a OXFAM, os Médicos sem Fronteiras, Save the Children, a Cruz Vermelha e a Action Aid (citando tipos muito variados de ONGS), podem contribuir para ampliar o alcance dos direitos humanos reconhecidos.
Em determinados contextos, assim, pode não haver nenhum envolvimento da
legislação31, mesmo porque não se mostra adequado, em todas as hipóteses, a
incorporação do direito.32
2.3 Direito à não autoincriminação. Elementos caracterizadores
O direito à não autoincriminação, objeto do nosso estudo, é um desses
valores compartilhados pelos diversos povos, direito expresso em vários tratados de
direitos humanos e em várias Constituições modernas.
A Constituição brasileira, em seu artigo 5º, inciso LXIII, afirma o direito à não
incriminação nos seguintes termos: “o preso será informado de seus direitos, entre
os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e
de advogado.”
Eugênio Pacelli de Oliveira33 afirma que o direito à não autoincriminação foi o
responsável pela destruição de um dos antigos pilares do processo penal antigo, o
dogma da verdade real, e permite que o acusado permaneça em silêncio durante
todo processo, além de impedir que seja compelido a produzir ou a contribuir com a
prova contrária ao seu interesse. Esclarece ainda que a participação do réu somente
poderá ocorrer em casos excepcionais, expressamente previstos em lei e desde que
não haja risco de afetação dos seus direitos fundamentais.
31
Thiago Matsushita, com pensamento semelhante, anota que que não é necessário que haja a sua positivação para que eles sejam exercíveis (MATSUSHITA, Thiago Lopes, O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto da proporcionalidade, cit., p. 120).
32 Amartya Sen dá o seguinte exemplo: pode ser muito grande a importância ética do direito dos gagos de não serem ridicularizados ou menosprezados em reuniões públicas, direito esse que exige proteção, mas é improvável que seja um bom objeto para leis punitivas, e assim seria melhor buscar a proteção a esse direito em outras fontes, como por meio da educação, debate público etc. (SEN, Amartya, A ideia de justiça, cit., p. 400).
33 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 41.
28
O direito à não autoincriminação, esclarece Maria Elizabeth Queijo34, tem a
finalidade de proteger o indivíduo contra os excessos cometidos pelo Estado na
persecução penal, incluindo-se o resguardo contra coação e violência física e moral
utilizadas para constrangê-lo a cooperar na instrução probatória.
Carlos Henrique Borlido Haddad 35 aduz que o direito contra a
autoincriminação “protege a liberdade de decisão e o resultado desse decidir, que se
traduz na opção em realizar ou não uma conduta ativa de cunho probatório, sem que
a inércia do acusado importe em assunção de culpa”, ou seja, configura um direito
de não colaboração do acusado com as autoridades perseguidoras. É possível,
assim, “agrupar as ações sob duas perspectivas: o acusado possui liberdade em
suas declarações e dele não se pode exigir a colaboração na produção de prova de
caráter incriminatório”.
Pode-se ainda encontrar os elementos definidores do direito em diversos
tratados internacionais. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu
artigo 8, 2, “g”, ao regular as garantias judiciais, assevera que toda a pessoa
acusada tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a
confessar-se culpada.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 36 , de forma similar
prevê, em seu artigo 14, 3, “g”, que toda pessoa acusada de um delito terá direito,
em plena igualdade, de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-
se culpada.
34
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 77.
35 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação. T (D u D ) − u D U v G B Horizonte, 2003. p. 299-300.
36 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de Julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Diário Oficial da União, Seção 1, Brasília, de 07 jul.1992. p. 8.716. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 12 dez. 2014.
29
A Constituição norte-americana, a seu turno, estatui em sua Quinta Emenda37
que ninguém poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de
testemunha contra si mesmo.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem 38 não contém disposição
expressa consagrando o direito à não autoincriminação. Todavia, apesar de não
expressamente mencionado no seu artigo 6º, há a previsão de um julgamento justo
e equitativo, tendo a Corte Europeia de Direitos Humanos incorporado ao conceito
de julgamento equitativo o direito de que um indivíduo não deve ser obrigado a
produzir prova contra si mesmo.
Do exposto, podemos apontar as principais características do direito à não
autoincriminação: 1) permitir que o acusado permaneça em silêncio durante todo o
processo; 2) impedir que o indivíduo seja compelido a produzir prova contrária ao
seu interesse; 3) resguardar o indivíduo contra coação e violência física ou moral
para constrangê-lo a cooperar na instrução probatória; 4) impedir que a sua inação
seja de qualquer forma utilizada em seu desfavor; e 5) transferir à acusação o ônus
da prova.
2.4 O direito à não autoincriminação na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal
O direito à não autoincriminação é, nos termos da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, um direito público subjetivo39, garantido pelo artigo 5º, inciso LXIII,
da Constituição Federal40 e pelo Pacto de São José da Costa Rica41, que pode ser
37
“Emenda V - Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização.” (Disponível em: <http://www.braziliantranslated.com/euacon01.html>. Acesso em: 16 set. 2014).
38 Disponível em: <http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2014.
39 ST − HC . 79.812/SP . . C ST − HC . 79.589/D . Min. Octavio Gallotti; ST − HC . 68.929/SP . . C ST − HC . 73.035/D . . C V lloso.
40 ST − HC . 102.556/DF, rel. . u ST − HC . 79.244/D . Min. Sepúlveda Pertence.
41 ST − HC . 101.909/MG, rel. Min. Ayres Britto.
30
invocado não apenas pelos presos, conforme consta do artigo 5º da Constituição
Federal, mas também pelos acusados, investigados, indiciados e suspeitos42 − as
testemunhas, inclusive as convocadas para depor em Comissões Parlamentares de
Inquérito, podem invocá-lo, desde que as perguntas que lhes forem formuladas
tenham possibilidade de incriminá-las, caso contrário prevalece a obrigação legal de
colaborar com a Justiça43. Alguns julgados estendem a qualquer pessoa a proteção
do direito à não autoincriminação, nos termos, diga-se, do que consta do texto do
Pacto de São José da Costa Rica44. É um direito que deve ser invocado pela própria
pessoa que sofreu a violação45, geralmente não aproveitando a terceiros, oponível a
todos os agentes estatais, independentemente do procedimento adotado (penal ou
administrativo)46 e a qualquer momento (fase inquisitorial e processual), não sendo
necessário qualquer provimento judicial para tanto.47
O direito à não incriminação é gênero do qual o direito ao silêncio é uma de
suas manifestações. Ele não se restringe, assim, à faculdade de o investigado
manter-se em silêncio, mas abrange várias outras hipóteses que têm como objetivo
transferir às autoridades policiais e judiciárias a responsabilidade de comprovar os
fatos delituosos, vale dizer, estes devem ser comprovados independentemente da
colaboração do investigado ou réu. Em outros termos, o investigado ou réu têm o
direito de permanecer inertes, não apenas no que se refere ao silêncio, mas também
no que diz respeito à produção de quaisquer outras espécies de provas; a
comprovação de sua culpabilidade deve ser feita sem a sua ativa participação, ou
seja, eles não podem ser forçados a produzir provas contra si mesmos.
42
ST − HC . 93.916/PA, rel. Min. Cármen Lúcia; ST − HC . 69.026/DF, rel. Min. Celso de Mello; ST − HC . 77.135/SP, rel. Min. Ilmar Galvão; ST − HC . 102.019/PB, rel. Min. Ricardo Lewandowski.
43 ST − HC . 73.035/DF, rel. . C V ST − HC . 94.016/SP . . C ST − g . 435.266/SP . . S ú v P tence; ST − HC . 100.200/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa.
44 Pacto de San José da Costa Rica: “ rtigo 8 - Garantias judiciais [...] 2. [...] Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada ” (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2014); ST − HC n. 94.016/SP, rel. Min. Celso de Mello.
45 ST − HC . 80.949/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
46 ST − HC . 94.016/SP . . C ST − HC . 79.812/SP . Min. Celso de Mello; ST − HC n. 80.584/PA, rel. Min. Néri da Silveira.
47 ST − HC . 100.200/D . Min. Joaquim Barbosa; ST − HC n. 82.354/PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
31
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal endossou o mencionado
entendimento. De fato, decidiu a Corte Suprema que:
O direito constitucional de conservar-se em silêncio é consectário lógico do princípio da não autoincriminação, o qual outorga ao preso e ao acusado em geral o direito de não realizar prova contra si mesmo
48 e que as
garantias constitucionais contra a autoincriminação têm sua manifestação mais eloquente no direito ao silêncio dos acusados.
49
2.5 Natureza jurídica
A Constituição Federal de 1988 regulou os direitos e garantias fundamentais
em cinco capítulos diferentes − artigos 5º a 17 − com a finalidade de viabilizar a sua
plena inserção no nosso ordenamento jurídico máximo. Os referidos direitos foram
organizados em direitos e garantias individuais (Capítulo I), direitos sociais (Capítulo
II), direitos de nacionalidade (Capítulo III), direitos políticos (Capítulo IV) e direitos
dos partidos políticos (Capítulo V).
Costuma-se diferenciar os direitos das garantias fundamentais. As garantias
consistem no direito dos cidadãos de exigirem dos poderes públicos a proteção de
seus direitos, é dizer, as garantias fundamentais são estabelecidas na Constituição
da República para funcionarem como um eficaz manto protetivo dos direitos
fundamentais. Jorge Miranda, acerca dessa diferença, leciona:
Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens, os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.
50
Dito de outro modo, os direitos fundamentais têm caráter declaratório,
enquanto as garantias são instrumentos assecuratórios. De certo modo, podemos
afirmar que as garantias são especificações, detalhamentos dos direitos declarados
48
ST − HC . 99.558/ S . Min. Gilmar Mendes. 49
ST − HC . 79.244/D . Min. Sepúlveda Pertence. 50
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. v. 4, p. 95.
32
e lhes conferem aspectos práticos de aplicação. Em resumo, os direitos representam
por si só certos bens, sendo que as garantias destinam-se a assegurar o gozo de
tais bens; os direitos são principais, ao passo que as garantias acessórias.
José Afonso da Silva 51 entende que não são nítidas as diferenças entre
direitos e garantias. O autor assevera que não é decisivo em face da Constituição
“afirmar que os direitos são declaratórios e as garantias assecuratórias, pois as
garantias são em certa medida declaradas e, às vezes, se declaram direitos usando
forma assecuratória”.
André Ramos Tavares52 nos dá o seguinte exemplo, acerca da ação popular,
para corroborar a posição de José Afonso da Silva:
Para tanto, tome-se como paradigma o instituto da ação popular. Como se sabe, tradicionalmente é ele encarado como remédio constitucional, e, nesse sentido, trata-se de uma garantia, de uma posição eminentemente assecuratória. Mas não se pode negar que o exercício da ação popular é, considerado em si mesmo, o exercício de um direito de índole política. Assim, neste último sentido, o Texto Constitucional consagra um direito de participação política, declarando-o exercitável através da ação popular. E, mais ainda, os direitos que a ação popular tutela vêm consagrados no mesmo dispositivo que a prevê como ação assecuratória.
De qualquer sorte, com as ressalvas acima apontadas, entendem alguns
autores que o direito à não autoincriminação consistiria em uma garantia
fundamental. Nesse sentido, Marcelo Schirmer Albuquerque53 aduz que não há uma
valoração positiva nos atos de se omitir e se calar, mas apenas tais ações são
asseguradas, pois revelam-se aptas para a proteção a direitos. Prossegue afirmando
que “Nascida para resguardar o sujeito contra violações à sua incolumidade física e
moral ou às suas liberdade e dignidade, evidente que a garantia de não
autoincriminação não existe a não ser para a proteção dos direitos fundamentais, ou
seja, em função deles.”
51
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 189.
52 TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 898.
53 ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 36.
33
Não obstante os bons argumentos apresentados no sentido de se considerar
a cláusula nemo tenetur se detegere como garantia e não como direito fundamental,
entendemos que ela não possui um caráter meramente instrumental e pode ser
invocada isoladamente, mesmo na ausência de qualquer processo que teria a
função de garantir.
Com pensamento semelhante, Carlos Henrique Borlido Haddad54 assevera
que ao:
[...] permanecer em silêncio, faz o acusado uso de um direito, que não se confunde com sua garantia. O silêncio é mero mecanismo de manifestação do princípio contra a autoincriminação e, não, a proteção criada para propiciar o respeito ao princípio. O papel de garantia é desempenhado pelo habeas corpus, como se viu no capítulo anterior, pois o writ é manejável quando aquele que invoca o silêncio fica impedido de exercitá-lo. Servirá o habeas corpus para assegurar ao réu, perante as autoridades encarregadas da persecução penal, o direito de permanecer calado.
A controvérsia acerca da natureza do referido direito também foi observada
recentemente nos Estados Unidos. Após os incidentes ocorridos no dia 11 de
setembro, além da diminuição que se verificou em alguns dos direitos dos cidadãos
e consequente aumento dos poderes do Estado, houve também uma mudança no
foco da investigação criminal. O objetivo do Estado passou a ser impedir o mal antes
que ele ocorra. O Estado não mais deve se satisfazer com a punição dos
responsáveis pelos crimes, mas deve buscar primordialmente impedi-los, haja vista
as irreparáveis perdas advindas de determinados atos criminosos.
Na esteira dessa linha de pensamento, chamou a atenção da comunidade
jurídica americana a decisão da Suprema Corte no julgamento Chavez v. Martinez
(27.05.2003). Conquanto não se tratasse de um processo criminal, mas cível, a
decisão possibilitou um maior entendimento acerca do pensamento dos membros
daquela corte a respeito do significado e extensão do direito à não autoincriminação.
Martinez foi submetido a um interrogatório que, se não pode ser considerado
como obtido mediante métodos de tortura, permaneceu em seus limites. Os fatos do
54
HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 31.
34
caso são incontroversos, pois os momentos relevantes do interrogatório foram
gravados. Martinez foi baleado por um policial após ter entrado em luta corporal com
ele e tomado a sua arma. Ao chegar ao hospital, Martinez foi interrogado por outro
policial, de nome Chavez. A gravidade das lesões sugeria que Martinez não iria
sobreviver. Não foram lidos os denominados Miranda’s rights. Além disso, Chavez
deu a entender a Martinez que só permitiria o seu atendimento médico se
respondesse às suas perguntas. Diante desse quadro, Martinez acabou
respondendo aos questionamentos de Chavez, muito embora tenha repetidamente
afirmado que não sabia de nada e que não falaria mais uma palavra, até ser tratado.
Antes de prosseguirmos, uma explicação se faz necessária. Não obstante
Martinez tenha admitido em seu interrogatório ter brigado com um policial, tomado a
sua arma e a apontado para ele, as suas declarações nunca foram levadas a juízo,
ou seja, ele não foi acusado por crime algum. Vale dizer, as suas declarações
autoincriminatórias não foram usadas contra ele em um processo criminal.
Martinez acabou processando o policial Chavez, em virtude de o
interrogatório ter sido conduzido sem a observância dos ditames legais. Impende
ressaltar que a lei garante aos policias uma relativa imunidade, a não ser que suas
condutas violem direitos constitucionais.
As cortes inferiores deram razão a Martinez, asseverando que o interrogatório
levado a efeito pelo policial Chavez violava os seus direitos constitucionais. A
Suprema Corte, todavia, reformando as decisões das cortes inferiores, entendeu que
o interrogatório feito mediante coerção sem o uso subsequente das informações
obtidas em um processo criminal não violaria a Quinta Emenda. Embora os votos
não tenham sido uniformes, a maioria concluiu que o privilégio de Martinez contra a
autoincriminação não foi violado pelos policiais que o coagiram a prestar as
declarações, pois elas nunca foram utilizadas contra ele em um processo criminal.
35
Três membros da Suprema Corte55 entenderam que o privilégio teria sido
violado pelo uso da tortura ou método equivalente, muito embora os frutos do
interrogatório não tenham sido utilizados contra Martinez.
Alan M. Dershowitz56 observa que nenhum dos membros da Suprema Corte
aceitou o ponto de vista de que o mero uso da coação já constituiria, por si só,
violação do privilégio contra a autoincriminação.
Entendeu assim a Suprema Corte que o privilégio contra a autoincriminação
não protege o indivíduo contra a realização de interrogatórios forçados, mas tão
somente impede que suas declarações sejam utilizadas como evidência em um
processo criminal contra ele instaurado. Ausente tal utilização em juízo, não haveria
a violação do privilégio, não importa o grau de coerção.
O caso foi remetido à instância inferior, para se determinar se o pedido de
perdas e danos feito por Martinez, conquanto não fosse uma violação ao privilégio
da autoincriminação, poderia constituir ofensa ao princípio do devido processo legal.
Dito de outro modo, ao que parece, a Suprema Corte dos Estados Unidos
asseverou que, tendo por fundamento o privilégio à não autoincriminação, não existe
efetivamente um direito ao silêncio, há apenas o direito processual de que as
declarações obtidas não sejam utilizadas contra o declarante em um processo
criminal.
É evidente que os agentes que fizerem uso de métodos de tortura ou
abusarem do direito que lhes foi conferido pela legislação devem responder por seus
atos. Ocorre que, independentemente dessas punições, entendemos que o próprio
direito à não autoincriminação é garantido por nossa Constituição de forma
autônoma, e não somente como instrumento para a garantia de outros direitos
fundamentais, ou seja, ele é assegurado, mesmo que nenhuma informação seja
eventualmente utilizada em futuro processo penal. Em suma, mesmo na ausência de
eventual procedimento que em tese seria garantido, o direito existe e pode ser
invocado.
55
Justices Stevens, Kennedy e Ginsburg. 56
DERSHOWITZ, Alan M., Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth Amendment after 9/11, cit., pos. 184 de 2.222.
36
Embora, entre nós, ainda se tenha notícia da utilização de métodos ilegais
para a obtenção de informações, na verdade o que ocorre com mais frequência é a
utilização de formas mais sutis de atuação, nas quais os agentes não torturam ou
impõem castigos físicos, mas se utilizam de sua posição de superioridade para
extrair as informações necessárias.
Em vários depoimentos é possível constatar-se os policiais dizerem que o réu
teria admitido esta ou aquela conduta ou que o réu teria franqueado a entrada em
sua residência, quando o bom senso indica que em situações normais isso nunca
ocorreria. Não raramente são utilizadas formas de manipulação psicológica para
extrair a confissão do acusado. Nessas hipóteses, embora não se possa provar o
uso de métodos de tortura, resta evidente que o direito à não autoincriminação foi
violado, ainda que a informação não seja utilizada, e mesmo que o agente não seja
responsabilizado.
Além da utilização dos termos garantia e direito à não autoincriminação, é
possível encontrarmos outras designações, como princípio da não autoincriminação,
privilégio contra a autoincriminação, prerrogativa contra a autoincriminação, além, é
claro, das consagradas expressões latinas nemo tenetur se detegere e nemo tenetur
se ipsum accusare. Conquanto parte da doutrina e jurisprudência prefira a
designação princípio da não autoincriminação ou princípio do nemo tenetur se
detegere57, entendemos mais adequada a utilização da expressão direito à não
autoincriminação, pois algumas das prerrogativas que são por ele abrangidas, como
o direito ao silêncio, têm a natureza de regra – sempre aplicável – e não de princípio,
que pode ser objeto de ponderação e não ser aplicado em determinado caso
concreto. A expressão direito não estaria assim denotando, de antemão, tratar-se a
hipótese de regra ou princípio, ou seja, abrangeria ambas.58
57
Entre os doutrinadores podemos citar Carlos Henrique Borlido Haddad e Maria Elizabeth Queijo, e, ju u ê ST − HC n. 101.909/MG, rel. Min. Ayres Britto; e ST − HC n. 83.960/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
58 Robert Alexy entende que os princípios são mandados de otimização caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas, ou seja, se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 90-91).
37
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS AO DIREITO À
NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
Antônio Scarance Fernandes59 assevera que se pode vislumbrar a evolução
da doutrina pátria no sentido de extrair da cláusula da ampla defesa e de outros
preceitos constitucionais, como o da presunção de inocência, o direito à não
autoincriminação.
Outros autores entendem derivar o direito à não incriminação do princípio da
dignidade da pessoa humana.60
Vejamos os principais direitos fundamentais que se conectam ao direito à não
autoincriminação.
3.1 O direito à não autoincriminação e presunção de inocência
O princípio da presunção de inocência encontra-se previsto no artigo 5º,
inciso LVII, da Constituição Federal, e afirma que ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Guilherme de Souza Nucci aduz que o princípio tem por objeto garantir que o
ônus da prova caiba à acusação “Todas as pessoas nascem inocentes, sendo esse
o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável
que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do
réu.”61
59
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 278.
60 Nesse sentido: SOUZA, Sérgio Ricardo. Manual da prova penal constitucional: pós-reforma de 2008. Curitiba: Juruá, 2008. p. 156.
61 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 78.
38
Luigi Ferrajoli62, no mesmo sentido, assevera que se a lei presume que o
indivíduo é inocente, não cabe a ele provar essa condição – ser inocente −, mas à
acusação a prova de sua culpa.
Eugênio Pacelli de Oliveira 63 ensina que o princípio da presunção de
inocência impõe ao Poder Público a observância de duas regras específicas em
relação ao acusado, uma de tratamento e uma de caráter probatório. Em virtude da
primeira, o réu, durante o processo, não pode sofrer restrições pessoais com esteio,
unicamente, na possibilidade de condenação. A segunda diz respeito ao ônus da
prova e estabelece que a prova da existência do fato e de sua autoria incumbem
exclusivamente à acusação.
Antônio Magalhães Gomes Filho 64 afirma que decorre do princípio da
presunção de inocência a impossibilidade de se obrigar o réu a cooperar na
investigação dos fatos.
O direito à não autoincriminação, em sua definição mais ampla, como visto,
estabelece que o indivíduo não é obrigado a colaborar ativamente com a acusação,
ou seja, o investigado ou réu têm o direito permanecer inertes, não apenas no que
se refere ao silêncio, mas também no que tange à produção de quaisquer outras
espécies de prova, uma vez que a comprovação de sua culpabilidade deve ser feita
pela acusação.
É evidente assim a relação entre os dois direitos fundamentais, fato que levou
Eugênio Pacelli de Oliveira65 a afirmar que o direito ao silêncio, do ponto de vista
processual, estrutura-se sobre o princípio da presunção de inocência, no ponto em
que este tem por consequência direta a transferência do ônus probatório à
acusação.
62
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 589.
63 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 48.
64 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva. 1991. p. 40.
65 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 208.
39
Embora os dois direitos guardem uma estreita relação, não se confundem,
pois não são exatamente os mesmos os seus escopos. O princípio da presunção de
inocência tem a função de distribuição do ônus da prova, vale dizer, estabelece de
quem é a responsabilidade de comprovação do fato típico e autoria. Não obstante o
direito à não autoincriminação assegurar ao réu o direito permanecer inerte, e nesse
aspecto se assemelhar ao princípio da presunção de inocência, ele também irá
determinar em que circunstâncias poderá o réu ser obrigado a participar, ainda que
passivamente, da produção da prova. Assim, o fato de a acusação ser obrigada a
comprovar a responsabilidade do réu não o desonera do dever de colaboração em
determinadas hipóteses, que serão posteriormente analisadas.
3.2 O direito à não autoincriminação e o devido processo legal
A garantia do devido processo legal tem como antecedente a Magna Carta,
outorgada em 1215 por João Sem-Terra aos seus súditos. O documento acabou por
limitar o poder da monarquia na Inglaterra e dispôs, em seu artigo 39, que nenhum
homem livre seria preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado
fora da lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, a não ser por julgamento
legal dos seus pares, ou pela lei da terra.
O princípio consta também da Declaração Universal dos Direitos Humanos
em seu artigo 11, 1, que tem a seguinte redação: “Todo ser humano acusado de um
ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade
tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham
sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”
A nossa Constituição incorporou o princípio do devido processo legal no artigo
5º, inciso LIV, que afirma que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal.
40
O devido processo legal assegura ao indivíduo dupla proteção, atuando tanto
no âmbito material, como no formal. Antônio Scarance Fernandes66 assevera, nesse
sentido, que o princípio não mais está circunscrito ao âmbito estritamente
processual, mas também possui uma feição substancial, exigindo-se um processo
legislativo previamente definido, a necessidade de que as leis sejam anteriores à
sua aplicação ao caso concreto, bem como que os dispositivos legais sejam
razoáveis e justos.
Não obstante o seu aspecto substancial, é no âmbito do processo que o
princípio assume uma amplitude inigualável, como postulado que traduz uma série
de garantias devidamente especificadas, tais como direito ao juiz natural, direito a
não ser processado com base em prova ilícita, direito a não ser preso senão pela
autoridade competente, entre outras.67
O devido processo legal é ainda um tipo de garantia com caráter subsidiário e
geral em relação às demais garantias, tanto que em várias ocasiões os tribunais
têm-se limitado a se referir diretamente ao devido processo legal, ao invés de às
garantias específicas ou decorrentes.68
A sua relação com o direito à não autoincriminação é visível. Carlos Henrique
Borlido Haddad69 assevera que mesmo que não houvesse a previsão constitucional
do direito ao silêncio e, na ausência de regulamentação em sentido oposto, o direito
contra a autoincriminação se dessumiria do espírito do dispositivo que assegura o
devido processo legal.
O devido processo legal será desrespeitado quando as medidas levadas a
efeito não forem previstas em lei ou, ainda que previstas, não se mostrarem
necessárias e indispensáveis na hipótese concreta, como, por exemplo, em uma
interceptação telefônica utilizada para a investigação de delitos de menor gravidade.
66
FERNANDES, Antônio Scarance, Processo penal constitucional, cit., p. 43. 67
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 745.
68 Ibidem, p. 745.
69 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 34.
41
3.3 O direito à não autoincriminação e a ampla defesa
O direito à ampla defesa está expressamente consignado no artigo 5º, inciso
LV, da Constituição Federal, nos seguintes termos: “aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Ele confere ao indivíduo
a liberdade de, em defesa de seus interesses, alegar fatos e propor provas.
Guilherme de Souza Nucci afirma que o réu é considerado no processo parte
hipossuficiente, haja vista o Estado sempre atuar por intermédio de órgãos
constituídos e preparados, valendo-se de informações e dados de todas as fontes às
quais tem acesso. Por essa razão, “merece o réu um tratamento diferenciado e
justo, razão pela qual a ampla possibilidade de defesa se lhe afigura a compensação
devida pela força estatal”.70
O direito à ampla defesa consagra os seguintes direitos: a) direito de
informação, que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária os atos
praticados no processo; b) direito de manifestação, que assegura ao réu o direito de
manifestar-se sobre os elementos do processo; e, c) direito de ver os seus
argumentos considerados, que obriga o julgador a contemplar as razões
apresentadas.71
Vicente Greco Filho72 entende estarem abrangidos pela ampla defesa: a) o
conhecimento claro da imputação; b) a faculdade de apresentar alegações contra a
acusação; c) a possibilidade de acompanhar a prova produzida, bem como a
realização da contraprova; d) a representação por advogado; e) a possibilidade de
recorrer da decisão desfavorável.
O princípio exige uma defesa efetiva, rechaçando preocupações meramente
formais. Corroborando o afirmado, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que a
70
NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de processo penal e execução penal, cit., p. 79. 71
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de direito constitucional, cit., p. 646.
72 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 62.
42
“presença formal de um defensor dativo, sem que a ela corresponda a existência de
defesa substancial nada significa no plano do processo penal e no domínio tutelar
das liberdades públicas”73. Em outro julgado, deixou assente a Suprema Corte que
“exsurgindo dos autos que o defensor designado teve desempenho simplesmente
formal, em verdadeira postura contemplativa, forçoso é concluir que o réu estava
indefeso”.74
A ampla defesa importa na configuração de alguns direitos exclusivos do réu,
como, por exemplo, a revisão criminal, vedada à acusação, e realiza-se, no
processo penal, por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e por
qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado.75
A autodefesa é aquela exercida pelo próprio acusado em determinados
momentos processuais e se manifesta de diversas formas: direito de audiência,
direito de presença e direito a postular pessoalmente 76 . O direito de audiência
consiste na faculdade que tem o acusado de apresentar ao juiz do processo a sua
defesa, a sua versão dos fatos.
O réu pode exercer o seu direito à ampla defesa da maneira que lhe aprouver,
inclusive pelo silêncio – renunciando, por conseguinte, à autodefesa. Também pode
exercer o seu direito de defesa recusando-se a colaborar com as autoridades para a
produção da prova, como lhe faculta o direito à não autoincriminação. Observe-se,
todavia, que se tal inação lhe trouxer prejuízos, poderá o Judiciário interferir no
processo e determinar a providência necessária para resguardar o seu direito de
defesa. Assim, por exemplo, o réu pode optar por não interpor apelação. Ocorre que
se tal renúncia for manifestada sem a assistência do defensor, o tribunal poderá
conhecer a apelação.77
73
ST − HC . 68.926/ G . Min. Celso de Mello. 74
ST − HC . 71.961-9/SC, rel. Min. Marco Aurélio. 75
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 47. 76
FERNANDES, Antônio Scarance, Processo penal constitucional, cit., p. 280. 77
Súmula n. 705 do STF: A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta.
43
3.4 O direito à não autoincriminação e o contraditório
O princípio do contraditório é assegurado pelo artigo 5º, inciso LV, da
Constituição Federal e costuma ser definido pela expressão latina audiatur et altera
pars.78
O direito ao contraditório abrange qualquer tipo de processo ou procedimento,
judicial, extrajudicial ou administrativo. Em sua visão clássica, considerava-se
regular o procedimento, ainda que o princípio fosse cumprido somente em seu
aspecto formal, que pressupõe conceder à parte a oportunidade de se manifestar no
processo. Ocorre que a simples manifestação da parte no processo pode não se
mostrar suficiente para a consecução de sua finalidade, que é influenciar o julgador
em sua decisão. Destarte, surge o elemento substancial do princípio do
contraditório, que confere à parte uma participação efetiva no processo. O
contraditório caminha assim no sentido de uma nova formulação, para nele incluir
também o princípio da par conditio ou da paridade de armas, na busca de uma
efetiva igualdade processual 79 , fazendo-se necessário para isso expurgar toda
limitação que prejudique as partes no processo.
Fernando da Costa Tourinho Filho80 argumenta:
Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia audiatur et altera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Assim, a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Ambas estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o órgão jurisdicional, como órgão “superpartes”, para, depois de ouvir as alegações das partes e de apreciar as provas, “dar a cada um o que é seu” [...].
Para poder influenciar de fato o julgador, mister que haja a possibilidade de as
partes – ambas as partes − trazerem aos autos todas as provas necessárias para
tanto. Com efeito, conforme observa Luiz Francisco Torquato Avolio81, se o objetivo
do processo é de dar às partes a oportunidade de interferir no julgamento, mostra-se
78
Deve a parte contrária ser também ouvida. 79
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 43. 80
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1, p. 45.
81 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e
gravações clandestinas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 30.
44
“evidente que o exercício desse direito seja essencialmente subordinado à efetiva
possibilidade de servir-se dos instrumentos apropriados, as provas, com as quais se
procura verificar aquele determinado evento”.
Marcelo Schirmer Albuquerque82 assevera que:
[...] se ao invés de assegurar os direitos fundamentais do acusado, preexistentes à prática do delito, o objetivo da garantia de não autoincriminação fosse simplesmente permitir que ele se recusasse a qualquer contribuição na produção de provas que lhe possam ser desfavoráveis, buscando-se esquivar-se da ação da justiça e dificultar a persecutio, estar-se-ia aceitando uma verdadeira autossabotagem do Estado, em prejuízo da sociedade que o constitui. Seria uma irônica e incompreensível contradição que o Estado, no exercício de seu mister de combate ao crime, criasse e aparelhasse órgãos de persecução, para depois reconhecer entraves intransponíveis ao seu trabalho, sem que houvesse por trás de tais empecilhos, uma justificativa plausível, materializada num verdadeiro direito fundamental a ser defendido.
Assim, mostra-se contrária ao princípio do contraditório a proibição de
produção de determinadas provas, se tal vedação não estiver fundamentada no
dever de respeito aos direitos fundamentais, uma vez que nessa hipótese não
estaria sendo atingida a finalidade do princípio.
3.5 O direito à não autoincriminação e a dignidade da pessoa
humana
Sérgio Ricardo de Souza83 assevera que contraria a dignidade da pessoa
humana qualquer norma que imponha, ao investigado pela prática de determinada
infração penal, a obrigação de contribuir com o fornecimento de informações que
facilitem o Estado a fazer prova contra ele.
A noção de dignidade da pessoa humana tem origem na filosofia ocidental,
possuindo íntima ligação com o pensamento cristão, segundo o qual o homem seria
concebido à imagem e semelhança de Deus.
82
ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 51.
83 SOUZA, Sérgio Ricardo, Manual da prova penal constitucional: pós-reforma de 2008, cit., p. 156.
45
A positivação do princípio da dignidade da pessoa humana ocorreu em um
momento histórico − após a 2ª Guerra Mundial − em que era necessária a busca de
mecanismos de proteção do homem contra o Estado. Conquanto a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 tivesse um caráter de simples
recomendação, é considerada um importante marco da afirmação da dignidade
humana do indivíduo.
Adverte Thiago Matsushita84 que o princípio deve abranger necessariamente
o pleno desenvolvimento do ser humano, seja no aspecto econômico, seja nos
aspectos social, cultural e político.
Ingo Wolfgang Sarlet85 define a dignidade da pessoa humana como:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
A dignidade da pessoa humana foi reconhecida pela Constituição de 1988
como princípio fundamental. Todavia, mais do que um mero um princípio, ela é um
dos valores fundantes da República, o que implica na irradiação de seu significado
por todo o sistema legal.
Os valores constitucionais, ensina Flademir Martins:86
[...] constituem o contexto axiológico fundamentador ou básico de interpretação de todo o ordenamento jurídico; o postulado guia para orientar a hermenêutica teleológica e evolutiva da Constituição; o critério para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade. Os valores traduzem-se, assim, em ideias diretivas gerais que fundamentam, orientam e limitam criticamente a interpretação e aplicação das demais
84
MATSUSHITA, Thiago Lopes, O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto da proporcionalidade, cit., p. 91.
85 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 70.
86 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003. p. 58-59.
46
normas do ordenamento jurídico, sem, contudo, especificar os supostos em que devem ser aplicados nem as consequências jurídica que lhe devem seguir.
A dignidade da pessoa humana deve ser entendida dessa forma como um
dos principais parâmetros de controle da legitimidade substancial do poder estatal,
como critério para aferição da legalidade da aplicação das demais normas. Ela é o
princípio unificador da Constituição brasileira e o que lhe confere unidade axiológica.
O Supremo Tribunal Federal deixou assente a relação entre a dignidade da
pessoa humana e o nemo tenetur se detegere, ao afirmar que o direito à não
autoincriminação, que assegura a não produção de prova contra si mesmo, “constitui
pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das
expressões do princípio da dignidade da pessoa humana”87. Sob esse argumento, o
Supremo Tribunal Federal determinou a soltura de um réu que estava preso
unicamente para a obtenção de seu depoimento. Consignou o ministro Gilmar
Mendes que:
[...] na sua acepção originária conferida por nossa prática institucional, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.
Não obstante o princípio da dignidade da pessoa humana servir como
fundamento para inúmeras decisões, dada a sua amplitude e contornos imprecisos,
não se pode negar que ele está intimamente ligado ao direito à não
autoincriminação, principalmente no que se refere à possibilidade ou não de
realização de determinadas perícias sem o consentimento do indivíduo, como ocorre
nas intervenções corporais.
3.6 O direito à não autoincriminação e o direito à intimidade,
integridade física e liberdade
Há outros direitos relacionados ao direito à não autoincriminação, como os
direitos à intimidade à integridade física e à liberdade, que em tese também podem
ser afetados quando da realização de determinados exames ou perícias.
87
ST − MC HC n. 91.514-1/BA, rel. Min. Gilmar Mendes.
47
Dessa forma, ao se realizar uma busca pessoal em um indivíduo, algumas
cautelas devem ser tomadas para não violar a sua intimidade como, por exemplo, a
atribuição da medida a pessoas do mesmo sexo. Revistas mais íntimas, como as
realizada nas cavidades anais e vaginais, também devem ser procedidas com
cautela. Exames de sangue, a seu turno, podem atingir a integridade física do
indivíduo, bem como podem, mesmo que de maneira momentânea, privá-lo de sua
liberdade, estudo que será adiante aprofundado.
48
4 INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS SOBRE O DIREITO À NÃO
AUTOINCRIMINAÇÃO
Todas as construções e interpretações acerca do direito à não
autoincriminação são extraídas, via de regra, de um simples artigo da Constituição
Federal88, que afirma que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o
de permanecer calado.
Vários países possuem em suas Constituições ou em suas leis ordinárias
dispositivos consagrando o direito ao silêncio. O Código de Processo Penal
português89, por exemplo, dispõe em seus artigos 343º, 1, e 61º, 1, “d”, que, após a
identificação, o presidente do tribunal informará o arguido de que tem o direito de
prestar declarações, referentes ao processo, em qualquer momento da audiência, e
de que não é obrigado a prestá-las, nem o seu silêncio poderá prejudicá-lo. Já o
Código italiano dispõe em seu artigo 64, 3, “b” 90 que, antes de iniciar o
interrogatório, a pessoa deve ser advertida de que poderá optar por não responder a
qualquer pergunta que lhe seja feita, muito embora isso não vá interromper o curso
do processo.
