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 As Relações de Consumo e a Nova Teoria Contratual   /** Gustavo Tepedino Após dois dias de intensos debates, inaugurados pela refinada provocação do Professor Vincenzo Roppo, da Universidade de Gênova, na magnífica noite de quarta-feira,  permanece no ar a pergunta que, de certa forma, norteou nossas reflexões e que posso identificar, ainda presente, na expressão facial dos colegas aqui reunidos: há, de fato, uma nova teoria contratual? Seria consentido entrever uma nova teoria geral dos contratos por força ou no âmbito dos direitos do consumidor? 1  Eu responderia com fórmula aparentemente contraditória - mas só aparentemente contraditória -,dizendo sim e não. Responderia afirmativamente, no sentido de que há alterações profundas dos conceitos jurídicos derivadas do Código de Defesa do Consumidor. Poderíamos dizer, sem hesitar, que aquela percepção da doutrina tradicional, segundo a qual os conceitos jurídicos e a própria dogmática fossem imutáveis, já há muito deixou de prevalecer. A resposta seria negativa, entretanto, se pensarmos que a relativização dos conceitos jurídicos, conquista indiscutível da civilística atual, altera a compreensão do fenômeno jurídico contemporâneo e permeia, portanto, a própria dogmática. No momento  O presente trabalho foi publicado no livro Temas de Direito Civil, 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2004,  pp.217 e ss. ** Conferência de encerramento do IX Curso Brasilcon de Direito do Consumidor realizado na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 26 de setembro de 1996, publicada na Revista de Estudos Jurídicos da PUC-PR, vol. IV, nº 1, agosto 1997, pp. 101–114. As notas de rodapé não existiam na versão original e destinam-se, exclusivamente, a permitir a atualização legislativa e/ou jurisprudencial, mantendo-se, quanto ao mais, a oralidade característica da versão original. 1  A pergunta é renovada e as indagações persistem oito anos depois. Com efeito, as notas de atualização demonstram a importância de se pensar o papel do Código de Defesa do Consumidor para a teoria contratual recém afetada pelo advento do novo Código Civil. Alguns dos princípios contratuais contemplados expressamente no CDC foram introduzidos no Código Civil de 2002, mas, por vezes, sob uma moldura que, em termos comparativos, reduz a suas potencialidades como veículos de concretização dos valores constitucionais. Mais do que nunca, portanto, é importante destacar o papel central a ser reconhecido à  principiologia c onstitucional. Por iss o, penso que a i nvestigação acerca d o papel da Cons tituição no tocant e ao modo de se compreenderem as relações entre o CDC e a teoria dos contratos em geral não só continua atual, como até mesmo se torna, diante do novo Código Civil, ainda mais relevante e urgente.

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 As Relações de Consumo e a Nova Teoria Contratual  /**

Gustavo Tepedino

Após dois dias de intensos debates, inaugurados pela refinada provocação do

Professor Vincenzo Roppo, da Universidade de Gênova, na magnífica noite de quarta-feira,

 permanece no ar a pergunta que, de certa forma, norteou nossas reflexões e que posso

identificar, ainda presente, na expressão facial dos colegas aqui reunidos: há, de fato, uma

nova teoria contratual? Seria consentido entrever uma nova teoria geral dos contratos por

força ou no âmbito dos direitos do consumidor?1

  Eu responderia com fórmula aparentemente contraditória - mas só aparentemente

contraditória -,dizendo sim e não. Responderia afirmativamente, no sentido de que há

alterações profundas dos conceitos jurídicos derivadas do Código de Defesa do

Consumidor. Poderíamos dizer, sem hesitar, que aquela percepção da doutrina tradicional,

segundo a qual os conceitos jurídicos e a própria dogmática fossem imutáveis, já há muito

deixou de prevalecer.

A resposta seria negativa, entretanto, se pensarmos que a relativização dosconceitos jurídicos, conquista indiscutível da civilística atual, altera a compreensão do

fenômeno jurídico contemporâneo e permeia, portanto, a própria dogmática. No momento

∗ O presente trabalho foi publicado no livro Temas de Direito Civil, 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2004, pp.217 e ss.** Conferência de encerramento do IX Curso Brasilcon de Direito do Consumidor realizado na Faculdade deDireito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 26 de setembro de 1996, publicada na Revista deEstudos Jurídicos da PUC-PR, vol. IV, nº 1, agosto 1997, pp. 101–114. As notas de rodapé não existiam naversão original e destinam-se, exclusivamente, a permitir a atualização legislativa e/ou jurisprudencial,

mantendo-se, quanto ao mais, a oralidade característica da versão original.1  A pergunta é renovada e as indagações persistem oito anos depois. Com efeito, as notas de atualizaçãodemonstram a importância de se pensar o papel do Código de Defesa do Consumidor para a teoria contratualrecém afetada pelo advento do novo Código Civil. Alguns dos princípios contratuais contempladosexpressamente no CDC foram introduzidos no Código Civil de 2002, mas, por vezes, sob uma moldura que,em termos comparativos, reduz a suas potencialidades como veículos de concretização dos valoresconstitucionais. Mais do que nunca, portanto, é importante destacar o papel central a ser reconhecido à

 principiologia constitucional. Por isso, penso que a investigação acerca do papel da Constituição no tocante aomodo de se compreenderem as relações entre o CDC e a teoria dos contratos em geral não só continua atual,como até mesmo se torna, diante do novo Código Civil, ainda mais relevante e urgente.

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exato em que rompe com o caráter absoluto dos institutos jurídicos, obriga-nos a considerar

sempre em mutação nossas categorias e teorias, todas historicamente condicionadas. E, sob

este ponto de vista, nem mesmo precisaríamos recorrer ao adjetivo novo para qualificar a

teoria contratual que floresce das relações de consumo, senão apenas para, em homenagem

à retórica ou - vá lá - à didática, enfatizar as transformações ocorridas nesta mesma

dogmática.

