177
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Presidente

Vice-presidente

DIREITO E DEMOCRACIA

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Conselho Editorial

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D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas /Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- . -Canoas : Ed. ULBRA, 2000- .v. ; 23 cm.

Semestral.A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para

Revista de Ciências Jurídicas.ISSN 1518-1685

1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I.Universidade Luterana do Brasil.

CDU 34(05)

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas - ULBRA

Vol. 10 - N 2 - Jul./Dez. 2009ISSN 1518-1685

o

O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidadeexclusiva dos autores. Direitos autorais reservados.Citação parcial permitida, com referência à fonte.

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Sumário

187 Editorial

189 Breves considerações sobre o olhar, ouvir e escrever enquanto passos constitutivos da pesquisa qualitativa no âmbito jurídico: aproximações entre antropologia e direito

Vinícius Gil Braga

200 Estado social brasileiro e equilíbrio financeiroPaulo Sergio Rosso

212 O desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais numa perspectiva

históricaAlberto de Magalhães Franco Filho

228 O princípio da igualdade na sociedade brasileira pluralista: a questão das cotas

raciais em universidadesHelton Kramer Lustoza

250 O compromisso de compra e venda e a vigência das Súmulas 84 e 239 do STJ Gerson Luiz Carlos Branco

267 A utilização do Sistema de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação: uma análise do art. 8º do Decreto Federal nº 3.931, de 19 de setembro de 2001

Thiago Dellazari Melo

286 O monumento bárbaro: desconcertando o sistema penal entre violência, crime e logos Alexandre Costi Pandolfo

295 Discurso, poder e ética na decisão penal

Gabriel Antinolfi Divan

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311 O ensino do Direito Penal: da legitimação da violência à luta pela vida Marília Denardin Budó

331 Giorgio Agamben e o garantismo: razões de um desencontroMoysés da Fontoura Pinto Neto

344 Documento histórico A carta, de Pero Vaz de Caminha

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EditorialÉ de Edgar Morin a crítica de que o progresso não se resume ao enunciado de

que o amanhã será melhor que o ontem, embora tenha sido essa uma verdade vendida aos quatro ventos. A ambivalência se faz presente no progresso, afirma o sociólogo, produzindo, ao mesmo tempo, curas milagrosas para doenças que muito atormentaram o homem e armas de destruição em massa; a economia se divide entre a concentração de riquezas e os guetos de miserabilidade; a cultura se dissipa entre a massificação e a retomada da tradição e do pluralismo. Nessa bipolarização também o direito se defronta com novas e velhas probabilidades, desafiando o jurista a encontrar o seu mister, porque, ao mesmo tempo, é partícipe e destinatário diretamente comprometido desse constante (re)nascer, não lhe cabendo abdicar do seu próprio destino.

E é nesse espaço que vem a lume a Direito e Democracia, em seu volume 10, número 2, orgulhosa em veicular os trabalhos de seus articulistas, juristas conscientes de seu papel e de seu lugar neste universo.

A indispensabilidade da necessária pesquisa qualitativa do direito, através de um diálogo atento à epistemologia e à antropologia, estabelecendo novos olhares sobre a realidade experimentada, transformando-a, a partir do olhar, do ouvir e do escrever, faculdades a serem estimuladas no entendimento sociocultural, é enfrentada por Vinícius Gil Braga.

De Paulo Sergio Rosso vem a contribuição sobre o estudo do equilíbrio financeiro entre as exigências do estabelecimento do Estado social e o seu poder de arrecadação, assentando a melhor adequação dos serviços prestados, porque vedado o retrocesso dos direitos sociais como única alternativa jurídica sobejante.

O desenvolvimento dos direitos humanos e a mudança de paradigmas dos direitos individuais para os transindividuais é objeto do trabalho que leva a autoria de Alberto de Magalhães Franco Filho, tema que sempre merece atenção de todo estudioso do direito.

Helton Kramer Lustoza aborda a polêmica da questão das cotas raciais em universidades, situada entre os extremos de uma política de discriminação positiva e da ausência de legitimação perante o princípio da igualdade.

A distinção entre o regime dos efeitos do compromisso de compra e venda registrado, com eficácia real, e o não registrado, com eficácia obrigacional, gerando respectivamente ações reais e ações obrigacionais, diante das novas disposições do CCB de 2002 e a jurisprudência pretérita, consolidada pelas Súmulas 84 e 239 do STJ, ganha corpo no artigo da lavra de Gerson Luiz Carlos Branco.

No âmbito das licitações, recebe de Thiago Dellazari Melo estudo o Sistema de Registro de Preços por órgãos não participantes da chamada pública, com vistas à preservação e manutenção dos princípios jurídicos que fundamentam o respectivo ordenamento de regência.

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A desconstrução do poder punitivo, a partir da análise do pensamento de Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Robert Musil, é o foco do artigo firmado por Alexandre Costi Pandolfo, a apontar que o sistema penal e bem assim o direito, estado e história representam monumentos bárbaros retratando a violência intrínseca ao próprio logos.

De Gabriel Antinolfi Divan vem o estudo sobre o discurso, o poder e a ética nas decisões penais, com vistas a não ser infligida ao acusado pena que ultrapasse a devida cominação, sob o equívoco de manifestação atécnica, passional e exageradamente estigmatizante.

Diante da deslegitimação teórica e fática do sistema penal, Marília Denardin Budó esgrima o descompasso dessa constatação com o ensino do direito penal no Brasil, onde ainda não se questionam o real exercício de poder e a violência que vigora no próprio sistema, a marcá-lo pela morte, denunciando a articulista que o tratamento de tais questões de forma crítica significa de certa forma poupar vidas.

Moysés da Fontoura Pinto Neto critica as apropriações do pensamento do filósofo Giorgio Agamben por grande parte dos juristas, propondo uma leitura diversa ao resgatar de seus textos a ênfase de uma “política que vem”, na qual conceitos atuais como soberania, direitos humanos e contrato social perdem seu papel.

No espaço documento histórico, a Direito e Democracia oferece aos seus leitores versão oficial de A Carta de Pero Vaz de Caminha, que não apenas retrata descrições geográficas da terra descoberta, mas também assinala os primeiros atos jurídicos da civilização europeia nas terras brasileiras.

Aos nossos consumidores, que aproveitem a leitura.

Elaine Harzheim MacedoEditora

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Breves considerações sobre o olhar, ouvir e escrever enquanto passos constitutivos da pesquisa qualitativa no âmbito jurídico:

aproximações entre antropologia e direito1

Vinícius Gil Braga

RESumo O presente escrito tem por finalidade a proposição de novas possibilidades à pesquisa

qualitativa no direito. Nesse sentido, estabelece um diálogo atento à epistemologia e à antropologia, sugerindo ao jurista/discente do direito a realização de um exercício de observação capaz de instigar o estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada, transformando-a. Para tanto, estimula-se o desenvolvimento de três faculdades de entendimento sociocultural, inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais: o olhar, o ouvir e o escrever.

Palavras-chave: Direito. Antropologia. Epistemologia. Pesquisa qualitativa.

Short contributions about watching, listening and writing as constitutives steps of qualitative research in the juridical space:

Approaches between anthropology and law

ABStRActThe present work aims at the proposition of new possibilities for qualitative law research.

Therefore, an attentive dialogue is established in relation to epistemology and anthropology. Such dialogue suggests to jurist/law students the performance of an observation exercise capable of providing the viable establishment of new perspectives about an experienced reality, modifying it. Thus, the development of three socio-cultural understanding senses is stimulated; those inserted into the social sciences pattern of acquiring knowledge: watching, listening, and writing.

Keywords: Law. Anthropology. Epistemology. Qualitative research.

Vinícius Gil Braga é Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Direito na Faculdade Cenecista de Osório (CNEC/Osório) e American Col lege of Brazi l ian Studies (AMBRA). E-mail: [email protected] O presente artigo se constitui em fragmento de um trabalho de maior fôlego – ainda inédito –, voltado ao exame e proposição de novas possibilidades à pesquisa qualitativa no direito; ademais, esse escrito segue como fonte de estímulo e orientação o artigo intitulado “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever”, de autoria de Roberto Cardoso de Oliveira. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia (USP), vol. 39, nº 1, São Paulo, 1996, p.13-37.

Direito e Democracia v.10 n.2 p.189-199 jul./dez. 2009Canoas

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(...) a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros

e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las.

Gabriel García Márquez (Cem anos de solidão)

1 conSiDERAçõES iniciAiS – ou DA nEcESSiDADE DE um PEnSAmEnto comPlExo

Je travaille les idées qui me travaillent2

Edgar Morin

Não falamos todos do mesmo lugar. Ter posições claras a respeito de condições e circunstâncias históricas, culturais, sociais, psicológicas particulares importa na assunção de uma posição particular – a nossa posição enquanto sujeitos do conhecimento –, a partir da qual falamos e direcionamos nossos esforços para a construção do conhecimento através de um exercício reflexivo pessoal e compartilhado. Nesse particular, atente-se à formação sutil da palavra “conviver”, necessário “viver com” o outro, em aberto respeito à sua dignidade e diferença.3

Somos sobreviventes de nossa história.4 O conhecimento produzido traz consigo nossa carga de historicidade, vivências, relações, angústias, limites, etc. Encontra-se, portanto, sujeito às nossas ideias, experiências e faltas, persistindo – sempre – a inextricável relação entre o saber próprio ao pesquisador e o conhecimento por ele produzido, ou, da influência do observador no resultado de sua observação. Ditas contingências delineiam nossos conceitos e concepções, importando, nessa esteira, que um ponto de vista seja tão somente “a vista de um ponto”; ou, em melhor expressão, a consciência de que o olhar lançado dirige-se sobre uma perspectiva, apenas uma, no seio de tantas outras possíveis.

As duas assertivas acima traduzem a sensível necessidade de refletir as questões inerentes ao conhecer, isto é, que o embasam e fundamentam, e a partir das quais são informadas e legitimadas suas formas de construção. Tão somente a partir desse horizonte compreensivo uma base metodológica qualitativa e suas técnicas de pesquisa passam a auferir sentido, isto é, trata-se fundamentalmente da conscientização crítica sobre os modos de expressão do processo científico, necessariamente marcados pela indagação e pelo questionamento de seus limites e possibilidades.

2 “Trabalho as ideias que me trabalham” (tradução livre do francês). Entretien avec Edgar Morin. M.A.R.S. Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique, nº 6, Paris, 1996, p.59.3 SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.15-16.4 Esse breve escrito é tributário do convívio e dos ensinamentos do filósofo e professor Ricardo Timm de Souza, exemplo de ser-humano que levaremos sempre conosco como fonte de incentivo e inspiração.

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Como bem refere Edgar Morin, até a metade do século XX, a maior parte das ciências tinha a redução como método do conhecimento – isto é, do conhecimento de um todo para o conhecimento das partes que o compõem –, e o determinismo como conceito principal – ou seja, a ocultação/desconsideração do acaso, do novo, das invenções –, e a aplicação da lógica mecânica da máquina artificial aos problemas vivos, humanos e sociais. Interessante perceber, em contraponto, que a cultura humana geral sempre admitiu a possibilidade de se buscar a contextualização de toda informação ou ideia. Ao passo que a cultura técnica e científica, como referido, em nome do seu caráter disciplinar especializado, optou por seguir um modelo de racionalidade responsável por separar e compartimentar os conhecimentos, prejudicando, ainda mais, a contextualização dos mesmos.5

Com propriedade, assevera o epistemólogo francês:

Deveríamos, portanto, ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as coisas que nos parecem separadas, umas em relação às outras. Ora, nosso sistema educativo privilegia a separação em vez de praticar a ligação. A organização do conhecimento sob a forma de disciplinas seria útil se estas não estivessem fechadas em si mesmas, compartimentadas umas em relação às outras; assim, o conhecimento de um conjunto global, o homem, é um conhecimento parcelado. Se quisermos conhecer o espírito humano, podemos fazê-lo através das ciências humanas, como a psicologia, mas o outro aspecto do espírito humano, o cérebro, órgão biológico, será estudado pela biologia. Vivemos numa sociedade multidimensional, simultaneamente econômica, psicológica, mitológica, sociológica, mas estudamos estas dimensões separadamente, e não umas em relação com as outras. O princípio de separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto.6 (destaque nosso)

Acreditamos que a leitura jurídica do corrente Século XXI somente apresenta sentido de realidade se tomar o direito como uma ciência aberta ao seu tempo. Um modo de pensar aberto, disposto a explorar os sentidos plurais pertencentes às interfaces entre direito e sociedade, qual seja, disposto à reflexão e à problematização, com vistas a desenvolver nova consistência e tratamento, legitimidade e fundamentação. Em outras palavras, voltado à configuração de uma dogmática jurídica renovada, que vislumbra no direito um mecanismo renovado de regulação social – o que, todavia, não se confunde com “engessamento da realidade” – mais próximo e adequado à realidade social a qual se destina.

O referido modelo reflexivo enseja a assunção de um compromisso com a arte de

5 MORIN, Edgar. A necessidade de um pensamento complexo. In Representação e complexidade. MENDES, Candido (organizador). Rio de Janeiro: Garamond, 2003.6 MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. In Para navegar no século 21. Tecnologias do imaginário e cibercultura. MARTINS, Francisco Menezes; SILVA, Juremir Machado da (organizadores). 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2000, p.20.

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saber/viver em espaço aberto, plural e de respeito à diferença. Isto é, uma cultura de protagonistas – cujos diferentes projetos oriundos da diversidade possam ser respeitados e valorizados na medida e riqueza de cada experiência. As recentes percepções em torno ao Estado democrático de direito já caminham nessa direção, muito embora, demasiado resta ao que se aprender/discutir/reformular: um projeto vivo no tempo. Para tanto, faz-se necessário estabelecer novas relações, quer dizer, dar azo ao diálogo para com outras dimensões do conhecimento, inclusive à arte.

Nesse sentido, a partir deste escrito, gostaríamos de ensejar a percepção de que o aprender exige-nos um remanejamento do olhar, reaprender a olhar, não raro importando, em certas circunstâncias, desaprender, qual seja, estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas. Legitimamente, experimentar. Extrair do conhecimento todo o seu sabor. O sabor de conhecer.7

Isto se aplica diretamente às chamadas metodologias qualitativas, marcadas por privilegiar, de modo geral, a análise de microprocessos através do estudo das ações sociais individuais e grupais, realizando um exame intensivo dos dados (tanto em amplitude quanto em profundidade), caracterizada – consoante se depreende do exposto – pela heterodoxia no momento da análise.8 As páginas que seguem visam a estabelecer um exercício de observação capaz de instigar o discente do direito ao estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada, transformando-a. Sobretudo, quando se reconhece o fato do quão adstrita está a pesquisa jurídica ao uso de fontes bibliográficas e/ou jurisprudenciais, bem como do consequente imobilismo que essa postura tem acarretado.

7 GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.8 MARTINS, Heloísa. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e pesquisa, v. 30, nº 2, São Paulo, 2004, p.292. Nas palavras da autora: “Outra característica importante da metodologia qualitativa consiste na heterodoxia no momento da análise dos dados. A variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que, por sua vez, depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva. A maior dificuldade da disciplina de métodos e técnicas de pesquisa está na dificuldade de ensinar como se analisa os dados – isto é, como se atribui a eles significados – sendo mais fácil ensinar a coletá-los ou a realizar trabalho de campo. A intuição aqui mencionada não é um dom, mas uma resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador. Já no desenvolvimento do emprego de metodologias quantitativas, o que se procura é justamente o contrário, isto é, controlar o exercício da intuição e da imaginação, mediante a adoção de procedimentos bem delimitados que permitam restringir a ingerência e a expressão da subjetividade do pesquisador. (...) O uso de uma metodologia ou de outra dependerá muito do tipo de problema colocado e dos objetivos da pesquisa. (...) no que se refere especificamente à metodologia qualitativa, é que com ela, a pesquisa depende, fundamentalmente, da competência teórica e metodológica do cientista social. Trata-se de um trabalho que só pode ser realizado com o uso da intuição, da imaginação e da experiência do sociólogo (o que não significa que no caso da metodologia quantitativa também não seja requerida a competência, é que, neste caso, a formalização técnica acaba dominando o pesquisador” (p.292-293).

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2 PoR um REmAnEjo Do olhAR: BREVE ExERcício DE AnáliSE com ViStAS à PRomoção DE noVAS PoSSiBiliDADES REflExiVAS Ao EStuDo Do DiREitoA metodologia qualitativa trabalha sempre com unidades sociais, privilegia os

estudos de caso – entendendo-se como caso, o indivíduo, a comunidade, o grupo, a instituição.9 Em seu seio estão presentes três faculdades de entendimento sociocultural, isto é, inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais – e do direito, enquanto modalidade de ciência social aplicada –, a saber: o olhar, o ouvir e o escrever.10

Notoriamente, quando aludimos ao (re)aprender a olhar está se fazendo referência à postura epistemológica do conhecer, conformadora de uma visão de mundo e, igualmente, do estudo escolhido – envolvendo, por conseguinte, as três faculdades de entendimento nomeadas.

O olhar – em sentido estrito – é, no mais das vezes, a primeira experiência do pesquisador em sua situação de pesquisa, marcado, sobremaneira, por sua domesticação teórica. Consoante adverte Roberto Cardoso de Oliveira, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. Em outras palavras, seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade.11

Nas palavras de Cardoso de Oliveira,

Esse esquema conceitual, disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico (daí o termo disciplina para as matérias que estudamos), funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração (...). É certo que isso não é exclusivo do Olhar, uma vez que está presente em todo processo de conhecimento, envolvendo, portanto, todos aqueles atos cognitivos (...) em seu conjunto. Mas é certamente no Olhar que essa refração pode ser mais bem compreendida. A própria imagem óptica – refração – chama a atenção para isso.12

9 MARTINS, Heloísa. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e pesquisa, v. 30, nº 2, São Paulo, 2004, p.294.10 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit., p.14 e seguintes.11 Idem, p.15.12 Idem, p.16.

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Imaginemos a situação de um estudante de direito que se dirige ao Fórum de sua cidade, com vistas a observar o Juizado Especial Criminal13 em sua ritualística, dinâmicas e procedimentos. Claro está que a sua condição de estudante de direito não pode ser desconsiderada no processo de seu exercício de observação. Ao ingressar no ambiente do Fórum, perceberá os olhares que a ele são dirigidos de parte dos funcionários de segurança, servidores dos cartórios e demais transeuntes. A sua postura, vestimenta e empatia poderão levar um simples pedido de informações a diferentes possibilidades. Olhares e posturas que poderão encetar, ou não, alguma significação. Com o passar do tempo, vai-se desenvolvendo uma espécie de sensibilidade no trato dessas questões, uma sorte de conhecimento produzido a partir de acertos e equívocos, responsáveis por – ao longo desse processo – conduzir-nos a uma gradativa sensação de segurança e colocação diante destas situações. Retomando o argumento. Não obstante, além da sua vivência junto à prática jurídica, de igual modo, serão os seus conhecimentos de direito material e processual responsáveis por balizar as suas percepções primeiras. Ao adentrar na sala de audiência, o observador identificará a disposição dos atores jurídicos – juiz de direito, defesa e acusação – tal qual estudou em disciplinas e manuais de direito penal, processo penal e organização judiciária. Observará, ainda, as características arquitetônicas da sala de audiência e suas similitudes e/ou diferenças em relação às outras que por ventura tenha presenciado, ou assistido em filmes ou demais fontes de informação. Todavia, em seguida, chegará à conclusão de que para dar conta da natureza das relações sociojurídicas estabelecidas nesse ambiente, somente o Olhar não seria suficiente. Como alcançar o significado dessas relações sem se valer, concomitantemente, de outro recurso para obtenção dos dados, o Ouvir?

Se o Olhar possui uma significação específica para um cientista social, o Ouvir também o tem. Ao observador de uma audiência do Juizado Especial Criminal, os discursos terão como liame comum o desenvolvimento de argumentos pautados por essa esfera do direito (penal e processual penal). Entretanto, o mesmo poderá reparar em certos equívocos ou imprecisões no uso dessa linguagem e, inclusive, dos próprios termos e institutos do direito. Ninguém está livre de falhas. Poderá perceber, ainda, uma ampla gama de não-ditos, por vezes ensurdecedores, e, inclusive, posturas violadoras ao sentimento de justiça. O Olhar aliado ao Ouvir poderá, portanto, informar ao estudante uma série de circunstâncias imponderáveis, imprevistas, que não estavam presentes no repertório legislativo e doutrinário de seu aprendizado em uma disciplina acadêmica. Outro aspecto, o pesquisador poderá avançar em seu entendimento desde que atento à globalidade de informações que se entrecruzam naquele campo, a exemplo dos ditos/não-ditos, olhares, etc., presentes no próprio intervalo entre as audiências da pauta de julgamentos em questão, ou, ainda, no perfil das partes envolvidas e suas dinâmicas, entre outros. Em suma, trata-se

13 Os Juizados Especiais Criminais tiveram sua origem por ocasião da Lei 9.099/95, responsável por estabelecer a informalização dos procedimentos judiciais (civil e criminal) no âmbito da administração da justiça. Sob esse prisma, a esfera criminal (do dispositivo) passou a se ocupar das chamadas infrações de menor potencial ofensivo, isto é, contravenções penais e demais crimes cuja pena máxima não excede dois anos de prisão (Lei 10.251/01). Para tanto, compreende um amplo rol de pequenos delitos que, com o passar dos anos, encontravam-se afastados da justiça criminal tradicional – em nome do princípio da insignificância (ou “bagatela”) –, assim, regressando ao sistema penal e às agências oficiais de controle. Para uma rápida referência aos juizados especiais criminais (princípios e regras gerais) vide GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Juizados especiais criminais: doutrina e jurisprudência atualizadas. São Paulo: Saraiva, 1998.

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de um repertório amplo de possibilidades, que podem fazer-se presentes nas situações de pesquisa experienciadas, delineadas de acordo com o recorte da pesquisa em particular, seu problema de estudo e seus objetivos anteriormente delimitados – orientando, inclusive, para novos rumos e eventuais correções de adequação da pesquisa.

Todavia, faz-se relevante esclarecer que o Ouvir não se restringe à sua manifestação passiva – isto é, um observador mergulhado no curso de um ritual judiciário não pode se manifestar, interromper a audiência e/ou retirar suas dúvidas com as partes envolvidas. Imaginemos, por conseguinte, um momento posterior, em que o mesmo tem a oportunidade de realizar entrevistas. Mas, para isso, há de se saber Ouvir. Acompanhando Roberto Cardoso de Oliveira, entendemos que esse exercício se apresenta como delicado, problemático, ínsito à própria natureza da relação estabelecida entre entrevistador e entrevistado. O observador/entrevistador deve estar aberto às situações a ele colocadas, consoante referimos anteriormente, o aprender exige-nos um remanejamento do olhar, reaprender a olhar (aqui compreendido como olhar – em sentido estrito –, ouvir e escrever), não raro importando, em certas circunstâncias, desaprender, qual seja, estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas. Legitimamente, experimentar. Extrair do conhecimento todo o seu sabor. O sabor de conhecer. Pois bem, perceba-se que caso essa atitude não seja espontaneamente assumida, teremos tão somente perguntas feitas em busca de respostas pontuais, criando um campo ilusório de interação. Em outras palavras, não se pode perguntar com vistas a orientar a resposta que se quer ouvir. Isto porque, a rigor, não há verdadeira interação entre entrevistador e entrevistado se não se cria condições de efetivo diálogo. Portanto, estamos falando de dois níveis de importância, a saber: a primeira, atinente ao próprio sujeito do conhecimento, que deve se mostrar aberto, crítico e “positivamente inquieto” no curso do processo de pesquisa; e, ainda, uma segunda, que diz respeito à necessidade de se perceber no informante um interlocutor, qual seja, edificar uma relação em que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o entrevistado e por ele ser igualmente ouvido, construir pontes cognitivas, encetando um diálogo teoricamente de iguais, sem receio de estar, assim, contaminando o discurso do informante com elementos de seu próprio discurso (pesquisador). Portanto, sabendo-se não ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade absoluta, é tão somente no diálogo, marcado pela fusão de horizontes, que o Ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única, numa outra, de mão dupla, constituindo assim uma verdadeira interação.14

De outra sorte, é oportuno referir que uma relação em tal nível envolve um exercício mais aprofundado de pesquisa, mais intenso, o que em antropologia convencionou-se chamar de observação participante. Nas palavras de Cardoso de Oliveira,

14 Idem, p.21.

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(...) o que significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade [ou situação de pesquisa] observada, a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade [ou situação], pelo menos afável, de modo a não impedir a necessária interação. (...) Entendo que tal modalidade de observação realiza um inegável ato cognitivo, desde que a compreensão (Verstehen) que lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de “excedente de sentido”, i. e., aquelas significações (por conseguinte, dados) que escapam a quaisquer metodologias de pretensão nomológica. (...) [Portanto], por meio do qual o pesquisador busca interpretar (melhor dizendo: compreender) a sociedade e a cultura do Outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade. Tentando penetrar nas formas de vida que lhe são estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto, uma vez que essa vivência – só assegurada pela observação participante “estando lá” – passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina.15

Assim, para que a pesquisa se realize é necessário que o pesquisado aceite o pesquisador, disponha-se a falar sobre sua vida, introduza o pesquisador no seu grupo e dê-lhe liberdade de observação. Esse mergulho na vida de grupos e culturas aos quais o pesquisador não pertence exige uma aproximação baseada na simpatia, confiança, afeto, amizade, empatia, etc.16 Entretanto, há de se ter prudência na escolha dos informantes, sobretudo, quando se restringe a pesquisa tão somente a um informante privilegiado. Sobre a questão, adverte Heloísa Martins

O recurso ao depoimento oral, como forma de construção do documento, tem levado várias questões (e objeções) que dizem respeito à memória. A referência “às peças que a memória prega” baseia-se na compreensão de que entre o tempo do acontecimento e o tempo presente do relato o informante, cuja memória se apela, viveu um conjunto de experiências que, de certa forma, orientam a visão que ele tem do passado. Seu olhar presente para o já vivido sofre a interferência daquelas experiências; muitas vezes ele não espelha a “verdade” sobre a vida passada, mas se limita a lembrar aquilo que ele quer ou pode recordar, à luz das vivências mais recentes. Nesse sentido, o informante estaria fazendo interpretações, e não expondo a verdade. Essa é uma questão que frequentemente preocupa os historiadores, que sempre recomendaram que se fizesse a crítica do dado, da fonte, do documento, para averiguar sua veracidade. Daí a constante desconfiança acerca da confiabilidade de certos relatos.17

15 Idem, p.21-22; 31.16 MARTINS, op.cit., p.294.17 Idem, p.295. Interessante referir, em contraponto, o relato presente no texto “O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral”, de autoria de Janaína Amado (AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, nº 14, São Paulo, 1995, p.125-136). A autora, com base na análise de uma entrevista, explora a questão da mentira na história oral; para tanto, defende a ideia de que depoimentos desprezados por historiadores por serem “mentirosos” – isto é, por não promoverem reconstituições históricas fidedignas dos fatos pesquisados – podem conter dimensões simbólicas extremamente importantes. O exemplo utilizado demonstra como tradição, imaginação e cultura erudita e popular combinaram-se para produzir um depoimento “mentiroso” que, entretanto, se revelou o mais rico e fértil para a análise histórica.

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Retomando o argumento, se o Olhar etnográfico, tanto quanto o Ouvir, cumpre sua função elementar na pesquisa empírica, é o Escrever, momento posterior e particular, que se revela como o passo mais fecundo da interpretação; e é por meio dele – quando se textualiza a realidade sociocultural – que o pensamento se manifesta em sua plena criatividade.18

Desse modo, o Escrever é a etapa seguinte à observação – “olhar” e “ouvir” –, cumprindo a mais alta função cognitiva. Em outros termos, envolve o processo de textualização dos fenômenos socioculturais observados “estando lá”, trazendo ao texto os fatos observados (vistos e ouvidos) para o plano do discurso. Trata-se de um empreendimento bastante complexo, que não se confunde com as anotações e/ou rabiscos que por ventura tenham sido feitos na primeira fase da pesquisa. É, portanto, necessariamente recursivo,19 cíclico, um processo de idas e vindas, aliando o conhecimento teórico em compasso com as circunstâncias experienciadas, mediadas, permanentemente pela reflexão.

Como bem pondera Roberto Cardoso de Oliveira,

Pelo menos minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso significa que nesse caso o texto não espera que o seu autor tenha primeiro todas as respostas para, só então, poder ser iniciado. Entendo que ocorra na elaboração de uma boa narrativa que o pesquisador, de posse de suas observações devidamente organizadas, já inicie o processo de textualização, uma vez que esta não é apenas uma forma escrita de simples exposição (uma vez que há também a forma oral), porém é a produção do texto também produção de conhecimento. Não obstante, sendo o ato de escrever um ato igualmente cognitivo, esse ato tende a ser repetido quantas vezes for necessário: portanto, ele é escrito e reescrito repetidamente, não apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista formal, mas também para melhorar a veracidade das descrições e da narrativa, aprofundar a análise e consolidar argumentos.20

Desse modo, concluindo o exemplo mencionado, imaginemos que o nosso observador poderia textualizar em sua síntese final de que o exercício de pesquisa realizado permitiu-lhe estranhar um descompasso entre a previsão abstrata da lei e o âmbito das práticas rituais – ou seja, do exercício do poder emanado da lei e sua imbricação com as dinâmicas estabelecidas –, ilustrado a partir da corporalidade e demais expressões performáticas – olhares, posturas, atos de fala, brincadeiras, sutis repreensões, violências explícitas e simbólicas, entre outros – dos atores nas diferenciadas relações envolvidas. Portanto, depreende-se do exposto que o olhar,

18 CARDOSO DE OLIVEIRA, op. cit., p.13.19 A respeito do caráter recursivo da construção do conhecimento no âmbito das ciências humanas, vide DESHAIES, Bruno. Metodologia da investigação em ciências humanas. Lisboa: Instituto Piaget, 1992, p.213-215.20 CARDOSO DE OLIVEIRA, op. cit., p.29.

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o ouvir e o escrever podem e devem ser questionados em si mesmos, embora num primeiro momento possam nos parecer tão familiares e, por isso, tão triviais, a ponto de nos sentirmos dispensados de problematizá-los; todavia, num segundo momento – marcado por nossa inserção nas ciências sociais –, essas “faculdades” ou, melhor dizendo, esses “atos cognitivos” delas decorrentes, assumem um sentido todo particular, de natureza epistêmica, uma vez que é com tais atos que logramos construir o nosso saber.21

3 conSiDERAçõES finAiSEste breve escrito objetivou informar ao discente do direito sobre a análise e

reflexão dos atos inerentes ao processo cognitivo, orientando-o à realização de exercícios de pesquisa de cunho qualitativo. Notoriamente, o exposto não pode ser desvinculado de outras ideias centrais, vinculadas a um conjunto mínimo de decisões e práticas que devem necessariamente acompanhar o desenho de qualquer pesquisa, conduzindo a mesma a diferentes possibilidades, a saber: (a) decisões relativas à construção do objeto (ou delimitação do problema a ser investigado); (b) decisões relativas à seleção dos dados e suas especificidades (pessoas, locais, documentos, entre outros); (c) decisões relativas à coleta dos dados e seus corolários (os meios necessários para a obtenção da informação indispensável para fins de investigação: questionários, entrevistas, dentre outros); (d) decisões concernentes à análise dos dados e demais elementos da pesquisa (técnicas e ferramentas empregadas para ordenar, resumir, dar sentido às informações coletadas).22 Considerando, portanto, o processo de conhecimento em toda sua complexidade.

REfERênciASAMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, n.14, São Paulo, 1995.CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia (USP), v.39, n.1, São Paulo, 1996.DESHAIES, Bruno. Metodologia da investigação em ciências humanas. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.ENTRETIEN AVEC EDGAR MORIN. M.A.R.S. Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique, n.6, Paris, 1996.GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. 10.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Juizados especiais criminais: doutrina e jurisprudência atualizadas. São Paulo: Saraiva, 1998.

21 Idem, p.15.22 MARRADI, Alberto; ARCHENTI, Nélida; PIOVANI, Juan. Metodología de las ciencias sociales. Buenos Aires: Emecé, 2007, p.71-85.

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MARTINS, Heloísa. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e pesquisa, v.30, n.2, São Paulo, 2004.SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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Direito e Democracia v.10 n.2 p.200-211 jul./dez. 2009Canoas

Estado social brasileiro e equilíbrio financeiro

Paulo Sergio Rosso

RESumo Procura encontrar solução para o problema decorrente das exigências do Estado social e os

poucos recursos financeiros disponíveis. Delineia as características históricas do Estado liberal e do Estado social. Rememora implantação do Estado social no Brasil. Aponta os graves problemas decorrentes das limitações orçamentárias a que está submetido o moderno Estado social brasileiro em razão das imensas responsabilidades que lhe são impostas constitucionalmente. Indica as principais possibilidades de conduta dos governantes visando a atender as responsabilidades impostas pela Constituição. Conclui pela impossibilidade de aumento da carga tributária em razão da existência do princípio da vedação ao confisco bem como pela impossibilidade de redução dos investimentos sociais do Estado, em face ao princípio da impossibilidade de retrocesso dos direitos sociais. Sugere a melhor adequação dos serviços prestados pelo Estado, não apenas como solução administrativa, mas como única alternativa jurídica sobejante.

Palavras-chave: Estado social. Estado liberal. Crise financeira. Despesas públicas.

Brazilian social State and financial balance

ABStRAct The aim of this paper is to find the solution to problems having recourse from the demands

of the social State and also of the scarce financial resources available. It outlines the historical characteristics of the liberal State and of the social State. It goes on to review the implementation of the Social State in Brazil. It also highlights severe problems recurring from the budget limitations to which Brazilian modern social State is submitted to, due to the huge responsibilities constitutionally imposed on in. It shows the main behavioral possibilities of the governors, aiming to attend to the responsibilities imposed by the Constitution. It ends by outlining the impossibility of increasing the taxation burden due to the existence of a confiscation breach principle as well as the impossibility of reducing the social investments of the State, in face of the impossibility of receding social rights principle. It also suggests a better adaptation of the services provided by the State, not only as an administrative solution, but also as the only exceeding legal alternative.

Keywords: Social state. Liberal state. Financial crisis. Public expenditure.

Paulo Sergio Rosso é procurador do Estado do Paraná. Professor de Direito Tributário e Sociologia Jurídica na UENP/FUNDINOPI e FANORPI. Mestrando em Ciência Jurídica. E-mail: [email protected]

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1 intRoDuçãoA Constituição brasileira caracteriza-se por sua clara preocupação social.

Indubitavelmente, a conformação atribuída ao Estado brasileiro tem por escopo uma atuação bastante presente do Estado na vida dos cidadãos, não se limitando a fazer às vezes de mediador das relações, mero tutor das liberdades, como ocorria no Estado liberal.

Inúmeros são os direitos sociais previstos pela lei, mas limitados são os recursos dos quais o Estado dispõe visando à solução dos problemas sociais, cada vez mais amplos.

Ao atender os reclamos da sociedade, os governos democráticos veem-se balizados por duas possíveis soluções: aumentar a carga tributária ou reduzir as despesas estatais. A primeira solução é, em regra, a eleita, mas a carga tributária brasileira é tida pelos setores produtivos como excessiva, fato que diminui a competitividade do país e atravanca o crescimento econômico, enquanto a segunda solução – redução de despesas – pode esbarrar no risco de se minimizarem ainda mais os investimentos públicos no setor social.

O presente artigo procura analisar o problema situando-o especialmente sob o ângulo jurídico, e não apenas administrativo, como sói acontecer nos estudos existentes sobre o tema. No âmbito do direito, há que se questionar se os governos, ainda que democraticamente eleitos, podem ampliar a arrecadação do Estado mediante incrementos na tributação, ao seu talante, ou se o próprio Poder Constituinte originário previu limites para tanto. Da mesma forma, deve-se indagar se a redução de despesas, com a consequente decadência da qualidade dos serviços públicos, não significaria, da mesma forma, uma conduta inconstitucional, face às obrigações impostas ao Estado brasileiro pela Constituição de 1988.

Há que se destacar, com maior rigor, a importantíssima missão do Poder Judiciário que pode e deve interferir neste processo, não avocando indevidamente para si as funções do administrador, mas impedindo que a administração descumpra, por excessos ou omissões, os ordenamentos constitucionalmente inscritos.

Num primeiro momento, este trabalho faz breves reminiscências sobre a história da implantação do Estado social no Brasil, bem como as razões que ocasionaram as crises econômicas verificadas a partir da década de 70. Ao final, analisa como deve ser pautada a atuação do administrador público em respeito à Constituição Federal de 1988.

2 EStADo SociAl E EStADo liBERAlO Estado social nasceu das novas demandas surgidas com a ascensão política

de classes antes renegadas e alijadas do poder. Enquanto o Estado liberal representava o modelo ideal para a classe burguesa, abraçando a ideia do Estado mínimo, não-intervencionista, o Estado social advém do desejo das classes economicamente desfavorecidas de, ao lado do seu crescente poderio político, obterem também progressos sociais.

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No Estado liberal, a atuação estatal era preponderantemente negativa, limitando-se a proteger os cidadãos da possível violência decorrente da relação de convivência; no Estado social os objetivos a serem alcançados são muito mais ousados: pretende-se garantir ao cidadão condições materiais de sobrevivência digna. Problemas atinentes à desigualdade econômica, educação, saúde e outros direitos, recentemente nascidos, são encarados como problemas de todos, obrigação e prioridade do Estado (BONAVIDES, 1994, p.344).

O Estado aparece doravante como o aliado, o protetor dos novos valores, ao passo que a Sociedade figura como o reino da injustiça, o estuário das desigualdades. De tudo isso se pode inferir, conforme disse Huber, que o Estado de Direito foi um produto da Revolução burguesa enquanto o Estado social é um produto da sociedade industrial. (BONAVIDES, 1994, p.345)

O grande problema que exsurge das promessas feitas pelo Estado social é que, diante do aumento de demandas, cada vez mais numerosas e complexas, as despesas decorrentes de suas crescentes funções tornam-se tão amplas que os desequilíbrios financeiros daí decorrentes passam a ser cada vez mais graves e frequentes, ocasionando crises, minando governos e democracias, fazendo nascer a sensação de que o projeto de Estado, como instrumento para o alcance do bem comum, fracassou.

Nos anos 70, houve uma melhor compreensão mundial acerca das dificuldades de se manter um Estado gigante, interessado em todos os aspectos da vida social. Cai por terra a expectativa de que, por meio do Estado, todos os problemas sociais possam ser solucionados. A crise do petróleo agravou a situação brasileira, levando o país a uma situação de insolvência no final da década, prenunciando-se a enorme explosão inflacionária vivenciada na década de 80

Os anos 1970 irão aprofundar esse desequilíbrio econômico, na medida em que o aumento da atividade e das demandas em face do Estado e a crise econômica mundial – explicitada a partir da crise da matriz energética de base petroquímica –, com os reflexos inexoráveis sobre o cotidiano das pessoas, impondo-lhes necessidades e retirando-lhes a capacidade de suportá-las, implicam um acréscimo ainda maior de despesas públicas, o que redundará no crescimento do déficit público, na medida em que o jogo de tensões sociais sugere uma menor incidência tributária ou estratégias de fugas – seja via sonegação, seja via administração tributária –, projetando uma menor arrecadação fiscal por um lado e, de outro, as necessidades sociais, muitas delas, inerentes a um momento de crise econômica e das atividades produtivas, avolumam-se formando um círculo vicioso entre crise econômica, debilidade pública e necessidades sociais. (MORAIS, 2002, p.41)

O caso da política brasileira é especialmente didático. Analisando o século XX, podemos perceber que a visão governamental sempre esteve ligada ao Estado provedor,

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ao Estado como primeiro e maior responsável pelo progresso do país, como se pode verificar em Getúlio Vargas, figura política mais marcante do século, que chefiou um primeiro governo bastante longo (1930-1945), caracterizado pelo autoritarismo e pelos avanços sociais. No que pertine à positivação dos direitos sociais, a Constituição de 1934 representa um marco para o constitucionalismo brasileiro

Em 1934 demos o grande salto constitucional que nos conduziria ao Estado social, já efetivado em parte depois da Revolução de 30 por obra de algumas medidas tomadas pela ditadura do Governo Provisório. Os novos governantes fizeram dos princípios políticos e formais do liberalismo uma bandeira de combate, mas em verdade estavam mais empenhados em legitimar seu movimento com a concretização de medidas sociais, atendendo assim a um anseio reformista patenteado de modo inconsciente desde a década de 20, por influxo talvez das pressões ideológicas sopradas do velho mundo e que traziam para o País o rumor inquietante da questão social. (BONAVIDES, 2002, p.331)

A Constituição de 1934 foi diretamente influenciada pela Constituição mexicana de 1917 e a chamada “Constituição de Weimar,” de 1919 (BRENDLER, 2005).

Também nos momentos posteriores, como na Constituição de 1946, esta visão constitucional foi mantida: o Estado tomando para si a responsabilidade pelo avanço social e econômico do país (BONAVIDES, 1994, p.335). Nos vinte anos de ditadura militar (1964-1985) verificou-se uma mesma orientação, nacionalista e estatizante, características suportadas pelo poderio internacional que preferia esta linha de atuação ao risco de tomada de poder pelas linhas de pensamento socialistas.

Enfim, a história constitucional brasileira, no Século XX, está profundamente marcada pela Constituição de Weimar, culminando com o texto de 1988

De último, prosseguiu, com não menos força, na mais recente das Constituições brasileiras, a de 5 de outubro de 1988, conforme podemos averiguar examinando-lhe alguns capítulos ou artigos. Na técnica, na forma e na substância da matéria pertinente a direitos fundamentais, a derradeira Constituição do Brasil se acerca da Lei Fundamental alemã de 1949, e até ultrapassa em alguns pontos. (BONAVIDES, 1994, p.335)

A Constituição inspirada na ideia de um Estado social é marcantemente distinta daquela construída sob a égide do Estado liberal. Esta, é uma Constituição anti-governo e anti-Estado enquanto a Constituição social contém a ideologia anti-absolutista e anti-individualista, mas com claras preocupações sociais, buscando garantir a todos um mínimo material (BONAVIDES, 1994, p.336).

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Especificamente no caso brasileiro, a demanda pelo cumprimento das grandiosas funções atribuídas ao Estado está em plena consonância com os princípios insculpidos pela Constituição de 1988, segundo os quais não há democracia nem liberdade sem o reconhecimento de que o indivíduo depende das prestações do Estado ( BONAVIDES, 1994, p.343).

Entretanto, o pensamento otimista sobre o Estado do bem estar social começa a naufragar em meados da década de 60:

Os primeiros sintomas da crise fiscal ou financeira começaram a surgir em meados dos anos 60, através da constatação de que estava havendo um desequilíbrio na balança fiscal, no sentido de que os gastos em políticas sociais estavam sendo maiores do que a receita arrecadada pelo Estado.

[...] A situação começou a agravar-se no final dos anos 70, quando iniciou um crescimento descontrolado da inflação, ao mesmo tempo em que há um quadro de intensa estagnação econômica. Desta forma, todo o estímulo ou desestímulo da demanda, que haviam sido as alternativas características deste modelo Estatal, mostrou-se ineficiente frente ao aumento daqueles dois indicadores. (BRENDLER, 2005)

Nos anos 80 e 90, o Estado brasileiro viu-se obrigado a adotar medidas contingenciais, visando à redução de gastos, até em razão das fortes pressões internacionais. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101 de 04/05/00) que fixou limites de gastos com pessoal, responsabilizando pessoalmente o administrador público quanto ao respeito de tais limites, tem caráter emblemático para a época, marcada pela intensa pressão em prol do controle dos gastos públicos.

A gravíssima crise financeira vivida pelo país logo após o retorno ao regime democrático, a partir de 1985, trouxe à baila o discurso neo-liberal, anti-estatizante, o qual foi seguido pelo Governo Collor (1990-1993) e, em menor grau, por Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). Enquanto no breve governo Collor a intenção era reduzir ao máximo o tamanho do Estado, com Fernando Henrique Cardoso a intenção era manter o Estado na condição de fiscalizador e mediador, outorgando à iniciativa privada a responsabilidade pelos investimentos públicos. Com base nesse raciocínio, justifica-se a criação e a tentativa de estruturação das Agências Reguladoras, que fariam o papel regulador e fiscalizador (missão originária do Estado).

Difícil dizer até que ponto tratou-se efetivamente de uma mudança de mentalidade ou apenas de uma situação insuperável, inevitável, diante da realidade econômica interna, das pressões internacionais e das exigências da sociedade, cada vez mais complexa e cheia de necessidades desatendidas.

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3 limitES finAncEiRoS E PoSSíVEiS SoluçõESDiante da imensa gama de esperanças depositadas sobre o Estado social e aos limitados

recursos disponíveis em países com economias relativamente frágeis como a brasileira, vislumbram-se duas opções viáveis: a) Ampliar a arrecadação ou b) Reduzir despesas.

3.1 Ampliar a arrecadaçãoPara os governantes, a opção de aumentar tributos é sempre preferível. Na origem, a

tributação é uma relação de poder. Ainda que essa visão tenha evoluído para o conceito de relação jurídica, os governos não parecem preocupados com a capacidade de pagamento dos cidadãos, nem demonstram sensibilidade diante do fato de que a carga tributária, no Brasil, hoje atinge o alarmante e crescente percentual de 37,7% (RIBEIRO, 2006, on line). Nenhuma empresa ou cidadão comum tem a faculdade de, ao sofrer restrições financeiras, aumentar sua arrecadação sem maiores esforços. Ao governo basta negociar e legislar.