A Quinta Emenda do direito norte-americano, como visto, tem texto
semelhante ao nosso artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição. Reza o citado
dispositivo que ninguém poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir
de testemunha contra si mesmo. A Suprema Corte americana enfrentou por diversas
vezes a extensão desse direito, sendo célebre o julgamento do processo Schmerber
v. California. Nesse julgamento ficou estabelecido que o direito alcança as
comunicações dos acusados, qualquer que seja a forma que assumirem, assim
como abrange as respostas que também podem ser consideradas comunicações,
como, por exemplo, intimações para entrega de documentos próprios. Por outro
lado, tanto as cortes federais como as estaduais têm decidido que não há a proteção
88
Artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal. 89
Disponível em: <http://www.legix.pt/docs/CPP-30_Ago_2010.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2014. 90
“Art. 64 - [...] 3. Prima che abbia inizio l’interrogatorio, la persona deve essere avvertita che: a) le sue dichiarazioni potranno sempre essere utilizzate nei suoi confronti; [...] b) salvo quanto disposto dall’articolo 66, comma 1, ha facoltà di non rispondere ad alcuna domanda, ma comunque il procedimento seguirà il suo corso.” (Disponível em: <http://www.brocardi.it/codice-di-procedura-penale/libro-primo/titolo-iv/art64.html>. Acesso em: 15 ago. 2014).
49
contra a obrigação de submeter-se a exames de impressões digitais, fotografias ou
medições, escrever ou falar para fins de identificação, comparecer à corte,
permanecer em determinada postura, andar ou fazer um gesto característico. A
distinção que foi traçada é no sentido de que o privilégio é uma barreira contra a
obrigação relativa às comunicações e testemunhos; a obrigação que torna o
suspeito ou o acusado fonte real ou física da evidência não viola o direito.
O direito à não autoincriminação, segundo a legislação alemã, repousa na
combinação de dois artigos da Constituição, 1 (1) e 2 (1)91. É composto de duas
vertentes, a liberdade de permanecer em silêncio e a liberdade de não cooperar.
Enquanto a primeira liberdade está relacionada com o testemunho do suspeito e,
consequentemente, à confissão, o segundo diz respeito a todas as ações do
acusado que não guardam qualquer relação com as suas declarações. Assim, além
do direito de permanecer calado, o direito à não autoincriminação também faculta ao
acusado não ser compelido a participar ativamente de sua incriminação. Todavia, se
a evidência puder ser obtida sem a sua ação voluntária, ela deve ser aceita. A
legislação alemã autoriza, inclusive, uma série de medidas a serem realizadas no
próprio corpo do indivíduo, como, por exemplo, a extração forçada de amostras de
sangue. De fato, diz a lei alemã que o exame físico do acusado pode ser ordenado
para a finalidade de comprovação de fatos relevantes para os procedimentos. Para
esse fim, a colheita de amostras de sangue e outras intrusões físicas em seu corpo
são permitidas e devem ser feitas por médicos, mesmo sem o consentimento do
acusado, de acordo com as regras da ciência médica, contanto que não causem
nenhum risco à saúde.
Os exemplos são inúmeros e têm em comum uma semelhante redação que,
em suma, assevera que o investigado não está obrigado a responder às perguntas
que lhe forem formuladas, ou seja, ele não será impelido a servir de testemunha
contra si mesmo.
91
“ g 1 (1) - A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. Artigo 2 (1) - Todos tem direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, qu ã v u ã u u .” (BAUSH, Stefanie M. Body search and physical examination of the accused, the privilege against self-incrimination and the consequences of illegally obtained evidence in German criminal law. Munich, Germany: GRIN Publishing, 2004. p. 5).
50
Ocorre que, não obstante as redações quase idênticas dos referidos
dispositivos, a jurisprudência brasileira tem dado uma extensão inimaginável ao
referido direito. Há algumas hipóteses que não geram maiores controvérsias, como
aquelas que se referem diretamente a questões envolvendo o silêncio propriamente
dito. Todavia, além das questões relacionadas diretamente à faculdade de o
investigado não ser obrigado a colaborar com a acusação e de permanecer calado92,
a nossa jurisprudência houve por bem aplicar o direito à não autoincriminação a
situações absolutamente diversas e que não encontram paralelo, sob a ótica do
direito comparado.
Com efeito, admite a jurisprudência a possibilidade de o indivíduo negar
falsamente a acusação (ST − HC n. 68.742-3/DF93), a possibilidade de imputar
falsamente a autoria do crime a terceiros, desde que em relação a eles a
punibilidade esteja extinta (ST − HC n. 80.616-3/SP 94 ), a possibilidade de
considerar falsa assinatura legítima existente em documento (ST − HC n. 75.257-
8/RJ95), a possibilidade de utilizar fraude no fornecimento de material para exame
grafotécnico para iludir a perícia (ST − HC . 83.960/RS96) e a possibilidade de o
causador do acidente evadir-se do local em que este ocorreu, para não ser
responsabilizado penal e civilmente (TJSP − HC n. 2062378-07.2013.8.26.0000).
Não há razões para essa anacrônica interpretação, uma vez subjacentes os
mesmos princípios orientadores. A universalidade do direito natural materializada
pelos direitos humanos consiste não no fato de o direito positivo ser idêntico em
todos os locais, mas no fato de em todas as formas de direito positivo,
independentemente da diversidade das circunstâncias materiais, estar subjacente o
mesmo princípio ideal.
92
A jurisprudência brasileira tem reconhecido que o direito à não incriminação abrange, além do direito ao silêncio, outras formas de inércia ou inatividade, como a recusa em oferecer material para exame grafotécnico (ST − HC n. 77.135-8/SP), recusa em participar da reconstituição do crime (ST − HC n. 69.026-2/DF) e recusa em fornecer padrões de voz (ST − HC n. 83.096-0/RJ).
93 Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=71200>.
Acesso em: 27 out. 2014. 94
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=78460>. Acesso em: 27 out. 2014.
95 Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=75851>.
Acesso em: 27 out. 2014. 96
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=384853>. Acesso em: 27 out. 2014.
51
Os direitos estabelecidos nos tratados são direitos mínimos que podem e
devem ser incrementados pelos Estados. Assim, tal ampliação do direito à não
incriminação realizada pela jurisprudência pátria poderia parecer à primeira vista
desejável. Sucede que ela ocorreu em detrimento de outros direitos igualmente
fundamentais para a nossa sociedade, chegando até mesmo a inviabilizar a
persecução penal relativamente a algumas modalidades de delitos.
Vejamos as principais manifestações do direito à não autoincriminação
reconhecidas pela jurisprudência pátria. Antes, porém, devemos verificar qual o
papel desempenhado pelo consentimento na produção da prova.
4.1 Necessidade do consentimento do réu para a realização da
prova
No julgamento do Recurso Especial n. 1.111.56697, o Superior Tribunal de
Justiça houve por bem firmar a tese de que só o teste do bafômetro ou o exame de
sangue para verificação de dosagem alcoólica seriam aptos para a comprovação do
crime de embriaguez ao volante. No referido julgamento, várias teses foram
apresentadas, referentes ao direito à não autoincriminação, sendo que várias delas
ressaltaram a impossibilidade de se produzir uma prova contra o consentimento do
réu. Argumentou-se que a realização da prova em desfavor do paciente em
desacordo com sua vontade violaria um direito que lhe é fundamental98 e que o
direito à não autoincriminação vedaria a demonstração do estado de alcoolemia
pelos meios de prova que dependessem da anuência do acusado.99
97
STJ − REsp n. 1.111.566/DF, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, rel. para o acórdão Des. Adilson Vieira Macabu, j. 28.03.2012.
98 Nesse sentido o voto do desembargador Adilson Vieira Macabu, relator do voto vencedor, que asseverou ser inaceitável a tentativa de restringir a liberdade do cidadão, mediante violação de direitos inerentes à personalidade, que constitui um bem constitucionalmente tutelado. Daí a inadmissibilidade de produção de prova em desfavor do paciente, em desacordo com sua vontade, sob pena de violação de um direito que lhe é fundamental.
99 O ministro Gilson Dipp, mesmo divergindo do relator vencedor, afirmou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assim como a dos tribunais de modo geral, garante ao acusado o direito de não ser compelido a produzir prova contra si mesmo. A expressão nemo tenetur se detegere, que consagra o princípio, justificaria assim a vedação da demonstração do estado de alcoolemia pelos meios de prova que dependam da anuência do acusado.
52
A leitura dos votos subordina a realização da prova ao consentimento do réu.
Consequentemente, a prova que estivesse em desacordo com a sua vontade
afrontaria o direito à não autoincriminação. Assim, no processo penal, as provas
admissíveis seriam apenas aquelas que contassem com a anuência do acusado.
Será que, de fato, uma prova para ser válida necessita, efetivamente, da
anuência do réu? Provas introduzidas no processo penal contra a sua vontade
devem ser admitidas?
Não nos parece que tal consentimento seja necessário para a validade da
prova. Como ressaltado, o consentimento do acusado somente se mostra
necessário quando as provas não puderem ser produzidas de outro modo. Vejamos
alguns exemplos.
Documentos introduzidos nos autos em razão de mandado de busca e
apreensão na residência do acusado, diligência esta realizada contra a sua vontade,
são aptos para fundamentar eventual condenação? E o que dizer de uma medida de
interceptação telefônica que o réu sequer tem ciência de sua existência?
Tomemos outro exemplo, o auto de reconhecimento previsto no artigo 226 do
Código de Processo Penal. O artigo determina que quando houver necessidade de
se fazer o reconhecimento de pessoa, ela será colocada, se possível, ao lado de
outras que com ele tiverem qualquer semelhança. Pode o investigado recuar de
participar de tal diligência, sob o pretexto da proibição de autoincriminação? Pode
ele cobrir com as mãos o seu rosto para não ser reconhecido? Pode a autoridade
obrigá-lo, inclusive com o uso da força necessária, a descobrir o seu rosto para que
seja possível o reconhecimento?
Evidentemente, a resposta é afirmativa. Medidas tomadas
independentemente da anuência do réu, e mesmo as efetivadas contra a sua
expressa vontade, são perfeitamente válidas no processo penal.
53
Buscas pessoais também são realizadas mesmo contra a vontade do
acusado, não havendo dúvida de que pode ser apresentado em juízo o resultado
dessas buscas, como, por exemplo, armas e drogas encontradas etc.
Buscas pessoais e exames do suspeito, diga-se, não se relacionam às
declarações verbais, mas à faculdade do réu em não cooperar com a investigação.
Via de regra, o direito à não autoincriminação não é violado pelas autoridades
nessas hipóteses, pois elas são capazes de realizar tais buscas sem o auxílio dos
acusados, vale dizer, eles permanecem passivos e apenas são obrigados a permiti-
las.
Nesse sentido, a jurisprudência alemã 100 entende que o direito à não
autoincriminação não abrange apenas as declarações verbais, mas também outros
atos que requerem a sua participação e se destinam a providenciar provas para a
acusação. Por exemplo, ninguém pode ser compelido a produzir documentos
contendo informações autoincriminatórias, a participar de experimentos psicológicos
ou entrevistas psiquiátricas, a providenciar padrões de voz ou escrita, ou mesmo
amostras de sangue. De acordo com o ponto de vista majoritário, até mesmo o mero
sopro é considerado uma ação voluntária, o que significa que ninguém pode ser
forçado a se submeter ao teste do bafômetro.
As eventuais semelhanças de entendimento entre a jurisprudência alemã e a
nacional param por aí, pois são admitidas pelos alemães formas de coleta de
evidências consideradas passivas, nas quais o indivíduo é obrigado a suportar
determinados procedimentos, pouco importando estar ele de acordo ou não. Assim,
o suspeito pode ser compulsoriamente forçado a fornecer amostras de sangue; se
não houver o seu consentimento ou a sua anuência, pode a autoridade conduzi-lo a
um local apropriado e retirar a amostra à força.
Não vamos, neste momento, tratar detalhadamente das provas invasivas, já
que serão analisadas em tópico específico. O que deve ficar assente, todavia, é que
100
WEIGEND, Thomas; GHANAYIM, Khalid. Human dignity in criminal procedure: a comparative overview of Israeli and German law. Israel Law Review, v. 44, n. 1-2, p. 207, 2011. Disponível em: <http://law.huji.ac.il/upload/ILR44GhanayimWeigendCRC.pdf> Acesso em: 14 fev. 2014.
54
o consentimento será apenas necessário quando a prova não puder ser realizada de
outra forma, mesmo que isso implique em ter o réu que suportar passivamente
determinados procedimentos, como buscas pessoais, tomada de impressões
digitais, fotografia e coleta de fluidos corporais. Com entendimento semelhante,
pode ser apontada a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no julgamento
Tirado Ortiz and Lozano Martín v. Spain, de 22 de junho de 1999.101
Não obstante a delimitação do direito à não autoincriminação exposta, mais
abrangente no direito europeu, quando comparada ao norte-americano, o que temos
observado nos julgados pátrios é a invocação do direito à não autoincriminação para
a justificação de condutas que, a nosso ver, não guardam com ele qualquer relação.
O direito à não autoincriminação é assim um mantra que é constantemente repetido
em inúmeras ocasiões, nem sempre muito bem relacionadas entre si, o que acaba
por alargar em demasia o referido direito, tornando-o incerto e, por vezes,
dificultando ou mesmo impossibilitando a persecução penal.
O radical auto, de origem grega, tem o significado de por si mesmo, próprio, e
é nesse sentido que deve ser entendida a vedação à autoincriminação. Repise-se,
só são capazes de violar o princípio as provas que exijam uma participação ativa do
réu, provas que só possam ser realizadas por ele próprio, que dependam de sua
ativa colaboração. Adverte Eugênio Pacelli de Oliveira 102 que o que deve ser
protegida, em qualquer situação, é a integridade física e mental do acusado, a sua
capacidade de autodeterminação, daí porque são inadmissíveis o soro da verdade e
a ingestão de qualquer substância química para tal finalidade.
Segue que se o réu não quiser falar, ninguém pode obrigá-lo, a não ser por
meios ilícitos, como o mencionado soro da verdade ou mediante atos de tortura.
Eugênio Pacelli de Oliveira continua, asseverando que deve ser protegida a
dignidade da pessoa humana, a vedar qualquer tratamento vexaminoso ou ofensivo
à honra do acusado, todavia entende que não haveria ofensa ao princípio com a
101
MCBRIDE, Jeremy. Human rights and criminal procedure: the case law of the European Court of Human Rights. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2009. p.188.
102 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 384.
55
exigência de fornecimento de padrões gráficos. Ocorre que não há como obrigar-se
o réu a escrever se ele assim não o desejar, parecendo-nos, destarte, estar
abrangida pelo princípio essa recusa.
Por outro lado, todas as provas que puderem ser realizadas
independentemente da colaboração do acusado não estão necessariamente
amparadas pelo princípio, sendo irrelevante, nessas hipóteses, a sua anuência, vale
dizer, a prova poderá ser realizada contra a sua vontade e com a utilização da força
necessária. O mero fato de o réu participar passivamente da produção da prova não
ofende o direito à não autoincriminação.
4.2 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas passivas
do indivíduo
4.2.1 Direito ao silêncio
A jurisprudência brasileira reconheceu o direito ao silêncio em diversos
julgados:
A Constituição Federal assegura aos presos o direito ao silêncio (inciso LXIII do art. 5º). Nessa mesma linha de orientação, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Pacto de São José da Costa Rica) u z í “ ã -auto- çã ” (nemo tenetur se detegere). Esse direito subjetivo de não se auto-incriminar constitui uma das mais eminentes formas de densificação da garantia do devido processo penal e do direito à presunção de não-culpabilidade (inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal).
103
Como visto, o direito ao silêncio desenvolveu-se e ganhou corpo no sistema
anglo-saxão. Podemos identificar várias formas de interpretação do referido direito,
algumas mais amplas, outras não tão abrangentes. Vamos a algumas delas. A
primeira é a que pode ser extraída diretamente do texto e diz respeito ao direito que
tem o réu ou investigado de permanecer em silêncio, a não ser que opte por falar,
sendo que desse silêncio nenhuma consequência pode ser inferida, ou seja, o mero
103
ST − HC . 101.909/MG, rel. Min. Ayres Brito, j. 28.02.2012. No mesmo sentido: ST − HC n. 114.095/MS; ST − HC n. 109.978/DF, entre outros.
56
fato de permanecer calado não poderá, em nenhuma hipótese, prejudicá-lo, pois a
prova dos fatos delituosos cabe à acusação.
O direito ao silêncio protege o indivíduo da exposição de fatos de sua esfera
privada, fatos íntimos de sua vida que ele pode não ter interesse em revelar. Ao
permanecer em silêncio, garante-se a ele o direto de não ser compelido a expor a
sua própria culpa. Em outras palavras, o silêncio não implica em assunção de culpa
ou reconhecimento dos fatos a ele imputados, mas constitui mero exercício de
direito previsto constitucionalmente.
Como decorrência do direito ao silêncio, não pode ser o indivíduo coagido
pela polícia a fazer declarações involuntárias para se autoincriminar. Somente
declarações realizadas de forma voluntária podem ser utilizadas no processo penal,
sob pena de infração à cláusula do devido processo legal. Não basta, todavia, que
as declarações sejam feitas de forma voluntária, mas é necessário que elas tenham
sido realizadas após o indivíduo ter sido informado, expressamente, acerca de seu
direito de permanecer em silêncio.
Também tem o indivíduo o direito de não testemunhar em processo penal
contra si instaurado. Vale dizer, não tem a obrigação de colaborar com a acusação
para a elucidação dos fatos, uma vez que tal ônus recai, exclusivamente, à parte
que os aduz, elemento essencial do sistema adversarial. Mas o direito de não
testemunhar não emerge somente nos processos penais instaurados contra si, mas
em quaisquer outros, desde que desse testemunho possa ocorrer a sua
autoincriminação.
As declarações firmadas pelos indivíduos sem a observância de tais
requisitos, obtidas sob tortura ou qualquer outra forma de coação, sujeitam os
responsáveis às penalidades penais e cíveis previstas na legislação. Além disto, tais
declarações, e todas as outras que dela foram decorrentes (frutos da árvore
envenenada), devem ser excluídas do processo penal, ou seja, não podem tais
provas servir como fundamento para a eventual edição de decreto condenatório.
57
No direito norte-americano, o direito ao silêncio ainda previne o indivíduo de
sujeitar-se a um cruel dilema. As testemunhas têm o dever de dizer a verdade em
juízo e, ao contrário do réu, não podem silenciar, sob pena do cometimento de uma
infração denominada contempt of court. Se o réu fosse obrigado a testemunhar em
processo penal contra si instaurado, se veria na seguinte dúvida: dizer a verdade e
com isso autoincriminar-se, mentir e cometer o crime de perjúrio ou silenciar e
cometer o contempt of court.
Cabe à acusação envidar todos os esforços possíveis para a apuração dos
fatos, não se exigindo do réu qualquer atitude ativa. Se a acusação não se
desincumbir de seu ônus, a consequência será a absolvição, facultando-se ao réu
uma atividade meramente passiva no decorrer de todo o curso do processo penal.
O direito ao silêncio, entretanto, da forma que foi construído e idealizado no
direito anglo-saxão, jamais teve o intuito de permitir que o réu mentisse em seu
interrogatório. Essa era uma hipótese que não estava albergada no rol de
interpretações possíveis do instituto. Tanto isso é verdade que no direito norte-
americano, berço do instituto, o réu, conquanto não seja obrigado a depor, se o fizer
deverá dizer a verdade, sob pena de cometer o crime de perjúrio.
É certo que os institutos, quando transpostos do direito de um país para outro,
podem adquirir contornos diferentes, ou mesmo sofrer adaptações com o passar dos
tempos, entretanto uma interpretação histórica do direito ao silêncio não autoriza
afirmar que ele assegura ao réu o direito de mentir sem quaisquer consequências,
sem que tal mentira possa ser de alguma forma penalizada.
Não há dúvida que várias atrocidades foram cometidas contra os réus pelo
Estado investigador, atrocidades que já eram noticiadas nas jurisdições eclesiásticas
e continuam sendo cometidas na atualidade pelos responsáveis pelas investigações
criminais.
58
Cesare Beccaria 104 era francamente contrário ao juramento do réu,
ponderando que uma contradição entre as leis e os sentimentos naturais do homem
nasce dos juramentos que se exigem do réu, para que seja um homem veraz,
quando seu maior interesse é mentir.
A objeção de Cesare Beccaria era, de fato, pertinente, mormente em virtude
de os sistemas processuais penais então vigentes exigirem o depoimento do réu e,
ainda, que ele se desse sob a promessa de dizer a verdade. Também nos sistemas
em que, mesmo sem o compromisso de dizer a verdade, o acusado é obrigado a
depor, ou ainda naqueles em que, não obstante a não obrigatoriedade, o seu
silêncio é tomado em seu desfavor105, a objeção continua procedente.
Nessas hipóteses o acusado não possuía alternativa, a não ser mentir.
A situação atual, todavia, é um pouco diferente. O depoimento do acusado
não mais se mostra necessário, constituindo uma faculdade que lhe outorgou o
moderno processo penal. O réu apenas prestará o seu depoimento se assim o
desejar. A lei ainda é expressa ao consignar que nenhuma ilação poderá ser inferida
desse silêncio, pois cabe à acusação a comprovação de todos os fatos descritos na
inicial acusatória. Dessa forma, dado o panorama atual, podemos sustentar haver
um direito à mentira?106
4.2.2 Direito à mentira
Aqueles que admitem o recurso à mentira como inerente ao direito ao silêncio
argumentam que não há no nosso Código de Processo Penal um único artigo
sequer que chancele a obrigação de o réu de cooperar com o aparelho repressivo,
mormente quando o depoimento for utilizado contra si mesmo.
104
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. p. 61. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.
105 Nesse sentido, a antiga redação do Código de Processo Penal: “ rtigo 186 - Antes de iniciar o
interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.”
106 Embora na mentira o comportamento do réu seja ativo e não omissivo, o direito à mentira será
tratado nesta sequência, em razão de sua estreita ligação com o direito ao silêncio.
59
Nos Estados Unidos, conforme acima exposto, o réu não é obrigado a depor
em processo penal contra si instaurado. Todavia, se decidir expor a sua versão dos
fatos aos jurados, deverá prestar o compromisso de dizer a verdade. Uma vez
quebrado tal compromisso e comprovada a mentira, poderá ser condenado pelo
crime de perjúrio, com penalidades que podem atingir 15 anos de reclusão.
Não há, todavia, no ordenamento jurídico pátrio, tal dispositivo. Conquanto
haja diferenças nos procedimentos adotados lá e cá, uma vez que no Brasil o réu
sempre é intimado a depor, ao passo que nos Estados Unidos ele tem o direito de
escolha, a verdade é que, ao cabo, os dois sistemas se assemelham, pois embora
no Brasil ele seja intimado para prestar as suas declarações, pode optar por manter-
se calado, havendo o mesmo efeito prático, que é o de não colaborar com a
acusação.
As testemunhas são advertidas, nos termos do artigo 203 do Código de
Processo Penal, de que deverão, sob palavra de honra, dizer a verdade do que
souberem e lhes for perguntado. A consequência para o descumprimento da
promessa está prevista no artigo 342 do Código Penal: reclusão de 1 a 3 anos e
multa.
O réu, entretanto, não faz a mesma promessa. O artigo 186 do Código de
Processo Penal dispõe que depois de devidamente qualificado e cientificado do teor
da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, de
seu direito de permanecer calado e de não responder às perguntas que lhe forem
formuladas.
O artigo 342 do Código Penal, ao enumerar os sujeitos ativos do delito de
falso testemunho (testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete), excluiu do
seu rol o acusado, deixando claro, por essa exclusão, que o réu não comete o citado
delito se não disser a verdade em seu interrogatório.
60
Vários doutrinadores entendem, por conseguinte, que o réu pode mentir em
seu interrogatório. Nesse sentido, Magalhães Noronha107 admite que o acusado
pode mentir e negar a verdade, uma vez que não está obrigado a depor contra si.
Negando a imputação, será ele instado a indicar as provas da verdade de suas
declarações.
Guilherme de Souza Nucci 108 aduz que como ninguém é obrigado a se
autoacusar; para evitar a admissão de culpa, há de afirmar algo que sabe ser
contrário à verdade. Assevera, ainda, que “o direito constitucional à ampla defesa
não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir
à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento é permitido. E se é
permitido, torna-se direito”.
Hélio Tornaghi109, a seu turno, entende, da mesma forma, que o réu pode
mentir. Pondera, entretanto, que não se trata de um direito de mentir, nem há que
falar em direito subjetivo nessa hipótese. O que ocorre é que a mentira do réu não
constitui crime, não é ilícito, ou seja, o réu é livre para mentir porque, se o fizer, não
sofrerá nenhuma consequência. Adverte, por fim, que ele é livre para mentir para se
defender, e não para se acusar.
Guilherme de Souza Nucci argumenta tratar-se de eufemismo a afirmação de
que a mentira narrada pelo acusado é uma mera irrelevância jurídica110, a ponto de
não lhe trazer nenhuma consequência negativa, pois:
O fato atípico também é para o Direito Penal, uma irrelevância jurídica, porém de suma importância, uma vez que sinaliza não ser o ato praticado um crime. Logo parece-nos relevante aquilatar quais condutas são típicas e as que não o são. No campo processual penal, quando o réu, para se defender, narra mentiras ao magistrado sem incriminar ninguém, constitui seu direito de refutar a imputação.
111
107
NORONHA, Edgard. Magalhães. Curso de direito processual penal. 23. ed. atualizada por Adalberto Jose Q. T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 108.
108 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 11. ed. rev., atual. e ampl., 2.
tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 442. 109
TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 20.
110 Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Elsevier,
2008. v. 1, p. 233. 111
NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal comentado, cit., p. 443.
61
O Supremo Tribunal Federal112 já admitiu que o réu ou o investigado tem o
direito de mentir em suas declarações:
Habeas corpus. Falsidade ideológica. - No caso, a hipótese não diz respeito, propriamente, à falsidade quanto à identidade do réu, mas, sim, ao fato de o então indiciado ter faltado com a verdade quando negou, em inquérito policial em que figurava como indiciado, que tivesse assinado termo de declarações anteriores que, assim, não seriam suas. Ora, tendo o indiciado o direito de permanecer calado e até mesmo o de mentir para não auto-incriminar-se com as declarações prestadas, não tinha ele o dever de dizer a verdade, não se enquadrando, pois, sua conduta no tipo previsto no artigo 299 do Código Penal. Habeas corpus deferido, para anular a ação penal por falta de justa causa.
Todavia, o fato de não haver imposição de pena para o réu que mentir em seu
interrogatório autoriza a afirmação de que há o direito à mentira?
Argumenta-se que o artigo 342 do Código de Processo Penal não criminaliza
o falso testemunho quando praticado pelo réu e que apenas as testemunhas, e não
o réu, são advertidas do dever de dizerem a verdade.
De fato, o réu, conforme dispõe o artigo 186 do Código de Processo Penal,
depois de devidamente qualificado e cientificado do teor da acusação, será
informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, de seu direito de permanecer
calado e de não responder às perguntas que lhe forem formuladas. Nenhuma
menção há ao seu dever de dizer a verdade.
O fato de a lei não cominar pena privativa de liberdade ao acusado que mentir
em seu depoimento autoriza que concluamos em sentido contrário, ou seja, que ele
tem o direito de mentir?
A tese parte, a nosso ver, de uma premissa equivocada, a de que a legislação
não estabelece ao réu mendaz nenhuma sanção. Se tomarmos a sanção
exclusivamente como a imposição inaugural de uma pena privativa de liberdade e
considerarmos que não há norma sem sanção, seremos forçados a concluir que há
112
ST − HC . 75.257/RJ, rel. Min. Moreira Alves.
62
o direito de o réu mentir em seu interrogatório113. De fato, como o crime de falso
testemunho não inclui o réu no rol dos sujeitos ativos do delito e, segundo a clássica
noção de liberdade − podemos fazer tudo o que a lei não proíbe − certo é que o
direito de mentir, por não ser proibido, é permitido.
Todavia, não se deve entender por sanção apenas a aplicação de uma pena,
uma vez que o seu significado é bem mais abrangente. Na verdade, quando se fala
em norma com sanção, o que se está querendo dizer é norma acompanhada de
uma consequência jurídica, seja ela qual for.
Admite-se que114 o réu em certas circunstâncias pode ser condenado por
mentir. Desta sorte, pode ele ser punido quando praticar o delito de autoacusação
falsa, pois há a tipificação da conduta de quem se acusa de crime inexistente ou
praticado por terceiro (art. 341 do CP), quando praticar o crime de denunciação
caluniosa, descrito no artigo 339, ou quando cometer o crime de calúnia, imputando
falsamente a outrem o cometimento de um crime (art. 138 do CP).
Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso
Extraordinário n. 640.139/DF115, que a apresentação de identidade falsa perante
autoridade policial com o objetivo de ocultar maus antecedentes é crime previsto no
Código Penal (art. 307) e a conduta não está protegida pelo princípio constitucional
da autodefesa (art. 5º, inc. LXIII, da CF/88). Essas considerações já implicariam na
conclusão de que se há o direito à mentira, ele, ao menos, é limitado, não
abrangendo todas as mentiras do réu. Com efeito, quando houver tipificação para a
conduta, como na apresentação de identidade falsa, ou quando o réu imputar
falsamente o crime a terceiros (calúnia), a mentira proferida no interrogatório será
sancionada.
113
Hans Kelsen diferenciava a norma primária da norma secundária. Para ele, a sanção estava contida na norma primária, enquanto a secundária estabelecia a conduta. A norma secundária destinava-se a enunciar de forma explícita o que foi estabelecido implicitamente pela norma primária. O autor entendia que a sanção está contida na ideia de direito: “É, por isso, de rejeitar uma definição do Direito que o não determine como uma ordem de coação, especialmente porque só através da assunção do elemento coação no conceito de Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra ordem social [...].” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 60).
114 QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 280.
115 ST − G RE n. 640.139/DF, rel Min. Dias Toffoli.
63
E se o réu mentir fora das hipóteses acima enumeradas, ou seja, se não
ocorrer a implicação de terceiros ou o fato não constituir crime autônomo?
Entendemos que, mesmo nessas hipóteses, isto é, quando a mentira for utilizada
como exclusivo meio de defesa, como, por exemplo, quando se inventa um álibi,
poderá o juiz extrair dessas respostas falsas consequências penais. Há, ao menos,
três espécies de consequências previstas.
Cumpre ressaltar, de início, que nem todas as consequências penais
previstas constam dos tipos penais específicos. Há consequências, como as
descritas no artigo 62 do Código Penal, que não constam dos mencionados tipos
incriminadores, mas, todavia, agravam as penas e se aplicam a todos os delitos. Da
mesma forma, as atenuantes contidas no artigo 65 do Código Penal aplicam-se a
todos os crimes e têm a função de reduzir a pena imposta. Dentre essas atenuantes
interessa-nos a prevista no inciso III, “d”, do artigo 65 do Código Penal: ter o agente
confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime.
Determina a lei penal que se o agente disser a verdade e confessar o delito, a
sua pena será diminuída. Se o réu mentir (ou calar), a consequência consistirá na
não redução de sua pena, na não aplicação da atenuante a que faria jus se tivesse
dito a verdade. Assim, conquanto não exista especificamente um tipo penal
criminalizando a conduta do réu mendaz, é inegável a existência de uma
consequência penal, caso seja constatada a mentira. Temos assim a hipótese da
norma, que estabelece a conduta: dizer a verdade e confessar o crime. E a
consequência: redução da pena cominada. Observe-se que a consequência – não
aplicação da atenuante − será a mesma se o réu se mantiver em silêncio. Dessa
forma, pode-se dizer que o ordenamento busca a obtenção da verdade, tanto é que
concede um benefício ao réu colaborador.
Advirta-se que quando se diz que o silêncio do réu não poderá ser utilizado
em seu desfavor, isso significa que ele não tem o dever de colaborar com o Estado
para a apuração dos fatos e que eventual condenação só poderá advir das provas
trazidas aos autos pela acusação, nunca do mero silêncio. O silêncio não equivale a
uma assunção de culpa, nem tampouco implica no reconhecimento dos fatos a ele
imputados. Além disso, a pena não pode ser agravada em virtude do silêncio ou da
64
mentira do réu. Isso não impede, contudo, que a lei estabeleça uma determinada
consequência (favorável) para o réu que disser a verdade e cooperar com o
processo (e, por conseguinte, a não aplicação da consequência em caso contrário).
Uma segunda consequência pode decorrer da mentira do réu. Nos termos do
artigo 131 do Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente ao Código de
Processo Penal, o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e
circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas
deverá indicar na sentença os motivos que o convenceram.
O dispositivo consagra o princípio do livre convencimento motivado do juiz,
que permite a ele atribuir às provas produzidas ao longo do processo o valor que
entender como o mais lógico e correto, desde que corresponda às provas dos autos
e sua decisão seja devidamente fundamentada.
Julio Fabbrini Mirabete116, a respeito do tema, ressaltando a inexistência de
sanção ao réu mendaz, pondera que “não há um verdadeiro direito de mentir, tanto
que as eventuais contradições em seu depoimento podem ser apontadas para retirar
qualquer credibilidade das suas respostas”.
Eugênio Pacelli de Oliveira anota que, não obstante o silêncio do acusado
não possa ser valorado em prejuízo da defesa, não há uma obrigação legal à
aceitação da veracidade do seu depoimento, pois o juiz poderá livremente
desconsiderar a versão defensiva que se encontre desconectada de sentido ou de
lógica argumentativa. Adverte que nessa hipótese não se cuida de valoração do
silêncio, mas de reconhecimento da inconsistência do conjunto da autodefesa.117
Em suma, a mentira do réu poderá resultar em um julgamento desfavorável à
tese defensiva.
116
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 1997. p. 279. 117
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 380.
65
Uma terceira consequência pode ser apontada. O Supremo Tribunal Federal,
no julgamento do Habeas Corpus n. 86.055/SP118, assentou o entendimento de que
a mentira do réu no interrogatório, no que concerne aos seus dados qualificativos,
implica a perda do seu direito de ser intimado pessoalmente de sentença
condenatória.
Tratava-se de hipótese de réu que estava preso na data da publicação do
edital de intimação, ou seja, de réu que não fora intimado pessoalmente da sentença
condenatória. Ocorre que o réu, no momento de sua prisão em flagrante pelo crime
de roubo qualificado, declinou falsa identidade.
Ao ser interrogado, já no curso da ação penal instaurada, persistiu na mentira,
que somente foi descoberta posteriormente, quando então promoveu o Ministério
Público o aditamento da denúncia. O relator para o acórdão entendeu que o réu deu
causa à nulidade identificando-se falsamente e, por isso, o Estado não estava
obrigado a conhecer o seu paradeiro.
Vimos, pois, que não se pode dizer que a mentira não produz consequências
no processo penal. Aprofundemos agora um pouco o argumento de que a lei permite
aquilo que não proíbe.
Vejamos um exemplo para aclarar o exposto. A lei penal tipifica o tráfico de
drogas, assim como a conduta daquele que é flagrado com drogas para consumo
próprio. A lei não traz qualquer punição, todavia, ao indivíduo que já consumiu a
droga.
Ora, o fato de não haver punição para o indivíduo que consumiu a droga não
autoriza a afirmação de que há o direito de consumir drogas, ou seja, que o
ordenamento, ao não impor sanção para tal conduta, a autoriza.
118
“Habeas Corpus. Penal. Processo Penal. Citação por edital de réu preso. Nulidade a que o próprio paciente deu causa. Inocorrência. Ad impossibilita nemo tenetur. Ordem denegada. I - O paciente apresentou, no momento de seu encarceramento, identidade falsa, fato a obstar sua localização no momento da citação. II - Nulidade a que deu causa o paciente. III - Inexistência do dever do Estado de saber sua verdadeira identidade. Ad impossibilia nemo tenetur. IV - Ordem denegada.” (ST − HC n. 86.055/SP, 1ª Turma, rel. Min. Cármen Lúcia, rel. p/ acórdão Min. Ricardo Lewandowski, j. 15.08.2006).
66
A intenção do legislador deve ser buscada não apenas no texto isoladamente
considerado, mas nos vários textos que disciplinam a matéria. A interpretação
conjunta dos dispositivos permitirá concluir que o legislador nunca teve a intenção
de autorizar o consumo de drogas, mas apenas tratou o consumidor de uma
maneira mais complacente, entendendo desnecessária a sanção nessa hipótese,
em razão de sua situação particular.
O mesmo caminho deve ser trilhado para verificar se o réu tem o direito de
mentir. Comecemos pela análise do Código Penal. A leitura desse diploma legal
evidencia que a mentira é sancionada em vários de seus artigos. No artigo 307, é
tipificada a conduta do agente que atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade
para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio; no artigo 341, a conduta do
agente que acusar-se, perante a autoridade, de crime inexistente ou praticado por
outrem; no artigo 342, a conduta de fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a
verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo
judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral; e, no artigo 138, a
conduta do agente que caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido
como crime. Em diversos outros artigos, o Código Penal tipifica crimes de fraude,
que são uma forma específica de mentira. Assim, não há dúvida de que a mentira
não é tolerada pela legislação penal.
O artigo 203 do Código de Processo Penal, a seu turno, dispõe que a
testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que
souber e lhe for perguntado. Não somente esse artigo objetiva alcançar a verdade,
mas pode-se dizer que todos os artigos do referido diploma legal encadeiam-se em
um procedimento que tem como finalidades últimas a busca da verdade e a punição
dos responsáveis. De fato, perícias, acareações, buscas e apreensões, testemunhos
etc. nada mais são do que instrumentos para a busca da verdade.
O Código de Processo Civil, da mesma forma, em vários artigos, assevera o
dever de as partes dizerem a verdade. O artigo 14, por exemplo, dispõe que as
partes devem expor os fatos em juízo conforme a verdade, assim como devem
proceder com lealdade e boa-fé. O artigo 16 do mesmo diploma legal determina que
67
responderá por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé, entendida esta como a
alteração da verdade dos fatos.
O Superior Tribunal de Justiça119 já decidiu que a boa-fé constitui um princípio
geral de direito e está intimamente relacionado ao comportamento ético e leal do
agente.
Os exemplos mencionados são suficientes para demonstrar que o nosso
ordenamento conferiu grande importância à verdade, à lealdade e à boa-fé, tanto
que erigiu como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma
sociedade justa, justiça que não se revela possível sem a verdade.
Grande parte dos textos contidos nos diplomas legais citados, como visto,
trazem uma sanção específica para as hipóteses de o réu ou a parte descumprirem
o seu dever de dizer a verdade. Essa é a lógica do ordenamento, o seu fio condutor.
