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DIREITO E - revistadpergs.org.br · Apresentação Gostaríamos de agradecer a participação e receptividade desta nossa coletânea de artigos que, neste ano, segue para a sua segunda

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  • DIREITO E DESENVOLVIMENTO:

    um diálogo entre saberes

  • ORGANIZADORAS

    Alini Bueno dos Santos Taborda

    Gabriela Felden Scheuermann

    DIREITO E DESENVOLVIMENTO:

    um diálogo entre saberes

    TOMO 2

    CERRO LARGO/RS

    2020

  • Organizadoras

    Alini Bueno dos Santos Taborda

    Gabriela Felden Scheuermann

    Revisão

    Gabriela Felden Scheuermann

    Capa

    Ana Maria Ben

  • SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO

    1. A continuidade das práticas autoritárias nas agências punitivas apesar da Constituição Federal de 1988…...…07

    Mário Silveira Rosa Rheingantz

    2. A reprodução humana assistida post mortem e seus reflexos jurídicos perante a Constituição Federal e o Direito Sucessório……………………………………….….28

    Simone da Silva Teixeira

    Tiago Griebeler da Silva

    3. Empoderamento social e realização da cidadania por meio da mediação comunitária...........................................71

    Charlene Dewes Dornelles

  • 4. Empresas transnacionais e Direitos Humanos: uma análise da responsabilidade social por meio dos códigos de conduta.............................................................................109

    Gabriela Felden Scheuermann

    5. A discriminação aos trabalhadores migrantes nas relações laborais no âmbito da União Europeia............154

    Ellara Valentini Wittckind

    6. Direito Penal Comparado e regulação excludente dos fluxos migratórios................................................................204

    André Leonardo Copetti Santos

    Evelyne Freistedt Copetti Santos

    7. A presunção de laboralidade do Código de Trabalho de Portugal e os indícios da relação de trabalho subordinado..........................................................................248

    Bóris Chechi de Assis

    8. Considerações acerca dos danos morais frente ao Código Civil..........................................................................288

    Bruno Friedrich Rohleder

    Alini Bueno dos Santos Taborda

  • 9. O Código de Processo Civil e o impacto do novo dimensionamento conferido ao negócio jurídico processual em seu artigo 190.............................................313

    Lara Lis Baumgartner Graber

    Renzo Thomas

    10. Da possibilidade do inventário e partilha do bem de família convencional...........................................................372

    Marcos Costa Salomão

    Karin Fabiane Fritzen Viana

  • Apresentação

    Gostaríamos de agradecer a participação e

    receptividade desta nossa coletânea de artigos que, neste

    ano, segue para a sua segunda edição (Tomo II). Nosso

    objetivo é de unir a URI de Cerro Largo com a

    comunidade e região por meio da difusão de

    conhecimentos.

    Na primeira edição (2019), o livro foi criado para

    marcar a consolidação do Curso de Direito na cidade de

    Cerro Largo, mas para além disso, hoje, o livro busca

    conectar diferentes saberes, de diferentes áreas e

    temáticas, para provocar um diálogo de conhecimentos

    entre acadêmicos, professores e comunidade.

    Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes é

    composto por dez textos que, de uma forma ou de outra,

    estão interconectados. Considerando que esta coletânea de

  • artigos foi elaborada a várias mãos, o (a) leitor(a)

    perceberá que os temas abordados perpassam por

    diversas áreas. Para facilitar a leitura, eles foram

    agrupados por assuntos afins em dois blocos.

    No primeiro bloco de artigos, os temas relacionam-

    se com questões constitucionais, penais, internacionais e

    do trabalho. No segundo bloco, os temas interligam-se por

    questões de Direito Civil e de Processo Civil.

    Destacamos que os textos que dão vida a esta obra

    são decorrentes de pesquisas realizadas por professores e

    acadêmicos dos Cursos de Graduação da URI de Cerro

    Largo e também de professores e colaboradores

    convidados.

    Desejamos a todos(as) uma excelente leitura. Que

    possamos contribuir com provocações, reflexões e

    conhecimento!

    As organizadoras.