Realidade insofismável é que os limites razoáveis da carga tributária brasileira foram há muito superados, de forma que parece ser insuportável uma adicional ampliação dessa carga, embora isso não possa ser descartado ante a histórica falta de visão governamental acerca dos limites de tributação e a relativa timidez do Poder Judiciário em coibir essa prática. Não parece estar sendo respeitado o princípio de vedação ao confisco, insculpido no art. 150, inc. III, alínea “d”, da Constituição Federal.

Segundo Ives Gandra Martins (2001, p.23), há desatendimento ao princípio “sempre que a tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se desenvolver (ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos a mais do que essas necessidades para reinvestir ou se desenvolver)”.

Muito embora o princípio constitucional de vedação ao confisco seja, realmente, fluído, já que os limites daquilo que equivaleria a confisco, deixando de ser mera tributação, são de difícil definição, verdade é que o problema sempre haverá de ser resolvido tendo-se em vista o princípio da razoabilidade (AMARO, 2005 p.144). Considera-se, pois, que se a tributação é, por sua grande magnitude, não razoável em virtude da exagerada carga imposta ao cidadão, também haverá de ser considerada, por consequência, inconstitucional. Infelizmente, como princípio que é, o conceito de vedação ao confisco deveria ser aplicado pelo legislador, respeitado pelo administrador público e salvaguardado pelo Poder Judiciário, de forma mais específica e ousada do que vem sendo.

O princípio da vedação ao confisco ainda não apresenta contornos suficientemente definidos, cabendo, dentre outras dúvidas, o questionamento referir-se-ia apenas a algum tributo, singularmente considerado, ou representaria mais que isso, uma limitação geral à carga tributária imposta aos cidadãos. Segundo Ives Gandra Martins, o princípio de vedação ao confisco pode ser considerado em relação à totalidade dos tributos incidentes, e não apenas a um tributo isoladamente

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Na minha especial maneira de ver o confisco, não posso examiná-lo a partir de cada tributo, mas da universalidade de toda a carga tributária incidente sobre um único contribuinte.

Se a soma dos diversos tributos incidentes representa carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver, estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o sistema terá de ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando criado, ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão. (MARTINS, 2001, p.23)

Parece óbvio que a atual carga tributária pode ser tomada como não razoável e, consequentemente, inconstitucional, especialmente considerando-se o fato de que o retorno em serviços concedido pelo Estado ao cidadão é, confessadamente, insignificante.

Infelizmente, há uma inexplicável timidez por parte dos operadores jurídicos que, diante da real dificuldade de estabelecimento de critérios mais objetivos para estabelecimento de limites à chamada “sanha arrecadatória” do Estado, terminam por fazer “letra morta” um princípio tão caro ao Direito Constitucional Tributário.

Seguindo este raciocínio, desprezado pelos tribunais e pela sociedade como um todo, qualquer intenção de aumento da carga tributária, no estágio atual, poderia ser visto como atentado à Constituição, fato que levaria à inviabilidade jurídica da ampliação da carga tributária brasileira graças a uma necessária e desejável atuação do Judiciário.

À parte do aspecto meramente jurídico, o senso geral é que a carga tributária atingiu patamares insuportáveis, sendo pouco recomendável sua ampliação em razão dos funestos resultados que disso adviriam (sobrecarga do setor produtivo, aumento da sonegação fiscal, redução da capacidade de investimentos, redução da competitividade internacional e outros).

Afasta-se, portanto, a ideia de ampliação da carga tributária, tanto por questões administrativas, quanto jurídicas.

3.2 Reduzir despesasRestringido o caminho da ampliação da carga tributária, remanesceria a outra

possível solução: reduzir os gastos. Na visão liberal, este seria o caminho recomendável, o que passaria, invariavelmente, pela minimização estrutural do Estado. Obviamente, a supressão de órgãos estatais ou estruturas que não estejam adequadas a dar retorno útil à sociedade é sempre recomendável seja qual for a ideologia adotada, muito embora, na prática, tal solução encontre inesperados percalços, visto implicar no desatendimento a interesses de grupos burocráticos, alguns deles extremamente influentes.

Ocorre, porém, que na maioria dos casos a redução de estruturas ocasiona também decadência na qualidade dos serviços prestados. Em suma, o Estado, hoje tão criticado por sua omissão, em casos tais, ousa recuar ainda mais, afastando-se de sua missão constitucional.

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Entretanto, uma coisa é a ideologia liberal do Estado mínimo; outra, bastante diversa, é a ideologia abraçada pela Constituição. Num Estado de direito, não cabe ao governante, que é efêmero, modificar, limitar ou desatender os princípios constitucionais, que ao menos tencionam ser eternos.

Trabalhar continuamente pelo atendimento aos direitos sociais não é uma opção do administrador público: trata-se de obrigação imposta pelo Estado de direito instaurado no Brasil a partir da Constituição de 1988. Segundo Moraes (1999, p.184), os direitos sociais são fundamentos do próprio Estado democrático

Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal.

Sendo assim, afigura-se que a fuga do Estado de campos nos quais está obrigado a atuar, representaria, no caso brasileiro, verdadeiro desatendimento à Constituição, já que esta lhe impõe a obrigação de atender seus cidadãos em inúmeros aspectos, zelando pela consecução de padrões consideráveis de qualidade de vida.

Partindo-se do pressuposto de que a redução de despesas pode ser efetuada sem qualquer prejuízo à qualidade dos serviços públicos, nada poderia se opor. Como se afirmou anteriormente, a realidade demonstra que esta solução, aparentemente simples, apresenta dificuldades, razão pela qual geralmente é disfarçada em atos que, na prática, não atingem os objetivos anunciados, como a extinção de órgãos, mas a manutenção das estruturas, passando-as à responsabilidade de outros órgãos sobreexistentes, sem nenhuma efetiva melhoria administrativa.

Ao reduzir estruturas, o governante deve estar cônscio de que qualquer tipo de atentado aos direitos sociais já conquistados esbarraria na discussão sobre a constitucionalidade desse ato. Há que se concluir pela impossibilidade de supressão de direitos sociais, seja por modificações legislativas, seja pela omissão ou desinteresse do Estado em trazer os direitos constantes do ordenamento legal ao mundo fático (em muitos casos, mantém-se o direito na previsão legal e nada se faz para efetivá-lo). Trata-se do princípio da “proibição de retrocesso” que Sarlet (2004, p.147) assim conceitua

Em linhas gerais, o que se percebe é que a noção de proibição de retrocesso tem sido por muitos reconduzida à noção que José Afonso da Silva apresenta como sendo de um direito subjetivo negativo, no sentido de que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o teor

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da Constituição (inclusive com os objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático), bem como rechaçar medidas legislativas que venham, pura e simplesmente, subtrair supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que lhe foi outorgado pelo legislador.

Como se não bastasse o mencionado princípio (implícito) constitucional, o Brasil é signatário do Pacto de São Salvador, integrado ao sistema legal pátrio pelo Decreto Legislativo nº 56, de 19 de Abril de 1995, que assim dispõe em seu art. 1º

Artigo 1 – Obrigação de adotar Medidas. Os estados-partes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem-se a adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo.

Pontifique-se que discussões de cunho puramente ideológico, sobre a conveniência ou não recomendabilidade da atuação estatal de forma tão ampla, devem ser reservadas ao âmbito legislativo (político), o que não significa dizer que a ideologia não participe do mundo do direito. Há que se reconhecer, entretanto, que no Estado democrático e pluralista há um lócus especificamente destinado às lutas ideológicas, que é o campo político. A existência de uma Constituição positivada serve, justamente, para minimizar este tipo de debate no âmbito da administração pública que já sofre muito pelo excesso de discussões vazias de pragmatismo.

Nossa opção constitucional voltou-se para uma forte participação estatal na área social, respeitando-se a propriedade privada e a economia de mercado, e esta opção do constituinte, representante popular, deve ser respeitada mesmo por aqueles que dela discordam.

Em suma, reduzir despesas quase sempre redunda em malefícios à qualidade dos serviços estatais, o que se afigura, também, conduta inconstitucional, passível, portanto, de controle jurisdicional (muita embora – há que se reconhecer – a intervenção do Judiciário seja extremamente tímida nessa questão). Sobre a atuação do Judiciário, Streck (2006, p.121) comenta

O problema é que o judiciário sempre se encontra diante de um dilema: se assume postura intervencionista, imiscuindo-se até mesmo no controle de políticas públicas, é acusado de ativista (quando não, de utilizar a jurisprudência dos valores); se assume uma postura self restreinting (veja-se o caso do mandado de injunção e a discussão sobre a cassação das liminares durante a “grande

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privatização” ocorrida no governo Fernando Henrique) é criticado pela sua timidez ou conservadorismo.

Ainda que tais atos sejam de difícil detecção por parte do Judiciário e mesmo da sociedade, há que se compreender que o administrador público está obrigado a atender a Constituição mesmo que sua eventual desobediência possa passar impune, isto é, mesmo inexistindo efetivo controle jurisdicional sobre tais comportamentos governamentais, o administrador público tem a obrigação de atender os ditames constitucionais que não são dirigidos exclusivamente ao Poder Judiciário. Muito embora essa visão seja rara nos governantes, nem por isso deixa de ser desejável, cabendo ao cidadão exigir da classe política respeito aos balizamentos impostos pela ordem constitucional.

4 concluSãoPor um aspecto, não se pode cogitar em ampliação da carga tributária, tendo em

vista o grande sacrifício já imposto à coletividade que, talvez, possa ver no princípio constitucional da vedação ao confisco um válido e legítimo instrumento de defesa contra o irrefreável vício estatal de ampliar cada vez mais a arrecadação tributária. Por outro aspecto, reduzir os gastos estatais atingindo a qualidade ou amplitude dos serviços prestados pelo Estado, também pode ser tomado como atentado ao princípio da vedação de retrocesso das conquistas sociais encampadas por nossa Constituição, salvo quando tais reduções decorram de readequações administrativas que preservem a atuação estatal.

Frente a tantas exigências e tão parcos recursos, estaria o Estado brasileiro diante de um impasse insuperável?

Obviamente, a solução não poderá ser encontrada em condutas tradicionais. Mais do que nunca, está em jogo a capacidade administrativa do administrador, eleito pelo povo, em antever soluções que não impliquem nem em ampliação da carga tributária, nem em redução da atuação ou da qualidade dos serviços públicos, tão deficientemente prestados pelo Estado brasileiro. O governante está constitucionalmente impossibilitado de recuar nos serviços públicos já prestados e também obrigado, dentro do possível, a envidar esforços pelo avanço na efetivação de tais direitos, tendo em vista ser este o fim e a razão de existência do Estado social.

Reorganizar a administração pública, realocando recursos financeiros e humanos parece ser a única solução viável. Melhorar o desempenho dos servidores públicos, buscando a melhoria da produtividade, enfim, reduzir despesas sem reduzir a capacidade do Estado em atender aos primordiais anseios do povo. As parcerias com o setor privado ou a retirada do Estado de setores econômicos nos quais não está vocacionado a atuar

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são decisões positivas, desde que não representem simples abdicação dos interesses públicos em prol do setor privado.

Especialmente complexo é o enfrentamento a setores burocráticos cujo poderio hipertrofiou juntamente com o Estado; enfrentar essa situação é causa de extremo desgaste para o político que muitas vezes prefere o caminho da omissão ao invés do enfrentamento. Entretanto, o Estado existe para a sociedade, não o inverso.

As poucas soluções apontadas neste estudo, consistentes na readequação do modelo administrativo do Estado, não são meras opções; consistem nas únicas alternativas juridicamente viáveis neste momento, tendo em vista que os demais caminhos estão cerrados ao administrador público, não por questões de inconveniência ou impraticabilidade administrativa, mas em razão dos próprios mandamentos insculpidos na Constituição. Não é, em suma, questão meramente administrativa, mas também jurídica.

REfERênciASAMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 1994.BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 4.ed. Brasília: OAB Editora, 2002.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%E7ao.htm>. Acesso em: 25 set. 2007.______. Decreto Legislativo nº 56 de 19 de abril de 1995. Pacto de São Salvador. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/legislacao/vol1_5.htm> Acesso em: 07 set. 2006.BRENDLER, Karina Meneghetti. A panaceia do estado social e a crise fiscal. CD-ROM Juris Síntese nº 53 – Maio/Jun. 2005.CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002.MARTINS, Ives Gandra da Silva. Curso de direito tributário. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2001.MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.RIBEIRO, Ana Paula. Orçamento deixa de fora corte de gasto público e prevê mínimo de R$ 375. Folha Online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u110686.shtml> Acesso em: 07 set. 2006.

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SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, 2004.STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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Direito e Democracia v.10 n.2 p.212-227 jul./dez. 2009Canoas

o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais numa perspectiva histórica

Alberto de magalhães franco filho

RESumoCostuma-se fracionar o desenvolvimento dos direitos humanos em eras ou dimensões. A

primeira geração de direitos fundamentais surge no século XIX e é composta dos direitos de liberdade, correspondentes aos direitos civis e políticos, relativos à primeira fase do constitucionalismo. A segunda geração, que dominou o século XX, compõe-se dos direitos sociais, culturais e econômicos, inseridos nas constituições das diversas formas de Estados sociais. Já a terceira geração de direitos é fruto da alteração da sociedade por mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico) que fazem surgir novos problemas e preocupações mundiais como a preservação do meio ambiente, proteção dos consumidores etc. Em nosso trabalho pretendemos comentar o desenvolvimento dos direitos humanos e a mudança de paradigmas dos direitos individuais para os transindividuais.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos humanos. Gerações. Dimensões. Eras de direitos.

the development of the basic human rights in a historical perspective

ABStRActIt is custom if to divide the development of the human rights in ages or dimensions. The

first generation of basic rights appears in century XIX and is composed of the rights of freedom, correspondents to the civil laws and politicians, relative the first phase of the constitutionalism. The second generation, that dominated century XX, is composed in social, cultural and economic, inserted the rights in the constitutions of the diverse forms of social States. Already the third generation of rights is fruit of the alteration of the society, for changes in the international community (mass society, increasing technological development) that they make to appear new problems and world-wide concerns as the preservation of the environment, protection of the consumers etc. In our work we intend to comment the development of the human rights and the change of paradigms of the individual rights for the transindividuais.

Keywords: Basic rights. Human rights. Generations. Dimensions. Ages of rights.

Alberto de Magalhães Franco Filho é especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM. Mestrando em Direito Coletivo e Função Social do Direito pela Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP. Bolsista da CAPES pelo programa PROSUP. Advogado.

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1 intRoDuçãoNo presente trabalho pretendemos analisar a evolução e o desenvolvimento dos

direitos humanos fundamentais.

Inicialmente iremos buscar uma terminologia adequada para os direitos, que terão sua trajetória evolutiva estudada.

Em um segundo momento, traçaremos um esboço histórico do surgimento das chamadas declarações de direitos, marco inicial, do estudo dos direitos humanos fundamentais.

Posteriormente trataremos da evolução dos direitos fundamentais, sob a perspectiva das eras de direitos, com o estudo das ondas geracionais ou dimensionais dos direitos humanos fundamentais.

Por fim analisaremos a mudança de paradigmas entre os direitos individuais e os interesses transindividuais.

2 A tERminoloGiA ADEQuADAComo bem salienta José Adércio Leite Sampaio,

Qualquer estudo que se faça de um instituto ou categoria jurídicos como quase tudo nessa vida não prescinde do exame da terminologia apropriada e das perspectivas conceituais que se apresentam na doutrina como forma de encontro de uma semântica comum ou pelo menos de maneira de evitar confusões.1

O estudo dos direitos do homem reveste-se de grande importância e relevância não só para o mundo jurídico, talvez por isso tantos estudiosos de diversas áreas do conhecimento tenham se debruçado sobre ele, dando ensejo a um grande número de expressões tidas como sinônimas, e consequentemente a uma grande imprecisão terminológica.

A doutrina2 tem apontado diversas expressões para designar tais direitos, entre elas podemos citar: direitos naturais; direitos inatos; direitos originários; direitos humanos; direitos do homem; direitos fundamentais; direitos humanos fundamentais; direitos individuais; direitos civis; direitos políticos; direitos públicos subjetivos; direitos morais; direitos sociais; direitos econômicos, sociais e culturais; direitos do

1 SAMPAIO. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. 2004, p.5.2 Cf. SILVA. Curso de direito constitucional positivo. 2001, p.179; CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da constituição. 2006, p.393-398; MIRANDA. Manual de direito constitucional, tomo 4. 1988, p.48-72. PÉREZ LUÑO. Los derechos fundamentales. 1998, p.23; TAVARES, André Ramos. “Direitos fundamentais (definição)”. In DIMOULIS, Dimitri (coord.). Dicionário de direito constitucional. 2007, p.124.

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cidadão; direitos de personalidade; direitos dos povos; interesses difusos; liberdades fundamentais; liberdades públicas; garantias e deveres fundamentais etc.

Esse grande número de expressões empregadas atesta a confusão3 teórica e normativa envolta sobre o tema. Tais expressões, efetivamente não são sinônimas,4 porém muitas vezes erroneamente empregadas como tal. Vejamos a crítica de Paulo Bonavides, quanto ao emprego descompassado destas expressões

Temos visto nesse tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica, ocorrendo porém o emprego mais frequente de direitos humanos e direitos do homem entre autores anglo-americanos e latinos, em coerência aliás com a tradição histórica, enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita á preferência dos publicistas alemães.5

Em outro sentido e com relação á dimensão empregada na expressão, Canotilho afirma que

Segundo sua origem e significado poderiamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos validos para todos os povos em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.6

Então qual expressão seria a mais adequada? Tal questionamento é importante, pois a expressão utilizada deverá refletir o real significado da complexidade do tema ora tratado. Neste sentido é a lição de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior que asseveram: “qualquer opção terminológica deve guardar o objetivo de melhor refletir a relação de correspondência sígnica entre a expressão eleita e a realidade que por ela se pretende produzir”.7

Uadi Lamego Bulos sugere o uso da expressão “liberdades públicas em sentido amplo”, que designariam um “conjunto de normas constitucionais que consagram

3 Em um capítulo intitulado “Um eterno problema de nomes”, José Adércio Leite Sampaio analisa com pormenor a confusão teórica e normativa destes termos, atribuindo grande parte desta confusão à história dos usos e costumes linguísticos da França e dos Estados Unidos da América, que são os países de destaques em todo o exame retrospectivo destes direitos (SAMPAIO. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. 2004, p.5-22).4 Para um maior aprofundamento sobre o significado de cada uma das expressões mencionadas e a confrontação entre elas, consultar as obras dos constitucionalistas portugueses José Joaquim Gomes Canotilho (CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da constituição. 2006, p.393-398) e Jorge Miranda (MIRANDA. Manual de direito constitucional, tomo 4. 1988, p.48-72).5 BONAVIDES. Curso de direito constitucional. 2002, 514.6 CANOTILHO. Ob. cit., p.393.7 ARAUJO; NUNES JÚNIOR. Curso de direito constitucional. 2006, p.107.

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limitações jurídicas aos Poderes Públicos”.8 Nesse sentido também é o magistério de Maria Garcia, que opta por “liberdades públicas”,9 somente.

Porém, como alerta Jorge Miranda10 a expressão “direitos fundamentais” tem sido a preferida pela doutrina e pelos textos constitucionais. Araújo e Nunes Júnior afirmam que este termo é o “único apto a exprimir a realidade jurídica precipitada”.11

Já, José Afonso da Silva, esclarece que

direitos fundamentais do homem constituía a expressão mais adequada a este estudo (...) no qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que não se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, e as vezes nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. (destaques do autor)12

Não obstante a interessante justificativa do autor, julgamos ser mais pertinente a expressão “direitos humanos fundamentais” utilizada por e Manoel Gonçalves Ferreira Filho13 e Alexandre de Moraes,14 por entendermos que esses direitos, inicialmente, pertencem às pessoas humanas e justamente por isso, são qualificados como fundamentais

Alexandre de Moraes define direitos humanos fundamentais como,

o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.15

Por fim, entendemos ser também adequado o emprego da expressão “direitos fundamentais”, adotada pela maioria dos doutrinadores e dos textos constitucionais.

8 BULOS. Curso de direito constitucional. 2007, 401.9 GARCIA. Desobediência civil: direito fundamental. 2004.10 MIRANDA. Ob. cit. 1988, p.48.11 ARAUJO; NUNES JÚNIOR. Ob. cit., p.109.12 SILVA. Ob. cit., p.182.13 FERREIRA FILHO. Direitos humanos fundamentais. 2008.14 MORAES. Direitos Humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da Republica Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 1998.15 Idem, p.39.

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3 hiStÓRico DoS DiREitoS humAnoS funDAmEntAiSSegundo a lição de Norberto Bobbio,

os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstancias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.16

Assim como os direitos do homem tem origem histórica, se quisermos compreender a fase atual do desenvolvimento destes direitos é preciso lançarmos um olhar sobre a história.

Alexandre de Moraes comenta que a origem dos direitos individuais do homem pode ser encontrada no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a. C., onde já existiam alguns mecanismos de proteção individual em face do Estado. A primeira codificação a consagrar direitos comuns a todos os homens seria o Código de Hamurabi (1690 a. C.). O autor salienta também a influência filosófico-religiosa dos direitos do homem com a propagação das ideias de Buda (500 a. C.). 17

Grécia e Roma antigas, são consideradas para alguns18 como a proto-história dos direitos humanos fundamentais. Contudo, conforme Oscar de Carvalho, “o mundo antigo não conheceu o primado da liberdade individual e por via de consequência nele não se fizeram presentes as condições históricas necessárias ao desenvolvimento dos direitos humanos”.19 Há também a contribuição do Cristianismo, que trouxe uma mudança de paradigmas do paganismo grego e romano.

Ferreira Filho aponta como remoto ancestral da doutrina dos direitos fundamentais a antiguidade, onde existia um direito superior não estabelecido pelos homens, mas dado a este pelos deuses, com referência a Antígona de Sófocles, ao diálogo De Legibus, de Cícero até a Suma teológica de São Tomás de Aquino. Porém afirma o autor que foi com a escola do direito natural e das gentes, que se formulou a doutrina adotada pelo pensamento iluminista que seria expressado mais á frente nas declarações de direitos.20

Sintetizando a origem histórica dos direitos fundamentais, José Adércio Leite Sampaio salienta que,

16 BOBBIO. A era dos direitos. 2004, p.25.17 MORAES. Ob. cit., 1998, p.24-25.18 ACCIOLI apud PUHL. “Breve histórico sobre a evolução dos direitos fundamentais”. in Revista Jurídica UNIGRAN, p.1019 CARVALHO. “Gênese e evolução dos direitos fundamentais”. in Revista Instituto de Pesquisas e Estudos: Divisão Jurídica, p.32.20 FERREIRA FILHO. Ob. cit., 2008, p.9-10.

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temos dispostas assim três grandes matrizes do sistema de direitos humanos: religião, processo e propriedade. Ou mais precisamente a liberdade religiosa, as garantias processuais e o direito de propriedade. Essas matrizes tiveram raízes e desdobramentos nos três grandes modelos de desenvolvimento dos direitos humanos: Inglaterra, Estados Unidos e França.21

Não obstante a menção destes momentos históricos como sendo a gênese dos direitos humanos fundamentais, o certo é que “somente a partir do momento em que limites foram colocados ao poder incontrastável do Estado é que o conceito de direitos humanos formou-se na história”.22

Diante desta constatação somente a partir da elaboração de declarações de direitos é que podemos afirmar o surgimento efetivo dos direitos fundamentais. Dalmo de Abreu Dallari anota que,

O exame dos documentos legislativos da antiguidade revela já uma preocupação com a afirmação de direitos fundamentais, que nascem com o homem e cujo respeito se impõe, por motivos que estão acima da vontade de qualquer governante. Observa-se, porém que nos documentos antigos mesclavam-se preceitos jurídicos, morais e religiosos, não se dissociando a recomendação de regras morais da imposição coercitiva de certos comportamentos. Durante a Idade média também não se encontravam documentos que tenham o caráter de declarações abstratas de direitos, havendo apenas documentos legislativos como a legislação dos povos germânicos, que contém regras de vida social, nas quais está implícita a existência dos direitos fundamentais. Foi na Inglaterra, já na ultima fase da Idade Média, que teve a iniciativa de afirmações que podem ser consideradas precursoras das futuras declarações de direitos.23

Segundo Manoel G. Ferreira Filho, “o registro de direitos num documento escrito é pratica que se difundiu na segunda metade da Idade Média”.24 Sendo manifestada inicialmente por meio de pactos, forais ou cartas de franquia.25

O primeiro registro escrito de direitos foi a Magna Charta Libertatum, outorgado por João Sem-Terra em 15 de junho de 1215, onde foram consagrados direitos dos barões e prelados ingleses, restringindo o poder absoluto do monarca. Vejamos seus dois artigos iniciais

21 SAMPAIO. Ob. cit., p.141.22 Cf. CARVALHO. Idem., p.31.23 DALARI. Elementos da teoria geral do estado. 2007, p.206.24 FERREIRA FILHO. Ob. cit. 2008, p.11.25 FERREIRA FILHO. Curso de direito constitucional. 2007, p.4-5.

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1 – A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus direitos e liberdades: e queremos que assim seja observado em tudo e, por isso, de novo asseguramos a liberdade de eleição, principal e indispensável liberdade da Igreja de Inglaterra, a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre nós e os nossos barões [...].

2 – Concedemos também a todos os homens livres do reino, por nós e por nossos herdeiros, para todo o sempre, todas as liberdades abaixo remuneradas, para serem gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros, para todo o sempre [...].26

Gomes Canotilho faz menção à Carta inglesa de 1215, afirmando que embora contivesse fundamentalmente direitos estamentais, já fornecia aberturas para a transformação dos direitos corporativos em diretos dos homens.27

Após foram editados também na Inglaterra o Petition of Right em 7 de junho de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679, o Bill of Right em 13 de fevereiro de 1689 e o Act of Settlement de 12 de junho de 1701.

Muito embora, os referidos documentos sirvam de precedentes históricos, nas palavras de José Afonso da Silva, “a primeira declaração de direitos fundamentais em sentido moderno, foi a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia”. Esta declaração foi feita em 16 de junho de 1776, e consubstanciava as bases dos direitos do homem, vejamos alguns de seus dispositivos

I – Todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes e têm certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade, não podem por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade, nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança.

II – Todo poder reside no povo e, por consequência, deriva do povo; os magistrados são seus mandatários e servidores e responsáveis a todo tempo perante ele.

III – O governo existe e deve existir para o bem comum, proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; de todos os modos e formas de governo o melhor é o que é capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança, e está mais eficazmente organizado contra o perigo de má administração; e, sempre que qualquer governo se mostre inadequado ou contrário a estes fins, a maioria da comunidade tem o direito incontestável, inalienável e irrevogável de o reformar, modificar ou abolir da maneira que for julgada mais conducente à felicidade geral.28

26 Cf. MIRANDA. Textos históricos do direito constitucional. 1990, p.13.27 CANOTILHO. Ob. cit., p.382-383.28 Cf. MIRANDA. Idem. 1990, p.31-32

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Em segundo lugar de precedente histórico, porém ocupando o destaque entre as declarações de direitos, está a Déclaration dês Droits de l’Homme et du Citoyen, de 26 de agosto de 1789. Ela se encontra em vigor até os dias atuais na França, e foi “por um século e meio o modelo por excelência das declarações”.29 José Afonso da Silva comenta que a Declaração Francesa é mais importante, tendo em vista seu caráter abstrato e “universalizante”, enquanto a Declaração Americana era mais concreta, “preocupada com a situação particular que afligia aquelas comunidades”, seus três caracteres fundamentais eram o “intelectualismo”, o “mundialismo” e o “individualismo”.30 Vejamos seu preâmbulo e art. 1º

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram em declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os seus direitos e seus deveres; a fim de que os actos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser em cada momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.

Por consequência, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:

Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.31

Raul Machado Horta assevera que “com a declaração de direitos de 1789, ‘arquétipo constitucional’ de documentos dessa natureza, fez-se na verdade a catalogação mais famosa dos direitos individuais de resistência ao Estado e ao Poder”.32

Note-se que as duas declarações de direitos de Virginia (1776) e francesa (1789) precedem as Constituições Americana (1787) e Francesa (1791), tal fato é explicado por Ferreira Filho no sentido de que primeiro formalizou-se em um documento escrito o pacto social (declaração de direitos) contendo os direitos naturais e os limites destes, e somente posteriormente com a garantia destes formalizou-se o pacto político (Constituição). Somente mais adiante, na era do constitucionalismo, por economia de tempo e trabalho que se passou a estabelecer num mesmo documento a declaração de Direitos e a Constituição.33

29 FERREIRA FILHO. Ob. cit. 2008, p.19.30 SILVA. Ob. cit., p.161-162.31 Cf. MIRANDA. Ibidem., p.57.32 HORTA. Estudos de direito constitucional. 1995, p.244.33 FERREIRA FILHO. Idem., p.5-6.

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4 A EVolução DoS DiREitoS funDAmEntAiS A PARtiR DAS onDAS GERAcionAiS ou DimEnSionAiSEm 1979, proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos

Direitos do Homem, em Estraburgo, o jurista francês Karel Vazak utilizou, pela primeira vez, a expressão “gerações de direitos do homem”, buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). Vejamos o comentário de Paulo Bonavides

o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade.

Com efeito, descoberta a fórmula de generalização e universalização, restava doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada ordenamento político os direitos e conteúdos matériais referentes àqueles postulados. Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em substituição da universalidade abstrata e, de certo modo metafísica daqueles direitos, contida no jus naturalismo do século XVIII.

Existem outros autores como o alemão Konrad Hesse,34 o português Canotilho35 e entre nós, Ingo Wolfgang Sarlet36 e Leonardo Martins,37 que preferem a utilização do termo “dimensões”, pois o vocábulo gerações daria a ideia de substituição de uma geração por outra. Há ainda quem critique tanto a ideia de gerações quanto dimensões como Antônio Augusto Cançado Trindade38 e George Marmelstein Lima.39

Passemos então ao estudo das “eras dos direitos”40 humanos fundamentais, que sem dúvida, historicamente passaram por um “processo expansivo de acumulação de níveis de proteção de esferas da dignidade da pessoa humana”.41

34 HESSE. Estudos de direito constitucional da republica federal da Alemanha. 1998.35 CANOTILHO. Ob. cit., p.386-387.36 SARLET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 200437 MARTINS. “Direitos fundamentais (história) – liberdade”. In DIMOULIS, Dimitri (coord.). Dicionário de direito constitucional. 2007, p.127-128.38 Palestra proferida durante o “Seminário Direitos Humanos das Mulheres: A Proteção Internacional”. Disponível on-line: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/Cancado_Bob.htm>39 LIMA. “Crítica à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais”. in Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, v. 2, n. 3, p.171-182, 2004.40 Expressão cunhada pelo italiano Norberto Bobbio.41 ARAUJO; NUNES JÚNIOR. Ob. cit., p.115.

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Os primeiros direitos abrangem aqueles referidos nas declarações de Direitos das Revoluções americana e francesa; são os primeiros a serem positivados e por isso são chamados de primeira geração ou dimensão, eles “se fundam numa separação entre Estado e sociedade, que permeia o contratualismo individualista dos Séculos XVIII e XIX”.42 São os direitos de liberdade que se dividem em civis e políticos.

José A. L. Sampaio afirma que os direitos ou liberdade civis são aqueles que “mediante garantias mínimas de integridade física e moral, bem assim de correção procedimental nas relações judicantes entre indivíduos e o Estado, asseguram uma esfera de autonomia individual de modo a possibilitar o desenvolvimento de cada um”. Já os políticos são “de inspiração democrática (...) seu núcleo se encontra no direito de votar e ser votado”.43

Os direitos de primeira geração têm como titular o indivíduo singularmente considerado. Eles surgem após o absolutismo, no Estado de Direito Liberal, e representam um “não-agir do Estado”;44 basicamente traduzem-se em “postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada individuo”.45 Parafraseando Paulo Bonavides, estes direitos apresentam-se “como faculdade ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.46

Como alerta Gilmar Mendes,

o descaso para com os problemas sociais, que veio a caracterizar o État Gendarme, associado ás pressões decorrentes da industrialização em marcha, o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade, tudo isso gerou novas reivindicações, impondo ao Estado um papel ativo na realização da justiça social. O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia, satisfatoriamente, ás exigências do momento. Uma nova compreensão do relacionamento Estado/sociedade levou os Poderes Públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais das ações estatais por objetivos de justiça social (destaques do autor)47

42 SAMPAIO. Ob. cit., p.260.43 SAMPAIO. Idem., p.260.44 BOBBIO. Ob. cit., p.2645 MENDES [et. al.]. Curso de direito constitucional. 2007, p.223.46 BONAVIDES. Ob. cit. 2002, p.517.47 MENDES [et. al.].. Idem., p.223.

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Os direitos de segunda geração, da mesma forma que a primeira, foram inicialmente objeto de formulação especulativa em campos políticos e filosóficos que possuíam grande cunho ideológico. Dominaram o século XX assim como os de primeira geração dominaram o século XIX. Tiveram seu nascedouro nas reflexões ideológicas e no pensamento antiliberal desse século. 48

A segunda geração de direitos está ligada ao principio da igualdade (na visão de Karel Vazak) e são enquadrados como direitos prestacionais, ou seja, aqueles relativos à exigência de participação do Estado na realização da justiça social, através de medidas efetivas para garantir o mínimo necessário à vida digna do ser humano.

Estes direitos são chamados também de “direitos sociais, culturais e econômicos”. Essa trilogia normalmente é apresentada sob o rótulo geral de “direitos sociais”, porém há quem trace distinções internas. É o magistério de José Adércio Leite Sampaio

Os direitos sociais propriamente ditos seriam aqueles necessários á participação plena na vida da sociedade, incluindo o direito á educação, a instituir e manter uma família, á proteção da maternidade e da infância; bem como para permitir o gozo efetivo dos direitos de primeira geração, como o reconhecimento do direito ao lazer e o direito a não haver discriminação. Já os direitos econômicos se destinam a garantir um nível mínimo de vida e segurança materiais de modo que a cada pessoa desenvolva suas potencialidades. Estão nesta lista os direitos trabalhistas, a exemplo do direito ao trabalho e a um salário mínimo digno, e previdenciários, direitos de assistência social, do direito á saúde, á alimentação, ao vestuário e o direito á moradia. Por fim os direitos culturais dizem respeito ao resgate, estímulo e a preservação das forma de preservação cultural das comunidades, bom como se destinam a possibilitar a participação de todos nas riqueza esperituais comunitárias.49

Vale ressaltar que, segundo Gilmar Mendes, os direitos sociais recebem esta denominação não por que sejam direitos de coletividades, mas pelo fato de estarem ligados às reivindicações de justiça social.50

É imperioso esclarecer também que estes direitos, diferentemente dos primeiros, possuem um aspecto objetivo, qual seja a “garantia de valores e princípios de proteção com que escudar e proteger as instituições”, dando vezo ao surgimento das “garantias institucionais”.51

A terceira geração de direitos é fruto da desigualdade entre as nações. Para Norberto Bobbio os direitos de terceira geração ou “novos direitos” são marcados pela alteração da sociedade, por mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico) que fazem surgir novos problemas

48 BONAVIDES. Idem., p.518. 49 SAMPAIO. Ididem., p.262-26350 MENDES [et. al.]. Ibidem., p.224.51 BONAVIDES. Ibidem., p.519.

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e preocupações mundiais como a preservação do meio ambiente, proteção dos consumidores etc.52

Paulo Bonavides comenta que,

A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que se assenta sobre a fraternidade, conforme assinala Karel Vasak.53

Assim, esses direitos assumem o caráter coletivo, o que não estava presente nas duas dimensões anteriores, porquanto, visam à proteção do direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e à comunicação.54

Nesse sentido55 também se posiciona Gilmar Ferreira Mendes, afirmando que os direitos de terceira geração “peculiarizam-se pela titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos”.56

No Brasil o órgão superior do poder judiciário e guardião da Constituição Federal (Supremo Tribunal Federal – STF) reconhece expressamente a existência de três gerações de direitos. 57 58

Os direitos de terceira geração surgem, portanto, num momento em que a sociedade experimenta profundas transformações, trazendo uma nova realidade social, econômica e jurídica. É o comentário pertinente Marcus Vinícius Rios Gonçalvez

52 BOBBIO. Idem., p.25-2753 BONAVIDES. Ibidem., p.522.54 BONAVIDES. Ibidem., p.523.55 Registre-se que existem outros autores como por exemplo Etiene R. Mbaya que apresentam um sentido de “solidariedade, que representaria a busca da cooperação internacional entre os povos. Tal sentido não representa a mesma noção que nos apresentamos e julgamos ser a mais precisa, muito embora não discordemos destas ponderações, simplesmente a consideramos como um dos sentidos da terceira onda geracional de direitos. (MBAYA apud BONAVIDES. Ibidem., p.523-524.)56 MENDES [et. al.]. Ibidem., p.224.57 “Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados como valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade”. (STF – Pleno – Mandado de Segurança n. 22.164/SP – Relator Ministro Celso Melo, Diário da Justiça, Seção I, 17, novembro 1995, p.39.206).58 É importante mencionar que existem doutrinadores que ainda apresentam uma quarta geração de direitos e até mesmo uma quinta geração, contudo não iremos fazer nenhuma observação sobre esta gerações ou dimensões, pois já atingimos a evolução dos direitos individuais aos interesses transindividuais, que é o objeto de nosso estudo.

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A realidade sócioeconômica modificou-se com rapidez, e o século XX assistiu ao desenvolvimento incessante das economias de massa. Os sistemas de produção desenvolveram-se, com repercussão evidente na oferta de bens, para a satisfação das necessidades humanas. O individualismo do século XIX cedeu lugar à massificação em velocidade acelerada.59

Neste cenário, perdem os interesses puramente individuais o lugar de destaque, para dar lugar aos interesses metaindividuais ou supra-individuais, cujos titulares não são mais pessoas consideradas individualmente, mas grupos de pessoas.

5 concluSãoÀ guisa das considerações finais, podemos afirmar que o estudo dos direitos

humanos fundamentais é tema bastante complexo, porém desafiador. A começar pela infinidade de termos empregados para simbolizá-los, e a confusão teórica e normativa causada por isso.

Também devemos ressaltar que os direitos humanos fundamentais, são direitos essencialmente históricos, e demandam um olhar criterioso para a história, contudo percebemos sua gênese está ligada diretamente às Declarações de Direitos, da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França.

Não podemos deixar de mencionar que estes direitos, após sua formalização e positivação, sofreram um processo histórico evolutivo, dividido em gerações ou dimensões, comumente chamado de Era dos Direitos.

Nestas ondas geracionais ou dimensionais, percebemos a clara evolução cumulativa e qualitativa dos direitos pertencentes a indivíduos isolados (direitos individuais) até direitos pertencentes a grupos ou coletividades de pessoas (interesses transindividuais ou metaindividuais).

Assim vislumbramos na evolução dos direitos humanos fundamentais, não só o nascimento de “novos direitos” oriundos da sociedade de massas, mas também o surgimento de uma nova visão que rompe o axioma individualista da sociedade moderna, para dar vezo á um novo paradigma, o da coletividade.

59 GONÇALVES. Tutela de interesses difusos e coletivos. 2007, p.1

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o princípio da igualdade na sociedade brasileira pluralista: a questão das cotas

raciais em universidadeshelton Kramer lustoza

RESumoA presente pesquisa vem avaliar a questão das cotas raciais em universidades no contexto

da sociedade brasileira, trazendo uma reflexão objetiva sobre pontos fundamentais sob o prisma do direito constitucional contemporâneo. Primeiramente se faz uma analise do significado e da origem das diferenças raciais existentes no país, para se encontrar a razão das medidas de legitimação de diferenças raciais. Por fim se identifica a política de cotas raciais em universidades como uma provável ação afirmativa (política de discriminação positiva) no direito brasileiro, mas que, neste caso, não encontra legitimação perante o princípio da igualdade.

Palavras-chave: Igualdade. Política e discriminação.

the principle of equality in pluralist Brazilian society: the question of racial quotas in universities

ABStRActThis research looks for evaluating the issue of racial quotas in Brazilian’s universities, bringing

an objective discussion about contemporary themes of constitutional law. First, the analysis will be focus in the meaning and origin of racial differences in the country to find the right measures of legitimization of racial differences. Finally, to identify the policy of racial quotas in universities as a possible affirmative action (positive discrimination policy) under Brazilian law, but in this case, without legitimacy because of equality principle.

Keywords: Equality. Political and discrimination.

1 A DominAção BASEADA no ASPEcto RAciAl no BRASilEste trabalho visa a abordar a questão específica das cotas raciais em universidades

no contexto da sociedade brasileira de um modo desapaixonado à causa, buscando trazer a reflexão pontos e situações fundamentais sob o prisma do direito constitucional moderno.

Helton Kramer Lustoza é especialista em Direito Tributário pelo IBPEX em Curitiba-PR. Mestrando em Direito Constitucional pela Unibrasil. Membro do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário – IBPT. Pesquisador integrante do Grupo: Justiça Tributária e Atividade Econômica da PUC-PR. Membro da comissão de Direito Tributário da OAB-PR. Professor Universitário. E-mail: [email protected]

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Para tornar mais objetiva a reflexão, toma-se como foco de análise inicial a busca de um significado e origem das diferenças raciais existentes no país, de modo que venha a legitimar mecanismos de inclusão social. Pois é com a análise dos problemas do passado que se pode ter noção da eficácia de soluções do futuro.

Um dos principais problemas enfrentados pelo Brasil é a questão da desigualdade social. Se por um lado a Constituição Federal de 1988 determina que todos são iguais perante a lei, sem discriminação de qualquer natureza, algumas pessoas, ainda, se utilizam de uma espécie de classificação por raça, para justificar algum ato de segregação ou dominação.

O desafio do direito contemporâneo é dar respostas à questão de ambiguidades que se apresentam na seara racial, permitindo uma garantia frente à pluralidade étnica existente no Brasil. Para se iniciar um estudo sobre cotas raciais é essencial analisar-se em que se baseou a formação do povo brasileiro, para entender a origem das diferenças sociais existentes.

Desde a chegada dos europeus em terras tupiniquins observou-se a exploração de mão de obra humana, na qual a escravidão sempre foi a base da produção econômica brasileira,1 sendo baseada inicialmente com a obtenção de escravos indígenas e, posteriormente, com escravos africanos.

A dificuldade enfrentada pelos exploradores foi na dominação dos índios que rejeitavam explicitamente a aceitar aqueles mandos do homem branco, o que fez com que houvesse uma expansão da importação de negros para trabalharem nas lavouras. Mas o que se deve observar é que a escravidão foi tomada como mão de obra fundamental para a economia nascente no país, no qual a dominação foi baseada em critérios estritamente econômicos.

O professor Darcy Ribeiro leciona que o

processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios, negros e brancos, foi, por conseguinte, altamente conflitivo. Pode-se afirmar, mesmo, que vivemos praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com frequência, se torna cruento, sangrento.2

Isso demonstra que desde o início havia um conflito entre povos, de modo que o europeu impunha sua dominação sob a base de uma macroetnia expansionista. O branco precisava se impor frente a população “dita inferior” e a justificativa utilizada para a dominação foi através de uma hierarquia racial.

Após a abolição da escravatura, o Brasil passou por um grande período de

1 Cf. HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26.ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.482 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.168.

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contradições e dilemas, de uma sociedade rural em fase de transição para uma sociedade urbana recém industrializada, mas que não conseguia libertar-se de suas estruturas do passado. A substituição da mão de obra escravocrata por uma mão de obra livre inviabilizava a industrialização do país que teimou em manter os padrões patriarcais.

A falta de uma racionalidade econômica e espírito competitivo fez com que o país, pós-escravatura (meados século XX), passasse por uma incontrolável migração do meio rural para o urbano, transformando as áreas marginais às cidades em grandes favelas. E um dos principais problemas enfrentados pelo Brasil diz respeito às diferenças sociais criadas pela imensa massa inserida nas cidades, após a tentativa de industrialização do país, o que fez com que se constatasse um fato: “no Brasil, as classes ricas e as pobres se separam umas das outras por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto as que medeiam entre povos distintos”.3

Observa-se que a tese de hierarquia de raças foi utilizada como justificativa para se manter a dicotomia entre pobres e ricos. Assim,

percebe-se como o conceito de raça ‘pura’ foi transportado da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre as classes sociais (Nobreza e Plebe), sem que houvesse diferenças morfobiológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes.4

Os povos dominadores se utilizaram de uma comparação biológica de determinadas raças para fixarem justificativas para legitimar diversos sistemas de dominação racial. Observe-se o que o filósofo francês Voltaire escreveu em uma de suas obras

A raça negra é uma espécie humana tão diferente da nossa quanto a raça de cachorros spainel dos galgos [...]. A lã negra nas suas cabeças e em outras partes [do corpo] não se parece em nada com o nosso cabelo; e pode-se dizer que a sua compreensão, mesmo que não seja de natureza diferente da nossa, é pelo menos muito inferior.5

Isso deixa claro que o critério de classificação de raças sempre foi utilizado na história para justificar as diferenças entres pessoas em uma sociedade, mas não uma diferença que seria biológica. Essa diferença é cultural, criada pelo próprio homem para justificar uma dominação social, o que serviu de embasamento para muitas discriminações.

3 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, p.2104 MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional de Relações Raciais e Educação – PENESB-RJ, em 05 de jan. 2003. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/09abordagem.pdf> Acesso em 15 de dez. de 2008.5 Voltaire, citado por PENA, Sérgio D.J. Humanidade sem raças? São Paulo: Publi Folha, 2008, p.14.

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Segundo o professor Kabengele Munanga,6 a classificação de raças tem fundamento histórico. No século XVIII, os filósofos iluministas contestavam o conhecimento da Igreja e se recusam a aceitar a explicação até então dada à história da humanidade, consequentemente, buscavam uma explicação baseada na razão. Esses filósofos colocaram em debate se os povos recém descobertos (por exemplo, na América) integravam à antiga humanidade como raças diferentes. Para esse docente da USP, levando em conta que as classificações são instrumentos que ajudam a operacionalizar o conhecimento, foi essa técnica utilizada para explicar a diversidade humana. O que não se poderia imaginar é que esse método de conhecimento acabou servindo de base para justificação de uma espécie de hierarquização, o que pavimentou o caminho do racismo.