Ocorre que, em uma situação excepcional – interrogatório do réu −, o legislador
entendeu por bem não dar o mesmo tratamento à mentira que houvera dado em
outras situações. O legislador pátrio poderia, como fez o legislador estadunidense,
tipificar como crime autônomo o falso testemunho levado a cabo pelo réu, contudo
preferiu não fazê-lo. Isso não significa porém que deixou o caminho livre para a
falsidade, pois, conforme ressaltado, não está o autor da mentira livre de todas as
consequências penais, apenas não há um tipo específico para a sua conduta.
Carlos Henrique Borlido Haddad120 assevera que:
[...] os que argumentam ser um direito mentir, por não consistir em conduta tipificada penalmente, obram em erro. A tentativa de suicídio não é punível, nem por isso tem alguém o direito de se suicidar, pois a vida é um bem indisponível. A atipicidade desta e de outras condutas decorre de opções de Política Criminal − prenhe em conotação moral − a fim de duplamente atender aos interesses da defesa e do Estado na persecução penal.
Vejamos outro exemplo, o homicídio tipificado no artigo 121 do Código Penal.
Sucede que, em algumas hipóteses, o seu autor, conquanto responsável pelo crime,
119
STJ − g . 1.263.480/C (2011/0152105-8), rel. Min. Humberto Martins. 120
HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 141.
68
não será punido, pois o parágrafo 5º do referido artigo dispõe que, na hipótese de
homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da
infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne
desnecessária.
Evidentemente a falta de sanção não permitirá a conclusão de que há o
direito ao homicídio. O mesmo ocorre nas hipóteses em que, não obstante o agente
tenha praticado um fato ilícito, não lhe seria exigível, diante da situação concreta, ter
agido de modo diferente.
Em síntese, o legislador, conquanto não tenha outorgado um direito à mentira,
entendeu que não seria razoável imputar ao réu mendaz o crime de falso
testemunho, reservando a este outras consequências, como a disposta no artigo 65,
inciso III, “d”, do Código Penal.
Vale a pena transcrever, a propósito do tema, o pensamento sempre atual de
Cesare Beccaria:121
Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição! Como se, o mais das vezes, a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião! [...] Consulte-se a experiência e se reconhecerá que os juramentos são inúteis, pois não há juiz que não convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade. A razão faz ver que assim deve ser, porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem são vãs e conseguintemente funestas.
Em conclusão, não se pode afirmar, de maneira peremptória, que o réu tenha
o direito de mentir ou que essa mentira não produza quaisquer consequências no
processo penal. O princípio contra a autoincriminação destina-se à proteção do
acusado e não pode ser utilizado para tutelar atividades criminosas ou ilícitas que
gerem danos a terceiros.122
121
BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das penas, cit., p. 60-61. 122
HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 143.
69
4.2.3 Direito de não participar na reconstituição do crime
O Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento do Habeas Corpus n.
69.026-2/DF, no que diz respeito à presença do réu na reconstituição do crime, que
ele não pode ser compelido, sob pena de caracterização de injusto constrangimento,
a participar da reprodução simulada do fato. O ministro Celso de Mello, relator do
acórdão, asseverou que o “magistério doutrinário, atento ao princípio que concede a
qualquer indiciado ou réu o privilégio contra a autoincriminação, ressalta a
circunstância de que é essencialmente voluntária a participação do imputado no
ato”. Citando as lições de Bento de Faria123, afirma que a “autoridade não pode
obrigar o indiciado a figurar no quadro, pois tal importaria em violência e não valem
os adminículos de prova obtidos por esse meio”.
De fato, não há como obrigar o réu, sem o seu consentimento, a participar da
reconstituição do crime sem atingir o seu direito à não autoincriminação, uma vez
que ele, nessa hipótese, terá que realizar condutas ativas durante o ato, condutas
que, repise-se, devem ser voluntárias, para não macular o referido direito.
4.2.4 Direito de não fornecer padrôes gráficos e de voz
O Código de Processo Penal dispõe, no inciso IV do artigo 174, que no
exame para o reconhecimento de escritos, quando não houver elementos para a
comparação, ou forem insuficientes os exibidos, a autoridade mandará que a pessoa
escreva o que Ihe for ditado.
No julgamento do Habeas Corpus n. 77.135-8/SP, o ministro Ilmar Galvão
aduziu que em face do
[...] princípio nemo tenetur se detegere, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio.
123
FARIA, Antonio Bento de. Código de Processo Penal. 2. ed. atual. Rio de Janeiro: Record, 1960. v. 1, p. 98.
70
Entendeu o ministro que a comparação gráfica constitui ato de caráter
essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o
indiciado contra a autoincriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer
prova capaz de levar à caracterização de sua culpa.
No julgamento do Habeas Corpus n. 83.096/RJ, a ministra Ellen Gracie
entendeu que o privilégio contra a autoincriminação permite que paciente exerça o
direito de silêncio, “não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões
vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser desfavorável”.
Guilherme de Souza Nucci124 assevera que:
Ninguém é obrigado, segundo emana do sistema constitucional e é reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, a produzir prova contra si mesmo. Portanto, se o investigado é o suspeito ou indiciado, conforme orientação de sua defesa, pode preferir não fornecer o material para o exame ser realizado.
Todas as decisões acima têm um ponto em comum. Não há como obrigar o
réu a adotar a medida pretendida, vale dizer, a sua colaboração é necessária para a
prática do ato. Em outras palavras, a prova não pode ser realizada sem a sua
colaboração. O Estado, assim, não tem meios para suprir o consentimento e a
vontade do réu e realizar a prova. Evidentemente estamos falando de meios lícitos
para a sua sujeição.
É claro que em algumas hipóteses a prova poderá ser realizada com a
utilização de procedimentos alternativos. Por exemplo, se o acusado não quiser
fornecer padrões gráficos, poderá a autoridade requisitar de órgãos públicos ou
particulares documentos que contenham a sua assinatura para fins de comparação,
ou proceder a exame no próprio lugar onde se encontram tais documentos, bem
como solicitar a busca e apreensão deles. Todavia não poderá, à exceção de
hipóteses semelhantes a essas, realizar a prova sem a colaboração voluntária do
réu.
124
NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal comentado, cit., p. 412.
71
4.2.5 Necessidade de comparecimento à audiência
O Supremo Tribunal Federal. No julgamento do Habeas Corpus n.
114.095/MS125, reafirmou o seu entendimento no sentido de que “a possibilidade de
o réu não comparecer à audiência é uma expressão do direito constitucional ao
silêncio (art. 5º, inc. LXIII, da CF/88), pois nemo tenetur se deterege”.
A decisão, infelizmente, não analisa a questão sob todos os aspectos, uma
vez que as prerrogativas do réu, embora importantes, constituem apenas uma das
facetas do processo penal, não sendo sequer a sua mais importante, posição
ocupada pelas funções de pacificação social e realização da justiça. Ademais, o
mero comparecimento do réu à audiência, desde que não seja obrigado a dizer o
que não queira, é incapaz de ferir, ainda que de maneira tênue, o direito à não
autoincriminação.
O julgado parece ainda desconsiderar que o interrogatório é apenas uma das
funções desempenhadas pelo réu no processo penal, mas não a única. Com efeito,
o réu, além de prestar ou não o seu depoimento, deve se submeter, por exemplo, ao
reconhecimento por parte da vítima, mesmo porque a jurisprudência tem reafirmado
que as provas produzidas no inquérito devem ser reproduzidas judicialmente, pois o
procedimento administrativo não é realizado sob o manto do contraditório.
Observe-se que ao decidir sobre a obrigatoriedade ou não de uma pessoa
comparecer à Comissão Parlamentar de Inquérito para prestar depoimentos, o
Supremo Tribunal Federal126 não desconsiderou todas as funções que ela poderia
desempenhar, assentando a compulsoriedade de comparecimento nos seguintes
termos:
Impõe-se destacar, por necessário, que a pessoa convocada por uma CPI para depor tem o tríplice dever: a) de comparecer, b) de responder às indagações e c) de dizer a verdade. Embora comparecendo, tais pessoas não poderão ser constrangidas a responder a todas as perguntas que lhes sejam dirigidas, se, por alguma razão, estiverem sujeitas ao dever de sigilo profissional ou funcional (CPP, art. 207) ou, se, de algum modo, a resposta que lhes for exigida puder acarretar-lhes grave dano (CPC, art. 406, I, c/c CPP, art. 3º).
125
ST − HC . 114.095/MS, rel Min. Luiz Fux. 126
ST − HC . 73.035/DF, rel. Min. Carlos Velloso.
72
Já no julgamento do Habeas Corpus n. 79.244/DF, o ministro Sepúlveda
Pertence asseverou que “não assiste direito aos impetrantes de se recusarem a
responder a todas as perguntas que lhes forem feitas, ou mesmo, negarem-se a
comparecer, quando intimados, para prestar depoimento”.
É evidente que se a testemunha fosse depor exclusivamente sobre fatos que
pudessem incriminá-la, ela não teria a obrigação de comparecer à Comissão
Parlamentar de Inquérito, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Como
o seu depoimento pode não se restringir a tais fatos autoincriminadores, mas se
referir a condutas de terceiros, houve por bem a Suprema Corte determinar o seu
comparecimento, com a ressalva de não responder a perguntas que entendesse
prejudiciais.
Registre-se, ainda, que o interrogatório possui duas fases distintas, sendo que
o direito à não autoincriminação aplica-se apenas às perguntas sobre o mérito, ou
seja, sobre o fato delituoso, autoria etc., não tendo aplicação no que concerne à
qualificação do réu. De fato, não se vislumbra qualquer ofensa ao direito à não
autoincriminação o mero oferecimento de dados pessoais, haja vista não guardarem
tais dados qualquer relação com o mérito da questão. Tanto isso é verdade que, nos
termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, constitui crime atribuir-se
falsa identidade perante a autoridade policial:127
O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP).
Assim, à semelhança do decidido em hipóteses de convocação para
depoimentos em Comissões Parlamentares de Inquérito, entendemos que o réu
deve ser obrigado a comparecer à audiência e suportar todos os procedimentos
determinados na legislação penal, só não sendo possível exigir-se que responda às
perguntas de mérito que lhe forem feitas ou forneça padrões gráficos e de voz.
Cumpre ainda ressaltar que o não comparecimento do acusado às audiências pode
acarretar a quebra da fiança e a revogação da liberdade provisória vinculada.
127
ST − RG RE n. 640.139/DF, rel. Min. Dias Toffoli.
73
4.3 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas ativas do
indivíduo
Em todas as hipóteses vistas até agora, o direito à não autoincriminação dizia
respeito a situações em que o acusado recusava-se a praticar alguma ação: não
depor, não fornecer padrões de voz, não comparecer128. Alguns julgados, entretanto,
estendem o direito a comportamentos ativos realizados pelo réu.
4.3.1 Direito à não autoincriminação como justificativa para o
cometimento de delitos. Fraudes praticadas durante o processo
Vejamos um exemplo. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região aumentou a
pena base de um crime de estelionato em razão de o acusado ter fornecido padrões
falsificados para a perícia grafotécnica. Entendeu o Tribunal que tal fato denotava
malícia em sua atividade e consequentemente uma personalidade desviada, e que a
alegação de que a fraude não pode pesar contra o réu no apenamento, porquanto
posterior aos fatos narrados na denúncia, não aproveita ao réu, pois o que está em
questão é a personalidade do agente. A decisão foi confirmada pelo Superior
Tribunal de Justiça, mas reformada pelo Supremo Tribunal Federal 129 , sob o
argumento de que o comportamento do réu durante o processo, na tentativa de
defender-se, não se presta a agravar-lhe a pena:
Assente a jurisprudência do Tribunal em que o comportamento do réu durante o processo, na tentativa de defender-se, não se presta a agravar-lhe a pena (cf. HC 72.815, 5.9.95, Moreira Alves, DJ 6.10.95): é garantia que decorre da Constituição Federal, ao consagrar o princípio do nemo tenetur se detegere (CF/88, art. 5º, LXIII).
Não se pode concordar com o teor do julgado. Nem todos os meios devem
ser aceitos para livrar o acusado da condenação, mesmo porque o processo não é
128
Muito embora o direito à não autoincriminação seja predominantemente observado nas condutas omissivas, isso não implica na possibilidade de sua invocação em todo comportamento omissivo. O não comparecimento à audiência é um exemplo. Assim, poderá o réu ser conduzido à audiência para o reconhecimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal. Também poderá ser determinada a realização de determinada perícia, não obstante a inércia do indivíduo ou mesmo contra a sua vontade, sem que seja configurada ofensa à autoincriminação, como, por exemplo, no exame de raios X para detectar presença de drogas no interior do corpo.
129 ST − HC . 83.960/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
74
um jogo de espertezas, mas é um instrumento ético para a efetivação dos direitos130.
O réu poderia simplesmente recusar-se ao fornecimento dos padrões gráficos sem
que essa recusa fosse capaz de lhe trazer qualquer tipo de prejuízo. Contudo, ao
tentar fraudar a perícia, ele não mais adota uma postura passiva, mas procura
ativamente interferir na prova, tentando modificar o seu resultado, conduta que não
pode ser admitida como abrangida pelo direito à não autoincriminação. O direito à
não autoincriminação exterioriza-se por meio de condutas omissivas, uma vez que a
sua finalidade é obrigar o Estado a, sem a colaboração ativa do réu (ou seja, não
obstante a sua omissão), descobrir todos os elementos do delito por seus próprios
meios. Ao tentar interferir na produção da prova, o réu infringe a finalidade do direito,
bem como ultrapassa todos os seus limites, abrindo caminho para outras condutas
igualmente fraudulentas. De fato, se o réu pode fornecer padrões gráficos falsos, ou
seja, cometer um crime de acordo com a legislação penal, pois tem o direito de não
se autoincriminar, porque não poderia praticar, em nome de sua autodefesa, outras
condutas delituosas no decorrer do processo?
Não se pode assim, em nome do direito à não autoincriminação aceitar-se
que novo delito seja perpetrado para o encobrimento do primeiro. O exercício da
ampla defesa não admite,
[...] em princípio, a ocultação de crimes através de outros delitos. A se conceber como valor primordial uma defesa incondicional que tenha por salvaguarda a liberdade do acusado, deverá aceitar-se o dificultar da visualização da verdade, o produzir no processo provas ilícitas que não se prestarão ao esclarecimento dos fatos e o impedir ilegalmente a apresentação de elementos probatórios legitimamente colacionados, com o que não se pode concordar.
131
Endossando o entendimento que o direito à não autoincriminação não isenta
o autor do delito de fraude processual de ser responsabilizado por sua conduta, o
130
“Processo Civil. Intimação pela imprensa. Ausência do nome do novo patrono da parte. Quatro intimações posteriormente endereçadas ao recorrido. Constância nessas publicações dos nomes corretos de ambas as partes e de seus patronos. Suscitação da nulidade pela recorrente apenas quando publicada intimação comum às duas partes. Preclusão. Art. 245, CPC. Peculiaridades do caso concreto. Processo como instrumento ético. Recurso desacolhido. O processo não é um jogo de espertezas, mas instrumento ético da jurisprudência para a efetivação dos direitos da cidadania [...].” (STJ − REsp n. 65.906/DF(1995/0023303-7), rel. Min. Paulo Gallotti).
131 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação,
cit., p. 147.
75
Superior Tribunal de Justiça denegou habeas corpus impetrado pela defesa de
Alexandre Nardoni. Entendeu o Tribunal que:
O direito à não auto-incriminação não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime, inovando o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, para, criando artificiosamente outra realidade, levar peritos ou o próprio Juiz a erro de avaliação relevante.
Embora parte da doutrina admita que o réu possa, com a finalidade de se
defender, inovar artificiosamente o estado de lugar, coisa ou pessoa, com o fim de
induzir a erro o juiz ou perito, pois essa conduta estaria abrangida pelo seu direito à
autodefesa132, entendo que tal conduta não pode ser amparada pelo direito à não
autoincriminação. Alterar a cena do crime, conduta ativa, portanto, realizada pelo
indivíduo, não guarda qualquer relação com a faculdade do indivíduo de silenciar ou
não colaborar com a investigação.
4.3.2 Imputação falsa de crime a outrem
Outro exemplo de fraude e conduta comissiva do réu diz respeito à
possibilidade de imputação falsa de crime a terceiros. O Supremo Tribunal Federal,
no julgamento do Habeas Corpus n. 80.616-3/SP133, admitiu a possibilidade de, em
nome do direito à não autoincriminação, imputar-se falsamente a autoria do crime a
terceiros, desde que em relação a eles a punibilidade esteja extinta.
Tratava o processo de um homicídio decorrente de um acidente de trânsito
que causou a morte do passageiro. O Tribunal de Alçada Criminal havia impedido o
cumprimento da pena em regime aberto, em função da personalidade do motorista
causador do acidente. Entre os fundamentos utilizados, estava o de que o réu havia
prestado falso depoimento, atribuindo ao passageiro do veículo a responsabilidade
pelo delito:
Outrossim, ainda considerando as circunstâncias judiciais desfavoráveis, não se mostra aconselhável nem admissível a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito. Basta considerar que o réu estava em rota de fuga por crime gravíssimo, praticado naquele mesmo dia,
132
Nesse sentido: GRECO, Rogério. Código Penal comentado. Niterói: Impetus, 2008. p. 1.400. 133
ST − HC . 80.616-3/SP, rel. Min. Marco Aurélio.
76
continuando sua temerária e irresponsável conduta com o capotamento do veículo na mais grosseira imprudência, resultando na morte de seu fiel e inocente empregado. De resto não teve a dignidade de assumir as consequências da verdadeira tragédia que sua irresponsabilidade levou-o a consumar, já que não satisfeito em causar a morte de seu fiel servidor, ainda o injuriou da forma mais covarde e abjeta, atribuindo à infeliz vítima, já então no silêncio dos mortos, de onde não mais poderia defender-se, a própria autoria do acidente automobilístico que a infelicitou.
O ministro Marco Aurélio asseverou que “o simples fato de alguém não se
mostrar confesso sobre um certo crime, atribuindo-o, como no caso dos autos, a
outrem, não é de molde a excluir a substituição”. Mais adiante em seu voto, afirma
que a avaliação que apontara que o réu teria personalidade distorcida, porque não
assumira imediatamente a culpa pelo acidente, teria exigido uma conduta que
discrepa de um direito natural, que é o de autodefesa, o direito de negar a
procedência de uma imputação.
O voto não diz expressamente que o réu, ao imputar a terceiros a autoria de
um delito, não cometera crime algum, pois estaria protegido pelo direito à não
autoincriminação, mas apenas que a atribuição de crime a outrem não exclui a
possibilidade de substituição da pena. O voto, todavia, ante a conduta do réu, que
não apenas negou a autoria do crime, mas foi além, atribuindo a outrem a sua
autoria, afirmou que não se poderia exigir dele outra conduta, em razão da proteção
que lhe teria sido garantida pelo direito à não autoincriminação. Tal afirmação
permite inferir que o direito à não autoincriminação abrange não apenas a faculdade
de o réu negar falsamente o ato criminoso, mas também a de atribuí-lo a terceiro
morto, que justamente por essa condição não poderia ser responsabilizado pelo fato.
Não há como chancelar a conduta do réu em imputar a terceiro a autoria de
um crime, mesmo que em relação a este a punibilidade esteja extinta. A finalidade
do direito à não autoincriminação nunca foi a de permitir a utilização de falsidades
impunemente, mas apenas impedir que o réu fosse obrigado a fornecer, contra a
sua vontade, provas para a elucidação de determinado crime, pois essa tarefa cabe
à acusação. E é tendo em mente essa finalidade que devem ser aferidas as
condutas para verificar se estão ou não protegidas. Toda vez que a conduta não se
mostrar estritamente necessária para a consecução da finalidade, ela não estará
protegida pelo direito. Na situação posta, bastaria ao réu negar a autoria do crime,
77
para transferir o ônus da prova à acusação. Todavia, não satisfeito com a faculdade
que lhe outorgava o direito, o réu foi além, imputando a autoria do crime a outrem,
conduta evidentemente desnecessária para atingir a finalidade do instituto. Na
verdade, o réu com a sua conduta procurou não apenas não se autoincriminar, mas
sim obter uma vantagem indevida, desviando o foco da investigação, conduta que
não está abrangida pelo direito. Reforce-se que o direito à não autoincriminação se
materializa mediante condutas omissivas – não depor, não entregar materiais para
perícia, não permitir a realização de determinados exames etc. Ora, ao imputar a
autoria do crime a terceiros, o réu adota uma postura ativa, procura por intermédio
de uma falsidade obter uma posição favorável, condutas que não podem ser
justificadas pela invocação do direito à não autoincriminação.
4.3.3 Fuga do infrator do local do delito
David Santos Sousa pedalava pela ciclovia da Avenida Paulista, em direção
ao trabalho, quando foi atingido pelo carro de Alex Siwec, de 22 anos, que havia
ingerido bebida alcoólica. As testemunhas ouvidas relataram que antes de atropelar
o jovem, o motorista dirigia em zigue-zague e havia derrubado alguns cones que
delimitavam a ciclovia. O motorista fugiu do local do acidente sem prestar socorro,
levando preso ao veículo o braço arrancado de Sousa. Posteriormente, ele teria
jogado o membro no córrego da Rua Ricardo Jafet, na Zona Sul da cidade, o que
impediu que o braço da vítima fosse reimplantado.
O crime de omissão de socorro, previsto no artigo 135 do Código Penal,
tipifica a conduta do agente que deixar de prestar assistência, quando possível fazê-
lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou
ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o
socorro da autoridade pública.
Trata-se de crime comum, no que concerne ao sujeito ativo, o que significa
que qualquer pessoa pode praticá-lo, desde que, ciente da necessidade de socorro,
e podendo agir sem risco pessoal, deixa de prestar assistência ou de pedir o socorro
da autoridade pública.
78
O intuito da lei é claro. Ela quer obrigar os indivíduos que vivem em sociedade
ao dever de prestarem assistência a quem necessite, exortando-os a adotarem o
princípio da solidariedade, tão importante para a nossa vida social. Nesse sentido é
a lição de Magalhães de Noronha, para quem o artigo 135 do Código Penal traduz
uma norma de solidariedade humana, sob o imperativo legal. Já não se trata de
simples dever moral, mas de uma imposição da lei.134
O artigo 304 do Código de Trânsito Brasileiro traz norma especial no que diz
respeito à omissão de socorro, quando praticada pelo condutor de veículo
automotor, nos seguintes termos: “Deixar o condutor do veículo, na ocasião do
acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente,
por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública”. Por sua vez, o
artigo 302 do mesmo Código aumenta de um terço à metade a pena do agente que
pratica homicídio culposo na direção de veiculo automotor, quando deixa de prestar
socorro, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, à vítima do acidente.
A jurisprudência de modo geral tem reconhecido a aplicabilidade de tais
artigos às condenações dos agentes por crimes de trânsito 135 , vale dizer, tem
134
NORONHA, Edgard. Magalhães. Direito penal: dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. v. 2. p. 93.
135 “Habeas corpus. Homicídio culposo no trânsito anterior à vigência do CBT. Velocidade
incompatível com a via. Inobservância de regra técnica de profissão. Aumento da pena-base pouco acima do mínimo legal (1 ano, 6 meses e 15 dias de detenção). Pena total fixada em 2 anos, 8 meses e 26 dias de detenção em razão do concurso formal (4 vítimas fatais). Circunstâncias judiciais desfavoráveis. Graves consequências do crime. Alto grau de culpabilidade do agente. Decisão fundamentada. Socorro às vítimas. Dever legal do agente causador do delito. Omissão. Causa de aumento de pena. Inadmissibilidade da incidência da atenuante genérica do art. 65, III, b do CPB. Inexistência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. 1. O Juiz de primeiro grau, ao fixar a pena-base pouco acima do mínimo legal, teceu considerações pormenorizadas à respeito de todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do CPB, esclarecendo que, em especial, essas circunstâncias e as consequências do crime e o alto grau de culpabilidade do agente indicavam a necessidade do referido aumento. 2. No homicídio culposo, a ausência de imediato socorro à vítima é causa de aumento da pena (art. 121, § 4º do CPB), descabendo cogitar da atenuante genérica da alínea b do inciso III do art. 65 do referido Código, quando esse socorro foi efetivamente prestado, eis que traduz dever legal do agente causador do delito, não sendo causa de diminuição da sanção. 3. Parecer do MPF pela denegação da ordem. 4. Habeas Corpus denegado.” (STJ − HC 65.971/PR (2006/0195303-3), rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho); “ pelação criminal. Homicídio culposo. Acidente de trânsito. Artigo 302, parágrafo único, III, do Código de Trânsito Brasileiro. Pretensão absolutória. Autoria e materialidade comprovadas. Motociclista que realiza ultrapassagem e, na contramão de direção, atropela a vítima menor de idade que atravessava a via para pegar o ônibus que se encontrava parado no ponto. Causa de aumento. Omissão de socorro. Pretensão de afastamento. Impossibilidade. Fuga do local sem a prestação de socorro. Morte instantânea da vítima que não afasta a majorante. Ademais, alegação de ameaça a sua integridade física não comprovada. Condenação mantida. ‘I - É inviável a desconsideração do aumento de pena pela omissão de socorro, se verificado que o réu estava apto a acudir a vítima, não existindo nenhuma
79
sustentado o dever que tem o causador do acidente de prestar socorro à vítima.
Asseveraram os julgados que no homicídio culposo, a ausência de imediato socorro
à vítima é causa de aumento da pena e que a prestação de socorro é dever do
agressor, não cabendo a ele levantar suposições acerca das condições físicas da
vítima.
É certo, portanto, que o causador do acidente tem o dever de prestar socorro
à vítima. Para isso, evidentemente deve permanecer no local e, na medida do
possível, tomar todas as providências necessárias para a preservação da
integridade física da vítima, verificando o seu estado físico, prestando os primeiros
cuidados, sinalizando o local, bem como acionando o serviço médico especializado,
entre outras ações.
O legislador, na tipificação dos delitos do Código de Trânsito Brasileiro,
sabedor da importância de um pronto atendimento para aumentar as chances de
sobrevivência das vítimas, entendeu por bem penalizar duplamente a conduta do
agente que foge do local, imputando-lhe, além do crime de omissão de socorro, o
crime descrito no artigo 305, que responsabiliza o condutor do veículo que se afasta
do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser
atribuída. Cumpre ressaltar que, nos termos do parágrafo único, é irrelevante o fato
de a sua omissão ter sido suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte
instantânea ou com ferimentos leves. Com efeito, a alegação de que houve a morte
imediata da vítima não exclui o delito, visto que ao causador não cabe, no momento
do acidente, presumir as condições físicas da vítima ou medir a gravidade das
lesões, visto que isso é responsabilidade do especialista médico.136
O Tribunal de Justiça de São Paulo, não obstante a previsão legal, decidiu
que como nenhum cidadão é obrigado a produzir prova contra si mesmo, não é
constitucional o artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, que tipifica a conduta de
ameaça a sua vida nem a sua integridade física. II - A prestação de socorro é dever do agressor, não cabendo ao mesmo levantar suposições acerca das condições físicas da vítima, medindo a gravidade das lesões que causou e as consequências de sua conduta, sendo que a determinação do momento e causa da morte compete, em tais circunstâncias, ao especialista legalmente habilitado’ (STJ, REsp. 277.403/MG, rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, j. 4-6-2002).” (TJSC − ACR n. 445.690/SC (2010.044569-0), rel. Jorge Schaefer Martins).
136 Precedentes: REsp n. 161.399/SP, DJ, de 15.03.1999; REsp n. 207.148/MG, DJ, de 04.09.2000.
80
deixar o local do acidente para fugir da responsabilidade penal ou civil. A
inconstitucionalidade foi declarada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de
São Paulo no incidente de inconstitucionalidade instaurado durante o julgamento do
habeas corpus apresentado pela defesa de Alex Kozloff Siwek.
Guilherme de Souza Nucci137, ao tratar do citado artigo 305, afirma que ele
contraria o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo −
nemo tenetur se detegere. Prossegue afirmando que não existe razão plausível para
obrigar alguém a se autoacusar, permanecendo no lugar do crime, para sofrer as
consequências penais e civis do ato que provocou. Finaliza asseverando que
qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de
trânsito, motivo pelo qual entende inaplicável o artigo.
Luiz Flávio Gomes 138 , com entendimento semelhante, aduz que não há
dúvida de que todos temos a obrigação moral de ficar no local do acidente que
provocamos. O autor questiona, contudo, se uma mera obrigação moral pode
converter-se em obrigação penal. À semelhança de Nucci, pergunta por que, sendo
legítima a exigência de ficar no local, impõe-se tal obrigação apenas em relação aos
delitos de trânsito, uma vez que o homicida doloso, o estuprador etc. não contam
com obrigação semelhante.
Afirma ainda que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, a
declarar contra si mesmo, ou seja, a autoincriminar-se, garantia constante da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em seu artigo 8, sendo que o
referido artigo resulta numa espécie de autoincriminação. Finaliza esclarecendo que
ninguém está sujeito a prisão por obrigações civis, fora das exceções previstas,
sendo certo que o artigo 305 contempla uma hipótese de prisão (em abstrato) por
causa de uma responsabilidade civil.
Os argumentos não convencem. No que diz respeito à afirmação de que não
existe razão plausível para obrigar alguém a se autoacusar, permanecendo no lugar
137
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 2. p. 713.
138 GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999. p. 46-47.
81
do crime, para sofrer as consequências penais e civis do ato que provocou,
lembramos que tal obrigação – permanecer no local − está implícita no crime de
omissão de socorro, afinal, como alguém vai prestar o devido socorro deixando o
local do acidente? No que concerne a não existir exigência semelhante para os
outros delitos – homicídio e estupro, nos exemplos de Luís Flávio Gomes – a razão
salta aos olhos: em tais crimes o agente buscou o resultado, ao contrário dos delitos
de trânsito, geralmente cometidos em razão de imprudência, imperícia ou
negligência. O argumento de que não pode haver prisão por causa de
responsabilidade civil também causa estranheza, haja vista que há no Código Penal
vá u “ b v ”
por exemplo, o crime tipificado no artigo 133, que criminaliza a conduta do pai que
abandona o seu filho, incapaz de defender-se dos riscos do abandono, ou o crime
do artigo 246, que responsabiliza o pai que deixar, sem justa causa, de prover a
instrução primária de filho em idade escolar. O que a Constituição proíbe, na
verdade, é a prisão por dívidas, que não guarda relação com prisão decorrente de
descumprimento de responsabilidades civis.
Deixamos para o fim o último argumento, a possibilidade de uma obrigação
moral converter-se em obrigação penal.
A moral pode ser entendida como o conjunto de normas que regulam o
comportamento do homem em sociedade, tendo essas normas sido adquiridas pela
educação, pela tradição e pelos costumes; dito de outro modo, é um conjunto de
normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual e
social dos homens.139
Não há como questionar a relação entre a moral e o direito, mormente após o
nazismo, quando se buscou vincular o direito a algo externo ao ordenamento
jurídico. De fato, uma ordem constitucional, seja qual for o modelo de que se
originou, não poderá produzir qualquer norma independente de seu conteúdo140. O
139
SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Ética. Tradução de Joao Dell’Anna. 20. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 63.
140 Thiago Matsushita assevera que não se pode esquecer o horror causado pela aplicação desse
positivismo restrito e absoluto, principalmente no Estado nazista (MATSUSHITA, Thiago Lopes, O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto da proporcionalidade, cit., p. 154).
82
legislador não possui, destarte, poderes ilimitados para estabelecer as regras que
bem entender.141
Pelo exposto, é evidente a relação entre a moral e o direito, sendo que a
maioria dos artigos do Código Penal não faz outra coisa senão criminalizar condutas
moralmente condenáveis, como, por exemplo, furtar, abandonar o filho, enganar
(estelionato) e assim por diante. Então, evidentemente, pode o legislador converter
uma obrigação moral em obrigação penal.
Mais uma vez, a conduta réu, na hipótese estudada, não fica restrita aos
limites que permitiriam a invocação do direito à não autoincriminação. Se a conduta
do causador do acidente que foge do local e não presta socorro à vítima é típica e
não fere o direito à não autoincriminação, porque feriria o direito a conduta do que
foge para não ser responsabilizado penal e civilmente? Evidentemente o causador
do acidente que presta socorro à vítima será, com grande probabilidade, identificado
pelas autoridades e posteriormente processado, uma vez que terá permanecido no
local por um grande período, o que proporcionará a chegada não só do socorro,
como também da polícia. Utilizando o mesmo raciocínio, porque se exigir que o
causador do acidente permaneça no local e preste socorro se com essa conduta ele
estaria se autoincriminando ou aumentando grandemente as chances de que isso
viesse a ocorrer? Se a fuga para não ser responsabilizado penalmente é amparada
pelo princípio da não autoincriminação, porque a fuga para a não prestação do
devido socorro não o seria? Dito de outro modo, a lei exige que o indivíduo não
abandone o local para prestar socorro à vítima e seja responsabilizado penalmente.
Se exigir-se a presença do causador do acidente no local para ser responsabilizado
penalmente fere o direito à não autoincriminação, então qualquer fuga deve ser
permitida, visto que a permanência do causador do acidente no local aumenta as
chances de responsabilização.
Sem entrar no mérito da aparente irrelevância da norma – já se pune a
omissão do agente que foge do local, o que bastaria para proibir a conduta que a lei
considera indesejada − o que entendemos deva ficar patente é que os argumentos
141
RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 122.
83
utilizados para se considerar inconstitucional o artigo em comento não podem
prevalecer, do contrário todas as fugas estariam autorizadas pelo direito à não
autoincriminação. Não se pode dizer que a tipificação de uma conduta – fugir do
local do acidente − que não guarda qualquer relação com as declarações verbais ou
possível recusa do réu em colaborar com a investigação (não entregar padrões
gráficos ou de voz), que constituem a essência do direito à não autoincriminação,
possa de alguma forma contrariar o referido direito, pois, reforce-se, o que se obriga
é a permanência do indivíduo no local, e não o seu depoimento ou realização de
qualquer outra prova.
O Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão no julgamento do Habeas
Corpus n. 137.340/SC 142 e entendeu não haver qualquer traço de
inconstitucionalidade no artigo 305, pois o legislador, por intermédio da referida
norma, não buscou a autoincriminação do condutor que permanece no local do
acidente, haja vista que ele não está obrigado a produzir prova contra si, mas
apenas impõe-se a sua colaboração com a administração da Justiça, não sendo
impelido a qualquer manifestação, podendo permanecer em silêncio, se assim o
quiser. Prossegue, asseverando que:
A tipificação da conduta do motorista que foge do local do acidente, para se furtar à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída não viola a garantia da não autoincriminação, que assegura que ninguém pode ser obrigado por meio de fraude ou coação, física e moral, a produzir prova contra si mesmo. O cerne do princípio do nemo tenetur se detegere reside em assegurar ao réu a possibilidade de permanecer em silêncio, de não falar a verdade, confessar ou participar da produção de uma prova incriminatória ou apresentar prova contra ele, o que não se confunde com a penalização do condutor que se afasta do local do acidente.
Em conclusão, o direito à não autoincriminação pode ser invocado quando há
uma omissão por parte do indivíduo, pois nessas hipóteses ele estará deixando de
contribuir para a produção da prova e, por consequência, evitando a sua
incriminação. Condutas ativas não estão amparadas pelo direito.
142
STJ − HC . 137.340/SC . Min. Laurita Vaz.
84
Argumenta-se que a conduta do agente que mente, ou inova o estado, lugar,
coisa ou pessoa para iludir a perícia ou o juiz, o faz em razão do seu instinto natural
de defesa143. Ocorre que realizar uma conduta por um natural instinto de defesa não
isenta o indivíduo de ser responsabilizado pelo fato. O autor de um delito de roubo a
banco, quando surpreendido pelos policiais, pode neles atirar para tentar evadir-se
do local; o ladrão de carros surpreendido pode atropelar alguém, ao tentar fugir da
polícia; o foragido da Justiça, quando parado pela autoridade policial, pode atribuir-
se falsa identidade para não ser preso. Todas essas condutas, embora possam ser
consideradas instintivas, inerentes à defesa do agente, não devem ser tidas como
permitidas pelo ordenamento, ao abrigo do direito à não autoincriminação, pois além
de constituírem condutas ativas, não respeitam a finalidade para a qual o direito foi
idealizado.
143
SANTOS, Marcus Renan Palácio de Morais Claro dos. O princípio nemo tenetur se detegere: seus limites e extensão. In: PEDROSO, Fernando Gentil Gizzi de Almeida; RIBEIRO, Roberto Victor Pereira (Orgs.). Questões relevantes do direito penal e processual penal. Porto Alegre: Lex Magister, 2012. p. 265.
85
5 CORPO COMO OBJETO DE PROVA
5.1 Intervencões corporais. Definição
Sob uma mesma denominação, intervenções corporais, podem ser
identificadas diversas diligências com distinto alcance, finalidade e natureza,
diligências que podem estar relacionadas a algum tipo de investigação criminal, a
medidas de saúde pública, obtenção de meios de prova etc., mas que têm uma
característica comum, a atuação dos poderes públicos sobre o corpo de uma pessoa
viva.
María Ángeles Pérez Marín 144 ressalta que a expressão diligências de
intervenção corporal compreende duas espécies de atuação com alcance distinto.
Por um lado, a mera inspeção ou registro sobre o corpo que, assim como as buscas
sobre os seus contornos, tem lugar sobre as roupas, sem afetar diretamente
nenhuma área específica; por outro lado a intervenção direta sobre o próprio corpo
ou alguma de suas partes, cuja finalidade é a obtenção de elementos ou
substâncias, internos ou externos, tais como unhas, cabelos, sangue ou amostras de
pele para posterior análise.
Angel Gil Hernández 145 define intervenção corporal como a medida que
realiza atos de investigação ou obtenção de provas no corpo do próprio acusado.