Tal processo de transformação, intenso e veloz, justifica uma sensação de crise,

expressa em particular nas conferências do Professor Enzo Roppo e da Professora Claudia

Lima Marques, que nos remetem à inevitável contraposição entre o instrumental teórico

que herdamos do século XIX - e que se perpetua no Código Civil e na manualística -,

totalmente voltado para uma ordem econômica agrária e pré-industrial; es a realidade fática

em que vivemos, industrial ou mesmo - como querem alguns - pós-industrial.De crise ainda se pode falar - sendo-me consentido prosseguir nessa

desalinhavada tentativa de síntese - quando nos damos conta que durante os primeiros 50

anos deste século nos entregamos apaixonadamente à construção de teorias gerais - teoria

geral dos negócios jurídicos, das obrigações, dos contratos e assim por diante - e nos

deparamos com a indiscutível tendência de fragmentação dos conceitos, o estilhaçamento

dos conceitos, para utilizar a expressão germânica tão cara à Professora Cláudia Lima

Marques.

Esse estilhaçar, essa fragmentação ou pulverização deu-se com a propriedade, nos

anos 40; ocorre nas relações familiares, repete-se nos negócios jurídicos e na

responsabilidade civil. O Professor Antônio Junqueira de Azevedo argutamente tem

criticado a revelha lição doutrinária segundo a qual o sistema da responsabilidade civil no

direito brasileiro seria ainda fundado na culpa, constituindo-se a responsabilidade objetiva

em exceção. Ao revés, temos hoje no ordenamento positivo uma realidade dualista,

convivendo como fontes da responsabilidade tanto o ato ilícito quanto as inúmeras

 previsões legais de reparação fundadas no risco da atividade danosa.

Todos os institutos do Direito Civil, a rigor, foram perdendo a estrutura abstrata e

generalizante, em favor de disciplinas legislativas cada vez mais concretas e específicas.

Desse processo por assim dizer de esfacelamento das grandes unidades conceituais não

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 parece der restado indene também a nossa teoria contratual, que tinha como ponto de

referência o Código Civil.

A codificação, como todos sabem, destinava-se a proteger uma certa ordem

social, erguida sob a égide do individualismo e tendo como pilares, nas relações privadas, a

autonomia da vontade e a propriedade privada. O legislador não deveria interferir nos

objetivos a serem alcançados pelo indivíduo, cingindo-se a garantir a estabilidade das

regras do jogo, de tal maneira que a liberdade individual, expressão da inteligência de cada

um dos contratantes, pudesse se desenvolver francamente, apropriando-se dos bens

 jurídicos, os quais, uma vez adquiridos, não deveriam sofrer restrições ou limitações

exógenas.

Garantia-se assim o tráfego jurídico e a propriedade privada, esta considerada

como expressão da liberdade e da personalidade humanas.Tal ordem de coisas, própria do estado liberal, altera-se profundamente no estado

intervencionista do Século XX, onde a atenção do legislador se desloca para a função social

que os institutos privados devem cumprir, procurando proteger e atingir objetivos sociais

 bem definidos, atinentes à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades

culturais e materiais, aspectos hoje aqui ressaltados nas palavras do Professor e magistrado

 Newton De Lucca.

O legislador despe-se do papel de simples garante de uma ordem jurídica e social

marcada pela igualdade formal (conquista inquestionável da Revolução francesa), cujos

riscos e resultados eram atribuídos à liberdade individual, para assumir um papel

intervencionista, voltado para a consecução de finalidades sociais previamente

estabelecidas e tutelando, para tanto, a atividade negocial.

Preocupa-se o legislador em particular com os efeitos perversos gerados pela

isonomia formal, princípio destinado exatamente a acabar com privilégios do regime

anterior mas que, aplicado às relações jurídicas de desigualdade, acabava por consagrar o

 predomínio da parte economicamente mais forte sobre a mais fraca.

Portanto, essa transformação profunda do Direito Civil explica, de certo modo, as

freqüentes expressões de nostalgia manifestadas por juristas tão famosos e relembradas

aqui em diversas conferências, exprimindo exatamente a desconformidade entre a

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intervenção legislativa do Século XX e a estrutura conceitual do século XIX, recepcionada,

ainda hoje, de forma acrítica, na formação cultural do civilista.

 Nessa direção, são eloqüentes a referência de Gilbert à morte do contrato, ou a

mal-humorada sentença de Josserand, segundo o qual os contratos se tornam menos e

menos contratuais; ou a melancólica observação de René Savatier: Elle était si belle et si

simple la notion du contrat dans le Code"...

Todas essas opiniões acabam por assinalar as alterações eminentemente

ideológicas havidas no seio do direito privado, como, de certa forma, demonstra a análise

histórica de Enzo Roppo. São modificações ideológicas que podem servir de pano de fundo

 para a compreensão do momento histórico em que se situa o nosso direito civil e,

 principalmente, para a compreensão crítica das categorias jurídicas postas como imutáveis.

O fato é que a relativização e a historicidade dos conceitos jurídicos parece serhoje uma conquista da dogmática, que favorece muito a compreensão do momento

 presente, retratado, pela quase unanimidade dos conferencistas, através das mais diversas

matizes e lentes, com uma imagem de decomposição das categorias jurídicas.

Tal decomposição conceptual, portanto, coerentemente com as observações até

aqui lançadas, há de ser associada à fragmentação das forças de poder político e do próprio

Estado: o Estado Liberal estava para o Código Civil (tido como a verdadeira Constituição

do direito privado, expressão monolítica de uma ordem de valores inquebrantável) assim

como o Estado Social estará para uma intervenção cada vez mais presente em vários setores

da economia e, em particular, para uma Constituição que o referenda, avocando a si - e este

é um ponto fundamental para a compreensão dos diversos institutos que regem as relações

 privadas -, as normas gerais relativas a praticamente todas as matérias que antes eram

reguladas exclusivamente pelo Código Civil e pela autonomia da vontade.

Família, sucessões, propriedade, empresa, relações e política de consumo, são

temas analiticamente dispostos na Constituição Federal que, dessa forma, fixa normas

 jurídicas hierarquicamente superiores, a impor uma releitura de todos esses setores do

Direito Civil -queiram os não os noltálgicos do ancien régime.

Se nós compreendemos que essa decomposição dos conceitos jurídicos, suscitada

de maneira recorrente em diversos momentos do nosso encontro, corresponde, no fundo, a

uma decomposição da própria intervenção legislativa, marcada por forças políticas

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múltiplas e setoriais, poderemos compreender então o papel que desempenha para o

civilista a Constituição da República e , ainda, a relevância dos princípios constitucionais

em matéria de relações contratuais de consumo para a Teoria Geral dos Contratos.