Assim Kabengele Munanga contesta a existência de raça como elemento biológico, mas acredita ser um elemento cultural

Combinando todos esses desencontros com os progressos realizados na própria ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram a conclusão de que a raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito alias cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estancas. Ou seja, biológica e cientificamente, as raças não existem.7

Isso não significa que todos os indivíduos são geneticamente idênticos, ao contrário, são diferentes, mas essas diferenças não podem servir de suporte para se defender uma classificação em raças. O grande problema histórico foi de se criar uma escala de valores entre as denominadas raças, o que deu azo a enormes distorções na sociedade, sendo utilizado como fundamento de grandes atrocidades, como por exemplo, o nazismo, que defendia a existência de uma raça ariana superior.

O tipo físico, como pele ou cabelo não pode ser utilizado como mecanismos de distinção, muito menos de classificação de pessoas, pois

não há raças biológicas, ou seja, na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corresponda ao que comumente chamamos de ‘raça’ tem existência real, segundo, o que chamamos ‘raça’ tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena.8

O que deixa claro que “o conceito de raça tal como o empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele

6 Cf. MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia, hhtp://www.acaoeducativa.org.br, acesso em 15.12.08.7 MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia, idem.8 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. p.50

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esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação”,9 ou seja, são construções fantasiosas criadas no imaginário social a partir das diferenças como a cor da pele e, assim, manter uma discriminação a certa pessoa ou grupo social.

Pode-se encontrar até mesmo uma explicação da origem da dominação na doutrina contratualista, como Rousseau,10 que defende que o homem viveu no estado de natureza de forma simples, solitária e inocente, preocupando-se apenas com sua conservação. Nessa época, o homem não possuía a ideia do “teu” e do “meu”, inexistia a ideia de propriedade. Com a passagem da ordem natural para a formação da sociedade civil veio a instituição da noção de propriedade e, assim que os homens, antes livres, se tornam escravos uns dos outros. A partir desse momento o homem desenvolveu a ambição de ficar num status acima dos outros homens e não se contentava de produzir frutos somente para suas necessidades básicas, mas para ganhar à custa do trabalho dos outros. É nesse sentido que se observa o surgimento de um sentimento de dominação sobre outros homens, o que denota que o fundamento seria econômico (propriedade).

Nesse diapasão, qualquer tipo de discriminação tomada com base no critério de classificação racial não encontrará um embasamento biológico. Isso mostra o grande equívoco de muitas pessoas tomam apenas a raça ou traços culturais, linguísticos, religiosos, para considerar que um determinado grupo social seria inferior a outro. Fica claro que o aspecto raça é um conceito criado pela sociedade sem valor biológico e científico, ou seja, “as raças não existem em nossa mente porque são reais, mas são reais porque existem em nossa mente.”11

Tanto é assim que o juiz americano Warren no julgamento de um processo que tratava sobre o racismo expressou que

não vejo como, no dia e na época de hoje, podemos separar um grupo do restante e dizer que eles não têm direito ao mesmo tratamento de todos os outros. Fazer isso isto seria contrário às Décima Terceira, Décima Quarta e Décima Quinta Emendas. Elas visavam tornar os escravos iguais a todos os outros. Pessoalmente, não consigo ver de que forma podemos hoje justificar a segregação unicamente com base na raça.12

Com essa mesma linha de pensamento, o antropólogo Ralph Linton também defende que a utilização de superioridade de raças é uma questão de ideologia da dominação.

9 MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia, idem.10 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social; ensaio sobre a origens das línguas; discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; discurso sobre as ciencias e as artes. Trad. Lourdes Santos Machado. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.266.11 KAUFMAN, Jay S citado por PENA, Sérgio D.J. Humanidade sem raças? São Paulo: Publi Folha, 2008, p.05. 12 MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano. 1.ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001, p.82.

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Desde que os brancos eram mais bem-sucedidos que as outras raças, deviam ser, em si mesmos, superiores aos outros. A falta de uma perspectiva mundial do europeu médio obstava que ele verificasse quão recente era esse domínio e o levava a complicadas tentativas, para provar que as outras raças estavam realmente mais baixo, na escala da evolução física.13

Ainda que a classificação “raça” tenha sido desbancada pelas pesquisas contemporâneas com DNA, ainda permanecem muitas mentalidades que defendem teses racistas, não respeitando as diferenças culturais e étnicas. É nesse cenário que se buscou a construção de uma política multiculturalista que garantisse a cada grupo social um espaço dentro da sociedade.

Mas o que se pode perceber é que o critério de diferenciação de raças possui uma origem econômica, utilizado com o fim de criar escalonamento na sociedade.

Esse debate se mostra de extrema importância para resolver o dilema educacional da sociedade brasileira que oficialmente se diz democrática e postula a educação como sendo um mecanismo de ascensão social, mas que, de fato, mostra-se seletiva e pouco atraente para a classe desprestigiada. O que se deve compreender é que a desigualdade social no Brasil parte-se de um problema econômico, devendo as políticas públicas serem direcionadas nesse viés e não numa questão racial propriamente dita.

2 AçõES AfiRmAtiVAS como PolíticAS DE comBAtE A DiScRiminAção RAciAl E A influênciA Do PluRAliSmo juRíDicoA passagem do Estado liberal para o Estado social, frente a uma discussão

epistemológica contemporânea, pode ser compreendida como uma quebra de paradigma,14 uma passagem no plano do pensamento jurídico e estatal.

Na égide do Estado liberal de Direito, a atuação estatal absorveu as bases teóricas de Locke e Monstequieu, o que propiciou a difusão da ideia de direitos fundamentais e separação de poderes. Os primados da legalidade e da liberdade foram elevados como matriz do Estado, de modo que esses dois direitos foram os pilares do Estado liberal.

O Estado de Direito abandonou os elementos materiais para se reduzir a um esquema formal, a partir disso “já não interessa indagar o que o Estado pode querer – basta verificar se quer na via do direito”.15 Essa legalidade construída perde cada vez

13 LINTON, Ralph. O homem: uma introdução a antropologia. Trad. Lavínia Vilela. 11.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1981, p.57.14 Um paradigma, segundo Kuhn, é um modelo ou padrão aceito, que, na dimensão científica, raramente é suscetível de reprodução, porque, assim como decisões judiciais, o paradigma “é um objeto a ser mais bem articulado e precisado em condições novas ou mais rigorosas” (KUHN, Thomas s. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000. p.43/44).15 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito: do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra, 1987, p.112.

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mais referência com o objetivo das liberdades e direitos individuais, o que se verifica uma neutralidade do puro Estado de legalidade e consequente manipulação autoritária do conceito.

O Estado liberal se mostrou incapaz de responder as necessidades sociais a partir da mera separação das instancias política e social. Assim, entende Jorge Reis Novaes que

(...) ao lado dos direitos e liberdades clássicos – moldados e comprimidos, particularmente no que se refere ao direito de propriedade, à medida das novas exigências de socialidade – avultam, agora, os chamados direitos sociais indissociáveis das correspondentes prestações do Estado.16

Assume o Estado Social o encargo de buscar uma reconfiguração da atuação estatal na sociedade, atendendo as mais variadas áreas até então deixa a cargo dos particulares.

Diante da passagem de um modelo liberal para um modelo social de Estado, Ronald Dworkin17 identifica um aparente conflito entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade distributiva, haja vista que a liberdade concebida com sua natureza negativa nega a possibilidade de concessões de privilégios somente a uma parcela da sociedade. Frente a esse dilema, responde Dworkin que

Faço essa afirmação ousada porque acredito estarmos hoje unidos na aceitação do princípio igualitário abstrato: o governo deve agir para tornar melhor a vida daqueles a quem governa, e deve demonstrar igual consideração pela vida de todos.18

Na égide do atual Estado social não se pode estabelecer um sistema em que a liberdade irá prevalecer sobre a igualdade, pois o pensamento jurídico contemporâneo é a favor de um Estado solidário, um Estado que intervém na sociedade para garantir a igualdade de oportunidades.

É por isso que nesse novo cenário o princípio da igualdade surge como uma técnica de saneamento de diferenças, isto é, um instrumento de combate as desigualdades sociais existentes na sociedade.

16 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito: do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito, p.197.17 Cf. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.168.18 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.169.

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No Brasil, o sistema multicultural aliado a má distribuição de renda, desviando os interesses estatais sempre em favor de uma classe hegemônica (baseado numa decisão da maioria – sistema democrático), acabou culminando na marginalização política, jurídica e social de uma classe na sociedade. Essa classe, por muitos denominados como marginalizados, não tinham voz ativa nos rumos desta sociedade, sendo deixados às margens de qualquer beneficio que uma civilização possa proporcionar. Essa classe não possui uma denominação racial, mas sim sociológica, são os pobres (sem condições financeiras para obter participação digna na sociedade).

Frente a estes aspectos o campo foi propício para que os movimentos sociais assumissem um papel importante na defesa das minorias19 em busca de soluções a problemas que até então as outras classes sociais não levaram em conta, já que a defesa não seria de seu interesse.

O Estado social transformou a conotação dos direitos individuais de índole formal em material, Celso Bastos descreve essa passagem como “os principais elementos componentes deste alargamento das funções públicas foram à promoção do bem comum e da justiça social”.20

Com o intuito de minimizar os problemas sociais, os governantes propuseram uma séria de reformas estruturais, haja vista que a legitimidade do Estado vem a anos sendo comprometida, pois como se observa, o Estado nunca agiu em prol do interesse das classes marginalizadas. Sempre a maioria (fundamento da democracia) que decidia os rumos da nação, nunca decidia em prol de todas as classes.

A busca para que a camada marginalizada de uma sociedade fosse resgatada para participação social desencadeou reflexões em todos os campos das ciências, em especial no Direito. Diante de uma crise dos instrumentos legais no campo de inclusão social a teoria crítica do direito aparece como um instrumento de conscientização.

Começa-se a perceber que o direito legal era apenas um elemento componente dentro do Direito,21 havendo enumeras outras formas de regulação social que tinham aceitação dentro de uma determinada comunidade, mas que não estavam abrangidos pelo direito legal.

É diante desse cenário que o pluralismo jurídico vem a estudar essas mudanças da realidade social, oferecendo formas alternativas de realização das necessidades esquecidas pelo poder público.

Antonio Carlos Wolkmer assim define o pluralismo jurídico:

(...) o pluralismo enquanto novo referencial do político e do jurídico necessita contemplar a questão do Estado, suas transformações e desdobramentos mais recentes, principalmente de um Estado limitado a reconhecer e garantir Direitos

19 Minoria não no sentido de quantitativo, mas sim no sentido de poder político e jurídico. 20 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p.41.21 Cf. COELHO, Luis Fernando. Teoria Critica do Direito. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.442.

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emergentes. Por outro lado, há de se sublinhar a especificidade do pluralismo como projeção de um paradigma interdiciplinar do político e do jurídico.22

Os movimentos sociais tiveram um papel importante nessa quebra de paradigma, estão eles contribuindo para o impulso de uma nova cultura política participativa, calcados no direito da diversidade. Para Wolkmer, os movimentos sociais

devem ser entendidos como sujeitos coletivos transformadores, advindos de diversos estratos sociais e integrantes de uma prática política cotidiana com reduzido grau de institucionalização imbuída de princípios valorativos comuns e objetivando a realização de necessidades humanas fundamentais.23

Para o professor Marcos Augusto Maliska24, a implementação de processos autônomos de participação irá ajudar na modelação das políticas publicas do Estado, conforme reivindicações realizadas. Assim, o direito pode ser compreendido como um instrumento de transformação social, através do qual a sociedade deve lutar, através de suas formas associativas, para implementar os direitos previstos no texto legal.

Ante a necessidade de se resgatar a classe marginalizada e propulsionada pelas correntes do pluralismo jurídico, o Estado inaugurou uma série de políticas públicas de inclusão social, denominadas de ações positivas, que poderiam ser definidas como

um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.25

Como representante do Direito Público, Carmem Lucia Antunes defende que “a ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitos as minorias”.26

Em outras palavras, ações afirmativas podem ser compreendidas como mecanismos que promovem o princípio da igualdade de oportunidades, trazendo ao seio social

22 WOLKMER, Antonio Carlos. Citado por MALISKA, Marcos Antonio. Pluralismo jurídico e Direito moderno. Curitiba: Juruá, 2000, p.65. 23 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p.125.24 Cf. MALISKA, Marcos Antonio. Pluralismo jurídico e Direito moderno. Curitiba: Juruá, 2000, p.75/82.25 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.40.26 ROCHA, Carmem Lucia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, In: Revista Trimestral de Direito Público n.15/85.

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aqueles que foram marginalizados em uma dada sociedade. Essa transformação visa atingir uma maior representatividade dos grupos minoritários nas atividades públicas e privadas.

As ações afirmativas tiveram origem nos Estados Unidos, com o fim da Guerra civil americana e a escravidão, diversas medidas jurídicas e políticas foram tomadas para combater a discriminação racial, como por exemplo, a Décima Terceira Emenda, em 1865 (que proibiu a escravidão); Décima Quarta Emenda (que trouxe o princípio do devido processo legal, proibindo a discriminação racial e considerando cidadãos americanos todos aqueles nascidos nos EUA), e a Décima Quinta Emenda, em 1870, (que impede o cerceamento do voto por motivo de raça).

Ocorre que todas as medidas tomadas pelos americanos não foram suficientes para evitar que os estados que compõe os EUA adotassem medidas segregacionistas, sobretudo os do sul, que lutaram na Guerra Civil em favor da manutenção da escravidão.27

Entende Ronald Dworkin que o objetivo das ações afirmativas é implementar uma verdadeira discriminação positiva

Muitas vezes se diz que os programas de ação afirmativa têm como objetivo alcançar uma sociedade racialmente consciente, dividida em grupos raciais e étnicos, cada um deles, como grupo, com direito a uma parcela proporcional de recursos, carreiras ou oportunidades. Essa é uma análise incorreta. A sociedade norte-americana, hoje, é uma sociedade racialmente consciente; essa é a consequência inevitável e evidente de uma história de escravidão, repressão e preconceito. (...) Os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nessas profissões. Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norte-americana, como um todo, é racialmente consciente.28

O Brasil importou as ações afirmativas americanas, tentando adotar políticas de combate à segregação, com o intuito de fazer valer o princípio da igualdade material cristalizada no artigo 5º, I, da Constituição Federal de 1988. Assim, com o efeito de combater os efeitos do passado escravocrata brasileiro o governo acaba implementando políticas concretas de inclusão social, o que traz à baila a discussão acerca da necessidade e constitucionalidade da adoção de medidas compensatórias dessa magnitude como a reserva de cotas para ingresso em universidades públicas.

O assunto tomou destaque na mídia, uma vez que a questão é extremamente polêmica. Se de um lado se envolve questões históricas como a desigualdade social,

27 Cf. SANTOS, Élvio Gusmão. Igualdade e raça. O erro da política de cotas raciais.28 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martis Fontes, 2000, p.439.

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diferenças raciais, por outro se tem que analisar os primados do princípio da igualdade, para o fim de se averiguar se a finalidade da medida possui respaldo e validade constitucional.

O procurador federal Élvio Gusmão entende que a importação do sistema de cotas em universidades que funciona nos Estados Unidos é uma tentativa equivocada de solucionar um problema brasileiro com uma solução não compatível, argumenta que

A finalidade da importação da ideia de cotas dos Estados Unidos da América é trazer uma solução para um racismo que lá era institucionalizado, a fim de resolver um problema que é mais de natureza econômica que ideológica ou institucional, pois a maior discriminação, como será demonstrado, se dá mais em virtude da posição social e econômica da pessoa do que em relação a sua cor no Brasil. Aqui, após a abolição, nunca houve lei alguma que promovesse barreira institucional a negros ou qualquer outra etnia.29

No Brasil, de forma diversa que nos EUA, não existe uma discriminação institucionalizada, embora possam ocorrer preconceitos de forma isolada, mas o que não pode ocorrer é o fato de se aceitar como legítima toda e qualquer política pública importada, sem realizar reflexões sobre as consequências da medida adotada.

É temerário admitir uma ação afirmativa (discriminação positiva) com base racial, haja vista que a adoção de políticas de cotas poderá ocasionar uma série de consequências distorcidas pelo simples fato de inexistir uma verdadeira diferença biológica de raças, discutidas no primeiro tópico.

Se a questão da desigualdade social existente no Brasil se deve a relação socioeconômica, pois a história demonstra que a escravidão ocorreu por conta do uso do poderio econômico em prol de um modelo econômico nascente, a solução das cotas raciais seria falha. Entende Elvio Gusmão que

O negro não foi escravizado por ser negro – embora tenham sido utilizadas razões teológicas e pseudocientíficas para justificar a escravidão –, mas pelo fato de a África fornecer a mão de obra necessária, mais abundante e de fácil captura, bem como possuir civilizações e culturas menos avançadas tecnologicamente, o que facilitou o seu domínio por parte do explorador europeu.30

Essa situação coloca em dúvida se as cotas raciais em universidades seria a medida correta ou adequada para solucionar um problema social brasileiro.

Com isso, a criação de cotas como forma de inserção social de grupos marginalizados, via criação de vagas exclusivas para grupos em universidades,

29 SANTOS, Élvio Gusmão. Igualdade e raça. O erro da política de cotas raciais.30 SANTOS, Élvio Gusmão. Igualdade e raça. O erro da política de cotas raciais.

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denominada de ação afirmativa, parte da premissa de problemas de segregação racial, o que na verdade a história brasileira comprova que seria socioeconômica. Isso exige que o sistema de cota deve ser melhor refletido para que deva funcionar de uma forma diferente.

3 o PRimADo conStitucionAl DA iGuAlDADE E A QuEStão DAS cotAS RAciAiS no EnSino SuPERioR: mEDiDA PolíticA DE (DES)lEGitimAção conStitucionAlA intenção deste trabalho é pesquisar a questão da política de cotas raciais em

universidades como ação afirmativa (política de discriminação positiva) no direito brasileiro, levando-se em conta as diretrizes constitucionais sobre o princípio da igualdade e sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

A constituição Federal de 1998 denota em seu art. 5º, I, que as leis devem ser executadas sem consideração pessoais, o que exige que “toda norma jurídica seja aplicada a todos os casos que sejam abrangidos por seu suporte fático e a nenhum caso que não o seja”.31 Isso remete a máxima aristotélica de que consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Mas a indagação que involuntariamente se apresenta é: quem são os iguais e quem são os desiguais? Deve-se perceber que a discriminação pode ocorrer em dois sentidos: quando se trata como iguais pessoas em situações diferentes e também quando se trata de forma diferente pessoas em situações iguais.

Em outras palavras, o ordenamento jurídico brasileiro deve buscar um tratamento semelhante em termos de direitos e obrigações para todos os cidadãos, o que não impede, por via do princípio da igualdade, que determinada situação tenha tratamento diferenciado de outra.

É possível que determinada situação, por apresentar-se como uma especialidade, possa receber um tratamento diferenciado, desde que diante de uma justificativa legitimada. Essa diferenciação não pode ser feita de maneira indiscriminada, sob pena de violar o próprio postulado da igualdade, conforme alerta Pimenta Bueno “a lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania”.32

31 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Vergílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p.394.32 BUENO, Pimenta. citado por MELLO, Celso Antonio B. de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.18. Também é o entendimento de Robert Alexy: “Se o enunciado geral de igualdade se limitasse ao postulado de uma práxis decisória universalizante, o legislador poderia, sem violá-lo, realizar qualquer discriminação, desde que sob a forma de uma norma universal, o que é sempre possível. A partir dessa interpretação, a legislação nazista sobre judeus não violaria o enunciado: os iguais devem ser tratados igualmente” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Vergílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p.398).

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Frente a essas premissas, é possível trazer o entendimento de Robert Alexy onde ele defende que o direito de igualdade definitivo abstrato desdobra-se no direito de ser tratado igualmente, se não houver justificativa para o tratamento desigual e o direito de ser tratado desigualmente se tal justificativa estiver presente.33 Este ainda compreende, com base em uma jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, que

o enunciado da igualdade é violado se não é possível encontrar um fundamento razoável, que decorra da natureza das coisas, ou uma razão objetivamente evidente para a diferenciação ou para o tratamento igual feitos pela lei,34

sendo que “promover determinados grupos já significa tratar os outros de forma desigual”.35

Fica claro que o princípio da igualdade se apresenta com caráter dúplice, que de um lado obriga o Estado a não conceder privilégios injustificados, mas também seria utilizado para a correção das injustiças sociais localizadas e pontuais (técnica de saneamento de desigualdades). Mas esse tratamento diferenciado deve ser aplicado com muita cautela, haja vista o perigo em estar criando um novo tipo de discriminação com base em uma aparência de justiça.

Diante de uma dada situação, entende Celso Antonio B. Mello36 que, primeiramente, se deve identificar aquela situação que é erigida em critério discriminatório, para depois se descobrir se existe alguma razão racional para atribuir um tratamento jurídico diferenciado. Verificado qual o fato social que se mostre discriminado, mecanismos legislativos e administrativos compensatórios poderiam ser adotados para buscar a solucionar o problema.

Nesse processo de identificação do fato discriminen deve-se ter o cuidado para que a situação analisada seja efetivamente especial, ou seja, possua característica ou traço diferenciado. Para numa segunda etapa encontrar uma correlação lógica entre os fatores diferenciais do fato analisado com a diferenciação do regime jurídico estabelecida na legislação, sendo que essa diferenciação somente poderá ser levada a efeito se o presente tratamento jurídico esteja fundado em razão valiosa protegida pela carta constitucional.37

Frente à perspectiva doutrinária acima delineada as políticas públicas precisam ser avaliadas a partir de um fundamento sociológico e constitucional, buscando a promoção da pessoa, sanando as reais desigualdades existentes na sociedade. A questão tormentosa que o Estado contemporâneo tem que lidar é o fato de encontrar razões para justificar

33 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p.429.34 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p.403.35 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p.417.36 Cf. Celso Antonio B. de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.38.37 Cf. Celso Antonio B. de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p.41.

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as discriminações positivas, isto é, de que determinada situação é realmente especial e merece guarida pelo Direito.

É nessa discussão que se insere a questão das cotas raciais em universidades, no qual o Estado brasileiro elegeu como situação a merecer um tratamento diferenciado (art. 3º, III da CF38), elencado como uma ação afirmativa destinada a promover a igualdade de acesso à educação. Mas o problema é de responder as críticas que se embasam na tese de que as cotas raciais não encontrariam uma legitimidade constitucional, bem como estaria criando, ao invés de uma inclusão social, uma nova forma de discriminação.

Sabe-se que o postulado da igualdade busca a concretização da justiça social, visando um tratamento isonômico entre situações semelhantes. Pela justificativa política da criação de cotas raciais em universidades ela estaria atrelada a concretização de uma justiça compensatória, na qual

a melhor forma de correção e de reparação desse estado de coisas consistiria em aumentar (via ações afirmativas) as chances dessas vítimas históricas de obterem os empregos e as posições de prestigio que elas naturalmente obteriam caso não houvesse discriminação.39

Observa-se que a ideia central da política de cotas é a concretização da igualdade material entre os povos, sejam eles: brancos, negros ou índios. O que se buscou com essa ação afirmativa foi diminuir as desigualdades sociais (ou tratar os desiguais na medida da sua desigualdade), através de uma reparação de injustiças cometidas no passado, o que deveria proporcionar uma correção social mediante a criação de um sistema diverso de recepção de acadêmicos pela via racial.

Ainda que a intenção seja moralmente significativa e de grande valia, o problema é justificar as cotas raciais diante do postulado constitucional da igualdade. Pois não se poderia remediar um suposto problema do passado criando um novo problema para o futuro, haja vista que se estaria criando um novo fato discriminador, assim,

o Estado brasileiro, copiando uma solução dos Estados Unidos da América para um problema norte-americano, deu início a uma política de pretensa inclusão social e econômica das populações negras e aborígenes com o fim de diminuir as desigualdades vigentes entre estes e os de cor branca, incentivando, todavia, a discriminação racial.40

38 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.39 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA, p.63/64.40 SANTOS, Élvio Gusmão. Igualdade e raça. O erro da política de cotas raciais.

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Se a justificativa utilizada para a implantação da cotas raciais for de justiça compensatória, existem pesadas críticas acerca de sua aceitação, haja vista que em matéria de reparação de danos, somente quem sofreu o dano teria legitimidade de receber a respectiva reparação, bem como somente quem praticou o ato danoso tem o dever de arcar com a sanção, não sendo permitido repassar o encargo e benefícios para terceiros. Essas críticas tendem a enfraquecer a tese compensatória das ações afirmativas, segundo entendimento de Joaquim Barbosa.41

O sistema de cotas raciais foi uma opção política do Estado brasileiro como solução a fim de resolver um problema que é mais de natureza econômica do que ideológica ou racista (ao contrário da história dos EUA). A história brasileira comprova que a maior discriminação existente ocorre em virtude da posição social e econômica do que em relação à cor de pele. Se a questão de raça sempre foi utilizada como um meio para a justificação de dominação de povos, pode-se compreender que a instituição de uma forma diferenciada com base em raças, seria falha, ou pior, discriminatória.

Além disso, o artigo 208, inciso V da Constituição Federal determina que haverá o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”, o que impõe um caráter meritório na admissão de acadêmicos pelo ensino superior, ao contrário do que ocorre no ensino fundamental e médio que se orientam pelo princípio da universalização. Assim, é vedada qualquer eleição de fator de discriminação que se baseia em nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, religião, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal42 em casos semelhantes.

Defende Nina Beatriz Stocco Ranieri que as cotas raciais em universidades irá criar uma distorção extremamente prejudicial na sociedade, realizando pesadas críticas a este sistema

A reserva de vagas não resolve o problema da desigualdade educacional, cujas raízes encontram-se nas condições de acesso, qualidade e permanência no ensino fundamental e médio. Pelo contrário, além de não o solucionar, agrava a desigualdade assim produzida de forma perversa. Cria duas categorias de

41 Cf. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA, p.65.42 CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, ART. 153, § 1º; C.F., 1988, ART. 5º, CAPUT. I. – AO RECORRENTE, POR NÃO SER FRANCÊS, NÃO OBSTANTE TRABALHAR PARA A EMPRESA FRANCESA, NO BRASIL, NÃO FOI APLICADO O ESTATUTO DO PESSOAL DA EMPRESA, QUE CONCEDE VANTAGENS AOS EMPREGADOS, CUJA APLICABILIDADE SERIA RESTRITA AO EMPREGADO DE NACIONALIDADE FRANCESA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: C.F., 1967, ART. 153, § 1º; C.F., 1988, ART. 5º, CAPUT). II. – A DISCRIMINAÇÃO QUE SE BASEIA EM ATRIBUTO, QUALIDADE, NOTA INTRÍNSECA OU EXTRÍNSECA DO INDIVÍDUO, COMO O SEXO, A RAÇA, A NACIONALIDADE, O CREDO RELIGIOSO, ETC., É INCONSTITUCIONAL. PRECEDENTE DO STF: AG 110.846(AGRG)-PR, CÉLIO BORJA, RTJ 119/465. III. – FATORES QUE AUTORIZARIAM A DESIGUALIZAÇÃO NÃO OCORRENTES NO CASO. IV. – R.E. CONHECIDO E PROVIDO. (RE 161243, RELATOR(A): MIN. CARLOS VELLOSO, SEGUNDA TURMA, JULGADO EM 29/10/1996, DJ 19-12-1997 PP-00057 EMENT VOL-01896-04 PP-00756).

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alunos em termos de mérito e competência acadêmicas: os das cotas reservadas e os que ingressam sem reserva de cotas; o que não só diminui a eficiência da reconhecida qualidade do ensino superior público, uma vez que os primeiros tendem a permanecer por mais tempo nos cursos de graduação, dadas as consequências inerentes à facilitação do acesso, centradas basicamente no déficit de aprendizagem. Este mesmo fato, considerado do ponto de vista do aluno ingressante pelo sistema de cotas, produz efeito antissocial ante as possíveis repetências e dificuldades de acompanhamento normal dos cursos. Não há outro caminho para a redução de desigualdades na área educacional senão o da melhoria de ensino fundamental e médio, o que supõe tanto o investimento financeiro como a formação de professores devidamente capacitados para atuar nesses níveis de ensino (...).43

Deve existir uma reflexão no sentido de que se prevalecer a tese de que é possível criar um sistema em que defende uma concorrência apartada para os negros e índios, tendo como justificativa que eles não teriam as mesmas capacidades que os brancos, isso pode representar dois problemas graves: de um lado a quebra do princípio da eficiência do ensino público, ao se flexibilizar o acesso de alunos; e por outro lado, uma legalização do racismo ao invés de uma ação afirmativa.

Nesse sentido foi o entendimento da Desembargadora Vera Lúcia Lima do Tribunal Regional Federal da 2ª Região,44 ao julgar o Agravo de Instrumento n.2008.02.01.012162-1, ocasião em que ela decidiu que as cotas raciais não atendiam ao princípio da isonomia, haja vista que o acesso ao ensino universitário deve sempre ser regulado de acordo com o critério meritório.

O que se tenta defender é que ao se criar um sistema diferenciado sob o pretexto de que há raças exploradas historicamente, mas na verdade a exploração se deu por aspectos econômicos, então a premissa adotada é falsa, logo o sistema pode não funcionar da forma que se imagina.

Além da ação judicial acima citada, existem várias outras discutindo a matéria de cotas raciais em universidades, dentre elas uma representação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (processo n.º 2003.007.00021) e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADIN 2858). Ambas as

43 RANIERI, Nina Beatriz Stocco . A reserva de vagas nas universidades públicas. BDA: Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.17, n.9, p.699-701, 2001.44 CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ENSINO SUPERIOR. SISTEMA DE COTAS. RESOLUÇÃO Nº 33/2007 DA UFES. RESERVA DE 40% DAS VAGAS DOS CURSOS OFERECIDOS PARA ESTUDANTES DE BAIXA RENDA EGRESSOS DE ESCOLAS PÚBLICAS. ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RESERVA DE PLENÁRIO. DESNECESSIDADE IN CASU. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. ACESSO QUE DEVE PAUTAR-SE DE ACORDO COM O MÉRITO DE CADA UM. ART. 208, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE META PROGRAMÁTICA INSTITUÍDA PELO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO EM PROL DA UNIVERSALIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR. DECISÃO QUE NÃO MALFERE A AUTONOMIA DIDÁTICO-CIENTÍFICA PREVISTA NO ART. 207 DA CR/88. RECURSO PROVIDO. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO. (TRF 2ª região – AI. 2008.02.01.012162-1. Julg. 11/03/2009. Rel Des. Vera Lucia Lima).

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ações trazem questões como estas que foram levantadas neste trabalho e que merecem ser amadurecidas pela sociedade com muita clareza e objetividade.

Outro problema que se encontra no sistema de cotas raciais e que impede a legitimidade constitucional é a respeito de sua operacionalidade, sendo que o aspecto racial depende de uma análise subjetiva. Pois se já é difícil afirmar que raças existem, como se fazer a confirmação de que alguém é negro, índio ou branco. E o mulato, seria meio negro ou meio branco? Então teria ele direito a meia cota? Frente à interpretação extensiva, admitida no direito constitucional, como tratar aquele de cor branca, mas filho de mãe e pai negros?

Acredita-se que as cotas raciais poderão ocasionar mais distorções do que correção na sociedade brasileira, pois a diferenciação a ser criada com base em raças além de possuir premissas falhas, não admite um controle objetivo, possibilitando, por exemplo, que negros ricos possuam privilégios e brancos pobres e marginalizados fiquem de fora do programa.

Observe-se um caso real que ocorreu na Universidade de Brasília relatada pelo procurador federal Élvio Gusmão

História bizarra aconteceu com os gêmeos Alan e Alex. No início de maio de 2007, o estudante Alan Teixeira da Cunha, de 18 anos, e seu irmão gêmeo Alex foram juntos à Universidade de Brasília (UnB) para se inscrever no vestibular. Visto que têm pele morena, eles optaram por disputar o concurso por meio do sistema de cotas raciais. Desde 2004, a UnB e outras 33 universidades do país reservam 20% de suas vagas a alunos negros e pardos que conseguem a nota mínima no exame. Alan e Alex são gêmeos univitelinos, ou seja, foram gerados no mesmo óvulo e, genética e fisicamente, são idênticos. Eles se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que se enquadram nas regras, já que seu pai é negro e a mãe, branca. Seria de esperar que ambos recebessem igual tratamento. Não foi o que aconteceu. Os “juízes da raça” olharam as fotografias e decidiram: Alex é branco e Alan não. Alan, que quer prestar vestibular para educação física, foi classificado como preto na subcategoria dos pardos e pode se beneficiar do sistema de cotas. Alex, que pretende cursar nutrição, foi recusado.

A decisão da banca da Universidade de Brasília que determina quem tem direito ao privilégio da cota mostra o perigo de classificar as pessoas pela cor da pele – coisa que fizeram os nazistas e o apartheid sul-africano.45

Para o americano John Rawls as desigualdades sociais atingem as possibilidades de vida dos seres humanos. É sobre tais desigualdades que a teoria da justiça deve ser aplicada, através da defesa da equidade. Assim, defende este autor que

45 SANTOS, Élvio Gusmão. Igualdade e raça. O erro da política de cotas raciais.

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todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido”. E também, “as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos;(a) devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e (b) devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade.46

É possível defender que haja mecanismos de correções das desigualdades sociais com a finalidade de privilegiar os menos favorecidos. O que não pode acontecer é simplesmente eleger a questão racial como premissa para a diferenciação social, o que em si já é uma discriminação, haja vista que no atual Estado Democrático de Direito todo e qualquer tratamento diferenciado deve atender ao princípio da isonomia, afim de que “(...) aquilo que é identificado como vontade da Constituição deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas”,47 conforme defende o doutrinador alemão Konrad Hesse.

Uma alternativa legitima que poderia ser criada seria a implementação definitiva de cotas para estudantes de escolas públicas ou cotas para pessoas sem condições financeiras. Estas espécies de diferenciação, aparentemente, encontrariam fundamento constitucional, pois se estaria combatendo a desigualdade social, com um problema historicamente identificado e com mecanismos de caráter objetivo, sem riscos de se privilegiar pessoas em situações iguais.

O princípio da igualdade, conforme concebido pelo Estado Democrático de Direito moderno se traduz em uma técnica que visa o saneamento das desigualdades sociais. Mas não pode ser tomado como fundamento para as cotas raciais, pois, nesse caso, estaria aplicando a isonomia às avessas, o que deslegitima os primados constitucionais.

4 conSiDERAçõES finAiSA classificação de raças não tem caráter biológico, mas sim, tem um conceito

carregado de ideologia, esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. É uma construção criada no imaginário social a partir das diferenças como a cor da pele e, assim manter uma discriminação a certa pessoa ou grupo social.

A história brasileira demonstra que as desigualdades sociais possuem uma origem econômica, no qual a questão racial foi elencada tão somente como uma justificativa de dominação.

46 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.47/48.47 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991, p.22.

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Diante da existência das desigualdades sociais é que se percebeu o surgimento de movimentos sociais que vieram a exercer um papel importante nessa quebra de paradigma. Junto com esses movimentos da sociedade também surgiram políticas públicas como forma de inserção social de grupos marginalizados, denominadas de ações afirmativas.

O Brasil importou a ideia de cotas raciais para universidades dos Estados Unidos da América, tentando trazer uma solução para desigualdade social, mas que não guarda legitimidade com a carta constitucional brasileira de 1988. Ela parte da premissa de problemas de segregação racial, o que na verdade a história brasileira comprova que seria socio-econômica.

O princípio da igualdade concebido pela Constituição Federal de 1988 se traduz numa técnica que visa o saneamento das desigualdades sociais e a adoção das cotas raciais em universidades não encontra legitimidade constitucional, pois estaria legalizando uma espécie de discriminação.

Aparentemente as cotas raciais se apresentam a sociedade como uma medida de inclusão social, mas pode-se verificar que além de não possuir uma legitimidade constitucional sua operacionalidade irá criar um antagonismo com o princípio da isonomia. O critério verificador de raças ficará a cargo de uma análise subjetivista, o que poderá criar verdadeiras distorções na finalidade dessa medida social.

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o compromisso de compra e venda e a vigência das Súmulas 84 e 239 do Stj

Gerson luiz carlos Branco

RESumoO compromisso de compra e venda é um contrato disciplinado por diversas leis, editadas

de forma fragmentada ao longo de quase setenta anos, tendo os efeitos do seu registro no álbum imobiliário sido disciplinados pelo Código Civil vigente. O advento do Código Civil (lei nova) sobre o entendimento jurisprudencial sumulado precisa ser estudado e entendido, para que o contrato e seus efeitos possam ser executados. O propósito deste artigo é fazer a distinção entre o regime dos efeitos do compromisso de compra e venda registrado (com eficácia real e com possibilidade de propositura de ações reais) do não registrado (com eficácia obrigacional e possibilidade de propositura de ações para execução das obrigações).

Palavras-chave: Liberdade contratual. Compromisso de compra e venda. Adjudicação compulsória. Embargos de terceiro.

the agreement to sale and the force of the dockets 84 and 239 from the Stj

ABStRActThe “agreement to sale” is a contract disciplined by various laws, edited in a fragmented

way over nearly seventy years, and the effects of its inscription on the public records are governed by the new Civil Code. The effects of new Civil Code over the “precedent” need to be studied and understood, to that the contract and its effects can be executed. The purpose of this paper is to distinguish between the effects of the “agreement to sale” recorded (with real effectiveness and possibility of bringing real actions) of non-recorded (with the obligatory efficacy and possibility of bringing actions to implement the obligations).

Keywords: Freedom of contract. Agreement to sale. Compulsory award. Embargoes third.

1 intRoDuçãoDesde 1937, quando da edição do Decreto-Lei 58, tem sido travado um contínuo

debate pela jurisprudência e doutrina a respeito da forma de execução de algumas das obrigações do Compromisso de Compra e Venda, em especial a execução da obrigação de transferir a propriedade do bem imóvel pelo vendedor e a proteção da posse do comprador perante terceiros, quando o contrato não está registrado. Com a edição do

Gerson Luiz Carlos Branco é Doutor em Direito Civil, professor de Direito Civil da ULBRA Canoas e advogado. E-mail: [email protected]

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Código Civil vigente no ano de 2003 tais dúvidas foram ampliadas em razão de ter sido reforçada a importância do registro do contrato pela criação do direito real do promitente comprador, em um contexto de pacificação jurisprudencial provocado pelas Súmulas 841 e 2392 do Superior Tribunal de Justiça.

Tais súmulas foram editadas respectivamente em 02 de julho de 1993 e 30 de agosto de 2000 e, portanto, é preciso entender os efeitos da lei posterior aos referidos entendimentos jurisprudenciais, pois se fossem disposições legais trariam o debate a respeito de sua vigência.

É evidente que as normas cristalizadas pelo entendimento jurisprudencial também ficam sujeitas aos efeitos da nova lei, mas como no caso do conflito das leis no tempo é necessário analisar como o “modelo jurídico”3 foi influenciado ou alterado, já que há um conjunto de diferentes leis e normas que regulam essa modalidade de contrato de compra e venda. Em outras palavras, somente se pode identificar o regime do cumprimento das obrigações derivadas de tal tipo contratual a partir da interpretação do contexto da formação do modelo jurídico que o tipo representa.4

É preciso verificar os efeitos da vigência do Código Civil sobre o regime dos efeitos dos contratos, em especial no que se refere aos mecanismos para tutela de tais efeitos, seja no plano obrigacional, seja no plano do Direito Real. Sob o ponto de vista prático será necessário examinar se houve alteração das hipóteses em que será possível a propositura da ação de embargos de terceiro, da adjudicação compulsória e da ação de nunciação de obra nova propostos com fundamento no compromisso de compra e venda.

Embora a investigação proposta neste artigo seja predominantemente pragmática e dogmática, é pressuposto do mesmo a indispensabilidade de qualquer estudo do Direito

1 “Súmula 84: É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”, publicada no DJ 02/07/1993, p.13283. 2 “Súmula 239: O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”, publicada no DJ 30/08/2000 p.118.3 A concepção de modelo jurídico utilizada neste artigo segue a proposição de Miguel Reale, segundo quem os modelos são estruturas postas em razão dos fins que devem ser realizados, expressando o conteúdo normativo das fontes do direito. Por isso, os modelos desvinculam-se da pessoa do legislador, de seus motivos iniciais, para que “possam atender, prospectivamente, a fatos e valores supervenientes suscetíveis de serem situados no âmbito de validez das regras em vigor tão-somente mediante seu novo entendimento hermenêutico”. “A lei é mais sábia do que o legislador”. reale, M. Fontes do direito — para um novo paradigma hermenêutico, p.31.4 Partes dos pressupostos deste artigo já foram apresentadas em dois outros estudos, sobre os efeitos da unificação das obrigações civis e mercantis sobre o regime da compra e venda e também sobre a técnica legislativa da “legislação aditiva”. BRANCO, Gerson Luiz Carlos e MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes Teóricas do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, e BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O regime obrigacional unificado do Código Civil brasileiro e seus efeitos sobre a liberdade contratual. A compra e venda como modelo jurídico multifuncional. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 872, p.43–78.

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Privado a partir de sua perspectiva histórica,5 bem como do estudo dos contratos e seus efeitos a partir da experiência social, já que o próprio conceito de contrato é indissociável dos fatos sociais e das exigências valorativas de um determinado momento histórico. Ou seja, a compreensão do modelo jurídico do “compromisso de compra e venda” somente pode se dar a partir da leitura de um conjunto de elementos, de ordem histórica, social, valorativa e normativa, que determinam a sua estrutura e funcionalidade.6

A análise das leis necessárias à compreensão da matéria, editadas ao longo de oito décadas, exige a visualização do Código Civil vigente como um “eixo” do Direito Privado.

Nessa perspectiva também é integrado o estudo da eficácia e da efetividade, pois em modelos jurídicos como o compromisso de compra e venda não há como separar e compartimentar o Direito Privado e o Direito Processual Civil em áreas estanques. É preciso compreender as diferenças principiológicas, mas não se pode esquecer que na “vida de relação” o destinatário da norma é o cidadão comum, cuja preocupação é fundamentalmente com a efetividade.

Embora ditadas ao longo de oito décadas, as leis que regulamentaram o compromisso de compra e venda estão alinhadas sob o ponto de vista principiológico, pois a socialidade e a funcionalidade foram uma marca comum que pode ser vista tanto no Decreto-Lei 58/37 às reformas processuais das últimas duas décadas para facilitar a execução das obrigações de fazer.

Por isso, não se pode deixar de acentuar que o tipo legal nasceu com o Decreto-

5 Adota-se como conceito de História do Direito aquele fornecido por Paolo Grossi, segundo o qual é compreendida como disciplina jurídica que tem por objeto a inserção das regras jurídicas no processo cultural que se desenvolve no curso do tempo. GROSSI, Paolo. Pensiero Giuridico – Appunti per una «voce» enciclopedica. Separata da Revista Quaderni Fiorentini, n. 17, 1988. GROSSI, Paulo. El punto y la línea. História del derecho y derecho positivo em la formación del jurista de nuestro tiempo. Revista del Instituto de la Judicatura Federal, México, n. 06, 2000, e GROSSI, Paolo. Scienza giuridica italiana – Un profilo storico 1860 – 1950. Milano: Giuffrè Editore, 2000. Também tem grande influência nessa concepção a obra de HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Lisboa: Europa-América, 1997.6 Conforme diz AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, p.08, “o Direito Civil é, antes de tudo, um fenômeno cultural em que predominam as notas da historicidade e da continuidade. Historicidade no sentido de que se veio formando gradativamente, desde os primórdios da civilização ocidental, até se transformar em um dos mais importantes ramos da ciência. Continuidade, pelo fato de ter-se mantido como processo constante e de certo modo uniforme na maneira de solucionar os problemas jurídicos que lhe são próprios, revelando a existência de princípios fundamentais a orientar a gênese e a aplicação de suas instituições”.

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Lei n. 58, de 10 de dezembro de 1937,7 editado para conter parte das consequências sociais e econômicas da industrialização e do êxodo rural.8

Na época havia um processo de transformação da realidade econômica brasileira, na qual o país deixava de ser predominantemente agrário para ter nas cidades a maior concentração das populações e também de sua atividade econômica. O desenho da vida agrária e da vida urbana foi alterado substancialmente durante essa época, cujo marco pode ser a revolução de 1930. Enquanto no meio rural começa a surgir o problema do êxodo e o agravamento dos conflitos pela terra, nas periferias das cidades a terra começa a ser dividida pelos especuladores imobiliários.

O contrato de compra e venda, na forma como estava regulado no Código Civil de 1916, não tutelava os interesses dos que não eram proprietários ou não tinham condições de comprar um imóvel à vista. Os trabalhadores e a classe média urbana e todos aqueles que só poderiam adquirir algum bem mediante pagamento parcelado eram excluídos da possibilidade de comprar ou ficavam nas mãos dos especuladores, que recebiam as parcelas do preço e depois se negavam a transmitir o imóvel, usando como fundamento jurídico a regra do art. 10889 do Código Civil vigente na época, que facultava o arrependimento, cabendo à parte apenas devolver o que havia recebido, sem que houvesse uma reparação integral. No máximo havia a restituição do preço pago com juros.

O exercício do arrependimento pelo comprador não era ilícito, mas exercício de um direito potestativo de escolha numa espécie de “obrigação com faculdade de substituição”, ou “obrigações com faculdade alternativa”.10

Como bem mencionam os considerandos do Decreto-Lei 58/37, multiplicavam-se as fraudes, deixando os adquirentes desamparados.