Nicolas Gonzalez-Cuellar, a seu turno146, define as intervenções corporais
como as medidas de investigação que se realizam sobre o corpo dos indivíduos,
sem a necessidade de seu consentimento e por meio de coação direta, se for
necessário, com a finalidade de descobrir circunstâncias fáticas que sejam
importantes para o processo, em relação às suas condições físicas ou psíquicas, ou
objetos nele escondidos.
144
PÉREZ MARÍN, María Ángeles. Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2008. p. 42-43.
145 GIL HERNÁNDEZ, Ángel. Intervenciones corporales y derechos fundamentales. Madrid: Colex,
1995. p. 37. 146
GONZÁLEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolás. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990. p. 290.
86
Assencio Mellado147 conceitua a intervenção corporal como a utilização do
corpo do acusado, mediante atos de intervenção, para efeitos de investigação e
comprovação dos delitos.
Teresa Armenta Deu148 entende que as intervenções corporais consistem na
extração do corpo do indivíduo de elementos internos ou externos com a finalidade
de serem submetidos a posterior exame pericial, inclusive exposições radiológicas.
Dessa forma, abrangem todos os exames com a finalidade de constatar
determinadas circunstâncias relativas ao fato criminoso e que de alguma forma
implicam em lesão ou menoscabo do corpo.
Maria Elisabeth Queijo149 divide as intervenções corporais em dois grandes
grupos. O primeiro grupo refere-se às intervenções invasivas, que implicam a
penetração no organismo humano, por instrumentos ou substâncias, em cavidades
naturais ou não. São exemplos de provas invasivas, para a autora, os exames de
sangue, o exame ginecológico, a identificação dentária, a endoscopia e o exame do
reto. Já as intervenções não invasivas são aquelas nas quais não há penetração no
corpo humano, como os exames de materiais fecais, os exames de DNA realizados
a partir de fios de cabelo, a impressão datiloscópica, radiografia etc. Entende a
autora que as provas realizadas mediante a intervenção corporal não invasiva teriam
o efeito de conciliar os interesses buscados pela persecução criminal com o respeito
aos direitos fundamentais.
Vemos, das definições apresentadas, que não há uniformidade no que se
deva entender por intervenção corporal. Alguns, como Nicolas Gonzalez-Cuellar,
admitem que a medida seja realizada não apenas no corpo do acusado, mas
também no corpo dos demais integrantes do processo, como, por exemplo, vítimas e
testemunhas; o conceito de Teresa Armenta Deu restringe as intervenções corporais
às medidas que de alguma forma venham a causar algum tipo de lesão a ele, ainda
147
ASSENCIO MELLADO, J. M. Prueba prohibida y prueba preconstituida. Madrid: Trivium, 1989. p. 137.
148 ARMENTA DEU, Teresa. Lecciones de derecho procesal penal. 5. ed. Madrid: Marcial Pons, 2010.
p. 151. 149
QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 290-295.
87
que mínima e não aparente, como ocorre com a exposição aos raios X150, enquanto
o conceito de Ángel Gil Hernández e Maria Elisabeth Queijo estende as medidas de
intervenção a procedimentos não invasivos, como as impressões datiloscópicas e
buscas pessoais. Para parte dos doutrinadores, as inspeções nas cavidades do
corpo, como boca, ânus e vagina constituem modalidades de inspeção ou registro
corporal151, mas para outros, por consistirem tais medidas em formas de menoscabo
ao corpo, constituem verdadeiras modalidades de intervenção.152
O que podemos notar, na verdade, é que as medidas são realizadas no corpo
do indivíduo vivo e vão de forma progressiva atingindo alguns direitos
constitucionalmente protegidos, como o direito à privacidade, liberdade e integridade
corporal, entre outros. De fato, de uma simples inspeção corporal a uma extração
forçada de sangue, há uma progressão dos direitos atingidos.
Conquanto todas as medidas, como dito, sejam realizadas no corpo humano,
razão pela qual podem ser classificadas como diligências de intervenção corporal, é
possível esboçar um conceito mais restrito de intervenção corporal limitado àquelas
medidas que em algum grau afetam ou tenham potencial para afetar a integridade
física do indivíduo, como os exames de raios X, inspeções vaginais ou anais e
extração de sangue. Evidentemente o interesse do estudo de tais medidas restringe-
se àquelas tomadas contra o consentimento do indivíduo, uma vez que a anuência
dele afasta a eventual restrição ao direito.
Vejamos como os diversos ordenamentos tratam do tema.
5.2 Intervenções corporais no direito estrangeiro
O Tribunal Constitucional espanhol153 identifica duas espécies de medidas, as
de inspeção, que englobam qualquer forma de mero reconhecimento do corpo
150
Muito embora Maria Elizabeth Queijo considere o exame de raios X uma intervenção não invasiva (QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 290).
151 Nesse sentido: GIL HERNÁNDEZ, Ángel. Protección de la intimidad corporal: aspectos penales y
procesales. Revista General de Derecho, RGD, n. 622-623, p. 7.960, 1996. 152
Nesse sentido: PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 16.
153 STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 17 maio 2014).
88
humano e que podem atingir o direito à intimidade protegido pela Constituição em
seu artigo 18.1154, e as medidas de intervenção corporal, consistentes na extração
de uma parte de material biológico que será posteriormente objeto de algum tipo de
análise pericial. Também são consideradas intervenções corporais as realizadas
sobre regiões internas do corpo, regiões que não podem ser visualizadas em um
simples exame superficial. Nessas intervenções, além do direito à intimidade, pode
restar atingido o direito à integridade física, protegido pelo artigo 15 da Constituição,
uma vez que para a sua execução evidentemente haverá alguma forma de lesão ao
corpo, ainda que mínima. O Tribunal pondera, ainda, que nessas medidas também
há que se ter em consideração a possibilidade de ofensa ao direito à dignidade −
limite para a validade de sua execução – e que em nenhuma hipótese serão
admitidas se puderem resultar em risco à saúde e integridade do indivíduo.
As primeiras medidas – denominadas inspeções e registros corporais − são
assim todas as que são realizadas sobre o corpo do indivíduo que não resultem em
uma violação do direito à sua integridade física, uma vez que para a sua consecução
não há a causação de qualquer lesão ao corpo. Não obstante não causarem lesão
ao indivíduo, tais práticas podem afetar o direito à intimidade e à privacidade. Entre
tais diligências, podemos citar as destinadas a qualquer espécie de reconhecimento,
exames dactiloscópicos, inspeções anais e vaginais, ou seja, medidas que tenham
por objetivo a determinação do indivíduo, o descobrimento dos eventuais objetos do
delito e a investigação de circunstâncias relativas aos fatos, tudo para possibilitar
uma mais adequada instrução processual.
As demais medidas, denominadas intervenções corporais, atingem
principalmente o direito à integridade física do indivíduo, pois via de regra exigem
para a sua realização a retirada de amostras biológicas, retirada essa que provoca
lesão, ainda que mínima, em seu corpo. Cumpre ressaltar que se não realizada a
intervenção corporal, não há como efetuar a posterior análise pericial, fundamental
para a elucidação de várias espécies de delitos. Entre as intervenções corporais,
podemos citar as extrações sanguíneas, realização de exames radiológicos etc.
154
O artigo garante o direito à honra, intimidade pessoal e familiar e à própria imagem.
89
Atendendo à natureza das intervenções e suas consequências, pode-se
classificá-las em intervenções leves e graves, de acordo com a possibilidade de
causarem maior ou menor perigo à saúde ou ocasionarem sofrimentos
desproporcionais aos indivíduos. Serão leves as intervenções que não tiverem
potencial para colocar em risco a integridade física do indivíduo nem lhe impinjam
demasiado sofrimento, como a extração de sangue, coleta de unhas, saliva e
cabelos. Serão consideradas graves aquelas intervenções que, para a sua
realização, exijam uma especial atenção, quer no que diga respeito ao procedimento
utilizado para a retirada do material, quer quanto aos cuidados posteriores ao
exame, como, por exemplo, a extração de medula óssea.
O que se deve ter sempre presente é a necessidade de evitar que os direitos
em jogo sejam afetados mais do que o estritamente necessário para o atingimento
da finalidade da medida. Observe-se que a ingerência na intimidade do indivíduo é
permitida pela Convenção de Roma, desde que cumpridos os requisitos
determinados pelo seu artigo 8º, 2 155 , ou seja, que a medida seja necessária,
prevista em lei e destinada à prevenção de delitos. No mesmo sentido, o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos156, que apenas proíbe as ingerências
arbitrárias ou ilegais.
Quatro foram os requisitos estabelecidos pelos tribunais para a validade das
medidas, segundo esclarece María Ángeles Pérez Marín157: 1) a medida deve ser
ordenada pela autoridade judicial competente mediante um auto que explicite, de
forma clara, a forma de praticar a medida, pois só assim se pode garantir o direito à
intimidade da pessoa; 2) o juiz é obrigado a analisar as circunstâncias que
circundam o caso concreto para verificar a necessidade da medida, ponderando a
necessidade com o sacrifício do direito, a situação que se encontra a pessoa a que
155
“ rtigo 8º [...] 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.”
156 “ rtigo 17 - 1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada,
em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação.”
157 PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas
de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 42-43.
90
se impõe a diligência e os demais interesses em jogo, tanto de terceiros como da
sociedade em geral. Ditos critérios de necessidade justificam o uso de uma medida
agressiva contra qualquer direito fundamental relativo, quando essa seja a única
forma de obter resultados necessários e imprescindíveis para a resolução do
processo. É fundamental, ainda, constatar previamente a impossibilidade de
obtenção do resultado pretendido por meio de outras diligências menos restritivas ao
direito fundamental atingido; 3) é proibida qualquer forma de força física ou
compulsão pessoal direta para obrigar o afetado a submeter-se, contra a sua
vontade, à prática da diligência, toda vez que no ordenamento não estiver prevista
essa possibilidade; e 4) é imprescindível haver previsão legal que propicie a adoção
de medidas de intervenção corporal, proporcionando assim segurança, tanto para as
partes afetadas, como para o órgão judicial que as ordena.
Considerar-se, dessa forma, o indivíduo como sujeito de direitos, como faz a
Constituição espanhola, não impede a realização de determinadas diligências, nem
que para isso o seu corpo, desde que cumpridos os citados requisitos, funcione
como objeto da prova. A falta de uma regulamentação mais específica impede,
todavia, nos termos do entendimento da Suprema Corte espanhola, que algumas
medidas sejam efetivadas sem o consentimento do afetado. Isso não acontece na
Alemanha, diante da expressa previsão legal acerca da possibilidade da utilização
de provas invasivas.
Permite a lei alemã que o indivíduo seja submetido a um procedimento de
identificação quando da ocorrência de algum delito, sendo facultado à autoridade
tirar fotografias, impressões digitais, impressões palmares e fazer anotações sobre
algumas características especiais, tais como, por exemplo, tatuagens. O
procedimento de identificação pode ter lugar por iniciativa dos tribunais, do Ministério
Público ou da polícia, mas normalmente a diligência é realizada pela polícia. Cumpre
ressaltar que independe da vontade do investigado a realização ou não do
procedimento de investigação, isto é, pode ser realizado sob coação, podendo as
autoridades policiais, se necessário, imobilizar e esticar os braços e dedos para tirar
impressões digitais, por exemplo. A legislação alemã admite revistas pessoais para
a determinação de fatos relevantes para o processo. Nas revistas simples
conduzidas pela polícia, o objetivo consiste em determinar se existem corpos
91
estranhos nos seus orifícios naturais. Caso se sinta constrangido, o indivíduo pode
solicitar que a revista seja realizada por uma pessoa do mesmo sexo ou por um
médico, mas ele é obrigado a submeter-se a ela, muito embora ninguém pode forçá-
lo a uma participação ativa. A lei alemã ainda admite que sejam colhidas,
independentemente da vontade do indivíduo, amostras de sangue e de outras
substâncias orgânicas, para determinar, por exemplo, a taxa de álcool no sangue ou
para comparar o seu DNA com vestígios de DNA encontrados no local do crime.
Essas amostras, ressalte-se, devem ser colhidas por um médico − não pela polícia −
e quando não mais forem necessárias para o processo penal, devem ser destruídas.
No entanto, o padrão de DNA pode ficar em arquivo se existirem motivos para
acreditar que, no futuro, poderá vir a ser utilizado num processo relacionado com a
prática de um crime grave. Caso o indivíduo se oponha à revista ou ao teste de
DNA, a sua realização terá que ser ordenada por um tribunal. Em caso de risco
iminente, ou seja, se o assunto for urgente, o Ministério Público e a polícia estão
autorizados a realizar tais diligências. Os testes também podem ser realizados sob
coação, tudo nos termos do disposto nos artigos 81a, b, d, e, f, g, do Código de
Processo Penal (StPO).158
Não se considera haver, nessa extração forçada de material, qualquer ofensa
à dignidade da pessoa nem ao direito de não produzir prova contra si mesmo.
Partindo da distinção entre colaboração ativa e colaboração passiva, a lei não
admite, todavia, que o indivíduo seja obrigado a participar de maneira ativa de
determinados procedimentos, como andar de determinada forma ou fazer o teste do
bafômetro.
158
“Section 81a. [Physical Examination; Blood Test] (1) A physical examination of the accused may be ordered for the establishment of facts which are of importance for the proceedings. For this purpose, the taking of blood samples and other bodily intrusions which are effected by a physician in accordance with the rules of medical science for the purpose of examination shall be admissible without the accused's consent, provided no detriment to his health is to be expected. (2) The authority to give such order shall be vested in the judge and, if delay were to endanger the success of the examination, also in the public prosecution office including officials assisting it (Section 152 of
the Courts Constitution Act). (3) Blood samples or other body cells taken from the accused may be
used only for the purposes of the criminal proceedings for which they are taken or in other criminal proceedings pending; they shall be destroyed without delay as soon as they are no longer required for those uses. Section 81b. [Photographs and Fingerprints] Photographs and fingerprints of the accused may be taken, even against his will, and measurements may be made of him and other similar measures taken with regard to him insofar as is required for the purposes of conducting the criminal proceedings or of the police records department.” (Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stpo/englisch_stpo.html>. Acesso em: 18 mar. 2014).
92
A jurisprudência norte-americana há muito tempo permite a extração de
sangue ou DNA de indivíduos para a realização de exames periciais, como mostra o
julgamento Schmerber v. California.159
Tratava o processo de um acusado que fora hospitalizado após envolver-se
em um acidente de carro. O condutor estava aparentemente embriagado. O policial,
sentindo o seu hálito e verificando, no local do acidente e no hospital, outros sinais
que confirmavam o estado de embriaguez, efetuou a sua prisão, bem como o
informou sobre o seu direito de constituir um advogado. Posteriormente, e por
determinação do policial, um médico coletou amostras de seu sangue, não obstante
a sua recusa em fornecê-las. O laudo que confirmou a dosagem elevada de álcool
foi admitido como prova, mesmo tendo havido objeção do réu. Ele foi condenado e a
sentença foi confirmada pela 2ª instância, que rejeitou a tese de que teria havido
ofensa ao devido processo legal e ao privilégio contra a autoincriminação.
Não se pode negar, afirmou a corte, que o Estado, ao exigir que o indivíduo
se submetesse à retirada e análise de seu sangue, o obrigou a participar de um
procedimento para descoberta de evidências que poderiam ser usadas contra ele no
processo. A questão que se coloca é se ele foi obrigado a ser testemunha contra ele
mesmo. Se o escopo do privilégio coincidir com o complexo de valores que ajuda a
proteger, seremos obrigados a concluir que o privilégio foi violado. Em Miranda v.
Arizona, a corte afirmou, acerca dos interesses protegidos, que todas as políticas
apontavam para uma ideia crucial: o fundamento constitucional que alinhava o
privilégio é o respeito que o governo deve conferir à integridade e dignidade dos
seus cidadãos. Para manter uma situação justa e equilibrada no que diz respeito à
inviolabilidade da pessoa humana, o sistema acusatório exige que o governo
interessado em punir o indivíduo produza as provas contra ele por seus próprios
meios, não se permitindo o simples e cruel expediente de obrigá-lo a fazer tal
produção por sua própria boca.
A retirada de sangue necessariamente envolve a perfuração da pele para a
coleta e posterior determinação do percentual de álcool pela análise química,
159
Disponível em: <http://supreme.justia.com/us/384/757/case.html>. Acesso em: 18 mar. 2014.
93
constituindo prova que pode levar à condenação do réu. Obrigar o réu a submeter-
se a esse exame contraria um aspecto do respeito à inviolabilidade da personalidade
humana. Além disso, como isso possibilita que o Estado produza evidências
forçadas contra o acusado, essa compulsão viola pelo menos um dos significados
exigidos no sentido de que o Estado deve procurar provas contra o acusado por
seus próprios e independentes meios. Todavia, como o julgamento de Miranda
implicitamente reconheceu, não tem sido dado ao privilégio o mais completo e amplo
escopo que os valores que ele ajuda a proteger sugerem. As cortes inferiores têm
constantemente limitado a proteção a situações em que o Estado procura contrariar
aqueles valores, obtendo a evidência contra o acusado por intermédio do simples e
cruel expediente de obrigá-lo por meio de sua própria boca a confessar. Em suma, o
privilégio é satisfeito apenas quando é garantido à pessoa o direito de permanecer
em silêncio, a não ser que ele opte por falar no irrestrito exercício de sua própria
vontade.
O primeiro caso da corte foi Holt v. United States. Lá, a questão era saber se
a evidência era admissível em uma hipótese em que o acusado, antes do
julgamento e sob o seu protesto, foi obrigado a usar determinado tipo de blusa. Foi
alegado que obrigar o acusado a ir a julgamento com aquele modelo de blusa
violaria o privilégio. Justice Holmes, falando pela corte, rejeitou o argumento,
afirmando que a proibição de obrigar-se alguém, em um processo criminal, a ser
testemunha contra ele mesmo consiste em uma proibição do uso de força física ou
moral para forçá-lo a dizer algo – extrair informações –, não uma exclusão de seu
corpo como evidência. Não fosse assim, a objeção, em tese, proibiria um júri de
olhar para um prisioneiro e comparar suas características com uma fotografia.
Está claro que a proteção do privilégio alcança as comunicações dos
acusados, qualquer que seja a forma que assumirem, assim como abrange as
respostas que também podem ser consideradas comunicações, como, por exemplo,
intimação para entrega de documentos próprios (Boyd v. United States). Por outro
lado, tanto as cortes federais como as estaduais têm decidido que não há a proteção
contra a obrigação de submeter-se a exames de impressões digitais, fotografias ou
medições, escrever ou falar para fins de identificação, comparecer à corte,
permanecer em determinada postura, andar ou fazer um gesto característico. A
94
distinção que foi traçada é no sentido de que o privilégio é uma barreira contra a
obrigação relativa às comunicações e testemunhos; a obrigação que torna o
suspeito ou o acusado fonte real ou física da evidência não viola o direito.
Embora concordemos, prossegue a corte, que essa distinção seja útil para
análise dos casos, não podemos concordar com todos os posicionamentos adotados
anteriormente. Haverá hipóteses em que a distinção não será prontamente
delineada. Alguns testes que aparentemente são realizados para obtenção de
evidência física, por exemplo detectores de mentira que medem mudanças na
função corporal durante o interrogatório, podem, na verdade, trazer à tona respostas
que são essencialmente testemunhais. Compelir uma pessoa a submeter-se a um
teste cujo esforço será utilizado para determinar sua culpa ou inocência com
fundamento nas reações fisiológicas, não importando se desejadas ou não, é evocar
o espírito e história da Quinta Emenda. Tais situações nos lembram que o princípio
que determina a proteção do privilégio é tão amplo quanto o dano contra o qual ele
procura resguardar.
No presente caso, todavia, não foram observados tais problemas. Não houve
nem mesmo uma sombra de dúvida no sentido de que o acusado tenha sido
obrigado a testemunhar ou forçado a dar qualquer informação na coleta do sangue e
sua análise. A capacidade de testemunhar do réu não foi afetada, na verdade sua
participação, exceto como doador, foi irrelevante para os resultados do teste. Como
o exame de sangue, embora resultado de uma coleta obrigatória, não está
relacionado com o testemunho do réu nem com qualquer tipo de ato comunicativo
ou escrito, não é admitida a proteção do privilégio.
Tem-se, assim, que a jurisprudência norte-americana considera a extração de
sangue e DNA como uma espécie de busca e apreensão que pode ser feita
coercitivamente, não dependendo da vontade ou consentimento do indivíduo, sendo
que tal procedimento não tem aptidão para violar o direito à não autoincriminação.
95
Na Dinamarca160 pode ser colhida uma amostra de sangue se o consumo de
álcool e de droga for um elemento do crime de que o indivíduo é suspeito. Na
Finlândia, se o indivíduo for considerado suspeito da prática de um crime, a polícia
tem o direito de recolher as suas impressões digitais. A polícia também tem o direito
de o revistar – ou seja, verificar o que se encontra na sua roupa ou na sua pessoa –
se for considerado suspeito da prática de um crime punível com uma pena máxima
de, pelo menos, seis meses de prisão. Também pode ser extraída uma amostra de
sangue se o consumo de álcool e de droga for um elemento do crime de que é
suspeito.
Na República Checa, se for necessário para determinar a identidade do
indivíduo ou verificar se há vestígios do crime no seu corpo, ou se for necessário
para efeitos de prova, podem ser recolhidas as suas impressões digitais, amostras
de DNA, sangue, material biológico, as medidas do seu corpo ou este pode ser
objeto de revista ou de procedimento semelhante. Qualquer atitude de resistência
física da sua parte pode ser ultrapassada com o consentimento do magistrado do
Ministério Público.
Na Suécia, desde que haja um mandado do Ministério Público, a polícia tem o
direito de realizar buscas na casa do indivíduo, local de trabalho, no carro ou em
qualquer outro lugar de relevância para a investigação. Isso só se aplica se ele é
suspeito de um crime que pode levar a uma pena de prisão. Também pode haver
ordens para a realização de revistas corporais, exames físicos e colheita de
amostras de DNA.
O Código de Processo Penal português dispõe, em seu artigo 171º161, que por
meio de exame das pessoas, lugares e coisas podem ser inspecionados os vestígios
160
Os dados referentes à Dinamarca, Finlândia, Suécia e República Checa estão disponíveis em: <https://e-justice.europa.eu>. Acesso em: 19 mar. 2014.
161 "Artigo 171º - Pressupostos 1 - Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas,
inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido. 2 - Logo que houver notícia da prática de crime, providencia-se para evitar, quando possível, que os seus vestígios se apaguem ou alterem antes de serem examinados, proibindo-se, se necessário, a entrada ou o trânsito de pessoas estranhas no local do crime ou quaisquer outros actos que possam prejudicar a descoberta da verdade. 3 - Se os vestígios deixados pelo crime se encontrarem alterados ou tiverem desaparecido, descreve-se o estado em que se encontram as pessoas, os lugares e as coisas em que possam ter existido, procurando-se, quanto possível, reconstituí-los e
96
que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo e ao lugar onde
foi praticado, sendo que esses procedimentos podem ser realizados sobre aqueles
que cometeram o crime, bem como também sobre a vítima.
Já o artigo 172º162 regula as hipóteses nas quais o acusado pode vir a ser
obrigado, de modo compulsório, a realizar os exames. Esse artigo foi objeto de
controle de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional português, por
intermédio do Acórdão n. 155 de 2007. Na hipótese levada a exame, o autor fora
forçado, deixando consignado nos autos a sua recusa, a comparecer ao instituto
médico legal para a realização de uma perícia consistente na extração de saliva,
para, após a identificação do DNA, compará-la com amostra obtida na cena de um
crime. O Tribunal, após realizar uma série de ponderações – entre elas a
razoabilidade e proporcionalidade da medida − que serão adiante vistas, julgou
constitucional o artigo, desde que a medida seja autorizada pelo juiz competente.
O rol de países que permitem o uso do corpo como objeto de prova em
determinadas hipóteses é extenso, mas entendemos que os exemplos trazidos são
suficientes para demonstrar que a posição do Brasil é, talvez, única.
Por fim, e para espancar qualquer dúvida que porventura ainda pudesse
permanecer, lembramos que a Corte Europeia de Direitos Humanos, no julgamento
Saunders v. United Kingdom163, ocorrido em 1996, asseverou que o direito à não
autoincriminação não impede a colheita compulsória de material do indivíduo.
descrevendo-se o modo, o tempo e as causas da alteração ou do desaparecimento. 4 - Enquanto não estiver presente no local a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal competentes, cabe a qualquer agente da autoridade tomar provisoriamente as providências referidas no n. 2, se de outro modo houver perigo iminente para obtenção da prova.”
162 “Artigo 172º Sujeição a exame 1 - Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame
devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente. 2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos ns. 3 do artigo 154º e 6 e 7 do artigo 156º. 3 - Os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas devem respeitar a dignidade e, na medida do possível, o pudor de quem a eles se submeter. Ao exame só assistem quem a ele proceder e a autoridade judiciária competente, podendo o examinando fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança, se não houver perigo na demora, e devendo ser informado de que possui essa faculdade.”
163 Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009>. Acesso em:
20 fev. 2014.
97
Por uma larga maioria (16 a 4), a Corte considerou ter havido uma violação do
artigo 6º da Convenção. Ela rejeitou o argumento do governo britânico de que a
complexidade dos grandes casos de fraude e o interesse público em assegurar uma
convicção justificavam a compulsão. A Corte deixou estabelecido que o interesse
público não pode ser invocado para justificar o uso de respostas que foram obtidas
de forma compulsória, sem respeitar o direito ao silêncio, em uma investigação não
judicial para incriminar o acusado. A acusação nos processos penais deve provar o
seu caso contra o acusado, sem recorrer a provas obtidas por meio de métodos de
coerção ou opressão, em desrespeito à sua vontade. Saunders acabou recebendo
uma indenização no valor de £ 75.000, que foi paga em junho de 1997. Ocorre que,
no mesmo julgamento, a Corte decidiu que o direito à não autoincriminação164 não
impede o uso, em processos penais, de materiais que podem ser diretamente
obtidos do corpo do acusado pelo uso de meios coercitivos, mas que têm uma
existência independente da sua vontade, tais como, entre outros, os documentos
adquiridos ao abrigo de um mandado, respiração (etilômetro), amostras de sangue,
urina e os tecidos corporais para fins de teste de DNA.
5.3 Intervenções corporais no direito brasileiro
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal165 não aceita a determinação
compulsória ou condução coercitiva para fornecimento de material genético.
164
“69. The right not to incriminate oneself is primarily concerned, however, with respecting the will of an accused person to remain silent. As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere, it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as, inter alia, documents acquired pursuant to a warrant, breath, blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testing.” (Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009>. Acesso em: 20 fev. 2014).
165 “ u O á Habeas Corpus. Constitucional. Processual penal. Competência da
segunda seção do Superior Tribunal de Justiça para julgar habeas corpus proveniente de ações de investigação de paternidade. Investigação de paternidade. Produção de prova em comarca diversa. Liberdade de locomoção. Recurso Ordinário em Habeas Corpus provido. 1. Estabelecida, na espécie, relação jurídico-litigiosa em processo de investigação de paternidade, todo e qualquer Habeas Corpus dela proveniente deverá ser julgado pelas Turmas que compõem a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça. 2. Nos termos do art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição da República, conceder-se-á Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, sendo também assegurada a liberdade de não se locomover. 3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal repudia a determinação compulsória ou condução coercitiva ao fornecimento de material genético. 4. Recurso Ordinário em Habeas Corpus provido.” (ST − RHC n. 95.183/BA, rel. Min. Min. Cármen Lúcia).
98
Admitiu, todavia, a Corte Suprema, a coleta de placenta de uma grávida que
estava sendo submetida a procedimento de extradição, para a instrução de inquérito
policial que fora instaurado após notícia de eventual abuso que teria sofrido no
cárcere 166 . A coleta do material foi determinada, independentemente do
consentimento da extraditanda, tendo em vista o interesse na elucidação de
eventual crime de estupro que teria sido cometido pelos policiais federais
responsáveis pela carceragem. Observe-se, contudo, que a coleta do material foi
realizada após o parto, quando já estava, portanto, separado do corpo da grávida.
No que se refere ao exame compulsório de sangue para fins criminais, o
Superior Tribunal de Justiça, como visto, não o admitiu, quando do julgamento do
Recurso Especial n. 1.111.566/DF. Dessa forma, os nossos tribunais não aceitam a
coleta compulsória de sangue.
Em 28 de maio de 2012, foi publicada a Lei n. 12.654, que possibilitou a
identificação criminal por meio da coleta de material biológico. Embora a lei não
disponha expressamente acerca da recusa do indivíduo ao fornecimento do material
biológico, pensamos que a autoridade poderá utilizar a força necessária para tanto.
O Supremo Tribunal Federal, contudo, ainda não se manifestou sobre a
constitucionalidade da lei. Lembremos, nesse passo, que não obstante a previsão de
exames de alcoolemia no Código de Trânsito Brasileiro, eles foram subordinados à
concordância do indivíduo.
Enquanto a matéria não é submetida à Corte Suprema, não deixa de ser
alentadora recente decisão proferida pela ministra Rosa Weber no julgamento do
Habeas Corpus n. 115.767/PR que, embora não tenha tratado diretamente do tema,
uma vez que no caso em julgamento a coleta de material para exame pericial tenha
sido feita com a concordância do indivíduo, deixou consignado que o direito à não
autoincriminação não veda tal prática:
Apesar de não serem incomum manifestações vulgares no Brasil de que o direito ao silêncio preveniria a colheita compulsória de material biológico do investigado ou do acusado, concluo que se trata de afirmações acríticas a respeito do instituto e que ignoram a origem histórica, a função atual e a compreensão dele no Direito Comparado.
166
ST − QO Rcl n. 2.040/DF, rel. Min. Néri da Silveira.
99
5.4 Utilização do corpo como objeto de prova. Possibilidade
A aplicação do nemo tenetur se detegere harmoniza-se com o modelo
processual acusatório que impõe à acusação o ônus probatório “Logo, não pode o
acusado ser compelido a prestar colaboração à formação do material probatório, até
mesmo porque, há muito foi superada a postura de considerá-lo como simples
objeto de prova. É ele verdadeiro sujeito processual.”167
O réu não pode ser, em nenhuma hipótese, considerado objeto de prova?
Imaginemos a seguinte situação: uma jovem é estuprada saindo de seu
trabalho. Ela não pôde ver com clareza o rosto do agressor, mas conseguiu
descrever para a polícia as suas características, como altura, cor da pele, tipo de
cabelo, as roupas que ele estava usando, bem como pôde observar uma
determinada tatuagem localizada na sua virilha. A autoridade policial efetua a prisão
de um indivíduo com as características relatadas pela vítima e solicita a ele que
retire as suas roupas para constatar a presença ou não da tatuagem. Pode o
indivíduo se recusar, sob o argumento que tal prova fere o seu direito à não
autoincriminação?
Em 2009, como visto, foi publicada a Lei n. 12.037, que dispõe sobre a
identificação criminal do civilmente identificado, regulando o artigo 5º, inciso LVIII, da
Constituição Federal168. A nova lei, publicada em substituição à Lei n. 10.054/2000,
que vinha recebendo inúmeras críticas, em virtude de alguns de seus dispositivos,
teve a finalidade de adequar os critérios da identificação criminal ao texto
constitucional, que assegura ao civilmente identificado a desnecessidade de ser
submetido a um constrangimento adicional, que é a identificação criminal nas
modalidades de identificação fotográfica e datiloscópica. Imaginemos agora que haja
dúvidas acerca da identidade de determinado indivíduo. Além disso, foram
encontradas impressões digitais na cena do crime. Pode a autoridade policial
determinar que seja realizado o exame datiloscópico? E se o investigado se recusar,
167
STJ − g . 1.205.216 . Min. Maria Thereza de Assis Moura. 168
“Artigo 5º - A identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação.”
100
pode ser compelido a realizá-lo? Cumpre ressaltar que o artigo 4º da referida Lei
nada dispõe acerca da compulsoriedade, mas apenas afirma que “quando houver
necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as
providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado”.
O mesmo ocorre no que concerne às fotografias. Pode o réu cobrir o rosto
com as mãos e impedir que sejam tiradas as suas fotos?
Voltemos ainda ao exemplo referente ao auto de reconhecimento previsto no
artigo 226 do Código de Processo Penal, que determina que quando houver
necessidade de se fazer o reconhecimento de pessoa, ela será colocada, se
possível, ao lado de outras que com ele tiverem qualquer semelhança. Pode o
investigado se recuar a participar de tal diligência, sob o pretexto da proibição de
autoincriminação?
Todas essas hipóteses têm algo em comum: o corpo do indivíduo está sendo
utilizado como objeto de prova.
Assim, a afirmação de que não pode o acusado ser compelido a prestar
colaboração à formação do material probatório deve ser vista com cautela, pois o
réu – o seu corpo − é obrigado a suportar diversas providências levadas a efeito
pelas autoridades policiais para a elucidação do crime, como, por exemplo, cessão
de impressões digitais, fotografias, inspeções corporais etc. Se essa afirmação for
levada ao extremo, isto é, se não se puder compeli-lo a colaborar passivamente com
a investigação, sequer a obtenção de suas fotos seria permitida.169
169
Nesse sentido, vale a pena transcrever excerto do voto vencido proferido pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, no julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566/DF: “ evada ao extremo, a garantia de não produzir prova contra si poderia ser oposta à própria identificação criminal (inclusive nas hipóteses previstas pela lei), ao ato de reconhecimento de pessoas (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 346), à acareação entre o réu e quem quer que seja, às revistas quando houvesse fundada suspeita (pense-se na suspeita de crime de tráfico internacional de drogas e a tradicional revista empreendida nos aeroportos – TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 3. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 229), e assim por diante, até que a racionalidade do sistema processual penal ou sua própria operacionalidade se vissem totalmente comprometidos. Neste ponto estaria cristalizado um verdadeiro direito a delinquir.”
101
Tomemos outro exemplo muito corriqueiro nos aeroportos, o do indivíduo que
transporta drogas em cápsulas ocultas no interior do seu corpo. Pode o indivíduo
recusar-se a realizar o exame de raios X que comprovaria a ingestão da droga?
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus n. 149.146,
já se manifestou sobre o tema e decidiu que o direito à não autoincriminação não
veda a realização de exame de raios X em indivíduos que assumiram a ingestão de
droga.170
Carlos Henrique Borlido Haddad171, com entendimento semelhante, assevera
que o direito à não autoincriminação não possui a extensão defendida por Costa
Andrade172, segundo o qual o acusado não pode funcionar como instrumento de sua
condenação:
O princípio nemo tenetur se detegere não evita a produção de todas as provas que dependam da intervenção do acusado, senão somente aquelas que exigem uma participação ativa voluntária. Caso contrário, a interceptação telefônica, realizada sem conhecimento do réu, a busca e apreensão de documentos confeccionados pelo acusado, efetuadas contra sua vontade, e até os elementos probatórios obtidos em decorrência da prisão temporária deveriam ser alijados do processo penal, uma vez que se utilizou o imputado, direta ou indiretamente, como instrumento de sua condenação. Pressupor que nenhuma condenação possa ter o acusado por instrumento é conferir-lhe plena soberania sobre a produção e a utilização das provas, autorizando-o a excluir aquelas que a ele se relacionem.
Podemos concluir do exposto que o direito à não autoincriminação não
impede a utilização do corpo do indivíduo como objeto de prova.
O estudo realizado no direito comparado demonstra que os países, de forma
geral, embora contenham disposições legais semelhantes ao nosso, no que diz
respeito ao direito à não autoincriminação, permitem que amostras biológicas sejam
170
“[...] ademais, é sabido que a ingestão de cápsulas de cocaína causa risco de morte, motivo pelo qual a constatação do transporte da droga no organismo humano, com o posterior procedimento apto a expeli-la, traduz em verdadeira intervenção estatal em favor da integridade física e, mais ainda, da vida, bens jurídicos estes largamente tutelados pelo ordenamento. 4. Mesmo não fossem realizadas as radiografias abdominais, o próprio organismo, se o pior não ocorresse, expeliria naturalmente as cápsulas ingeridas, de forma a permitir a comprovação da ocorrência do crime de tráfico de entorpecentes.” (STJ − HC . 149.146 . . Og ).
171 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação,
cit., p. 67. 172
ANDRADE, Manoel da Costa. Sobre as proibições da prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. p. 127.
102
retiradas dos indivíduos suspeitos ou acusados do cometimento de determinados
crimes. Há, inclusive, autorização para que tais amostras sejam recolhidas
independentemente a vontade do indivíduo, por meio de procedimentos coativos.
Um requisito mostrou-se fundamental na análise: a presença de uma
legislação que discipline o procedimento de forma minuciosa. Margarete Vetis
Zaganelli173 assinala que a regulamentação deve observar, ao menos, os seguintes
requisitos: proteção no maior grau possível da liberdade do acusado; não deve ser
autorizada a medida de intervenção que resultar em perigo à saúde mental ou física
do acusado; não deve ser autorizada a medida de intervenção que atentar contra a
dignidade do acusado; e, por fim, a medida deve ser necessária para a investigação.
O Acórdão n. 155 do Tribunal Constitucional português, ao analisar a
legislação que autorizava a realização coativa de uma intervenção corporal –
conjugação dos preceitos constantes dos artigos 6º da Lei n. 45/2004, de 19 de
agosto, e 172º do Código de Processo Penal – asseverou que não basta a exigência
de lei, mas ela deve ter um grau de densidade normativa tal que possibilite a sua fiel
execução.
Do mesmo modo, a Corte Constitucional da Espanha, na STC 207/1996,
estabeleceu os requisitos das medidas restritivas de direitos fundamentais, entre
eles, o de que estivessem previstas em lei. Além da previsão legal, determinou que
a medida fosse adotada mediante decisão judicial especificamente motivada e que
fosse idônea, necessária e proporcional, em relação a um fim constitucionalmente
legítimo.