Com efeito, a Constituição define a tábua axiológica que condiciona a

interpretação de cada um dos setores do direito civil e, por isso mesmo, o ingresso no

Código do Consumidor de princípio coerentes com a nova ordem pública constitucional -

alguns deles tão bem analisados pela Professora Cláudia e por outros colegas aqui presentes

-, por expressarem valores constitucionais, não podem deixar de ser destinados a uma

aplicação em toda a nossa teoria contratual. São dotados de verdadeira vocação

expansionista.

Além dos princípios hoje já mencionados, veja-se o princípio do ressarcimento

integral, tão bem enfrentado por Herman Benjamin na tarde de ontem;2

  tenha-se ainda presente o princípio da interpretação mais favorável à parte que se encontra em situação de

desvantagem,3  abordado em profundidade em mais de um painel; o princípio

importantíssimo da revisão contratual, por excessiva onerosidade, suscitado com o brilho

de sempre pelo Mestre Ricardo César Pereira Lira, que demonstrou a enorme importância

do dispositivo na superação do dogma da autonomia da vontade - na medida em que o

legislador não se limita a autorizar a resolução contratual contra a vontade de uma das

 partes; vai mais além, autorizando a conservação da relação contratual posto que com

conteúdo diverso, revisto pela intervenção judicial.4

 2 Interessante observar a mitigação deste princípio, previsto expressamente no caput  do art. 944 do CódigoCivil de 2002, diante da possibilidade de o juiz determinar, com base em critérios de eqüidade, a redução daindenização devida quando houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa do agente e o danosofrido (parágrafo único).3  No Código Civil de 2002, o princípio referido está presente explícita ou implicitamente em algumasimportantes disposições. Veja-se, neste sentido e exemplificativamente, a anulabilidade do negócio jurídico

 por estado de perigo ou por lesão (arts. 156 e 157); o comando referente aos contratos de adesão, pelo qual prevalecerá a interpretação mais favorável ao aderente no caso cláusulas ambíguas ou contraditórias (art.423),entre outras disposições.4 O Código Civil de 2002 regulou a chamada “resolução por onerosidade excessiva” nos arts. 478 a 480.Contudo, não o fez com a amplitude elogiada no texto, pois estabeleceu várias condições dispensadas peloCDC: a resolução só será possível (i) se os fatos supervenientes causadores da onerosidade excessiva foremde caráter extraordinário e imprevisível, e (ii) se à onerosidade excessiva corresponder “extrema vantagem”

 para o outro contratante. Por outro lado, a revisão (em lugar da resolução) por onerosidade excessivasuperveniente está condicionada, a teor do art.479, a ato de vontade de réu no sentido de oferecer amodificação eqüitativa da equação contratual. Da mesma forma, ao disciplinar a lesão, a opção expressa doCódigo Civil de 2002 foi a de não permitir a revisão judicial salvo quando assim for oferecido pelo

 beneficiário. Contudo, já se percebem os esforços doutrinários no sentido de criar mecanismos hermenêuticoscapazes de justificar uma interpretação diversa, de modo a ampliar as possibilidades de revisão judicial, com

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  Todos esses princípios ingressam em nosso ordenamento após a promulgação da

Constituição de 1988 a qual, consagrando os resultados de um longo processo histórico,

altera radicalmente a ordem jurídica, abandonando o modelo liberal em favor de um Estado

Social.

Deveremos definir, portanto, diante de tais considerações que, de certa forma,

tentam colher a percepção dominante dos colegas nesses dois dias de convivência

científica, qual seria o papel do Código do Consumidor em nosso ordenamento positivo, e

como esses princípios poderiam influir nas relações de consumo e nas relações contratuais

de uma maneira geral, no âmbito do direito privado.

Gostaria de sublinhar aqui, como premissa para tal tarefa interpretativa, a

alteração legislativa profunda acima aludida, determinada pela Constituição, que regula

sem qualquer cerimônia as relações tradicionalmente entregues ao alvedrio da iniciativa privada. Valeria invocar a feliz imagem de Lassale, retomada por Gramsci, do Estado

veilleur de nuit, vigia da noite: um hipotético vigia noturno de uma obra em construção,

com o seu indefectível radinho de pilha, cuja intervenção se limita a bloquear eventuais e

inoportunos invasores. Sua atuação limita-se à repressão do ilícito, sem que sequer lhe

fosse dado conhecer o que se está a erguer naquele canteiro de obras para cuja segurança

ele devota, leal e cegamente, a sua existência.

Com o Estado intervencionista delineado pela Constituição de 1988 teremos,

então, a presença do poder público interferindo nas relações contratuais, definindo limites,

diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela

igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento

econômico, em situação de ostensiva desvantagem.

Tal processo não se dá sem alteração profunda na técnica legislativa, não sendo

 por acaso que se lê, com freqüência, críticas por parte de autores conceituados quanto à

técnica legislativa atual, impregnada de termos técnicos incompreensíveis para o operador

do direito, destituída da clareza de redação que norteava o legislador do passado. Não só.

Protesta-se, ainda, quanto ao excessivo volume de leis especiais, havendo mesmo um

o apoio, por exemplo, no disposto no art. 317 do Código Civil. A aplicação dos princípios constitucionais seráfundamental para nortear interpretações que relativizem esta aparente predominância da vontade comoobstáculo à imposição judicial de uma revisão dos termos contratuais em caso de manifesto desequilíbrio.

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importante jurista italiano que definiu a produção legislativa contemporânea como una

orgia legiferante.

Tal técnica legislativa nada mais é do que a expressão normativa da aludida

complexidade política da vida contemporânea, traduzindo, também neste aspecto, o

esfacelamento daquele Estado monolítico e da tábua de valores que o caracterizava, na

linguagem elegante e monocórdia do código. Não há nada a se fazer contra os fatos.

Cuida-se de processo histórico que tem como característica a produção de

sucessivas e incontáveis legislações especiais peculiares às realidades setoriais.

 No âmbito desta velocíssima evolução, qual o papel interpretativo da

Constituição? A Constituição Federal não pode ser considerada como mero limite ao

legislador ordinário. E nem mesmo como mero limite ao intérprete, reprimindo os atos

ilícitos.A Constituição Federal cuidou analiticamente de diversos institutos do direito

 privado, embora tenha tido o cuidado de fixar, em seus quatro primeiros artigos, os

fundamentos e os princípios da República, de molde a vincular o legislador

infraconstitucional e o intérprete a uma reunificação axiológica que independa da

regulamentação específica de cada um dos setores do ordenamento.