7 O compromisso de compra e venda teve origem em Projeto de lei apresentado pelo Prof. Waldemar Ferreira em 9.6.1936, tendo sido editado por Getúlio Vargas em 10.12.1937, como medida “governamental” de proteção dos adquirentes de imóveis loteados. Na época a expressão não era usada, mas tratou-se de verdadeira “lei de proteção ao consumidor”. MARCONDES, Sylvio. Professor Waldemar Ferreira. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. LX, 1965, p.47–67. 8 Veja-se a exposição de motivos do Decreto-Lei 58, de 10 de dezembro de 1937: “O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição: Considerando o crescente desenvolvimento da loteação de terrenos para venda mediante o pagamento do preço em prestações; Considerando que as transações assim realizadas não transferem o domínio ao comprador, uma vez que o art. 1.088 do Código Civil permite a qualquer das partes arrepender-se antes de assinada a escritura da compra e venda; Considerando que êsse dispositivo deixa pràticamente sem amparo numerosos compradores de lotes, que têm assim por exclusiva garantia a seriedade, a boa fé e a solvabilidade das emprêsas vendedoras; Considerando que, para segurança das transações realizadas mediante contrato de compromisso de compra e venda de lotes, cumpre acautelar o compromissário contra futuras alienações ou onerações dos lotes comprometidos; Considerando ainda que a loteação e venda de terrenos urbanos e rurais se opera frequentemente sem que aos compradores seja possível a verificação dos títulos de propriedade dos vendedores;”.9 “Art. 1088. Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts 1.095 a 1.097”.10 VARELA, J.M. Antunes. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p.338 e 339.

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O Decreto-Lei 58/37 regrou a venda de lotes, exigindo uma série de providências prévias, para o vendedor (aprovação do plano e planta do loteamento pelas autoridades públicas, regras rigorosas sobre a publicidade dos lotes etc.), podendo ser definido como uma das primeiras normas de proteção ao consumidor, assim como uma das primeiras leis que veio a proteger o compromisso de compra e venda.

Evidentemente que houve um salto expressivo no tratamento da matéria desde 1937 até os dias de hoje, salto que pode ser observado na regulamentação da matéria pelo Código Civil.

É nesse espírito de consolidação dos avanços normativos e consolidação cultural do modelo jurídico do compromisso de compra e venda que se pode dizer o quão equivocados estão aqueles que afirmam ter o Código Civil de 2003 provocado retrocesso no regulamento da matéria, em especial em razão do que dispõe o art. 463, parágrafo único, e art. 1.417, que trata da exigência de registro do compromisso de compra e venda.11

2 DAS AltERAçõES lEGiSlAtiVAS no REGimE Do comPRomiSSo DE comPRA E VEnDA REAliZADAS PElo cÓDiGo ciVil ViGEntEO tradicional conceito do contrato de compromisso de compra e venda, construído

a partir do regime delineado no Decreto-Lei 58/37, é o de um contrato pelo qual uma das partes se compromete a transferir a propriedade de um bem mediante uma nova declaração de vontade a ser realizada no futuro e a outra a efetuar o pagamento do preço. Ambas as partes comprometem-se a firmar um contrato translativo do direito de propriedade, identificado costumeiramente como sendo o contrato de compra e venda.

Trata-se de contrato autônomo, ou, pelo menos de uma das modalidades da compra e venda, segundo o que já lecionava Darcy Bessone em 1960, quando da primeira edição da monografia intitulada Da compra e venda – promessa e reserva de domínio, que tanto lhe notabilizou.12

Nesse aspecto, deve-se observar que a feição atual adotada pelo contrato reflete uma das diversas escolhas que o legislador teve, tendo em vista a vasta polêmica existente a respeito da eficácia de dito contrato, assim como sua aderência à vida real e aos problemas do cotidiano, entre os quais se pode inserir a questão apresentada num clássico estudo sobre a matéria que questionava sobre qual a razão para se percorrer

11 Para o conceito de modelo, adota-se a concepção de Miguel Reale, que de forma sintética Reale define modelo jurídico como “estrutura normativa de atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da experiência social, prescrevendo a atualização racional e garantida dos valores que lhe são próprios”. REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1999, p.46. A esse respeito tratamos no livro MARTINS-COSTA, Judith e BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.12 BESSONE, Darcy. Compra e venda. Promessa e Reserva de Domínio. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988.

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um caminho tão longo se o motivo da negociação entre as partes foi a vontade de vender e comprar.13

Evidentemente que o questionamento foi meramente provocativo, pois o compromisso é um dos instrumentos mais ágeis e úteis da realidade atual, pois evita a incidência excessiva de tributos na data da contratação, custos com escritura pública, dando segurança ao adquirente, bem como fornece a devida garantia ao alienante no caso de venda a prestações. Assim, com a cessação dos impedimentos fáticos ou legais, podem as partes firmar a escritura pública hábil a transladar a propriedade, com base no regulamento já estabelecido. Em outras palavras, o compromisso de compra e venda, além de conter um mecanismo eficaz para permitir que as partes atinjam o fim típico da compra e venda, também é um excelente instrumento de concessão de crédito com garantia.

Como a proposta deste artigo é verificar os efeitos das alterações legislativas, inicia-se pelo estudo do contrato no processo legislativo que resultou no Código Civil vigente.

A análise dos trabalhos legislativos do Código Civil demonstra que na exposição de motivos não houve referências expressas ao compromisso de compra e venda, servindo para tal fim as discussões ocorridas na Câmara dos Deputados, onde foram apresentadas emendas para tratar da matéria, pois a mesma foi objeto de discussão unicamente quando se tratou do contrato preliminar atualmente regulado nos arts. 462 a 466 do Código Civil.

2.1 Artigos 462 a 466 do código civilO art. 462 do Código Civil foi objeto de duas emendas durante o processo

legislativo, as de n. 38114 e 38215, com o objetivo de exigir que o contrato preliminar também cumprisse a forma do contrato a ser celebrado. Ambas as emendas foram rejeitadas, tendo sido mantida a redação original.

Além de tais manifestações, o próprio Agostinho Alvim, jurista encarregado de elaborar o Capítulo do “Direito das Obrigações”, manifestou-se no sentido de que a emenda fosse acolhida, argumentando que “a forma em matéria de contrato preliminar, segundo o Código Civil Italiano, deve ser a mesma do contrato. A lei ressalvará os casos em que a forma do contrato preliminar, como sói acontecer no caso de compromisso de venda de imóvel, deva ser outra”.16

13 FERREIRA, Geraldo Sobral. Promessa Bilateral de Venda e Compromisso de Compra e Venda. Revista de Direito Civil. N. 7, p.144.14 NEVES, Tancredo. Justificação da emenda n. 381. Diário do Congresso Nacional (Seção I) Suplemento, 14.09.1983, p.258, justificação elaborada pela Advogada Maria Angélica Rezende, em nome da OAB do Estado do Sergipe.15 COELHO, Fernando. Justificação da emenda n. 379. Diário do Congresso Nacional (Seção I) Suplemento, 14.09.1983, p.259.16 ALVIM, Agostinho. Pareceres. In: ABI-ACKEL, Ibrahim e REALE, Miguel. Emendas ao projeto de Código Civil – Pareceres da Comissão Elaboradora e revisora. Brasília: Ministério da Justiça, 1984, p.84.

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Nessa citação, fica clara a manifestação de Agostinho Alvim no sentido de que o compromisso de compra e venda de imóvel deve obedecer à lei especial, que ressalvará a questão da forma. De qualquer maneira, a Câmara acolheu o projeto original, para que todos os contratos preliminares prescindam quanto à forma do contrato principal.

A esse respeito, deve-se observar que a redação original apresentada por Agostinho Alvim tinha texto distinto, na linha do Código Civil Italiano. Porém, na primeira versão do projeto, há manuscrito de Miguel Reale alterando a redação do referido artigo, assim como de praticamente todo o capítulo relativo ao contrato preliminar, determinando a redação do projeto, que atualmente é a redação do Código.17

Por incrível que pareça, esse foi o único debate ocorrido a respeito do contrato, para afirmar a não incidência das regras do contrato preliminar ao compromisso de compra e venda.

Por isso, afasta-se o equívoco de considerar o contrato preliminar de que tratam os arts. 462 a 466 do Código Civil como sendo o compromisso de compra e venda cujos efeitos reais são regulados no art. 1.417 e art. 1.418 do mesmo diploma legal.18

O contrato preliminar de que tratam os arts. 462 a 466 do Código Civil não diz respeito ao compromisso de compra e venda.

O contrato preliminar é um “tipo contratual” em que as obrigações das partes são de celebrar um contrato, no futuro, uma promessa de contrato.19 Trata-se de um contrato pelo qual as partes se obrigam a celebrar um contrato que irá regulamentar determinada relação econômica. Por isso, chama-se preliminar, pré-contrato ou contrato promessa, já que o preceito que irá disciplinar o relacionamento das partes e que definirá o que cada um deverá fazer, dar ou não fazer, dependendo de uma nova declaração volitiva. Em outras palavras, a única obrigação válida é a obrigação de contratar. As obrigações do contrato a ser celebrado dependem ou da nova declaração de vontade ou da execução coativa do contrato preliminar.20

17 REALE, Miguel. Código Civil. Anteprojetos com minhas revisões, correções, substitutivos e acréscimos. Texto inédito, não publicado, parcialmente manuscrito, sem data.18 No mesmo sentido tem-se a opinião de GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.361: “O compromisso de venda não é verdadeiramente um contrato preliminar”.19 Embora a própria lei se utilize da expressão “promessa” em vez de “compromisso”, não havendo qualquer distinção prática na utilização de uma ou outra expressão, opta-se pela denominação “compromisso de compra e venda” pelas razões que justificaram a própria edição do Decreto-Lei 58/37 e toda a legislação posterior, que foi a de criar um “tipo contratual” diferente do que até então existia que era a de um “contrato promessa”. Além disso, é possível a “promessa” de “compromisso de compra e venda”, conforme previsto expressamente para os casos de reserva de lote ou de outras modalidades de contratos preliminares, segundo a melhor lição de ALMEIDA COSTA, Mário Júlio. Contrato Promessa – Uma síntese do regime vigente. 9 ed. Coimbra: Almedina, 2007.20 Uma das polêmicas mais vivas do contrato preliminar diz respeito a aplicação de astreintes, no caso de inadimplemento, conforme sustenta CATALAN, Marcos Jorge. Considerações sobre o contrato preliminar: em busca da superação de seus aspectos polêmicos. In: DELGADO, Mário Luiz e outro. Novo Código Civil – Questões Controvertidas – v. 4. São Paulo: Método Editora, 2005, p.319–341. Tal possibilidade é discutível no regime do contrato preliminar em razão de que a lei é clara ao determinar ao Juiz que considere como “definitivo” o contrato preliminar. Ou seja, o legislador considerou que sendo personalíssima a obrigação de “declarar vontade”, a execução dessa obrigação se dá pelo “suprimento” da declaração e não pela aplicação de astreintes para que a declaração seja feita coativamente. Nada obsta, é claro, que o Juiz antecipe os efeitos da tutela para considerar que o contrato preliminar tenha os efeitos do contrato definitivo e, sendo este de obrigações de fazer, na execução do mesmo sejam aplicadas astreintes.

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Trata-se de um contrato cuja problematicidade não é privilégio do direito brasileiro, sendo instituto jurídico que nos mais diversos ordenamentos gera controvérsias a respeito do seu regime de execução.21

O compromisso de compra e venda, seja no regime do DL 58/37, no regime da Lei 6.766/79,22 assim como na Lei n. 4.591/65,23 consiste em um contrato definitivo, um contrato pelo qual as partes disciplinam o seu comportamento para o futuro, estabelecem o preceito que irá disciplinar sua relação intersubjetiva. Nesse ponto acentua-se que o contrato ou o nascimento de qualquer obrigação independente de nova declaração de vontade.

Porém, no conteúdo do preceito está, entre outros deveres, a obrigação de fazer declaração de vontade, que é a obrigação de firmar escritura pública para translação do direito real de propriedade, a fim de cumprir o disposto no artigo 134, I, do Código Civil de 1916, reproduzido agora no art. 108 do Código Civil.

Porém, a escritura pública que é necessária para a translação do direito de propriedade não é contrato definitivo que antecede um contrato preliminar. Trata-se de mero negócio jurídico de adimplemento, cujo objetivo é a translação do direito real de propriedade que permaneceu nas mãos do vendedor como garantia do pagamento do preço e não verdadeiramente um contrato.24

Sob o ponto de vista estrutural, o contrato é um preceito que tem como gênese um acordo de vontades emanadas por duas partes, identificadas pela existência de dois núcleos de interesses contrapostos, com o objetivo de criar direitos e obrigações. Caracteriza-se, portanto, pela obrigatória eficácia obrigacional, sem a qual não se pode tecnicamente falar em contrato. Diferentemente, nos negócios dispositivos, não há um preceito, pois celebrado o negócio sua eficácia é constitutiva de “título”, cujo registro é hábil à translação da propriedade, sem efeitos obrigacionais.

Quando a compra e venda é celebrada por meio de escritura pública, no mesmo ato está reunido o “contrato” e também o “negócio jurídico dispositivo”.

Quando alguém celebra um compromisso de compra e venda, esses dois negócios jurídicos são separados sob o ponto de vista cronológico. O compromisso de compra e

21 A esse respeito veja-se no Direito Português, RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O campo de aplicação do regime indemnizatório do artigo 442º do Código Civil: incumprimento definitivo ou mora. In: Direito dos Contratos. Estudos. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.283–306: “Não obstante o labor interpretativo a que não se tem furtado a nossa melhor civilística, permanecem vivas controvérsias e divergências de interpretação, que se repercutem em decisões judiciais amiúde contrastantes. E se, quanto a certas questões, foi possível chegar a um consenso estável, nalguns casos consagrado na lei ou em assento, outras questões, inicialmente ocultas, irromperam, entretanto, alimentando novos debates ainda inconclusivos”.22 Nova lei do loteamento imobiliário. Está lei substitui no que não foi revogado expressamente o Decreto-Lei 58/37 em matéria de direito urbanístico, o que atualmente também é regulado pelo Estatuto da Cidade.23 A lei de Condomínio e Incorporação atualmente regula unicamente a incorporação imobiliária em suas diversas modalidades, tendo em vista que a regulamentação do Condomínio Edilício foi regulado por inteiro no Código Civil. Embora não tenha havido revogação expressa, a revogação se deu por força do art. 2º, §1º da Lei de Introdução ao Código Civil.24 A respeito dos negócios jurídicos dispositivos ver clássico estudo de COUTO E SILVA, Clóvis. Negócios Jurídicos e Negócios Jurídicos de Disposição. Revista do Grêmio Universitário Tobhias Barreto. UFRGS, p.29-39, 1958.

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venda é uma modalidade de compra e venda, um contrato definitivo, cujo adimplemento deverá ser feito no futuro,25 mediante uma declaração de vontade que será mero negócio jurídico dispositivo, realizado plenamente no âmbito dos direitos reais, para execução do preceito inicial e definitivo.

Observe-se que o contrato preliminar de compra e venda pode ser celebrado. Basta, para tanto, que o preceito do contrato não seja o compromisso de compra e venda segundo os termos do Decreto-Lei 58/37, mas um contrato preliminar em que as partes simplesmente se comprometem a, no futuro, celebrar contrato de compra e venda, que poderá ser de bens móveis ou imóveis. Tal contrato preliminar poderá ser executado na forma do artigo 27 da Lei 6.766, de 19.12.1979, se for promessa de celebrar compromisso de compra e venda que tem por objeto imóvel loteado, aplicando-se as regras do Código Civil para os demais casos.26

Quando alguém celebra um compromisso de compra e venda por instrumento particular, estabelecendo a obrigação de transferir a coisa, de pagar o preço e de no futuro, ser transferido o direito de propriedade, é a própria compra e venda que está sendo celebrada, sem que haja possibilidade de incidência dos dispositivos relativos ao contrato preliminar em razão do que dispõe o próprio artigo 1,225, VII, do Código Civil, assim como o art. 22 do Decreto-Lei 58/37.

2.2 Artigos 1417 e 1418As disposições dos arts. 1.417 e 1.418, que criaram o direito real do promitente

comprador, passaram incólumes durante todo o processo legislativo, tendo como conteúdo o direito real à aquisição da propriedade imobiliária.

Isso significa que o conceito tradicional acima apresentado sofreu pequena modificação em função da ausência de qualquer disposição legal a incidir sobre os requisitos de validade, de forma, de prova ou mesmo sobre quais são as obrigações que cabem às partes.

Não havendo qualquer alteração no regime obrigacional, permanece em vigor o Decreto-Lei n. 58, de 10 de dezembro de 1937, bem como das disposições da Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e as disposições da Lei n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que tratam do mesmo contrato em suas diferentes modalidades.

25 A expressão “futuro” é relevante no caso concreto, pois na compra e venda manual, embora o contrato logicamente seja antecedente do adimplemento, a separação entre contrato e adimplemento é puramente lógica, já que cronologicamente não se pode separá-los. Já o compromisso de compra e venda somente tem sentido de existir pela separação cronológica entre o ato do nascimento do contrato e o adimplemento, elemento essencial de sua funcionalidade plena, já que a “razão objetiva” de sua celebração está na ausência de elementos econômicos ou jurídicos para a translação da propriedade no ato da contratação. Por essa razão é nulo o contrato de “compromisso de compra e venda com pacto de retrovenda”, já que sua funcionalidade é incompatível com os elementos do tipo. Nada obsta a cessão do compromisso de compra e venda submetida a determinada condição resolutiva, o que é muito diferente de uma prática comum, porém ilícita, um claro “desvio socialmente típico”, que é o pacto de retrovenda no compromisso de compra e venda.26 Um dos poucos autores que trata sobre o regime de execução do “pré-contrato de promessa de compra e venda” é RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.986.

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Porém, agregou-se ao regime uma eficácia específica que até então não existia, que era o direito real de aquisição da propriedade imobiliária, criando uma nova gama de efeitos cujo regime do cumprimento foi alterado para criar uma dualidade, que deixou de ser teórica para ser prática. A dualidade teórica consistente no debate entre os defensores dos “efeitos pessoais” e “efeitos reais” cedeu lugar a uma dualidade de eficácia: pessoal e real.

3 DA DifEREnçA DE REGimES EntRE o contRAto REGiStRADo E o não REGiStRADo Outra questão vinculada com a eficácia do compromisso de compra e venda é a

verificação da obrigatoriedade do registro do contrato no Registro de Imóveis como condição para a execução da obrigação do vendedor de transferir a propriedade do imóvel e também para a proteção dos direitos do compromitente comprador.27

Ocorre que o contrato compromisso de compra e venda, como se pode ver de uma simples leitura do Código Civil, não foi objeto de regulamentação geral pela nova lei. E, não tendo sido objeto de regulamentação geral, mas somente especial, no que respeita a alguns de seus efeitos (artigos 1.225, VII, 1417 e 1.418), deve-se aplicar a regra do artigo 2º, §2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual a “lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.

Isso tem por consequência a plena e completa vigência do Decreto-Lei 58/37, bem como todo o seu regime eficacial, conforme determinado no seu texto e pela própria jurisprudência.

Porém, o registro do compromisso de compra e venda a partir do advento do Código Civil atribuirá um direito que até então o adquirente do imóvel não tinha, que é o direito real à aquisição da propriedade.28

Tal direito real é novo e consiste na outorga ao adquirente de vários efeitos específicos e próprios do direito das coisas, como são as ações reais.

A título exemplificativo, o titular do direito real à aquisição da propriedade passa a ter embargos de terceiro com fundamento no direito real, ainda que não tenha posse, a teor do que dispõe o art. 1.046 do Código de Processo Civil, e passa a ter ação de nunciação de obra nova ainda que não tenha a posse do imóvel, bem como terá direito de sequela e o próprio direito real à aquisição da própria propriedade.

27 Posição contrária a deste artigo esta é apresentada por KRAEMER, Eduardo. Algumas anotações sobre os direitos reais no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.210, que afirma ser necessário o registro do contrato na forma do art. 463 do Código Civil. 28 O debate a respeito da existência de eficácia real existente no regime anterior será tratado adiante, mas desde já afirma-se que os efeitos do Registro do contrato até o advento do Código vigente não tinha outro efeito que a outorga de “eficácia perante terceiros”, o que é diferente da “eficácia real”.

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Ao contrário, o adquirente de uma unidade imobiliária, como por exemplo um apartamento a construir (“venda na planta”), em que a posse do imóvel é do construtor, a ausência do registro do contrato não permitirá ao adquirente a oposição de embargos de terceiro ou a propositura de ação de nunciação de obra nova etc., direitos que terá se tiver o registro ou a posse.

O comprador sem posse e cujo compromisso de compra e venda não foi registrado não está protegido pela Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça. A edição da Súmula 84 visou a proteger a posse e não aos direitos obrigacionais derivados do contrato: considerou-se que a posse que tem como causa um compromisso de compra e venda, pelo seu caráter de definitividade, deve ser protegida da constrição judicial que visa a atingir o patrimônio do vendedor.

O direito real à aquisição da propriedade trata-se de um mecanismo concedido pelo legislador para que o adquirente deixe de ter um direito à coisa, para ter um direito sobre a coisa. Este direito sobre a coisa modifica substancialmente a ação de adjudicação compulsória.

A ação de adjudicação compulsória de que tratam os artigos 16 e 22 do DL 58/1937 somente tinha o apelido de adjudicação compulsória, pois sempre foi tratada pela doutrina e pela jurisprudência, obedecendo ao comando dos dois artigos acima, como ação de execução de obrigação de fazer, diferentemente da verdadeira ação real de adjudicação compulsória que tem, por exemplo, o condômino preterido no seu direito de preferência para aquisição da propriedade na forma do art. 1.139 do Código Civil de 1916 e art. 504 do atual Código Civil.

A partir do advento do Código Civil, a ação de adjudicação compulsória proposta com fundamento no compromisso de compra e venda tem um só nome e um duplo regime de eficácia.29

No caso do compromisso registrado o comprador tem ação real, pela qual será concedida a propriedade ao adquirente do bem, devendo ser objeto de prova, no seio da demanda, todos os requisitos relativos às ações reais, inclusive aqueles que dizem respeito aos princípios registrais previstos na Lei n. 6.015/73. Trata-se de verdadeira ação reivindicatória30 da propriedade e não mera ação de cumprimento de contrato.31

29 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.1008, é mais enfático ao afirmar que a falta do registro não concede o direito a “ação de adjudicação compulsória”, mas a uma “ação condenatória ao cumprimento da obrigação de contratar, produzindo a sentença o mesmo efeito do contrato prometido (o de venda)”.30 No mesmo sentido RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.992, que sustentava a possibilidade de ação reivindicatória proposta pelo titular de compromisso de compra e venda registrado mesmo no regime anterior: “Barbosa Lima Sobrinho aprofundou mais o problema, defendendo que, pelo contrato, o direito de usar, gozar e dispor do imóvel, e de reavê-lo de quem o ocupa indevidamente, passa do proprietário para o promitente comprador. Assinado o compromisso irretratável e registrado, transferindo-se ao compromissário o direito de dispor, ele torna-se parte legítima para propor a lide em questão”.31 A esse respeito da forma de cumprimento da obrigação veja-se a seguinte decisão: “E mais, embora a sentença não tenha especificado o seu cumprimento pelo art. 466-A, do CPC, perfeitamente cabível à hipótese e que autoriza a transferência da propriedade por força da sentença, dispensando-se as partes destinatárias do comando judicial (aqui, autores e réu, respectivamente), de firmarem negócio bilateral (escritura de compra e venda), sem embargo, por óbvio, de cada uma delas arcarem com as respectivas despesas de seu título – carta de adjudicação –, é

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Isso significa que finda a ação judicial, com trânsito em julgado de uma sentença de procedência, na primeira hipótese o autor será proprietário do imóvel. O registro da sentença terá eficácia declaratória, não obstante o art. 1.418 afirme que o réu será condenado a emitir a declaração de vontade, o efeito declaratório da sentença acrescido aos efeitos do “direito real a aquisição da propriedade” produzido pelo registro do compromisso de compra e venda atribui o direito à propriedade ao autor. Veja-se, não se está dizendo que nasce um direito à coisa. Declara-se que há o direito à propriedade, e o registro da sentença no registro de imóveis produz efeito similar que o registro de uma sentença de uma ação de usucapião, cuja carga constitutiva existe, mas é secundária em relação à carga declaratória.

Poder-se-ia opor a esse raciocínio o argumento de que o artigo 5º e art. 22 do Decreto-Lei 58/37 já haviam concedido direito real ao adquirente de imóvel. Nada mais equivocado do que isso, pois tais dispositivos legais nada mais diziam que o comprador tinha “direito real oponível a terceiros” não atribuindo qualquer conteúdo ou efeito a tal “direito real”.

O art. 167, I, 9, da Lei dos Registros Públicos tornava o compromisso de compra e venda suscetível de registro e não simplesmente de averbação como diz o artigo 5°. O registro implica, sempre, a criação, modificação ou extinção de um direito sobre a própria coisa.

A averbação diz respeito às pessoas que são titulares de direitos reais ou à própria coisa. Assim são averbáveis todas as modificações no estado das pessoas e também as modificações sobre a coisa. Se modificar o direito, deverá ser registrado, exceto se for averbação para cancelamento. Fora deste critério, segue-se a casuística do art. 167 da Lei dos Registros Públicos.

Há direitos reais, como o de propriedade adquirida pela usucapião que mesmo sem o registro possui eficácia erga omnes e confere ao proprietário as ações reais. Há casos em que há o registro, como por exemplo o do contrato de locação, que não gera direito real.32

Em outras palavras, o registro pode ser constitutivo de Direito Real o que somente ocorrerá se a Lei Civil outorgar tal eficácia.

No regime anterior o domínio continuava integralmente com o vendedor, razão pela qual não se reivindicava o bem do vendedor que não quer outorgar o título translativo: ajuizava-se ação para o cumprimento do contrato. O contrato gera um direito à coisa e não um direito sobre a coisa. O registro servia para que a publicidade produzisse efeitos erga omnes33 e não conferia qualquer direito ou pretensão, mas apenas oponibilidade contra terceiros.34

caso de ser a sentença declarada ao efeito de o seu cumprimento dar-se através do predito dispositivo legal, expedindo-se oportunamente as competentes cartas de adjudicação”.TJRS, Ap. Civ. 70033242520, 17ª C.Civ., Rel. Desembargadora Elaine Harzheim Macedo, j. 03.12.2009, publicado no site www.tjrs.jus.br.32 Pontes, v.13, § 1465, p.116.33 Pontes, v. 13, §1465, p.116.34 Pontes, § 1469, p.123: “A averbação confere eficácia quanto a terceiros, no que concerte às alienações e

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Ademais, diante da tipicidade estrita dos direitos reais e da interpretação teleológica de tal registro, a partir dos próprios considerandos do Decreto-Lei 58/37, fica evidente que o registro foi um expediente para proteger o adquirente da venda do bem para terceiros. Nada além disso.

Embora o legislador de 1937 estivesse preocupado com uma boa regulamentação do contrato, o sistema dos “direitos reais” estava integralmente regulado no Código Civil, diferentemente dos contratos e das obrigações que foram disciplinados na “lei esparsa”.

É evidente que esse debate sempre admitiu argumentação em contrário, tendo sido ultrapassado e não merecendo maiores considerações nesta seara pela superação do mesmo pelo fato legislativo.

No caso do compromisso não registrado o comprador tem ação pessoal e terá direito de propor a ação de adjudicação compulsória de que tratam os artigos 16 e 22 do Decreto-Lei 58/37, que nada mais é do que uma demanda cujo objetivo é a condenação da parte a emissão de uma declaração de vontade, que é suprida pelo juiz, servindo a sentença como título para ser registrado, conforme os comandos dos artigos 466 B e C do Código de Processo Civil.35

Evidentemente, os dispositivos legais supramencionados trataram de consolidar o que a jurisprudência vinha fazendo que era criar mecanismos para melhorar a efetividade dos mecanismos de execução, disciplinando de maneira clara o que já estava parcialmente regulamentado nos artigos 639 a 641 do Código de Processo Civil, que tratavam da execução das obrigações de fazer quando o objeto da obrigação de fazer fosse “fazer declaração de vontade”.36

Embora sendo diploma adjetivo, o Código de Processo Civil estabeleceu regras de direito material, e não somente procedimento. Nesse sentido, deve-se observar que a doutrina e jurisprudência, após muito debate, assentaram que os dispositivos revogados do Código de Processo Civil inseridos no “procedimento executivo” somente poderiam ser alcançados após a obtenção prévia de uma sentença em um

onerações futuras. O próprio art. 5° é que o enuncia. Faltou-lhe apenas, terminologia técnica. A pretensão, ou o direito, que emanou do pré-contrato, é que tem estendida a terceiro, pela averbação, a sua eficácia”.35 TJRS, Ap. Civ. 70023729536, 17ª C.Civ., Rel. Desembargadora Elaine Harzheim Macedo, j. 03.12.2009, publicado no site www.tjrs.jus.br. “A ação interposta – ainda que equivocadamente identificada como “execução” – veio acompanhada dos documentos essenciais para a adjudicação compulsória, quais sejam, o contrato particular de promessa de compra e venda, a prova da quitação do preço e a certidão do registro imobiliário, dando conta da legitimação para alienação do contratante vendedor. E, além disso, o disposto nos artigos 466-B e 466-C, ambos do CPC, autorizam o prosseguimento da ação, que tem, sim, conteúdo de ação de conhecimento, viabilizando-se a ampla defesa e contraditório da parte ré, seja ela o próprio promitente vendedor, sejam seus herdeiros ou sucessores.”36 Os dispositivos foram revogados pela reforma processual realizada por meio da Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, sendo substituídos pelos atuais arts. 466, A, B e C do Código de Processo Civil. “art. 466-A. Condenado o devedor a emitir declaração de vontade, a sentença, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida. art. 466-B. Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado. art. 466-C. Tratando-se de contrato que tenha por objeto a transferência da propriedade de coisa determinada, ou de outro direito, a ação não será acolhida se a parte que a intentou não cumprir a sua prestação, nem a oferecer, nos casos e formas legais, salvo se ainda não exigível.”

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processo de conhecimento, não podendo tal execução ser aparelhada com um “título executivo extrajudicial”. Isso ficou indubitável com a edição da Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005.

A reforma processual promovida pela Lei n. 1232/2005 “veio sanar uma contradição lógica” que existiu durante cerca de 30 anos de vigência do Código de Processo Civil, pois eram disposições “que regem processo nitidamente de cognição, com previsão de julgamento, sentença, condenação, categorias estranhas ao processo expropriatório e que, no particular, culminam com um pronunciamento tipicamente substitutivo da emanação de vontade do devedor, que a tanto se nega ou simplesmente não pode fazê-lo”.37

Isso significa que o registro do contrato adicionou ao ordenamento um regime eficacial, e que continua íntegra a Súmula 239 do Superior Tribunal de Justiça. A propósito, o fundamento da edição da súmula foi justamente de que a adjudicação compulsória de que trata o art. 22 do Decreto-Lei 58/37 “é de caráter pessoal, restrito aos contratantes, não se condicionando a obligatio faciendi à inscrição no Registro de Imóveis”.38

Da mesma forma continua plenamente em vigor a Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça, já que as disposições do art. 1.417 e 1.418 vieram acrescentar hipóteses de embargos de terceiro de “senhor” que não é possuidor, pois o titular de direito real à aquisição da propriedade, tenha ele a posse ou não, terá acesso às ações reais. É claro que faltando posse e faltando o registro não haverá oponibilidade contra terceiros, assim como não haverá o direito de sequela sobre o bem.39

4 concluSãoEmbora a Lei Complementar 95, de 06 de fevereiro de 1998, estabeleça a

obrigatoriedade de o legislador consolidar a legislação sempre que disciplinar uma matéria, a teor do que determinou o art. 59 da Constituição Federal, a realidade legislativa brasileira demonstra que isso não acontece.

A maior prova disso é o emaranhado legislativo que disciplina um dos contratos mais importantes para o mercado que é o compromisso de compra e venda.

Por isso a indispensabilidade do estudo a partir da perspectiva histórica e do estudo dos contratos e seus efeitos a partir da experiência social, indissociável dos fatos sociais e das exigências valorativas, que demonstram a necessidade de interpretação das normas consoante a finalidade social do modelo jurídico, e firme observação da dinâmica negocial que consagrou o compromisso de compra e venda como um dos principais instrumentos do mercado imobiliário.

37 MACEDO, Elaine Harzheim. A sentença condenatória no movimento do sincretismo do processo. Direito e Democracia. Canoas: Editora da Ulbra, v. 7, n. 1, 2006, p.207–222.38 STJ, REsp n. 247.344/MG, Relator o Ministro Waldemar Zveiter, DJ de 16/4/01; REsp n. 12.613/MT, Relator o Ministro Eduardo Ribeiro, DJ de 30/9/91; RESP n. 004/0062303-0, DJ 23/04/2007, www.stj.jus.br.39 VIANA, Marco Aurélio. Comentários ao novo Código Civil – Dos Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.697.

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E, mesmo sob a perspectiva normativa, é preciso resgatar a ideia de que a estrutura de “eixo” do Direito Privado do atual Código Civil exige uma mudança de visão em relação ao fenômeno dos microssistemas, pois seu surgimento deveu-se a critérios lógicos do processo histórico, fazendo nascer uma nova ordem conceitual e categorias interpretativas que extrapolam o conceito de “lei extravagante”. Como já foi mencionado por Natalino Irti, a técnica legislativa em que consistem os microssistemas não reduz a “racionalidade sistemática”, mas promove-a para as leis especiais.40

E no exame da legislação especial, vê-se que as regras a respeito da validade e da eficácia obrigacional estão reguladas na lei especial e que o Código Civil regulou os efeitos reais do registro. O registro, por sua vez, continua regulado na Lei 6.015/73.

Por isso é equivocada a afirmação segundo a qual o compromisso de compra e venda precisará ser registrado para que haja a oposição de embargos de terceiro para proteção dos direitos do comprador que seja possuidor.

Em síntese, o compromisso de compra e venda não foi objeto de regulamentação pela nova lei: o Código Civil disciplinou os efeitos do registro do contrato, atribuindo a ele o direito real a aquisição da propriedade.

Isso tem por consequência a plena e completa vigência do Decreto-Lei 58/37, bem como todo o seu regime eficacial, conforme determinado no seu texto e pela própria jurisprudência.

Além disso, os princípios que norteiam o modelo jurídico forjado pela realidade brasileira são comandados pelos ditames da socialidade, no caso, pela cláusula geral da função social dos contratos, cuja integração com os contratos regulados em lei especial é possível tendo em vista o caráter de “eixo” que foi atribuído ao Código Civil, o que dá a devida unidade à colcha de retalhos legislativa que regulamenta a eficácia normativa do contrato.

Para concluir, deve-se deixar claro que tanto a Súmula 84, quanto a Súmula 239 do STJ estão em pleno vigor, obedecidas as condições acima já explicitadas.

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40 IRTI, Natalino. L’età della decodificazione – vent’anni dopo. 4ª ed. Milano: Dot. A. Giuffrè Editore, 1999, p.08.

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A utilização do Sistema de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação: uma análise do art. 8º do Decreto federal nº 3.931, de 19 de setembro de 2001

thiago Dellazari melo

RESumoO presente artigo traduz uma análise do Art. 8º do Decreto Federal nº 3.931, de 19 de

setembro de 2001, o qual estabelece a possibilidade de adesão à Ata de Registro de Preços por órgãos ou entidades da Administração que não participaram da licitação, a qual deu origem aos preços registrados. Inicialmente, será destacada a importância do estudo das licitações públicas, em seguida serão delineados os princípios jurídicos a serem estudados, os quais orientam toda a Administração Pública. Feito isso, será apresentado o Sistema de Registros de Preços (SRP), regulamentado pelo Decreto Federal nº 3.931/01, destacando as vantagens da implantação do referido sistema na gestão de recursos públicos, apresentando ainda a previsão de utilização dos preços registrados por quaisquer órgãos ou entidades da Administração Pública. Dando continuidade ao estudo, será conceituado o instituto da licitação pública, traçando-se um paralelo entre os princípios constitucionais da Administração Pública e das licitações públicas em confronto com a aplicação do Art. 8º do Decreto Federal nº 3.931/01. Diante das reflexões a serem apresentadas, o estudo buscará discutir a adequada utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública, com vistas a preservação e manutenção dos princípios jurídicos que fundamentam o ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Licitação. Sistema de Registro de Preços. Ata de Registro de Preços.

the use of the System of Registration of Prices for organs that didn’t participate in the auction: An analysis of art. 8th of the

ordinance federal nº 3.931, of 19 September of 2001

ABStRActThe present article translates an analysis of Art. 8th of the Ordinance Federal no. 3.931,

of September 19, 2001, which establishes the adhesion possibility to the Record of Registration of Prices for organs or entities of the Administration that didn’t participate in the auction, which created the registered prices. Initially, it will be outstanding the importance of the study of the

Thiago Dellazari Melo é bacharel em Direito pela UFPE. Mestrando em Direito pela UFPE. Professor substituto da UFPE. Gestor de Licitações do Comando da Aeronáutica em Recife/PE. E-mail: [email protected]

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public auctions, soon afterwards the juridical beginnings will be delineated they be studied, which guide all the Public Administration. Made that, the System of Registrations of Prices will be presented (SRP), regulated by the Ordinance Federal no. 3.931/01, detaching the advantages of the implantation of the referred system in the administration of public resources, still presenting the forecast of use of the prices registered by any organs or entities of the Public Administration. Giving continuity to the study, the institute of the public auction will be considered, being drawn a parallel one among the constitutional beginnings of the Public Administration and of the public auctions in confrontation with the application of Art. 8th of the Ordinance Federal no. 3.931/01. Before the reflections to be presented, the study will look for to discuss the appropriate use of the System of Registration of Prices for the Public Administration, with views the preservation and maintenance of the juridical beginnings that you/they base the juridical order.

Keywords: Auction. System of Registration of Prices. Record of Registration of Prices.

1 intRoDuçãoO Estado está presente na sociedade nas mais diversas áreas, segurança, saúde,

educação, saneamento básico, defesa da soberania, atividades legislativas e judiciárias, dentre tantas outras em que atua direta ou indiretamente. O objetivo desta presença é proporcionar à população a prestação dos serviços públicos e assegurar o bem estar de todos que convivem harmonicamente em seu território.

Com vistas a bem desempenhar a função estatal, o Estado necessita recorrer a iniciativa privada constantemente, a fim de contratar bens que não produz, serviços que não executa e obras que não possui estrutura para construir; tais contratações, em sede de despesas públicas, ganham significativa importância em face da vultosa soma que representam no orçamento público.

A execução das despesas públicas com a contratação de particulares foi objeto de preocupação do legislador constituinte, notadamente em face da magnitude dos recursos públicos envolvidos, de modo que a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, instituiu, no Inc. XXI do Art. 37, o processo de licitação pública como procedimento administrativo obrigatório a ser precedido em toda contratação de bens, serviços, obras e alienações, ficando apenas a ressalva da não realização de certame licitatório nas hipóteses de dispensa de licitação e inexigibilidade previstas em legislação específica.

Dentre os aspectos gerais das licitações e dos contratos administrativos, a Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, veio a criar o Sistema de Registro de Preços, no inciso II de seu art. 15, porém a matéria permaneceu sem regulamentação por vários anos, vindo a ser regulamentada somente em 2001, ou seja, 08 (oito) anos após a promulgação da Lei Geral de Licitações, por intermédio do Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2001.

Atualmente, a utilização do Sistema de Registro de Preços vem se tornando prática muito comum pelos gestores públicos, principalmente, pelas vantagens

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proporcionadas por tal sistema, as quais serão abordadas no presente estudo, dentre elas a não obrigatoriedade do órgão detentor do Registro de Preços de realizar as aquisições, a diminuição de certames licitatórios, a economia de recursos despendidos para a realização de licitações, dentre outras.

O estudo pretende abordar a utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública, notadamente no que tange à utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram do certame licitatório que deu origem aos preços registrados. Analisa-se, assim, a contratação efetuada por órgãos que não participaram da licitação e contratam diretamente com a empresa detentora da Ata de Registro de Preços oriunda da licitação promovida por determinado órgão da Administração.

Dessa forma, será traçado um paralelo com os princípios que norteiam o processo licitatório e a Administração Pública, de modo a demonstrar se o Sistema de Registro de Preços apresenta-se como uma alternativa eficaz para a Administração Pública em busca de contratações vantajosas que resguardem o interesse público, preservando a igualdade de condições a todos os concorrentes que desejam participar de licitações públicas promovidas pelo Poder Público.

2 PRincíPioS como funDAmEntoS Do SiStEmA juRíDicoPara melhor compreensão da importância dos princípios no âmbito jurídico,

destaca-se a definição do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos,1 segundo o qual

Princípio é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, ou se preferir, o verdadeiro alicerce dele. Trata-se de disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência. O princípio ao definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo acaba por lhe conferir a tônica e lhe dar sentido harmônico.

Observa-se que a relevância da compreensão dos princípios é fundamental, posto que estruturam e identificam todo o sistema normativo. Este mesmo sistema deverá ser composto por normas que serão editadas seguindo as diretrizes traçadas pelos princípios gerais que alicerçam a matéria, sob pena de quebra da harmonia existente no ordenamento jurídico. Os princípios fundamentam o sistema jurídico, servindo de ideias básicas para a formação das regras do direito positivo e ocupam três funções relevantes: fundamentação, base de interpretação e fonte de supressão de lacunas.

Com isso, pode-se afirmar que todo o Direito Administrativo deverá guardar estreita consonância com os princípios constitucionais dos quais este ramo do Direito é

1 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p.80.

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originado, haja vista que toda a construção jurídica e doutrinária deverá estar pautada nas disposições constitucionais que fundamentam o sistema. Da mesma forma, as licitações públicas, além de seguirem as diretrizes constitucionais, ainda deverão estar submetidas aos princípios específicos que orientarão a realização dos processos licitatórios.

2.1 Princípios gerais da Administração Pública e das licitações públicasA Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, fixou em seu art. 37 os

princípios gerais que norteiam a Administração Pública, conforme se pode observar

Art. 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Em seguida, o legislador originário descreveu nos demais incisos uma série de disposições gerais acerca da Administração Pública, dentre as quais destacamos o inciso XXI que reza a utilização de processo de licitação pública, como regra geral, para as contratações de obras, serviços, compras e alienações

XXI – ressalvados os casos específicos na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

A Lei Federal nº 8.666/93 ainda acrescentou aos princípios constitucionais da Administração Pública, quais sejam, o da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, todos previstos no caput do art. 37 da Constituição Federal, os princípios gerais das licitações públicas, elencados no seu art. 3º:

Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

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Assim, além dos princípios constitucionais da Administração Pública citados anteriormente, a Lei Geral de Licitações também lançou novos princípios que deverão fundamentar as licitações públicas e ao final do art. 3º a Lei ainda ampliou sobremaneira este rol, deixando aberto à doutrina a possibilidade de definição de outros princípios, posto que o artigo encerra com a seguinte frase: “...e dos demais que lhe são correlatos.”

Diante da amplitude de princípios que regem a Administração Pública e as licitações públicas, e da falta de consenso na doutrina acerca da fixação de tais princípios, este estudo enfrentará apenas os princípios constitucionais previstos no caput do art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil, acrescentando ainda os princípios específicos das licitações públicas que gozam de certo consenso entre a doutrina, fixando a análise utilizando os seguintes princípios:

a) Princípio da legalidade; b) Princípio da impessoalidade; c) Princípio da moralidade; d) Princípio da publicidade; e) Princípio da eficiência; f) Princípio da isonomia entre os licitantes; g) Princípio da vinculação ao instrumento convocatório; e h) Princípio da proposta mais vantajosa.

3 o SiStEmA DE REGiStRo DE PREçoSDefinidos os princípios que balizam o presente estudo, bem como a importância

da análise principiológica na sistematização das normas de Direito Administrativo a serem utilizadas na gestão dos recursos públicos, notadamente através da realização de certames licitatórios, pode-se então avançar a discussão trazendo a lume o que vem a ser o Sistema de Registro de Preços.

A Lei Geral de Licitações previu o instituto no inciso II do seu art. 15, verbis:

Art. 15 (...) As compras, sempre que possível, deverão:

(...)

II – ser processadas através de sistema de registro de preços;

Apesar da previsão da Lei nº 8.666/93, o Sistema de Registro de Preços somente veio a ser regulamentado por intermédio do Decreto Federal nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, e a definição do seu conceito se deu através da redação acrescida pelo Decreto Federal nº 4.342, de 23 de agosto de 2002, transcrita a seguir:

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Art. 1º (...)

Parágrafo único. Para os efeitos deste Decreto, são adotadas as seguintes definições:

I – Sistema de Registro de Preços – SRP – conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras; (Redação dada pelo Decreto nº 4.342, de 23.08.2002)

Do exposto, verifica-se que o Sistema de Registro de Preços é um conjunto de procedimentos formais com o objetivo de registrar preços para contratações futuras. Este conjunto de procedimentos formais consiste na realização de certame licitatório, por intermédio do respectivo processo administrativo.

Dentre os processos licitatórios para que o órgão possa proceder o Registro de Preços, o Decreto nº 3.931/01 prevê, exclusivamente, a utilização das modalidades de licitação “Concorrência” e “Pregão”, sendo que este último poderá ser utilizado tanto na forma presencial, na qual os fornecedores estão presentes no local da licitação para oferta de lances verbais, ou na forma eletrônica, na qual os fornecedores utilizam-se da internet para a propositura de lances durante a realização do certame licitatório que é feito on-line pela Internet.

Importante lembrar que um dos pioneiros a conceituar o Sistema de Registro de Preços foi Hely Lopes Meirelles,2 ensinando

O sistema de compras pelo qual os interessados em fornecer materiais, equipamentos ou gêneros ao Poder Público concordam em manter os valores registrados no órgão competente, corrigidos ou não, por um determinado período, e a fornecer as quantidades solicitadas pela Administração no prazo previamente estabelecido.