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    A CONTINUIDADE DAS PRÁTICAS AUTORITÁRIAS NAS AGÊNCIAS PUNITIVAS APESAR DA

    CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

    Mário Silveira Rosa Rheingantz1

    Resumo: O Brasil viveu um período de Ditadura civil-militar de 1964/1985, o qual, ao fim passou por um processo de transição decorrente de um acordo de elites que culminou na Constituição de 1988. Apesar de uma Constituição formalmente garantista, o país não foi capaz de livrar-se da cultura autoritária nas práticas das agências Punitivas, o que se deve, em certa medida, a ausência de uma justiça de transição satisfatória e à continuidade de agentes membros das agências punitivas do regime ditatorial no regime democrático.

    Palavras-chave: Ditadura. Justiça de transição. Constituição. Direitos Fundamentais. Poder punitivo.

    Sumário: Introdução. 1 – Uma Constituição “garantista” – a expectativa de uma barreira ao autoritarismo na Constituição Federal de 1988. 2 – “Uma transição lenta, gradual e segura – a ausência de ruptura institucional e de

    1 Defensor Público Estadual do Rio Grande do Sul. Diretor de Ensino

    da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Especialista e mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS.

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    responsabilização pelos danos causados pelo Estado e seus Agentes na ditadura civil militar de 1964/1985 no Brasil. 3 – A manutenção da cultura autoritária – inefetividade dos limites constitucionais ao poder punitivo estatal. Conclusão.

    Introdução

    O presente artigo visa abordar a relação entre o período da ditadura civil militar de 1964/1985 no Brasil, somada à falta de responsabilização quanto aos danos causados pelo Estado e por seus agentes até os dias atuais, com a inefetividade material dos Direitos Fundamentais que impõe limites ao exercício do poder punitivo estatal. Busca-se verificar se a ocorrência de um processo de transição sem ruptura, com a realização de um acordo feito “por cima”, pelas elites brasileiras que englobou a manutenção de uma política econômica de matriz neoliberal e a não responsabilização de agentes públicos e privados nos crimes praticados pela ditadura, com a chancela do poder judiciário, influenciam na manutenção de uma cultura autoritária que permanece até os dias atuais, especialmente voltada à repressão das camadas mais pobres da população brasileira.

    1 Uma Constituição “garantista” – a expectativa de uma barreira ao autoritarismo na Constituição Federal de 1988

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    A ideia de Estado de Direito pode, do ponto de vista programático, partir do referencial da oposição ao Estado absolutista, a fim de conferir, a partir do ponto de vista normativo, legitimidade e autoridade a um poder soberano, ao mesmo tempo em que lhe limita em termos de funções e competências repulsando a arbitrariedade (FRANKENBER, 2018, p. 81). Contudo, não adentrando no processo histórico que atinge o atingimento da concepção de Estado Democrático de Direito, pode se afirmar que essa oposição ao absolutismo, na perspectiva do constitucionalismo não significa a ditadura da maioria. O grande paradoxo do Constitucionalismo, aliás, é justamente tornar-se, também, um mecanismo de contenção contra a vontade das maiorias (STRECK, 2014, p. 84). Talvez o paradoxo de servir como limite de contenção – não somente – mas inclusive contra a vontade da maioria é que seja o grande questionamento que pode causar perplexidade, na medida em que se questiona o porquê de uma nação que constitui o seu Direito com base na legitimidade democrática abdicar da possibilidade de tomar decisões cuja vontade é manifestada pela sua maioria, em favor de limites impostos em um pacto fundante (STRECK, 2014). Nesse sentido, Lênio Streck (STRECK, 2014, p. 85) afirma que

    Se se compreendesse a democracia como a prevalência da regra da maioria, poder-se-ia afirmar que o constitucionalismo é

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    antidemocrático, na medida em que este “subtrai” da maioria a possibilidade de decidir determinadas matérias, reservadas e protegidas por dispositivos contramajoritários.

    Alerta-se, no entanto, para que não se caia no reducionismo da alegação de que haveria uma tensão inconciliável entre democracia e constitucionalismo. A democracia formal pressupõe justamente o elemento contramajoritário que supõe mecanismos de proteção, por exemplo, aos direitos fundamentais, o que significa a eficácia material do próprio núcleo político dessa forma de Estado (STRECK, 2014).