É preciso pois superar os velhos limites das doutrinas do direito constitucional

tendentes a restringir a atuação das chamadas normas programática, não auto-aplicáveis.

Toda regra constitucional é norma jurídica com efeitos imediatos sobre o ordenamento

infraconstitucional.

A Constituição é toda ela norma jurídica, seja qual for a classificação que se

 pretenda adotar, hierarquicamente superior a todas as demais leis da República, e, portanto,

deve condicionar, permear, vincular diretamente todas as relações jurídicas, públicas e

 privadas.

Assim estando as coisas, não parece consentido ao Poder Executivo, ou mesmo

ao Poder Legislativo ordinário e muito menos ao intérprete pretender alterar o Estado social

de direito delineado pelo constituinte sem que antes tratasse de propor, mediante emendas

constitucionais, modificação do ordenamento constitucional. Chega a ser por isso mesmo

impressionante a atitude dos que pretendem, mediante arroubos de convicção pessoal,

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fundar um Estado neo-liberal a despeito dos princípios definidos pelo constituinte e em

 pleno vigor.5

  A Constituição da República rejeita todo e qualquer programa político em

desarmonia com o elenco de princípios fundamentais que consagram o amplo compromisso

social estabelecido em 1988. Trata-se, como todos sabem, de uma carta compromissória,

que serve de delicado ponto de equilíbrio entre as diversas forças políticas nacionais e que,

 por isso mesmo, como observa o nosso querido Professor Clèmerson Merlin Clève, da

Universidade Federal do Paraná, atrai críticas de todos os segmentos sociais. Criticam-na -

afirma ainda o Professor Clèmerson - os progressistas e os conservadores, as alas da direita

e da esquerda, e o fazem justamente porque a Constituição da República não é parcial, não

é o estatuto de um ou outro grupo. Aí exatamente está a sua vulnerabilidade a tantas

objeções críticas e, ao mesmo tempo, a sua maior virtude. Por não ser especificamente deninguém a Constituição é de fato de todos nós brasileiros, e há de ser preservada como

 ponto de equilíbrio do sistema, como disciplinadora de um pacto social multifacetado e

nada linear, cujos valores fundamentais foram claramente delineados e normatizados.

Pois bem: nossa Carta-compromisso recupera essa unidade esfacelada do

ordenamento, esse sistema decomposto e, para tanto, tem incidência direta nas relações

 privadas. Negar esta premissa metodológica, como tem ocorrido predominantemente na

doutrina pátria, significa incidir em verdadeira inversão hermenêutica, uma espécie de leito

de Procusto que, como na mitologica grega, procura reduzir nos estreitíssimo leito de ferro

da legislação ordinária a pujante enunciação normativa estabelecida pelo Texto

constitucional.

 Não se pode pretender adaptar a Constituição ao Código civil, sendo

indispensável proceder no sentido inverso, de modo a reler e forjar todo o tecido

infraconstitucional sob o manto inovador e vinculante do Texto Maior.

 No que toca à Teoria Contratual, tal operação só se faz possível se os civilistas

lograrem superar vetusto preconceito, caracterizado pelo apego desmesurado à técnica da

5 A despeito das numerosas emendas à Constituição aprovadas desde então, não me parece que tais emendastenham afetado a base axiológica que funda a ordem constitucional em vigor, a qual, em matéria contratual,decorre do disposto no art. 170 da CF e, muito especialmente, do arts. 1º a 4º, que são os preceitosfundamentais da ordem jurídica e, portanto, os mais importantes do ponto de vista interpretativo.

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norma regulamentar. Parece que nós não conseguimos nos sentir destinatários de normas

 jurídicas que não desça a especificidades do caso concreto.

A ideologia da completude, ou a presunção de dominarmos uma ciência que se vê

onipresente e auto-suficiente nos faz indenes e impassíveis diante de normas gerais. Trata-

se de apego exagerado a uma regulamentação impensável no dinâmico e complexo mundo

contemporâneo, não sendo mais consentido restarmos paralisados a espera de uma

específica norma jurídica que explique, por exemplo, o que são juros, que defina, no plano

infraconstitucional, como as relações privadas devem absorver os efeitos jurídicos

estabelecidos, às vezes de forma expressa e inequívoca, pelo legislador constitucional.6

  Nos dias de hoje, a necessidade de se dar efetividade plena às cláusulas gerais

faz-se tanto mais urgente na medida em que se afigura praticamente impossível ao direito

regular o conjunto de situações negociais que floresce na vida contemporânea, cujosavanços tecnológicos surpreendem até mesmo o legislador mais frenético e obcecado pela

atualidade.

Trata-se de constatação indiscutível, que impõe ao intérprete uma mudança de

atitude, sob pena de sucumbir à realidade social, perplexo e inerte à espera de uma mítica

intervenção legislativa, encerrado em abstrações concernentes a um modelo ideal de

sociedade.

Dito diversamente, incapaz de disciplinar todas as inúmeras situações jurídicas

que florescem na esteira dos avanços tecnológicos, o legislador vale-se da técnica das

cláusulas gerais.

A difusão das cláusulas gerais coincide, curiosamente, com a já mencionada

multiplicação e decomposição dos institutos. Ou seja, mais e mais se focaliza cada um dos

tipos contratuais em detrimento da teoria geral do negócio jurídico, ao mesmo tempo em

que o legislador se vale de cláusulas gerais, sem a pretensão de ser exaustivo, na

regulamentação dos institutos. A fragmentação dos conceitos, portanto, é acompanhada de

6 Originalmente, o texto continha uma implícita alusão à regra do § 3º do art. 192 da Constituição Federal, quefixava um limite à cobrança de juros nos seguintes termos: “Art. 192, § 3º. As Texas de juros reais, nelasincluídas as comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão decrédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituadacomo crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Os argumentosacima, que justificam a crítica à posição do STF (ADI-04) no sentido de negar auto-aplicabilidade à referidaregra subsistem, mas apenas em tese. É que, concretamente, a aludida limitação à cobrança de juros acima de12% ao ano não vigora desde entrada em vigor da Emenda à Constituição nº 40, de 29 de maio de 2003.