A Corte Constitucional italiana, a princípio, com fundamento no artigo 146 do
Código de Processo Penal – autorização genérica para a realização das medidas,
pois não havia limitações aos poderes instrutórios do juiz − entendia que o juiz em
sua atividade jurisdicional poderia determinar a extração coercitiva de amostras
sanguíneas, o que ficou consignado na Sentença n. 54, de 1986. Adotou-se o
173
ZAGANELLI, Margareth Vetis. Intervenções corporais, processo penal e direitos fundamentais. In: LIMA, Marcellus Polastri; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna (Coords.). A renovação processual penal após a constituição de 1988: estudos em homenagem ao professor José Barcelos de Souza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 211.
103
entendimento de que a decisão que possibilita a realização de exames periciais sem
o consentimento do indivíduo teria a natureza de provimento restritivo de liberdade
pessoal174. Posteriormente, todavia, a Corte italiana adotou novo entendimento, que
foi exarado na Sentença n. 238, de 1996. Nesta restou assente a necessidade de
regulamentação legislativa para a realização de medidas de intervenção corporal.
Observe-se que não foi vedada a intervenção corporal coercitiva, apenas definiu-se
a necessidade de lei específica para a sua efetivação. Em 2008, foi alterado o artigo
224 do Código Processual, que passou a prever a realização de medidas de
intervenção corporal coercitivas. O artigo, em resumo, aponta os seguintes
requisitos para a concretização da medida: o crime investigado deve ser doloso; a
medida deve ser informada ao indivíduo e ao seu advogado ao menos com três dias
de antecedência; a medida deve ser imprescindível para a comprovação do fato; o
juiz deve fundamentar a decisão; devem ser escolhidas as técnicas menos
invasivas; e deve ser respeitada a dignidade do indivíduo, entre outros requisitos.
Não há entre nós legislação que autorize as intervenções corporais. A Lei n.
12.654/2012, que possibilita a identificação criminal por meio da coleta de material
biológico, é muito tímida e não abrange todas as situações possíveis, além de não
ter sido submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal.
Os Tribunais Superiores pátrios, dado o atual estágio da jurisprudência, já
sinalizaram que tal legislação, mesmo que existente, seria considerada
inconstitucional, a exemplo do que ocorreu com o exame do etilômetro. Observe-se
que as decisões, ao contrário daquelas proferidas pelos Tribunais Constitucionais
espanhol, italiano e português, não ponderaram acerca da ausência de lei que
possibilitasse a execução da a medida, mas simplesmente entenderam inadmissível,
em quaisquer hipóteses, de maneira absoluta, que alguém seja coativamente
obrigado a realizar qualquer tipo de exame, mesmo que de forma passiva.
O julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566/DF, no qual o Superior
Tribunal de Justiça houve por bem firmar a tese de que só o teste do etilômetro ou o
exame de sangue para verificação de dosagem alcoólica seriam aptos para a
comprovação do crime de embriaguez ao volante, bem demonstra a não aceitação
174
QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 318.
104
das medidas de intervenção corporal adotadas na legislação estrangeira. Observe-
se que na hipótese havia lei determinando a medida, embora sem menção ao
procedimento em caso de recusa.
No referido julgamento, várias teses foram apresentadas sobre o princípio da
não autoincriminação, prevalecendo o entendimento que reconhece que o indivíduo
não pode ser compelido a colaborar com o exame de sangue, em respeito ao
princípio do nemo tenetur se detegere.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende protegidas pelo direito
à não autoincriminação condutas não verbais do acusado que importem em uma
atividade, como, por exemplo, o fornecimento de padrões gráficos, mas ainda não se
manifestou quanto às provas relacionadas ao réu de cuja produção não dependa a
sua participação ativa, mas somente uma conduta passiva (simples tolerar), como
ocorrem nas extrações compulsórias de sangue e DNA.
Embora a nossa corte maior ainda não tenha se manifestado a respeito, como
dito, da validade da prova de DNA obtida coercitivamente em uma investigação
criminal, em processos cíveis (investigação de paternidade), o entendimento da
Corte Constitucional é no sentido de repudiar a realização coativa das intervenções.
Nessas hipóteses, entretanto, a negativa pode ser valorada pelo juiz e poderá
importar no julgamento em desfavor do indivíduo que se negou a realizar o exame,
situação que não tem paralelo no direito penal, em razão da impossibilidade de
adoção de tal espécie de presunção.
Infelizmente, o que se observa da leitura da jurisprudência é uma abordagem
superficial da questão, o que fatalmente acaba por desembocar na constante
repetição da frase de que a medida em análise afronta o direito à não
autoincriminação, sem contudo esclarecer, como faz a jurisprudência estrangeira, os
limites do mencionado direito. Em que grau o direito é afetado? Há necessidade de
lei? A impossibilidade é absoluta? Se o corpo não pode ser objeto de prova, como
justificar as demais modalidades de cooperação passiva, como o reconhecimento de
pessoas e as buscas e inspeções corporais (que são admitidas)?
105
Enquanto as respostas não são dadas de maneira satisfatória, vemos a
hipertrofia do direito à não autoincriminação levar a um menosprezo dos demais
direitos fundamentais a ele contrapostos. É assente que tanto deve ser proibido o
excesso de proteção como a sua insuficiência, o que impõe o enfrentamento do
tema pelo legislador brasileiro, como ocorreu nos demais sistemas jurídicos
analisados.175
175
MARTELETO FILHO, Wagner. O direito à não autoincriminação no processo penal contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados e outros problemas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 159.
106
6 INTERVENÇÕES CORPORAIS. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS EM CONFLITO
6.1 Proporcionalidade e ponderação dos interesses contrapostos
O princípio da proporcionalidade origina-se, conforme a lição de Gomes
Canotilho176, da necessidade de limitação do Poder Executivo:
O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado como medida para as restrições administrativas da liberdade individual. É com esse sentido que a teoria do estado o considera, já no século XVIII, como máxima supra-positiva, e que ele foi introduzido, no século XIX, no direito administrativo como princípio do direito de polícia. Posteriormente, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso (Übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional.
O direito brasileiro não possui disposição expressa acerca da
proporcionalidade. Alguns autores entendem que o seu fundamento jurídico
encontra-se no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal177. Paulo Bonavides
advoga que o princípio decorre do Estado de Direito. Para o Supremo Tribunal
Federal, no entanto, a proporcionalidade é um postulado constitucional autônomo
que tem a sua sede material na disposição constitucional do devido processo
legal 178 . Já Robert Alexy assevera que a proporcionalidade decorre da própria
natureza dos princípios:
Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento, no termos da lei de colisão. Visto que a aplicação de princípios válidos – caso sejam aplicáveis – é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos. Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter principiológico das normas de direitos fundamentais.
179
176
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 259.
177 TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 773.
178 Conclusão a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n. 855.
179 ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 117-118.
107
A maior parte da doutrina trata a proporcionalidade como um princípio180.
Virgilio Afonso da Silva 181 , contudo, prefere a denominação regra da
proporcionalidade. Esclarece que princípio é uma norma que exige que algo seja
realizado na maior medida possível, diante das condições fáticas e jurídicas do caso
concreto, e a proporcionalidade não segue esse modelo, pois impõe um dever
definitivo, no caso de sua aplicação.182
A proporcionalidade exige racionalidade e determina que os atos estatais não
sejam desprovidos de um mínimo de sustentabilidade183. Além de sua função de
salvaguardar direitos fundamentais, a proporcionalidade também possui a
importante tarefa de servir como critério para a solução de conflitos de direitos
fundamentais, por meio de juízos comparativos de ponderação dos interesses
envolvidos no caso concreto, conforme preleciona Paulo Bonavides.184
Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.
De fato, os princípios podem se contradizer, sem que isso faça qualquer um
deles perder a sua validade jurídica, como explica Willis Santiago Guerra Filho:
É exatamente numa situação em que há conflitos entre princípios, ou entre eles e as regras, que o princípio da proporcionalidade mostra sua grande significação, pois pode ser usado como critério para solucionar da melhor forma tal conflito, otimizando a medida em que se ataca prioritariamente um e desatende o mínimo possível a outro princípio
185.
Virgilio Afonso da Silva ressalta a diferença existente entre recorrer-se ao
sopesamento e aplicar-se a regra da proporcionalidade.
180
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de direito constitucional, cit., p. 401.
181 SILVA, Virgilio Afonso da. Direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 167.
182 André Ramos Tavares fala em critério da proporcionalidade (Curso de direito constitucional, cit., p.
772). 183
TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 772. 184
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 386.
185 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo:
Celso Bastos, 1999. p. 73.
108
Na grande maioria dos casos, adverte o autor, a restrição a um direito
fundamental é realizada por meio de uma regra presente em um texto
infraconstitucional. Tal espécie de restrição ocorre quando “o legislador, em
determinada situação, se vê obrigado a fazer um sopesamento entre dois ou mais
princípios, cujo resultado, então, é expresso pela regra infraconstitucional”186. A título
ilustrativo, podemos citar o dispositivo legal que autoriza as interceptações
telefônicas. O legislador, não obstante a Constituição preservar a intimidade e a vida
privada, permitiu que em determinadas hipóteses o sigilo telefônico fosse quebrado,
para descobrir-se a autoria de graves delitos, o que interessa à realização da justiça,
bem que também usufrui da proteção constitucional. O dispositivo legal pode,
evidentemente, ser submetido a controle judicial e, nesse controle, se houver uma
restrição a direito fundamental, deve-se recorrer à regra da proporcionalidade, ou
seja, deve-se indagar se o dispositivo legal é adequado para fomentar seus
objetivos, se não há medida alternativa tão eficiente quanto, mas menos restritiva, e
se há um equilíbrio entre a restrição de um direito e a realização do outro.187
Quando, ao contrário, não houver uma regra infraconstitucional que discipline
a colisão entre dois princípios, vale dizer, hipótese que não tenha sido objeto de
ponderação por parte do legislador, aplica-se o sopesamento entre os princípios
eventualmente aplicáveis ao caso concreto. Se não há medida adotada – não houve
a intervenção do legislador − não há possibilidade alguma de se adotar a regra da
proporcionalidade.
6.2 Direito à não autoincriminação. Critérios para a ponderação
O direito à não autoincriminação é um dos direitos fundamentais previstos na
Constituição Federal, ao lado de vários outros.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem afirmado reiteradamente
que os direitos fundamentais não são absolutos. Na atualidade, não “se reconhece a
presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais
previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções
186
SILVA, Virgilio Afonso da, Direitos fundamentais, cit., p. 178. 187
Ibidem, p. 179.
109
Internacionais em matéria de direitos humanos” 188 . Asseverou a ministra Ellen
Gracie que “os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se
afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência
de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-
valorativa”.
Para se falar, todavia, em sopesamento, há uma condição: o direito
fundamental não deve ser absoluto, pois de outro modo sempre prevaleceria no
eventual confronto com outro direito fundamental.
Conquanto os direitos fundamentais sejam relativos, o ministro Celso de
Mello, no julgamento do Habeas Corpus n. 68.742/DF189, asseverou que o direito ao
silêncio se reveste de valor absoluto e é plenamente oponível ao Estado e aos seus
agentes. Disse ainda que ele atua como poderoso fator de limitação das próprias
atividades penais-persecutórias desenvolvidas pelo Poder Público.
O ministro Sepúlveda Pertence, a seu turno, no julgamento do Habeas
Corpus n. 79.244/DF, afirmou que a garantia contra a autoincriminação não tem
limites espaciais nem procedimentais, estendendo-se a qualquer indagação da
autoridade pública de cuja resposta possam advir subsídios à imputação ao
declarante da prática de crime.
Afinal, o direito à não autoincriminação possui caráter absoluto?
Robert Alexy190 define os princípios como mandamentos de otimização, ou
seja, são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível,
dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. O âmbito das possibilidades
jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são
normas que não possuem essa opção de serem satisfeitas em maior ou menor grau,
vale dizer, elas são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. O autor em seguida aponta
três objeções que poderiam ser levantadas contra o conceito de princípio. A primeira
188
ST − HC . 93.250/MS, rel. Min. Ellen Gracie. 189
ST − HC . 68.742/DF, rel. Min. Octavio Gallotti. 190
ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 90.
110
sustenta que há colisões entre princípios que podem ser solucionadas por meio da
declaração de invalidade de um deles; a segunda refere-se à possibilidade de
existirem princípios absolutos, que assim nunca poderiam ser postos em uma
relação de preferência com outros princípios; e a terceira diz respeito à amplitude do
conceito, que o tornaria inútil, em razão da possibilidade de abranger todo e
qualquer interesse que possa ser introduzido no procedimento de sopesamento.191
No que diz respeito à segunda objeção, e que mais de perto nos interessa, o
autor traz um exemplo concernente ao princípio da dignidade humana. Afirma que
seria possível sustentar que a Constituição alemã estabeleceu ao menos um direito
absoluto: a dignidade humana é inviolável. Aduz que conquanto o artigo 1º,
parágrafo1º, 1, desperte essa impressão – caráter absoluto do direito –, o que ocorre
é que a norma da dignidade humana é tratada em parte como regra e em parte
como princípio. Esclarece que há um amplo grupo de condições de precedência que
conferem grande grau de certeza de que, sob determinadas condições, o princípio
da dignidade humana prevalecerá em face de princípios colidentes. Assim, nas
hipóteses em que a norma da dignidade humana é relevante, a sua natureza de
regra é claramente percebida, e não se verifica se ela prevalece ou não sobre outras
normas, mas somente se foi ou não violada.192
Sucede que, em razão da abertura da norma da dignidade humana, há uma
grande margem de apreciação para dizer, no caso concreto, se houve de fato ou
não a sua violação. Respondendo a uma questão pertinente à interceptação
telefônica, se violava ou não a dignidade humana, o Tribunal Constitucional alemão
decidiu que não se caracteriza a violação se a exclusão da proteção judicial não é
motivada por uma desconsideração ou depreciação da pessoa humana, mas sim por
uma necessidade de manter em segredo as medidas que sirvam de proteção da
ordem democrática e para a própria existência do Estado. O sopesamento também
pode ser observado na decisão acerca da prisão perpétua, tendo o Tribunal
afirmado que a dignidade da pessoa humana não é violada se a execução da pena
for necessária em razão da permanente periculosidade do preso, restando
191
ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 109. 192
Ibidem, p. 111-112.
111
delimitado que a proteção da comunidade estatal sob determinadas condições tem
precedência em face do princípio da dignidade da pessoa humana.193
Assim, conclui o autor ser necessário que se pressuponha a existência de
duas normas da dignidade humana, uma regra e um princípio. A relação de
preferência do princípio da dignidade humana em confronto com outros princípios
determina o conteúdo da regra da dignidade humana. O princípio pode realizar-se
em diferentes medidas, e o fato de ele, dadas certas condições, prevalecer com
maior grau de certeza sobre outros princípios, não fundamenta uma natureza
absoluta, mas significa somente que, sob determinadas circunstâncias, há razões
praticamente inafastáveis que determinam a sua precedência.194
Escorado nos ensinamentos de Alexy, Wagner Marteleto Filho195 entende não
haver óbice dogmático no que tange à aceitação de um nível de regra e um de
princípio para o nemo tenetur. Na primeira hipótese, que tem como exemplo o direito
ao silêncio, há uma blindagem do direito contra quaisquer intervenções. Já quando
considerado um princípio – cujo conteúdo pode ser traduzido na possibilidade de
não cooperar com a produção de provas autoincriminatórias –, existe a possibilidade
restrições.
O direito à não autoincriminação, na verdade, é composto por uma série de
direitos, alguns com a natureza de princípio e outros com a natureza de regra. Não é
o direito à não autoincriminação, como um todo, que ora se comporta como regra e
ora como princípio, mas sim as suas várias acepções que ou são consideradas
regras ou são consideradas princípios.
Segue que o direito ao silêncio é uma regra, e assim possui uma natureza
absoluta, como ressaltado pelo ministro Celso de Mello no julgamento do Habeas
Corpus n. 68.742/DF. Tal direito nunca se comportará como princípio, vale dizer, em
193
ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 113. 194
Ibidem, p. 114. 195
MARTELETO FILHO, Wagner, O direito à não autoincriminação no processo penal contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados e outros problemas, cit., p. 65.
112
relação a ele nunca se realizará um juízo de proporcionalidade, pois seja qual for o
direito contraposto, ele sempre prevalecerá. Assim como o direito ao silêncio, outras
manifestações do direito à não autoincriminação também possuem caráter absoluto,
como a de não cooperar ativamente com a acusação na produção de provas
autoincriminatórias. Em nenhuma hipótese pode o indivíduo ser compelido a exalar o
ar para a realização do teste do etilômetro, ser obrigado a participar da
reconstituição do crime ou fornecer padrões de voz ou de escrita. Repise-se que
nessas condutas o que se veda é a coação física ou moral do indivíduo para que
pratique determinada ação que possa de algum modo desfavorecê-lo (sem coação
não haveria, em tese, como produzir a prova).
Por outro lado, quando se tratar de mera cooperação passiva, como ocorre
com as intervenções corporais − extração compulsória de amostras de sangue ou
DNA, por exemplo −, há espaço para a realização de um juízo de proporcionalidade,
conforme, diga-se, admite a quase totalidade dos ordenamentos estrangeiros.
Vários direitos fundamentais podem restar em tese atingidos pelas
intervenções corporais, como o direito à intimidade, à liberdade, à integridade física,
à dignidade da pessoa humana e à não autoincriminação. Segue que a medida só
estaria justificada após a realização de um juízo de proporcionalidade, para verificar-
se a sua adequação. Conforme assentado pelo Tribunal Constitucional espanhol196,
a medida limitativa de direito fundamental deve estar prevista em lei, ser adotada
mediante uma decisão judicial suficientemente motivada, ser idônea, necessária e
proporcional em relação a um fim constitucionalmente legítimo.
Feitas essas considerações, vejamos os direitos fundamentais que em tese
são atingidos pelas intervenções corporais e se há a possibilidade de justificá-las,
mediante um juízo de proporcionalidade.
196
STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 11 fev. 2014).
113
6.3 Ponderação entre o direito à intimidade e as intervenções
corporais
O direito à intimidade está garantido por nossa Constituição Federal em seu
artigo 5º, inciso X, que afirma que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação.
Além de previsto em nossa Constituição, o direito à intimidade é amparado
por diversos tratados internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos, a Convenção de Roma, o Pacto de São José da Costa Rica, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros.
Podemos definir a intimidade como as manifestações da personalidade cujo
conhecimento estão reservadas ao seu titular, que sobre elas exerce alguma forma
de controle, quando desrespeitadas por terceiros. Em outras palavras, o direito à
intimidade nos preserva do conhecimento alheio.
Há que diferenciar a intimidade da vida privada. Manoel Gonçalves Ferreira
Filho197 esclarece que “os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada
apresentam grande interligação, podendo porém ser diferenciados por meio da
menor amplitude do primeiro que se encontra no âmbito de incidência do segundo”.
O conceito de intimidade está mais afeito às relações subjetivas da pessoa,
envolvendo as suas relações familiares e de amizade, ao passo que o conceito de
vida privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais
como relações comerciais e de trabalho, entre outras.
Duas vertentes podem ser vislumbradas. A primeira constitui o seu núcleo ou
conteúdo elementar, que poderíamos definir como a mais íntima expressão da
personalidade individual, essência do ser humano, oponível contra todos e garantido
pelo ordenamento jurídico quando transgredido; a outra é o seu limite externo, que
197
FERREIRA FILHO, Manoel. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2. ed. atual. e reformulada. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 1, p. 35.
114
pode ser restringido em ocasiões específicas expressamente previstas em lei, para
defender outros direitos ou interesses de terceiros.198
Angél Gil Hernandéz199, com pensamento semelhante, preleciona que:
O direito à privacidade é projetado em duas formas que nos permite compreender as suas limitações através de uma medida de intervenção do corpo: a liberdade de viver suas próprias vidas cada um de acordo com seus gostos e preferências, sem imposições uniformes do grupo social, mas vivê-la na sociedade, de modo que o exercício desta liberdade não viole os direitos ou interesses de terceiros.
Robert Alexy200 acredita ser possível identificar três esferas, no que se refere
à proteção da liberdade humana, com decrescente intensidade de proteção. A
esfera mais interior, último âmbito da liberdade humana, caracteriza-se por ser o
âmbito mais íntimo, a esfera intangível e, de acordo com a interpretação do Tribunal
Constitucional alemão, o núcleo absolutamente protegido da organização da vida
privada, esfera que compreende os assuntos mais secretos e que não devem
chegar ao conhecimento de terceiros, em virtude de sua natureza reservada. Alexy
entende que mesmo esse núcleo está sujeito à aplicação da lei do sopesamento. A
esfera privada ampliada inclui o âmbito privado que não pertence à esfera mais
interior, incluindo assuntos que o indivíduo leva ao conhecimento de pessoas de sua
confiança, ficando excluído o resto da comunidade. E a terceira é a esfera social,
que engloba tudo o que não for incluído na esfera privada ampla.
A pergunta que deve ser enfrentada é até que ponto o direito individual à
intimidade pode ser limitado, tendo em vista outros interesses também relevantes da
sociedade. Não há dúvida que o direito à intimidade não tem caráter absoluto, como
já decidiu a nossa Corte Suprema em diversas ocasiões, nenhuma, contudo,
relacionada às intervenções corporais.
198
PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 72.
199 N g “El derecho a la intimidad se proyecta en una doble vertiente que nos permitirá
entender su limitación por una medida de intervención corporal: la libertad de vivir cada uno su propia vida conforme a sus gustos o preferencias, sin imposiciones uniformadoras del grupo social, pero de vivirla en sociedad, de manera que el goce de esa libertad no vulnere los derechos o intereses de los demás.” (GIL HERNÁNDEZ, Ángel, Intervenciones corporales y derechos fundamentales, cit., p. 45. Nossa tradução).
200 ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 360-361.
115
O Tribunal Constitucional espanhol, ao contrário, já pôde enfrentar o tema em
diversos momentos, asseverando que o artigo 18.1 da Constituição espanhola não
tem um caráter absoluto, podendo ser limitado para fins de investigação penal201, no
que se refere às intervenções corporais.
O âmbito de intimidade protegido não abrange todas as partes do corpo,
mesmo porque a intimidade é um conceito cultural e, portanto, relativo. Por essa
razão, temos que entender o que cada sociedade considera íntimo ou recatado em
cada instante de sua história. Dessa forma, as intervenções que recaiam sobre
partes do corpo que não são consideradas íntimas em dada realidade cultural não
estão protegidas pelo direito. Segue que o âmbito da intimidade corporal
constitucionalmente protegido não se identifica plenamente com o corpo humano,
pois o que se visa a resguardar não é a entidade física, mas a cultural, razão pela
qual não se considera que um mero registro bucal ou exame radiológico atentem
contra a intimidade.202
Por outro lado, ainda que as intervenções atinjam o âmbito de proteção da
norma, é certo que poderá haver a relativização em certas hipóteses. Observe-se
que em algumas hipóteses o direito à intimidade é afrontado com a mera realização
do exame, como ocorre, por exemplo, com os exames vaginais; em outras, não é o
exame em si que é capaz de afrontar a intimidade, mas o seu resultado, como
ocorre com a coleta de cabelo para verificar se o indivíduo é ou não dependente de
drogas.
Dessa forma, tanto as menores intervenções, como a coleta de saliva ou de
fios de cabelo, como as maiores e mais invasivas, como ocorre nas buscas vaginais
e exames de sangue, podem constituir restrições à intimidade, fazendo-se
necessário, para a sua realização, um juízo de proporcionalidade. Tal juízo configura
uma garantia para o indivíduo, uma vez que exige a ponderação dos interesses em
jogo, para descobrir até que ponto o sacrifício do direito à intimidade é necessário
para a obtenção das provas imprescindíveis para a investigação penal.
201
STC 207/1996 e 37/1989 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 11 fev. 2014).
202 STC 28/1993 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 13 mar. 2014).
116
Vejamos agora alguns casos concretos.
O Tribunal Supremo espanhol203 entendeu que uma inspeção bucal efetuada
em um indivíduo detido para extrair papelotes de cocaína não violava o seu direito à
intimidade pessoal, uma vez que essa cavidade do corpo humano não constitui um
espaço subjetivamente íntimo. Trata-se de uma medida de intervenção corporal com
finalidade de busca e apreensão de um delito contra a saúde pública que equivale a
uma busca policial normal, não podendo, por isso, alcançar a mesma relevância de
uma busca anal ou vaginal.
Em outra hipótese, decidiu a Corte que a inspeção no interior do corpo
humano mediante exame de raios X não afeta a intimidade do indivíduo,
principalmente considerando-se a forma e frequência com que tal exame se realiza.
Considerando o instrumento utilizado, bem como a espécie de visão que tal
reconhecimento médico permite, não se pode dizer que tenha havido atentado ao
pudor, ao menos dados os conceitos atuais da sociedade, e assim entendeu-se que
a sua utilização pela polícia não requeria sequer autorização judicial.
Por sua vez, decidiu o Tribunal Constitucional espanhol 204 que uma
intervenção corporal consistente na extração de alguns fios de cabelo e de pelos
das axilas não se encontra dentro do âmbito de proteção constitucional do direito à
intimidade.
Em contrapartida, decidiu o mesmo Tribunal 205 que afigurava-se
desproporcional e atentava contra o direito à intimidade a ordem para que um
indivíduo, detido em um centro penitenciário, tirasse a sua roupa e fizesse flexões
logo após ter recebido uma visita íntima, com a finalidade de evitar a introdução de
objetos e substancias perigosas no estabelecimento prisional.
203
FERNÁNDEZ ACEBO, María Dolores. La tutela de los derechos fundamentals a la intimidad e integridad física frente a la actuación de los poderes públicos sobre el cuerpo humano. 2013. Tese (D u ) − U v C uñ D D Púb 2013. D ív : <http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/11704/2/Fernandez%20Acebo_Maria%20Dolores_TD_2013.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2014.
204 STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 20 fev. 2014).
205 STC 57/1994 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 20 fev. 2014).
117
Evidentemente os avanços científicos e o desenvolvimento tecnológico em
áreas como a informática, a medicina e a genética possibilitaram que fossem
introduzidas novas técnicas de investigação que naturalmente podem vir a implicar
em invasões da esfera privada do indivíduo e, portanto, devem ser objeto de
proteção por parte do Estado. Por outro lado, tais técnicas mostram-se fundamentais
para a elucidação de vários delitos, não podendo a sociedade atual delas prescindir,
devendo ser encontrado um meio termo para o equilíbrio dos direitos contrapostos.
Ressalte-se, por fim, que medidas mais invasivas – como as interceptações
telefônicas − são admitidas sem maiores questionamentos pela doutrina e
jurisprudência, não sendo razoável que se impeçam as intervenções corporais com
fundamento na proteção à intimidade.
6.4 Ponderação entre o direito à integridade física e as intervenções
corporais
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLIX, dispõe que aos presos
é assegurado o respeito à integridade física e moral. Evidentemente tal garantia não
se restringe aos presos, como, diga-se, afirma o artigo 5 do Pacto de São José da
Costa Rica, que estabelece que toda pessoa tem direito a que se respeite sua
integridade física, psíquica e moral. A referência à integridade física, bem como à
moral, implica que a proteção abrange a totalidade do indivíduo, ou seja, não são
admitidos ataques físicos, morais ou psicológicos.
Nesse sentido entendeu o Tribunal Constitucional espanhol206, que, com o
reconhecimento do direito fundamental à integridade física e moral, se protege a
inviolabilidade da pessoa, não apenas contra ataques dirigidos a lesões ao seu
corpo e espírito, mas também frente a toda a classe de intervenções nesses bens
que não possuam o consentimento de seu titular.
Não são admitidas, por violar a integridade física, tratamentos e intervenções
cirúrgicas sem o consentimento do paciente, conforme já teve oportunidade de
decidir o Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Pretty v. Reino Unido. Da
206
STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 21 fev. 2014).
118
mesma forma, entendeu o mesmo Tribunal, no caso Glass v. Reino Unido, que a
decisão de impor-se a um menor, contra a vontade de sua mãe, tratamento não
desejado, implica em desrespeito ao direito à intimidade e à integridade física.
Conquanto o direito à integridade tenha caráter de fundamentalidade, não
podemos dizer que seja absoluto, pois algumas de suas manifestações podem ser
limitadas pelo legislador, quando existir uma causa justificadora. A questão cinge-se
em determinar em que medida as intervenções podem ser justificadas, não obstante
a lesão verificada à integridade.
Obviamente estão excluídas todas as intervenções que possam acarretar
risco de vida ao indivíduo. Essa condição está presente nos acórdãos analisados,
bem como em várias legislações, como, por exemplo, no artigo 81 a, (1), do Código
de Processo Penal alemão, que não obstante autorizar e extração de sangue sem o
consentimento do acusado, condiciona a medida a não haver riscos para a sua
vida.207
Também não deve a medida ser autorizada se houver outra que produza os
mesmos resultados, com menor sacrifício ao direito. A medida deve ainda ser
rejeitada quando o bem jurídico protegido não justificar a sua execução. O Tribunal
Constitucional alemão208, em uma hipótese em que ponderou a necessidade de
extração de líquido cefalorraquiano de um indivíduo para fins de investigação em
processo criminal de um crime de menor potencial ofensivo, rechaçou a medida, nos
seguintes termos:
207
“S çã 81a. [Exame físico; Exame de sangue] (1) O exame físico do acusado pode ser ordenado para o estabelecimento de fatos que são importantes para o processo. Para esse efeito, a coleta de amostras de sangue e outras intrusões corporais que são realizadas por um médico de acordo com as regras da ciência médica para a realização do exame é admissível sem o consentimento do arguido, d qu u juíz u ú ”. N g “Section 81a. [Physical Examination; Blood Test] (1) A physical examination of the accused may be ordered for the establishment of facts which are of importance for the proceedings. For this purpose, the taking of blood samples and other bodily intrusions which are effected by a physician in accordance with the rules of medical science for the purpose of examination shall be admissible without the accused's consent, provided no detriment to his health is to be expected.” (Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stpo/englisch_stpo.html>. Acesso em: 18 mar. 2014). Nossa tradução).
208 Decisão (Beschluss) do Primeiro Senado de 10 de junho de 1963 – 1 BvR 790/58.
119
A retirada de líquido cefalorraquiano e medular com uma agulha comprida e oca não é uma intervenção cirúrgica insignificante e uma intervenção na incolumidade física protegida pelo Art. 2 II GG. Ainda que tal intervenção normalmente não traga perigo, se realizada conforme os preceitos da medicina, segundo o parecer do perito podem ocorrer alterações no estado de saúde, como dores e náuseas e, no caso da punção lombar, em até10% dos casos. Em casos especiais, a retirada de líquor pode levar a sérias complicações [...]. [...] Assim, também na decisão sobre a retirada de líquor, como em todas as intervenções estatais na esfera da liberdade, o juiz deve observar o preceito da proporcionalidade entre meio e propósito. Mesmo que o interesse público esclarecimento de crimes esteja ancorado no princípio da legalidade tão caro ao Estado de direito, justificando, em geral, intervenções na liberdade do acusado, tão menos bastará um tal interesse generalizado (à justificação constitucional) quanto mais gravemente se intervier na esfera de liberdade. Para a aferição da proporcionalidade entre medida e (seu) propósito, necessário se faz considerar também que gravidade tem o delito a ser apenado. É o que vale principalmente para aquelas medidas rigorosas adotadas para a constatação da imputabilidade do acusado admitidas pelos §§ 81 e 81a StPO. Aqui uma aplicação da lei que leve em conta os direitos fundamentais requer que a intervenção pretendida esteja em relação adequada com a gravidade do delito, para que as consequências do esclarecimento do delito não onerem o acusado mais do que a pena esperada. O juiz é, por isso, constitucionalmente obrigado a medir, no caso particular, uma medida legalmente em si permitida também com base [no parâmetro da] na proibição de excesso [...]. [...] No presente caso, [...] trata-se de um caso de bagatela, em face do qual poderia ser aventada somente uma pena ínfima, dependendo das circunstâncias até mesmo (somente) um arquivamento do processo por exiguidade da causa. Do outro lado, a retirada do líquor em suas duas formas é uma intervenção física não destituída de importância; não se justifica, por causa de um crime-bagatela, submeter o acusado, contra a sua vontade, a uma tal intervenção.
Em Portugal209, o Código Processual Penal dispõe em seu artigo 126º serem
nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas por meio de tortura, coação ou,
em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas.
Não obstante a proteção conferida à integridade física, entendeu o Tribunal
Constitucional português que o mero fato de soprar o etilômetro não seria capaz de
ofender a integridade física de alguém210. Em outra decisão211, assentou o Tribunal
que não se trata, com o teste de pesquisa de álcool, de devassar os hábitos da
pessoa do condutor no tocante à ingestão de bebidas alcoólicas, mas apenas de
recolher prova perecível e de prevenir eventual violação de bens jurídicos valiosos
(entre outros a vida e a integridade física) que uma condução sob a influência do
209
Artigo 126º do Código Penal português. 210
Acórdão 156/1988 (Disponível em: <www.tribunalconstitucional.pt>. Acesso em: 01 mar. 2014. 211
Acórdão 319/1996 (Disponível em: <www.tribunalconstitucional.pt>. Acesso em: 01 mar. 2014.
120
álcool pode causar, o que há de convir-se, tem relevo bastante para justificar,
constitucionalmente a medida.
Observe-se que ao exarar a Sentença n. 238/1996, a Corte italiana
considerou ilegítimo o exame hematológico coativamente realizado, por falta de
previsão legal, e que ele afeta não somente a sua liberdade pessoal, mas também
atinge a sua esfera corporal. Conquanto seja atingida a esfera corporal do indivíduo,
o seu nível é mínimo, não comprometendo a sua integridade física e a sua
dignidade.
O Supremo Tribunal Federal 212 decidiu ser insignificante a lesão corporal
(pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito e, em consequência, acabou
por impedir a instauração de ação penal que tramitava. Segue que, adotado tal
entendimento, não é coerente considerar-se haver ofensa à integridade física
consistente na extração de sangue, saliva ou cabelo, por exemplo. Se o princípio da
“insignificância favorece o agente cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a
atentar contra os valores tutelados pelo direito penal, não se pode erigir a
insignificante lesão à integridade física como óbice às intervenções corporais”.213
6.5 Ponderação entre o direito à liberdade e as intervenções
corporais
A liberdade não implica apenas a proteção do indivíduo em face de detenções
arbitrárias, mas também abrange o direito de o indivíduo fazer tudo o que não esteja
expressamente proibido pela lei. Existindo modalidades distintas de detenção que
prejudiquem o direito à liberdade, também deve haver garantias para a sua defesa e
o seu livre exercício, de modo que se protejam os indivíduos, nas hipóteses em que
são forçados a fazer algo contra a sua vontade sem justa causa. Do exposto, segue
que a sua principal característica é exatamente o fato de que não é o seu exercício
que é regulamentado, mas os seus limites ou restrições, por isso a limitação de seu
212
ST − HC . 66.869/P . . Passarinho. 213
HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 257.
121
conteúdo deve ser feita de forma negativa, no sentido de que tudo que não é
proibido é permitido.214
A Constituição brasileira garante o direito à liberdade em seu artigo 5º, caput,
e em seu inciso II, corroborando o afirmado, dispõe que ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Diz-se que as intervenções corporais afetam o direito à liberdade, pois o
indivíduo, para fornecer o material que será objeto de perícia, permanecerá por um
determinado período – tempo necessário para a realização do exame – impedido de
se locomover.
De fato, no curto período de tempo que o indivíduo fica à disposição das
autoridades para a realização do exame, a sua liberdade restará restringida. Tal fato,
entretanto, por si só não tem aptidão para tornar ilegítimas as intervenções
corporais, uma vez que há uma série de diligências similares previstas pela
legislação que igualmente importam em restrições temporárias da liberdade, e que
são aceitas pela jurisprudência.
A título ilustrativo, observamos que o artigo 411 do Código Processo Penal
dispõe que na audiência de instrução proceder-se-á à tomada de declarações do
ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela
defesa, nessa ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e
ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e
procedendo-se ao debate. O parágrafo 7º do mesmo artigo assevera que nenhum
ato será adiado, salvo quando imprescindível à prova faltante, determinando o juiz a
condução coercitiva de quem deva comparecer.
É evidente assim que o juiz pode determinar a condução coercitiva de
testemunhas para prestarem o seu depoimento, ou do réu para realizar o
reconhecimento, providências que importam em privação temporária de sua
liberdade, à semelhança do que ocorre com a realização das intervenções corporais.
214
GARCÍA MORILLO, Joaquín. El derecho a la libertad personal: detención, privación y restricción de libertad. Valencia: Tirant lo Blanch; Universitat de València, 1995. p. 42.
122
De fato, decidiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n.
79.244/DF215 , que o nemo tenetur não impede o comparecimento para prestar
depoimento:
Se o objeto da CPI é mais amplo do que os fatos em relação aos quais o cidadão intimado a depor tem sido objeto de suspeitas, do direito ao silêncio não decorre o de recusar-se de logo a depor, mas sim o de não responder às perguntas cujas repostas entenda possam vir a incriminá-lo: liminar deferida para que, comparecendo à CPI, nesses termos, possa o paciente exercê-lo, sem novamente ser preso ou ameaçado de prisão, uma vez observada a liminar na volta do paciente à CPI e já encerrados os trabalhos dessa.
É possível, ainda, que seja decretada a prisão cautelar do indivíduo para a
obtenção de prova necessária à instrução processual. Com efeito, nos termos do
artigo 312 do Código Processo Penal, a prisão preventiva pode ser decretada para
conveniência da instrução criminal quando o acusado estiver de alguma forma
embaraçando o regular andamento do processo.
Pelo exposto, e considerando que o direito brasileiro já admite o emprego da
condução coercitiva e da prisão preventiva com finalidade instrutória indireta,
medidas que implicam restrição da liberdade, não vemos como não seria admitida
também a breve privação de liberdade para a realização de exames periciais
determinados pelo juiz.
6.6 Ponderação entre o direito à dignidade e as intervenções
corporais
A dignidade da pessoa humana, como já asseverado, foi reconhecida pela
Constituição de 1988 como princípio fundamental. Todavia, mais do que um mero
um princípio, ela é um dos valores fundantes da República, o que implica na
irradiação de seu significado por todo o sistema legal.