    Não há duvida, pois, de que o Estado Constitucional representa uma fórmula de Estado de Direito, talvez a sua mais cabal realização, pois, se a essência do Estado de Direito é a submissão do poder ao direito, somente quando existe uma verdadeira Constituição esta submissão compreende também a submissão do Poder Legislativo (STRECK, 2014, p. 87).

    Portanto, um Estado fundado sob a base do constitucionalismo significa compreender a Constituição como o elemento a partir do qual se parte para a perspectiva do Estado de Direito, no sentido do que afirma Günter Frakenberg (2018, p. 101):

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    Em conformidade com o mandamento da fidelidade ao texto da Constituição, Hans Kelsen, de modo lógico, dá continuidade ao positivismo legal de Gerber-Laband, apresentando uma Teoria do Estado estritamente informada por princípios antimetafísicos e sociológicos. Essa teoria desloca o acento do Estado para o direito. Ela se atém à centralidade da lei (constitucional), mas relativiza a oposição entre legislação e jurisdição do ponto de vista funcional, sob o aspecto de criação do Direito.

    Esse elemento originário legitimador do momento em que ocorre o fenômeno da celebração do pacto constitucional2 pressupõe determinadas peculiaridades políticas e sociais que permitam essa fundação ou refundação do Estado, calcadas naquilo que Michel Maffesoli denomina de potência coletiva (MAFFESOLI, 2001, p. 61). Ao se referir a uma das formas em que ocorrem tais momentos de refundação, a revolução, o qual, já adianta-se, não é o caso da refundação do Estado brasileiro simbolizado pela Constituinte de 1988, Maffesoli (2001, p. 101) expõe a fugacidade de tais episódios:

    2 Utiliza-se a palavra “pacto” no presente artigo, a fim de designar

    Constituições que se compreenda como democráticas

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    falar da força dinâmica da revolução é falar efervescência dos momentos criadores ou das suas periódicas revivificações, é reconhecer o aspecto fundador do desejo de intensidade ou do entusiasmo coletivo, os mitos de fundação das civilizações ou dos movimentos, todos eles exibem esses amontoados originais.

    Apesar de não se tratar, no caso brasileiro, de uma revolução, não se pode negar ter se tratado de momento de efervescência social em face do fim do retorno à democracia depois de 21 anos de ditadura civil militar. A propósito disso, importante destacar a fugacidade de tais momentos que propiciam o ambiente para o fenômeno da fundação, que tendem a se dissolver após o esgotamento do tensionamento coletivo (MAFFESOLI, 2001). Contudo, as circunstâncias do mais recente processo de redemocratização brasileiro podem ser percebidas sob a consciência de ter se tratado de mera circulação conservadora de poder entre elites em um processo de transição de um poder enfraquecido por outro com força renovada. Talvez nosso caso melhor se explique sob a ótica de que todo poder político é conservador, isto é, trata-se de substituir um poder fraco por um poder forte. E isso, mesmo imitando ritual e periodicamente a libertação. Há retornos simbólicos que sustentam o sistema social e político; operam uma purificação social que em nada muda a estrutura real do poder (MAFFESOLI, 2001, p. 50).

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    Assim, a redemocratização no Brasil, percebe-se não se tratar, de fato, de uma ruptura plena com o regime da ditadura civil-militar que perdurou de 1964 a 1985, o que será objeto de análise dos próximos capítulos, mas, ainda assim, tratou-se de momento em que a labilidade social permitiria, de certa forma, buscar-se através da rigidez constitucional, impor-se limites aptos a evitar as práticas autoritárias do regime ditatorial recentemente vivido no país.

    Note-se que um dos fatores que poderia ter propiciado esse ambiente é que:

    Durante o período de 1964 a 1985, verificamos como as práticas de desrespeito aos Direitos Humanos e de violência generalizada foram acompanhadas de justificativas sobre a segurança nacional, a ordem, o progresso e desenvolvimento. A doutrina de Segurança Nacional e de Desenvolvimento foi a base ideológica do regime. As perseguições políticas levaram à organização de um grande aparato de repressão que se expressou nas práticas de terror de Estado (DORNELLES, 2014, p. 327).