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técnica legislativa que se utiliza de cláusulas gerais, exatamente para que o intérprete tenha

maior flexibilidade no sentido de, diante do fato jurídico concreto, fazer prevalecer os

valores do ordenamento em todas as situações novas que, desconhecidas do legislador,

surgem e se reproduzem como realidade mutante na sociedade tecnológica de massa.

Tal alteração metodológica implica a superação de outro grande equívoco, já

acima acenado, em que incorrem os operadores do direito e os civilistas em particular: a

consideração dos princípios constitucionais como meros princípios gerais de direito, não

como normas jurídicas diretamente aplicáveis aos casos concretos. O Código Civil seria o

verdadeiro estatuto constitucional do direito privado, de tal modo que os princípios

constitucionais, além de funcionarem como limite ao legislador ordinário, se constituiriam

em princípios gerais de Direito, utilizados de maneira apenas indireta pelo intérprete.

Ora, o constituinte de 1988, não satisfeito em fixar normas gerais em cadacapítulo da Constituição, deu-se ao trabalho de estabelecer regras precedentes (até mesmo

do ponto de vista de sua localização topográfica) a todas as outras, que definem a tábua de

valores do ordenamento jurídico brasileiro. Tais normas constitucionais, em particular

aquelas dispostas nos arts. 1o a 4o, são os preceitos fundamentais da ordem jurídica e,

 portanto, as mais importantes do ponto de vista interpretativo, a menos que se quisesse

atribuir ao constituinte o papel de dispor palavras inúteis, ou ociosas - o que seria

tecnicamente absurdo.

Daqui decorre que a consideração de tais normas como princípios gerais de

direito significaria adotá-las, nas relações privadas, somente na hipótese de inexistir lei

infraconstitucional prevista especificamente para o caso concreto, ausente ainda a

 possibilidade de analogia e sendo impossível recorrer aos costumes, nos termos do art. 4º,

da Lei de Introdução ao Código Civil.

De fato, segundo tal dispositivo, "Quando a lei for omissa o juiz deve decidir o

caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito". Isto significa

que, equiparando os princípios constitucionais aos princípios gerais de direito, os civilistas

acabam por fazer incidir a Constituição Federal nas relações de direito privado de maneira

remota, secundária, residual.

Em outras palavras, diante de normas constitucionais que fixam os fundamentos e

os princípios da República, o operador do direito, sem qualquer cerimônia, prefere a lei

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ordinária, a analogia, os atos normativos menores como Portarias, Decretos ou Resoluções

de órgãos de classe; prestigia ainda os costumes arraigados na sociedade, inda que

retrógrados, em detrimento das normas constitucionais. Só então, esgotadas todas as

 possibilidades interpretativas, recorre ao Texto constitucional, às normas postas no vértice

do ordenamento.

A Carta constitucional não se constitui em mera Carta política, como querem

muitos, revestindo-se ao revés no mais importante diploma jurídico dentro da hierarquia do

ordenamento Disso resulta que os princípios dispostos na Constituição devem sobrepor-se,

na atividade de aplicação de interpretação das leis, a toda e qualquer norma

infraconstitucional, consideradas portanto como normas jurídicas com precedência sobre o

código civil, a legislação especial, a analogia e os costumes, não se confundindo, em

qualquer hipótese, com os princípios gerais de direito de que trata o aludido art. 4o da Leide Introdução.

Se tais considerações são verdadeiras - como me parecem - delas resultam a

necessidade de moldar as normas legais e contratuais, sobretudo na era das cláusulas gerais,

aos valores expressos nos princípios constitucionais - que não são princípios gerais de

Direito, mas normas jurídicas diretamente aplicadas às relações privadas. É de se controlar,

então, a validade científica da afirmação tantas vezes repetida nesse encontro e em nosso

meio, segundo a qual o código do consumidor seria um micro-sistema.

Será mesmo o Código do Consumidor um micro-sistema?

Todos nós usamos essa expressão, cunhada com argúcia pelo Professor Natalino

Irti, da Universidade de Roma, nos anos 70, e difundida no Brasil pelo saudoso professor

Orlando Gomes, de cuja viva inteligência não escapava qualquer nova construção jurídica.

Segundo essa importante elaboração doutrinária, os últimos vinte anos assistiram

à transformação, no âmbito do direito privado, do mono-sistema, centralizado pelo Código

Civil, para o poli-sistema, próprio da sociedade pluralista contemporânea, na qual se desfaz

a unidade política, ideológica e legislativa representada pela codificação, dando lugar ao

conjunto de leis setoriais. Vale-se então o brilhante professor italiano de imagem da

astronomia, configurando um sistema onde o Código Civil representaria o centro do

universo - com o qual se identificava no passado a totalidade dos segmentos sociais -,

situação alterada radicalmente pela identificação dos microcosmos legislativos, que

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rompem com a antecedente unidade, formando um conjunto de diversos sistemas

autônomos, a constituir, exatamente, o poli-sistema.

 No campo do direito civil, a imagem revelaria, com força retórica impressionante,

a perda do papel unificante do Código civil, e a formação dos micro-sistemas legislativos,

caracterizados por valores e técnica legislativa peculiares, a anunciarem a era dos estatutos.

Tais estatutos, dos quais o nosso Código do consumidor seria o exemplo mais

típico na experiência brasileira, regulariam inteiramente os diversos setores da economia.

 Não se limitam à especialização de certas matérias mas, muito mais profundamente, cuidam

de inteiras áreas de atuação do direito, criando novos ramos, disciplinados por regras não só

de direito civil mas também de direito administrativo, direito penal, processual civil e

 processual penal.

Sem embargo da significativa contribuição que trouxe, seja pela reconstituiçãohistórica que propiciou, seja pelo aporte didático de que é imbuída, tal elaboração

doutrinária, pouco conhecida na sua integralidade pelos juristas brasileiros, acarreta

 perigosas conseqüências práticas no campo da interpretação das leis e dos negócios

 jurídicos. Pretende Irti, em verdade, que cada microssistema se feche em si mesmo, sendo

auto-suficiente do ponto de vista hermenêutico, já que cada estatuto traz normalmente os

 próprios princípios interpretativos.7 No caso brasileiro, bastaria pensar nos diversos artigos

do Código do consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente para constatar esta

realidade.