Assim, verificamos que o Sistema de Registro de Preços diferencia-se das licitações tradicionais principalmente pela peculiaridade que o distingue, qual seja, a não obrigatoriedade da contratação pela Administração, posto que se destina a registrar preços, por um determinado lapso de tempo, para aquisições eventuais e futuras.

3.1 A utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitaçãoO Sistema de Registro de Preços será precedido de licitação na modalidade

“Concorrência” ou “Pregão”, porém será concretizado através da assinatura da Ata de Registro de Preços que é o documento vinculativo, de caráter obrigacional, com

2 MEIRELLES, Helly Lopes. Licitação e contrato administrativo. São Paulo: RT, 1991. p.62.

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característica de compromisso para futura contratação, no qual estarão registrados os valores registrados, os fornecedores, os órgãos participantes, as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação e nas propostas apresentadas.

Vale ressaltar que todo o processo licitatório será conduzido pelo chamado Órgão Gerenciador, que conduzirá o processo administrativo cumprindo todas as etapas previstas na legislação correspondente, assim como o faria em uma licitação convencional. O Decreto Federal nº 3.931/01 estabeleceu a seguinte definição:

Art. 1º (...)

Parágrafo único. Para os efeitos deste Decreto, são adotadas as seguintes definições:

(...)

III – Órgão Gerenciador – órgão ou entidade da Administração Pública responsável pela condução do conjunto de procedimentos do certame para registro de preços e gerenciamento da Ata de Registro de Preços dele decorrente;

Além do órgão gerenciador, poderão ser convidados outros órgãos a participar do certame licitatório para Registro de Preços e que serão denominados órgãos participantes. Os órgãos participantes integrarão o procedimento licitatório desde o seu início, devendo manifestar o interesse, perante o órgão gerenciador, em participar do certame através da remessa da estimativa de consumo, da expectativa do cronograma de consumo e das especificações do objeto.

Tal previsão do Decreto Federal nº 3.931/01 é muito bem sucedida, haja vista proporcionar flagrante racionalidade na execução de um certame licitatório composto por diversos órgãos em conjunto, ensejando economia de recursos materiais e humanos pelo esforço único desenvolvido em prol de todos, proporcionando a centralização de um processo licitatório para atendimento das necessidades comuns de vários órgãos independentes.

Até este ponto andou bem o Decreto Federal nº 3.931/01. No entanto, a inovação se deu com a instituição da possibilidade de utilização do Sistema de Registro de Preços por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório que deu origem à Ata de Registro de Preços, os chamados “caronas”, conforme previsão contida no art. 8º e seus parágrafos, abaixo transcritos. Tais dispositivos representam inúmeras consequências para a Administração Pública e para as empresas. Veja-se:

Art. 8º A Ata de Registro de Preço, durante a sua vigência, poderá ser utlizada por qualquer órgão ou entidade que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.

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§ 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados, obedecida a ordem de classificação.

§ 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas.

O instituto ainda veio a provocar uma verdadeira celeuma pela ausência de limites às aquisições realizadas por órgãos não participantes (caronas), de modo que o Governo Federal editou o Decreto nº 4.342, em 23 de agosto de 2002, acrescentado ao art. 8º do Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 200, o parágrafo abaixo:

§ 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços.

Continua Jorge Ulisses Jacoby3 Fernandes sobre o tema:

Por intermédio do Decreto nº. 3.931, de 19 de setembro de 2001, alterada a regulamentação do Sistema de Registro de Preços e instituída no país a possibilidade de a proposta mais vantajosa numa licitação ser aproveitada por outros órgãos e entidades. Esse procedimento vulgarizou-se sob a denominação de carona que traduz em linguagem coloquial a ideia de aproveitar o percurso que alguém está desenvolvendo para concluir o próprio trajeto, sem custos.

Desta forma, a utilização da Ata de Registro de Preços foi estendida a qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório. Exemplificando, uma empresa “A” participa de um certame licitatório para registro de preços de resma de papel A4 na quantidade de 1.000(mil) resmas, assinando a Ata de Registro de Preços perante determinada Secretaria de Educação. Em seguida, a Secretaria de Fazenda manifesta interesse em aderir à Ata de Registro de Preços, realizando, então, como “carona”, a contratação do fornecimento de 1.000(mil) resmas de papel A4 também da empresa “A”. Após isso, o IBAMA também manifesta interesse em aderir à citada Ata de Registro de Preços, vindo a contratar, novamente como “carona”, o fornecimento de mais 1.000(mil) resmas de papel A4 da mesma empresa

3 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Carona em sistema de registro de preços: uma opção inteligente para redução de custos e controle. Disponível na Internet: http://www.jacoby.pro.br/utilpub/CAC58T8N.doc. Acesso em: 17 dez. 2008.

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“A” e assim sucessivamente, outros órgãos aderem à utilização da Ata de Registro de Preços firmada pela Secretaria de Educação, utilizando-se da prerrogativa de “caronas”, de forma que rapidamente a empresa “A” multiplicou consideravelmente suas vendas para outros órgãos e entidades, sem que para isso necessitasse novamente sujeitar-se a novos procedimentos licitatórios.

Tal quadro motiva uma análise um pouco mais detalhada acerca da situação estabelecida pelas adesões às Atas de Registro de Preços, por órgãos e entidades que não participaram do certame licitatório que ensejou o registro dos preços, o que será feito a seguir a luz dos princípios que norteiam a Administração Pública e as licitações públicas.

4 A licitAção PúBlicAA fim de que se possa dar continuidade à análise da utilização da Ata de Registro

de Preços por órgãos não participantes da licitação que deu origem aos preços registrados, faz-se necessário esclarecer que o processo licitatório é um procedimento administrativo, composto por uma série de atos previstos na Lei Geral de Licitações, que tem como principal e único objetivo selecionar a proposta mais vantajosa para a contratação pretendida pela Administração Pública, guardadas as condições isonômicas entre todos os participantes, condições estas que estarão previamente estabelecidas no instrumento convocatório (Edital).

A definição de Bandeira de Mello4 é a seguinte

Licitação é o procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental, pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras e serviços, outorgar concessões, permissões de obra, serviço ou de uso exclusivo de bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente, convoca interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados.

Observa-se que o entendimento da doutrina é no sentido de a licitação ser um procedimento administrativo cujo objetivo é buscar a proposta mais vantajosa, na iniciativa privada, para celebração do contrato de interesse da Administração Pública, respeitando a isonomia entre quaisquer interessados.

Fixado o conceito e o objetivo do procedimento licitatório, passa-se à análise da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos e entidades que não participaram do certame licitatório que originou os preços registrados em consonância com os princípios que regem a Administração Pública e as licitações públicas.

4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002. p.468.

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4.1 o princípio da legalidadeA supremacia da lei, como manifestação da vontade popular, reveste a sociedade

de garantias, de certezas e da delimitação de direitos e deveres. No tocante ao Direito Administrativo, o princípio da legalidade ganha especial destaque por submeter a Administração Pública à vontade da lei, limitando poderes e estabelecendo condutas dos gestores públicos. A Administração, portanto, no desempenho de suas atividades tem a obrigação de observar, e cumprir, todas as normas do ordenamento jurídico que o próprio Estado editou, nas palavras de Caio Tácito5

Ao contrário da pessoa de direito privado, que, como regra, tem a liberdade de fazer aquilo que a lei não proíbe, o administrador público somente pode fazer aquilo que a lei autoriza expressa ou implicitamente.

Trazendo à tona o entendimento defendido por Joel de Menezes Niebuhr,6 a possibilidade de utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes do processo licitatório instituiu a figura do “carona” em licitações públicas para o Sistema de Registro de Preços. Ocorre que tal instituto foi criação do Decreto Federal nº 3.931/01, haja vista a figura do “carona” não encontrar qualquer menção na legislação, ou seja, a lei não faz referência ao carona.

Com isso, sustenta o doutrinador que o Presidente da República, ao criar o “carona”, agiu excedendo suas competências constitucionais, posto que o Decreto Federal nº 3.931/01, como regulamento administrativo que é, objetiva tão somente a dizer como a lei deve ser cumprida pela Administração Pública, não se presta, portanto, a criar direitos e obrigações, nem tampouco novos instrumentos jurídicos que não possuem amparo legal.

Assim como o Decreto Federal nº 3.931/01 deveria assegurar a fiel execução da lei, e acabou por criar um instituto novo, qual seja, o “carona”, verifica-se a afronta ao princípio da legalidade pelo fato de o Decreto haver extrapolado a competência constitucional, inovando a ordem jurídica. A competência para criação do “carona” é do Poder Legislativo, posto que no Estado Democrático de Direito se deve governar por lei e não por decreto.

4.2 os princípios da impessoalidade e da moralidadeOs princípios da impessoalidade e da moralidade encontram-se intrinsecamente

ligados. O princípio da impessoalidade afasta da Administração Pública a vontade

5 TÁCITO, Caio. O princípio da legalidade: ponto e contraponto. Revista de Direito Administrativo. V.206. Rio de Janeiro: Renovar. 1996. p.2.6 NIEBUHR, Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de Preços: atentado veemente aos princípios de direito administrativo. Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC. Ano XIII. Nº 143. Curitiba: Zênite. 2006. p.13.

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pessoal dos gestores públicos, bem como a gestão da res publica em interesse pessoal. Os administradores devem pautar suas atitudes sob o manto da imparcialidade, da impessoalidade, não sendo relevantes, portanto, na gestão pública, as preferências pessoais, as opiniões pessoais nem tampouco as vontades pessoais daqueles que administram. Já o princípio da moralidade exige da Administração comportamento consoante com a moral, com os bons costumes, com a justiça, com a equidade, com a honestidade, com a idoneidade, ou seja, com as regras da boa administração, buscando o melhor e o mais útil ao interesse público.

Nota-se a estreita ligação entre a impessoalidade e a moralidade, de forma que a crítica feita por Joel de Menezes Niebuhr,7 ao “carona” em Atas de Registro de Preços, reside no fato de a adesão de órgãos não participantes à determinada Ata de Registro de Preços expor de maneira excessiva e desnecessária os dois princípios, ou seja, enseja na Administração todo o tipo de lobby, tráfico de influência e favorecimento pessoal.

Ora, em um país como o Brasil, em que prevalece a cultura do “jeitinho”,8 somando-se ao fato da má remuneração dos servidores públicos e tantos outros elementos complexos que envolvem a Administração Pública, pode-se pensar que a empresa “A” poderá oferecer algum tipo de vantagem aos administradores públicos de outros órgãos em troca da adesão a Ata de Registro de Preços que favorece a empresa “A”, multiplicando ilimitadamente as contratações, posto que cada órgão que aderir à Ata de Registro de Preços poderá contratar 100% (cem por cento) dos quantitativos registrados, conforme Parágrafo 3º do Art. 8º do Decreto Federal nº 3.931/01.

Diante de tais observações, não se pode duvidar que a utilização da Ata de Registro de Preços, por quaisquer órgãos ou entidades da Administração que não participaram da licitação que deu origem aos preços registrados, coloca em risco despropositado os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, de modo que fechar os olhos para a realidade brasileira significa tolerar e incentivar a má gestão de recursos públicos.

4.3 o princípio da publicidadeO tema da transparência das contas públicas tão em voga no Brasil, traduz-se em

um espelho do princípio da publicidade. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro9

Diz respeito não apenas à divulgação do procedimento para conhecimento de todos os interessados, como também aos atos da Administração praticados nas várias fases do procedimento, que podem e devem ser abertas aos interessados, para assegurar a todos a possibilidade de fiscalizar sua legalidade.

7 NIEBUHR, Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de Preços: atentado veemente aos princípios de direito administrativo. Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC. Ano XIII. Nº 143. Curitiba: Zênite. 2006. p.13.8 KELLEMEN, Peter. Brasil para principiantes, venturas e desventuras de um brasileiro naturalizado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1964. p.9.9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2005.

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A mácula ao princípio da publicidade ocasionada pela utilização da Ata de Registro de Preços por quaisquer órgãos ou entidades que não participaram da licitação consiste no fato de o quantitativo a ser contratado não estar expressamente definido no objeto da licitação, definido no Edital.

Neste caso, há uma licitação sem a delimitação do quantitativo do objeto a ser contratado, que deve ser considerada nula, posto que dificulta a apresentação de propostas pelos licitantes, comprometendo o julgamento objetivo e a execução do contrato que dela será resultado.

Por exemplo, a licitação destina-se a registrar preços para o fornecimento de 1.000 (mil) resmas de papel A4. A empresa “A” vence a licitação e assina a Ata de Registro de Preços. Já a empresa “B” toma conhecimento da licitação, porém resolve não participar em face de o quantitativo de resmas de papel A4 ser de apenas 1.000(mil), quando para a empresa “B” seria viável registrar preços para o fornecimento acima de 5.000(cinco mil) resmas de papel A4. A empresa “C” participa do certame e perde a licitação em face de somente poder oferecer um melhor preço se a quantidade registrada fosse acima de 3.000(três mil) resmas de papel A4. Ocorre que, posteriormente, 05(cinco) órgãos da Administração resolvem aderir à Ata de Registro de Preços detida pela empresa “A”. Logo, o quantitativo contratado é acrescido de 5.000(cinco mil) resmas de papel A4, beneficiando a empresa “A” em detrimento das empresas “B” e “C”.

Nesta situação, verifica-se que a clareza do Edital é fundamental para que não haja restrição ao caráter competitivo da licitação. A definição dos quantitativos a serem contratados é um dos aspectos mais relevantes para a apresentação das propostas pelos licitantes, por influir diretamente nos custos das empresas, ensejando inclusive que empresas deixem de participar da licitação por não haver interesse numa contratação de valores pouco expressivos.

Da mesma forma, o licitante que participa do certame tem o direito de conhecer o quantitativo a ser registrado e possivelmente contratado. A ausência de tal informação configura crucial desrespeito ao princípio constitucional da publicidade.

Nas palavras de José Cretella Júnior10

Com efeito, a mais ampla publicidade é pressuposto indispensável a um instituto que se destina a colocar diante do público as condições preliminares para a concretização de contratos de que participa a Administração.

4.4 o princípio da eficiênciaAcrescida pela reforma administrativa realizada através da Emenda Constitucional

nº 19/98, a eficiência somou-se aos demais princípios já consagrados no caput do art. 37

10 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 com o intuito de modernizar a Administração Pública.

Desse modo, a Administração, objetivando atingir a eficiência, deverá agir de maneira ágil, precisa, perfeita visando sempre maximizar os resultados positivos e a satisfação das necessidades da população. Condena-se portanto a morosidade, a inércia, o descaso, a negligência e a omissão.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro11

O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.

Neste ponto observa-se uma dicotomia interessante. A utilização do Sistema de Registro de Preços visando à aquisição de bens ou a contratação de serviços para o atendimento a mais de um órgão ou entidade, representa notória consagração da eficiência administrativa. Afinal, o órgão gerenciador coordena, juntamente com os órgãos participantes, a realização de uma única licitação que irá suprir a demanda de contratação de todos, unem-se esforços para o alcance do objetivo comum, destacando o planejamento e a organização da Administração.

Por outro lado, a simples adesão à Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação, os chamados “caronas”, prestigia a inércia e o comodismo administrativo, haja vista que os órgãos poderão esconder a ausência de planejamento nas contratações buscando sempre a adesão às Atas de Registro de Preços de outros órgãos que implantaram o Sistema de Registro de Preços.

Vale ressaltar o antagonismo da utilização do Sistema de Registro de Preços. De um lado, os órgãos unem esforços e realizam uma licitação conjunta de interesse de todos, enaltecendo a eficiência administrativa, de outro, os órgãos permanecem inertes aguardando a realização do certame, sem sequer precisarem levantar suas necessidades de contratação, agindo como verdadeiros “parasitas” daqueles que após longa jornada conseguem celebrar a assinatura da Ata de Registro de Preços.

Em face dos argumentos apresentados, é inconteste o flagrante desrespeito à eficiência administrativa, almejada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por órgãos e entidades que não participam das licitações para Registro de Preços e passam a aderir às Atas de Registro de Preços de outros órgãos.

11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2005.

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4.5 o princípio da isonomia entre os licitantesA isonomia entre os licitantes diz respeito à oportunidade de todos os interessados

em contratar com a Administração Pública poderem competir em condições iguais, isonômicas. Todos devem receber da Administração Pública igual tratamento. Nas licitações públicas as regras do certame devem ser previamente definidas no Edital e serão impostas a todos os concorrentes em igualdade de condições.

A adesão à Ata de Registro de Preços, realizada por órgãos não participantes da licitação, acaba por quebrar a isonomia que foi imposta aos concorrentes no certame, haja vista que o acréscimo no quantitativo a ser contratado era desconhecido na licitação em que todos participaram em igualdade de condições.

O desconhecimento de condição relevante no certame licitatório, qual seja, o quantitativo a ser contratado, acaba por frustrar todo o procedimento ao conceder vantagem à empresa que assina a Ata de Registro de Preços em detrimento dos demais licitantes.

Conclui Joel de Menezes Niebuhr12

A figura do carona é ilegítima, porquanto por meio dela procede-se à contratação direta, sem licitação, fora das hipóteses legais e sem qualquer justificativa, vulnerando o princípio da isonomia, que é o fundamento da exigência constitucional que faz obrigatória a licitação pública.

4.6 o princípio da vinculação ao instrumento convocatórioO instrumento convocatório, também conhecido como Edital, é o documento no

qual a Administração Pública fixará as normas e condições a serem observadas por todos os interessados para participação na licitação, daí o porquê de o Edital ser taxado como Lei Interna da Licitação.13

Tanto a Administração Pública licitante, como os interessados na licitação, estarão submetidos à rigorosa observância das normas e condições estabelecidas no Edital, conforme previsão do art. 3º da Lei Federal nº 8.666/93, reafirmado pelo art. 41 do mesmo diploma legal, verbis:

Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.

12 NIEBUHR, Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de Preços: atentado veemente aos princípios de direito administrativo. Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC. Ano XIII. Nº 143. Curitiba: Zênite. 2006.13 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2002. p.400.

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Assim, a adesão de órgãos não participantes à Ata de Registro de Preços é condição não prevista no Edital. Ainda que haja a previsão do Art. 8º do Decreto Federal nº 3.931/01, não é possível para os proponentes saber quantos órgãos irão efetuar a adesão a posteriori, e com isso, também não é possível conhecer o quantitativo que será efetivamente contratado, prejudicando a elaboração das propostas pelos concorrentes.

Adilson Abreu Dallari14 esclarece

O edital há de ser completo, de molde a fornecer uma antivisão de tudo que possa vir a ocorrer no decurso das fases subsequentes da licitação. Nenhum dos licitantes pode vir a ser surpreendido com coisas, exigências, transigências, critérios ou atitudes da Administração que, caso conhecidas anteriormente, poderiam afetar a formulação de suas propostas.

Deve-se frisar que o Edital não só estabelece os quantitativos do objeto a ser registrado o preço, mas também uma série de outros componentes que influenciam diretamente na elaboração da proposta, tais como: frete, prazo de entrega, condições de pagamento, dentre outras.

Observa-se que o “carona” enseja contratação não prevista inicialmente no Edital ferindo a competitividade do processo licitatório, bem como estabelecendo privilégios para a empresa detentora da Ata de Registro de Preços. Tal situação contraria de forma veemente mais um dos princípios das licitações públicas.

4.7 o princípio da proposta mais vantajosaConforme visto anteriormente, a obtenção da proposta mais vantajosa para a

contratação a ser realizada pela Administração Pública constitui o principal objetivo de toda e qualquer licitação pública.

A discussão da “vantajosidade” na utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação alcançou o Tribunal de Contas da União. No Acórdão 434/2005 – Plenário,15 o ministro-relator, Augusto Sherman Cavalcanti, em seu voto, apresentou a seguinte preocupação com o assunto

Não se tem como garantir que o preço vencedor seja o mais vantajoso, ou seja, compatível com a faixa etária dos beneficiários do órgão que venha a aproveitar-se da licitação já realizada (...). Assim, o preço ofertado para o Ministério da Cultura dificilmente será o adequado para qualquer outro órgão da Administração, tendo

14 DALLARI, Adilson Abreu. Aspectos jurídicos da licitação. São Paulo: Saraiva, 1997. p.32.15 Tribunal de Contas da União. Processo TC – 004-709-2005-3. Relator: Augusto Sherman Cavalcanti, Brasília, 20 de abril de 2005. Diário Oficial da União, Brasília, 29 de abril de 2005.

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em vista as diferenças nos diversos componentes do custo dos serviços, entre os quais destaco a abrangência territorial ou área geográfica, a rede credenciada e o grupo de beneficiários.

O caso concreto referia-se à utilização do Sistema de Registro de Preços para contratação de operadora de planos de saúde pelo Ministério da Cultura. A Corte de Contas considerou ser possível a contratação pelo Sistema de Registro de Preços, porém o Edital deveria vedar a possibilidade da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram do certame. No caso em tela, a recomendação foi pela anulação do procedimento licitatório, conforme voto do ministro-relator proferido no Acórdão 668/200516

A anulação do certame em análise tem o potencial de impedir futuras contratações baseadas na Ata de Registro de Preços pelos demais órgãos e entidades da Administração sem que haja certeza quanto à razoabilidade dos preços em cada situação específica.

Os ensinamentos do Ministro Sherman, do Tribunal de Contas da União, apesar da peculiaridade da contratação analisada (contratação de operadora de planos de saúde), implicam no despertar para a questão, haja vista que as necessidades de contratações dos órgãos são diversas, assim como todas as demais condições envolvidas na licitação, tais como: frete, condições de pagamento, quantitativos a serem contratados, qualidade da contratação, etc.

Diante disso, estender a utilização de Atas de Registro de Preços para órgãos não participantes “é fator de risco para a Administração” por não significar a contratação mais vantajosa a satisfazer o interesse público.

5 A ADEQuADA utiliZAção Do SiStEmA DE REGiStRo DE PREçoSO Sistema de Registro de Preços vem a ser um instrumento de considerável avanço

na gestão de recurso públicos, as vantagens obtidas são inúmeras, porém, não se pode admitir a distorção do instituto de forma a romper com os princípios constitucionais da Administração Pública nem tampouco os princípios gerais das licitações públicas.

O Sistema de Registro de Preços não deve ser transformado num estímulo à formação de monopólios por empresas detentoras de Atas de Registro de Preços. Tais empresas se especializam em potencializar contratações e multiplicar lucros às custas

16 Tribunal de Contas da União. Processo TC – 004-709-2005-3. Relator: Augusto Sherman Cavalcanti, Brasília, 25 de maio de 2005. Diário Oficial da União, Brasília, 03 de junho de 2005.

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de lobby perante órgãos e entidades da Administração Pública para adesão à Atas de Registro de Preços, resultando em desrespeito à supremacia do interesse público.

Deve-se ressaltar, no entanto, que o Sistema de Registro de Preços pode e deve continuar a ser utilizado pelos gestores públicos como ferramenta de gestão. Para tanto, basta a limitação da utilização da Ata de Registro de Preços apenas pelos órgãos que efetivamente participaram desde o início da licitação coordenada pelo órgão gerenciador.

Aliás, essa é a previsão do próprio Decreto Federal nº 3.931/01, em seu art. 2º, Inc. III, verbis:

Art. 2º. Será adotado, preferencialmente, o SRP nas seguintes hipóteses:

(...)

III – quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo;

A realização de uma única licitação composta por necessidades de órgãos diversos, através do SRP, preserva e mantém a aplicação de todos os princípios da Administração Pública, bem como reforça os princípios das licitações públicas. Dando especial destaque a obtenção da eficiência administrativa por intermédio da racionalização dos processos administrativos de contratações.

O entendimento da Corte de Contas deve ser acatado pelos gestores públicos para correta aplicação das normais gerais de licitação.17 Nesse sentido, bem atuou o ministro Augusto Sherman Cavalcanti ao demonstrar a relevância das consequências advindas da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação que deu origem aos preços registrados.

Destaca-se que o descompasso existe apenas na utilização das Atas de Registro de Preços por órgãos não participantes, de modo que para os órgãos participantes verificam-se claramente as vantagens a serem alcançadas com a utilização do Sistema de Registro de Preços, de forma que sua aplicação na Administração Pública deve ser amplamente divulgada e incentivada não só na esfera federal, como também nas esferas estadual e municipal.

6 conSiDERAçõES finAiSA importância do estudo das licitações públicas no Brasil decorre principalmente

da necessidade do Estado em recorrer à iniciativa privada para realizar as mais diversas

17 Súmula 222 do Tribunal de Contas da União: “As decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”

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contratações, em decorrência disso, vultosos recursos financeiros são gastos e o procedimento administrativo para realização de tais despesas é o processo licitatório, conforme regra estabelecida pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O presente estudo destacou que a licitação pública tem como objetivo principal selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, guardando igualdade de condições entre todos aqueles interessados em contratar com o Poder Público. Tal objetivo não pode ser afastado pelo gestor público, sob pena de contrariedade às disposições constitucionais e consequente não realização do interesse público.

A discussão principal acerca da utilização do Sistema de Registro de Preços foi focada na celeuma provocada pela utilização de Atas de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação, a qual deu origem aos preços registrados. O problema originado pelos “órgãos caronas” consiste no desrespeito aos princípios gerais da Administração Pública e das licitações públicas.

Ficou demonstrado que o Art. 8º do Decreto Federal nº 3.931/01, ao instituir a figura do “carona”, contrariou princípios que fundamentam o ordenamento jurídico vigente no país, sobretudo àqueles que alicerçam a Administração Pública, quais sejam: a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.

Conforme o estudo que ora se finda, a frequente adesão de órgãos à Atas de Registro de Preços acaba por multiplicar as quantidades contratadas, proporcionando fantástico ganho de escala às empresas detentoras de preços registrados sem que tais quantitativos estivessem claramente definidos no Edital do certame licitatório que deu origem ao registro de preços.

Por outro lado, a Administração Pública não realiza certames licitatórios, não oferecendo oportunidade a potenciais interessados em celebrar os contratos, bem como dá ensejo que uma licitação para contratação de um quantitativo previamente estabelecido se torne uma contratação muito superior.

Tal ofensa aos princípios jurídicos poderá ser contornada de maneira simples, através da correta utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública. Para tanto, faz-se necessário à vedação da utilização de Atas de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação, ou seja, defende-se a utilização das Atas de Registro de Preços apenas pelos órgãos participantes a fim de consagrar a dupla finalidade do processo licitatório, qual seja, a seleção da proposta mais vantajosa para o Poder Público e o oferecimento de igual oportunidade a todos os interessados em celebrar o contrato.

Somente dessa forma estará consagrada a transparência de um certame licitatório, no qual todos os licitantes conhecem a magnitude da potencial contratação, bem como com quais órgãos tais contratos poderão ser firmados. A clareza de tais disposições no Edital certamente ensejará uma competição mais isonômica e justa, proporcionando a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, alcançando por fim o principal objetivo de todo processo licitatório.

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Direito e Democracia v.10 n.2 p.286-294 jul./dez. 2009Canoas

o monumento bárbaro: desconcertando o sistema penal entre violência, crime e logos

Alexandre costi Pandolfo

RESumo O artigo apresenta uma desconstrução do poder punitivo afiliando o seu discurso com o

esclarecimento – mito do pensamento ocidental. Aproximando Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Robert Musil, é possível concluir que direito, estado e história, assim como o próprio sistema penal, são monumentos bárbaros na medida mesma da sua civilidade. O texto pretende, assim, questionar o fundamento do poder punitivo a partir da racionalização que encobre toda a sua barbaridade – a violência intrínseca ao próprio logos.

Palavras-chave: Sistema Penal. Monumento. Barbárie. Violência. Logos.

the Barbarian monument: disconcerting the penal system between violence, crime and logos

ABStRActThe paper presents a deconstruction of punitive power affiliating its speech with the

Illuminism – the myth of Western thought. Approaching Walter Benjamin, Giorgio Agamben and Robert Musil, is possible to conclude that the law, the state and history, as well as the criminal justice system, are barbaric monuments in the same measure as its civility. The text aims to question the punitive power’s basis since the rationalization that covers all its barbarity – the violence inherent to the own logos.

Keywords: Penal-Sistem. Monument. Barbarism. Violence. Logos.

1 SiStEmA PEnAl: DESlEGitimAção DA RAZão PEnAlDesde o imperativo interpolitransdisciplinar1 é possível dizer que diante de

um leve toque com as ciências sociais o saber-poder jurídico-penal está, como nas palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni, deslegitimado. Assim, na construção deste autor “só se pode evitar o autismo e o preconceito indo ao encontro das hipóteses de trabalho interdisciplinar, o que não implica que o respectivo saber perca seu horizonte nem sua função; apenas, torna-se interdisciplinar a construção de seu sistema de compreensão”.2 A importância das ciências sociais não se qualifica meramente em uma pretensa posição

Alexandre Costi Pandolfo é Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FADIR/PUCRS), vinculado à linha de pesquisa em Criminologia e Controle Social. Bolsista CAPES. Professor. E-mail: [email protected] MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. RJ: Bertrand Brasil, 2000, p.111.2 ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; et al. Direito Penal Brasileiro. RJ: Revan. 2ª ed. 2003, p.271.

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de auxiliaridade deste saber. Todo o delírio de grandeza do saber jurídico penal em sua arrogância retórica “sempre consumiu, após evidentes processos de apropriação, os discursos alienígenas, impondo-lhes a etiqueta da auxiliaridade. Sempre imputou aos saberes que ousaram adentrar no seu objeto de estudo (crime) rótulo de ‘saberes subordinados’”.3 Desse panorama decorre o evidente narcisismo infantil do direito penal que, não tomando em consideração os dados sociais das ciências sociais, acaba por inventar4 um saber no qual o dado social só interessa ao jurista à medida que o legislador o tenha previamente incorporado.5

De uma maneira geral,

las ciencias sociales nos están mostrando que el discurso jurídico-penal se elabora sobre ilusiones y alucinaciones, que estas ciencias desmientem rotundamente. Esto significa que las discusiones jurídico-penales se deserollan sobre la base de argumentos que en el plano de la realidad social son falsos.6

Isso quer dizer que a realidade social, não obstante a verdade apresentar-se sempre problemática,7 demonstra que o poder punitivo opera de modo exatamente inverso ao descrito pelo discurso penal tradicional. A lesão que essa constatação provoca no narcisismo teórico do direito penal faz com que o discurso jurídico-penal tenha de “inventar” uma realidade condizente com o saber-poder que exerce. Assim é que a partir de metáforas8 justifica-se o exercício de poder dos sistemas penais. Ora, pelo menos desde a reformulação moderna do século dezoito “o discurso jurídico-penal sempre se baseou em ficções e metáforas, ou seja, em elementos inventados ou trazidos de fora, sem nunca operar com dados concretos da realidade social”.9 O velho fantasma do bellum omnium contra omnes – “que el proprio Hobbes como no sabia el modo de eludir su falta de realidad histórica nos lo atribuía a los americanos” – é um importante exemplo do “panorama de viejas ficciones y metáforas, con las que siempre se trato de justificar el ejercicio de poder del sistema penal”.10 Nesse sentido, as ciências sociais (mormente a sociologia e a antropologia) provocam uma deslegitimação do

3 CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea). In GAUER, Ruth (org) A Qualidade do Tempo: Para Além das Aparências Históricas. RJ: Lumen Juris, 2004. p.181.4 Invenção é sempre uma relação de poder, desde a leitura foucaultiana de Nietzsche apresentada no livro “A verdade e as formas jurídicas”.5 Cf. ZAFFARONI; BATISTA. Ob. cit. p.66.6 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal. Caracas: Monte Ávila Latinoamericana Editores, 1993. p.91.7 O próprio Zaffaroni também aponta esta questão. Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Pedrosa e Almir Conceição. RJ: Revan. 1991, p.163.8 Perceba que como assevera Zaffaroni “uma coisa é afirmar que é muito melhor expressar o saber por metáforas, por nunca podermos alcançar a realidade, em razão da enorme inter-relação de ‘tudo’ (perspectiva holística) – com o que o saber se faz muito mais prudente e menos autoritário – e outra coisa muito diferente é usar a metáfora, combinada com ficções (invenções), para extrair consequências assertivas e definitivas sobre uma realidade à qual não se presta a menor atenção”. ZAFFARONI. Em Busca das Penas Perdidas. p.48.9 Idem. Ibidem. p.48.10 ZAFFARONI. Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal. p.17.

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discurso jurídico-penal do qual não mais poderá se recuperar, a não ser apelando a estes “delírios sociais”.

Por esses trilhos é que o jurista argentino Engenio Raúl Zaffaroni elaborou teoricamente o Realismo Marginal – uma construção científica transdisciplinar que se caracteriza pela “búsqueda de una dogmática jurídico-penal liberal (de garantias) realista, no distanciada das ciencias sociales, no legitimante del poder primitivo que no ejercemos los juristas y adaptada al momento actual de nuestra región latinoamericana”.11 Essa construção dogmática não é o que permite ‘tirar o véu’ da “atuação dos nossos sistemas penais [que] caracteriza[m] um genocídio em andamento”,12 senão que é construída a partir da ‘retirada deste véu’. Em outras palavras, o realismo jurídico-penal marginal propõe

la renovación de la dogmática penal desde la deslegitimación del sistema penal, orientada instrumentalmente hacia la limitación y reducción de su âmbito y violencia, en camino a una utopia abolicionista del sistema penal. Su resultado más cercano es una renovación más limitativa del derecho penal de garantias, con base realista y sin apelar a la ficción del contrato ni a sus reformulaciones.13

Zaffaroni parte da constatação do assustador nível de violência da operatividade das agências do sistema penal, o que, em suas palavras, configura uma deslegitimação pelos próprios fatos, tendo em vista que

el número de muertes que causan sus agencias en forma directa, sumando a las omisiones que encubre con su aparente capacidad de solución de conflictos y que ocultan fenómenos que superan en mucho las muertes que directamente provocan, además de los deterioros físicos y psíquicos de muchísimas personas – no solo criminalizadas, sino también entre los operadores de sus propias agencias – arroja un saldo letal incalificable.14

O Realismo Marginal, então, é solidificado faticamente a partir desta crença/constatação/alucinação empírica que designa os procedimentos pelos quais os povos “atrasados” são enxertados compulsivamente em sistemas tecnologicamente mais evoluídos. Ou seja, significa, também, constatar que a região latino-americana e seu controle social são produtos de uma transculturação protagonizada pelas revoluções mercantil e industrial. Desse modo quando questionado acerca da relação entre América Latina e marginalização, Zaffaroni firmemente responde que “si alguna definición tiene América Latina ella coincide con la de marginalización. Somos el resultado de un gran proceso de marginalización planetaria llevado a cabo por el avance histórico de la

11 Idem. Ibidem. p.9. 12 ZAFFARONI. Em Busca das Penas Perdidas. p.123.13 ZAFFARONI. Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal. p.15.14 Idem. Ibidem. p.19. Cf. ZAFFARONI. Em Busca das Penas Perdidas. pp.124/125.

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sociedad industrial”.15 O Realismo Marginal é outra perspectiva teórica elaborada a partir de outro ponto do poder,16 que enxerga o horizonte de projeção da realidade penal vinculado a uma realidade social, somente relegada com vistas a justificar/legitimar o que é irracionalizável/ilegitimável, isto é, a violência do sistema penal.

2 ViolênciA: DiREito, EStADo E hiStÓRiA como monumEntoS Ora, isso significa que, para além das possíveis e eventuais construções dogmáticas

decorrentes do pensamento marginal, há uma radicalização crítica que ataca os próprios fundamentos da edificação do pensamento ocidental. Tal como aponta José Saramago ao afirmar “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”,17 é possível dizer que há algo que tem fundamentado essa condição de pensamento que é de difícil tato, de difícil audição, percepção, mas que, talvez, seja uma cegueira – uma cegueira branca, clara, resplandecente e esclarecedora como o logos. Algo que não se consubstancia como civilizado em oposição ao que bárbaro representa, mas que dá origem à própria possibilidade de crer que aquele importa numa evolução em relação a este; em outros termos, “ao tachar de complicação obscura e, de preferência, de alienígena o pensamento que se aplica negativamente aos fatos, bem como às formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira”.18 É nesse sentido que Walter Benjamin radicaliza, na sétima Tese Sobre o Conceito de História, a violência do logos ao afirmar que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”.19 Não parece à toa, então, que Giorgio Agamben baseie-se nessas Teses para, indo à raiz da sua questão, assinalar “o significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão”20 – ou seja, o estado de exceção, que não é uma prerrogativa da modernidade ou do estado moderno, visto que está presente propriamente na lógica jurídica, no fundamento mesmo desse pensamento como marca característica da alucinação racional do direito, é a representação fática da violência do logos e da qual o logos é capaz. Isso pode significar, no mínimo, que qualquer pretensão de evolução social e jurídica como desenvolvimento racional não pode fugir à metafísica genocida que representa pensamento ocidental moderno e as suas consequências hodiernas, visto que a ideia mesma de evolução não pode furtar-se à monumental alucinação de que o antes é sempre pior do que o depois.

15 ELBERT, Carlos (Dir.); TESSIO, Griselda; BERROS, Noemi (coords). Encuentro con las Penas Perdidas. Santa Fe: ed. de la Universidad Nacional Del Litoral, 1993. p.72.16 ZAFFARONI. Em Busca das Penas Perdidas. p.174.17 SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. SP: Companhia das Letras, 1995, p.262.18 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad.: Guido de Almeida. RJ: Jorge Zahar Ed., 1985, p.13.19 BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito de História. Em BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas volume 1 – Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio Rouanet. 7ª Ed., SP: Brasiliense, 1994, p.225.20 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad.: Iraci Poleti. SP: Boitempo, 2004, p.14.

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Parece que Agamben toca incisivamente nesse ponto

não se trata de remeter o estado de exceção, a seus limites temporal e especialmente definidos para reafirmar o primado de uma norma e de direitos que, em última instância, têm nele o próprio fundamento. O retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de ‘estado’ e de ‘direito’.21

Esses dois grandes monumentos “direito” e “estado”, assim como a própria “história”, erguidos como celebração vitoriosa, tal como a irônica expressão machadiana em Quincas Borba “ao vencedor, as batatas!”, respeitam à catastrófica constatação benjaminiana, segundo a qual, “todos os que até hoje venceram participaram do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”.22 Paradoxalmente, “o ofício de grande parte dos monumentos comuns é, sem dúvida, o de invocar uma lembrança ou chamar a atenção, imprimindo aos sentimentos um rumo piedoso, na crença de que eles são de alguma forma necessários; e é nesse seu ofício principal que os monumentos vivem fracassando”.23 É inevitável que se apresentem solidificados, fortes, corretos, na mesma medida em que não escapam à sua própria falácia: “afugentam precisamente aquilo que deveriam atrair. Impossível dizer, isto sim, que nos passam despercebidos, que nos escapam aos nossos sentidos: é uma qualidade totalmente positiva, que tende para o ato de violência!”24 Enquanto marca do progresso é sempre impossível dizer que os monumentos passam desapercebidos, da mesma forma que seria kafkianamente risível esquecer que “o precedente, nesse caso, já é agressivo”25 – que eles representam, de qualquer maneira, a empatia com o vencedor,26 que o movimento de contar e articular a história significa não mais que a tentativa de apropriar-se de uma imagem que “relampeja”, para manter a metáfora benjaminiana, cuja cadeia de acontecimentos não é outra coisa que uma “catástrofe única”. Metáfora também utilizada por Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando narra o delírio que permitia a Brás Cubas contemplar “a história do homem e da Terra” e que, dada a intensidade, “para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago”, visto que “a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda compreensão”.27 Diante desse delírio da origem como falar em estágios de desenvolvimento subjetivo, individual ou estatal? Como propor uma moral do discurso que não seja filha da sua

21 AGAMBEN. Estado de Exceção. p.131.22 BENJAMIN. Teses Sobre o Conceito de História. p.225.23 MUSIL, Robert. Monumentos. Em MUSIL, R. O Melro e outros escritos de obra póstuma publicada em vida. Trad.: Nicolino de Simone Neto. SP: Nova Alexandria, 1996, p.49.24 MUSIL. Monumentos. p.49.25 MUSIL. Monumentos. p.50.26 BENJAMIN. Teses Sobre o Conceito de História. p.225.27 ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. POA: L&PM, 1997, pp.28 e 29. Cito: “A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto o que eu ali via era a condensação vida de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar um relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim” (p.28).

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mãe, a própria violência? Será que não soa nem um pouco alucinatório esse pensamento dialético que fundamenta todo o estagio, o Estado e o Direito? Será que não parece ser apenas um eterno passatempo para que as vozes emudecidas continuem caladas pelo venerado logos? O que significa dividir a história da humanidade em estágios evolutivos senão edificar propriamente monumentos maiusculamente Históricos? Como ainda dizer que isso não tem relação com as atrocidades cometidas pela negação das possibilidades outras que o pensamento? Chega a ser risível chamar tudo isso de pensamento. No mínimo, tão risível quanto cogitar que a história seja mesmo a História contada e esfacelada.

Na quinta Tese Benjamin escreve que “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. (...) Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela”.28 Musil, no seu conto sobre os Monumentos, parece dialogar com Benjamin: “se as pessoas não tivessem o espírito cego para os monumentos e fossem capazes de perceber o que ocorre ali no alto, haveriam de sentir, ao passar por eles, o mesmo pavor que sentem ao passar pelos muros de um manicômio”.29 Ora, parece que há uma inversão, consubstanciada, aqui, nas palavras de Benjamin – expressadas na segunda Tese: “não existem, nas vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram?”30 Seria preciso ainda perguntar, trabalhando com Agamben, se a violência existe para além do desejo do direito de dominá-la? A exceção não seria, então, como regra e violência puras, filha do próprio logos – esclarecidamente violento? Os monumentos civilizatórios, o direito, o estado, a história, não são já, eles mesmos, fetiches violentos cuja construção emudece vozes que outrora ressoaram? Não são como aqueles monumentos nos quais o general ou o príncipe apesar de montado sobre o cavalo e com a espada desembainhada já não provocam tremor à sua visão,31 quando justamente ainda poderiam e deveriam provocá-lo?

3 Logos: o monumEnto BáRBARoEntre bárbaros e civilizados, os monumentos pretendem sempre assinalar

a reconciliação, o momento em que o tempo é paralisado para que no lugar da multiplicidade se edifique o ponto estático da unidade – o marco desde o qual a história é contada como história dos vencedores – da lógica vencedora e autoveneradora. Se é possível dizer que a violência assume propriamente “a posição de uma categoria compreensivo-interpretativa da realidade”32 é porque toda a forma de pensamento ocidental está ancorada na pretensão de dominar a natureza e negar a diferença – e o esclarecimento é a própria representação desse mito, ou antes, o

28 BENJAMIN. Teses Sobre o Conceito de História. p.224.29 MUSIL. Monumentos. p.51.30 BENJAMIN. Teses Sobre o Conceito de História. p.223.31 Alusão expressa ao conto Monumentos, de Musil.32 SOUZA, Ricardo Timm de. Três Teses Sobre a Violência – Violência e Alteridade no Contexto Contemporâneo: algumas considerações filosóficas. Em SOUZA, R. T. Em Torno à Diferença: aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea. RJ: Lumen Juris, 2007, p.32.

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esclarecimento é o próprio mito. Nas palavras de Adorno e Horkheimer, “o sistema visado pelo esclarecimento é a forma de conhecimento que lida melhor com os fatos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza. Seu princípio é o da autoconservação”,33 para o qual é necessário que se aniquile quaisquer possibilidades críticas, sugando-as por uma espécie de máquina letal kafkiana34 da dialética, de forma que “a maior das violências consiste em velar os vínculos profundos que qualquer ato violento tem com qualquer outro ato violento”.35 Ora, só uma pretensão logicamente narcísica pode pretender se reconciliar com a natureza. Nem a civilização, tampouco a barbárie podem indicá-la, pois fundadas naquilo que é justamente um dos contrários do que se lhe apresenta, isto é, a multiplicidade. Quero dizer, a negação do múltiplo em nome do colossal movimento de agregação é a forma alucinatória de funcionamento do esclarecimento – que opera inconscientemente pela necessidade de negar realmente as diferenças: “‘esquematismo do entendimento puro’. Assim se chama o funcionamento inconsciente do mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o entendimento”.36 A reconstrução da lógica pelo próprio logos seria algo muito diferente dessa correspondência, de que falam Adorno e Horkheimer? O pensamento vergonhoso de si mesmo continua acontecendo como se a sua autojubilação bastasse para reconstruir ele mesmo – o pensamento. Será que é à toa o questionamento sobre quem vendou a justiça?37 Aliás, por que será que em algum momento alguém vendou a justiça? Usando Saramago mais uma vez: porque será que os santos estão com uma venda nos olhos? Porque será que a venda é branca? Ora, quem é o louco38 que vendou a justiça? Será que ele mesmo não foi Justiçado após esse ato bárbaro? Que belo monumento não representa a reconstrução da Justiça pelo pensamento genocida que a todo o momento trabalha na exceção da justiça, para utilizar novamente Agamben. Que belo monumento o Estado Democrático de Direito entoado como se modelo fosse de bondade, beleza e justeza. Talvez seja realmente uma pena que os monumentos não possuam suas formas próprias: caricaturas.