    A ditadura implantada a partir de 1964 no Brasil, portanto, gerou a expansão do aparato de repressão violadora dos mais básicos Direitos Humanos, atingindo a toda à sociedade, mas notadamente focou nas forças

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    políticas oposicionistas atacando movimentos sociais, artistas e suas produções, as atividades de produção cultural e científica, bem como seus autores, tudo com base na doutrina da segurança nacional (DORNELLES, 2014).

    Foi durante o período militar que se aprofundou a militarização das polícias, o uso ampliado das polícias políticas e dos serviços de inteligência (DOPS, DOI-CODI). E foi a lei de segurança nacional que deu forma jurídica à doutrina e buscou garantir a legalidade ao aparato repressivo-punitivo organizado pelo regime (DORNELLES, 2014, p. 330).

    Vale ressaltar que foi entre 1969 e 1974, durante o Governo do General Emílio Garrastazu Médici que ocorreu o período ditatorial mais duro da história do Brasil, em termos de terror e violência contra qualquer forma de oposição, com a criação de um grande aparato de órgãos de “segurança” que levou a prisões em massa, assassinatos e uso rotineiro da prática da tortura (DORNELLES, 2014, p. 330).

    As práticas, porém, não se limitaram à guerra aberta. Houve também o aparelhamento estatal para a realização da guerra subterrânea, pois as práticas da ditadura iniciada em 1964, não satisfeita em atuar na

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    formalidade da exceção, foram intensas também na clandestinidade do próprio estado de exceção criado (DORNELLES, 2014).

    A década de 1970 foi marcada pelo surgimento dos grupos de extermínio, através de forças paramilitares, formadas por membros das forças armadas e civis que serviam de base operativa aos órgãos de inteligência e repressão política. Uma prática que persiste até hoje, através da chamada “polícia mineira” e milícias, contra os novos inimigos – classes perigosas empobrecidas (DORNELLES, 2014, p. 330).

    Além disso, foi criado o Sistema Nacional de Informação, subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, estrutura na qual se processava e armazenava informações sobre as práticas tratadas como oposicionistas, obtidas em investigações sigilosas por meios como interrogatórios e escutas telefônicas (DORNELLES, 2014).

    A análise de tal cenário cotejada com a leitura dos dispositivos da Constituição Federal de 1988 despojada do conhecimento do processo histórico poderia fazer crer que houve uma ruptura através de um processo revolucionário e que permitiu a refundação da República através de valores de oposição ao regime anterior.

    Isso talvez permitisse verificar-se a permanência

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    das práticas autoritárias das agências punitivas brasileiras sob a perspectiva do fracasso dos ideais revolucionários, na esteira do sustentado por Michel Maffesoli ao analisar o “revés da revolução” sustenta que “enquanto seu empenho é de “mudar a vida”, esse ideal, caso atingido, só o foi por curto espaço de tempo, o da efervescência cuja consequência é a inauguração de um reformismo que pode às vezes se adornar de uma fraseologia revolucionária” (MAFFESOLI, 2001, p. 103). Em complemento, ao analisar o que chama de “fenômeno do pêndulo” do movimento revolucionário, afirma que “o aspecto efervescente, factual, da revolução não passaria de epifenômeno, com a função exclusiva de engendrar o inerente a esta ou aquela forma social e, uma vez cumprida a missão, se estabelece um novo poder cujo principal empenho será sufocar a revolta que o fez nascer”( MAFFESOLI, 2001, p. 123).

    Mas não foi através de uma revolução que se estabeleceu o processo de redemocratização no Brasil. Já no final do período ditatorial, com parte das elites, incluindo setores da oposição liberal e do regime militar que pretendiam uma saída para o próprio modelo autoritário criado e desenvolvido pelo próprio regime, buscou-se a partir do consenso, a construção de uma saída baseada no acordo e na negociação, no assim chamado, processo de transição democrática (DORNELLES, 2014). Talvez justamente a leitura de que seria necessária a substituição do já enfraquecido poder da ditadura militar, permitindo a uma nova elite em ascensão circular

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    em direção ao poder sem barrar-se a ascensão, a partir de uma negociação que permitiu a manutenção de uma série de estruturas, sem falar na absoluta ausência de responsabilização, é que tenha evitado uma ruptura brusca decorrente de um processo de aceleração de circulação de elites aptas a exercer um poder forte contidas (MAFFESOLI, 2001, p. 88) pela força em direção à tomada de um poder débil. Assim, sem a necessidade de ruptura “traumática para a ditadura, permitiu-se a circulação acelerada das elites” (MAFFESOLI, 2001, P. 124), abrindo-se caminho para uma transição “lenta, gradual e segura”, conforme “slogan” cunhado pelo próprio governo ditatorial.