A dignidade da pessoa humana, entretanto, não veda de maneira peremptória
a realização de exames que envolvam intervenções corporais.
215
ST − HC . 79.244/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
123
O Tribunal Constitucional espanhol216 entendeu que a dignidade da pessoa
humana é uma das limitações à realização das referidas medidas, vale dizer, os
exames poderão ser realizados, desde que respeitada a dignidade da pessoa.
Conforme a doutrina do Tribunal, a medida limitativa deve estar prevista em lei, ser
deferida por autoridade competente em decisão motivada, ser idônea, necessária e
proporcional em relação a um fim constitucional legítimo e não deve, em hipótese
alguma, colocar em risco a saúde do indivíduo nem consistir em providência capaz
de ocasionar tratamento desumano nem degradante, ou seja, respeitando-se a
dignidade da pessoa.
A Corte Constitucional italiana217 considerou possível a realização de exame
hematológico, uma vez que tal medida constitui prática médica de ordinária
administração e não lesa a dignidade da pessoa. Não obstante tal decisão tenha
sido revista218 − entendeu-se necessária uma regulamentação específica –, também
a nova decisão consignou que o exame, embora represente invasão na esfera
corporal, não é apto a comprometer a dignidade da pessoa.
Na Alemanha 219 , a lei confere ampla proteção individual contra qualquer
pressão direta ou indireta, no sentido de alguém ser obrigado de forma ativa a
providenciar informações autoincriminatórias. Essa proteção tem amparo no fato de
que atenta contra a dignidade humana forçar-se alguém a ativamente contribuir para
a sua própria condenação.
A dignidade humana é violada, de acordo com a Corte Constitucional alemã,
quando o Estado falha em proporcionar à pessoa o respeito devido ao valor inerente
a qualquer ser humano. A Corte considerou restar violado o princípio da dignidade
humana quando há um elemento de arbitrariedade envolvido. Isso significa que o
indivíduo deve tolerar incursões em sua esfera pessoal, desde que a medida não
216
STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 15 fev. 2014). 217
Sentenza 54/86 (Disponível em: <http://cortecostituzionale.it>. Acesso em: 16 fev. 2014). 218
Sentenza 238/96 (Disponível em: <http://cortecostituzionale.it>. Acesso em: 16 fev. 2014). 219
WEIGEND, Thomas; GHANAYIM, Khalid, Human dignity in criminal procedure: a comparative overview of Israeli and German law, cit., p. 201.
124
seja arbitrária – deve servir a um fim legítimo e executada de forma razoável – e não
afete o núcleo central de sua personalidade.220
Relata Carlos Henrique Borlido Haddad que o Tribunal alemão decidiu ser
garantia da dignidade humana a liberdade de declaração e toda violação à recusa
de falar ou, por extensão, à recusa de fazer ou agir consiste em ofensa à dignidade.
Isso não impediu, todavia, que a jurisprudência entendesse constitucional a
realização das intervenções corporais, principalmente porque nelas não há
desrespeito à recusa de fazer ou agir do acusado. Arremata argumentando que
valer-se da força para empregar métodos invasivos para a colheita de material
probatório não viola a dignidade da pessoa humana, pois do contrário toda e
qualquer expressão do poder coercitivo estatal também a afrontaria, o que implicaria
em deixar o Estado sem ação no exercício do poder punitivo.221
Do exposto, não me parece razoável justificar-se a impossibilidade de serem
efetivadas intervenções corporais em nome do princípio da dignidade da pessoa
humana, quando medidas muito mais drásticas são toleradas, como a pena de
morte, a prisão cautelar e as interceptações telefônicas, entre outras.
Conquanto a entidade corporal seja um bem suficientemente importante para
merecer a proteção constitucional, não constitui um bem isolado, só devendo ser
protegido, portanto, no contexto dos demais. Resulta que as intervenções que sejam
necessárias e não contrariem as práticas normais da vida não podem ser afastadas
sem qualquer consideração de violarem ou não a dignidade humana, em suma, não
há um direito absoluto para negar a utilização do corpo humano como objeto de
prova, a não ser quando, em assim o fazendo, seja violada a dignidade humana.222
220
WEIGEND, Thomas; GHANAYIM, Khalid, Human dignity in criminal procedure: a comparative overview of Israeli and German law, cit., p. 201.
221 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação,
cit., p. 261. 222
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. A constituição e as intervenções corporais no processo penal: existirá algo além do corpo? In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (Coord.). Temas sobre direitos humanos: em homenagem ao Professor Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 117.
125
6.7 Ponderação entre o direito à não autoincriminação e as
interveções corporais
Devemos deixar claro, antes de verificar se as intervenções corporais afetam
ou não o direito à não autoincriminação, alguns conceitos relacionados ao tema, a
começar pela distinção entre suporte fático amplo e suporte fático restrito.
Suporte fático223 pode ser definido como o conjunto de elementos fáticos que
a norma jurídica em abstrato prevê e a ele imputa determinada consequência. O
preenchimento do suporte fático de uma norma é condição para que sua
consequência jurídica ocorra. O suporte fático é composto por dois elementos. O
primeiro diz respeito aos bens que são protegidos, e é chamado de âmbito de
proteção do direito. O segundo elemento refere-se à intervenção estatal. Assim,
compõem o conceito de suporte fático tanto o bem que é protegido (âmbito de
proteção) como aquilo contra o qual é protegido (intervenção estatal).
A definição do âmbito de proteção de um direito fundamental define, dessa
forma, os bens protegidos pela norma que garante o referido direito. Há duas teorias
acerca do suporte fático, a que pressupõe um suporte fático restrito e a que o
considera amplo. Para a primeira, alguns bens não são de antemão abstratamente
subsumidos no âmbito de proteção da norma. Nessa hipótese, não há que se falar
em restrição a direitos fundamentais. Normalmente, para excluir determinadas
condutas do âmbito de proteção de alguns direitos, busca-se pela sua essência. A
principal função dessa teoria é estabelecer o que se inclui e o que não deve ser
incluído no âmbito de proteção dos direitos.
A teoria que considera o suporte fático amplo não tem essa preocupação,
pois os bens são considerados a priori abrangidos pelo âmbito de proteção da
norma. O que ocorre é o deslocamento do foco da argumentação para o momento
da fundamentação da intervenção, isto é, com base em quais condutas, que de
início poderiam ser consideradas como garantidas por algum direito, poderão ser
excluídas dessa garantia.
223
SILVA, Virgilio Afonso da, Direitos fundamentais, cit., p. 68.
126
Entende Virgílio Afonso da Silva que um modelo que se baseia na redução a
priori do âmbito de proteção de direitos fundamentais proporciona “uma garantia
menos eficaz desses direitos nas atividades legislativa e jurisdicional, por excluir da
exigência de fundamentação uma série de atos que inegavelmente restringem
direitos”.224
Uma última diferenciação ainda merece ser reforçada, a distinção que deve
ser feita entre colaboração ativa e colaboração passiva. Conforme já assinalado,
várias legislações distinguem as hipóteses em que o indivíduo é compelido a
suportar determinadas perícias e exames – colaboração passiva – daquelas em que,
para a produção, é indispensável a sua participação efetiva – colaboração ativa –,
como por exemplo, realizar o teste do etilômetro.
Vistas essas definições, podemos sustentar, com fundamento na teoria do
suporte fático restrito, que as intervenções corporais stricto sensu – medidas que
causam ou tenham potencial de causar lesão ao corpo e realizadas sem o
consentimento do indivíduo − estão fora do âmbito de proteção do direito à não
autoincriminação, pois não obrigam o indivíduo a realizar qualquer tipo de
declaração ou a participar de maneira ativa na produção da prova. As referidas
medidas apenas obrigam o indivíduo a tolerar que algum tipo de exame pericial seja
realizado em seu corpo. Essa foi a conclusão a que chegou a jurisprudência norte-
americana, que assentou que o direito é uma barreira contra a obrigação relativa às
comunicações e testemunhos, não impedindo, todavia, a utilização do corpo do
indivíduo como fonte real ou física da evidência.
Também é o entendimento do direito alemão, que embora não admita que o
indivíduo seja obrigado a colaborar ativamente com a investigação e produção de
provas – não permite, por exemplo, que o teste do etilômetro seja realizado
coercitivamente –, o obriga a tolerar (conduta passiva) medidas realizadas em seu
próprio corpo. De fato, dispõe o Código Processual alemão (Seção 136)225 que o
224
SILVA, Virgilio Afonso da, Direitos fundamentais, cit., p. 125. 225
“A liberdade do acusado para decidir e manifestar sua vontade não deve ser influenciada por maus-tratos, fadiga induzida, interferência física, administração de medicamentos, tortura, engano ou hipnose. A coerção só pode ser utilizada na forma permitida pela lei processual penal. Ameaçar o acusado com medidas não autorizadas ou prometer vantagem não prevista são condutas
127
direito do acusado para formar a sua convicção e manifestar a sua vontade não
pode ser prejudicado por maus-tratos, indução à fadiga, interferência física,
administração de drogas, tortura, engano ou hipnose. Ressalta, todavia, que a
coerção será admitida, quando prevista em lei processual, autorização prevista na
Seção 81, já reproduzida.
A doutrina do Tribunal Constitucional espanhol é pacífica ao admitir que a
obrigação de submeter-se a determinadas diligências de intervenção corporal não
pressupõe uma verdadeira autoincriminação, uma vez que não se obriga o indivíduo
a emitir uma declaração de culpa, mas apenas que ele tolere que se pratique uma
determinada perícia.226
No mesmo sentido o entendimento do Tribunal Constitucional português:227
Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em sentença proferida em 17 de Dezembro de 1996 (caso Sauders versus Reino Unido), concluiu que o citado direito à não auto-incriminação se refere, em primeira linha, ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, ao direito ao silêncio, acrescentando que esse direito se não estende ao uso, em processo penal, de elementos obtidos do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, por exemplo as colheitas, por expiração, de sangue, de urina, assim como de tecidos corporais com finalidade de análises de ADN. E o Tribunal Constitucional espanhol, nomeadamente a propósito da obrigatoriedade de submissão a testes de alcoolemia, afirmou que a realização dos mesmos não constitui, em si mesmo, uma declaração ou incriminação, para efeitos deste privilégio, uma vez que não se obriga o detectado a emitir uma declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa, mas apenas a tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia (STC 103/1985). E, reiterando tal doutrina, analisou em 1997 (STC 191/1997) depois de citar jurisprudência do TEDH onde se reconhece que o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação, embora não expressamente mencionados pelo artigo 6º da CEDH, se situam no coração do direito a um processo equitativo e se relacionam estreitamente com o direito à defesa e à presunção da inocência − a questão na perspectiva, que é também a do agora recorrente, da violação do princípio da presunção de inocência. Neste contexto, considerou, então, que as garantias face à auto-incriminação só se referem às contribuições do arguido de conteúdo directamente incriminatório, não tendo o alcance de
pr b ”. N g “The accused’s freedom to make up his mind and to manifest his will shall not be impaired by ill-treatment, induced fatigue, physical interference, administration of drugs, torment, deception or hypnosis. Coercion may be used only as far as this is permitted by criminal procedure law. Threatening the accused with measures not permitted under its provisions or holding out the prospect of an advantage not envisaged by statute shall be prohibited.” (N uçã ).
226 Nesse sentido: STC 102/1995 e STC 252/1994 (Disponível em <http://hj.tribunalconstitucional.es>.
Acesso em: 01 mar. 2014). 227
Acórdão 155/2007 (Disponível em: <www.tribunalconstitucional.pt>. Acesso em: 01 mar. 2014).
128
integrar no direito à presunção da inocência a faculdade de se poder subtrair a diligências de prevenção, indagação ou de prova. A configuração genérica de um tal direito a não suportar nenhuma diligência deste tipo deixaria desarmados os poderes públicos no desempenho das suas legítimas funções de protecção da liberdade e convivência, lesaria o valor da justiça e as garantias de uma tutela judicial efectiva [...]. No mesmo sentido se pronunciou Gomes Canotilho no parecer que o ora recorrente juntou aos autos, onde, depois de dar conta que “a doutrina dominante e uma boa parte da jurisprudência nacional e internacional de direitos humanos têm entendido que a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de análise de DNA” (p. 8), conclui precisamente que “a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de recolha de DNA” (cf. conclusão 10). Ora, entende o Tribunal, no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supracitada, o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de ADN. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação.
Os defensores do modelo do suporte fático amplo dizem que, conquanto as
medidas de intervenção não impliquem em qualquer tipo de declaração ou
colaboração ativa do indivíduo, não deixa de ser evidente que, mediante algumas
delas, podem as autoridades descobrir, com alto grau de precisão e confiabilidade,
dados e informações que o indivíduo poderia não querer revelar. Dessa forma, ainda
que não se esteja realizando qualquer espécie de declaração, estão sendo
realizadas provas no corpo do indivíduo cujo resultado será idêntico ao que seria
obtido caso a declaração fosse realizada. Em uma e outra hipótese – declaração
verbal e intervenção corporal – são revelados determinados fatos e circunstâncias
que podem ser incriminadores, não obstante na declaração seja necessária uma
conduta ativa e na intervenção uma postura meramente passiva. Em alguns casos, a
prova pericial é tão contundente que pode até possuir mais força do que a própria
declaração verbal. Dessa forma, a decisão judicial que fundamentasse a
condenação do indivíduo unicamente no laudo pericial estaria, em última análise,
agredindo o núcleo essencial do direito à não autoincriminação.
129
Assim, a afirmação de que as intervenções corporais não afetam o direito à
não autoincriminação deve ser tomada com cautela, não sendo recomendável
excluí-las de antemão do juízo de proporcionalidade. Assevera Wagner Marteleto
Filho228, com esse entendimento, que tendo em vista o amplo suporte fático do
direito à não autoincriminação, que confere um direito genérico à não cooperação, é
forçoso reconhecer que as medidas de intervenção corporal restringem o direito
fundamental, porquanto reduzem a margem de liberdade e autonomia do indivíduo,
que acaba se vendo coagido a colaborar passivamente para a produção de uma
prova que tem potencial para incriminá-lo.
No que concerne à distinção entre suporte fático restrito e amplo, entendemos
esclarecedor o julgamento do Habeas Corpus n. 103.236/ES realizado Supremo
Tribunal Federal 229 . Nesse processo, os autores defendiam a tese de que as
interceptações telefônicas, mesmo que autorizadas judicialmente, ofendiam o direito
ao silêncio.
O ministro Gilmar Mendes, relator do acórdão, citando as lições de Alexy,
anotou que “os direitos fundamentais atribuídos por normas constitucionais aos
legitimados, e expressos por enunciados normativos constitucionais, ligam-se aos
fatos que regulam por uma relação de precisão ou de referência”. Prossegue
afirmando que o direito de não produzir provas contra si mesmo e o direito ao
silêncio em face de perguntas realizadas pelos agentes públicos não se relacionam
com pressupostos fáticos trazidos pelos impetrantes do habeas corpus, quer seja de
forma imediata (relação de precisão), quer seja de forma mediata (relação de
referência).
É o caso de se dizer que a possibilidade de não ver utilizada contra si prova produzida por escuta telefônica legalmente autorizada não decorre da norma de direito fundamental que atribui a todo cidadão o direito ao silêncio e o direito de não produzir prova contra si mesmo. É o caso manifesto de não incidência, de carência total da pretensão pretendida.
228
MARTELETO FILHO, Wagner, O direito à não autoincriminação no processo penal contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados e outros problemas, cit., p.103.
229 ST − HC . 103.236/ S . Min. Gilmar Mendes.
130
Mesmo que se entendesse pela incidência da norma atributiva de direito
fundamental à hipótese, ainda assim o pedido seria indeferido. Ocorre que, arremata
o relator:
Os direitos e garantias fundamentais não possuem caráter absoluto na medida em que encontram limites nos demais direitos e garantias igualmente previstos no texto constitucional. Na espécie, ainda que fosse o caso de se entender pela incidência da norma atributiva de direito fundamental na extensão solicitada, seria também o caso de se observar a clara restrição a este direito fundamental decorrente do dever fundamental do Estado de investigar e de garantir a segurança pública.
Colaciono, por fim, um exemplo de decisão em que o juízo de
proporcionalidade foi realizado e que culminou com a ratificação de uma medida de
intervenção corporal. Tratava-se de uma hipótese analisada pela Comissão
Europeia de Direitos Humanos acerca do exame compulsório de sangue.230
A Comissão considerou razoável que as autoridades, em razão de suas
funções, pudessem ser capazes de tomar certas medidas, mesmo que fossem
capazes de afetar os suspeitos de uma ofensa. A Comissão observa que o artigo 5º,
1, “c”, da Convenção permite a prisão preventiva em tais casos. Portanto, a fortiori,
não há motivos para que não sejam toleradas interferências menores, como um
exame de sangue. A Comissão ponderou que várias garantias são fornecidas contra
o uso arbitrário ou inadequado do exame de sangue − o exame só pode ser
ordenado pelo Ministério Público, seu adjunto ou outra autoridade policial autorizada
a fazê-lo. O decreto autorizador também determina que o exame de sangue só pode
ser realizado por um médico, que, todavia, pode se recusar a realizar o teste por
razões excepcionais de caráter médico.
A Comissão considerou, portanto, que a legislação holandesa sobre o tema
foi inspirada no desejo e na necessidade de proteger a sociedade e, mais
particularmente, a segurança rodoviária e a saúde de outras pessoas. Assim,
embora os exames de sangue obrigatórios possam ser vistos como uma violação da
vida privada, nos termos do artigo 8º, 1, também podem ser vistos como necessários
230
X v. the Netherlands, 8239/78, 4 December 1978, DR16, 184 (MCBRIDE, Jeremy, Human rights and criminal procedure, cit., p. 121).
131
para a proteção dos direitos de terceiros, nos termos do parágrafo 2 do mesmo
artigo.
A decisão resume o que até aqui foi dito. Embora o exame de sangue – uma
das modalidades de intervenção corporal − afete vários direitos consagrados pela
Convenção, ainda assim a sua realização é permitida, após a ponderação realizada
em face dos outros direitos envolvidos.
Até aqui foi analisada a viabilidade das intervenções corporais, após a
ponderação dos valores contrapostos. Não há, consoante já afirmado, como se
realizar um juízo de proporcionalidade em relação a algumas das manifestações do
direito à não autoincriminação, como, por exemplo, os direitos ao silêncio e de não
fornecer padrões gráficos ou de voz, uma vez que tais direitos são absolutos. A
questão que se coloca a seguir é: além das intervenções corporais, há alguma outra
manifestação do direito à não autoincriminação suscetível de ponderação ou todos
os demais são absolutos?
Vimos que o Supremo Tribunal Federal entendeu as interceptações
telefônicas estavam fora do âmbito de proteção da norma. Há um outro julgamento
em que a Corte Constitucional231 analisou a possível colisão entre o direito à não
autoincriminação e os demais direitos garantidos constitucionalmente.
Tratava-se de um caso em que o prefeito de uma cidade da Bahia fora
condenado em uma ação de exibição de documentos proposta pelo Ministério
Público. O Parquet havia requisitado que o dirigente apresentasse determinados
documentos e ele se recusou. Em virtude da negativa, houve o ajuizamento de uma
231
“Processual Penal. Ação cautelar de admissão de documentos. Legitimidade para o seu ajuizamento pelo Ministério Público. Múnus constitucional cometido ao Parquet. Prefeito. Alegação de que não é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Inadmissibilidade. Documentos públicos que se encontram sob a guarda do chefe da administração municipal. I - O Ministério Público, a quem incumbe instaurar inquérito civil e promover ação civil pública, além de ajuizar a ação penal (art. 129, inc. I e III da CF), tem legitimidade para ajuizar ação de exibição de documentos. II - Tal legitimidade nada tem a ver com o poder investigatório do Parquet, dizendo respeito, apenas, ao seu direito de acionar o Poder Judiciário, no exercício de suas funções institucionais. III - Prefeito que não se pode negar à exibição de documentos públicos, sob a alegação de ser-lhe facultado omitir-se na produção de provas contra si mesmo, visto que é, em última análise, o chefe máximo da administração pública local. IV - Writ conhecido, a que se nega provimento.” (STF − HC n. 93.829/BA, rel. Min. Ricardo Lewandowski).
132
cautelar de exibição de documentos, julgada parcialmente procedente pelo Superior
Tribunal de Justiça. Veja-se que a questão restringiu-se apenas a aspectos relativos
à obrigatoriedade da apresentação ou não dos documentos, matéria eminentemente
cível, embora pudesse ter repercussões penais, dependendo do teor deles.
Argumentou a sua defesa que tal condenação – obrigação de apresentar os
documentos solicitados – feria o princípio da não produção de provas contra si
mesmo. Argumentou ainda que por se tratar de documentos públicos, poderiam ser
requisitados diretamente à Administração.
Decidiu unanimemente o Supremo Tribunal Federal que o prefeito não pode
se negar à exibição de documentos públicos, sob a alegação de ser-lhe facultado
omitir-se na produção de provas contra si mesmo, visto que é, em última análise, o
chefe máximo da Administração pública local.
Embora pareça ter a referida decisão ponderado os direitos em jogo e
priorizado o dever de exibição dos documentos necessários à investigação
promovida pelo Ministério Público, deve ser respondida a seguinte questão: e se
persistir a recusa na apresentação dos documentos?
A ação de exibição de documentos tem previsão nos artigos 355 e seguintes
do Código Processo Civil. É, portanto, uma ação cível. Ora, nas ações cíveis há uma
cominação para a não apresentação dos documentos: o juiz admitirá como
verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia
provar 232 . Se o documento estiver em poder de terceiro e este se recusar a
apresentá-lo, o juiz expedirá mandado de apreensão. Não há, assim, que se falar
em ofensa ao direito à não autoincriminação em processos cíveis, dada a sua
própria natureza. Observe-se que o terceiro que detém o documento e não o entrega
pode ser responsabilizado pelo crime de desobediência. Tal cominação não é feita
quando à própria parte é atribuída a entrega, mesmo porque para essas hipóteses já
se sofrerá a pior consequência possível, a procedência do pedido.
232
“Artigo 359 - Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar: I - se o requerido não efetuar a exibição, nem fizer qualquer declaração no prazo do art. 357;”
133
Ocorre que os documentos que porventura devam ser entregues podem
também ensejar a instauração de ação penal. Nessa hipótese, entendemos ser
legítima a recusa, uma vez que ninguém é obrigado a colaborar ativamente com a
acusação na produção de provas. No processo penal, a recusa à apresentação dos
documentos não enseja a presunção de veracidade dos fatos, ao contrário do que
ocorre na esfera cível, e, dessa forma, os fatos devem ser provados e não
presumidos. Segue que se o indivíduo não apresentar os documentos solicitados,
não haverá meios legais para obrigá-lo, hipótese em tudo semelhante à recusa no
fornecimento de padrões de voz e escrita, razão pela qual a conduta, a nosso ver,
está amparada pelo direito à não autoincriminação.
Há ainda, entretanto, um aspecto a se considerar. O artigo 10 da Lei n.
7.347/85 dispõe que constitui crime, punido com pena de reclusão de um a três
anos, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à
propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público. Essa é,
entendemos, a questão fundamental para se poder afirmar que a recusa do prefeito
à apresentação do documento não está amparada pelo direito à não
autoincriminação: eventual condenação pelo crime afasta, de fato, o direito.
Não basta que certa conduta seja inexequível legalmente para se configurar a
proteção do direito. Vale dizer, o direito à não autoincriminação não protege
determinada conduta do indivíduo pelo mero fato de que sem a sua colaboração
ativa não existiria outro modo de se realizar a prova. Não há como obrigar o
indivíduo a falar nem há como obrigá-lo a participar da reconstituição do crime,
todavia isso não é suficiente para a proteção do direito. É necessário que o
ordenamento não comine nenhuma penalidade para tais condutas.
Com esse entendimento, assevera Carlos Henrique Borlido Haddad233 que:
A impossibilidade material de substituir-se o acusado e desempenhar o ato que somente ele poderia realizar não se identifica completamente com o princípio contra a autoincriminação. Apesar de não ser possível deslocar o acusado de sua inércia através de força exógena, é perfeitamente viável punir, ameaçar com sanções ou impor ônus em virtude da omissão. Quando
233
HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 61.
134
o direito renuncia a prever consequências pelo comportamento omissivo, independentemente se materialmente possível ou não compelir à prática do ato, alberga o princípio contra a autoincriminação.
De fato, de nada adiantaria garantir-se o direito ao silêncio se houvesse
previsão de que tal silêncio implicasse na veracidade dos fatos objeto da prova. Pela
leitura do voto do relator, não há como se ter certeza de que a sanção penal seria
aplicável, pois o que se discutiu nos autos foi tão somente a obrigatoriedade de
apresentação dos documentos. Sem dúvida, se fosse determinada a aplicação da
pena cominada no artigo, poder-se-ia dizer que nessa hipótese – agente público
obrigado a apresentar documentos relativos à Administração − houve a ponderação
dos direitos envolvidos, com a prevalência do direito da sociedade na apuração dos
fatos.
Aury Lopes Junior234 afirma, acerca da proporcionalidade, que a questão não
está limitada pela relação entre a prova obtida e o sofrimento ou constrangimento
afligido ao sujeito passivo, mas sim na impossibilidade de restringir-se a garantia de
não fazer prova contra si mesmo, em nenhum caso. Os julgados mostram, todavia,
que o interesse do indivíduo suspeito ou acusado da prática de algum delito, embora
deva ser levado em consideração, não é único, devendo ser restringido quando a
aplicação de um juízo de proporcionalidade assim o determinar.
Por essa razão, também não se pode concordar com o entendimento de
Maria Elizabeth Queijo sobre o tema. A autora, mesmo admitindo a aplicação da
proporcionalidade, adverte que em nenhuma hipótese a medida deverá ser realizada
sem o consentimento do indivíduo, ao menos no que se refere às provas produzidas
mediante intervenção corporal invasiva. Ressalta a autora que a autorização judicial
não supre o consentimento do indivíduo.235
Ocorre que admitir o juízo de proporcionalidade apenas nessas hipóteses
equivale a não admiti-lo, mesmo porque, salvo melhor juízo, se houver o
consentimento do indivíduo, não se precisará realizar a ponderação. O indivíduo não
234
LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 496.
235 QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 411.
135
é obrigado a soprar o bafômetro ou a entregar amostras de sangue, mas se quiser
fazê-lo, a pedido da autoridade, nenhuma irregularidade haverá.
A autora assevera que a realização da intervenção corporal invasiva sem o
consentimento do indivíduo implicaria na violação de diversos direitos fundamentais,
entre os quais o direito à inviolabilidade corporal, intimidade e dignidade da pessoa
humana. Ocorre que entre tais provas invasivas, insuscetíveis de realização sem o
consentimento, a autora inclui, por exemplo, o exame de DNA de saliva colhida no
interior da cavidade bucal236. Não se imagina, todavia, como a coleta de saliva possa
atingir a dignidade da pessoa humana, a sua inviolabilidade corporal ou a sua
intimidade. Há medidas, como a revista íntima, por exemplo, que afetam de maneira
muito mais marcante a intimidade, e nem por isso são consideradas ilegais.
6.8 Testes de alcoolemia
As divergências havidas em torno dos testes de alcoolemia bem resumem o
até aqui exposto e demonstram a diferença de entendimento entre a jurisprudência
estrangeira e a nossa, no que concerne ao direito à não autoincriminação. Embora a
solução da controvérsia já tenha sido estabelecida por nossos tribunais, ela não é, a
meu sentir, capaz de realizar a devida justiça, haja vista dificultar – quando não
impedir de maneira absoluta − a produção das provas necessárias para a
responsabilização dos infratores.
A antiga redação do artigo 306237 do Código de Trânsito Brasileiro, ao definir
os crimes de trânsito, exigia para a tipificação do delito que o motorista estivesse
sob a influência do álcool, sem indicar a concentração específica de substância no
corpo do indivíduo. Por conseguinte, o exame clínico e a prova testemunhal
atendiam à exigência legal.
236
QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 411-412. 237
Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
136
Com o advento da Lei n. 11.705/2008, a prova da embriaguez passou a exigir
a constatação de um certo percentual de álcool no sangue. Com efeito, dispunha o
artigo que constitui crime “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com
concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob
a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
O parágrafo único do artigo remeteu ao Executivo a fixação da equivalência
entre os testes de alcoolemia. Em cumprimento ao requisito legal, foi editado o
Decreto n. 6.488, de 19.06.2008, com a seguinte redação:
Art. 2º - Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei nº 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte: I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça238, em razão da nova redação
do artigo, vinha manifestando o entendimento de que seria indispensável o teste de
alcoolemia, ainda que esse estado pudesse ser aferido por outros elementos de
prova.
Já a jurisprudência da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça 239 era no
sentido de ser dispensável o teste de alcoolemia para configurar o crime de
238
“Habeas Corpus. Trancamento da Ação Penal. Embriaguez ao volante. Ausência de exame de alcoolemia. Aferição da dosagem que deve ser superior a 6 (seis) decigramas. Necessidade. Elementar do tipo. 1. çã º 11.705⁄08 b v gu çã embriaguez ao volante, que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem. 2. Entretanto, com o advento da referida Lei, inseriu-se a quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a 6 (seis) decigramas. 3. Essa comprovação, conforme o Decreto nº 6.488 de 19.6.08 pode ser feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), este último também conhecido como bafômetro. 4. Cometeu-se um equívoco na edição da Lei. Isso não pode, por certo, ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e tipicidade. 5. Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue. 6. Ordem concedida.” (STJ − HC n. 166.377/SP, rel. Min. Og Fernandes).
239 Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp ?tmp.area=398&tmp.texto=
102049>. Acesso em: 10 mar. 2014.
137
embriaguez ao volante. A prova da embriaguez devia ser feita, preferencialmente,
por meio de perícia, mas ela poderia ser suprida pelo exame clínico e mesmo pela
prova testemunhal, em casos excepcionais. As exceções estão caracterizadas
quando o estado etílico é evidente e a própria conduta na direção do veículo
demonstra o perigo potencial à incolumidade pública.
O entendimento que prevaleceu foi o da Sexta Turma. De fato, decidiu a
Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça240 que a comprovação do estado de
embriaguez só poderia ser realizada pelos meios técnicos previstos no decreto
regulamentador.
Processual Penal. Provas. Averiguação do índice de alcoolemia em condutores de veículos. Vedação à autoincriminação. Determinação de elemento objetivo do tipo penal. Exame pericial. Prova que só pode ser realizada por meios técnicos adequados. Decreto regulamentador que prevê expressamente a metodologia de apuração do índice de concentração de álcool no sangue. Princípio da legalidade. 1. O entendimento adotado pelo Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do “bafômetro” ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Em todas essas situações prevaleceu, para o STF, o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal. 2. Em nome de adequar-se a lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma inaceitável exigência não prevista em lei. 3. O tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é formado, entre outros, por um elemento objetivo, de natureza exata, que não permite a aplicação de critérios subjetivos de interpretação, qual seja, o índice de 6 decigramas de álcool por litro de sangue. 4. O grau de embriaguez é elementar objetiva do tipo, não configurando a conduta típica o exercício da atividade em qualquer outra concentração inferior àquela determinada pela lei, emanada do Congresso Nacional. 5. O decreto regulamentador, podendo elencar quaisquer meios de prova que considerasse hábeis à tipicidade da conduta, tratou especificamente de 2 (dois) exames por métodos técnicos e científicos que poderiam ser realizados em aparelhos homologados pelo CONTRAN, quais sejam, o exame de sangue e o etilômetro. 6. Não se pode perder de vista que numa democracia é vedado ao judiciário modificar o conteúdo e o sentido emprestados pelo legislador, ao elaborar a norma jurídica. Aliás, não é demais lembrar que não se inclui entre as tarefas do juiz, a de legislar. 7. Falece ao aplicador da norma jurídica o poder de fragilizar os alicerces jurídicos da sociedade, em absoluta desconformidade com o garantismo penal, que exerce missão essencial no estado democrático. Não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio
240
STJ − REsp n. 1.111.566/DF, 3ª Seção.
138
da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente. 8. Os tribunais devem exercer o controle da legalidade e da constitucionalidade das leis, deixando ao legislativo a tarefa de legislar e de adequar as normas jurídicas às exigências da sociedade. Interpretações elásticas do preceito legal incriminador, efetivadas pelos juízes, ampliando-lhes o alcance, induvidosamente, violam o princípio da reserva legal, inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". 9. Recurso especial a que se nega provimento.
Ressalte-se que o Código de Trânsito Brasileiro previa, em seu artigo 277241,
que o condutor suspeito de dirigir sob influência de álcool seria submetido a testes
de alcoolemia para certificar o seu estado.
O Superior Tribunal de Justiça, todavia, entendeu que, não obstante a lei, o
indivíduo não poderia ser obrigado a se submeter aos testes de alcoolemia. Alguns
autores242 entendiam que o artigo 277, por estar inserido dentro do Capítulo XVII do
Código de Trânsito Brasileiro, que trata das medidas administrativas, somente
poderia ser aplicado para as infrações administrativas, mas não para os crimes de
trânsito.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça proporcionou uma inusitada
situação: o condutor não pode ser submetido, contra a sua vontade, à realização do
exame de sangue ou ao teste do bafômetro; por outro lado, tal exame, indicando
com precisão a concentração sanguínea de álcool, é indispensável para a
configuração do delito.
Em virtude da decisão do Superior Tribunal de Justiça, foi dada nova redação
ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, dada pela Lei n. 12.760/2012:
conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da
influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. O
parágrafo 2º dispõe que a embriaguez poderá ser verificada mediante teste de
241
“Artigo 277 - Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado (redação dada pela Lei 11.275/2006).”
242 ZAGANELLI, Margareth Vetis; ALMEIDA, Robledo Moraes Peres de. Meios de prova de
embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 14, n. 104, p. 798, out. 2012/jan. 2013.
139
alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de
prova em direito admitidos.
A solução adotada, a meu ver, foi a pior possível e está na contramão do
direito adotado nos demais países do mundo. Quatro modelos estão disponíveis
para resolver o problema da submissão aos testes de alcoolemia.
O primeiro é adotado em países como Estados Unidos e Alemanha e obriga o
condutor a realizar o exame. Na Alemanha, o condutor não é obrigado a realizar o
exame do bafômetro, pois nessa hipótese colaboraria ativamente com a acusação
para a realização da prova, o que é vedado pelo direito à não autoincriminação, mas
é obrigado a suportar de modo passivo que lhe seja retirada uma amostra de
sangue. Nos Estados Unidos, o direito à não autoincriminação restringe-se às
declarações verbais, o que não desonera o individuo de se submeter a quaisquer
testes que não envolvam essa modalidade de prova.
Há outros países, como a Espanha, que embora admitam em certas
hipóteses as intervenções corporais para a realização da prova, as subordinam ao
consentimento do indivíduo. Ocorre que, ao contrário do que ocorre no Brasil, há
previsão de sanção penal para o descumprimento da obrigação legal imposta.
O Código Penal espanhol impõe, em seu artigo 379.2243, a pena de prisão de
três a seis meses para o condutor que dirigir sob a influência de álcool acima de
determinados limites. A jurisprudência espanhola não admite, todavia, que o
condutor seja obrigado a realizar os testes de alcoolemia contra a sua vontade, uma
vez que não consta tal obrigatoriedade em lei. De fato, como leciona María Ángeles
243
“Artículo 379. 1. El que condujere un vehículo de motor o un ciclomotor a velocidad superior en sesenta kilómetros por hora en vía urbana o en ochenta kilómetros por hora en vía interurbana a la permitida reglamentariamente, será castigado con la pena de prisión de tres a seis meses o con la de multa de seis a doce meses o con la de trabajos en beneficio de la comunidad de treinta y uno a noventa días, y, en cualquier caso, con la de privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores por tiempo superior a uno y hasta cuatro años. 2. Con las mismas penas será castigado el que condujere un vehículo de motor o ciclomotor bajo la influencia de drogas tóxicas, estupefacientes, sustancias psicotrópicas o de bebidas alcohólicas. En todo caso será condenado con dichas penas el que condujere con una tasa de alcohol en aire espirado superior a 0,60 miligramos por litro o con una tasa de alcohol en sangre superior a 1,2 gramos por litro.”
140
Pérez Marín 244 , está totalmente proibida qualquer forma de força física ou
compulsória pessoal direta para obrigar o afetado a submeter-se, contra a sua
vontade, à prática de uma diligência de intervenção corporal, toda vez que no
ordenamento não haja previsão expressa nesse sentido.
Para não deixar impune o condutor, o artigo 383245 do Código Penal tipifica a
conduta do indivíduo que se recusa a se submeter aos testes de alcoolemia com
uma penalidade superior àquela prevista no artigo 379 – seis meses a um ano.
Temos então a seguinte situação: se alguém for flagrado dirigindo sob a influência
de determinada quantidade de álcool, será condenado a uma pena de prisão que
poderá variar de três a seis meses; caso o indivíduo se recuse a realizar o teste,
será condenado a uma penalidade que variará de seis meses a um ano246. Não
alberga assim o direito espanhol, nessa hipótese, o direito à não autoincriminação,
pois, como já esclarecido, não basta que certa conduta seja inexequível legalmente
para se configurar a proteção do direito, mas é necessário que o ordenamento não
comine nenhuma penalidade para tais condutas, o que não se observa no referido
ordenamento.
Semelhante procedimento foi sugerido, de lege ferenda, por Margareth Vetis
Zaganelli247. A autora aponta os problemas para a segurança do trânsito no Brasil
com a recusa dos condutores embriagados em realizar os testes de alcoolemia, sob
a alegação do seu direito individual de não produzir prova contra si.
Tal comportamento, entende, viola o Código de Trânsito Brasileiro de forma
expressa, pois o seu artigo 1º, parágrafo 2º, estabeleceu a segurança no trânsito
como um princípio e como um direito de toda a sociedade. Também haveria violação
244
PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 43.