Como a caricatura circense do pensamento elaborada por Franz Kafka no conto Na Galeria,39 escrito no início do século dezenove. Sugada pelo movimento agregador dos círculos que a amazona deve fazer ao redor do picadeiro diante de um “público infatigável” ela mesma se confunde com o circo que representa e do qual não pode fugir tampouco extrapolar – porque, venerados, o circo e o seu diretor representam a própria legitimação e daqueles que riem sem notar violência, assim com daquele que “chora sem o saber” “em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações” mais estranhas. O monumento do pensamento, como um circo, fecha-se em

33 ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. p.72.34 Alusão expressão à novela Na Colônia Penal, de Franz Kafka, e à máquina de tortura que ali é apresentada narrativamente como um mecanismo já esfacelado de compreensão do mundo.35 SOUZA. Três Teses Sobre a Violência. p.32.36 ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. p.72.37 MESSUTI, Ana. Desconstruyendo la Imagen de la Justicia. In [VÁRIOS AUTORES]. Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco. SP: RT, 2003.38 MESSUTI. Op. Cit. p.111.39 KAFKA, Franz. Na Galeria. Em KAFKA, F. Um Médico Rural: pequenas narrativas. Trad. Modesto Carone. SP: Cia das Letras, 1999, pp.22 e23.

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sua própria mania representacional de maneira a legitimar eternamente suas próprias manifestações – por mais bizarras que sejam. O fetiche desse movimento já é ele mesmo a expressão das fanfarronices que legitima: autolegitimação, autoveneração, autojubilação. Circularidade do pensamento e da violência em que também se consubstanciam monumentos tais como estado, direito e logos.

Então, “por que se erguem monumentos aos grandes homens, se as coisas são como são?”,40 é o que pergunta Musil, ao final do seu conto. Os sacros representantes do pensamento jurídico-penal, diriam, talvez, que apesar de tudo, são necessários, são vitais, de suma importância para a deusa: Justiça. Assim como eram os soberanos para seus súditos e assim como é a soberania para a ordem mundial, ou para a paz perpétua – utilizando a metáfora kantiana. Já Agamben41 responderia, talvez, afirmando que, assim como os monumentos jurídicos, trata-se apenas de uma máscara irresistível, uma fantasia da real violência que, miticamente, se pretende exercer e controlar. Razão identificante que é já o monumento do logos. Do qual, como boa filha da civilização moderna, para usar a imagem de Adorno e Horkheimer, a racionalização criminológica, não pôde furtar-se – paralisando, ao lado, na barra da saia, “pelo temor da verdade”.42 Por que é mesmo que se erguem monumentos? Zaffaroni argumentaria, talvez, que a ficção da realização da modernidade esquece o quadro real de genocídio que representa poder punitivo (principalmente na realidade marginal da América Latina). “O poder punitivo é – pelo menos hoje – um produto da razão instrumental que se difunde e se amplia”,43 em outras palavras, um monumento que se assemelha à guerra44 e que encobre, com seu universal fulcro esclarecedor, a real violência do seu exercício iluminado.

REfERênciAS ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad.: Guido de Almeida. RJ: Jorge Zahar Ed., 1985.AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad.: Iraci Poleti. SP: Boitempo, 2004.ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. POA: L&PM, 1997.BECKER, Howard. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. 3ª ed. Trad. Marco Estevão e Renato Aguiar. SP: Editora Hucitec, 1997.BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito de História. Em BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas volume 1 – Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio Rouanet. 7ª Ed., SP: Brasiliense, 1994.CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea). In GAUER, Ruth (org.). A Qualidade do Tempo: Para Além das Aparências Históricas. RJ: Lumen Juris, 2004.

40 MUSIL. Monumentos. p.51.41 AGAMBEN. Estado de Exceção. Conferir cap.6.42 ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. p.13.43 ZAFFARONI; BATTISTA. Direito Penal Brasileiro. p.644.44 Interessante atentar à construção que Zaffaroni faz desde a leitura do jurista brasileiro Tobias Barreto acerca da aproximação entre poder punitivo e guerra.

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Direito e Democracia v.10 n.2 p.295-310 jul./dez. 2009Canoas

Discurso, poder e ética na decisão penal1

Gabriel Antinolfi Divan

RESumo O presente artigo aborda a necessidade constitucional de controle das manifestações

jurisdicionais decisórias na esfera penal, no que diz respeito ao linguajar por elas adotado. Há uma inegável confluência de fatores (sobretudo simbólicos) que fazem com que uma decisão penal possua um caráter constitutivo, influente, perturbador e mesmo criador no que diz para com a subjetividade do réu jurisdicionado. Assim, o trato ético deve prevalecer no discurso adotado, inclusive contando com previsão legal a ser criada nesse sentido, para que não seja infligida ao acusado uma pena que ultrapasse os ditames legais, através de uma manifestação judicial a-técnica, vulgarmente passional e exageradamente estigmatizante.

Palavras-chave: Decisão penal. Discurso judicial. Ética. Reforma processual.

Discourse, power and ethics on criminal judgments

ABStRAct The current paper approaches the constitutional necessity of control the language used in

judicial resolutions on criminal sphere. There are a lot of grounds, mostly symbolic, which give a constitutive, an influential, a disturbing and even a creation character to criminal judgments – when we are thinking about defendant subjectivity. Considering that, this paper defends a legal foresight’s reaction to guarantee an ethical treatment in this judicial discourse. This idea intents to avoid a punishment based on a non-technical, passionate and stigmatizing judicial resolution.

Keywords: Criminal sentencing. Judgment discourse. Ethics. Criminal procedures reform.

Um homem dos vinhedos falou, em agonia, ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou-lhe seu segredo:

- A uva — sussurrou — é feita de vinho

Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez nós sejamos as palavras que contam o que somos.

(Eduardo Galeano, A uva e o vinho2)

Gabriel Antinolfi Divan é professor de Processo Penal e Criminologia da Universidade de Passo Fundo – RS. Mestre em Ciências Criminais e Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Advogado. E-mail: [email protected] O presente artigo é uma atualização (e ampliação) do paper “Decisão Penal, discurso e ética: sobre poderes e responsabilidades”, publicado originalmente em Justiça do Direito (Universidade de Passo Fundo), v.21, p.122-138, 2009, e é fruto de pesquisas e mesas de discussão promovidas pelo Instituto de Criminologia e Alteridade – ICA (http://www.criminologiaealteridade.com) e de intenso debate com os membros do Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais – GEPEC (http://www.portalgepec.org.br) do Estado de Goiás.2 In: O Livro dos Abraços. Trad. Eric Nepumoceno. Porto Alegre: L&PM Editores, 2002, 9.ed., p.16.

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1 A DEciSão juDiciAl (PEnAl, sobrEtudo) como luGAR DA tEnSão

O exercício da jurisdição penal se apresenta sempre imantado de um caráter procedimental particularmente tenso e de um envolvimento subjetivo incomparável dentre o âmbito das práticas judiciárias.

Aqui falamos tanto do desespero – presumível – que pode acometer o acusado submetido ao jugo estatal, quanto daquele, traiçoeiro, que pode capturar o próprio julgador.3 É o que pode vir a fazer com que o rigor técnico e a (suposta) vocação para a proporcionalidade decisória se transformem (mais do que em outras áreas e momentos de exercício de jurisdição), sub-repticiamente, em mero apelo caótico do cidadão comum que ali veste a toga, e que lhe fala ao ouvido (sob as vestes inconscientes, ideológicas, passionais ou sob o baixo espectro de um senso comum que, inesperadamente, ganha eco no momento da decisão).4

Do mesmo modo, ao estudarmos de maneira mais aprofundada a manifestação jurisdicional decisória no âmbito penal, não é preciso muito para perceber que o objeto em questão (o conteúdo decisório), e suas consequências puramente técnico-processuais (dispostas sistematicamente em nosso corpo legislativo), convive lado a lado com elementos agregados plenamente alheios à lógica jurídica, que vão sempre acoplados a qualquer prática estatal em que estejam em jogo ordem, controle, restrição (em vários níveis) e, principalmente, necessidade de sujeição a um comando.

A princípio, é impossível conceber a existência de um mecanismo essencialmente dogmático que cuide de prever, conter ou disciplinar, à totalidade, os dramas inerentes ao exercício da manifestação jurisdicional por excelência, além da carga de desgaste e potencial sofrimento latente que se choca com todos envolvidos, mesmo que receptores mediatos da declaração prolatada. Sumamente quanto ao efeito primordial de uma decisão condenatória, que conduz o receptor, este imediato (réu), à capitulação de seus direitos e/ou à perda temporária do maior deles: a liberdade. Com ela, embora sem previsão expressa legal (e quem opera nos meios forenses e conhece a realidade prisional hodierna sabe muito bem), resta, na prática, igualmente confiscada uma série extensa de direitos e bens juridicamente – em tese – tutelados pelo Estado, que vão desde a honra em um sentido amplo, até as efetivas possibilidades de reinserção social e mesmo a integridade sexual do apenado, em muitos casos.

Concebemos, pois, a manifestação jurisdicional decisória, em matéria penal como um terreno inóspito, dados, entre outras coisas, a) a insegurança generalizada

3 Como em outra oportunidade pudemos estudar: DIVAN, Gabriel Antinolfi. Decisão Judicial nos Crimes Sexuais. O julgador e o réu interior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, especialmente o Capítulo III.4 “A análise do problema do senso comum, da experiência e da ciência no raciocínio do juiz pode partir de uma proposição ao mesmo tempo surpreendente e banal, a saber, a de eu em grande parte o raciocínio do juiz não é regido por normas nem determinado por critérios ou fatores de caráter jurídico”. TARUFFO, Michele. Senso comum, Experiência e Ciência no raciocínio do juiz. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Curitiba: IBEJ, 2001, p.7.

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intrínseca à mesma (que assola quaisquer potenciais envolvidos com o caso penal em debate, sobretudo, e de maneira visceral, o próprio julgador); e b) a suposição (para nós, evidência) de que ela representa muito mais do que um mero comando que põe fim a um conflito jurisdicionalizado e penalmente relevante, carregando, sempre, consigo, uma carga elementar de efeitos não-legalmente prescritos, tão nefastos quanto o mais insalubre dos cárceres.

2 DuAS REAliDADESA existência de uma eficácia corpórea e bastante táctil dos preceitos e

determinações da decisão penal (seus efeitos na esfera eminentemente jurídica e administrativa de fatores envolvidos: possibilidade de exercício punitivo-tutelar, pelo Estado, ou determinações sobre o status libertatis de um modo geral, do acusado, fundamentalmente), caminha junto a um feixe de poderio puramente imagético e sua força simbólica adjacente (principalmente representada pelo sentido prescritivo de personalidade e de modus vivendi adequados que as normas penais adquirem quando prolatadas pelo julgador).

Geralmente, as abordagens do tema aqui sugerido são carentes de algum – real – efeito prático, uma vez que terminam ou perdidas entre elucubrações que se caracterizam ou por estarem localizadas exclusivamente no campo da crítica e do pleito eterno de opções de lege ferenda, ou por um falso pragmatismo, que não passa de uma análise pobre e epidermicamente dogmática do problema, contribuindo para o nocivo apartheid entre um pensamento doutrinário de cunho crítico e a praxe do cotidiano dos tribunais.

O que propomos, nesse instante, é um exercício reflexivo sobre a faceta mundana da manifestação jurisdicional decisória: sem dividir os efeitos eminentemente jurídicos (pertencentes à esfera sistemática da ordem jurídica) de uma decisão penal, daqueles identificados pelo estudo crítico como resíduo simbólico meta-jurídico (geralmente estigmatizantes) da mesma, pensamos que o núcleo da questão, se não habita inteiramente, em muito pertence ao discurso que corporifica a manifestação do Magistrado, sendo, daí, a fonte de onde pode brotar um princípio de amortização para o quadro.

Afinal, se é fato (lamentável) que a consciência diuturna de um senso comum teórico dos juristas5 é deficitária quanto à necessidade de um policiamento, tal um despir constante da veste teatral-mitológica da prática judiciária (para enxergar os conflitos de carne e osso que ali estão submetidos e, fundamentalmente, as figuras humanas por traz dos atores de falas demarcadas, em todas suas dimensões),6 também é fato que a

5 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II. A epistemologia jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995/Reimpressão 2002, pp. 98-99.6 “Come ogni rito, il processo appartiene a una sfera artificiale, separata dal flusso microstorico quotidiano (Max Weber discrive queste discontinuitá com l’aggetivo ‘ausseralltäglich’), anzi la genera; gli spettatori se ne accorgono: avengono cosi fuori dal solito mondo. Ma è illusione scenica: parti, giudice, testimoni, sono persone di carne ed

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própria existência da função jurisdicional, por si, retroalimenta de maneira inescapável a força do símbolo.

Críticos militantes e combativos de algumas chagas evidentes da dinâmica punitiva estatal, ou não, não podemos deixar de admitir o fato de que as normas penais existem, de que sua aplicação realmente ocorre (ainda que na base de incidência sobre micropartículas sociais – desprezada, para o contexto exclusivo desse artigo, uma explicação mais detalhada acerca dos fenômenos de seletividade, denunciados especialmente pela crítica criminológica).7

Não podemos, também, deixar de admitir que o processo, de forma particularizada, é real e tem alguma eficácia (não se discutindo, nessa sintaxe ventilada, se o termo eficácia vai conjecturado dentro dos propósitos constitucionais que lhe dão guarida ou não). E mais: que sua voz gutural ecoa em uma decisão que, escorada na carga cogente dos mandamentos estatais do Estado, se faz escutar por um ato que muda o mundo no instante em que diz o direito.

Se algo precisa ser modificado, a realidade que a nós é oferecida no cotidiano é o mais evidente ponto de partida, e meio onde podemos fazer contato e operar, faticamente.

Acompanhamos, na esteira de Duclerc, o pensamento de que a mera desconstrução da lógica da prestação jurisdicional-penal estatal, através da denúncia de suas misérias, contorna de modo fictício o problema: (paulatinamente) subvertido, ou não, pela crítica científica, pela superveniência de novas lógicas legislativas e pelo próprio tempo (que a tudo corrói), o modelo penal de resolução de conflitos delitivos do qual dispomos segue vigente, e é preciso não apenas ideias sobre como virá-lo do avesso, mas, principalmente, estratégias de convivência com o mesmo.8

3 PoDER E DiScuRSoNossa proposta pensa um modelo de reforma emergencial de alguns pontos

nevrálgicos na estrutura processual penal a partir de uma revigoração da esfera de atuação daquele que, dentre todos os operadores jurídicos, é, ao nosso ver, o personagem que repousa sobre o elo mais crítico de toda a cadeia: o julgador. Mais (ainda): o seu discurso.

ossa, legate al tessuto profano locale, carichi delle rispettive storie private; le toghe (equivalenti a maschere) non aboliscono lo spazio-tempo profani”. CORDERO, Franco. Procedura Penale. Milano: Giufré, 2000, 5.ed., p.152.7 Na literatura criminológica sul-americana, especialmente, ninguém discorre com mais autoridade sobre a temática do que ZAFFARONI, Eugenio Raul, para onde remetemos o leitor. In: Criminología. Aproximación desde un margen. Bogotá: Editorial Temis, 2003, Tercera reimpressión e, de forma mais incisiva, Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 19918 “De pouco serve, todavia, simplesmente desconstruir a teoria da jurisdição denunciando fragilidades (...) pelo menos até que se modifique a atual configuração das relações de hegemonia nas sociedades ocidentais capitalistas e possa surgir, assim, algum modelo realmente democrático de solução de conflitos penais”. DUCLERC, Elmir. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.194.

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Afinal, como frisa, pragmaticamente, a incontornável obra carneluttiana:

O juízo do juiz, não o das partes, facit ius, o que quer dizer, vincula, ou seja, determina através do mecanismo de direito, a conduta alheia. Depois que o acusador conclui que o imputado é culpado e o defensor que ele é inocente, o mundo segue como antes; mas quando, pelo contrário, uma ou outra coisa é o juiz quem diz, o mundo muda, porque, entre outras coisas, o imputado, se era livre, é capturado, ou vice-versa, se estava detido é posto em liberdade.9

Tomamos como ponto de partida a hipótese de que há um princípio de mescla (quase) inevitável ocorrida no terreno do imaginário de quem exerce a função jurisdicional. Ela atenta para uma – assustadora, na mesma medida em que natural – confusão entre a esfera de atuação eminentemente jurídica e um catalisador típico do exercício de um local de fala poderoso e, como tal, repleto de armadilhas. Uma verdadeira possessão pelo exercício funcional não raro distorce a concepção que o próprio julgador tem de seu papel, e mesmo a consciência (leve) quanto à distorção, por vezes vai suplantada por uma acomodação conformada.10

A suposição acima lançada ganha contornos explosivos quando, ainda em sede de hipótese, vai unida à aliança incorruptível representada pelo binômio saber-poder. Tal como fora investigado por Foucault, o binômio e seus meandros discursivos em torno da(s) verdade(s) possui um fecundo lastro de implicação no estudo jurídico, na medida em que é molde no qual muito perfeitamente se encaixa a prática jurisdicional decisória.

Afinal, desde a capitulação fática típica operada em contornos rebuscados pela atividade das polícias repressiva e judiciária, passando pelo corpo da denúncia (ou da manifestação acusatória legada pelo ofendido), até o dispositivo decisório exarado por Magistrado, o âmbito processual-penal do Estado lida com classificações. Isto é: com definições que bailam entre a disposição fria da terminologia legal e os elementos escolhidos para representar um dado caso, fazendo com que haja adequação entre discurso-opção (enquadramento legal ou não) e conduta do acusado.

Não se pode ignorar solenemente a tese de que quando se trata de interpretação textual (e de possível aferição para classificar uma conduta como incursa em ou, em outro, ou em nenhum tipo legal) nunca há (pura) definição em primeira mão, mas sempre redefinição dos caracteres.

9 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. Volume 4. Trad. Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller, 2004, p.66.10 “Na relação com a comunidade, o juiz representa, no inconsciente das pessoas, a figura do pai. Evidente que o juiz, enquanto regra, aceita/assume esta figura. Ele é aquele que pune, repreende, autoriza o casamento, determina a separação conjugal, distribui os bens. A comunidade, quando não consegue resolver seus problemas, busca socorro na figura do pai/julgador. A relação ‘familiar’ é tão forte que há até controle da sexualidade do juiz pela própria sociedade, além, é óbvio, de controles menores: na maneira de vestir, de se portar, em relação aos seus amigos. É algo forte, presente, marcante”. CARVALHO, Amilton Bueno de. “O Juiz e a Jurisprudência: um desabafo crítico”. In: Garantias Constitucionais e Processo Penal. BONATO, Gilson (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.9.

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A escolha de um ou outro viés classificatório, de uma ou outra ênfase, de um grupo de características dadas ou outro, pode alterar toda a definição de um termo que ao cabo daquele caso será decantada e, assim, implica em um leque de opções que, no contexto jurídico-penal, escancara perigosamente as portas para uma espécie aberta de conceito e para uma fuga frente à taxatividade equivocadamente presumida dos termos legais.11

Não se pode olvidar da responsabilidade tremenda que repousa sobre o prolator da decisão jurídico-penal, por, entre outras tantas coisas, o escândalo semântico costumeiramente imperceptível onde por vezes penetra a falha não-identificável e mais difícil de ser combatida: um argumento decisório que não é nem de mérito nem da superfície dos conceitos postos à mesa, mas, sim, das profundezas da classificação que implica nas (re)definições colocadas.

Nada mais pertinente, no momento, que a opinião de Taruffo, para quem

O verdadeiro problema, portanto, não é o de demonstrar ou negar que o juiz vá além do direito. Que isso acontece é óbvio e, além do mais, o direito não pode ser concebido como algo autônomo e destacado da realidade social e da cultura em cujo seio o juiz atua. Na realidade, o verdadeiro problema consiste em compreender o que acontece quando o raciocínio do juiz vai além dos confins daquilo que convencionalmente se entende por direito e em individualizar as garantias de racionalidade e razoabilidade, de confiabilidade, de aceitabilidade e de controlabilidade dos numerosos aspectos da decisão judiciária que verdadeiramente não são nem direta nem indiretamente controlados ou determinados pelo direito.12

Afinal, se, nos dizeres de Foucault,

As práticas discursivas não são puramente modos de fabricação de discursos. Ganham corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e de difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm13

11 “Mas o caráter impreciso das expressões legais nem sempre é manifesto. Muitas vezes seus destinatários não percebem as mudanças de sentido propostas pelo emissor. Deste modo, os defeitos endêmicos das palavras da lei cumprem importante função retórica em relação às práticas tribunalícias. Constituem algumas linhas argumentativas utilizadas pelos juízes para alterar os critérios decisórios predominantes, sob a aparência de estarem aplicando conteúdos fixados pelo legislador (...) Generalizando, é possível afirmar ao se estabelecer que A, e não B é característica definitória de um termo contido na norma, está-se alterando as consequências jurídicas da mesma. Noutra perspectiva constata-se que nas definições jurídicas toda característica definitória é também uma característica decisória, isto é, forma parte da decisão”. WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da Lei. Temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. pp.38-39.12 TARUFFO, op. cit., p.8.13 FOUCAULT, Michel. “A vontade de saber”. In: Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Trad. Andrea Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.12.

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maior ainda o cuidado fiscalizador que temos de ter em relação ao discurso exercido em meio à atividade jurisdicional decisória. A palavra do julgador não precisa fazer esforço algum para se manter por si só, uma vez que o exercício da jurisdicionalidade é conditio sine qua non constitucional no Estado de Direito sob a égide do qual vivemos. E, se sua função precípua é justamente se impor (eis que age substitutivamente sobre a vontade dos jurisdicionados), a inevitabilidade de seu poder deve ser filtrada de forma razoável, justa, democrática, tributária da principiologia que serve de pilar à vida social (sobretudo quanto ao respeito inegociável à dignidade da pessoa humana) e, principalmente, ética.

4 PoDER E RESPonSABiliDADEHá que se controlar o bom uso da espada que divide o mundo em antes e

depois, empunhada por esse julgador mitologicamente apreendido, que Carnelutti, no entanto, tratou de demonstrar que é bem real. Como frisou o maestro italiano, a opinião do julgador não só faz aderir como gera o direito e, assim, dá maior vazão ao que FOUCAULT aqui também citado diria sobre a produção da realidade por uma discursividade que jamais é meramente descritiva.

Seria alienado (e tolo), de modo alarmista, dizer que (toda) a violência que toma cor em meio ao texto de uma decisão judicial é inteiramente produzida no ventre de seu próprio discurso e que a mesma, quando vem à luz, nunca é reflexo da realidade já posta. A decisão não pinta os fatos, integralmente, mas, sim, os colore. Os fatos postos à pauta da decisão judicial (ou aqueles que longinquamente inspiraram os fatos postos...), em regra, ocorreram, e são portadores de algumas peculiaridades que o discurso não vai criar, simplesmente, nem vai vergar ou alterar.

Seria, porém, exageradamente otimista qualquer diagnóstico que não considere digna de valor a propositura de que o discurso jurídico-penal manifestado na decisão judicial, em alguns casos, implementa, suplementa e complementa a realidade dada, e constitui sobre o sujeito-acusado uma nova realidade que vai operar posteriormente à chancela do trânsito em julgado do decisum.

A sabedoria da corrente sociológica do interacionismo simbólico14 e os estudos foucaultianos sobre constituição de uma própria essência do sujeito a partir dos aparelhos e mecanismos de poder sobre ele atuantes, nascentes nas quais toda a vertente crítica da Criminologia pós-Anos 60 bebeu, teve como principal mérito justamente esse: o de demonstrar que a questão do Direito Penal (do Processo Penal, em última análise) deve necessariamente levar em consideração a quota de realidade que é produzida em meio ao discurso oficial e a ela deve exclusivamente ser creditada.

O discurso, principalmente o discurso jurisdicional-decisório, pois, é dispositivo

14 “Teóricos como Goffman estavam profundamente atentos ao modo como o ‘eu’ é apresentado em diferentes situações sociais e como os conflitos entre estes diferentes papéis sociais são negociados. Em um nível mais macrossociológico, Parsons estudou o ‘ajuste’ ou complementaridade entre o ‘eu’ e o sistema social”. HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p.35.

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que possui eficácia nas relações de poder verificadas, e “em sua relação com a verdade, modifica-a e a produz, podendo, ao mesmo tempo, ocultá-la”.15

O momento relacional em que se verifica o poder oriundo do discurso, e sua atuação, tem o condão de, em determinados níveis e em determinados casos, constituir um grau tão espesso de realidade que torna pouco importante a “realidade” primeira dos fatos anterior ao seu agir. Exemplo mais típico, o poder discursivo que emerge com a decisão judicial: dentro do universo que gravita na órbita do Estado Democrático de Direito, a decisão judicial penal muda, de fato, a realidade jurídica do indivíduo, e com ela, geralmente, de forma drástica, a situação de seus direitos, pouco importando, ao final, se a nova realidade constituída tem legitimidade de ser, ou não (ao final da ciranda processual, quantos culpados não se livram soltos e, mais grave, quantos inocentes não amargam punição injusta nos nossos cárceres?).

Na verdade, os fatos objetivos, não são um reles mito bobo fruto de uma imaginação inteiramente falsaria. Admitir isso como premissa é ser engolfado por engodos metodológicos new age sem caráter nenhum de confiabilidade. Porém, o pior dos cegos é o que não quer enxergar e de nada adianta trabalharmos única e exclusivamente com elementos exclusivos de apreensão fática, como se eles fossem (sempre) pétreos e como se a verdade fosse um mero dado à disposição.

Como já sabemos, há muito, a verdade real é epistemologicamente inapreensível em sua totalidade e qualquer tentativa humana (re)cognitiva de qualquer coisa vem sempre em golfadas mnemônicas batizadas com um (ou vários) quês de tempero emotivo, imaginativo, afetivo e ideológico, ainda que imperceptível (que o diga Damásio e seu famoso trabalho).16

Por isso, somos obrigados a aceitar, entre outras coisas, que a verdade (ou uma verdade) nunca vai nos aparecer nua e integral. Devemos partir para o raciocínio e a ponderação sobre os elementos que vão sempre atuar para delineá-la ou mesmo distorcê-la completamente, em alguns casos patológicos. Assumimos, pois, que não existe verdade (pelo menos não verdade com força de implemento) fora do poder-saber-discurso que a constitui e lhe apara arestas. Não existe verdade enquanto valor maior ou místico. A verdade é construída e não atingida. É (por vezes) imposta, e não descoberta ou revelada. O discurso técnico-científico (jurídico, principalmente) – e seus limites e possibilidades – é peça de altíssima tensão, na medida em que é, não raro, o artesão modelador da própria (ou de alguma) verdade

15 TESHAINER, Marcus. Psicanálise e Biopolítica. Contribuição para a ética e a política em Michel Foucault. Porto Alegre: Zouk, 2006, p.47.16 “Os níveis mais baixos do edifício neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo. Por sua vez, esses níveis mais baixos mantêm relações diretas e mútuas com praticamente todos os órgãos do corpo, colocando-o assim diretamente na cadeia de operações que dá origem aos desempenhos de mais alto nível da razão, da tomada de decisão e, por extensão, do comportamento social e da capacidade criadora. Todos esses aspectos, emoção, sentimento, e regulação biológica, desempenham um papel na razão humana. As ordens de nível inferior do nosso organismo fazem parte do mesmo circuito que assegura o nível superior da razão”. DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano. Trad. Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.13.

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O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele, graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros.17

Por isso, nossa preocupação no mister reside, basicamente, em exemplos de manifestações judiciais (manifestações jurisdicionais decisórias, em todas instâncias) que parecem não atentar para o índice de construção da realidade da discursividade que uma manifestação como a decisão penal possui.

Nossa preocupação é, mais especificamente, com a, por vezes, irrestrita ausência de maiores filtros éticos verificada em certos textos decisórios na seara criminal, onde comumente se identifica um (ao nosso ver) preocupante fenômeno de transmutação do julgador: de agente estribado no ofício constitucional de prover o Estado da chancela jurisdicional e de ser garante da aplicação da Lei Maior em todas suas dimensões,18 passa a ser o justiceiro,19 um vingativo imponderado, representante de anseios “midiáticos” e pautado por uma agenda de suprir o gosto de sangue que o amedrontado corpo social por vezes deixa à mostra.

Isso constitui tudo o que não se espera, em se tratando de um operador jurídico estatal, supostamente empenhado em ser fiador de uma prestação jurisdicional que sirva para gerir os conflitos sociais de forma racional e organizada, sistemática e justa, na promoção irrefreável do bem comum (caracteres-padrão de um conceito doutrinário de Jurisdição que, de fato, no Brasil, tem soado “como pilhéria”).20

Nos dizeres de Lopes Jr., esse modelo falho de julgador acima descrito representa para o due process, e para tudo o que esse princípio ostenta em termos democráticos, um perigo tão assombroso quanto o das ditas atrocidades cometidas pelos réus submetidos ao seu julgamento: esse Magistrado é aquele que incorpora o discurso de fiscal sanitarista da sociedade, sem freios ou limitações, e, municiado pela violência autorizada que seu lugar de fala ostenta, crê em si mesmo enquanto

17 FOUCAULT, Michel. “Verdade e Poder”. In: Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2004. 20.ed., p.12.18 Sobre a função de defesa ostensiva dos preceitos constitucionais, exercida pelo Magistrado inclusive por um juízo de controle difuso descriminalizador, manifestado na própria decisão, indispensável conferir CARVALHO, Salo de. “A sentença criminal como instrumento de descriminalização (o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da Constituição)”. In: Revista da Ajuris. Ano XXXIII – n.102. Porto Alegre: AJURIS, jun. 2006, pp.327-348. 19 MORAIS DA ROSA, Alexandre. “O Processo (Penal) como Procedimento em Contraditório: Diálogo com Elio Fazzalari”. In: Novos Estudos Jurídicos. V.11, n.2. Itajaí: Univali Editora, 2006, p.223.20 DUCLERC, op. cit., p.193.

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uma espécie de salvador da pátria, solapando a necessidade de um devido processo e todas as exigências a ele atinentes e acreditando piamente que à sua discursividade não se pode opor barreiras.21

5 A EfEtiVAção DA rEsponsabiLidadE (PRoPoStAS)De nada servem ao Estado Democrático (Constitucional) de Direito decisões

em matéria penal que fujam ao tecnicismo necessário e à ponderação (proporcional) recomendável e passem a tecer elucubrações fantásticas que demonstram que a visão que o Magistrado, por vezes, tem, de si mesmo e de sua função, é absolutamente perturbada (e perturbadora).

Desde decisões que tecem profundas considerações moralistas inteiramente descabidas frente à questão posta, invertendo diametralmente o enfrentamento necessário da questão, passando a “punir” a vítima de abuso sexual dado seu “desavergonhamento”, como se a suposta promiscuidade fosse autorização tácita para a pessoa sofrer quaisquer tipo de violência erótica sem poder reclamar (como no memorável Acórdão do “bacanal”),22 passando por julgados que fixam e confirmam estereótipos baixos (aceitando passivamente probabilidades – mesmo as altas – como se fossem regras gerais vinculantes,23 e como se jamais pudesse haver dignidade em “meios sociais pouco saudáveis”, configurando-se, a exceção à regra, tal uma surpresa digna de figurar em um zoológico), vemos uma série de inobservâncias de alguns cuidados no trato das palavras que consideramos importantes demais para passarem sem o devido prestígio.

Sem falar nas típicas decisões judiciais que espelham e deixam emergir um não só um apaixonado sentimento de vingança como um perigoso e desaconselhado exercício de futurologia (a mescla perfeita), para não simplesmente condenar, como

21 “Esse juiz representa uma das maiores ameaças ao processo penal e à própria administração da justiça, pois é presa fácil dos juízos apriorísticos de inverossimilitude das teses defensivas; é adepto da banalização das prisões cautelares; da eficiência antigarantista do processo penal; dos poderes investigatórios/instrutórios do juiz; do atropelo de direitos e garantias fundamentais (especialmente daquela ‘tal’ presunção de inocência); da relativização das nulidades pro societate; é adorador do rótulo ‘crime hediondo’, pois a partir dele pode tomar as mais duras decisões sem qualquer esforço discursivo (ou mesmo fundamentação) ; introjeta com facilidade os discursos de ‘combate ao crime’; como (paleo)positivista, acredita no dogma da completude do sistema jurídico, não sentindo o menor constrangimento em dizer que algo ‘é injusto, mas é a lei, e, como tal, não lhe cabe questionar’; sente-se à vontade no manejo dos conceitos vagos, imprecisos e indeterminados (do estilo ‘prisão para garantia da ordem pública’, ‘homem médio’, ‘crimes de perigo abstrato’, etc.), pois lhe permitem ampla manipulação, etc.”. LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 81-82.22 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Acórdão em Apelação Criminal, N° 25220-2/213 (200400100163). Relator Des. Paulo Teles. Goiânia, 29 de Junho de 2004.23 “(...) A presunção de violência, como é aceita hoje, não é tida como absoluta, pois cede diante de prova de que a vítima, no caso concreto, e não em considerações genéricas, levava vida dissoluta, desregrada, era ela corrompida e afeita aos prazeres do sexo, ou seja, já experiente. Mas não é esta a realidade dos autos. Nada foi provado neste sentido em desfavor da menor Diane. É bem verdade que, o conjunto probante revela que a menina Diane estava inserida num meio social pouco saudável para fins de formação de sua personalidade, já que sua mãe, Leila, trabalhava como prostituta em casa noturna (...)”. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acórdão em Apelação Criminal, N° 70009840273. Relatora Desa. Lúcia de Fátima Cerveira. Porto Alegre, 29 nov. 2006.

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também divagar sobre possíveis sequelas irreparáveis que por ventura marcarão a fogo a esfera sentimental da vítima.24

Quando um Magistrado afirma categoricamente que é “certo” que o crime provocará traumatismo eterno e incurável à alma da vítima e que o acusado é um “monstro”, deveria ter a exata noção de que, mais do que artifício retórico condoreiro, seu discurso adorna a realidade, quando não chega às raias de produzir realidade.

No momento em que decide um caso penal, um Magistrado responde ao réu jurisdicionalizado, à vítima do crime e a todo corpo social, de certa forma, e é para isso (e não por outro motivo) que a Publicidade dos atos jurisdicionais vai erigida enquanto norma constitucional basilar (Constituição Federal, Artigo 93, IX). A decisão judicial é uma resposta: não qualquer resposta, mas a resposta oficial e necessariamente qualificada que o Estado fornece ao caso jurisdicionalizado pelo processo, optando por uma solução (jurídica) em detrimento de outras possíveis na gestão do conflito posto.25

Assim, tendo-se o discurso tipicamente enquanto auxiliar na produção da realidade, não se pode excluir uma certa parcela de responsabilidade do julgador se a profecia se confirmar: ao se reportar à sociedade (e aos envolvidos, em especial), o discurso oficial, para ficar com o exemplo já ilustrado, termina, em certa escala, por estabelecer que a vítima deverá ficar traumatizada de forma jamais superável e que o condenado é uma espécie de demônio contemporâneo e assim deve ser visto por todos, sumamente por si mesmo, quando se confrontar com o espelho.

Goffman já nos ensinou que a subjetividade do sujeito se constitui, em grande parte, somando ao que ele genuinamente é, ou pensa ser, aquilo que a esfera de relação social com os outros o faz crer que é e/ou o estimula a ser.26 Nenhum outro, no contexto presente, é mais poderoso na impostura de subjetividades do que o Estado enquanto decisor criminal, pela figura do Magistrado. Falando mais uma vez em termos criminológicos, sabemos, assim, que há um enorme contingente de pessoas cuja origem criminosa já se perdeu entre o ser (ou ter sido) criminoso, efetivamente, e o ser etiquetado como tal pelo sistema.27 É por essa razão que um dos pilares da função jurisdicional-constitucional deve ser o trato ético na condução da própria jurisdição.

Estamos cientes de que a lógica jurídica não pode abarcar um tamanho grau de variáveis a ponto de se desestruturar enquanto meio organizado de controle e mecanismo binário escolhido para a gestão dos conflitos penais. Algo sempre ficará para trás, e a

24 “...Certo é que o evento monstruoso, brutal e desumano reservará, indefinidamente, péssimas, incômodas e traumáticas lembranças àquela então menor de 14 anos...”. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Acórdão em Apelação Criminal, N° 1.0024.01.604182-4/001(1) Relator Des. Armando Freire. Belo Horizonte, 31 e mar. 2005.25 “Neste quadro, a decisão é um procedimento cujo momento culminante é um ato de resposta. Com ela, podemos pretender uma satisfação imediata para o conflito, no sentido de que propostas incompatíveis são acomodadas ou superadas”. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980, 2.ed., p.89. 26 GOFFMAN. Erving. A representação do Eu na Vida Cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis: Vozes, 1999, 8.ed., especialmente p. 230 e seguintes.27 ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas..., pp.123-147.

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opção por tutelar os conflitos exclusivamente com base em um número específico de regramentos e ditames procedimentais-legais (a organização jurídica cogente típica) jamais se vai deixar penetrar, em nossa opinião, por uma avalanche filosófica de possibilidades de escuta, eis que a própria existência da ordem jurídica prevê que, em um dado momento, uma versão mais verdadeira prevaleça e a partir dela, e tão somente, se pensem os efeitos e consequências aceitáveis dentro do sistema. A inteligibilidade do sistema jurisdicional é outra e não há lugar dentro dela, por hora, para uma apreensão ética integral das dimensões da alteridade.28

Isso, contudo, não significa que não seja imperativa nossa necessidade de trabalhar (ou tentar trabalhar) a ética nos limites esgarçados de sua possibilidade de implementação dentro do processo e de considerar que a tarefa da decisão judicial (máxime na esfera penal) precisa ser encarada como um momento de relação humana que implica em um ato de responsabilidade radical da pessoa do julgador para com o a pessoa do julgado.29

Assim, os requisitos de uma decisão penal precisam ser imantados por essa consciência: uma decisão justa, não excessivamente benevolente, nem despudoradamente draconiana, começa pelo tratamento devido a ser dado aos a ela submetidos: pessoas. Pessoas humanas. No afã de não precisar de rédeas na manifestação vingativa, a condição de pessoa parece sempre ser a primeira a cair, e o acusado vai (re)classificado e (re)etiquetado como qualquer outra coisa, diversa da categoria dos homens normalmente assentidos como tais.30

A jurisprudência de nossas Cortes Superiores já vem há muito registrando um número elogiável de decisões que pugnam pela nulidade processual reconhecida no simples excesso de linguagem, em certos momentos de manifestação do Julgador (sentença de pronúncia, por exemplo) onde a verborragia se mostra descabida: evidenciadas as decisões paradigmáticas proferidas pelo STF – HC 68606/DF, Min. Celso de Mello; HC 72113/RJ, Min. Francisco Rezek e HC 79489/PE, Min. Nelson Jobim, bem como recentes entendimentos do STJ no mister – HC 78104/RJ, Min. Arnaldo Esteves Lima; HC 49187/RJ, Min. Laurita Vaz.

Temos, do mesmo modo, disponíveis no repertório do ordenamento, mecanismos legais específicos para coibir a “inversão tumultuária” de atos processuais, proveniente

28 “O pré-requisito para qualquer ética verdadeira – não credora da chancela ontológica-neutralizante para existir e que não necessita, assim, hipotecar suas consequências mais radicais – constitui-se, dessa forma, no estabelecimento prévio de uma base ética de inteligibilidade da realidade, como já sugerido. A ética como filosofia primeira significa: todo o contato com a realidade, toda interpretação desta realidade e todas as possíveis interpretações desta realidade se dão eticamente, onde o contato e a ação éticos substituem o conhecimento classificador tradicional e podem vir a fundamentar um conhecimento sobre bases absolutamente novas, com outro sentido”. TIMM DE SOUZA, Ricardo. Totalidade & Desagregação. Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, pp.123-124.29 TIMM DE SOUZA, Ricardo. Uma introdução à ética contemporânea. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004, p.103.30 FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. “Vítimas e vilãs, ‘monstros’ e ‘desesperados’. Como o discurso judicial representa os participantes de um crime de estupro”. In: Linguagem em (Dis)curso. V.3, n.1. Tubarão: Unisul, 2002, p.146.

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de “erros ou abusos” praticados pelo julgador,31 bem como um extenso rol de proibições32 e restrições33 ao exercício do ofício jurisdicional, para tentar afastar a possibilidade de um julgamento maculado pela parcialidade.

Nada mais justo que se pense de forma idêntica, para a questão do discurso proferido na motivação sentencial, e assim seja vedado (ou processualmente punível, com a nulificação) qualquer resquício identificável de argumentação excessiva, manifestamente a-técnica que sirva para exercer a jurisdição de modo desumano e não-ético.

Não custa lembrar que preceito fundamental do ordenamento pátrio (Constituição Federal, Artigo 5°, inc. XLVII, alínea ‘e’) impõe à nossa prática jurisdicional a inexistência de penas cruéis. Em um Estado Democrático de Direito deveria ser pauta constante a vedação de uma decisão processual penal se constituir, além de um meio de infligir penas legalmente cominadas, em um palco para humilhações, considerações particulares por parte do Magistrado ou mesmo alvo de descarregos psicológicos ofensivos manifestados pelo linguajar. Certamente a pena cruel de aplicação proibida pela Lei Maior se constrói (pelo menos em nossa visão) desde uma decisão oficial que promove ofensas injuriosas ao jurisdicionado, representando uma inacreditável baixeza do Estado ao nível do bate boca privado, algo que a própria existência de jurisdição trata de solapar.

Sem falar que a ofensa, no caso, vem com a grife e a definitividade da chancela judiciária. Confortável local de fala, o do Magistrado ausente de possibilidade de responsabilização: pode injuriar e difamar ao seu bel prazer por vias transversas (ou, por vezes, diretas), extrapolando toda e qualquer competência legitimada para regular, judicialmente, os conflitos penais que lhe são postos.

Propõe-se, para, quem sabe, o novo Código de Processo Penal brasileiro vindouro (a substituir o arcaico e potencialmente inquisitório aparato da década de 40 que hoje exerce a função), o tornar passível de anulação a decisão que angariar adjetivação impertinente e destoante do texto dos tipos legalmente previstos aplicados à espécie, como presunção de parcialidade não-processual. Ou mesmo que haja a inclusão de uma hipótese de vedação ao uso desmedido do linguajar ao longo do texto decisional e seus adjacentes (sobre os elementos da decisão condenatória). Ou mesmo, ainda, talvez, a categorização do caso como hipótese configuradora da Suspeição, tornando o fato como fértil para o ensejo do pleito do afastamento do Magistrado para o proferir da decisão válida para a demanda.34

31 Veja-se a medida de Correição Parcial, no caso do Estado do Rio Grande do Sul, regulada pelos dispositivos do Art. 195 e parágrafos, do Código de Organização Judiciária do Estado, Lei n° 7.356 de 1° de Fevereiro de 1980.32 As hipóteses em que o Magistrado incorre em Impedimento processual para operar no julgamento do caso são coroadas constitucionalmente pelos incisos do parágrafo único do Art. 95 da Carta Magna, sendo que já vinham perfeitamente delineadas pelo texto do nosso Código de Processo Civil, nos incisos do Art. 134 e no Código de Processo Penal, nos incisos do Art. 252.33 Definidas, igualmente, pelo Código de Processo Civil (incisos do Art. 135), com similar menção nos Arts. 254 a 256 do Código de Processo Penal – estabelecida, para o Processo Penal em seu respectivo diploma, a possibilidade de configurar motivo para arguição de Suspeição pela via processual da Oposição de Exceção – Art. 96 a 107.34 Ansiosos, também esperamos uma atuação rigorosa das Corregedorias e sua tão necessária atividade de

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Não vemos qualquer dificuldade em lançar mão de ideia como a apresentada, mesmo cientes das imensas dificuldades práticas e da acalorada discussão processual e tribunalícia que se iniciaria a partir dela, e mesmo da disparidade jurisprudencial que poderia estar fundada. Melhor alguma forma positivada de controle (ainda que de taxatividade admitidamente não-solidificada), do que uma derrocada na esfera dos argumentos, onde sempre há quem diga (e pense) que o Direito é, exclusivamente, o que está na lei, e que o Magistrado só faz adequá-la à realidade.

6 conSiDERAçõES finAiSAos que necessitam de doses contumazes de pragmatismo, necessário o lembrete

de que, em termos de manifestação jurisdicional penal, conceituar o réu nos moldes de um “inimigo” serve apenas para trazer à baila a indesejável ideia bélica similar às doutrinas espúrias de “Segurança Nacional” vigorantes em tempos ditatoriais, definitivamente incondizentes com a atual situação (ao menos em tese) democrática do nosso país e, consequentemente, do nosso Processo Penal.35

Muito mais por essa figura tão emblemática e essencial como a do Magistrado, o uso prudente da palavra deve estar sempre atrelado ao cuidado quanto ao manejo desmedido de sua capacidade imanente de modificar o mundo e amplificar simbologias. Tarefa nada simples. Constante impulso energético que por nem todos consegue ser devidamente contido. Reação trivial: o dar de ombros e a esquiva quanto à obrigação de impor uma (mínima) contenção a esse impulso.

A negação de toda a dificuldade que reina sobre o Magistrado e sua nobilíssima função no momento de mover sua espada (aquela, que re-desenha a vida) e a imensa responsabilidade incutida nesse ato, é a própria fuga do peso de uma necessidade de (mínimo) controle passional, de uma apuração ética rigorosa e de um olhar calculado (como convém a um bom julgador). É o que faz da decisão penal desvairada um terreno fértil para a assunção onírica de que não se está simplesmente julgando, mas expurgando bestas-feras, exorcizando diabos perdidos no mundo, eliminando impurezas e combatendo monstros.36

fiscalização nesse sentido: recomendações e advertências constantes deveriam fazer parte da rotina do julgador que afasta de lado a técnica e a culta ponderação nos seus julgados exarados para se entregar ao desvario da cólera e do abandono antiético no texto da decisão, humilhando, simplesmente, os desafortunados submetidos ao seu julgamento, inclusive como forma de promoção pessoal e cessão indevida aos anseios de “clamores populares” que nada devem interferir no exercício jurisdicional (Cientes estamos, no entanto, de que, nem esse, nem qualquer outro aspecto, deva nem possa se configurar em escopo para que a atividade do Corregedor se transforme em uma verdadeira autorização inquisitória para perseguir e coibir sem limites, munida da mesma impertinência ora combatida).35 BIZZOTTO, Alexandre. “O Mal-Estar do juiz criminal e a ética da alteridade”. In: Revista da Ajuris. Ano XXXIV, n.108. Porto Alegre: AJURIS, dez. 2007, p.15. Sobre o tema – Direito Penal do Inimigo – e as implicações filosóficas e (bio)políticas de sua base epistemológica, indispensável Cf.: PINTO NETO, Moysés da Fontoura. “A Farmácia dos Direitos Humanos: algumas observações sobre a prisão de Guantánamo”. In: Panóptica. Ed. 13/2008 (Revista Eletrônica: http://www.panoptica.org – acesso em jan. 2009).36 “É muito fácil etiquetar: bandido, monstro, ladrão, estelionatário, vagabundo. Tais não passam de adjetivos de impacto. Essas pessoas não são mais do que eu. O outro sou eu. O encarcerado se traduz na negação de meu lado humano destrutivo”. BIZZOTTO, op. cit., p.17.