    É nesse clima que se estabeleceu o cenário para a redemocratização do Brasil, o que resultou em um ambiente de transição sem uma ruptura brusca com o regime democrático. Assim, apesar de a Constituição Federal de 1988 trazer em si um extenso rol de Direitos Fundamentais, inclusive no sentido de impor limites ao poder punitivo estatal, a efetivação material de tais Direitos jamais se efetivou na prática, mantendo-se as práticas autoritárias até os dias de hoje.

    2 “Uma transição lenta, gradual e segura” – A ausência de ruptura institucional e de responsabilização pelos danos causados pelo Estado e seus Agentes na ditadura civil militar de 1964/1985 no Brasil

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    A partir do governo do General Ernesto Geisel, inicia-se um processo de abertura política, a longo prazo, que não deixou de contar com a oposição de setores das próprias forças armadas. De qualquer forma, esse distensionamento foi, aos poucos, sendo colocado em prática em um movimento de conciliação travado pelas elites brasileiras, inclusive por setores que apoiaram o golpe de 1964. Contudo, esse processo de transição sem ruptura contribuiu para a manutenção da cultura autoritária que se constituiu durante o período ditatorial, o que se analisará nesse capítulo. Nesse sentido:

    A continuidade de práticas de repressão, ou de “violência sem lei”, em pleno regime democrático – após 1985 – teve por base todo o aparato repressivo construído durante o regime militar e a maneira como se deu o processo de transição democrática, sob iniciativa de pactos “por cima”, conciliação de elites, dirigidos pela oposição liberal e por setores do regime militar que buscavam uma saída para o esgotamento do próprio modelo político autoritário que, já na segunda metade dos anos de 1970, apresentava dissensões no seio das classes dominantes que desde 1964 deram sustentação ao regime (DORNELLES, 2014, p. 330).

    Perceba-se que o golpe de 1964 constituiu um momento em que elites da sociedade civil e forças

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    militares reacionárias aos avanços sociais, especialmente decorrentes das reformas que vinham sendo implementados pelo governo legítimo e democraticamente eleito do Presidente João Goulart que fincava sua legitimidade sobre a base da Constituição de 1946 violada pelo golpe militar de 1964. Um dos setores que apoiou a tomada violenta e ilegítima do poder através do golpe foi o poder judiciário (BAGGIO, 2010, p. 159). Um golpe de Estado tramado e apoiado pelas elites que se opunham aos avanços das reformas sociais que vinham sendo implementadas por um governo legitimamente eleito, em plena chamada guerra fria resultou na consolidação de um “Estado Autoritário a partir de 1964” (DORNELLES, 2014, p. 328):

    Teve como consequência a implantação de um modelo econômico dependente e concentrador de renda, atrelado ao capitalismo internacional e excludente. Para a implantação e consolidação deste modelo econômico foi necessária a adequação do aparato jurídico-político do Brasil às necessidades de acumulação ampliada do capital sem qualquer tipo de questionamento. As restrições às liberdades democráticas e a repressão aos movimentos sociais foram a garantia de que o processo de acumulação capitalista internacionalizado poderia seguir a sua marcha sem vozes dissonantes. Para tanto, houve uma repressão sem precedentes contra qualquer forma de oposição ao modelo econômico e às práticas do regime

  • Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre saberes

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    (DORNELLES, 2014, p. 329).