245 “Artículo 383 - El conductor que, requerido por un agente de la autoridad, se negare a someterse a
las pruebas legalmente establecidas para la comprobación de las tasas de alcoholemia y la presencia de las drogas tóxicas, estupefacientes y sustancias psicotrópicas a que se refieren los artículos anteriores, será castigado con la pena de prisión de seis meses a un año y privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores por tiempo superior a uno y hasta cuatro años.”
246 Ressalte-se que a STC 161/1997 entendeu ser constitucional o artigo 383 do Código Penal e, por
conseguinte, não afronta o direito de não se autoincriminar. 247
ZAGANELLI, Margareth Vetis; ALMEIDA, Robledo Moraes Peres de, Meios de prova de embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor, cit., p. 800-803.
141
da Carta Magna, que consagrou no caput do artigo 5º a segurança como um direito
fundamental inviolável. Assim, assevera que:
O interesse público deve prevalecer sobre o direito individual. Em tese, a defesa do direito individual de não produzir prova contra si afrontaria o interesse público, quando o motorista embriagado se nega a realizar o exame do etilômetro. Isso porque essa conduta negativa irá contra o interesse público de punição e de repressão dos motoristas embriagados, os quais expõem a risco a incolumidade física e a saúde de outrem, prejudicando o direito de todos a um trânsito seguro. Dessa forma, na ponderação de qual bem jurídico deve predominar, conclui-se que o interesse público deverá prevalecer frente ao direito individual.
Em razão do exposto, sugere a inclusão de um parágrafo ao artigo 306 do
Código de Trânsito Brasileiro, estabelecendo que a recusa em realizar o teste do
etilômetro configuraria o crime de desobediência previsto no artigo 330 do Código
Penal. Finaliza argumentando que, embora a mudança possa ser questionada no
Supremo Tribunal Federal, o Brasil já possui precedente afirmando que o direito de
não produzir prova contra si não foi considerado absoluto, diante da edição da
Súmula 301 pelo Superior Tribunal de Justiça, dispondo que em “ação investigatória,
a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris
tantum de paternidade”.
O terceiro modelo é o adotado pela Itália. Dirigir embriagado na Itália sujeita o
condutor a três espécies de penalidade, dependendo da quantidade de álcool
ingerida. Comumente, as espécies de embriaguez são denominadas leve (taxa
superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l); média (maior do que 0,8 g/l e menor do que 1,5
g/l); e grave (maior do que 1,5 g/l). As sanções previstas para as várias hipóteses
mencionadas são diferentes, em razão da gravidade da violação. O artigo 186 do
Codice della Strada, após o preceito geral contido no primeiro parágrafo − é ilegal
dirigir embriagado − identifica as sanções a serem aplicadas de acordo com o nível
alcoólico. A embriaguez grave, prevista na alínea “c” comina ao infrator pena de
prisão de seis meses a um ano. O parágrafo 7º248 dispõe acerca da recusa do
248
“7. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, in caso di rifiuto dell’accertamento di cui ai commi 3, 4 o 5, il conducente è punito con le pene di cui al comma 2, lettera c). La condanna per il reato di cui al periodo che precede comporta la sanzione amministrativa accessoria della sospensione della patente di guida per un periodo da sei mesi a due anni e della confisca del veicolo con le stesse modalità e procedure previste dal comma 2, lettera c), salvo che il veicolo appartenga a persona estranea alla violazione. Con l’ordinanza con la quale è disposta la sospensione della patente, il prefetto ordina che il conducente si sottoponga a visita medica secondo le disposizioni del comma 8. Se il fatto è commesso da soggetto già condannato nei due anni precedenti per il medesimo reato, è sempre disposta la sanzione.”
142
condutor em submeter-se aos testes de alcoolemia. Reza o dispositivo que caso o
condutor se recuse a fazer os exames referidos nos parágrafos 3, 4 ou 5, ser-lhe-á
aplicada a penalidade prevista na alínea “c”, ou seja, prisão de seis meses a um
ano. Dessa forma, ao condutor abrem-se duas possibilidades: ou ele realiza o teste
e o nível de álcool é obtido com exatidão, ou se recusa, sendo que nessa hipótese o
nível a ele atribuído será o máximo, sujeitando o infrator à mais grave consequência.
Dito de outro modo, a recusa em submeter-se à inspeção é punível por si só,
independentemente de o motorista apresentar, ou não, resultados positivos ao teste,
o que desestimula o descumprimento da obrigação.
O quarto modelo deixa ao arbítrio do julgador valorar a negativa de
cooperação. Ao contrário de se considerar, de maneira automática, determinado fato
como provado, deixa a cargo do juiz a sua valoração. O artigo 335 do Código de
Processo Civil dispõe que na “falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará
as regras de experiência comum subministradas pela observação do que
ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado,
quanto a esta, o exame pericial”. Ora, é difícil imaginar uma razão, além da
embriaguez, para alguém se recusar a se submeter ao teste do etilômetro. Não é
crível que alguém, podendo provar que não está sob a influência do álcool, não
realize o exame por uma questão de princípios. Evidentemente a valoração da
negativa será considerada em conjunto com outros elementos comprobatórios,
como, por exemplo, os depoimentos colhidos etc., para a motivação da sentença.
O Supremo Tribunal Federal, todavia, não aceita que qualquer inferência
possa ser realizada pela simples não participação do indivíduo em determinado
exame. Com efeito, no julgamento do Habeas Corpus n. 93.916-3, a Ministra
Carmen Lúcia asseverou que não se pode presumir que o paciente estaria
alcoolizado pela mera recusa de submissão ao exame de dosagem alcoólica.
Argumenta que a Constituição da República “impede que se extraia qualquer
conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma
infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo”.
143
Poder-se-ia argumentar que não se está meramente presumindo a
embriaguez, uma vez que foi colocado à disposição do paciente um meio para
comprovar o nível alcoólico. Imagine-se a hipótese, muito frequente vale frisar, do
condutor que é parado pela autoridade em aparente estado de embriaguez. A
autoridade conclui, pelas circunstâncias fáticas – modo de dirigir, falar, andar, etc. −,
que o condutor está embriagado e solicita que ele realize o teste do etilômetro. Não
se está invertendo o ônus da prova para exigir que o indivíduo prove a sua
inocência, mas apenas permitindo que ele afaste a conclusão da autoridade nesse
sentido.
O Tribunal Constitucional da Espanha e a Corte Constitucional italiana, ao
analisarem hipóteses de intervenção corporal, indicaram em seus acórdãos a
necessidade de previsão legal para legitimá-las. Assim, não obstante em seus
julgados tenham afastado a legalidade, no caso concreto, da prova obtida mediante
procedimento de intervenção corporal, sinalizaram a sua constitucionalidade, desde
que a medida seja prevista em lei. De fato, a Corte italiana 249 decidiu que as
medidas de intervenção corporal realizadas coativamente devem ser previstas pelo
legislador, que deverá estabelecer os pressupostos e limites para a sua adoção, não
sendo possível deixá-las a cargo da discricionariedade do juiz. A decisão, contudo,
deixou claro que o procedimento de intervenção corporal – a hipótese referia-se à
coleta de sangue – não comprometia a integridade física ou a dignidade do
indivíduo.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao contrário, considerou
inconstitucional o teste do bafômetro ou exame de sangue, uma vez que nessas
situações deveria prevalecer o direito fundamental sobre a necessidade de
persecução estatal, não abrindo espaço para qualquer regulamentação legal sobre a
matéria, vale dizer, as medidas são inconstitucionais de maneira absoluta,
independentemente de serem ou não previstas em lei.
249
Sentenza 238/96 (Disponível em: <http://cortecostituzionale.it>. Acesso em: 16 fev. 2014).
144
Destarte, de todas as soluções possíveis, a nossa jurisprudência,
infelizmente, ao contrário do observado na legislação dos demais países, vários
deles de muito maior tradição democrática e respeito aos direitos fundamentais do
que a nossa, adotou aquela que, além de ser incapaz de prevenir os delitos, é a
tecnicamente mais deficiente.
Com a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, a
constatação da embriaguez poderá ser realizada mediante sinais que indiquem, na
forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. Entre os
meios para a aferição constam o teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo,
prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o
direito à contraprova.
Ocorre que em face da jurisprudência são proibidos o exame de sangue, o
bafômetro e quaisquer outros testes que dependam da colaboração ativa do
indivíduo. Assim, sequer o exame clínico poderá ser realizado em sua integralidade,
uma vez que dependerá da colaboração do paciente, de forma que o estado de
embriaguez será comprovado basicamente por provas testemunhais que, como é
cediço, são extremamente subjetivas e imprecisas, além de serem imprestáveis para
aferir estados alcoólicos leves e moderados.
Um outro aspecto que merece ser ressaltado é o risco de serem tratadas de
maneira idêntica situações que deveriam ter tratamento distinto. Ao vedar o teste do
bafômetro e o exame de sangue, torna-se impossível graduar a maior ou menor
severidade da conduta, uma vez que evidentemente estados leves de embriaguez
não podem ser penalizados como os mais graves. Melhor solução, de lege ferenda,
seria a adotada pela legislação italiana, que além de estabelecer três níveis de
alcoolismo, oferece meios para a sua aferição, ou seja, para conferir efetividade à
lei.
Não entendemos, pelo exposto, ter havido falha legislativa na antiga redação
do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. A inovação foi muito bem-vinda e,
145
reforce-se, teve o intuito de tentar eliminar o exame clínico, procedimento precário e
impreciso para a aferição do estado de embriaguez. A revogada legislação não mais
fazia depender a comprovação do delito do relato de testemunhas, cujas opiniões
não passam de um mero achar – o motorista parecia alcoolizado −, mas ter-se-ia a
certeza do nível de embriaguez e, por conseguinte, do grau de culpabilidade do
indivíduo.
146
7 DESEQUILÍBRIO NA BALANÇA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
7.1 Autoridade e autoritarismo
Hanna Arendt250 afirma haver uma crise de autoridade no mundo moderno.
Embora a crise seja política em sua origem e natureza, ela se espalhou em outras
áreas, como a criação dos filhos e a educação, na qual a autoridade sempre foi
aceita como uma necessidade natural. Esclarece a autora que a autoridade
comumente é confundida com alguma forma de poder ou violência, uma vez que
sempre exige obediência, contudo, quando a força necessita ser usada, a autoridade
já teria fracassado. Também a autoridade não se confunde com a persuasão, que
pressupõe igualdade e utiliza um processo de argumentação. A autoridade, ao
contrário, é sempre hierárquica:
A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado.
A autora critica o pensamento liberal, por menosprezar a diferença de
princípio entre a restrição da liberdade em regimes autoritários e a abolição da
liberdade política em tiranias e ditaduras251. Observa que o pensamento liberal dá
pouca importância a essa distinção devido à sua convicção de que todo poder
corrompe e de que a constância do progresso requer permanente perda de poder,
não importa qual possa ser sua origem. Arremata com a constatação de que tal
pensamento liberal tende a igualar o totalitarismo com o autoritarismo e a identificar
tendências totalitárias em toda e qualquer limitação autoritária.
250
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 129.
251 Aqui uma explicação se faz necessária. Hanna Arendt estabelece, a princípio, a diferença entre
totalitarismo, tirania e autoritarismo. Essa diferenciação é importante, pois os termos não são unívocos e hoje em dia normalmente costumamos associar o governo autoritário àquele que é mantido pela força e no qual as liberdades são suprimidas ou severamente diminuídas. Para a autora, o que diferencia a tirania do governo autoritário é o fato de que “o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que mesmo o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis”. Em contraposição, tanto aos regimes tirânicos como aos autoritários, os governos totalitários possuem um líder e o que quer que ele faça − integre ele o organismo político como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos como um tirano −, ele o faz de dentro do sistema, e não de fora ou de cima (ARENDT, Hannah, op. cit., p. 134).
147
Essa é a meu ver uma das razões para a exacerbação de alguns direitos
fundamentais no processo penal. Qualquer limitação é vista como uma volta ao
passado e ninguém quer estar associado ao regime ditatorial que vigorou por um
longo período.
Em 1983, o país mobilizou-se exigindo eleições diretas – diretas já – sem
contudo alcançar o objetivo almejado, tendo em visa a rejeição da denominada
emenda Dante de Oliveira. Embora o objetivo não tenha sido atingido, tal movimento
teve grande importância na redemocratização nacional.
O esforço de reconstrução da democracia no Brasil ganhou impulso após o
fim da ditadura militar em 1985. A sociedade, desarticulada pelo regime militar,
começou lentamente a reorganizar-se após um período de 21 anos que foi
caracterizado pela ausência quase que total de direitos.
O processo culminou com a aprovação de uma nova Constituição, a
Constituição cidadã, e com a realização de eleições diretas para presidente da
República em 1989. O Brasil atravessava um período de estagnação econômica,
com altos índices de inflação e desemprego. Também caracterizava o período uma
grande influência dos movimentos sociais, que reivindicavam uma maior
participação na vida politica.
Nesse cenário, foi promulgada a Constituição de 1988 que, evidentemente,
tentou romper com as práticas de violência que caracterizaram o regime antecessor.
Ulysses Guimarães fez questão de assinalar que a Constituição era um marco de
repúdio e ruptura à ditadura que então se encerrava. Entre as suas prioridades, além
do fortalecimento da democracia e redução das desigualdades sociais, estava, sem
sombra de dúvida, a criação de mecanismos para garantir-se a liberdade dos
indivíduos que fora tão menosprezada no regime ditatorial.
A localização dos direitos fundamentais, logo após os princípios fundamentais
e antes das normas que dispõem sobre a organização do Estado, já denota a
extrema importância que lhes foi conferida pelo constituinte.
148
Destarte, é inegável a importância dos direitos e garantias previstos na Carta
Magna, pois constituem limites jurídicos ao poder do Estado. Assim, se em um
primeiro momento era necessário a sua afirmação, para consolidar os avanços que
foram objeto de tão árdua luta, forçoso reconhecer que a situação atual do país é
outra, com a consolidação das instituições e da democracia.
Marcelo Schirmer Albuquerque252 anota que parecem incorrer em equívoco os
que partem da premissa metodológica de que o moderno processo penal é ainda
essencialmente idealizado como meio de proteção do cidadão frente a um Estado
opressor. Evidentemente, em algum momento da história, havia o arbítrio punitivo de
um direito penal, entretanto, ao menos da perspectiva do direito penal, isso é
passado. O direito penal, na ordem vigente, prossegue, “não deve ser visto como o
grande inimigo da liberdade, mas como responsável pela missão ímpar de proteger
bens jurídicos mais importantes contra as agressões mais intensas, em que pesem
as desvirtuações práticas”.
Por isso, a afirmação253 de que “as garantias constitucionais, a blindar o
indivíduo diante do Estado, asseguram ao Brasil uma condição mínima de
respeitabilidade nos sistemas regional e global de proteção dos direitos humanos”
deve ser entendida em seus devidos termos.
Alexandre de Moraes254 destaca que os direitos e garantias fundamentais não
podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades
ilícitas, nem tampouco como argumento para o afastamento ou diminuição da
responsabilidade civil ou penal por atos criminosos.
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal asseverou que um direito individual
não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas.255
252
ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 7.
253 MAHMOUD, Mohamad Ale Hasan; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A Lei 12.654/2012 e
os direitos humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, n. 98, p. 339, set./out. 2012. 254
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. atual. até a EC n. 48/2005. São Paulo: Atlas, 2006. p. 27.
255 ST − HC n. 82.424/RS, rel. para o acórdão Min. Maurício Corrêa.
149
7.2 Absolutização de direitos fundamentais
Segue que, embora as garantias constitucionais destinem-se a proteger o
indivíduo contra as arbitrariedades cometidas pelo Estado, não chegam ao extremo
de blindá-lo, mesmo porque tais liberdades foram idealizadas para proporcionar-lhe
dignidade em sua vida, dignidade que não será atingida sem justiça, dignidade que
não será alcançada se aqueles que porventura cometerem atos criminosos
permanecerem impunes, ou seja, a proteção do Estado deve ser efetiva.
De fato, conforme preleciona Ingo Sarlet: 256
O Estado − também na esfera penal − poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot).
O Estado de Direito não protege apenas
[...] o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo. Estes são os dois componentes do direito penal: a) o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual; b) e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social mesmo à custa da liberdade do indivíduo.
257
As liberdades públicas não podem, dessa forma, ser entendidas em sentido
absoluto, em face da natural restrição resultante do princípio de convivência das
liberdades, pelo qual nenhuma delas pode ser exercida de modo danoso à ordem
pública e às liberdades alheias.258
256
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), v. 12, n. 47, p. 103-104, mar./abr. 2004.
257 STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht). Jus Navigandi, Teresina, ano
13, n. 1.840, 15 jul. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11493/o-dever-de-protecao-do-estado-schutzpflicht>. Acesso em: 12 jul. 2014.
258 GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas.
2. ed. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 251.
150
O processo deve sempre cumprir as finalidades institucionais para as quais foi
instituído e que encontram a sua maior expressão na exigência de fazer justiça. “E
fazer justiça por meio do processo não significa apenas absolver quem deve ser
absolvido, mas também condenar quem deve ser condenado” 259 , o que não
ocorrerá, ou ao menos não na proporção desejada, se o indivíduo estiver blindado
pelo sistema.
As garantias processuais não devem ser vistas, por conseguinte, como meros
instrumentos colocados a serviço do investigado ou réu, mas possuem a missão de
propiciar o correto exercício da jurisdição.260
Isso não significa uma perda da importância do direito à não
autoincriminação, mas apenas uma adequação do discurso aos novos tempos.
Muitos dos direitos fundamentais previstos na Constituição são contrapostos e a
maior aplicação de um importa na diminuição do outro que lhe faz oposição. Não há
como negar que liberdade e a igualdade são dois direitos essenciais em nosso
Estado democrático. Conquanto estejam unidos em perfeita lógica, não sendo
imaginável o Estado sem a presença de ambos, não se pode negar a contradição
entre eles. De fato, a liberdade implica, em um primeiro momento, a ausência de
restrições ao indivíduo para o seu mais completo desenvolvimento. Ocorre que uma
liberdade sem limites não interessa ao Estado preocupado em promover a
igualdade, por exemplo, tributando os mais ricos – restrição da liberdade – e
transferindo a renda assim obtida aos mais necessitados. Destarte, de acordo com o
estágio de desenvolvimento da sociedade, um dos direitos receberá maior atenção,
em detrimento do outro. Em sociedades mais desenvolvidas261 poderá haver uma
prevalência da liberdade, ao passo que em sociedades em desenvolvimento, maior
atenção será dispensada à igualdade. O mesmo ocorre com o direito à não
autoincriminação, vale dizer, a exacerbação do seu conteúdo importa na diminuição
dos meios de prova colocados à disposição das autoridades para a solução dos
delitos.
259
COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 365.
260 CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1995. p. 31. 261
John Rawls, por exemplo, fiel à tradição liberal, considerava o princípio da liberdade superior e anterior ao da igualdade (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
151
No julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566262, o ministro Marco Aurélio
Bellizze, relator vencido, observou que o apanhado da doutrina e jurisprudência
indica que o direito à não autoincriminação alcançou, no Brasil, dimensão, extensão
e prestígio jamais verificados nos sistemas judiciais com tradição de respeito à
dignidade da pessoa humana e ao devido processo legal. Em suma, concluiu que o
que nos países que dispõem de avançados sistemas jurídicos é relativo, aqui é
absoluto.
Essa absolutização dos direitos em matérias atinentes ao processo penal não
se restringe apenas ao direito à não autoincriminação. Em todas as hipóteses de
hipertrofia dos direitos, prevalece a mesma aparente lógica, proteger o indivíduo
contra um Estado opressor. Difunde-se a noção que autoridade e liberdade são
conceitos de impossível convivência e não se leva em consideração que a tutela
penal dos direitos fundamentais também constitui um direito fundamental –
autônomo − que confere aos cidadãos o direito de exigir que o Estado faça atuar o
direito penal para combater os crimes. Nesse sentido, afirma Eugênio Pacelli de
Oliveira263 que a:
[...] constituição realinha o Estado brasileiro para a proteção dos direitos fundamentais, exatamente porque positivados constitucionalmente; ao lado deles estabelece inúmeras garantias processuais e procedimentais, todas destinadas à efetivação judicial (quando necessária) daqueles direitos. E uma dessas garantias é a tutela penal dos direitos fundamentais, consoante se deve extrair da norma prevista no artigo 5º, LIX, da Constituição Federal.
Não mais se deseja a volta do regime ditatorial que tantos males causou à
nação, tendo entre as suas vítimas a própria presidente de nossa República. Sucede
que não pode o Estado, com receio de tal retrocesso, deixar impunes graves
violações aos direitos que ocorrem diariamente em nosso meio. Há uma crise de
autoridade que é facilmente perceptível nas depredações recentes de agências
bancárias, concessionárias de veículo, ônibus etc., que ocorreram durante as
manifestações iniciadas pelo movimento do passe livre, na relutância para o
cumprimento de ordens judiciais, entre tantos outros exemplos.264
262
STJ − REsp n. 1.111.566, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 263
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Regimes constitucionais da liberdade provisória. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 12.
264Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/ministro-diz-ter-cometido-equivoco-ao-dizer-que-
dilma-criticou-cumprimento-de-ordem-judicial-8594050>. Acesso em: 15 maio 2014.
152
Nessa lógica de superproteção do indivíduo em face do Estado, é relegado a
um segundo plano um de seus objetivos fundamentais, a construção de uma
sociedade justa (art. 3º, inc. I, da CF).
Esse fenômeno de absolutização não ocorreu, como afirmado, apenas no que
tange ao direito à não autoincriminação. Dois exemplos demonstram o alegado.
O primeiro diz respeito ao princípio da presunção de inocência ou de não
culpabilidade. No Brasil não se mostra suficiente para afastar tal presunção a
confissão do acusado seguida por condenação pelo Tribunal do Júri, condenação
confirmada pelo Tribunal de Justiça e ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça.
No dia 20 de agosto de 2000, Pimenta Neves matou com dois tiros Sandra
Gomide em Ibiúna. Pimenta Neves confessou o crime e foi condenado, em 2006, a
19 anos de reclusão (pena reduzida para 18 anos e depois para 15 anos). O caso
tramitou lentamente, levando seis anos para ser julgado, tendo a defesa de Pimenta
Neves ingressado, entre outros, com cinco embargos de declaração, recurso contra
a sentença de pronúncia, recurso especial no Superior Tribunal de Justiça e recurso
extraordinário no Supremo Tribunal Federal (contra a decisão que confirmou a
pronúncia), os quais não foram admitidos pelo Tribunal paulista, o que resultou em
mais dois agravos de instrumento. Em 13 de dezembro de 2006, o Tribunal de
Justiça de São Paulo confirmou a condenação e determinou a prisão do jornalista,
até que, no dia 16 de dezembro, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, do
Superior Tribunal de Justiça, concedeu-lhe novo habeas corpus, com fundamento na
presunção da inocência. Um habeas corpus já lhe havia sido concedido em 23 de
março de 2001 pelo ministro Celso de Mello. Após a confirmação da condenação
pelo Tribunal de Justiça, o processo entrou em novo cipoal de recursos, especial,
extraordinário, embargos, agravos regimentais, agravos de instrumentos, enfim, todo
o arsenal que a legislação processual brasileira oferece para retardar o trânsito em
julgado e consequente cumprimento da sentença. Não dá aqui para enumerar todos
os recursos ajuizados, mas apenas citaremos um, para demonstrar a situação: em
2009, estava pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal o recurso EDCL
no AGRG nos ERESP − embargos declaratórios no agravo regimental nos embargos
do recurso especial.
153
Em 24 de maio de 2011, os ministros da 2ª Turma do Supremo Tribunal
Federal finalmente determinaram o início de cumprimento da pena anteriormente
imposta.
Fácil perceber, pois, que no Brasil, o princípio da presunção de inocência, da
forma como interpretado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas
Corpus n. 84.078, impede o início do cumprimento da pena antes de se esgotarem
todas as instância recursais, situação não observada na legislação dos demais
países.
Argumenta-se que a interpretação do princípio da presunção de inocência e
do direito à não autoincriminação, do modo como realizada pelo Supremo Tribunal
Federal, estaria respaldada pelo Pacto de São José da Costa Rica265. Ocorre que o
referido diploma legal não confere tal extensão a nenhum dos direitos em análise.
Vejamos os artigos invocados para sustentar a alegado.
No que se refere ao direito à não autoincriminação, o artigo invocado é o
artigo 8, 2, “g”, que afirma que toda a pessoa tem o direito de não ser obrigada a
depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. Fácil perceber que não há
qualquer menção, por exemplo, ao etilômetro ou qualquer outro tipo de perícia ou
teste invasivo, o que demonstra que a alusão ao Pacto de São José da Costa Rica
não passa de mera figura retórica. Nesse sentido, José Barcelos de Souza assevera
que a proteção conferida pelo Pacto de São José da Costa Rica refere-se
primordialmente às declarações verbais.266
Tanto é verdade que vários países signatários do Pacto de São José da
Costa Rica aprovaram leis impondo a obrigatoriedade de o indivíduo sujeitar-se a
determinados testes e perícias, que no Brasil não são permitidos, por serem
supostamente contrários ao referido Pacto. Na Argentina, o réu, embora sujeito de
direitos, e não mero objeto de processo, deve se submeter a determinadas
265
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Revista do Advogado, n. 42, p. 30, abr. 1994.
266 SOUZA, José Barcelos de. Bafômetro, intervenções corporais e direitos fundamentais. In: SOUZA,
José Barcelos. Recursos, artigos e outros escritos: doutrina e prática civil e criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 148.
154
ingerências corporais com finalidades probatórias, como determina o artigo 218 do
Código de Processo Penal, permitindo ainda a lei que o indivíduo recalcitrante seja
conduzido coercitivamente para a sua realização:
Art. 218 - Quando for necessário, o juiz poderá proceder ao exame físico e mental do acusado, garantindo, sempre que possível, que o seu pudor seja respeitado. Idêntica medida pode ser realizada sobre outra pessoa, com a mesma limitação, em casos de suspeita séria e razoável ou necessidade absoluta. Se necessário, a inspeção pode ser realizada com a ajuda de especialistas. Do evento só poderá participar a defesa ou uma pessoa de sua confiança, que deve ser informado do direito. Art. 218 bis. O juiz pode ordenar a produção de ácido desoxirribonucleico (DNA), do réu ou de outra pessoa, sempre que necessário, para identificação ou para a verificação das circunstâncias relevantes para a investigação. A medida deve ser realizada por ordem expressa e fundamentada, na qual, sob pena de nulidade, constarão as razões para a sua necessidade, razoabilidade e proporcionalidade. Para a realização dos testes serão admissíveis mínimas extrações de sangue, saliva, pele, cabelo ou outras amostras biológicas, a serem realizadas sob as regras do conhecimento médico, quando não houver perigo à integridade física da pessoa. A perícia deve ser realizada da forma menos prejudicial para a pessoa e sem afetar a sua intimidade, especialmente levando-se em consideração seu gênero e outras circunstâncias especiais. O uso de poderes coercitivos sobre o afetado pela medida, em caso algum, pode exceder o estritamente necessário para a sua realização. Se o juiz julgar conveniente, e sempre que possível, poderá ordenar a produção de ácido desoxirribonucleico (DNA) por meios diferentes da inspeção corporal, tais como sequestro de objetos que contenham células já destacado o corpo, o que pode ser feito por meio de medidas como a busca domiciliar ou pessoal. Além disso, quando em um delito de ação pública deva ser obtido o DNA da suposta vítima do delito, a medida ordenada será feita considerando tal condição, a fim de evitar a revitimização e proteger dos seus direitos específicos Para esse fim, se a vítima se opuser à execução das medidas referidas no segundo parágrafo, o juiz procederá conforme indicado no quarto parágrafo.
267
267
N g “Art. 218 - Cuando lo juzgue necesario, el juez podrá proceder a la inspección corporal y mental del imputado, cuidando que en lo posible se respete su pudor. Podrá disponer igual medida respecto de otra persona, con la misma limitación, en los casos de grave y fundada sospecha o de absoluta necesidad. En caso necesario, la inspección podrá practicarse con el auxilio de peritos. Al acto sólo podrá asistir el defensor o una persona de confianza del examinado, quien será advertido previamente de tal derecho. Art. 218 bis - Obtención de ácido desoxirribonucleico (ADN). El juez podrá ordenar la obtención de ácido desoxirribonucleico (ADN), del imputado o de otra persona, cuando ello fuere necesario para su identificación o para la constatación de circunstancias de importancia para la investigación. La medida deberá ser dictada por auto fundado donde se expresen, bajo pena de nulidad, los motivos que justifiquen su necesidad, razonabilidad y proporcionalidad en el caso concreto. Para tales fines, serán admisibles mínimas extracciones de sangre, saliva, piel, cabello u otras muestras biológicas, a efectuarse según las reglas del saber médico, cuando no fuere de temer perjuicio alguno para la integridad física de la persona sobre la que deba efectuarse la medida, según la experiencia común y la opinión del experto a cargo de la intervención. La misma será practicada del modo menos lesivo para la persona y sin afectar su pudor, teniendo especialmente en consideración su género y otras circunstancias particulares. El uso de las facultades coercitivas sobre el afectado por la medida en ningún caso podrá exceder el estrictamente necesario para su realización. Si el juez lo estimare conveniente, y siempre que sea
155
No Chile, o artigo 197268 do Código de Processo Penal admite a realização de
exames corporais relevantes para a investigação, não podendo o indivíduo recusar-
se, desde que autorizados judicialmente.
Observe-se que se, de fato, tais exames contrariassem o Pacto de São José
da Costa Rica, por certo haveria pronunciamento da Corte Interamericana de
Direitos Humanos nesse sentido, o que não ocorreu.
No que diz respeito ao princípio da presunção de inocência, o artigo 8, 2, do
Pacto de São José da Costa Rica dispõe que toda pessoa acusada de um delito tem
direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada
u u . í “ ” qu trata do direito de recorrer, dispõe que toda pessoa tem
o direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. Não diz, entretanto, que
necessariamente deva recorrer em liberdade.
No julgamento do Recurso em Habeas Corpus n. 75.917/RS, o ministro
Maurício Corrêa asseverou que a ordem de prisão decretada antes do trânsito em
julgado não ofende o Pacto de São José da Costa Rica:
Recurso de Habeas Corpus. Falsidade ideológica (art. 299, parágrafo único, do CP). Sentença condenatória não transitada em julgado. Liberdade provisória. Fiança. Condenação anterior por crime culposo. Sursis. 1. A ordem de prisão decorrente de decisão condenatória proferida por juiz competente não configura constrangimento ilegal ou abuso de poder. Consoante reiterado entendimento do Supremo Tribunal Federal, a
posible alcanzar igual certeza con el resultado de la medida, podrá ordenar la obtención de ácido desoxirribonucleico (ADN) por medios distintos a la inspección corporal, como el secuestro de objetos que contengan células ya desprendidas del cuerpo, para lo cual podrán ordenarse medidas como el registro domiciliario o la requisa personal. Asimismo, cuando en un delito de acción pública se deba obtener ácido desoxirribonucleico (ADN) de la presunta víctima del delito, la medida ordenada se practicará teniendo en cuenta tal condición, a fin de evitar su revictimización y resguardar los derechos específicos que tiene. A tal efecto, si la víctima se opusiera a la realización de las medidas indicadas en el segundo párrafo, el juez procederá del modo indicado en el cuarto párrafo.” (Nossa tradução).
268 “Art. 197 - Exámenes corporales. Si fuere necesario para constatar circunstancias relevantes para
la investigación, podrán efectuarse exámenes corporales del imputado o del ofendido por el hecho punible, tales como pruebas de carácter biológico, extracciones de sangre u otros análogos, siempre que no fuere de temer menoscabo para la salud o dignidad del interesado. Si la persona que ha de ser objeto del examen, apercibida de sus derechos, consintiere en hacerlo, el fiscal o la policía ordenará que se practique sin más trámite. En caso de negarse, se solicitará la correspondiente autorización judicial, exponiéndose al juez las razones del rechazo. El juez de garantía autorizará la práctica de la diligencia siempre que se cumplieren las condiciones señaladas en el inciso primero.”
156
determinação para expedição de mandado de prisão não conflita com o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII) nem com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
É certo que esse entendimento do Supremo Tribunal Federal foi superado no
julgamento do Habeas Corpus n. 84.078/MG. Por sete votos a quatro, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal concedeu, no dia 05.02.2009, o referido habeas corpus,
para permitir que um réu já condenado à pena de sete anos e seis meses de
reclusão, em regime inicialmente fechado, recorresse dessa condenação, aos
tribunais superiores, em liberdade.
Observe-se que a decisão foi tomada por maioria, e não por unanimidade. A
ministra Ellen Gracie, vencida, entendeu ser:
[...] equivocado afirmar que o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal exige o esgotamento de toda a extensa gama recursal, para que só então, se dê consequência a sentença condenatória. [...] Mesmo em países em que a legislação não é tão generosa em permitir a recorribilidade procrastinatória como acontece no Brasil, mas cuja tradição democrática é reconhecida (Reino Unido), a regra é de que o réu se recolha à prisão a partir da sentença condenatória de primeira instância. Aguardar, como se pretende, que a prisão só ocorra após o trânsito em julgado é algo inconcebível.
Pelo exposto, é evidente que o início do cumprimento da pena antes do
trânsito em julgado não afronta, nem de maneira remota, o Pacto de São José da
Costa Rica. A mudança de entendimento do Supremo deve ser fundamentada
exclusivamente na nossa Constituição, muito embora quatro ministros tenham
entendido que esse cumprimento antecipado nem a nossa própria Constituição
afrontava. Entender que o Pacto de São José da Costa Rica exige que todas as
instâncias sejam percorridas antes do início do cumprimento da pena é jogar na
ilegalidade os demais países signatários do Pacto, haja vista que nenhum deles
confere tal amplitude ao direito.
O segundo exemplo refere-se à possibilidade de acesso irrestrito aos autos
de inquéritos policiais em andamento. A matéria foi objeto de Súmula Vinculante, a
de número 14, que tem a seguinte redação:
157
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Considerando que todos os z qu ã “ u ”,
o intimado para prestar algum esclarecimento e o investigado, que sequer indiciado
foi, terão o direito de conhecer a linha investigativa adotada pela polícia, os fatos já
descobertos etc., o que em última análise irá prejudicar a investigação que está
sendo levada a efeito. Não se estaria, postergando-se a vista dos autos do inquérito,
obstaculizando a ampla defesa, pois ela será exercida em sua plenitude na fase
processual, uma vez que não há que se falar em contraditório no inquérito policial.
Observe-se que o investigado que não tem acesso imediato aos autos do inquérito
pode permanecer calado – não haveria assim um prejuízo irremediável −, ao passo
que dar ciência a todas as pessoas do rumo da investigação provavelmente a
inviabilizará.
Mais uma vez os direitos dos investigados são colocados em patamar
superior aos defendidos pelo Estado, como se este não fosse o responsável pela
defesa de toda a sociedade. A súmula é tão ampla que sequer usa as palavras
investigado, indiciado ou réu, corriqueiras no processo penal, mas a palavra
representado que, em tese, pode abarcar qualquer indivíduo, mesmo as
testemunhas. Observe-se que em todas as situações mencionadas, distancia-se do
ponto de equilíbrio desejável, ponto no qual a balança permanece em repouso e no
qual coabitam o respeito aos direitos fundamentais e as necessidades de proteção
do corpo social.
A legislação alemã, a título ilustrativo, admite o acesso aos autos do inquérito,
desde que isso não coloque em risco a investigação nem viole os direitos de
terceiros. Uma vez terminada a investigação, o acesso será total, antes disso
apenas se não colocar em risco a finalidade da investigação.269
269
“S çã 147 (1) O advogado de defesa terá autoridade para inspecionar os arquivos que estão disponíveis para o tribunal ou que a ele serão remetidos, se a acusação for apresentada, bem como para inspecionar as evidências. (2) Se as investigações ainda não foram concluídas, o acesso do advogado de defesa aos arquivos pode ser restringido, bem como podem ser proibidos o exame do processo ou de partes individuais dos arquivos e a inspeção de evidências oficialmente apreendidas, na medida que tais providências possam prejudicar a finalidade da investigação. Se os pré-requisitos da sentença inicial foram cumpridos e se o acusado estiver em prisão preventiva ou
158
A história mostra que durante longos períodos de tempo poucas mudanças
parecem ocorrer. Então, graves erros humanos, como o holocausto, por exemplo, de
repente acontecem. Os Estados reconhecem o erro e respondem com o
florescimento de direitos, como ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, época na
qual os direitos humanos internacionais deram um grande passo. Às vezes, o erro
não é repentino, mas de longa duração, como a escravidão. É o reconhecimento do
erro − ou a derrota após um conflito − que serve como um estímulo para o
desenvolvimento dos direitos. Nos Estados Unidos, as emendas constitucionais pós-
Guerra Civil rapidamente eliminaram a escravidão, assim como no Brasil a
Constituição de 1988 procurou superar os erros havidos durante o regime militar.
Também houve exemplos históricos de direitos rapidamente afastados no
rescaldo de erros que, segundo acreditava-se, eram causados por direitos
excessivos. Os Estados Unidos enfrentam tal contração, em resposta aos ataques
terroristas ocorridos nos últimos anos.270
Não obstante os direitos fundamentais assegurados pela Constituição de
1988 tenham sido extremamente importantes para impedir as confissões obtidas
mediante tortura e para possibilitar o amplo acesso dos investigados e réus às
acusações contra eles formuladas, banindo os processos sigilosos, é preciso
reconhecer que as instituições avançaram e a consequência inevitável de um
excesso de um direito fundamental implica na restrição de outro, igualmente
fundamental, sendo necessário buscar-se o equilíbrio, para que os prejuízos sejam
minimizados.
se, no caso de detenção provisória, esta tenha sido requerida, informações relevantes para a apreciação da legalidade de tal privação de liberdade devem ser disponibilizadas para o advogado de defesa de forma adequada; nessa medida, como regra, será concedido o exame do processo.” No original: “Section 147 (1) Defence counsel shall have authority to inspect those files which are available to the court or which will have to be submitted to the court if charges are preferred, as well as to inspect officially impounded pieces of evidence. (2) If investigations have not yet been designated as concluded on the file, defence counsel may be refused inspection of the files or of individual parts of the files, as well as inspection of officially impounded pieces of evidence, insofar as this may endanger the purpose of the investigation. If the prerequisites of the first sentence have been fulfilled, and if the accused is in remand detention or if, in the case of provisional arrest, this has been requested, information of relevance for the assessment of the lawfulness of such deprivation of liberty shall be made available to defence counsel in suitable form; to this extent, as a rule, inspection of the files shall be granted.” (Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stpo/englisch_stpo.html>. Acesso em: 12 dez. 2014. Nossa tradução).