Assim é que tanto o processo de analogia legis como o de analogia iuris far-se-

iam no âmbito do micro-sistema. A Constituição teria o papel de fixar princípios gerais a

serem obedecidos pelo legislador de cada um dos estatutos, determinando os objetivos a

serem alcançados nos diversos setores da economia e os limites que deverão ser respeitados

no âmbito da reserva legal.

A tese geraria conseqüências inquietantes. Se admitirmos que cada setor da

economia, através das conhecidas pressões política que atuam no Parlamento, produza leis

7 Em edição comemorativa dos vinte anos de sua obra clássica  L’etá della decodificicazione, Natalino Irtidiscorre sobre a crise atual das Constituições, que levaria, segundo o autor, a uma necessária revisão dodiagnóstico feito originalmente: hoje, o papel central do Código Civil teria sido revigorado. Para uma análisecrítica deste seu posicionamento, seja consentido remeter para o meu “Do Sujeito de Direito à PessoaHumana”, editorial publicado na  Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 2, Rio de Janeiro: PADMA, abr.-

 jun. 2000.

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com tais caraterísticas, e que a atividade interpretativa se vincule exclusivamente à lógica

setorial - imaginemos os conflitos de interesses entre fornecedores e consumidores, entre

locadores e locatários, entre latifundiários e camponeses, e assim por diante - leis que mais

e mais se tornam leis-contratos, leis negociadas, compromissos setoriais, estaremos a

admitir uma sociedade inteiramente fragmentada, sem a espinha dorsal de princípios supra

setoriais.

Tomemos o Código de Defesa do Consumidor. Podemos até mesmo designá-lo

como um micro-sistema por concessão didática, posto que não deixemos de considerá-lo

como peça de uma inteira engrenagem, na qual os valores são definidos no ápice da

hierarquia normativa: estão incrustados na Constituição da República, cujos princípios

fundamentais hão de ter precedência na atividade interpretativa sobre quaisquer outros.

Condicionam até mesmo a leitura do artigo 170, C.F., em matéria de atividade econômica privada, e dos princípios específicos relacionados à política do consumo e tutela do

consumidor.

Por que teria o constituinte utilizado a técnica dos princípios fundamentais? Por

que teria anteposto aos princípios de cada capítulo os dos artigos 1º ao 4º, C.F.? Teria sido

exercício de mera retórica, visando a impressionar os eventuais leitores da Constituição? E

ao intérprete, seria consentido considerar como palavras vazias o texto normativo? Não,

não e não. Cuida-se de normas jurídicas, das quais decorre o impostergável dever do

Estado, insculpido no artigo 3º, inciso III, C.F., em relação à justiça distributiva, à

erradicação da pobreza e à diminuição das desigualdades sociais e regionais. E ainda o

objetivo central da República na efetivação de uma sociedade em que se privilegie o

trabalho, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, nos termos do artigo 1º, inciso III,

C.F.

As conseqüências de tais afirmações não são secundárias nem irrelevantes.

Significam, em termos práticos, que o exame de cláusula contratual não poderá se limitar

ao controle de ilicitude, à verificação da conformidade da avença às normas regulamentares

expressas relacionadas à matéria. A interpretação deverá, para além do juízo de licitude,

verificar se a atividade econômica privada atende aos valores constitucionais, só merecendo

tutela jurídica quando a resposta for positiva. E tal critério se aplica não só às relações de

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consumo mas aos negócios jurídicos em geral, ao exercício do direito de propriedade, às

relações familiares e ao conjunto de relações de direito privado.

Tais resultados descartam a possibilidade de se imaginar o consumidor inserido

em um mundo à parte do ordenamento, estremado de outros submundos, quadro assustador

que permitiria, por exemplo, que a subsunção de certa relação jurídica na disciplina das

locações ou no código do consumidor pudesse significar resultados diferenciados em

termos de proteção à pessoa humana que, em última análise, é a protagonista de toda e

qualquer relação contratual.

Imagine-se certa hipótese em que o intérprete tenha que se decidir entre aplicar a

disciplina das locações, com resultado desastroso para o interesse do locatário ou, ao

reverso, considerar este mesmo locatário como um consumidor, passando assim a atrair,

 por um passe de mágica, a proteção da ordem jurídica em favor dos mesmíssimos valoresameaçados na relação locatícia!

Tal distorção definitivamente não é aceitável sob a ótica do direito civil-

constituiconal. Os valores que presidem o ordenamento necessariamente são os mesmos.

Concordo com as intervenções que me antecederam no sentido de que,

normalmente, uma relação de locação não é uma relação de consumo, salvo se presentes os

 pressupostos caracterizadores da figura do consumidor. Acredito, entretanto, que será

 possível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor mesmo em situações em que não

haja propriamente uma relação de consumo, desde que identifiquemos os pressupostos

essenciais de hipossuficiência que justificam e dão legitimidade normativa à tutela do

consumidor. Este, antes de ser consumidor é pessoa humana, para cuja proteção volta-se

inteiramente o constituinte. Cuida-se de localizar, portanto, os pressupostos essenciais que,

segundo o Código de Proteção do Consumidor, são necessários e suficientes para atrair uma

série de princípios em defesa do sujeito de direito em situação de inferioridade.

E aqui seja consentido fazer minhas as palavras tão felizes e iluminadas do

Professor Antônio Junqueira de Azevedo, que sustentou ontem a difusão em nossa

dogmática contratual do princípio da boa-fé, introduzido pelo Código do Consumidor. E

isso deve se dar nem que seja para suprimir uma lacuna secundária, integrando assim a

nossa teoria geral dos contratos.

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  Lacuna secundária, vale repisar, na medida em que na época da promulgação do

Código Civil não havia ainda o princípio, inserido no ordenamento posteriormente. Posto

concordar com tal assertiva, permito-me propor um passo adiante. Acredito que essa

tendência à abrangência que, repito, tem a sua explicação científica no fato da Constituição

definir valores que devem suscitar a analogia nas hipóteses de identidade de ratio, parece

ser favorecida pelo próprio legislador do Código do consumidor. Tenha-se presente o artigo

17 e artigo 29, Código do Consumidor. O artigo 17, em tema de responsabilidade civil e o

artigo 29 em tema de proteção contratual contra cláusulas abusivas. De certa maneira, tais

 preceitos já nos indicam que a proteção dispensada à relação de consumo stricto sensu, com

a perfeita caracterização do consumidor e do fornecedor, não poderia ser suficientemente

efetivada se não se expandisse o espectro dessa tutela para um momento pré-contratual e

 para uma fase pós-contratual - lembrada também pelo Professor Junqueira na tarde deontem -; e, ainda, para as situações cujos sujeitos pudessem ser considerados stand by-

como já se disse ontem - ou consumidores equiparados, ou seja, aquelas pessoas que

estivessem em situação de desvantagem em decorrência de uma relação de consumo,

embora nesta não inseridas.