    Isso indica que por trás da violência de Estado instaurada a partir da ditadura iniciada em 1964 estava o forte suporte de setores da elite interessados em uma política econômica calcada na lógica da acumulação de capital, algo contrário ao que vinha sendo implantado pelo Governo do Presidente João Goulart. Assim, importante analisar-se a relação entre violência de Estado e política econômica que não atende aos interesses das reformas sociais, bem como, os motivos por trás do apoio das elites à repressão estatal estavam e estão calcados na garantia de uma política econômica voltada a seus próprios interesses.

    Assim, o que chama a atenção dos ativistas de Direitos Humanos, como também da reflexão acadêmica sobre o tema, é que, no Brasil, a volta à institucionalidade democrática, em meados dos anos 1980 não significou uma diminuição significativa nas violações sistemáticas e massivas de Direitos Humanos. Ao contrário, o que se verificou foi um aumento significativo dos casos de violações, principalmente atingindo os contingentes mais pobres da população (DORNELLES, 2014, p. 328).

    Nesse sentido, Tony Ward ao analisar o que chama

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    de “Weak States”, ou seja, Estados que, em geral situados na África subsaariana, buscam reconhecimento internacional, mas que não possuem recursos administrativos e capacidade para oferecer proteção à sua população, nem tampouco proteger seus Direitos Humanos ou prestar serviços públicos adequados (WARD, 2004). Desse modo, considerando a incapacidade de atender a tais demandas, sua manutenção do poder acaba por depender da força e da violência estatal. Assim, ao fim e ao cabo, os “Weak States” não possuem capacidade para as demandas de bem estar da população e de resguardo aos Direitos Humanos, mas são fortes em termos de violência estatal (WARD, 2004). No mesmo sentido, o autor analisa o que chama de “Strong States” e explica seu alto grau de legitimidade quando aptos a ensejar o Estado de bem estar social. Os Estados mais fortes seriam os que possuem mais legitimidade ou hegemonia em relação a sua própria legitimidade no poder. O fazem através de leis e políticas que levam benefícios da prosperidade às mais diferentes classes, o que faz parecer real a ideia de que as políticas são feitas para o bem geral. Contudo, quando não há mais capacidade econômica ou política para atender aos interesses da população em geral, fica muito caro manter e benefícios tendem a ser revogados, não sem resistência. Daí surge a necessidade de derrotar a resistência, ainda que com repressão (WARD, 2004, p. 93). Ou seja, a implantação de uma política econômica que favorece o interesse das elites, não atendendo às demandas sociais da

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    maior parte da população vem acompanhada pela necessidade de mecanismos de repressão para a manutenção do “status quo”. Isso explica o apoio das elites brasileiras ao golpe de 1964, sem se importar com o autoritarismo, visto como necessário à garantia da política econômica que lhes interessava. Isso também explica, no entanto, o processo de redemocratização, calcado na garantia da manutenção da política econômica liberal. Isso explica, também, a manutenção das práticas repressivas voltadas mais estritamente às camadas mais pobres da população. “Em grande pare, este aparato repressivo e as práticas terroristas utilizadas pelo regime militar continuaram, após 1985, nas ações policiais contra as populações mais pobres e, principalmente, após 1988, com a nova ordem constitucional do Estado Democrático de Direito.”(DORNELLES, 2014, p. 328).

    O tratamento do passado do regime militar brasileiro exige o não esquecimento das torturas, dos desaparecimentos forçados, das mortes, das perseguições, da censura. Mas também possibilita entender os processos de democratização que, no caso brasileiro, se desenvolveu já no contexto da globalização neoliberal e como a política de esquecimento e conciliação não rompeu com o passado de violações, fazendo com que o fenômeno da violência permaneça e até tenha se ampliado nas sociedades democráticas, como forma de tensão e conflito permanente. Aqui o que se coloca é

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    a verificação da institucionalidade da democracia que passou a existir na ordem neoliberal e o papel do Estado, não mais como gestor do bem-estar, mas como meio de controle social penal e de ampliação das práticas de violência contra os setores mais vulneráveis e excluídos socialmente (DORNELLES, 2014, p. 329).

    Por tudo isso, o processo de transição manteve a matriz econômica, contemplou anistia ampla e irrestrita para isentar de responsabilidade os agentes que financiaram, participaram e praticaram violações, inclusive as mais graves, mantendo a continuidade dos agentes, inclusive nas agências punitivas. Os reflexos dessa continuidade, inclusive no que tange à manutenção da cultura autoritária, serão analisados no próximo capítulo.