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Fica, por tudo, a lição fundamental de Nietzsche: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”.37

Todo o cuidado é pouco.

REfERênciASBIZZOTTO, Alexandre. “O Mal-Estar do juiz criminal e a ética da alteridade”. In: Revista da Ajuris. Ano XXXIV, n.108. Porto Alegre: AJURIS, dez. 2007.BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Acórdão em Apelação Criminal, N° 1.0024.01.604182-4/001(1) Relator Des. Armando Freire. Belo Horizonte, 31 e mar. 2005.BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Acórdão em Apelação Criminal, N° 25220-2/213 (200400100163). Relator Des. Paulo Teles. Goiânia, 29 jun. 2004.BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acórdão em Apelação Criminal, N° 70009840273. Relatora Desa. Lúcia de Fátima Cerveira. Porto Alegre, 29 nov. 2006.CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. Volume 4. Trad. Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller, 2004.CARVALHO, Amilton Bueno de. “O Juiz e a Jurisprudência: um desabafo crítico”. In: Garantias Constitucionais e Processo Penal. BONATO, Gilson (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.CARVALHO, Salo de. “A sentença criminal como instrumento de descriminalização (o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da Constituição)”. In: Revista da Ajuris. Ano XXXIII – n.102. Porto Alegre: AJURIS, jun. 2006.CORDERO, Franco. Procedura Penale. Milano: Giufré, 2000, 5.ed.DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano. Trad. Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.DIVAN, Gabriel Antinolfi. Decisão Judicial nos Crimes Sexuais. O julgador e o réu interior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.DUCLERC, Elmir. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.FERRAZ JR. Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980.FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. “Vítimas e vilãs, ‘monstros’ e ‘desesperados’. Como o discurso judicial representa os participantes de um crime de estupro”. In: Linguagem em (Dis)curso. Vol 3, n.1. Tubarão: Unisul, 2002.FOUCAULT, Michel. “A vontade de saber”. In: Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Trad. Andrea Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.______. “Verdade e Poder”. In: Microfísica do Poder. 20.ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2004.GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. 9.ed. Trad. Eric Nepumoceno. Porto Alegre: L&PM Editores, 2002.

37 NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.70.

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Direito e Democracia v.10 n.2 p.311-330 jul./dez. 2009Canoas

o ensino do Direito Penal: da legitimação da violência à luta pela vida

marília Denardin Budó

RESumo Diante da deslegitimação teórica e fática do sistema penal, o objetivo do texto é o de abordar

o descompasso dessa constatação com o ensino do Direito Penal no Brasil. Para tanto, a primeira parte buscará apresentar o marco teórico do qual se parte, o da Criminologia crítica, especificamente no que tange aos argumentos que levam à deslegitimação do sistema penal. No segundo ponto, é traçada brevemente a história do ensino jurídico no Brasil, salientando-se as suas principais características, em especial o papel das universidades, segundo a forma de ensino atual, como fábricas ideológicas, que não questionam o real exercício de poder e violência dos sistemas penais, auxiliando em sua (re)legitimação. O artigo é encerrado com a constatação de que se na América Latina os sistemas penais são marcados pela morte, tratar o Direito Penal de uma maneira crítica significa de certa forma evitá-la, poupando vidas.

Palavras-chave: Ensino. Direito Penal. Sistema penal. Criminologia crítica. Violência.

teaching criminal law: from legitimation of violence to life defense

ABStRActConsidering the factual and theoretical non-legitimation of the criminal system, this paper

aims to approach the unsteadiness of this evidence with the criminal law teaching in Brazil. Thus, firstly this work will present the theoretical background from where it descends, the Critical Criminology, specifically related to the arguments which lead to the relegitimation of the criminal system. Secondly, the history of the legal teaching in Brazil is outlined briefly, emphasizing its main characteristics, specially the role of the universities regarding the current teaching methods like ideological factories, which do not question the real exercise of power and violence of the criminal systems, supporting its (re)legitimation. This paper concludes by discussing the evidence that if in Latin America the criminal systems are determined by death, approaching the criminal law critically means in a certain way avoiding it, saving lives.

Keywords: Teaching. Criminal law. Criminal system. Critical criminology. Violence.

1 intRoDuçãoDiscutir o ensino do Direito no Brasil significa trazer à tona as funções que ele

cumpre. Sabe-se que historicamente a formação de juristas se deu de maneira a constituir uma elite encarregada de construir a ordem nacional.

Marília Denardin Budó é Mestre em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em Direito e em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Pensamento Político Brasileiro pela UFSM. Professora do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), em Santa Maria-RS. E-mail: [email protected]

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Para trazer tal discussão ao campo do Direito Penal é necessário perceber que a função do seu ensino da maneira como é realizada na maior parte das faculdades de direito é a de legitimar um sistema penal já deslegitimado teórica e empiricamente. Ou seja, manter o exercício de poder do sistema a despeito de seu excesso de violência e déficit de proteção ao ser humano.1

O objetivo do texto é o de abordar a questão do ensino do Direito Penal no Brasil. Para tanto, a primeira parte buscará apresentar o marco teórico do qual se parte, o da criminologia crítica, especificamente no que tange aos argumentos que levam à deslegitimação do sistema penal. No segundo ponto, será traçada brevemente a história do ensino jurídico no Brasil, salientando-se as suas principais características. O terceiro ponto tratará do papel das universidades, segundo a forma de ensino atual como fábricas ideológicas, que levam à legitimação do sistema penal. O texto é finalizado com a relação entre o ensino jurídico crítico e a preservação da vida.

2 A DESlEGitimAção Do SiStEmA PEnAl E o PAPEl RElEGitimADoR DAS uniVERSiDADESO Direito Penal liberal tem como origem o surgimento do Estado Moderno. Os

primeiros pensadores desse marco tinham suas ideias arraigadas ao contratualismo, formando a Escola Clássica. Enquanto a unidade metodológica desses teóricos implicava a utilização do método racional-dedutivo, em voga na época, a sua unidade ideológica tratou principalmente do problema dos limites do poder de punir do Estado em contraponto à liberdade dos indivíduos.2 Isso porque a tradição pré-moderna trazia um sistema inquisitório de processo, onde as mais simples garantias de defesa do acusado eram inexistentes, o que tornava a acusação completamente obscura ao indivíduo, e atentava contra a certeza do Direito e a segurança jurídica.3

Em função de mudanças nos contextos político, econômico e social, o século XIX já trouxe teorias sobre o crime bastante diversas. Foi o auge da Escola Positiva, cujo paradigma de ciência já não era mais o racionalismo e sim o evolucionismo, sendo o método característico do período, o empírico-experimental. Ao invés de justificar a liberdade do indivíduo a partir de uma ordem natural universal, e então limitar o poder de punir do Estado, a Escola Positiva deslocou o foco de atenção para o homem criminoso, buscando nele as causas do crime. Assim, de limite ao poder de punir do Estado, o indivíduo criminoso, visto como um “anormal”, biológica, antropológica e sociologicamente determinado a cometer crimes, passa a ser o objeto de intervenção do Estado na busca pelo seu tratamento e reinserção no polo “normal” da sociedade.4

1 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.2 ibid. p.47.3 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1997.4 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan/ICC, 2002.

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Tendo esses pressupostos sido relegados com o surgimento e consolidação da Escola Técnico-Jurídica, a criminologia passou a ser tratada como ciência auxiliar, sendo a dogmática penal erigida a ciência do direito por excelência. A dogmática jurídico-penal foi o paradigma científico que emergiu na modernidade com uma função essencialmente prática de racionalizar a aplicação judicial do Direito Penal.5 Criminologia e dogmática, ao mesmo tempo em que mantiveram a sua autonomia em relação à metodologia, formaram uma unidade funcional na luta contra o crime.6

Assim, as funções racionalizadora e garantidora da dogmática penal, declaradas no meio jurídico, se viabilizariam através da previsibilidade e uniformização das decisões judiciais, além de uma aplicação igualitária do Direito Penal, garantindo segurança jurídica.7 A dogmática jurídica, em sua autoimagem seria uma

[...] ciência do dever-ser que tem por objeto o Direito Penal positivo vigente em dado tempo e espaço e por tarefa metódica (técnico-jurídica, lógico-abstrata) a “construção” de um “sistema” de conceitos elaborados a partir da “interpretação” do material normativo, [...] tendo por finalidade ser útil à vida, isto é, à aplicação do Direito.8

Apesar de, em grande parte, os postulados da Escola Positiva terem sido deixados de lado com o surgimento da Escola tecnicista, a qual buscava a exclusão de todo e qualquer elemento jusnaturalista, biológico, sociológico, ou psicológico do Direito Penal, pode-se dizer que Escola Clássica e Escola Positiva acabaram complementando-se nas legislações do século XX. A dogmática penal, nesse sentido, veio a assumir um caráter bifronte: ao mesmo em que traz em si a ideologia liberal de proteção ao indivíduo, traz a ideologia da defesa social, que tem no indivíduo o objeto do tratamento para reinserção na sociedade. Essa ideologia é identificada por Baratta, como presente no senso comum jurídico, mas também do lado de fora da academia, relacionando alguns princípios que a constituem.9

Muito embora o Direito Penal tenha se fechado no estudo das normas penais, dentro de uma perspectiva de dominação da dogmática, vista como ciência do direito por excelência, a sociologia seguiu os estudos relativos ao crime e à sociedade na Europa e nos Estados Unidos. Assim, as novas teorias sociológicas relacionadas ao crime vieram possibilitar a crítica à ideologia penal dominante, expondo a deslegitimação do sistema penal, com a consequência de se buscar alternativas político-criminais.

5 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. op. cit.6 ANDRADE, Vera Regina Pereira de Andrade. op. cit. p.99.7 Ibid. p.27.8 Ibid. p.1179 A ideologia da defesa social é especificada por Baratta, como sendo a ideologia que une tanto Escola Clássica como Escola Positiva, sendo constituída por alguns princípios: princípio da legitimidade, princípio do bem e do mal, princípio do interesse social e do delito natural, princípio da igualdade, princípio da culpabilidade, princípio da finalidade ou da prevenção. BARATTA, Alessandro. op. cit. p.42.

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Destaca-se, dentre estes estudos sociológicos, a teoria do etiquetamento, ou labelling approach, uma vez que faz a ruptura epistemológica em criminologia, ao retirar o foco das causas do crime no criminoso para visualizá-lo no fenômeno da criminalização. A teoria do etiquetamento chega à percepção do desvio como sendo uma construção social, a partir de interações ocorridas na sociedade, fazendo com que em alguns momentos se definam situações e pessoas como desviantes. Essa teoria também é conhecida por criminologia da reação social, por identificar na reação da sociedade ao desvio um fundamental elemento para que o comportamento seja assim rotulado.

Considerado o fundador da teoria do etiquetamento, Becker é a maior referência no estudo da reação social e dos efeitos da estigmatização do etiquetamento na formação do status social de desviante. Central nessa teoria é a ideia de que “(...) os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio, e por aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las como outsiders”.10 Dessa maneira, o processo de criminalização se inicia com a definição do que é a conduta desviada, através do processo legislativo. Mas anteriormente a isso ocorre o processo de definição, no senso comum, do que é o comportamento “normal”, sendo que “a normalidade é representada por um comportamento predeterminado pelas próprias estruturas, segundo certos modelos de comportamento, e correspondente ao papel e à posição de quem atua”.11 Ao atribuir a etiqueta de desviante a algumas pessoas, em função do descumprimento a tais normas, realiza-se a criminalização secundária. “O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito aquela etiqueta; o comportamento desviante é o comportamento assim etiquetado pelas pessoas”.12

A importância da reação social na definição de um fato como criminoso é demonstrada por Lemert através do quociente de tolerância, através do qual é possível manipular o desvio e a reação social através de uma fração matemática, medida com uma quantidade de condutas desaprovadas em uma localidade no numerador e no denominador o grau de tolerância para o comportamento em questão.13 Assim, se em duas cidades diferentes, mas de tamanho comparável, uma tem um alto índice de ocorrência de determinado comportamento desviante, e outra tem um baixo índice, caso na primeira a tolerância seja maior e na segunda menor, ou seja, na segunda haja maior reação social, o resultado será o mesmo. Isso demonstra que, para que um comportamento seja desviante ou criminoso, não basta que esteja assim definido em lei, mas que haja uma reação social frente à sua prática.

É também consequência dessa teoria a percepção de que, dentro de um quadro geral de delitos ocorridos diariamente, apenas a alguns a sociedade e o sistema penal reagem, demonstrando a existência de uma seletividade. Essa seletividade é encontrada

10 BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press, 1996. p.9. Tradução livre. Grifos no original.11 BARATTA, Alessandro. op. cit. p.95.12 BECKER, Howard. op. cit. p.9. Tradução livre.13 LEMERT, Edwin M. Social pathology: A systematic approach to the theory of sociopathic behavior. New York: McGraw-Hill Book Company, 1951. p.57.

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tanto na definição do ato desviante, quanto na atribuição do rótulo de desviante a alguém.

A seletividade deve ser percebida também a partir da existência de muitos fatos definidos como crimes que ocorrem diariamente, mas de que sequer se tem notícia, ao que autores posteriores denominaram “cifra negra da criminalidade”. A consequência dessa percepção é de que, como nota Zaffaroni, se o sistema penal processasse e punisse todos os fatos tipificados como crimes, toda a população já teria sido criminalizada várias vezes

Diante da absurda suposição – não desejada por ninguém – de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis.14

Essa questão traz à tona a operacionalização dos estereótipos, tanto de autores como de vítimas, que estão ligados ao senso comum, criados através da interação social. São eles “sistemas de representações que orientam a vida quotidiana”,15 e se constituem em mecanismos de seleção na medida em que permitem a definição da desconformidade como desvio, sendo ligada a um certo número de sinais exteriores

a cor da pele, a origem étnica, o corte de cabelo ou de barba, o estilo do vestuário, os locais frequentados e as horas de frequência; bem como a toda uma série de atitudes simbólicas ‘próprias’ de um delinquente, de um louco, de um drogado ou de um ébrio, de um homossexual, de uma prostituta.16

Tendo em vista que os estereótipos constituem um mecanismo de seleção, explica-se porque os mesmos tipos se encontrem na prisão. “O estereótipo alimenta-se das características gerais dos setores majoritários mais despossuídos e, embora a seleção seja preparada desde cedo na vida do sujeito, é ela mais ou menos arbitrária”.17 Isso demonstra que os estereótipos se constituem não somente em um mecanismo de seleção, mas de reprodução, tendo em vista que possuem “um efeito de feedback sobre

14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p.125. Em consequência disso, passa-se a perceber que as estatísticas criminais não dizem respeito à criminalidade, e sim à criminalização, tendo em vista que elas são feitas com base apenas nos casos que são registrados. “O que as estatísticas refletem são as contingências organizativas que condicionam a aplicação de determinadas leis a determinada conduta por meio da interpretação, decisões e atuações do pessoal encarregado de aplicar a lei”. KITSUSE; CICOUREL apud CID MOLINÉ, José; LARRAURI PIJOAN, Elena. Teorías criminológicas. Explicación y prevención de la delincuencia. Barcelona: Bosch, 2001. p.210.15 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1997. p.389.16 ibid.17 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p.134.

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a realidade, racionalizando e potenciando as ‘razões’ que geram os estereótipos e as diferenças e oportunidades que eles exprimem”.18

Em função da insuficiente relação da operacionalidade dos sistemas penais na construção social da criminalidade com a estrutura econômica, social e política, a Criminologia crítica surge, na década de setenta para somar aos resultados da teoria do etiquetamento uma abordagem marxista, gerando uma teoria materialista do desvio.

Dos resultados das pesquisas em Criminologia crítica destaca-se a demonstração de que o princípio da seletividade, identificado pela teoria do etiquetamento, está orientado conforme a desigualdade social, sendo que as classes inferiores são as efetivamente perseguidas. Assim, “[...] o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica (legitimação) do sistema social global, isto é, das relações de poder e de propriedade existentes”.19

A relação entre prisão e capitalismo, gerada pela crítica historiográfica também auxiliaram, no que concerne ao chamado “impulso desestruturador”20, na deslegitimação teórica dos sistemas penais. Os primeiros teóricos a adentrarem nesse tema foram Rusche e Kirchheimer, ao buscarem compreender a modificação dos sistemas penais ao longo da história. Concluem que “a transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pelas mudanças das demandas das lutas contra o crime, embora esta luta faça parte do jogo. Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção”. 21

Também através da leitura de Foucault se permite observar que, ao contrário da ideia difundida de que a prisão não cumpre com seus objetivos declarados, ela cumpre com objetivos reais

Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão: pobres, os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados; e os forçados, se fossem bem nascidos, tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça.22

18 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit. p.389.19 BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo. In: ELBERT, Carlos Alberto; BELLOQUI, Laura (orgs.). Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p.299-333. Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. p.301.20 COHEN, Stanley. Visiones del control social: Delitos, castigos y clasificaciones. Barcelona: PPU, 1988.21 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan/ ICC, 2004. p.20. Para exemplificar, os autores referem que: “É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista, que a prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria, que fianças para todas as classes da sociedade são impossíveis sem uma economia monetária. De outro lado, o desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique inaplicável”. Ibid. p.20-21.22 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p.254.

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A delinquência seria, segundo o autor, fabricada para propiciar a vigilância da sociedade, e, ao mesmo tempo, possibilitar a imunidade das ilegalidades dos grupos dominantes. Nisso residiria o sucesso real da prisão, a despeito de seu fracasso declarado, ao produzir uma “ilegalidade fechada, separada e útil”.23 A prisão contribui, assim, no sentido de que “desenha, isola e sublinha uma forma de ilegalidade que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar. Essa é a delinquência propriamente dita (...); ela é antes um efeito da penalidade (e da penalidade de detenção) que permite diferenciar, arrumar e controlar as ilegalidades”.24

A tese da seletividade é, portanto, essencial para a compreensão da tática de neutralização dos pobres contida nas ideologias que buscam inflar a repressão penal através da propagação do medo. A criminalização secundária, ou seja, aquela que decorre da atuação das agências executivas e judiciária do sistema penal (polícia, justiça), é ainda mais seletiva. Mesmo quando previstos na lei crimes típicos das classes dominantes, dificilmente pessoas que dela fazem parte são criminalizadas

A imunidade dos crimes mais graves é cada vez mais elevada à medida em que cresce a violência estrutural e a prepotência das minorias privilegiadas que pretendem satisfazer as suas necessidades em detrimento das necessidades dos demais e reprimir com violência física as exigências de progresso e justiça, assim como as pessoas, os grupos sociais e movimentos que são seus intérpretes.25

A constatação da seletividade do sistema penal traz diversas consequências. A principal delas é o descrédito para com o princípio de igualdade perante a lei. Conforme conclui Andrade, ao invés de assegurar a igualdade e a generalização no exercício da função punitiva, a dogmática penal trouxe para o sistema penal a reprodução da seletividade e da desigualdade percebida na sociedade.26

Isto leva à conclusão de que a definição de alguém como criminoso depende menos da prática de um ato tipificado na lei penal do que de seu status social. A ideia de que o sistema penal deveria significar segurança jurídica, tanto no sentido de que o indivíduo deve ser protegido do poder de punir do Estado, como em relação ao atributo do Estado moderno de monopólio da coerção física, de forma a evitar a luta de todos contra todos, fica completamente distorcida diante dessa realidade. Isso porque, ao realizar tal seleção entre as pessoas criminalizáveis, mostra-se um excesso de arbítrio, afora o fato de que as garantias penais são diariamente violadas pelas agências do sistema penal.

23 Ibid. p.244.24 Ibid. p.243-244.25 BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, vol. 6, n. 2, p.44-61, abril/maio/junho. p.52.26 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. op. cit. p.311.

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Entretanto, quando se percebe que o sistema penal não cumpre com as suas funções prometidas, questiona-se então qual seria a sua função atual. Ocorre que, na atualidade, o sistema penal cumpre uma função simbólica. O objetivo do uso simbólico do Direito Penal seria produzir uma dupla legitimação, segundo Santos

a) legitimação do poder político, facilmente conversível em votos – o que explica, por exemplo, o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil; b) legitimação do direito penal, cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado, com as vantagens da redução ou, mesmo, da exclusão das garantias constitucionais como a liberdade, a igualdade, a presunção de inocência etc. cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de direito em Estado policial.27

A constatação teórica de que o sistema penal age de forma a reprimir seletivamente parcelas da população, é somada à constatação empírica, proposta por Zaffaroni, da deslegitimação do sistema penal. Após discorrer sobre as várias teorias, de autores europeus e norte americanos, o autor conclui que na região latino americana as consequências dessa deslegitimação são muito mais dramáticas. Afora o fato de que a história do continente tem como principais características o genocídio e o etnocídio, decorrentes das duas revoluções tecnológicas ocorridas na Europa, o período atual marca a passagem para a revolução tecnocientífica, no contexto da globalização neoliberal que tem consequências imprevisíveis.28 Todo o sistema penal latino americano é marcado pela morte. Desde as comuns execuções sumárias,29 por agentes da lei ou por grupos de extermínio, até a situação dramática das prisões, o problema do aumento da repressão penal não é o da neutralização de parcelas cada vez maiores da população, em especial da mais fraca, mas sim, a do extermínio, do genocídio. Ao contrário dos Estados Unidos ou mesmo da Europa que têm uma economia que permite a utilização das prisões como fonte de economia terciária, a economia dos países latino americanos não comportam tal situação. Assim, os excluídos do mundo do trabalho e vítimas do desmantelamento do Estado sobram, e, por isso, entram para o rol dos executáveis.

Assim, para o autor, a deslegitimação do sistema penal se dá, antes de tudo, pelos próprios fatos, sendo o principal deles, a morte. Buscando manter o sistema penal legitimado, apesar de sua evidente deslegitimação, atuam diversas instituições. Dentre elas, as instituições de ensino do Direito. As universidades são chamadas por Zaffaroni de “fábricas ideológicas”, na medida em que mantêm o discurso dogmático, asséptico em relação à vida real e à sociedade, buscando não ver o que ocorre por trás dos códigos empoeirados.

27 SANTOS, Juarez Cirino dos. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n.12, p.53-57, julho-dezembro 2002. p.56.28 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit.29 A respeito do tema, cf LIMA JR., Jayme Benvenuto (org.). Execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais. Uma aproximação da realidade brasileira. Recife, 2001.

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O dogmatismo30 e o conservadorismo são características apontadas de forma unânime pelos autores que escrevem sobre o ensino do Direito. Diante disso, buscar-se-á destacar algumas características do ensino jurídico no Brasil antes de expor possibilidades ao mesmo, como forma de confrontar o individualismo exacerbado com o papel social do jurista de forma a evitar a morte.

3 o EnSino juRíDico no BRASil: DoGmAtiSmo E conSERVADoRiSmoApesar de a primeira matriz teórica a partir da qual se desenvolveram os primeiros

cursos de Direito no Brasil ter sido jusnaturalista, logo no final do século XIX passou a imperar o paradigma positivista. Essa perspectiva se caracteriza, no direito, pela escolha da lei, do ordenamento jurídico positivo como objeto, e uma ruptura com o senso comum, tanto no sentido de ruptura com o direito consuetudinário, quanto com a eliminação dos juízes leigos e sua substituição por juízes letrados.31

Assim, o gênero literário correspondente a essa fase do ensino jurídico é o manual, ou compêndio, tendo ao seu lado os comentários de leis.32

O ensino do direito no Brasil absorveu o caráter conservador da Universidade de Coimbra, que durante o período imperial nomeava os seus diretores e determinava o seu currículo e método didático, com suas aulas-conferência, ensino dogmático acrítico, mentalidade ortodoxa do corpo docente e discente, a serviço da manutenção da ordem estabelecida e transplantada da ex-metrópole, oportunizando aos profissionais por ele formados o prestígio local.33

As origens do ensino do Direito no Brasil dizem muito sobre o seu contexto atual. Como forma de possibilitar a formação de uma burocracia do novo Estado nacional, que teve sua independência proclamada em 1822, e sua primeira Constituição outorgada em 1824, foram criados os primeiros cursos de Direito no Brasil, em São Paulo e Olinda, em 1827.34 Burocracia é a palavra que resume o papel desses bacharéis, devendo construir a nova ordem nacional sem modificar o estado das coisas. “Os bacharéis serão o tipo-ideal do burocrata nascido em sociedade escravista e clientelista: subindo

30 “Dogmatismo quer dizer, pois, uma atitude de acatamento e submetimento do jurista ao estabelecido como Direito Positivo que, independentemente do seu conteúdo material (mutável), desempenha sempre a função de dogma”. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: Escorço de sua configuração e identidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p.74.31 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. p.223-224.32 Ibid. p.225.33 COLAÇO, Thais Luzia. O ensino do direito no Brasil e a elite nacional. Congresso de História das Universidades da Europa e da América. Cartagena, Colômbia, nov. 2004.34 Sobre os debates que antecederam a criação desses cursos, inclusive no que concerne à formação curricular dos mesmos, cf. BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

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na carreira por indicação, por favor, por aliança política com os donos do poder local, provincial ou nacional”.35

Durante o período imperial, é a educação superior que distingue a elite política brasileira. Na época, “havia um verdadeiro abismo entre essa elite e o grosso da população em termos educacionais”.36 Os cursos de Direito criados após a Independência foram dedicados explicitamente, segundo Carvalho, à formação da elite política brasileira.37 Segundo o autor, a unidade ideológica da elite política imperial, de formação jurídica, possibilitou a construção da ordem nacional.38

A metodologia do ensino jurídico no Brasil era reflexo da adoção de um paradigma, o positivista, que tinha como pressuposto o destaque à figura do legislador e a inquestionabilidade das normas criadas, em tese, segundo a vontade geral.39

No final do século XIX o excesso de bacharéis “gerou o fenômeno repetidas vezes mencionado na época da busca desesperada do emprego público por esses letrados sem ocupação, o que iria reforçar também o caráter clientelístico da burocracia imperial”.40 A proclamação da República não trouxe grandes modificações à estrutura social e institucional brasileira. A separação entre Igreja e Estado talvez seja a mudança mais aparente, inclusive no currículo dos Cursos de Direito.

Com a República, o curso começou realmente a destinar-se à formação de bacharéis-advogados, mas continuava com sua marca indelével: um curso que forma advogados, mas também destinado a formar a elite institucional e política brasileira, e a nossa elite do pensamento humanístico. Estes foram, por conseguinte, os compromissos do Curso de Direito, formar advogados e formar a elite administrativa brasileira, dentro do pensamento humanístico.41

A partir de 1930, com a modernização e início do processo de industrialização, o campo de trabalho dos bacharéis assume novas características, além de se ampliar para outras áreas onde ainda não havia profissionais especializados, como administradores,

35 LOPES, José Reinaldo de Lima. op. cit. p.226.36 CARVALHO, José Murilo de Carvalho. A construção da ordem: A elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.79.37 Uma abordagem aprofundada sobre a elite política imperial cf. CARVALHO, José Murilo de. op. cit. p.74. Sobre o papel dos bacharéis cf. também ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: O bacharelismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.38 “O Brasil dispunha, ao tornar-se independente, de uma elite ideologicamente homogênea devido a sua formação jurídica em Portugal, a seu treinamento no funcionalismo público e ao isolamento ideológico em relação a doutrinas revolucionárias. Essa elite se reproduziu em condições muito semelhantes após a Independência, ao concentrar a formação de seus futuros membros em duas escolas de direito, ao fazê-los passar ela magistratura, ao circulá-los por vários cargos políticos e por várias províncias”. CARVALHO, José Murilo de Carvalho. op. cit. p.39.39 LOPES, José Reinaldo de Lima. op. cit. p.227.40 CARVALHO, José Murilo de Carvalho. op. cit. p.87.41 BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas – uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro. In: Ensino jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil. p.35-55. Brasília: OAB, Conselho Federal, 1997. p.37.

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economistas, etc.42 Nessa década proliferam-se as faculdades de direito, aumentando o acesso à classe média.43 Segundo Arruda Jr., a partir de 1950 passa-se a falar em uma crise da formação jurídica, já que os campos de trabalho criados aos bacharéis após 1930 passaram a ser tomados pelos novos profissionais especializados. Restaram, assim, aos bacharéis, cargos burocráticos menores no Estado ou em empresas privadas.

Quanto ao ensino do Direito, propriamente, houve algumas mudanças, tendo ocorrido reformas curriculares em 1962, 1972, 1994 e, atualmente, em 2004.44 Apesar de as diretrizes curriculares em vigor serem flexíveis e expressarem a preocupação com a formação dos estudantes de direito também nas relações com outras áreas das ciências humanas, além da relação com a prática, efetivamente não traz mudanças estruturais no perfil do formando em direito. “O ensino dogmático ainda é a base da educação jurídica, entendida como atividade que pretende estudar o direito positivo vigente sem construir sobre o mesmo qualquer juízo de valor, a partir de uma aceitação acrítica que tenta explicar a coerência do ordenamento”.45

Apesar de já superadas no ramo da pedagogia, as pedagogias diretivas46 são as mais comumente utilizadas nas salas de aula das faculdades de Direito. Perceber o aluno como tabula rasa é o único pressuposto do qual pode partir um professor que passa os períodos de aula expondo o que está na lei e tecendo seus comentários, sem o estímulo à participação dos alunos, bem como à crítica do atual estado das coisas. É também a chamada “educação bancária”, aquela onde “o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação”.47

O perfil de egresso que se deseja deve estar estritamente relacionado à forma como os professores tratarão os alunos anteriormente em sala de aula. O mais comum de se ver são conformistas, conservadores, exegetas, donos da verdade, buscando seu sucesso profissional individual. Isso é reflexo da adoção de uma pedagogia que parte desses pressupostos. “Os cursos de Direito continuam a formar agentes do sistema, reprodutores da ideologia da classe dominante, profissionais conservadores e ortodoxos, distantes da realidade da vida, sem nenhum compromisso social”.48

42 ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Bacharéis em Direito e crise de Mercado de Trabalho: Algumas Reflexões. Sequência: Estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, n. 6, dez. 1981. p.29-40.43 COLAÇO, Thais Luzia. op. cit. sp.44 Para uma análise das modificações curriculares dessas reformas, cf. COLAÇO, Thais Luzia. op. cit.45 Ibid. sp.46 O diretivismo, segundo Becker, parte do pressuposto epistemológico empirista, ou seja, que o aluno nasce uma tabula rasa a ser preenchida a partir da transferência do conhecimento do professor para o aluno. “O professor acredita no mito da transferência de do conhecimento:o que ele sabe, não importa o nível de abstração ou de formalização, pode ser transferido ou transmitido para o aluno. Tudo o que o aluno tem a fazer é submeter-se à fala do professor; ficar em silêncio, prestar atenção, ficar quieto e repetir tantas vezes quantas forem necessárias, escrevendo, lendo, etc, até aderir em sua mente, o que o professor deu”. BECKER, Fernando. Modelos pedagógicos e modelos epistemológicos. Educação e realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 19, n. 1, jan./jun. 1993. p.90.47 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 43 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p.65.48 COLAÇO, Thais Luzia. op. cit. sp.

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Ocorre que buscar a formação de bacharéis com outro perfil exige aulas diferentes. E isso não significa a mera adoção de técnicas de aula diferentes, para substituir a aula-conferência, mas pressupõe uma epistemologia diferente e, além disso, um conteúdo abordado de maneira diversa.

O ensino das disciplinas jurídicas no Brasil está, basicamente, dominado por duas tendências: de um lado o ensino excessivamente dogmático, desvinculado das outras dimensões do conhecimento que fazem referência ao homem e à sociedade, do outro, o ensino teórico do Direito, que está cada vez mais desvinculado da realidade social.49

O Direito Penal se insere nesse contexto como uma disciplina extremamente dogmática. Em geral, as aulas de Direito Penal se resumem à leitura e explicação dos artigos do Código Penal, frequentemente com a adoção de um manual por parte do professor. Diante disso, é comum verificar a utilização de exemplos com os famosos Caio, Tício e Mévio, em que nenhum tipo de crítica é realizado. Assim, “[a] leitura e o ensino dos códigos, de modo acrítico e reflexivo, completamente desvinculada de suas condicionantes sociais e econômicas, acaba mesmo por reproduzir, no plano jurídico, uma certa lógica de controle e dominação social [...]”.50

Situando os problemas atuais do ensino jurídico no Brasil, Bastos menciona a existência de uma crise da didática. Isso porque “[c]om as salas de aula superlotadas, o professor sucumbe e se sobrepõe à transmissão do saber comparado à leitura dos códigos, muitas vezes desvinculados dos problemas da vida e do cotidiano”.51

Quando se estuda um tipo penal apenas como está exposto na lei, sem qualquer menção à política criminal que baseou a sua introdução no ordenamento, bem como aos possíveis fatos sociais que geraram a demanda pela tipificação, ou pela determinação da pena, dificilmente se compreende a função que o próprio Direito Penal e, de forma mais ampla, o sistema penal cumpre na sociedade.

Ocorre que o Direito Penal não dialogou com as diversas teorias que ancoraram a revolução de paradigma trazida em outros campos do saber, como na sociologia. O surgimento da teoria do etiquetamento e da criminologia crítica, por exemplo, se deram à margem do Direito Penal. Então, ao mesmo tempo em que existem estudos demonstrando a deslegitimação do sistema penal e o papel legitimador do extermínio contido no ensino da dogmática penal dentro de suas funções declaradas, o ensino se mantém da mesma maneira. Da mesma forma, os currículos não permitem uma visão crítica do Direito Penal, posto que a disciplina de criminologia está contida em poucos deles como disciplina obrigatória e,

49 BASTOS, Aurélio Wander. Ensino jurídico: tópicos para estudo e análise. Sequência: Estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, v. 4, dez. 1981, p.59-72. p.61.50 MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. Franca: UNESP/FHDSS, 2005. p.146.51 BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil... op. cit. p.362.

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quando está prevista, frequentemente apresenta um programa ligado ao paradigma etiológico, em especial o positivista.52

Outras disciplinas que permitiriam essas críticas e um outro olhar sobre o Direito Penal, como a sociologia jurídica, a filosofia jurídica, a história do direito e mesmo a ciência política, são pouco valorizadas por alunos e professores.53 Assim, de forma recorrente se vê a passagem por essas disciplinas como um fardo que os alunos são obrigados a carregar por um ou dois semestres de curso e do qual, assim que se libertam, dificilmente conseguem reconhecer a utilidade, bem como fazer as ligações com as demais disciplinas do curso. Nesse sentido, há ainda o problema de que “[...] a inclusão de disciplinas propedêuticas nos currículos frequentemente induz, por sua manipulação equivocada, a reedição de uma injustificável dicotomia entre teoria e prática”.54

É nesse sentido que deve ser salientada a inutilidade da simples modificação da estrutura curricular dos cursos de direito quando os professores e alunos mantêm a mesma visão compartimentada. Além disso, uma disciplina não é, por si própria, crítica e portadora de um germe de transformação pronto a ser desenvolvido ao simples contato.

Assim, deve-se convir que

O Direito ‘admite várias abordagens e o erro está em imaginar que o discurso, feito sobre uma delas, abrange o fenômeno em sua totalidade. (...) Assim, de nada serve acrescentar o estudo da Sociologia Jurídica, da Antropologia Jurídica ou da Economia ao currículo, se as disciplinas ‘dogmáticas’ permanecem dogmáticas.55

A mesma observação deve ser feita em relação à modificação das técnicas de ensino, passando-se da aula apenas expositiva à aula dialogada ou através de seminários, que de nada adianta se o conteúdo continua sendo orientado de forma dogmática. Dessa maneira, os conteúdos também devem ser trabalhados de maneira crítica. Ocorre também que os alunos em geral estão preocupados em seguir uma carreira jurídica em função dos ganhos e da estabilidade que proporcionam, sem qualquer menção ao sentido social que possa ter a sua atuação

52 Escrevendo no final da década de setenta, sendo, porém, uma realidade atual, Del Olmo observa que, na América Latina, a docência da criminologia em geral é ministrada por professores formados em direito, mas em alguns casos médicos também a lecionam. Quanto ao conteúdo, aduz que “[...] na grande maioria são cursos de criminologia clínica que continuam difundindo hoje o objeto da criminologia como ‘tratamento dos delinquentes’ e, portanto, sua atenção está dirigida ao indivíduo delinquente”. DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2004. p.275. É interessante de notar ainda a observação da autora a respeito das obras utilizadas no ensino da criminologia, na sua maioria com a utilização de manuais estrangeiros com perfil biologicista. Ibid. p.279-280.53 Sobre os desafios do ensino interdisciplinar, cf. ALVES, Elizete Lanzoni. A docência e a interdisciplinariedade: um desafio pedagógico. In: COLAÇO, Thais Luzia. (Org.) Aprendendo a ensinar direito o Direito. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p.118-144.54 VENTURA, Deisy. Ensinar direito. Barueri: Manole, 2004. p.10. 55 LYRA FILHO, Roberto apud RODRIGUES, Horácio Wanderley. O ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo: Análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho. 193 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1987. p.117.

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Se o ensino jurídico está pautado pelo paradigma epistemológico normativo-positivista e a prática pedagógica vazada no método lógico-formal, ambos proporcionando ao jurista um conhecimento meramente descritivo da ordem jurídica e uma desumanizada aplicação tecno-burocrática do direito, tais atitudes teóricas só poderiam resultar mesmo numa completa despolitização do saber jurídico e no esvaziamento do seu sentido ético.56

No que tange ao Direito Penal, despolitizá-lo e desprovê-lo do conteúdo ético significa ocultar o fato de que o sistema penal é uma forma de exercício de poder extremamente violenta, e deslegitimada, que se mantém principalmente pela reprodução por parte de seus operadores.

As universidades têm, portanto, um papel fundamental na reprodução e legitimação do sistema penal. Nesse sentido, de forma a diminuir a violência e a dor causadas por um sistema penal que tem como sua operacionalidade real o genocídio em marcha, estaria implicada uma mudança na formação de seus operadores. O sistema penal é, como observa Zaffaroni, uma máquina de violação de direitos humanos que não atinge apenas a sua clientela, os criminalizados, mas também os seus operadores.57 Por isso, há a necessidade de uma resposta marginal a esta realidade.58

Nesse raciocínio, Zaffaroni nota que as várias pessoas implicadas no sistema penal passam por treinamentos que levam à sua deterioração. Além da criminalização,59 da prisionização60 e da policização,61 destaca-se a burocratização como o processo de

56 MACHADO, Antônio Alberto. op. cit. p.144-145.57 Para isso, demonstra a sua operacionalidade real, o genocídio em ato, o seu poder configurador, a importância dos aparelhos de propaganda como fábricas da realidade, as fábricas ideológicas, que seriam as universidades, a criminalização a partir da seletividade em função da estigmatização, as cadeias como máquinas de deteriorar, as agências executivas como máquinas de policiar, as agências judiciais como máquinas de burocratizar, concluindo com a deterioração e antagonismos como produtos da operacionalidade dos sistemas penais, e a destruição dos vínculos comunitários.58 Com a designação “marginal” para a região latino americana, Zaffaroni quer significar a) “nossa localização na periferia do poder planetário, em cujo vértice encontram-se os chamados “países centrais”; b) demonstrar “a necessidade de se adotar a perspectiva de nossos fatos de poder na relação de dependência com o poder central, sem pretender identificar esses fatos com os processos originários desse poder”; c) assinalar “a grande maioria da população latino-americana, marginalizada do poder, mas objeto da violência do sistema penal”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p.164-165. E o faz no sentido de que “nada pode ser compreendido sobre nossa região marginal se não a assumirmos e, por conseguinte, se não assumirmos nossa marginalização da história etnocentrista da civilização industrial”. ibid. p.169.59 O processo de criminalização se orienta pelo condicionamento, a estigmatização e a morte, segundo Zaffaroni. “Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orienta por estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação de massa”. Ibid. p.133. Assim, não se pode falar em criminoso, e sim, em criminalizado para designar aquele que foi selecionado pelo sistema penal.60 A prisionização seria um fenômeno resultante da deterioração ocorrida no indivíduo em função de sua inserção na instituição total chamada prisão. Sua principal característica é a regressão, o preso é privado de tudo o que um adulto pode fazer normalmente. Também a perda da privacidade, da autoestima, do seu espaço, além de outras características como a “superpopulação. alimentação paupérrima, falta de higiene e assistência sanitária, etc.”. Ibid. p.125-126. Nesse sentido, a prisão é uma máquina de deterioração, ao provocar o desenrolar do processo de prisionização.61 “O pessoal policizado, além de ser selecionado na mesma faixa etária masculina dos criminalizados, de acordo também com um estereótipo – é introduzido em uma prática corrupta, em razão do poder incontrolado a agência da qual passa a fazer parte e é treinado em um discurso externo moralizante e com uma prática interna corrupta”. Ibid. p.138. Grifos no original.

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deterioração pelo qual passam os futuros operadores das agências judiciais do sistema penal. A burocratização como forma de deterioração da pessoa que opera no órgão judicial do sistema penal se inicia, por vezes, dentro da própria universidade. Seu processo de treinamento “realiza-se mediante uma paciente internalização de sinais de falso poder: solenidades, tratamentos monárquicos, placas especiais ou automóveis com insígnias, saudações militarizadas do pessoal de tropa de outras agências, etc”.62 Esses sinais de poder iniciam na própria forma como se relacionam alunos e professores. De uma maneira geral, “pode-se dizer que, em muitos casos, a postura do docente da área jurídica é um poço de narcisismo, egocentrismo e autossuficiência. Essa situação gera uma relação autoritária e vertical – um verdadeiro monólogo – que logo é assimilada também pelo corpo discente”.63 Tal postura pode ser identificada nos diversos operadores jurídicos, o que parece lógico, tendo em vista que todos passaram pela mesma formação.

Após o processo de treinamento burocratizante, o indivíduo já deve responder às exigências do papel que lhe for atribuído, segundo as características de “assepsia ideológica, certa neutralidade valorativa, sobriedade em tudo, suficiência e segurança de resposta e, em geral, um certo modelo de ‘executivo sênior’ com discurso moralizante e paternalista ou uma imagem de que, na devida idade, responderá a este modelo”.64

O processo de formação do jurista torna-se, em verdade, uma deformação. Conclui-se, assim, que perante os diversos sujeitos implicados na operacionalidade do sistema penal, é ele “um complexo aparelho de deterioração regressiva humana que condiciona falsas identidades e papéis negativos”.65 Ao reproduzir os papéis, a academia se torna também uma agência do sistema penal, e, da mesma forma, pratica reiteradamente a violação de direitos humanos daqueles que por ela passam.

4 o PAPEl Do EnSino cRítico Do DiREito PEnAl E o imPERAtiVo ético DE EVitAR A moRtEAs alternativas ao ensino do Direito Penal dogmático passam pela compreensão

de que o próprio sistema penal que o discurso dogmático legitima já não pode ser considerado de acordo com suas promessas. Sabe-se que o mesmo exerce função oposta à declarada, posto que, ao invés de garantia ao indivíduo e racionalização das penas, legitima a arbitrariedade seletiva inerente à operacionalidade do sistema penal. Dessa maneira, ensinar um Direito Penal crítico, ciente das funções reais cumpridas, torna-se uma forma de diminuição da violência, seja em relação aos operadores, que sofrem uma deterioração de sua personalidade, seja das mortes que caracterizam a sua operacionalidade.

Nesse sentido, Batista traz, em uma das obras que buscam propor um estudo do

62 Ibid. p.133.63 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1993. p.79.64 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p.141.65 Ibid. p.143.

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Direito Penal de maneira crítica, a percepção de que, apesar de o Direito Penal ter como missão a proteção dos bens jurídicos, é necessário que se saiba que,

numa sociedade dividida em classes, o direito penal estará protegendo relações sociais (ou “interesses”, ou “estados sociais”, ou “valores”) escolhidos pela classe dominante, ainda que aparentem certa universalidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações. Efeitos sociais não declarados da pena também configuram, nessas sociedades, uma espécie de “missão secreta” do direito penal. 66

A crítica aos paradigmas atuais deve ser conciliada à reconstrução de novas formas de se fazer o direito, de maneira que se possa avançar. Cumpre verificar, de acordo com a evolução dos direitos humanos no mundo, que a vida em geral, e a dignidade da pessoa humana em especial, são os maiores valores, e devem ser preservadas dos efeitos destrutivos do sistema penal. Tal visão está juridicamente ancorada ainda na Constituição Federal de 1988, a qual expõe como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III), além de prever vários direitos e garantias individuais para preservá-la.67 Além disso, prevê direitos sociais, econômicos e culturais para sua efetivação.