 Não acredito que pudéssemos, como pretendem alguns valorosos colegas, a partir

apenas desses dois artigos, dar uma dimensão generalizante às regras ali emanadas,

extraindo interpretação que vá além das vítimas na responsabilidade por acidente de

consumo e daquele que está prestes a se tornar consumidor ou que potencialmente é

consumidor.

Entretanto, mediante a aplicação direta dos princípios constitucionais nas relações

do Direito Privado, devermos utilizar o Código do Consumidor, quer em contratos de

adesão, mesmo quando não se constituam em relação de consumo,8 quer nas circunstâncias

contratuais em que se identificam, pela identidade de ratio, os pressupostos de legitimação

da intervenção legislativa em matéria de relações de consumo: os princípios da isonomia

substancial, da dignidade da pessoa humana e da realização plena de sua personalidade

8  O Código Civil de 2002 passou a disciplinar os contratos de adesão, reconhecendo no aderente umcontratante merecedor de uma tutela especial (arts. 423 e 424). Contudo, a definição de “contrato de adesão”

 permanece sendo a constante do CDC (art. 54). Os argumentos acima no sentido da possibilidade de, sobcertas circunstâncias, aplicar analogicamente o CDC a contratos de adesão que não sejam relações deconsumo sobreviveram ao advento do Código Civil. A disciplina do CDC, mais pormenorizada e sistemática,

 poderá ser invocada para o efeito de suprir as deficiências do Código Civil na tutela do aderente em condiçãode inferioridade.

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 parecem ser os pressupostos justificadores da incidência dos mecanismos de defesa do

consumidor às relações interprivadas.

Verifica-se então que os princípios inovadores nesses dois dias analisados - a

interpretação mais favorável, a inversão do ônus da prova diante da verossimilhança do

 pedido ou da hipossuficiência, a proteção da boa-fé objetiva, cujo sentido a jurisprudência

tem conseguido perceber, dentre outros - vão sendo mais e mais associados não à

qualificação do consumidor como um status, uma espécie de salvo-conduto para o exercício

de atividades econômicas, mas à preocupação constitucional com a redução das

desigualdades e com o efetivo exercício da cidadania, perspectiva que não poderia deixar

de compreender, segundo a vontade normativa do constituinte, todas as relações

consideradas de direito privado.

Em conclusão, parece-me chegada a hora de buscarmos a definição de umconjunto de princípios ou de regras que se constituam em normas gerais, a serem utilizadas

não de maneira isolada em um ou outro setor, mas de modo abrangente, em consonância

com as normas constitucionais, para tornar possível, só então e a partir daí, construir o que

 poderia ser uma nova teoria contratual, ou - porque não? -, a teoria contratual revitalizada,

constitucionalizada, e até despatrimonializada, relativizada pela tensão dialética incessante

entre a produção legislativa e a atividade econômica.

Uma última referência ao problema aqui tratado por diversos conferencistas e, em

 particular pelo Professor Newton De Lucca, relativo à aplicação do Código do consumidor

às relações contratuais continuativas celebradas antes de sua entrada em vigor.

O problema tem sido suscitado nos conflitos atinentes aos planos de saúde, aos

contratos de fornecimento de mercadoria, aos financiamentos de crédito imobiliário. A

 jurisprudência, particularmente a do Superior Tribunal de Justiça, em nome da garantia

constitucional do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, tem entendido que não se aplica o

Código de Defesa do Consumidor a tais relações.9  Não estou convencido, contudo, do

acerto de tal posição.

9 Neste sentido, STJ, Resp. nº. 135550, Relator Min. Eduardo Ribeiro, 3ª T., j. 27/03/2000, DJ 05/03/2001 “II – De acordo com a jurisprudência pacífica do Tribunal, não se aplica o Código de Defesa do Consumidor aoscontratos celerados antes de sua vigência, permanecendo válida a cláusula que institui a perda total das

 prestações pagas em caso de inadimplemento, principalmente quando não prequestionada a possibilidade deredução da pena, prevista no artigo 924 do CPC”. Fato é que, mesmo quando a solução é em favor doconsumidor, se percebe o cuidado em justificar a aplicação de princípios consagrados expressamente no

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  Não há, como todos sabem, um princípio constitucional que vede a retroatividade

dos efeitos da lei nova, de modo a alcançar, de alguma forma, situações jurídicas

constituídas sob a égide da lei antiga. O que há é a garantia do respeito às situações

constituídas no passado e aos efeitos que, produzidos pela lei antiga, tenham já se

incorporado, em definitivo, ao patrimônio individual.

Por outro lado, as leis atinentes à ordem pública, como o Código do consumidor,

quando exprimem um juízo de reprovação em face de certo comportamento ou atividade,

revelam a incompatibilidade deste mesmo comportamento ou atividade com a ordem

 jurídica atual, a reclamar, com urgência, sejam tais práticas efetivamente banidas do

convívio social.