    3 A manutenção da cultura autoritária – inefetividade dos limites constitucionais ao poder punitivo estatal

    Na prática, a cultura autoritária brasileira não foi superada. Seja no aspecto da violência policial, seja no aspecto da violência punitiva violadora dos Direitos e Garantias formalmente insculpidas na Constituição Federal de 1988, o autoritarismo segue presente no funcionamento das agências punitivas. Nesse aspecto, importante analisarmos a incompletude de uma justiça

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    de transição satisfatória no Brasil a partir do processo de redemocratização, pois sua análise aponta caminhos não somente para a manutenção de injustiças do passado, mas também para a ocorrência de injustiças no presente e no futuro (BAGGIO, 2010). Um dos aspectos basais da justiça transacional é a necessidade de uma reforma institucional, especialmente no poder judiciário, que, no caso brasileiro, demonstra sérios problemas para a superação da cultura autoritária do regime da ditadura civil-militar de 1964/1985 (BAGGIO, 2010).

    Nesse aspecto, cabe observar que:

    No caso brasileiro, nossa cultura jurídica liberal-conservadora tornou-se decisiva não só pela característica do pragmatismo conciliador determinante nos dias atuais para o não enfrentamento das violações ocorridas durante o regime de exceção, mas, sobretudo por possibilitar a manutenção das práticas autoritárias institucionalizadas sob uma roupagem jurídico-legal de conformação social. Tal Conformação, naturalmente, excetuou os opositores ao regime que sofreram as duras consequências da violência estatal (BAGGIO, 2010, p. 160).

    Importante elemento de contribuição para essa continuidade é a permanência da grande maioria dos magistrados que compunham o poder judiciário durante o regime ditatorial, nos quadros do poder judiciário do

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    Estado Democrático. Isso se agrava em um quadro no qual o poder judiciário serviu aos interesses do governo ditatorial (BAGGIO, 2010).

    Isso pode ser um caminho para que se analise de que forma um poder judiciário coberto por garantias como inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios não garante efetividade a Direitos Fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, permitindo – apenas para citar-se um exemplo, eis que analisar as violações aos Direitos Fundamentais em espécie não são o objetivo deste artigo - e chancelando práticas como a manutenção de presos em Delegacias de Polícia e viaturas policiais, por vários dias, sem acesso a visitas, alimentação adequada, aeração, espaço minimante digno para dormir, condições para realização de higiene básica, proteção contra intempéries, dentre outros Direitos Básicos.

    Conclusão

    Da análise dos aspectos tratados nesse artigo, pode-se afirmar que A Constituição Federal de 1988 possui extenso rol de Direitos e Garantias Fundamentais, bem como, prescreveu ao poder judiciário a responsabilidade pela defesa de tais direitos e garantias, inclusive com instrumentos para assumir, quando necessário, uma postura contramajoritária para o cumprimento de sua missão. Contudo, a ausência de ruptura com o regime ditatorial e de uma satisfatória

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    justiça de transição com a continuidade dos quadros do poder judiciário existentes no período ditatorial no sistema democrático manteve-se a cultura autoritária o que pode permitir e até fomentar práticas não consistentes com os Direitos Fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988.

    Referências

    BAGGIO, Roberta Camineiro; MIRANDA, Lara Caroline. Poder judiciário e estado de exceção no Brasil: as marcas ideológicas de uma cultura jurídica autoritária. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Vol.8, n.8, (2010), Belo Horizonte

    DORNELLES, João Ricardo W. Crimes de massa e continuidade do estado de exceção e o estado democrático de direito no Brasil. In: TOSI, Giuseppe; FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra; TORELLY, Marcelo D.; ABRÃO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição - direito à justiça, à memória e à verdade. João Pessoa: UFPB, 2014.

    FRANKENBER, Günter: Técnicas de Estado: Perspectivas Sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção; tradução MENDES, Gercelia. São Paulo: Editora Unesp, 2018;

    MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária. 1. Ed. Porto Alegre: Sulina, 2001

    STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição,

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