270 DERSHOWITZ, Alan M., Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth
Amendment after 9/11, cit., pos. 1.026 de 2.222.
159
A quem interessa uma blindagem do indivíduo, a ponto de tornar impossível a
persecução penal? A quem interessa que um direito fundamental seja estendido a
tal ponto que torne impossível a comprovação de determinado crime? Não devemos
nos esquecer que a comprovação dos delitos é essencial para a aplicação da pena e
esta é fundamental para evitar-se a ocorrência de novos delitos.
Com efeito, além de possuir uma função punitiva, a lei penal possui a função
– a mais importante, pensamos − de prevenir futuros comportamentos semelhantes.
Assim, a punição do infrator tem a importante missão de impedir que delitos iguais
sejam cometidos no futuro. Ao não punir os infratores, passa-se uma clara
mensagem de impunidade, o que acaba por desestimular a adoção das condutas
desejadas e previstas na legislação. A constatação do afirmado pode ser vista com
frequência nos jornais, que todos os dias noticiam acidentes de trânsito cometidos
em circunstâncias bizarras, como trafegar a de 150 quilômetros por hora em uma
das ruas do bairro paulistano do Itaim271, entre inúmeros outros que poderíamos
citar.
Na verdade, se temos uma sociedade fraca, conivente, sem autoridade e
incapaz de produzir temor naqueles que pretendem auferir vantagens de situações
eticamente condenáveis, acabamos, de certa maneira, estimulando comportamentos
indesejados.272
7.3 Individualismo exagerado
Clóvis de Barros Filho273, ao explicar a lógica do desejo na falta, do buscar o
que não se tem, exemplifica com a sua própria evolução escolar. Afirma que quando
estudava no primário ouvia os alunos dizerem que o objetivo do primário era passar
para o ginásio, e assim grande parte do tempo e do esforço eram voltados para o
exame de admissão. Chegando no ginásio, dizia-se que o que interessava mesmo
271
Porsche a 150 km/h bate e mata mulher. Jornal da Tarde, 9 jul. 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/jt-cidades/porsche-a-150-kmh-bate-e-mata-mulher/>. Acesso em 20 mar. 2014.
272 CORTELLA, Mário Sérgio; BARROS FILHO, Clóvis de. Ética e vergonha na cara. Campinas.
Papirus 7 Marés, 2014. p. 12. 273
Ibidem, p. 21-23.
160
era ingressar no colegial, pois ali não mais se obrigava o uso do uniforme. E se
passava o ginásio esperando o colegial. No colegial, o objetivo era ingressar na
faculdade. Ao chegar na faculdade, poderia se pensar que a vida chegou, todavia se
começava a pensar em estágios para se ter acesso ao mercado de trabalho. No
estágio, o problema era ser efetivado e, quando finalmente se era efetivado e
poderia haver a fruição do que está acontecendo, descobria-se que a empresa tinha
quinze níveis hierárquicos e era preciso muito esforço para a progressão funcional.
Essa preocupação com o futuro cedeu espaço, na hipermodernidade, à
cultura do aqui e agora, tendo o centro da gravidade temporal se deslocado para o
presente. Gilles Lipovetsky274 afirma que a consagração do presente surgiu com a
revolução do cotidiano e com as sensíveis alterações nas aspirações e modos de
vida observados nos últimos cinquenta anos. Não mais se deseja a renovação dos
modelos do passado, mas se ambiciona a novidade, o princípio-moda deslocou para
o eixo do presente a temporalidade dominante. Não mais se quer esperar pelo
futuro, não mais se quer renunciar a nada, surgindo uma cultura hedonista que
demanda a satisfação imediata das necessidades. O poder do consumismo e da
moda acabou por derrotar os ideais políticos da modernidade. A partir dos anos 80,
recrudesceu a valorização do presente, tendo como panos de fundo a revolução
informática e a globalização, sendo que todas as coisas agora ocorrem em tempo
real, havendo uma sensação de simultaneidade e imediatidade.
O autor afirma que conquanto haja o triunfo do tempo breve da economia e da
mídia, não há como negar, por outro lado, que as sociedades continuam a se
preocupar com o futuro. De fato, as ponderações com o destino do planeta, com os
riscos ambientais etc. ocupam posição preponderante nos debates atuais. Assim,
embora a preocupação com o presente ocupe o centro das atenções, ela não é
absoluta, como se pode provar pela cada vez mais crescente valorização do culto à
saúde e à longevidade, e pela importância conferida à prevenção.275
274
LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004.p. 58-61.
275 Ibidem, p. 68-69.
161
Essa ambiguidade, característica da hipermodernidade, não se restringe
apenas ao aspecto temporal. Não obstante a aceleração dos ritmos, a cultura de
massas, o consumismo exagerado, o enfraquecimento dos vínculos, podemos ver
no homem hipermoderno características opostas, como a afetividade, a
sensibilidade e o desejo por uma vida equilibrada e sentimental. Destarte, os
exageros hipermodernos são em toda parte obstaculizados por exigências relativas
à qualidade de vida, valorização dos sentimentos e da personalidade. Essa união de
contrários expõe dois importantes princípios da modernidade: a conquista da
eficiência e a busca da felicidade.
No campo institucional, a cultura hipermoderna se caracteriza pelo
enfraquecimento do poder regulador das instâncias coletivas e pela autonomização
dos indivíduos em face das imposições do grupo. Os indivíduos se mostram cada
vez mais socialmente independentes, preocupados apenas com a própria felicidade,
retirando-se, como consequência, do ambiente social para o privado, o que revela
uma descrença nas instituições normativas.276
A felicidade sempre esteve no centro das principais preocupações filosóficas
religiosas e psicológicas. Para Aristóteles, a felicidade é o fim a ser atingido e deve
ser procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo
que as outras virtudes são buscadas por si próprias, mas também no interesse da
felicidade.277
Freud afirma que o ser humano, por meio de seu comportamento, revela o
propósito de sua vida: a busca da felicidade. Os indivíduos querem se tornar felizes
e assim permanecer. Entende, entretanto, que aquilo que em seu sentido mais
estrito é chamado de felicidade surge antes da satisfação de necessidades
represadas em alto grau e, segundo sua natureza, torna-se possível apenas como
fenômeno episódico.278
276
LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos, cit., p. 83. 277
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Saraiva, 2000. Livro 7. 278
FREUD, Sigmund. O mal estar na cultura. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2010. p. 61-62.
162
A busca da felicidade não deve ser feita, entretanto, a qualquer custo, mas
sob o patrocínio dos direitos humanos e da democracia, que devem funcionar como
limites às aspirações individuais.
Embora se acentue o consumismo e a importância conferida à eficiência, ao
mercado e ao dinheiro, há valores éticos que ainda permanecem, como pode ser
comprovado pela sempre presente discussão acerca dos direitos humanos. Direitos
humanos e democracia são duas palavras que são utilizadas para uma série de
situações que nem sempre correspondem ao sentido que comumente costumam
possuir.
Conservadores utilizam a expressão direitos humanos para se insurgirem
contra a proteção, no seu entender inadmissível, conferida aos bandidos, proteção
essa que não seria estendida aos homens de bem.279
Na verdade, os direitos humanos devem ser entendidos como limites éticos a
serem respeitados por todos os membros da sociedade. Limites que se impõem
mesmo na ausência de norma expressa, uma vez comprovado com os horrores do
nazismo que a aplicação das leis vigentes nem sempre é capaz de impedir as
atrocidades cometidas.
Em resumo, a hipermodernidade apresenta como características uma atenção
marcante ao indivíduo e uma frouxidão nos controles sociais. O individualismo
exagerado contribui para a redução das obrigações morais, ao passo que a
ausência de referências, em virtude da supressão de mecanismos de controle social,
conduz a um relativismo.
Os direitos fundamentais, todavia, devem ter sua eficácia valorada não
apenas considerando-se o aspecto exclusivamente individualista, “isto é, com base
279
A ponto de o deputado Federal Jair Bolsonaro afirmar em discurso realizado que os direitos humanos são o esterco da vagabundagem. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=083.4.52.O&nuQuarto=15&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=09:28&sgFaseSessao=BC%20%20%20%20%20%20%20%20&Data=25/05/2006&txApelido=JAIR%20BOLSONARO&txFaseSessao=Breves%20Comunica%C3%A7%C3%B5es%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20&dtHoraQuarto=09:28&txEtapa=Com%20reda%C3%A7%C3%A3o%20final>. Acesso em: 20 mar. 2014.
163
no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também
sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se
cuidam de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar”.280
Não obstante tais características da hipermodernidade, a colocação do tema
direitos humanos no centro dos debates comprova que existe uma gama de valores
compartilhados pelos indivíduos capaz de fazer a contraposição à ideia de que a
razão instrumental é a única a ser considerada, vale dizer, além dos meios também
os fins são valorizados, fins consubstanciados exatamente nesses valores éticos
consagrados pelos direitos humanos.
Sébastien Charles 281 afirma que três situações permitem demonstrar a
persistência ética dos ideais em um contexto individualista, típico da
hipermodernidade: o desaparecimento de uma moral incondicional não teve como
consequência a difusão de comportamentos egoístas; o relativismo não ocasionou
um niilismo moral ante a manutenção de um núcleo duro de valores consensuais; e,
por fim, a perda das referências tradicionais não resultou no caos social.
É inegável que, mormente diante do processo de globalização e com a
adoção de ideias difundidas mundialmente, os direitos humanos passaram a gozar
de uma certa uniformidade e incorporar essa função limitadora do avanço da
vertente individualista da hipermodernidade.
A democracia, assim como os direitos humanos, também tem o papel de
servir como contrapeso aos exageros da hipermodernidade, na medida que as
aspirações individuais devem seguir as regras do jogo democrático. O termo
democracia propicia, à semelhança do que ocorre com a expressão direitos
humanos, uma vasta gama de interpretações. A relação entre democracia e direitos
humanos é evidente, tanto que a própria Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU, em seu artigo 21, 3, traz os requisitos essenciais da democracia,
afirmando que “a vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta
280
SARLET, Ingo Wolfgang, Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência, cit., p. 99.
281 LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos, cit., p. 39.
164
vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal,
por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”.
Embora se costume afirmar que o ambiente democrático favoreça a proteção
dos indivíduos no que diz respeito aos direitos humanos, não há como negar a
existência de uma certa tensão entre democracia e direitos humanos. Com efeito, os
direitos humanos constituem uma proteção dos indivíduos em face do Estado,
enquanto na democracia há a atribuição pelo povo de poderes ao Estado, poderes
que quando exercidos, acabam sendo limitados pelos direitos humanos. Destarte,
em última análise, direitos individuais, particulares podem obstaculizar a vontade da
maioria.
Acerca dessa oposição entre o direito individual e o coletivo, Freud282 anota
que a convivência humana só se torna possível quando se reúne uma maioria que é
mais forte do que cada indivíduo e que permanece unida contra cada um deles.
Esclarece que na condição de direito, o poder da comunidade se opõe ao do
indivíduo, visto como força bruta. A substituição do poder do indivíduo pelo da
comunidade é o passo cultural decisivo, sendo que a sua essência consiste no fato
de que os membros da comunidade se restringem em suas possibilidades de
satisfação, ao passo que o indivíduo não conhecia tais limitações. E arremata o
autor, argumentando que o passo seguinte é o da justiça, vale dizer, a garantia de
que o ordenamento jurídico não venha a ser violado em favor de um indivíduo.
Ian Shapiro observa que seja qual for a ideologia defendida, em todos as
partes do mundo os regimes tentam se cobrir com o manto da democracia, o que
vem provar que o compromisso com a democracia é um componente indispensável
para a legitimidade política. Observa que se adequadamente interpretada e
institucionalizada, a democracia, não obstante as suas limitações, ainda é a forma
de governo que pode possibilitar que, ao longo do tempo, a verdade prevaleça no
cenário político, os direitos humanos sejam respeitados e se preservem os
elementos das tradições e das culturas.283
282
FREUD, Sigmund, O mal estar na cultura, cit., p.100-101. 283
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos; revisão da tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 245-247.
165
A democracia pode realizar esse mister fornecendo mecanismos pelos quais
os governantes são chamados a prestar contas. Assim, os desvios podem ser
controlados, por exemplo, por meio do impeachment, bem como pela troca dos
governantes nas futuras eleições. Somente na medida que os representantes do
povo sejam de fato escolhidos e removidos pela escolha livre do povo é que pode
haver uma garantia adequada de que as suas ações estejam em sintonia com os
desejos do povo284. Essa possibilidade de alternância contribui, ademais, para a
estabilidade política, pois exorta aqueles que perderam as disputas eleitorais a
permanecerem comprometidos com as regras, dada a possibilidade de saírem
vencedores na disputa seguinte.
Infelizmente, contudo, temos visto nos dias atuais uma certa descrença, uma
certa desconfiança na democracia para resolução dos conflitos que se multiplicam.
Vejamos o exemplo concernente às manifestações que vêm ocorrendo com
cada vez mais frequência em nossa sociedade. O dia 15 de maio de 2014285 foi
marcado por uma série de manifestações por todo o território brasileiro,
manifestações que tiveram por mote inicial o aumento das passagens de ônibus, em
maio de 2013, mas que agora possuem uma gama enorme de reivindicações. Hoje
manifesta-se mesmo sem saber por quê. Manifesta-se por moda, para seguir a
onda, bem ao gosto da superficialidade e frivolidade que atingem grande parcela da
massa alienada e facilmente manobrada.
No referido dia, alguns poucos manifestantes ligados ao movimento sem terra
paralisaram uma grande rodovia que liga a cidade de São Paulo ao interior; outros
manifestantes paralisaram a Avenida Paulista, sob o fundamento de que uma
empresa privada contratada pela prefeitura não pagara a remuneração acordada;
outros tantos, que protestavam contra a realização da Copa do Mundo, fecharam a
Avenida Consolação.
284
Ibidem, p. 37. 285
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/15/grupos-bloqueiam-vias-durante-manifestacoes-na-grande-sao-paulo.htm>. Acesso em: 20 jul. 2014.
166
Não se nega o direito que os vários grupos possuem de reivindicar os seus
interesses particulares, individuais, contudo essas reivindicações devem respeitar os
limites impostos pelas regras do jogo democrático.
De fato, manifestações realizadas sem qualquer espécie de regulamentação
inviabilizam o exercício de outros direitos constitucionais, como o direito de ir e vir do
restante da população, como pudemos constatar na tomada da cidade pelos
manifestantes que, desobedecendo as mais elementares regras de convivência,
paralisaram o comércio e a vida de grande parte da população.
As tentativas de regulamentar o referido direito receberam diversas críticas
dos mais variados setores da sociedade. A Ordem dos Advogados do Brasil, por
exemplo, emitiu em junho de 2013 a seguinte nota pública:286
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vem a público conclamar as autoridades a respeitar o direito de livre manifestação e impedir uso excessivo de força policial, que põe em risco a integridade física e até mesmo a vida de pessoas que exercitam o direito constitucional de liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, solicita empenho dos manifestantes a se conduzirem de modo pacífico, respeitando o patrimônio público e privado e não admitindo atos que possam deslegitimar os protestos. A OAB reitera que as manifestações, realizadas de forma pacífica, expressam o mais alto sentido de liberdade de nossa Constituição, e repudia, de pronto, qualquer iniciativa das autoridades em criminalizá-las.
Evidentemente as autoridades devem respeitar o direito à livre manifestação,
não é isso que está em jogo, nem nunca esteve, mas como evitar os abusos, como
não paralisar a cidade, como respeitar os direitos dos demais indivíduos etc. A nota
é de uma obviedade a toda prova e não passou de um mero jogo de cena, bem ao
gosto da hipermodernidade, que mais se preocupa com a forma do que com o
conteúdo. O que temos observado, diga-se, é que na ânsia de não desagradar a
plateia, as discussões acabam se tornando superficiais e os problemas perpetuados.
Países de tradição democrática muito maior do que a nossa possuem regras
claras para o exercício do direito de manifestação. Em Portugal, por exemplo, o
286
Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/25770/oab-defende-respeito-a-livre-manifestacao-e-pede-protestos-pacificos>. Acesso em: 12 dez. 2014.
167
Decreto-Lei n. 406/74287 estabelece uma série de limitações, entre elas o dever de
aviso prévio e com uma antecedência mínima; o dever de indicar o trajeto a seguir; o
dever de não organizar, dirigir ou provocar manifestações violentas; o dever de
obediência às ordens legítima de dispersão.
Tais balizamentos não têm o escopo de inviabilizar o direito à manifestação,
mas apenas procuram harmonizá-lo com os demais direitos constitucionais, eis que
deve ser inserido no contexto da sociedade em que é exercido. As limitações assim
buscam conciliar as suas naturais exigências com aquelas que são próprias da vida
em sociedade, como a ordem pública, a ética, a autoridade e a segurança do
Estado, entre outras. Em suma, as normas limitadoras pretendem organizar e
adaptar à vida real o direito de reunião e manifestação, introduzindo medidas
concretas que, sem desnaturar o direito, previnem o conflito ou proíbem o abuso e a
violação dos demais direitos.
A Constituição italiana também contém regra limitadora ao direito de reunião,
nos seguintes termos288 : as reuniões efetuadas em lugares públicos devem ser
previamente informadas às autoridades, que só as podem proibir por manifestos
motivos de segurança ou de salubridade pública.
287
Decreto-Lei n. 406/74: “Artigo 1º - 1. A todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações, para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas. 2. Sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas. Artigo 2º - 1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito. 2. O aviso deverá ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respectivas direcções. 3. A entidade que receber o aviso passará recibo comprovativo da sua recepção. Artigo 3º - 1. O aviso a que alude o artigo anterior deverá ainda conter a indicação da hora, do local e do objecto da reunião e, quando se trate de manifestações ou desfiles, a indicação do trajecto a seguir. 2. As autoridades competentes só poderão impedir as reuniões cujo objecto ou fim contrarie o disposto no artigo 1º, entendendo-se que não são levantadas quaisquer objecções, nos termos dos artigos 1º, 6º, 9º e 13º, se estas não forem entregues por escrito nas moradas indicadas pelos promotores no prazo de vinte e quatro horas. Artigo 4º - Os cortejos e desfiles só poderão ter lugar aos domingos e feriados, aos sábados, depois das 12 horas, e nos restantes dias, depois das 19 horas e 30 minutos.”
288 “Art. 17 I cittadini hanno diritto di riunirsi pacificamente e senz’armi. Per le riunioni, anche in luogo
aperto al pubblico, non è richiesto preavviso. Delle riunioni in luogo pubblico deve essere dato preavviso alle autorità, che possono vietarle soltanto per comprovati motivi di sicurezza o di incolumità pubblica.”
168
Na Espanha, a Lei Orgânica do Direito de Reunião, de 15 de julho de 1983,
exige o prévio aviso (arts. 8º e 9º), bem como disciplina a dispersão (art. 5º) e
interdição (art. 10º) das reuniões e manifestações. O artigo 9º, por exemplo, dispõe
que quando a reunião ocorrer em vias públicas, deve ser fornecido por escrito, com
antecedência de dez dias, o itinerário previsto.289
Do mesmo modo, na França se exige uma declaração prévia, conforme
previsão do artigo 3º do Decreto de 23 de outubro de 1935.290
Enquanto isso, no Brasil, os manifestantes ao invés de informarem
previamente as autoridades acerca dos itinerários dos protestos, passaram a
improvisar livremente os seus atos. Restou à polícia tentar descobrir os locais das
reuniões por meio das redes sociais ou à medida que ocorriam. O Executivo, que
inicialmente mostrou-se favorável à regulamentação, acabou recuando, uma vez que
a restrição é controversa e impopular, principalmente em períodos eleitorais.
O equilíbrio entre as pretensões individuais e coletivas por certo não é fácil, o
que levou Freud a afirmar que boa parte da luta da humanidade se concentra
justamente na busca desse equilíbrio, que seria capaz de proporcionar felicidade
entre as exigências individuais e as reivindicações das massas.291
A democracia propicia a convivência de ideias opostas, mas não tolera a
violência para a preponderância de uma delas. O resultado final entre essas tensões
deve ser um direito para o qual todos tenham contribuído com algum tipo de
sacrifício de seus impulsos e que não permita que ninguém se torne vítima da força
bruta.292
289
“Artículo noveno. 1. En el escrito de comunicación se hará constar: a) Nombre, apellidos, domicilio y documento oficial de identificación del organizador u organizadores o de su representante, caso de personas jurídicas, consignando también la denominación, naturaleza y domicilio de éstas. b) Lugar, fecha, hora y duración prevista. c) Objeto de la misma. d) Itinerario proyectado, cuando se prevea la circulación por las vías públicas.e) Medidas de seguridad previstas por los organizadores o que se soliciten de la autoridad gubernativa.”
290 Disponível em: <http://legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000294755&
dateTexte=20080410>. Acesso em: 21 jul. 2014. 291
FREUD, Sigmund, O mal estar na cultura, cit., p. 102. 292
FREUD, Sigmund, O mal estar na cultura, cit., p. 101.
169
Com efeito, a insatisfação decorrente do não atendimento das reivindicações
deve ser externada nas urnas, mesmo porque não há como resolver problemas por
vezes estruturais em um piscar de olhos. Destarte, não se coaduna com a
democracia a tentativa observada de imposição pela força das posições de
determinados grupos.
Além de rechaçar o uso da força, a democracia também não admite que os
direitos dos demais indivíduos sejam desrespeitados além de um limite razoável. Por
consequência, é razoável alguém ter que realizar um caminho alternativo para ir ao
trabalho, mas não se torna razoável impedi-lo de chegar ao trabalho pelo
fechamento de todas as vias.
Um dos constantes óbices à democracia é que ela favoreceria uma tirania da
maioria. Atentas a esse perigo, as modernas Constituições procuraram formular
procedimentos mais rigorosos para a modificação de certos direitos e liberdades,
como, por exemplo, a exigência de quóruns qualificados. Tal como Ulisses293, que
foi amarrado ao mastro do navio para não sucumbir ao canto da sereia, as
Constituições, já prevendo a possibilidade de opressão das minorias, oferecem uma
garantia adicional aos direitos e liberdades, chegando ao ponto de torná-los, em
determinadas hipóteses, imodificáveis, como ocorre em nossa Constituição, no que
concerne aos direitos fundamentais.
Assim, não podemos deixar de relembrar que o mesmo direito constitucional
que assegura aos manifestantes o direito de exporem as suas reivindicações
também assegura o direito de locomoção aos demais indivíduos, o direito ao
trabalho, o direito à propriedade etc.
A busca das aspirações individuais, restritas a determinadas categorias, não
pode, por conseguinte, ser feita a qualquer custo, mas deve ser realizada com
responsabilidade, o que levou Sébastien Charles a afirmar que o futuro da
democracia na hipermodernidade está intimamente relacionado à tomada de
293
Na Odisseia de Homero, conta-se que Circe aconselhou Ulisses a cobrir com cera os ouvidos de seus marinheiros, de modo que não pudessem ouvir o canto, e a amarrar-se a si mesmo no mastro, dando instruções aos seus homens para não libertá-lo, fosse o que fosse que ele dissesse ou fizesse, até terem passado pela Ilha das Sereias.
170
responsabilidade pelo indivíduo. Assevera que, conquanto a tomada de
responsabilidade deve ser coletiva e exercer-se em todos os domínios do poder e do
saber, também deve ser individual, pois em último recurso cabe a nós assumir a
autonomia que nos foi legada pela modernidade.294
A alternância do poder, traço marcante dos regimes democráticos, pode,
todavia, acarretar um preço à democracia: a transformação de uma oposição leal em
uma oposição desleal, na qual os derrotados não agem com a responsabilidade
necessária e buscam a todo custo desacreditar o governo vigente, mesmo que
tenham para isso que obstaculizar projetos legítimos, uma vez que o único intuito é a
ascensão ao poder. Seguindo essa lógica, medidas que deveriam ser tomadas não
são concretizadas por falta de apoio. Por outro lado, a situação, mesmo sabendo
que medidas devem ser tomadas para sanar determinado problema, não as toma,
por serem impopulares. Dessa forma, a alternância, a princípio salutar para a
democracia, acaba por paralisar as ações necessárias e indispensáveis para um
bom governo. Não por acaso, vemos atualmente que ações (aumento do preço da
gasolina, racionamento de energia e de água, por exemplo) que deveriam ser
tomadas tanto pelo governo federal quando pelo estadual – oposição ao federal –
são adiadas em nome das eleições, eleições que se repetem a cada dois anos e que
paralisam os governos. E assim, esperamos as reformas – tributária e política-
eleitoral, por exemplo –, que provavelmente nunca virão.
Processo semelhante ocorre com o direito processual penal. Não há dúvida
de que reformas drásticas devem ser realizadas, reformas que nem sempre são bem
vistas por todos os setores da sociedade. Sem entrar na discussão acerca do
responsável – o Judiciário, em razão de sua morosidade, ou os advogados, em
virtude da infinidade de recursos interpostos − o fato é que o nosso modelo não está
funcionando a contento. Com efeito, não se pode dizer que um prazo de dez anos
seja razoável para que alguém comece a cumprir a pena imposta pelo cometimento
de um delito. Não se pode dizer que seja razoável a lei impedir a realização de
exames que comprovem a embriaguez de um indivíduo.
294
LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos, cit., p. 46-47.
171
Como reflexo de todo o panorama acima descrito, temos, no que concerne ao
direito à não autoincriminação, que a interpretação majoritária dos tribunais parece
preocupar-se exageradamente com os direitos e garantias individuais, relegando a
um segundo plano o interesse da coletividade. De fato, como expressamente
consignado no Recurso Extraordinário n. 1.111.56, o entendimento adotado pelo
Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode
ser compelido a colaborar com os referidos testes do bafômetro ou do exame de
sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se
autoincriminar. Em todas essas situações, ponderou o Superior Tribunal de Justiça,
prevaleceu o direto fundamental sobre a necessidade da persecução estatal.
Infelizmente, como visto, não foi realizada a devida ponderação com os outros
direitos também consagrados na Constituição e que, no caso concreto, deveriam
preponderar.
172
CONCLUSÕES
1. O direito ao silêncio já era noticiado em passagens do Talmude. No início
da história da Igreja Católica, como a confissão dos pecados constituía uma
obrigação de fé, nenhum privilégio existia para pessoas acusadas de um crime.
2. O desenvolvimento do direito ao silêncio deveu-se às disputas religiosas e
políticas dos dissidentes ingleses. Insurgindo-se contra os juramentos ex officio, a
arma principal utilizada por eles era o silêncio, que buscava fundamento em uma
antiga máxima, nemo tenetur se ipsum prodere. O desenvolvimento desse direito
também pode ser buscado no aprimoramento do procedimento criminal adversarial
ocorrido no final do século XVIII.
3. O direito à não autoincriminação foi incorporado por diversos tratados
internacionais de direitos humanos, o que tornou mais acurada a comparação da
jurisprudência nacional com a estrangeira, uma vez que ambas têm por fundamento
textos legais semelhantes.
4. O processo de globalização e a consequente criação de vínculos e espaços
sociais transnacionais acabaram por aproximar as diversas culturas, fato que
também facilitou a comparação entre os julgados de diversos países, dada a
similaridade da situação fática decorrente.
5. As principais características do direito à não autoincriminação são: permitir
que o acusado permaneça em silêncio durante todo processo; impedir que o
indivíduo seja compelido a produzir prova contrária ao seu interesse; resguardar o
indivíduo contra coação e violência física ou moral para constrangê-lo a cooperar na
instrução probatória; impedir que a sua inação seja de qualquer forma utilizada em
seu desfavor; e transferir à acusação o ônus da prova.
6. O direito à não incriminação é gênero do qual o direito ao silêncio é uma de
suas manifestações.
173
7. O direito à não autoincriminação, nos termos da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, constitui um direito público subjetivo, garantido pelo artigo 5º,
inciso LXIII, da Constituição Federal e pelo Pacto de São José da Costa Rica, que
pode ser invocado não apenas pelos presos, mas também pelos acusados,
investigados, indiciados e suspeitos, e testemunhas. É um direito que deve ser
invocado pela própria pessoa que sofreu a violação, geralmente não aproveitando a
terceiros, oponível a todos os agentes estatais, independentemente do procedimento
adotado, e que pode ser invocado a qualquer momento, não sendo necessário
qualquer provimento judicial para tanto.
8. É preferível a denominação direito à não autoincriminação, ao invés de
garantia ou princípio. O nemo tenetur se detegere não possui um caráter meramente
instrumental e pode ser invocado isoladamente, mesmo na ausência de qualquer
direito que teria a função de garantir. Ademais, algumas de suas manifestações,
como o direito ao silêncio, têm a natureza de regra – sempre aplicável – e não de
princípio, que pode ser objeto de ponderação e não ser aplicado diante de
determinado caso concreto.
9. O direito à não autoincriminação está relacionado a outros direitos previstos
em nossa Constituição, entre eles presunção de inocência, devido processo legal,
ampla defesa, contraditório, dignidade da pessoa humana, intimidade, integridade
física e liberdade.
10. Os dispositivos legais que consagram o direito à não autoincriminação no
ordenamento brasileiro são semelhantes aos observados nas legislações de vários
países. Não obstante a semelhança existente, a jurisprudência brasileira tem dado
uma extensão ao referido direito que não encontra paralelo no direito comparado.
11. O direito à não autoincriminação é normalmente invocado para a
justificação de posturas passivas do indivíduo: não falar, não fornecer padrões de
escrita ou de voz, não participar da reconstituição do crime.
174
12. Embora não haja imposição de pena para o réu que mente em seu
interrogatório, não se pode afirmar que exista um direito à mentira.
13. O direito à não autoincriminação não pode ser invocado para justificar
posturas ativas do indivíduo, como, por exemplo, quando inova o estado de lugar,
coisa ou pessoa para iludir a perícia, quando foge do local do delito ou quando
imputa falsamente um crime a outrem.
14. Muito embora o direito à não autoincriminação seja predominantemente
invocado nas condutas omissivas, isso não implica a possibilidade de sua invocação
em todo comportamento omissivo. O não comparecimento à audiência é um
exemplo. Também não poderá ser invocado para justificar a recusa à submissão a
determinadas perícias, quando não há participação ativa do indivíduo no exame,
como ocorre no exame de raios X para detectar a presença de drogas no interior do
corpo.
15. Deve-se fazer a distinção entre colaboração ativa e colaboração passiva.
A lei não admite que o indivíduo seja obrigado a participar de maneira ativa de
determinados procedimentos, como andar de determinada forma, ou fazer o teste do
bafômetro, mas não veda a colaboração passiva (impressões digitais).
16. As intervenções corporais podem ser definidas como a utilização do corpo
do indivíduo, mediante atos de intervenção, para efeitos de investigação e
comprovação dos delitos. São divididas em intervenções invasivas, como o exame
de sangue, e não invasivas, como o exame de digitais.
17. As intervenções corporais são admitidas, de modo geral, no direito
estrangeiro. Alguns requisitos devem, no entanto, ser observados, como a devida
autorização judicial, a necessidade da medida, a não colocação em risco da vida do
indivíduo e a previsão legal.
175
18. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admite a condução
coercitiva para o fornecimento de material genético ou sangue, muito embora não
tenha havido pronunciamento da Corte Suprema, após o advento da Lei n.
12.654/2012.
19. O fato de o indivíduo não ser mais considerado objeto de prova, mas
sujeito do processo, não impede a realização das intervenções corporais, que
podem ser realizadas independentemente de haver ou não consentimento.
20. O direito à não autoincriminação não evita a produção de todas as provas
que dependam da intervenção do acusado, senão somente aquelas que exigem
uma participação ativa voluntária.
21. Para a realização de exames que envolvam intervenções corporais, é
necessário haver uma legislação que discipline o procedimento de forma minuciosa,
posição adotada nas decisões proferidas pelos Tribunais Constitucionais espanhol,
italiano e português.
22. A atual jurisprudência dos Tribunais Superiores parece sinalizar que
eventual legislação (descrevendo as hipóteses de intervenções corporais) seria
considerada inconstitucional, a exemplo do que ocorreu com o exame do etilômetro,
uma vez ser inadmissível, em quaisquer hipóteses, que alguém seja coativamente
obrigado a realizar qualquer tipo de exame, mesmo que de forma passiva.
23. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem afirmado
reiteradamente que os direitos fundamentais não são absolutos. Quando houver
conflitos entre princípios, a regra da proporcionalidade se revela de grande valia,
funcionado como critério para solucioná-los da melhor forma possível.
24. O direito à não autoincriminação é composto por uma série direitos,
alguns com a natureza de princípio e outros com a natureza de regra. As suas
manifestações que têm a natureza de regra (direito ao silêncio, por exemplo) são de
aplicação absoluta. Quando as manifestações são consideradas princípios, podem
ser objeto de ponderação.
176
25. Assim como o direito ao silêncio, outras manifestações do direito à não
autoincriminação também possuem caráter absoluto, como a de não cooperar
ativamente com a acusação na produção de provas autoincriminatórias. Por outro
lado, quando se tratar de mera cooperação passiva, como ocorre com as
intervenções corporais −- extração compulsória de amostras de sangue ou DNA, por
exemplo − há espaço para a realização de um juízo de proporcionalidade, conforme
admitem os ordenamentos estrangeiros.
26. Vários direitos fundamentais podem ser atingidos pelas intervenções
corporais, como o direito à intimidade, à liberdade, à integridade física, à dignidade
da pessoa humana e à não autoincriminação. Tais direitos podem, todavia, ser
limitados, tendo em vista outros interesses também relevantes da sociedade. A
medida interventiva que delimitar a restrição só estará justificada após a realização
de um juízo de proporcionalidade, para se verificar a sua adequação.
27. É possível sustentar, com fundamento na teoria do suporte fático restrito,
que as intervenções corporais stricto sensu – medidas que causam ou tenham
potencial de causar lesão ao corpo e realizadas sem o consentimento do indivíduo −
estão fora do âmbito de proteção do direito à não autoincriminação, pois não
obrigam o indivíduo a realizar qualquer tipo de declaração ou a participar de maneira
ativa na produção da prova.
28. Com esteio na teoria do suporte fático amplo, pode-se argumentar que,
embora as medidas de intervenção não impliquem qualquer tipo de declaração ou
colaboração ativa do indivíduo, não deixa de ser evidente que mediante algumas
delas podem as autoridades descobrir, com alto grau de precisão e confiabilidade,
dados e informações que o indivíduo poderia não querer revelar, ou seja, ainda que
não se esteja realizando qualquer espécie de declaração, estão sendo realizadas
provas no corpo do indivíduo, cujo resultado será idêntico ao que seria obtido caso a
declaração fosse realizada, dentro, portanto, do âmbito de proteção da norma.
29. Não basta que certa conduta seja inexequível legalmente para se
configurar a proteção do direito. O direito à não autoincriminação não protege
determinada conduta do indivíduo pelo mero fato de que sem a sua colaboração
177
ativa não existiria outro modo de se realizar a prova. É necessário também que o
ordenamento não comine nenhuma penalidade para a recusa.
30. A autorização da medida interventiva, realizada após um juízo de
proporcionalidade, independe do consentimento do indivíduo.
31. No que diz respeito aos testes de alcoolemia, embora a solução da
controvérsia já tenha sido estabelecida por nossos tribunais, ela não é capaz de
realizar a devida justiça, haja vista dificultar ou mesmo impedir a produção das
provas necessárias para a responsabilização dos infratores.
32. Quatro modelos podem ser adotados pelos ordenamentos jurídicos para
resolver o problema da submissão aos testes de alcoolemia. O primeiro é adotado
em países como Estados Unidos e Alemanha e obriga o condutor a realizar o
exame. O segundo é adotado pela Espanha e comina sanção penal para o
descumprimento da obrigação legal imposta de se submeter ao exame. Na Itália ou
o condutor realiza o teste e o nível de álcool é obtido com exatidão, ou se recusa,
sendo que nessa hipótese o nível a ele atribuído será o máximo, sujeitando-o à mais
grave consequência. O quarto modelo deixa ao arbítrio do julgador valorar a
negativa de cooperação, ao contrário de se considerar, de maneira automática,
determinado fato como provado, deixa a cargo do juiz valorar a recusa.
33. O pensamento liberal tende, por vezes, a igualar o totalitarismo com o
autoritarismo e a identificar tendências totalitárias em toda e qualquer limitação a
direitos fundamentais. Qualquer limitação é assim vista como totalitária, uma volta ao
passado, e ninguém quer estar associado ao regime ditatorial que vigorou por um
longo período, sendo essa uma das possíveis razões para a exacerbação de alguns
direitos fundamentais no processo penal.
34. Observamos na jurisprudência nacional uma tendência de absolutização
de alguns direitos em matérias atinentes ao processo penal, como ocorre com o
direito à não autoincriminação e com a presunção de inocência, entre outros.
178
35. A cultura hipermoderna se caracteriza pelo enfraquecimento do poder
regulador das instâncias coletivas e pela autonomização dos indivíduos em face das
imposições do grupo, sendo certo que o individualismo exagerado contribui para a
redução das obrigações morais. A busca das aspirações individuais não pode ser
feita a qualquer custo, mas deve ser realizada com responsabilidade, respeitando-se
os direitos dos demais integrantes da sociedade e tendo como limite ético os valores
representados pelos direitos humanos.
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REFERÊNCIAS
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