Daí porque dever-se interpretar restritivamente a noção de direito adquirido, de

molde a que não alcance, em qualquer hipótese, os efeitos futuros de negócios jurídicosque, posto praticados legalmente no passado, são hostilizados pela lei nova. Até a entrada

em vigor desta, há de se proteger os efeitos produzidos pelo ato jurídico perfeito, sempre

Código do Consumidor a contratos anteriores com base, não no argumento de que estes devem aplicar-seimediatamente aos contratos em curso, mas no argumento de que tais princípios já se encontravam presentesno ordenamento jurídico, embora tenham se tornado explícitos somente a partir de 1990 (neste sentido,reconhecendo a validade de cláusula que estipulara a perda das prestações, decidiu o STJ que tal penalidade

 poderia, no momento em que o contrato foi celebrado: “Inaplicável o Codecon aos contratos celebrados antesde sua vigência, de acordo com orientação predominante, e mantida a validade da cláusula que permite aretenção das prestações pagas, é possível a redução judicial para um percentual adequado às circunstâncias docontrato”. (Resp nº 111092, STJ, 4ª T., Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 04/03/1997; v. ainda, nestemesmo sentido STJ, Resp. n° 303240, Relatora Min. Nancy Andrigui, j. 02/08/2001). O tema é complexo e

 permanece sendo controvertido no âmbito do STJ. A existência de decisões publicadas recentemente adeterminar a aplicação do Código do Consumidor a contratos em curso, mesmo que anteriores à entrada emvigor da nova lei, demonstra que o assunto ainda não está pacificado. Neste sentido: “2. A jurisprudência daCorte admite a revisão dos contratos anteriores para afastar eventuais ilegalidades consolidadas no contratoatual” (STJ, AgResp 514394 / RS, DJ 15/09/2003, 3ªT., Relator Min. Carlos Alberto Menezes Direito); eainda: “1. Nos contratos de execução continuada aplica-se o CDC (...)” (STJ, Resp 331860 / RJ; DJ05/08/2002, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 28/05/2002). A questão foi muito discutida a

 propósito da aplicabilidade ou não da redução da multa moratória de 10% para 2%, tal como definida pela Leinº 9.298/96, que modificou o CDC. A jurisprudência dominante no âmbito do STJ, neste particular, é nosentido da aplicabilidade somente a contratos celebrados posteriormente (neste sentido, STJ, REsp. nº 448222/ MT, DJ 17/02/2003, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior). Contudo, em decisão de 17 de dezembro de 2002, o

STF entendeu, especificamente a respeito da redução da mula, que a aplicação imediata aos contratos emcurso não seria inconstitucional: “Cláusula contratual que prevê multa em caso de inadimplência nocumprimento da obrigação. Incidência de lei superveniente que reduziu o percentual da penalidade. Violaçãoa ato jurídico perfeito e a direito adquirido. Inexistência. O direito à cobrança da multa somente ocorrerá se severificar a hipótese autorizada em lei. Agravo regimental não provido.” (STF, RExt. Nº 281415 AgR / DF, 2ªT., Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 17/12/2002). Neste contexto, deve ser realçada a posição tomada pelo novoCódigo Civil, ao estabelecer no art. 2.035 que os efeitos de contratos anteriores devem subordinar-se à novalei, dispondo ainda, no parágrafo único, que nenhuma convenção prevalecerá se contrária à função social da

 propriedade e do contrato ou a demais preceitos de ordem pública contidos no Código. Aparentemente, estasolução legislativa é contrária à tendência jurisprudencial mais disseminada, conforme acima exemplificado.

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que definitivamente incorporados ao patrimônio de alguém. Cuidando-se, entretanto, de

relações de trato sucessivo, pretender fazer prevalecer por anos a fio, projetada para o

futuro, a produção de efeitos e a incorporação de novos efeitos no patrimônio individual,

 por força de comportamento ou atividade que a sociedade considera nocivos ao convívio

social, parece-me excessivo. Mais que excessivo, parece-me a deliberada subversão da

vontade constitucional.10

  Imagine-se a regra do art. 51, do Código do consumidor, que considera abusiva

uma série de práticas que, a partir de determinado momento, a sociedade rejeita,

hostilizando-as. Imagine-se o instituto da lesão, introduzido pelo art. 6º no nosso Código do

consumidor. Pareceria razoável que um contratante continue a se valer, durante cinco ou

dez anos após a promulgação da nova lei, como vem acontecendo de fato, de cláusulas

abusivas impostas unilateralmente, ou de pactos que consagram lesão enorme, ano apósano, a despeito do juízo negativo expresso pela sociedade em lei de ordem pública, tudo

isso em nome do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito ? A resposta só pode ser

negativa.

Tenho como justo o antigo brocardo segundo o qual a interpretação não pode

levar ao absurdo. A garantia do direito adquirido pretende trazer estabilidade ao sistema,

não podendo ser tolerada a posição doutrinária que, no afã de prestigiar tais garantias

constitucionais, engessa o ordenamento, veda as reformas legislativas, impede o

mecanismo democrático de transformação social pelo processo legislativo.

Tenho para mim que, nos contratos de trato sucessivo, o direito adquirido é

aquele relativo aos efeitos já produzidos e incorporados ao patrimônio do contratante no

momento em que entra em vigor a nova lei, devendo prevalecer sob a incidência da lei

antiga apenas os efeitos da prestação e da contraprestação correspondentes ao módulo

temporal (caracterizador da periodicidade do negócio) em curso. À consecução da

 prestação periódica parece ter direito adquirido o titular da correspondente contraprestação.

10  Destaque-se, uma vez mais (v. nota 9), que esta mesma posição, embora polêmica, se encontra hojeincorporada ao art. 2.035 do Código Civil de 2002, verbis: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos,constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art.2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvose houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção

 prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código paraassegurar a função social da propriedade e dos contratos.”

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  Não posso concordar, portanto, com a jurisprudência que se recusa a aplicar o

Código do Consumidor em relações continuativas, ao argumento de que haveria direito

adquirido do contratante ao regulamento contratual estabelecido pela lei antiga.

Em conclusão, e após ouvir com grande proveito o conjunto excepcional de

contribuições trazidas pelos ilustres colegas nesses dois dias de convivência, gostaria de

sublinhar a necessidade de utilizarmos sem restrições os princípios que foram introduzidos

 pelo Código do Consumidor, uma vez superada a trabalhosa etapa de sua consolidação no

sistema jurídico brasileiro. Mas é preciso que tenhamos em mente que tais princípios

traduzem a tábua axiológica de um sistema constitucional, não de um micro-sistema

fragmentado, que mais faria lembrar uma espécie de gueto legislativo. A força do código

não se reduz às suas próprias normas, localizando-se, sobretudo, na ordem constitucional

que o fundamenta e o assegura.Somente a partir desta reunificação do ordenamento, que supere os compartimentos

estanques em que foram divididos os ramos do direito no passado e a dicotomia entre o

direito público e o direito privado poderemos antever uma teoria contratual compatível com

o momento presente, sendo, então, pertinente lembrar Fredrieck Kessler que, debatendo

com Gilmore - tão citado aqui por ter vaticinado a morte do contrato -, respondeu-lhe: O

contrato é morto, viva o contrato!