Através dessa percepção, ao invés de auxiliar a reprodução do positivismo, do formalismo e do conservadorismo, como tem ocorrido desde a sua fundação no Brasil, o ensino jurídico deve buscar a construção de uma sociedade mais justa e democrática, mais fraterna e solidária

Sua função deve ser formar agentes sociais críticos, competentes e comprometidos com as mudanças emergentes, com o novo. Profissionais do Direito que possuam uma qualificação técnica de alto nível acompanhada de uma consciência de seu papel social, da importância estratégica que possuem todas as atividades jurídicas no mundo contemporâneo e, portanto, da responsabilidade que lhes compete nessa caminhada. Em resumo: que os cursos jurídicos sejam instrumentos de construção da verdadeira cidadania.68

A resposta a ser dada por parte dos operadores do direito às consequências do exercício do Direito Penal deslegitimado está fundamentada também, para Zaffaroni,

66 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p.116. É necessário observar que existem já manuais de direito penal no Brasil que possibilitam uma perspectiva mais crítica sobre a dogmática. Alguns exemplos são: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lúmen Júris, 2006; ZAFFARONI; Eugenio Raúl ; BATISTA, Nilo ; et. al. Direito penal brasileiro. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003; ZAFFARONI; Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.67 BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001. Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 68 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico e direito alternativo... op. cit. p.109.

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em um imperativo ético. Tal imperativo ético se constituiria no fato de que a posição daqueles que hoje operam as agências o sistema penal seria um milagre, no sentido etimológico do termo, uma maravilha resultante de o indivíduo ter passado por todos os riscos que prendem a muitos no caminho, podendo chegar, enfim, a um elevado grau de saber, com as consequências que isso gera. Pondo a nu “o desprezo pela vida humana praticado no exercício de poder no qual o juiz ou catedrático erige-se como operador, cria um imperativo de consciência iniludível, um compromisso com todos aqueles que não puderam ser beneficiados pelo milagre”.69

Assim, a resposta marginal deve se dar com perspectivas otimistas em relação às possibilidades de redução da violência, com a priorização da pessoa como base, e o desvalor da destruição da vida humana.70 “Esta fundamentação encontra, hoje, uma “reafirmação positivada nos instrumentos internacionais dos direitos humanos, como anseio da comunidade internacional”.71

A partir disso, parece ser necessário se colocar em colaboração criminologia crítica e Direito Penal, que também será crítico, de forma a vincular ao discurso jurídico penal o ideal de proteção dos direitos humanos. Como nota Aniyar de Castro, “o ‘garantismo’, ou respeito, vigilância e garantia dos direitos humanos, se converteria assim na zona de intersecção de ambos os círculos, e no objetivo de alto nível na escala de prioridades de ambas as disciplinas”.72

Dessa forma, o papel da universidade seria justamente o de criação de um discurso jurídico-penal aberto e garantidor. “Em primeiro lugar, é necessário introduzir um discurso diferente e não violento nas fábricas reprodutoras da ideologia do sistema penal, ou seja, nas universidades e centros de terceiro grau”.73

Sabendo-se que o direito em geral e o Direito Penal, de maneira específica, dentro de uma perspectiva sociológica conflitual, são mecanismos de opressão, no sentido de que são impostos pelos grupos dominantes e destinados a manter os opressores e oprimidos nos mesmos lugares em que se encontram, um Direito Penal crítico deve justamente pôr no centro da reflexão a própria lógica de dominação e de opressão. Caso contrário, os novos profissionais do direito serão mais braços opressores e não haverá a diminuição a violência.

Assim, a libertação deve ser o objetivo daqueles que lutam por um Direito Penal crítico, pela destituição de poder do sistema penal, de maneira que a violência e as mortes que o caracterizam possam deixar de existir. A partir daí, acreditando na possibilidade de mudança da realidade, em função de um estudo aprofundado dos efeitos da operacionalidade do sistema penal, parte-se da consciência ingênua que caracteriza a assepsia do dogmatismo para uma consciência crítica, que “busca se

69 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p.154. Grifos no original.70 Ibid. p.171.71 Ibid. Grifos no original.72 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2005. p.125.73 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p.175.

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livrar de preconceitos”; “repele posições quietistas”; “é indagadora, investiga, força, choca”.74

5 concluSãoA realidade dos sistemas penais latino americanos tem como principal característica

a violência e a morte. Diante dos argumentos dos criminólogos críticos que estabelecem a deslegitimação do sistema penal e, consequentemente, do discurso jurídico-penal, deve-se questionar porque o Direito Penal ainda é ensinado de maneira dogmática. E qual função é cumprida pela universidade nesse contexto.

Percebe-se então, que tal função é a de relegitimar continuamente o sistema penal, gerando bacharéis alheios à realidade, preocupados apenas com a codificação, com a manualística.

Para fazer frente à violência profunda que assola toda a região marginal latino americana, é necessário partir para a mudança das várias instituições que a perpetuam. Por isso, modificar o ensino do Direito Penal, para gerar bacharéis diferentes, críticos, serve para modificar a base operacional do sistema penal. Dessa maneira pode-se agir de maneira a diminuir a dor, a violência e a morte que caracterizam essa operacionalidade.

A construção de um discurso jurídico-penal condizente com o objetivo principal de salvar vidas humanas passa necessariamente pela universidade. “Reduzir os níveis de violência significa salvar vidas, e isso, no atual contexto genocida, é revolucionário, é parte de uma revolução pela vida, indispensável à nossa subsistência”.75

Perceber o problema da segurança pública como destacada das questões sociais, das mudanças no sistema econômico e da ascensão do neoliberalismo é esquecer da realidade por trás dos códigos e legitimar a violência e a morte. Evitar a morte é o resultado, portanto, de se formar operadores do direito críticos e cientes da necessidade de mudança e de abandono da repressão penal.

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74 FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 10 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.75 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. 218.

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Direito e Democracia v.10 n.2 p.331-343 jul./dez. 2009Canoas

Giorgio Agamben e o garantismo: razões de um desencontro

moysés da fontoura Pinto neto

RESumo No presente artigo traço uma crítica às apropriações do pensamento do filósofo Giorgio

Agamben por grande parte dos juristas, nas quais sua crítica ao estado de exceção é vinculada a uma reafirmação do garantismo, do Estado de Direito e dos direitos humanos. Sustento, em sentido contrário, que as instituições liberais, para Agamben, são apenas formas de encobrimento da matriz oculta (arcanum imperii) do Poder Soberano – o poder de vida e morte sobre o “homo sacer” – estrutura que a secularização não eliminou. Por isso, na pouco conhecida parte propositiva do pensamento de Agamben, a ênfase é para uma “política que vem”, na qual conceitos hoje centrais como soberania, direitos humanos e contrato social perdem seu papel.

Palavras-chave: Agamben. Garantismo. Soberania. Exceção. Direito. Profanação.

Agamben and guarantism: Reasons of a misencounter

ABStRAct In this paper I’m tracing a critic of the philosopher Giorgio Agamben’s thinking appropriations

by the majority of jurists, in what they relate his critique of the state of exception to a reaffirmation of “guarantism”, Rule of Law and human rights. I affirm, in an opposite way, that the liberal institutions, for Agamben, are just forms of hiding the occult matrix (arcanum imperii) of Sovereign Power – the power of life and death on the “homo sacer” – structure which the secularization didn’t eliminate. Because of this, in the not-well-known propositional part of the Agamben’s thinking, the emphasis is to an “incoming politics”, in what today’s central concepts like sovereign, human rights and social contract lose their relevance.

Keywords: Agamben. Guarantism. Sovereign. Exception. Right. Profanation.

1 AGAmBEn: “cRítico Do EStADo DE ExcEção”?

A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo.

(Walter Benjamin, Oitava Tese sobre a História)

Moysés da Fontoura Pinto Neto é professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade Luterana do Brasil. Doutorando em Filosofia (PUCRS). Mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUCRS. Conselheiro e pesquisador do ICA (Instituto de Criminologia e Alteridade). E-mail: [email protected]

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Não pode haver frustração maior ao estudioso do pensamento de Michel Foucault do que saber que, no campo jurídico, o francês que redefiniu a filosofia política moderna e elaborou um pensamento microfísico do poder – estendido em redes de saber/poder com seus respectivos “regimes de verdade” – é reduzido a um “crítico da pena de prisão”. Certamente o Direito não é a única área que não levou ao extremo o pensamento de Foucault – ou simplesmente não o entendeu –, mas reduzir o complexo e poderoso pensamento do autor a “Vigiar a Punir” é uma falta tão grande quanto reduzir esse livro – teorizador do poder exercido na sua nervura concreta, do seu caráter positivo e das estruturas disciplinares da sociedade moderna – a uma “crítica da pena de prisão”.

Ao que parece, o pensamento filosófico de Giorgio Agamben, que rapidamente vai entrando no campo jurídico e se tornando a nova “moda”, segue o mesmo caminho. É verdade que a prosa de Agamben não é exatamente generosa com o leitor, ao aproximar-se facilmente da poesia (no seu estilo bastante direto e às vezes crítico). No entanto, a recepção desse pensador que questionou as bases da filosofia política contemporânea, colocando em xeque conceitos centrais como “soberania” e “direitos humanos” não deve reduzi-lo apenas a um “crítico do estado de exceção”.

A riqueza das proposições que Agamben põe – na linhagem que remete à crítica devastadora da Modernidade efetuada pela Escola de Frankfurt, especialmente na figura de Walter Benjamin, complementada com a reflexão sobre a “biopolítica” iniciada por Michel Foucault – não pode ser reduzida à defesa do “Estado de Direito” e das garantias individuais, ou da extensão dos direitos humanos à “vida nua”. Esse trabalho foi feito – e muito bem – pelo também italiano Luigi Ferrajoli, por exemplo, que rechaça com propriedade todas as intervenções do “Estado Policial” e reitera a crença nos valores liberais, ainda que agora com maior feição social-democrata (na defesa da implementação dos direitos sociais), dando origem ao que hoje se chama de “garantismo”. O problema de Giorgio Agamben é definitivamente outro.1

O presente artigo tem a finalidade de familiarizar o leitor com alguns conceitos desse filósofo que – contra todas as suposições – mantém um caráter relativamente “sistemático” no seu pensamento, estruturando conceitos como “meios puros”, “infância”, “brinquedo”, “vida nua”, “estado de exceção”, “profanação” e “política que vem” ao longo da sua extensa bibliografia. Assim, o leitor jurista que se aproxima do autor a partir de “Estado de Exceção”, sua penúltima obra, pode perder parte fundamental da discussão posta em jogo.

2 A SAlA DE ESPElhoS filoSÓficAOs textos de Giorgio Agamben têm uma estrutura verdadeiramente especular: ou

seja, entrar em um ensaio de Agamben significa mergulhar em conceitos pressupostos que remetem a outros trabalhos do autor. É como se estivéssemos ingressando em uma

1 Isso não significa não serem possíveis tais conjugações; apenas se está sinalando que, do ponto de vista das teses de Agamben, o recurso ao garantismo não tem consistência e é preciso pensar saídas muito mais radicais para as aporias que propõe.

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sala de espelhos, na qual a história da filosofia (e a admiração de Agamben pela filosofia clássica parece evidente) vai sendo projetada mediante uma série de referências que são tecidas conjuntamente ao longo da sua prosa. Nesse sentido, é possível identificar influências que vão de Aristóteles (conceitos de “potência” e “gesto”), Platão (as “ideias”), Spinoza (ética e felicidade, imanência absoluta), Hegel (“negatividade”) até mais recentes como Heidegger, Hannah Arendt, Michel Foucault, Gilles Deleuze e principalmente Walter Benjamin. Além desses, é constante a interlocução com Antonio Negri, Jacques Derrida, Emmanuel Levinas, Hans Jonas, Georges Bataille, Jean-Luc Nancy e Karl Otto-Apel – muitas vezes em sentido crítico –, e linguistas como Sausurre, Benveniste e Jakobson.

Poderíamos dizer que a filosofia de Agamben é continuação das obras de Michel Foucault na filosofia política e tentativa de resposta aos dilemas apontados por Hannah Arendt como limites da política ocidental, em especial o problema dos campos de concentração. Mas o autor recupera, ao mesmo tempo, categorias do pensamento de Walter Benjamin que confrontam a tradição a partir de conceitos teológicos (messianismo, tempo que resta, redenção) e profanação dos resíduos “sagrados” que persistem mesmo nos “laicos” Estados de Direito ocidentais.

Esse pequeno mapa da “sala de espelhos” que é a filosofia de Agamben2 já mostra sua descontinuidade com propostas que se limitariam a afirmar os direitos humanos e a democracia liberal em contraponto ao uso cada vez mais constante da figura genérica do “estado de exceção”. Não se trata, em absoluto, disso. Embora os Estados contemporâneos cada vez mais recorram a técnicas de Estado de Emergência – configurando a situação em que “a exceção vira regra”, podemos dizer que, para Agamben, essa banalização da estratégia do estado de exceção é apenas sintoma, não o mal em si a ser atacado, que é mais profundo.

3 filoSofiA PolíticA E fActiciDADE

A questão tradicional da filosofia política poderia ser esquematicamente formulada nesses termos: como pode o discurso da verdade, ou simplesmente a filosofia entendida como discurso da verdade por excelência, fixar os limites de direito do poder? Eu preferiria colocar uma outra, mais elementar e muito mais concreta em relação a esta pergunta tradicional, nobre e filosófica: de que regras de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de verdade?

(Michel Foucault, em “Soberania e Disciplina”)

A ideia de contrato social, que subjaz à maior parte das teorias constitucionalistas e de filosofia política em geral, é inegavelmente herança metafísica herdada dos/pelos

2 Uma exata delimitação do campo intelectual em que se insere Giorgio Agamben é realizada pelo próprio autor no texto “A Imanência Absoluta” (2005a, p.481-522).

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teóricos liberais do século XVIII. Apoiar a política sobre a ideia de contrato social significa, em outros termos, basear-se em um fundamento pressuposto, porém jamais ocorrido na sua facticidade.3 Todo o discurso dos direitos humanos (ou fundamentais) e da supremacia constitucional depende dessa premissa do contrato social articulador dos direitos e deveres do cidadão (um sujeito abstrato, igual e livre) no Estado de Direito. Sem esse suporte metafísico, o discurso torna-se puramente dogmático.

É justamente sob esse prisma que devemos perceber o tecido sobre o qual se constrói a filosofia de Giorgio Agamben. Aqui, sem dúvida alguma, há uma inequívoca remissão a Martin Heidegger, cuja crítica à “onto-teologia” é feita justamente apoiada na facticidade. A tentativa do pensamento “onto-teológico” de escapar à finitude, entendendo a realidade em caráter absoluto, seria justamente a maior fraqueza da tradição, que deixou de perceber a finitude no seu caráter positivo. Partindo-se da facticidade, percebe-se que “a essência da presença [Dasein] está em sua existência” e que o que, “onticamente, é conhecido e constitui o mais próximo é, ontologicamente, o mais distante, o desconhecido, e o que constantemente se desconsidera em seu significado ontológico” (HEIDEGGER, 2006, p.87). Ou seja: a onto-teologia salta por cima desses pressupostos em direção à metafísica tradicional. A facticidade será o único ponto de partida legítimo de uma filosofia que destrói a tradição (BORNHEIM, 1972, p.139; STEIN, 2004, p.113-121; LEVINAS, 2005, p.22; VATTIMO, 1996, p.72-4; CAPUTO, 1993, p.65-93; AGAMBEN, 2005a, p.390 e 2002a, p.157). Trata-se então de uma espécie de “encurtamento” do campo de indagação filosófico, desconectando-a da teologia e da necessidade de encontrar um ponto de vista fora da condição de ser-no-mundo.

Porém, se o território típico de Heidegger é a ontologia, será Michel Foucault o pensador que irá se apropriar do pensamento da facticidade para entender as relações de poder.4 Foucault irá pensar a política para aquém da ideia de sujeito normativo, típica da Modernidade e ainda presente mesmo naqueles pensadores que reivindicam se integrar à era “pós-metafísica” (por exemplo, Habermas). Para isso, terá de se deslocar da metafísica do contrato social e seu conceito de “homem” para as relações concretas de poder que se dão a partir dos aparatos disciplinares e das estratégias de saber/poder.

3 A concepção de “metafísica” aqui adotada é a heideggeriana, que remete à “onto-teologia”. Deixa-se de lado por hora a questão do construcionismo de John Rawls, que pretende uma concepção política, não-metafísica, do contrato social (OLIVEIRA, 1999, p.56). É interessante observar que todas as descrições constitucionalistas põem o contrato social como premissa, ainda que por vezes “a construir”. Quer dizer: mesmo aqueles que admitem a Constituição como processo em construção têm como premissa a ideia de que está constituída a “sociedade” ou mesmo, em versões ainda mais duvidosas, a “comunidade” – como se um documento normativo fosse capaz de transformar uma estrutura social profundamente enraizada na faticidade do seu acontecimento em algo distinto, como verdadeira fictio juris. (Sobre o tema, ver o paralelo exato que Agamben traça entre o Direito e seu “fora” e, simultaneamente, a onto-teologia (o logos) e sua relação com o ser – AGAMBEN, 2004, p.92-3). Ver também Agamben (2002a, p.98). 4 Assim, embora Foucault afirme, em sua última entrevista, que foi Nietzsche que preponderou na sua trajetória, é certo que também afirma ter sido sua leitura de Heidegger que determinou sua formação. Ver: Oliveira (1999, p.152); Duarte (2006). Iríamos mais longe para afirmar que é simplesmente impossível compreender o pensamento de Foucault sem o prévio solo formado por Heidegger, sob pena de se cair em um esteticismo apolítico ou relativismo insípido. É bom se anotar, no entanto, que o Nietzsche da Genealogia da Moral, não por acaso uma das obras centrais para Foucault, está muito próximo da facticidade e das relações efetivas de poder (OLIVEIRA, 2004, p.151). E que, de certa forma, Nietzsche foi o primeiro a “encurtar” o horizonte filosófico ao propor a “morte de Deus”.

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Das grandes discussões sobre os fundamentos do contrato, gerações de direitos e garantias do cidadão, Foucault irá se deslocar até as extremidades do controle social, do poder exercido de forma quase invisível, “pequena” ou “insignificante”, nos sistemas prêmio/castigo das instituições típicas da Modernidade – fábrica, manicômio, prisão, etc. Da discussão sobre a atuação dos principais agentes do Estado (o soberano, o juiz, o legislador), desloca-se para os “especialistas” que submetem indivíduos de forma dispersa, sem precisar da exibição expressionista típica dos monarcas absolutos.

Assim, aquilo que o discurso moderno caracteriza como uma “racionalização” do poder – inspirada nas “luzes” – é, para Foucault, apenas uma mudança na estratégia de controle, que, em vez de se exercer de forma repressiva e expressiva (ex., suplício), passa a se efetivar de forma positiva, “econômica” e dispersa, especialmente por meio da estratégia disciplinar (ex. prisão) (1999, p.108).5 Essa dispersão coloca ainda em xeque a suposta centralização do poder, típica premissa pressuposta no discurso jurídico-liberal a partir da figura do Estado. Para Michel Foucault, ao contrário, e nesse ponto lembrando bastante Norbert Elias, o poder é sobretudo uma relação, e por isso está disperso ao longo de todas as relações sociais, inclusive as de conhecimento (que se pretendem neutras).

O gesto de Foucault permite romper com o obstáculo jurídico que impunha a concepção – abstrata e metafísica – do sujeito normativo como primeira figura da filosofia política.6 Removendo esse obstáculo, Foucault permite-nos vislumbrar o poder incidindo no próprio corpo dos sujeitos, abrindo a reflexão para além de critérios metafísico-normativos. Como diz o próprio Agamben sobre Foucault,

uma das orientações mais constantes do trabalho de Foucault é o decidido abandono da abordagem tradicional do problema do poder, baseada em modelos jurídico-institucionais (a definição da soberania, a teoria do Estado), na direção de uma análise sem preconceito dos modos concretos com que o poder penetra no próprio corpo de seus sujeitos e em suas formas de vida. (2002a, p.13)

5 “Em outras palavras, Foucault compreendeu que a partir do momento em que a vida passou a se constituir no elemento político por excelência, o qual tem de ser administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado, o que se observa não é um decréscimo da violência, muito pelo contrário, pois tal cuidado da vida traz consigo, de maneira necessária, a exigência contínua e crescente da morte em massa, visto que é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. Não há, portanto, contradição entre biopolítica e tanatopolítica, isto é, entre o poder de gerência e incremento da vida e o poder de matar aos milhões para garantir as melhores condições vitais possíveis. A descoberta da importância política do racismo como forma privilegiada de atuação estatal, fartamente empregada ao longo do surto imperialista europeu do século XIX, e radicalizada cotidianamente ao longo do século XX, tendo no nazismo e no stalinismo seu ápice, tem de ser compreendida segundo os termos daquela mutação operada na própria natureza do exercício do poder soberano. Para Foucault, num contexto histórico biopolítico não há Estado que não se valha de formas amplas e variadas de racismo como justificativa para exercer seu direito de matar em nome da preservação, da intensificação e da purificação da vida” (DUARTE, 2006).6 E, poderíamos afirmar, as teorias jurídicas em geral. Não é coincidência que a maioria dos manuais jurídicos comece por uma história abstrata do Direito, não obstante o contra-senso que fica evidente no próprio conceito de “história abstrata”. Ou, por exemplo, que os livros de Direito Constitucional estejam todos amparados na ideia de Constituição enquanto um “pacto social” – a par do fato de que a maioria delas não foi feita sob esses auspícios. Daí que as descrições remetam às abstrações dos jusnaturalistas do século XVIII – baseadas no “indivíduo livre e racional”.

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Dessa forma, a política – até então reflexão baseada em uma teoria aprisionada pelo jurídico – é pensada enquanto “biopolítica”, na medida em que os saberes modernos colocam o corpo como objeto central do poder mediante uma estratégia disciplinar levada a cabo por especialistas de diversas ordens (psiquiatras, psicólogos, juristas, criminólogos, policiais, etc.) (FOUCAULT, 2007, p.146-158; 2006, p.179-191).

Agamben define seu próprio trabalho – especificamente na obra ainda inacabada Homo Sacer – como uma continuação da investigação foucaultiana,7 interrompida pela morte deste. Seu foco é a interface entre a biopolítica trazida à luz e os modelos jurídico-institucionais. Como se dão essas conexões?

4 A GEnEAloGiA Do “homo SAcER”

Somente em um horizonte biopolítico, de fato, será possível decidir se as categorias sobre cujas oposições fundou-se a política moderna (direita/esquerda; privado/público; absolutismo/democracia etc.), e que foram progressivamente esfumando a ponto de entrarem hoje numa verdadeira e própria zona de indiscernibilidade, deverão ser definitivamente abandonadas ou poderão eventualmente reencontrar o significado que naquele próprio horizonte haviam perdido.

(Giorgio Agamben, em “Homo Sacer”)

É mais uma vez Walter Benjamin que inspira Agamben nas suas reflexões presentes no primeiro volume de Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua. O trabalho explicitador das afirmações elípticas de Benjamin – em expressões como “vida nua”, “o estado de emergência é a regra”, “linguagem pura”, etc. – revela a profunda admiração de Agamben pelo filósofo que se suicida pouco antes da II Guerra Mundial, após descobrir que ele – judeu – seria capturado pelas tropas alemãs. Benjamin certa vez coloca sob suspeição o dogma da sacralidade da vida e afirma ser necessária uma detida investigação sobre ele (AGAMBEN, 2002a, p.74). É essa a tarefa que Agamben realiza.

Efetuando uma genealogia que remete ao termo homo sacer, figura do direito romano que, a um só tempo, poderia ser morta por qualquer um, mas jamais sacrificada aos deuses, ele identifica aqui uma figura-limite que marca o poder soberano. O homo sacer fica submetido à morte por qualquer um sem que sua eliminação consista em um sacrifício ou um homicídio. Essa dúplice exclusão (do mundo profano do homicídio e do mundo sagrado do sacrifício) marca uma estrutura de violência que é o verso do corpo soberano. Kantorowicz estudara, em Os Dois Corpos do Rei, essa figura análoga ao homo sacer, pois sobrevive mesmo após a “morte”, incompatível com o mundo

7 Não se pode desprezar jamais, no entanto, a herança de Walter Benjamin que Agamben sempre faz questão de referir e que pode ser equacionada, em termos metodológicos, a partir do materialismo histórico (destituído de todo seu caráter economicista). Ver Agamben (1993, p.109-123).

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humano que é. O excedente de poder do soberano é precisamente aquilo que pode ser definido como “a capacidade de constituir a si e aos outros como vida matável e insacrificável”8 (AGAMBEN, 2002a, p.107-8; FOUCAULT, 2007, p.147).

A figura da vida sacra ou nua, remetida genealogicamente para o direito romano no homo sacer, esteve desde sempre presente e permanece na política ocidental. Agamben está de acordo com Carl Schmitt em considerar as categorias jurídico-políticas como secularizações de conceitos teológicos, mantendo as estruturas intactas, ainda que alterados os atores (AGAMBEN, 2002b, p.68-70; 2005b, p.110). Como consta na epígrafe logo acima, é somente sob o pano de fundo biopolítico que as questões da Modernidade podem ser equacionadas e resolvidas. Como antecipa o filósofo já no prólogo de Homo Sacer, “a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano. Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana” (AGAMBEN, 2002a, p.15). Por isso, na era biopolítica contemporânea o judeu no campo de concentração desempenha o mesmo papel do homo sacer do direito romano, sendo matável por qualquer um sem que, com isso, exista homicídio.

O que pode parecer acidente para Agamben é um destino9 natural da política ocidental, que apenas torna visível a estrutura que corre subterrânea no “rio da biopolítica”. Apenas a persistência da figura do homo sacer é capaz de explicar a capacidade de fácil permuta entre os regimes totalitários e as democracias liberais, sem que a maioria dos conceitos e instituições sofra mudanças drásticas. Nesse sentido, é preciso entender que certos eventos (tal como a Shoah) não devem ser compreendidos como desvios do projeto moderno, mas como o trazer à visibilidade o que por vezes está oculto, e apesar disso é o fundamento do poder soberano.

O homo sacer está, portanto, aquém de qualquer direito a que faça jus o “cidadão”, lacuna que Hannah Arendt já havia identificado nas suas análises dos regimes totalitários. Essa ambiguidade, extremada no próprio título da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, revela que é a cobertura soberana que garante os “direitos humanos”, pretensamente universais, mas sempre produtores de um resíduo sem cobertura, denominado vida nua. Sua relação com o Estado é de abandono, ou seja, uma espécie de exclusão inclusiva, como na exceção, em que a figura é incluída apenas para ser excluída, ficando capturada fora (ex-capere) (AGAMBEN, 2002a, p.28)10.

8 Vale referir mais um trecho de Homo Sacer: “o espaço político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dúplice exceção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi captura nesta esfera” (AGAMBEN, 2002a, p.91).9 Para uma explicitação do que é destino, ver Agamben (2006, p.122). 10 Perceba-se que a tese de Agamben abre novo campo para observação da relação da vida nua com o Estado que, ao contrário do que se convencionalmente coloca, não é de exclusão, mas de captura fora, ou seja, uma exclusão inclusiva, na qual a relação se mantém em forma de bando. A ideia de “excluído” (típica das ciências humanas e da filosofia da libertação), por isso, deveria ganhar mais rigor técnico e ser substituída pela de abandonado, ou capturado fora, na medida em que a relação com o soberano permanece ainda que o indivíduo esteja fora da lei. Perceba-se que essa é a única explicação razoável para o fato de que é precisamente a vida nua (os habitantes dos morros cariocas, p.ex.) que sente a força do Estado na sua nervura mais intensa (da tortura ao extermínio), apesar de estar do lado de fora dela (em relação, p.ex., aos “direitos sociais”).

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Por sua vez, o estado de exceção, na outra ponta da estrutura que cria o homo sacer, é o poder de o soberano suspender as regras jurídicas sem revogá-las, criando uma figura híbrida que permanece na fronteira entre jurídico e político. O estado de exceção consiste na norma que é aplicada na sua desaplicação. Seu signo não é o excesso de poderes, mas precisamente o vazio que é preenchido por uma decisão soberana. A estrutura, antes de manifestar uma “confusão de poderes”, é, antes, uma substituição da lei por decisões com força de lei, ou melhor, força de lei11. A lei, nesse caso, não é substituída por outra que proibiria ou permitiria determinadas condutas, mas apenas suspensa, criando um vazio onde se infiltraria o estado de exceção. E o campo é precisamente o lugar onde esse “vazio jurídico” se espacializa, atuando o poder soberano diretamente sobre os corpos, sem qualquer mediação da norma.

O correspondente topológico dessa estrutura, segundo o próprio Agamben, é o direito de resistência (2004, p.23). Assim como o estado de exceção, a resistência é inapreensível pelo Direito, à medida que mesmo a sua previsão não é capaz de elidir o surgimento de novas formas de descumprimento legal. Da mesma maneira, o estado de exceção não pode ser reduzido às figuras do estado de sítio ou do estado de necessidade. Mais uma vez a relação de captura fora se processa: nos dois fenômenos, o Direito só pode manter relação mediante uma inclusão para excluir. Sua estrutura permanece inacessível ao Direito, à medida que está na sua base, como potência invisível sempre à disposição do soberano. Que as grandes potências mundiais utilizem essa estratégia explicitamente e à exaustão, não custa reafirmar, é apenas sintoma do enfraquecimento dos mitos filosófico-metafísicos que sustentam a democracia liberal.12

5 A PRofAnAção

’Humanidade’ é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos.

(Michel Foucault, em “Vigiar e Punir”)

Mostrar o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não-relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome de ‘política’.

(Giorgio Agamben, em “Estado de Exceção”)

11 Riscada. 12 Que recentemente uma sólida democracia liberal tenha recorrido aos campos para combater “inimigos” é sintoma de que Agamben, em 1995, não exagerava. Sobre o tema, conferir Pinto Neto (2008). Por outro lado, impossível não pensar, por exemplo, nas constantes execuções em caráter de extermínio promovidas pelas polícias brasileiras, figurando uma espécie de estado de exceção permanente no qual estão jogados os habitantes desses locais análogos aos campos. Os juristas brasileiros, no entanto, negam-se a explicitar positivamente essa estrutura, preferindo apenas sinalizar um “déficit de Constituição”.

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Podemos dizer, assim, que Giorgio Agamben defende uma ampliação dos direitos humanos para atingir também ao homo sacer (nos nossos dias: miseráveis, imigrantes ilegais, “combatentes-inimigos”, etc.), que está aquém do Direito? É justamente essa interpretação que, modo geral, tem prevalecido entre os juristas. No entanto, podemos dizer com certeza que não é a solução proposta pelo autor. Primeiro, pela razão óbvia que o próprio Agamben é oriundo do Direito, sendo evidente que alguém com sua erudição não desconhece essas soluções constitucionalistas.13 Mas esse não é o motivo mais importante.

Em contraponto à política ocidental, enredada eternamente nos mesmos dilemas por não perceber a radicalidade das questões que se põem, Agamben vislumbra uma “política que vem”. Essa política não trabalhará mais com os conceitos jurídico-políticos típicos da nossa sociedade (como soberania, direitos humanos, nacionalidade, cidadania). Para o autor, todos esses conceitos estão cingidos à lógica teológica e metafísica que não evitou os desastres da II Guerra Mundial e nem evita a repetição constante de Auschwitz, que continua ocorrendo enquanto “jogamos futebol” (AGAMBEN, 2002b, p.26).14 A metafísica do contrato social sempre pressupõe o sujeito normativo (o “cidadão”), fazendo permanentemente o jogo da captura fora em relação à vida nua. A humanidade do vivente fica dependendo de uma “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2002c, p.69-76; 2005a, p.416-8).

Mas por que não encampar simplesmente a ideia de “progresso” ou “civilização” e admitir – como faz, por exemplo, Habermas – a Modernidade como “tarefa ainda a cumprir”? Porque, para Agamben, a estrutura do estado de exceção sempre permaneceu oculta e subterrânea – sobre ela repousando o sistema político, mesmo na Modernidade (2002a, p.17). A forma como a teoria do contrato social lidou com essa parcela de poder é precisamente na figura hobbesiana do “estado de natureza”. “O estado de natureza”, diz ele, “é, na verdade, estado de exceção, em que a cidade se apresenta por um instante (que é, ao mesmo tempo, intervalo cronológico e átimo intemporal) tanquam dissoluta. A fundação não é, portanto, um evento que se cumpre de uma vez por todas in illo tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão soberana” (2002a, p.115). Não é necessário muito esforço para perceber que o poder soberano, mesmo nesses tempos de “fim da história”, reivindica seguidamente a utilização do estado de exceção contra seus homines sacri (sejam eles terroristas presos em Guantánamo, párias sociais exterminados pela polícia brasileira ou imigrantes presos na zona de exceção de um aeroporto francês). Quer dizer: a estrutura da exceção não é corrigível pelo Direito ou pela Constituição, mas pressuposta por ambos e necessária, enquanto essência do poder soberano que lhes dá força. Esse é ponto em que precisamente as leituras jurídicas de Agamben mostram-se extremamente inapropriadas: o estado de exceção não é o contrário do Estado de Direito; antes, é o que o sustenta. As relações entre estado de exceção e Estado de Direito não são de antítese. A exceção é aquilo que possibilita a visibilidade do Estado de Direito, por vezes se tornando explícita em situações em que é ameaçada.

13 O que, por óbvio, abrange o garantismo. E se o garantismo trabalha para relegitimar o sistema punitivo, ainda que admitindo deficiências e ilegitimidades inarredáveis, parece óbvio que essa não é a intenção de Agamben, que ataca todo quadro jurídico-constitucional contemporâneo (e quiçá o sistema penal, seu ponto mais deficitário e doentio).14 Sob esse pressuposto, Agamben recusa qualquer caráter “místico” ao extermínio dos judeus nos campos de concentração: “Why confer on extermination the prestige of the mystical?” (AGAMBEN, 2002b, p.32).

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Ao reduzir Agamben a um crítico das técnicas de emergência adotadas por vários Estados contemporâneos, os juristas desperdiçam a nova leitura das relações entre direito e política proposta pelo filósofo italiano (e tributária de Michel Foucault), na qual o estado de exceção aparece como matriz oculta em toda teorização do “Estado de Direito”, produzindo seus efeitos sobre aqueles que estão “capturados fora” do ordenamento jurídico. Em um gesto heideggeriano, Agamben possibilita aos juristas explicar positivamente a completa anomia em determinadas situações – apesar da Constituição15 –, sem que se reduzam ao típico gesto metafísico da exclusão de tudo que não é logos (“lá apenas ‘falta Constituição’”16).

É aqui precisamente que entram particularidades pouco conhecidas das teses de Agamben. O ensaio “Elogio da Profanação”, por exemplo, elucida algumas delas. O filósofo italiano afirma que os juristas romanos sabiam o que significa propriamente “profanar”: quer dizer “restituir ao uso” o que estava separado aos deuses na esfera do sacro. Contestando a etimologia que ficou célebre em Durkheim e até hoje permanece, por exemplo, em Michel Maffesoli, o autor afirma que religio não vem de religare, mas de relegere, ou seja, colocar em uma esfera separada. Profanar tecnicamente significa devolver ao uso comum o que foi separado na esfera sagrada (sem ignorar que um dia aquilo pertenceu ao sacro, mas provocando novo uso) (AGAMBEN, 2007a, p.65-617).

Se Agamben se dedica a analisar o potencial da profanação em relação ao que Benjamin chamara de a “religião capitalista”, crê-se que é também possível transplantar o gesto para a esfera dos modelos jurídico-institucionais. Aquilo que outrora foi sagrado deve ser profanado. A secularização apenas troca as peças, sem mexer nas respectivas posições. É a profanação que permite um novo uso, desfazendo o jogo teológico-político que até hoje ilumina o poder soberano e seu verso, o homo sacer. Somente nos desfazendo do sagrado – num esforço (que pode parecer paradoxal a muitos) moderno18 – é que seremos capazes de desativar a máquina que repete Auschwitz a todos os momentos. Tudo oposto ao discurso constitucionalista que “sacraliza” a Constituição, tornando-a indisponível aos viventes.19

15 Perceba-se, nesse sentido, a inconsistência da teoria constitucionalista que, sem facticidade, sinala o déficit de direitos de “segunda geração” ou “dimensão” na população marginalizada. Ora, não é apenas a falta de prestações estatais que está em jogo. O Estado Liberal no Brasil sequer se implementou na integralidade. Habitantes de favelas, morros e palafitas não veem respeitados sequer os direitos individuais, sendo alvo preferencial de intervenções policiais sem qualquer limite. Não se trata, pois, apenas, de cidadãos que veem sonegadas prestações estatais, mas estão em paridade na igualdade diante da lei; trata-se, antes, de uma estrutura hierárquica de sociedade em que alguns estão simplesmente aquém da lei. 16 E imediatamente todos aqueles familiarizados com a desconstrução podem enxergar a possibilidade – ventilada pelo próprio Derrida em “Força de Lei” – da imediata desconstrução da teoria moderna do Direito, que se estrutura (a “vontade de sistema” é uma obsessão no mundo jurídico) justamente a partir da marginalização e exclusão arbitrária de tudo aquilo sobre o qual não incide. 17 O exemplo usado por Agamben é a discordância dos franciscanos em relação à interpretação do Papa João XXII sobre o consumo das coisas. Os franciscanos reivindicavam uma relação com a coisa não que apagasse ou substituísse as normativas, mas que desativasse qualquer direito sobre o item, restringindo-o ao puro uso (AGAMBEN, 2007, p.72). 18 Conferir, nesse aspecto, o brilhante artigo de Vladimir Safatle sobre Walter Benjamin, que posiciona Agamben justamente nesse sentido (2008:32). Ver também Agamben (2006, p.125). 19 É a razão pela qual Catherine Mills define Agamben e Derrida como autores de um espaço “pós-jurídico” (MILLS, 2008).

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É nesse sentido que devem ser compreendidas afirmações como a que encerra parte de “Estado de Exceção”, quando afirma que

um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los ao seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um novo uso, que só nasce depois dele (AGAMBEN, 2004, p.98).20

Os brinquedos, inicialmente objetos tão sérios que deviam ser depositados nos túmulos para acompanhar os defuntos no outro mundo, permitem acessar uma terceira área, que não está nem dentro nem fora do mundo, mas que precisamente abre o dentro e o fora, compreendida no topos outopos em que se situa nossa experiência de ser-no-mundo. Por essa razão, não são simples “objetos”; antes, nos permitem acessar essa dimensão a que estão familiarizados “fetichistas e crianças, ‘selvagens’ e poetas” (AGAMBEN, 2007b, p.98; 1993, p.71). É nessa região do brincar, mais originária que a dimensão sujeito/objeto, que se permite criar um novo uso para o direito – desvinculado da soberania.

O conceito de cidadão é deixado de lado em nome de uma política que seja capaz de responder ao desafio da vida nua, hoje ameaçador de miseráveis, san papiers e outros sem que a democracia liberal possa dar respostas consistentes. O vínculo com a cidade deve ser perfurado e articulado topologicamente por uma “fita de Möbius”, na qual exterior e interior de co-determinam. As cidades europeias, nesse caso, retomariam sua vocação de se relacionar por recíproca extraterritorialidade. Seríamos todos “nós, os refugiados” – “only in a world in which the spaces and states have been thus perforated and topologically deformed and in which the citizen has been able to recognize the refugee that he or she is – only in such a world is the political survival of humankind today thinkable” (AGAMBEN, 2000, p.25-6).

A proposta de Agamben certamente se distancia a léguas do garantismo, que é mais uma sistematização jurídico-analítica do programa da democracia liberal, formulado a partir das gerações de direitos e suas garantias (não por acaso um dos seus principais temas é o “princípio da secularização”). Enquanto os direitos humanos servem apenas para sinalar a decadência da cultura jurídica que aprisionou o político na Modernidade – da qual a área “humanitária” (separada da política) é a principal testemunha (como advertia Hannah Arendt, os direitos do homem falham sempre exatamente onde são

20 Parcos comentários têm sido dedicados à parte final – e decisiva – da “luta de gigantes” entre Schmitt e Benjamin, narrada no quarto capítulo de “Estado de Exceção”. Isso porque a conclusão é simplesmente incompreensível sem uma visão conjunta da obra de Agamben (ou de Benjamin), uma vez que povoada por conceitos técnicos que permeiam a obra do autor. Um desenvolvimento das ideias ali previstas está em Agamben (2005b, p.113-137), nos comentários à expressão paulina “eis euaggelion theou”. Uma pista está na própria interpretação de Diante da Lei (de Kafka) por Agamben, na qual a porta da lei ao final é fechada porque essa lei é consumada. Ver também Souza (2006).

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necessários) – a “política que vem” precisa de novas categorias para profanar os símbolos sagrados da tradição e construir uma nova felicidade (AGAMBEN, 2007a, p.67; 2002b, p.24; 2002a, p.140). Por trás desse projeto está a recuperação da “vida” que foi apropriada pela “lei”, tornando-se dessa indiscernível, como na aldeia que fica ao pé do Castelo de Kafka (2002a, p.61)21.

Nesse mundo futuro, anunciado pelo messianismo que se apropria do “tempo que resta22” (cumprindo a tese sobre a história de Benjamin quando afirma que o estado de exceção deve ser tornado real), a “máquina antropológica” é desativada e o homem se comunica por gestos, que são chamados por Agamben de “meios puros”. Nestes, a própria distinção entre o animal humano e o não-humano é desativada, configurando uma linguagem pura, que apenas comunica a si mesma (2002c, p.164-8; 2005a, p.40-1; 2006, p.126). Recuperar o sentido da ação política desconectada da violência do Direito (que institui ou conserva) parece ser a tarefa fundamental proposta por esse pensamento, cortando o nexo entre o Direito e a vida. Da discussão tradicional sobre quais fins justificam a violência, sobram apenas os meios sem fins. A política que vem, nesse sentido, é precisamente o terreno dos “meios puros” (2000, p.118).

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21 Ver, nesse sentido, a semelhança da proposta de Souza (2004), embora lastreada em outra trilha filosófica. Ver também Flickinger (2004). 22 A estrutura desse tempo messiânico está exposta no comentário à “Carta aos Romanos”, de Paulo, no qual Agamben define a relação com a lei em sentido simetricamente oposto a Carl Schmitt (o pensador anti-messiânico por excelência): enquanto a relação com o “fora” da lei inexiste no estado de exceção, à medida que as normas são aplicáveis na sua inaplicação, formando um espaço vazio (kenomatico) que é preenchido pela decisão com força de lei, no tempo messiânico a lei é “cumprida”, esgotada, chega-se à sua consumação a partir da justiça que a realiza – um pleroma, ao invés do espaço vazio da exceção (ver AGAMBEN, 2005b, p.107). Diz ele que “the messianic pleroma of the law is an Aufhebung of the state of exception, an absolutizing of katargesis” (108). Com essa formulação, Agamben dá ênfase sobretudo à parte final da Oitava Tese de Benjamin, evidentemente deixada de lado pelos seus comentaristas juristas, que posiciona a necessidade do “estado de exceção tornar-se real”.

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Direito e Democracia v.10 n.2 p.344-360 jul./dez. 2009Canoas

a carta, de Pero Vaz de caminha1

Edição de base:

carta a El Rei D. manuel, Dominus: São Paulo, 1963.2

Senhor,

posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para o bem contar e falar – o saiba pior que todos fazer!

Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.

Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza – porque o não saberei fazer – e os pilotos devem ter este cuidado.

E portanto, Senhor, do que hei de falar começo:

E digo quê:

A partida de Belém foi – como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.

Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser!

1 Conforme a Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XI, Coimbra: Impprensa da Universidade, 1933, p.1000, “A Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel – ‘narrativa incomparável da viagem de Pedro Álvares Cabral’, como disse Capistrano de Abreu – foi publicada pela primeira vez na Corografia Brasílica do Padre Manuel Aires de Casal, considerado o patriarca da geografia no Brasil”. Classificada como importante documento histórico e geográfico, pouco valor jurídico lhe tem sido reconhecido. Não obstante, trata-se de um documento que reproduz, com fidelidade, os primeiros atos jurídicos da civilização europeia nas terras brasileiras, a merecer atenção dos estudiosos do Direito: a tomada e exercício de posse, com a simbólica fixação da cruz na terra para ser rezada a primeira missa, as transações, mediante permuta, de produtos locais com quinquilharias trazidas do além mar, o exercício de poder traduzido pelo confessado desiderato de impor costumes e religião e explorar a riqueza da terra, entre outros, são fatores que justificam a sua reedição. (Nota da Editora)2 NUPILL – Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística © LCC Publicações Eletrônicas. www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf

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Direito e Democracia, v.10, n.2, jul./dez. 2009 345

Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais !

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas – os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da terra, lançamos ancoras, em dezenove braças – ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante – por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças – até meia légua da terra, onde todos lançamos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.

E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.

Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram.

E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.

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À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente a Capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.

E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças.

E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.

Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

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O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.

Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.

Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.

Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.

O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.

Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoradouro que é tão grande e tão formoso de

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dentro, e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os depuseram.

Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.

E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d’água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.

Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar.

Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais.

Dos que ali andavam, muitos – quase a maior parte – traziam aqueles bicos de osso nos beiços.

E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.

E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d’escaques.

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Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.

Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris d’água que nós levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.

Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela.

Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.

E com isto nos tornamos, e eles foram-se.

À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu – ele com todos nós – em um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.

Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.

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Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.

Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias – duas ou três que lá tinham – as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.

Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra.

Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam.

Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham.

Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal.

Apenas lhe davam cabaças d’água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.

Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não

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no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.

E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.

E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende.

Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar.

E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos.

E assim ficou determinado por parecer melhor a todos.

Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos.

Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o

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reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.

E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele.

Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.

Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum.

Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra.

Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.

Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles.

Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.

E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som

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da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.

E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.

E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.

Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem – para os bem amansarmos!

Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram – fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas.

Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.

Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se

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conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza.

E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.

Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.

Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos.

E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite.

Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau Capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta.

E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.

Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo,

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segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.

Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.

E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!

E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha.

Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar.

Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele não

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admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.

Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.

Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá.

Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.

Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.

Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo

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as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!

Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.

Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos – o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.

E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos

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de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais devoção.

Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos – um a um – ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado – era já bem uma hora depois do meio dia – viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.

E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.

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Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior – com respeito ao pudor.

Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.

Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.

Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos – terra que nos parecia muito extensa.

Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe.

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Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.

E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha.